Dissertacao Elisangela Original
Dissertacao Elisangela Original
Dissertacao Elisangela Original
SÃO PAULO
2012
ELISANGELA MARIA DA SILVA
SÃO PAULO
2012
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo
CDU 711:330.191.3
Ao meu pai, in memoriam.
AGRADECIMENTOS
Este é o momento em que o pesquisador faz uma retrospectiva dos passos da pesquisa,
e tenta não soar melancólico ou saudosista, mas aliviado, porque o trabalho terminou. Neste
caso, isso não é verdade, pois esta pesquisa me proporcionou contatos com tantas pessoas
incríveis que já sinto um toque de saudade.
Aos membros da banca de qualificação, Profª Drª Raquel Glezer e Prof. Dr. Paulo
Cesar Xavier Pereira, pelas indicações e direcionamento da pesquisa.
Ao Prof. Dr. Luís Soares de Camargo, por mostrar todo o potencial de pesquisa da
documentação no início do projeto.
Aos colegas do Treinamento Técnico FAPESP, pelas conversas sobre o século XIX e
os questionamentos plausíveis e implausíveis em tardes de verão.
Aos amigos Sheila Sheneck e Lindener Pareto Júnior, pelo apoio e companhia.
Aos meus familiares, principalmente minha mãe, Maria Aparecida da Silva, e minha
irmã, Eliane Aparecida da Silva, pelo apoio incondicional.
“Às vezes tenho a impressão de que surjo do que escrevi, como uma serpente surge de sua
pele. É bem possível que tenha algo de ofídico, ou seja, de serpente. E acredito que da cidade
de Lisboa poderia se dizer alguma coisa parecida. Labiríntica [...] com a eterna verdade vazia
daquele céu triste e cativante como nenhuma outra, Lisboa é elegante em seu serpentear, é
uma cidade que às vezes parece surgir como uma serpente surge de sua pele.”
Palavras-chave: estrutura fundiária, datas de terra, espaço urbano, rossio, concessões, Lei de
Terras, Registro Torrens, Câmara Municipal, História, São Paulo, Urbanização.
ABSTRACT
SILVA, Elisangela Maria da. Practices of appropriation and production of space in São
Paulo: the granting of municipal land through Letters from Dates (1850-1890). São
Paulo, 2012. Dissertation (Master of Architecture and Urbanism) – Faculty of Architecture
and Urbanism, University of São Paulo.
Cartas de Datas de Terras documents are essential for the study of the constitution of the land
structure of São Paulo. This legacy of the colonial period persisted throughout most of the 19th
century, and it is the formal request for a piece of land whithin the rossio – land granted from
the Chamber. This research aims to unravel the theoretical and practical mechanisms through
which these lots were granted after the creation of law no. 601 in 1850, the Lei de Terras
(Law of the Lands). Therefore, we have analyzed forty years of practice relating to the grating
of City Council Datas (pieces of land) in an attempt to quantify and qualify applicants, stake
out areas of higher incidence of concessions, seeking after a possible standard of distributing
of lots. The research followed the whole process of land transformation into financial asset to
replace the slaves as investments, covering the period from 1850 to 1890, chronological
beacons corresponding respectively to the Lei de Terras and the Torrens Registration. The
Torrens‟ Registry established new procedures for registration of land, thus making possible
the creation of a strong base mortgage. With this consolidation of credit, the land becomes a
financial asset. Almost simultaneously to the creation of this registry, the procedure of
granting pieces of land was extinguished signaling the end of a period marked by the useful
domain of the land and replaced with the concept of full domain or private property.
Keywords: land structure, granted land, urban space, rossio, Lei de Terras (Law of the
Lands), Torrens Registration, City Council, history, São Paulo, urbanization
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 18
ESTRUTURA ........................................................................................................................................... 41
CONCLUSÕES......................................................................................................................... 252
FONTES................................................................................................................................... 256
BIBLIOGRAFIA........................................................................................................................ 257
GLOSSÁRIO............................................................................................................................ 269
LISTA DAS ILUSTRAÇÕES
Figura 3 – Termo, Rossio e Perímetro Urbano com tipologias de uso das terras.
Gomes Cardim. Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008,
AHMWL...................................................................................................................................57
Figura 11 – Rua das Casinhas, atrás do Palácio do Governo e voltada para Várzea do
Carmo. Mappa da Cidade de São Paulo e seus Subúrbios (1844- 1847). Engenheiro Civil C.
A. Bresser. Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008,
AHMWL.................................................................................................................................137
Figura 12 – Hipódromo, 1897. Gomes Cardim. Fonte: Informativo Arquivo Histórico
Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL............................................................................141
Figura 15 – “Rua 25 de Março”, Antonio Ferrigno Antonio Ferrigno, 1894. Fonte: Acervo
da Pinacoteca do Estado de São Paulo....................................................................................147
Figura 19 – Extrato da Planta da Cidade de São Paulo 1868. Carlos Rath. Fonte:
Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL..........................172
Figura 23 – Brás e a chamada Várzea do Nicolau. São Paulo, chácaras e sítios e fazendas
ao redor do Centro, organizado pelo Engenheiro Gastão Cesar Bierrembach de Lima, para
a exposição do IV Centenário de São Paulo, em 1954. Fonte: Aguirra/Museu
Paulista/USP............................................................................................................................189
Figura 24 – Rua João Theodoro fazendo a ligação da zona central com a zona leste e a
Rua Nova do Jardim. Mappa da capital da província de São Paulo, por F. Albuquerque e J.
Martin, copiado por Francisco Sansoni, 1877. Fonte: Informativo Arquivo Histórico
Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL............................................................................200
Figura 25 – Rua Nova do Jardim e a Rua do Dr. João Theodoro. Cia Cantareira de
Esgotos, 1881. Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008,
AHMWL.................................................................................................................................201
Figura 26 – Rua Nova do Jardim e a Rua do Dr. João Theodoro em 1897. Gomes Cardim.
Planta Geral da Capital de São Paulo (1897). Fonte: Informativo Arquivo Histórico
Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL............................................................................201
Figura 32 – Pari. Cia Cantareira de Esgotos, 1881. Fonte: Informativo Arquivo Histórico
Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL............................................................................233
Figura 33 – Campo Redondo. Fonte: São Paulo das chácaras, sítios e fazendas ao redor do
centro: Arquivo Aguirra/Museu Paulista/USP e Planta Geral da Capital de São Paulo (1897):
Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL..........................236
Figura 34 – Palmeiras. Fonte: São Paulo das chácaras, sítios e fazendas ao redor do centro:
Arquivo Aguirra/Museu Paulista/USP e Planta Geral da Capital de São Paulo (1897):
Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL..........................237
Figura 35 – Chácara do Carvalho. Fonte: São Paulo das chácaras, sítios e fazendas
ao redor do centro: Arquivo Aguirra/Museu Paulista/USP e Planta Geral da Capital
de São Paulo (1897): Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008,
AHMWL.................................................................................................................................238
Figura 36 – Chácara do Wanderley. Fonte: São Paulo das chácaras, sítios e fazendas
ao redor do centro: Arquivo Aguirra/Museu Paulista/USP e Planta Geral da Capital
de São Paulo (1897): Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008,
AHMWL.................................................................................................................................239
Figura 37 – Ruas da Santa Ifigênia abrangidas pelo Relatório de 1893. Fontes: Mapa de
1881, Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL e Relatório
de 1893, APESP......................................................................................................................241
Figura 38 – Destaque nas ruas constantes do Relatório de 1893 em mapa de 1881. Fontes:
AHMWL e APESP.................................................................................................................242
Figura 44 – Planta Cadastral da cidade de São Paulo, Sta. Ephigenia. Levantada sob a
direcção do Engenheiro V. Huet de Bacellar. Fonte: APESP.................................................248
LISTA DE TABELAS
INTRODUÇÃO
A Lei de Terras visava criar um fundo que subsidiasse a imigração com a venda das
terras devolutas, prevendo, portanto, a mudança da mão de obra em um determinado período
de tempo, conforme a conjuntura internacional. O escravo era ativo financeiro, nesse período,
como garantia de crédito, ou seja, o crédito para a produção estava assentado na própria
ferramenta produtora. A mudança nesse sistema, conforme dissemos anteriormente, é um
movimento estrutural, assim Paulo Xavier Pereira afirma:
1
Como nos estudos pioneiros de MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: Livraria Editora
Ciências Humanas Ltda, 1979; MARX, Murillo. Cidade no Brasil: Terra de quem? São Paulo: Edusp/Nobel,
1991; e SUZUKI, Júlio César. “Expansão urbana da cidade de São Paulo: uma análise da transição nas formas de
apropriação da terra e de imóveis urbanos”, In: 6 Brazilian Studies Association International Congress 2002,
Atlanta-EUA, 2002, disponível em: http://www.sitemason.vanderbilt.edu (07/2008).
2
MELLO, Zélia Cardoso de. Metamorfoses da riqueza. São Paulo, 1845-1895. São Paulo: Hucitec, 1990.
3
Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850. COLLECÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1808-1889. Rio
de Janeiro. Imprensa Nacional.
4
Lei nº 581 de 04 de setembro de 1850. Idem.
19
Estamos investigando a gênese da formação da cidade, uma vez que nos atemos a
estudar as concessões de terras municipais para a população da cidade de São Paulo durante
seu período de transformações mais incisivas, no final do século XIX.
Esta pesquisa surgiu durante um estágio no Arquivo Histórico Municipal e faz parte
do Projeto de Pesquisa em Políticas Públicas Arquivo Histórico Municipal Washington Luís –
5
PEREIRA, Paulo Cesar Xavier. Questão da construção: Urbanização e industrialização em São Paulo
(1872-1914). São Paulo, 1990. Tese (Doutorado em Ciência Política). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, p. 25.
6
Ao ser elevada à vila, a Câmara de Vereadores recebia duas divisões administrativas. A primeira era o termo
da vila, seis léguas em todas as direções a partir do núcleo central, e um rossio, de meia légua em quadra para:
uso comum, edificação de prédios públicos, renda através do aforamento e concessões por Cartas de Datas. No
decorrer da pesquisa especificaremos essas duas regiões. Para aprofundamento sobre a questão, consultar
GLEZER, 2007.
7
FERNANDES, Ana; GOMES, Marco Aurélio de Filgueiras. “A pesquisa recente em história urbana no Brasil:
percursos e questões”. In: PADILHA, Nino (org.). Cidade e urbanismo: história, teorias e práticas. Salvador,
1998. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). FAUFBA, p. 13-28.
20
8
Coordenado por Nestor Goulart Reis Filho e Beatriz Bueno, esse projeto informatizou parte da Série das
Edificações Particulares (1906-1915) e o Fundo Particular Severo e Villares, pertencentes ao acervo do Arquivo
Municipal. Cerca de 30.000 documentos receberam tratamento arquivístico adequado – descrição documental
em catálogo informatizado, reprodução fotográfica e digital dos desenhos – com o intuito de facilitar a sua
consulta e preservação, bem como divulgar e despertar a atenção da comunidade para a riqueza desse acervo
sobre a cidade de São Paulo e sua arquitetura. O material tratado pode ser consultado no site
http://www.sirca.com.br/site/ .
9
Decreto 1.318 de 30 de janeiro de 1854. COLLECÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1808-1889.
Rio de Janeiro. Imprensa Nacional
10
Data significava dádiva ou benefício. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez & Latino. Coimbra, 1712-
1728. SILVA, Antonio de Moraes. Dicionário da língua portugueza. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813.
http://www.ieb.usp.br/online/index.asp
11
PRADO JR., Caio da Silva. “O fator geográfico na formação e no desenvolvimento da cidade de São Paulo”.
In: Evolução política do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1972. LANGEBUCH, Juergen Richard. A estruturação
da grande São Paulo: estudo de geografia urbana. Rio Claro, 1968. 564 f. Tese (Doutorado em Ciências
Sociais). Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, Universidade Estadual de Campinas. Ambos os
autores apontam para o fato de a cidade ser o centro de um sistema de comunicações hidrográfico,
geomorfológico e, principalmente, viário no Planalto.
21
12
SUZUKI, J. C. A gênese da moderna cidade de São Paulo. Apresentação de Trabalho/Comunicação.
Encontros Geográficos da América Latina, México, 2004. p. 7.
13
DOLHNIKOFF, M. “São Paulo na independência”. In: JANCSÓ, István. (org.). Independência: história e
historiografia. São Paulo: Hucitec, 2005, v. 1 , p. 557-575. A autora cita os nomes articuladores do processo de
Independência, tais como Diogo Antonio Feijó, Nicolau Pereira de Campos Vergueiro e Francisco de Paula
Sousa. Quando da articulação da lei de terras veremos também a atuação de alguns políticos paulistas.
14
Assim como a transcrição e reunião da documentação que analisaremos, essas narrativas que plantam um eixo
de mudanças para a cidade a partir de 1870 começaram a se desenvolver na década de 1930. Essa “matriz
explicativa” se inicia basicamente em 1935, com o artigo de Caio Prado Júnior sobre o papel das circunstâncias
geográficas favoráveis do sítio urbano paulista. Logo em seguida, o historiador Eurípedes de Paula Simões
define o ano de 1872 como “a segunda fundação de São Paulo”, condicionando as mudanças a três fatores
essenciais: ferrovia, imigração e João Theodoro (1828-1878) no governo da Província investindo em
melhoramentos urbanos na cidade. Como os estudos são sempre feitos tendo-se em conta os problemas do
presente do estudioso, quando verificamos a situação política de São Paulo em 1930 percebemos que a perda do
poder político na estrutura nacional faz com que os estudos do período se preocupem com uma ruptura, datando-
a exatamente no ponto em que a cidade atinge o seu auge, no século XIX. As interpretações começam a mudar
quando os estudos sobre o mercado interno brasileiro dão vazão a uma cidade muito mais ativa no início do
século XIX do que se supunha. Não cabe no âmbito desse trabalho uma análise aprofundada da historiografia das
narrativas sobre a cidade, entretanto, para um aprofundamento do assunto, consultar o primeiro capítulo de
FREHSE, Fraya, 2005; GLEZER, Raquel, 2007; para os estudos sobre mercado interno, consultar:
DOLHNIKOFF, M. Crescimento econômico em São Paulo. D. O. Leitura, São Paulo, v. 22, n. 1, p. 28-37, 2004;
MOURA, Denise A. de Macedo. Sociedade movediça: economia, cultura e relações sociais em São Paulo,
1808-1850. São Paulo: Editora Unesp, 2005.
22
Assembleia Provincial, a partir de 1828 15, tornando-as entidades meramente funcionais e com
recursos limitados para gerir a cidade. Os oficiais perdem recursos e poderes, tendo que
buscar um constante alinhamento com o presidente da Província, que era indicado pelo
Imperador, um elemento executivo alienígena. Nesse momento, para consertar estradas e
administrar os diversos aspectos da cidade, os oficiais da Câmara propõem o aforamento16
dos terrenos do rossio, com a intenção de arrecadar dinheiro para os parcos cofres camarários.
A partir de 1875, com as transformações físicas na cidade, inclusive para arcar com as
despesas para essas mudanças, as concessões passam a ter um valor determinado no
orçamento anual da Câmara. O novo imposto criado para as Cartas de Datas coincide com a
instalação dos núcleos de imigrantes de Santana e da Glória. O conflito existente entre a
venda de terras devolutas da Província e as concessões municipais cria tensões que faz com
que, em diversas ocasiões, a Câmara seja impedida de conceder terras de forma gratuita. O
15
Lei de 1º de outubro de 1828. Dá nova forma às Câmaras Municipais, marca suas atribuições, o processo para
sua eleição e dos Juízes de Paz. Collecção das Leis do Império do Brasil, 1808-1889. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional.
16
Aforamento – Dar algum prédio em foro. Tomar prédio rústico ou urbano por aforamento. Foro – Tributo
procedido de cousa foreira ao direito senhorio, que todos os anos se paga. Posse em que se constitue direito,
privilégio. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez & Latino. Coimbra, 1712-1728. SILVA, Antonio de
Moraes. Dicionário da língua portugueza. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813.
http://www.ieb.usp.br/online/index.asp
17
Foi inaugurada em 1867, mas os planos para sua instalação começaram efetivamente em 1859.
18
O discurso higienista já estava presente na questão da ocupação das áreas insalubres da cidade como as
inúmeras várzeas que cercavam a colina histórica. Era preferível a construção, em todos os casos, do que deixá-
las expostas. Para saber mais sobre essa questão consultar: GIORDANO, Carolina Celestino. Ações sanitárias na
imperial cidade de São Paulo: Mercados e Matadouros. Campinas, 2006. Dissertação (Mestrado em
Urbanismo), PUCCAMP, 2006.
23
que parece ocorrer, nesse período, é uma paridade forçada dos valores da terra para não haver
concorrência entre instâncias administrativas19. Entretanto, não é possível dizer que o rossio, a
partir de 1875, foi liberado para o mercado imobiliário porque as concessões ainda eram
condicionais. Os terrenos do rossio estavam submetidos a um sistema teoricamente rígido de
concessão e essa concessão era diferente do tipo de propriedade que conhecemos atualmente,
uma vez que era condicionada a determinadas exigências ou reverteria ao domínio da
Câmara, o que era usualmente chamado de comisso20.
No processo que se estende pelo último quartel do século XIX, observa-se uma
mudança na forma de apropriação da terra, antes concedida seguindo rígidas diretrizes, para
ser lentamente incorporada à economia de mercado, tornando-se propriedade privada. Por um
período de tempo esses dois procedimentos com relação à terra caminharam paralelamente.
19
BRITO, Mônica Silveira. Modernização e tradição: urbanização, propriedade da terra e crédito hipotecário
em São Paulo na segunda metade do século XIX. São Paulo, 2006. Tese (Doutorado em Geografia Humana).
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
20
Na jurisprudência do século XIX, comisso é a quebra de contrato, qualquer que seja. Aqui será utilizado ao
referirmos as terras que revertem ao domínio da Câmara Municipal caso não sejam beneficiadas, ou seja, não
sejam cercadas ou tenham construções dentro de um prazo preestabelecido.
21
POLANY, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 1980, p. 88.
24
a) Qual era a posição dessa parcela de terras, sob controle dos oficiais da Câmara frente
à própria legislação reguladora da propriedade fundiária? O rossio era considerado terra
urbana ou rural? Seria terra devoluta, segundo a definição da Lei de Terras? Qual era o
estatuto da Sesmaria do Conselho perante essa legislação e avisos reguladores dos anos 1850?
b) Quais foram os argumentos que os vereadores usaram para distribuir essas terras,
primeiro de forma gratuita e, após 1875, de forma onerosa? Quais eram os valores da terra
nesse momento?
22
RIBEIRO, Fernando V. Aguiar. Poder local e patrimonialismo: a Câmara Municipal e a concessão de terras
urbanas na vila de São Paulo (1560-1765). São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado em História Econômica).
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
25
d) Quais áreas foram distribuídas e por que? Quais as ligações desses locais com as
redes de sociabilidade da cidade? Nesse caso, a leitura das Atas da Câmara e do Registro
Geral nos deu pistas para entender por que determinadas áreas foram distribuídas em oposição
a outras. Em alguns casos, existiram problemas técnicos para a plena ocupação (várzea do
Brás, por exemplo); em outros casos, um interesse em ocupar áreas que estavam sendo
arruadas para melhorar as vias da cidade (novas ruas abertas), ou ainda, um interesse por lotes
nas vias de ligação da cidade, como o caso de pedido para estabelecer um rancho para
tropeiros na direção do Arouche, saída para Campinas, em 185923. No caso citado, a
instalação de um rancho na entrada da cidade era uma estratégia de negócio, como
analisaremos no Capítulo 3.
d) Como esses locais foram utilizados? Nesse caso, o cruzamento de dados com outras
fontes, como o Registro de Terras de São Paulo, por exemplo, ou a pesquisa de Maria Luiza
Ferreira de Oliveira24 nos auxiliaram a ter uma visão de conjunto das redes de sociabilidade
da cidade e sua integração como o todo. Alguns estudos comprovam que, a partir do final de
1870, as chácaras do entorno urbano foram desmembradas, arruadas e divididas em lotes para
venda. Desses arruamentos surgiram novos bairros. Portanto, a inserção de lotes e a ocupação
dos espaços se deram a partir do loteamento de chácaras, por um lado, e com a apropriação do
rossio através das Cartas de Datas, de outro.
Além do cruzamento com outras fontes, procuramos prestar atenção nos argumentos
dos requerentes para entender como seria utilizado o terreno. Expressões como: habitar,
cultivar, edificar morada de casas, fazer chácara, foram registradas sempre que surgiam.
23
Pedido feito por Henrique Moraes Pupo, concedido com a condição de ser revertida a Câmara em caso de
necessidade. COLLECÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1808-1889. Rio de Janeiro. Imprensa
Nacional, vol. XVIII, 1859.
24
OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Entre a casa e o armazém – relações sociais e experiência de
urbanização São Paulo, 1850-1900. São Paulo: Alameda, 2005.
25
Decreto 451 B de 31 de maio de 1890, regulamentado pelo Decreto 955-A de 5 de novembro de 1890.
COLEÇÃO DAS LEIS DO BRASIL, 1889-1930. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional.
26
até 1890, com a perspectiva do fim do sistema escravista e com o início do processo de
valorização da terra na cidade de São Paulo, que culminaria, em 1890, no Encilhamento26.
Portanto, nosso recorte temporal inicial é 1850 (Lei Eusébio de Queirós – Lei de
Terras) e se estende até 1890 (Registro Torrens), podendo ser prolongado até 189328, com a
lei que extingue definitivamente as Cartas de Datas. Passamos por todo o período da política
imperial e das regulamentações sobre o acesso à terra, acompanhando a expansão da cidade e
o processo de racionalização e especialização desses espaços apropriados e criados à medida
que o rossio era concedido.
Ao final desse período, teremos em São Paulo bairros voltados para a elite cafeeira e
bairros operários em uma cidade nitidamente separada por faixas de ocupação. O
investimento no mercado imobiliário cresceu conforme o adensamento da cidade. Os
imigrantes, escravos, ex-escravos e brancos livres provocaram, conforme previsto pelos
vereadores em 1859, uma procura crescente por moradias e a consequente elevação no preço
dos aluguéis, acelerando a ocupação de espaços na cidade.
26
Encilhamento foi a crise financeira que atingiu as praças comerciais em São Paulo e Rio de Janeiro entre
1889-1891, com forte teor especulativo. O Encilhamento causou uma bolha inflacionária, que vinha se formando
desde 1889. O Ministro da Fazenda, Rui Barbosa, na tentativa de estimular a industrialização do Brasil, adotou
uma política emissionista baseada em créditos livres aos investimentos industriais, garantidos pelas emissões
monetárias. Tais medidas geraram um movimento de especulação com papéis, a criação de empresas-fantasma e
aumento da inflação. Apesar do fracasso da política de Rui Barbosa, sua política monetária mais frouxa
possibilitou a formação de importantes grupos empresariais com atuação no mercado imobiliário.
27
LÉRIAS, Reineiro Antonio. O impacto do Encilhamento sobre a cidade de São Paulo nos anos 1890 e 1891.
São Paulo, 1987. Dissertação (Mestrado em História Econômica). FFLCH/USP, p. 110.
28
Lei nº 39 de 24 de maio de 1893. COLLECÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1808-1889. Rio de
Janeiro. Imprensa Nacional
27
DOCUMENTAÇÃO E METODOLOGIA
A documentação consultada como fonte primária foi produzida pela própria Câmara
Municipal. Documentação oficial, portanto, específica e direcionada, com seus pontos cegos e
viciada em uma única direção, mas que contém uma narrativa constante: “diálogos” sobre
como administrar a cidade, seus percalços, leituras e interpretações das leis, mudanças nas
Posturas Municipais – a sua prática, enfim. Essa documentação é rica em detalhes e
discussões sobre a cidade nesse período crucial de crescimento territorial e populacional.
Entretanto, possui a visão de apenas um dos agentes da história. Para encontrar as vozes
dissonantes é preciso atenção aos detalhes, às palavras e aos casos isolados, assim como aos
silêncios. O elemento negro, crucial para o funcionamento da cidade imperial, por exemplo,
aparece alijado do processo de concessão de terras. Entretanto, está aqui e ali, em locais
estratégicos (São Bernardo do Campo, Morro do Caaguaçu – futuro espigão da Avenida
Paulista), pedindo lotes, explicando seus porquês e sendo atendido em determinados
momentos. As mulheres, por seu turno, presentes nos estudos sobre São Paulo29, estão
também nas Cartas de Datas e têm voz ativa em muitos casos.
Parte dessa documentação foi desdobrada e publicada no início do século XX. No caso
específico das Cartas de Datas de Terra (escritas de próprio punho pelos pretendentes, para
serem lidas pelos oficiais da Câmara nas sessões) foram publicadas, com acréscimo de
qualquer menção de terra em outras produções camarárias, como as Atas, por exemplo, desde
1532 até o ano de 1864. Na verdade, as Cartas de Datas são parte de uma documentação
global da Câmara: o Registro Geral. A separação desses documentos ocorre conforme a
administração da cidade vai se especializando ao longo dos séculos. Logo, as Cartas pedindo
datas são separadas das atas de reuniões e os ofícios reunidos em um montante específico.
Assim, hoje em dia temos três vertentes que convergem em informações: as Atas da Câmara,
o Registro Geral e as Cartas de Datas.
29
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense,
1984.
30
No entanto, existem no arquivo livros chamados Cartas de Datas e Aforamento até a data limite de 1915.
Sabemos, porém, que a partir de 1890 só o aforamento de terrenos era autorizado, sendo as Cartas de Datas
extintas em 1893.
28
Ano Volume
TERRAS/DATAS
1842-1857 1
1852-1853 1 Volumes manuscritos
1854-1858 1 publicados
1859-1859 2
1860-1860 2
1861-1863 2
1864-1874 1
1875-1876 2
1877-1878 2
1879-1879 2
1880-1880 3
1881-1881 2
1882-1882 5
1883-1883 1 Volumes manuscritos
1884-1884 2
1885-1885 2
1886-1886 1
1887-1887 3
1888-1888 1
1889-1889 2
1890-1890 8
1891-1892 2
1892-1895 2 Volumes não consultados
1896-1896 2
1897-1897 4
1898-1898 12
1899-1915 2
Fonte: AHMWL/Manuscritos
29
31
A divisão de Documentação Histórica e Social era uma subdivisão do Departamento de Cultura. O
departamento foi organizado a partir de 1934, sob a coordenação de Mário de Andrade.
32
Apesar de a Câmara Municipal só disponibilizar livros específicos para esses registros de Cartas de Datas a
partir de 1740. Foram transcritas e publicadas todas as Atas, bem como o Registro Geral.
33
Na prática existem três séries manuscritas das Cartas de Datas: as Cartas reunidas sob o título Cartas de Datas
de Terra; as cartas espalhadas entre autos de alinhamentos na documentação chamada de Terras/Datas; as cartas
passadas pelos vereadores, não os pedidos, mas o documento oficial na documentação chamada Concessão de
Cartas de Datas. Além disso, existe uma série de mapas sobre distribuição de lotes e menções, nas Atas e no
Registro Geral da Câmara sobre a matéria.
30
Para entender esse contexto, é preciso compreender que, no momento anterior, São
Paulo tinha a primazia econômico-política no cenário político nacional. Em 1929, essa
liderança se desfaz e Getúlio Vargas assume o poder. Nesse contexto de perda de poder
político, a elite paulista se une ao poder público, que atrai para sua esfera uma série de
intelectuais que se engajam e executam ações visando o desenvolvimento urbano, cultural e
intelectual de São Paulo. Nesse ambiente, surgem a Escola de Sociologia e Política, a própria
Universidade de São Paulo e o Departamento de Cultura. É preciso deixar claro: não foi um
simples processo de recolha e divulgação de documentos históricos; era um estudo
sistemático e racional, uma construção em si, portanto. A Divisão de Documentação Histórica
criou intencionalmente uma narrativa unitária para as Cartas de Datas.
34
Esse é o mesmo período em que se produzem narrativas históricas que engrandecem a cidade, como já foi dito
a respeito de determinados estudos que localizam uma ruptura abrupta na história da cidade a partir de 1870.
Com os materiais do arquivo, foi feito o mesmo: cuidado, preservado, transcrito e disponibilizado ao público.
31
35
Paulo Duarte, em artigo na Revista Municipal do Arquivo Histórico, conta como, entre 1926-1931, reunia-se
um grupo de intelectuais formado por Mário de Andrade, Milliet, Paulo Duarte e Rubens Borba de Moraes, entre
outros, “gestando” o Departamento de Cultura. A oportunidade de colocar em prática as ideias gestadas por
longo tempo surgiu em 1934, com o retorno de Paulo Duarte à cena política.
32
Como sabemos, cada pequena decisão desse tipo influencia na leitura do conjunto. Feitas as
devidas ressalvas quanto à gênese da documentação, os documentos consultados foram:
1. Planta Geral da Capital de São Paulo (1897). Organizada sob a direção do Dr.
Gomes Cardim, Intendente de Obras. Foi utilizado como mapa-base para
espacializarmos a mancha de doações desde 1851.
O banco de dados foi o instrumento mais rico da análise porque possibilitou a resposta
a inúmeras perguntas sobre o processo de concessão do rossio da cidade. Por outro lado, cabe
a advertência de que, por ser uma documentação oficial seriada, por ter esse caráter duplo
(parte publicada e parte manuscrita), pelo volume crescente a partir de 1880 e pela pretensão
da pesquisadora em tentar listar todos os requerentes, o banco de dados não está completo,
assim como a pesquisa, que abre uma série de questões. Com isso, quero dizer que, por vezes,
não foi possível saber se o requerente conseguiu o lote; temos o lote distribuído, mas não
localizamos a carta do pedido; lista de localidades doadas com nomes ininteligíveis; nomes
duplicados para o mesmo pedido; ausência de localidade requerida ou deferida. Essa série de
problemas no tratamento do material precisa ser explicitada: tivemos a pretensão de saber
com exatidão o que foi doado e ocupado e, no decorrer do processo, nos demos conta de que
tal exatidão é impossível de ser conseguida e de que as falhas existem. Ainda assim, o esforço
de pesquisa produziu respostas interessantes para as perguntas suscitadas e questões abertas
para pesquisas futuras.
Apesar de as Cartas de Datas serem o foco da nossa pesquisa, a leitura das Atas foi de
suma importância para compor o cenário de argumentos e formas com que os vereadores
conseguiram distribuir terrenos urbanos de forma gratuita (até 1875) e suas posturas quanto
aos lugares a serem distribuídos, valores de impostos a serem pagos e todas as discussões
sobre o rossio.
limites entre áreas administradas pela Câmara e terras devolutas do próprio provincial; os
valores praticados nessas transações; os tamanhos desses lotes; a valorização de determinadas
áreas em detrimento de outras; as expectativas com a linha férrea Santos-Jundiaí.
Nessa direção, nossa pesquisa segue uma linha aberta pioneiramente por Raquel
Glezer39 e Murillo Marx sobre as questões fundiárias no espaço urbano. Os estudos voltados
para o mercado imobiliário tomaram impulso primeiramente no Rio de Janeiro através de
Fania Fridman40 e Nireu Cavalcanti analisando os agentes de produção do espaço carioca
desde os princípios da colonização, em uma verdadeira pesquisa arqueológica sobre a
ocupação e os agentes produtores de espaço na cidade. Em São Paulo, Beatriz Bueno41
procurou desvendar a tessitura da cidade seguindo a trilha aberta pelos cariocas e por Raquel
Glezer, através da análise da Décima Urbana de 180942, documentação rica em detalhes sobre
imóveis, valores e proprietários dos prédios dentro do perímetro arruado definido para a
incidência do imposto. Seus estudos demonstram a existência de um importante mercado
rentista no período colonial. Apesar de existir inúmeras diferenças quando falamos em
mercado imobiliário no início e no fim do século XIX, é impossível negar ou excluir a
importância dos imóveis em São Paulo, principalmente quanto a sua localidade, desde o início
do século XIX.
39
GLEZER, Raquel. Chão de terra e outros ensaios sobre São Paulo. São Paulo: Alameda, 2007. MARX,
Murillo. Cidade no Brasil: Terra de quem? São Paulo: EDUSP/Nobel, 1991.
40
CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção da cidade da invasão francesa
até a chegada da Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004; FRIDMAN, Fânia. Donos do Rio em nome do rei:
uma história fundiária da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Garamond, 1999.
41
BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Aspectos do mercado imobiliário em perspectiva histórica: São Paulo
(1809-1950). São Paulo: FAUUSP, 2008.
42
Imposto criado com a chegada da orte em 1809 recaía sobre um perímetro arruado da cidade. Falaremos mais
sobre esse imposto no capítulo 1.
43
SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 1996
38
ocupadas irregularmente. Apesar de ser precursora no estudo da lei, a autora tende a polarizar
a situação, colocando a lei como gestora do conflito de terras quando, conforme veremos a
seguir, outra linha de estudos sugere que os conflitos sobre apropriação territorial deram
origem à discussão e implantação da lei.
É necessário praticamente uma década para outra pesquisadora retomar o tema, sob
outro ângulo. Embora o tema norteador da tese de Simoni46 seja o arruamento de terras, ela
desenvolve uma pesquisa de suma importância para o entendimento da formação territorial
44
MÔNACO, Roberto. As terras devolutas e o crescimento da cidade de São Paulo: 1554 a 1930. São Paulo,
1991. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
Universidade de São Paulo.
45
Índice que, apesar de ser confiável para o período colonial, é falho para o período posterior a 1820.
46
SIMONI, Lucia Noêmia. O arruamento de terras e o processo de formação do espaço urbano no município de
São Paulo: 1840-1930. São Paulo, 2002. Tese (Doutorado em Estruturas Ambientais Urbanas) – Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo.
39
em São Paulo. Seu objetivo era entender a ocupação e o parcelamento do solo urbano através
dos arruamentos, particulares ou públicos, aprovados ou não pela Câmara. Para estudar os
arruamentos, Simoni estudou as formações e transformações urbanas e, principalmente, o
ordenamento jurídico da propriedade de terras. Ela discorre sobre a legislação, posse,
usurpação e a formação da cidade de São Paulo utilizando como fontes as Cartas de Datas,
Autos de Aforamentos, Atas e Anais da Câmara, Registro Geral e a Legislação,
documentação produzida oficialmente, dando ênfase ao processo de apropriação territorial
principalmente após 1875, por considerar este um período de intenso crescimento urbano no
sentido populacional. Por várias vezes ela fala sobre as concessões de terra municipais, mas
esse não é o seu principal objeto de estudo. No entanto, seu trabalho é crucial para o
entendimento do ordenamento territorial que será adotado em São Paulo e das relações entre
particulares e a Câmara Municipal no tocante a arruamentos e parcelamento de terrenos no
período pós-Lei de Terras.
47
BRITO, Mônica Silveira. A participação da iniciativa privada na produção do espaço urbano: São Paulo,
1890-1911. São Paulo, 2000. Dissertação (Mestrado em Geografia Humana) – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo; BRITO, Mônica Silveira. Modernização e tradição: urbanização,
propriedade da terra e crédito hipotecário em São Paulo na segunda metade do século XIX. São Paulo, 2006.
Tese (Doutorado em Geografia Humana), FFLCH-USP.
40
48
PIRES, Walter. Configuração territorial, urbanização e patrimônio: Colônia da Glória (1876-1904), São
Paulo, 2003. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
Universidade de São Paulo.
49
Especificamente sobre o período colonial: GLEZER, Raquel. Chão de terra e outros ensaios sobre São Paulo.
São Paulo: Alameda, 2007; artigo sobre a incidência da Lei de Terras no urbano em São Paulo: GLEZER,
Raquel. “Persistências do Antigo Regime na legislação sobre a propriedade territorial urbana no Brasil: o caso da
cidade de São Paulo (1850-1916)”. In: Revista Complutense de História de América, v. 33, p. 197-215, Madrid,
2007.
50
Regulamento para a execução da Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850. COLLECÇÃO DAS LEIS DO
IMPÉRIO DO BRASIL, 1808-1889. Rio de Janeiro. Imprensa Nacional
51
Aviso Circular de 12 de outubro de 1854 respondendo às questões da Província do Amazonas sobre como agir
com referência às terras do rossio ou aforadas. Voltaremos a falar sobre esse aviso circular no Capítulo 1.
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de S.Paulo;
Departamento de Cultura, 1914-1951 v. 43, 1857, p. 214-215.
52
É perigoso falar em urbano para esse período. Os usos da cidade eram mistos, a especialização em zonas
específicas começa a se aprofundar a partir de 1880; ver em ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei – legislação,
política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo: FAPESP/Studio Nobel, 1997. Para esse estudo,
preferimos utilizar a expressão “áreas arruadas” para diferenciar as regiões que consideramos ocupadas, das
“áreas não arruadas”, de uso exclusivamente agrícola.
41
ESTRUTURA
53
SECRETO, Maria Verônica. Legislação sobre terras no Brasil do oitocentos: definindo a propriedade. In:
Raízes, Campina Grande, v. 26, n. 1 e 2, p. 10-20, jan./dez. 2007.
54
A tensão é perceber como ora esses pequenos proprietários se alinham com um grande senhor e ora defendem
suas terras. Por um longo tempo, os estudos históricos opuseram grandes fazendeiros aos outros, minimizando o
papel dos homens “comuns” na história. Esses estudos resgatam a história desses homens livres, trazendo à tona
questionamentos sobre as posições políticas, interpretação das leis e interesses não apenas dos grandes
fazendeiros. Tanto Maria Verônica Secreto quanto Márcia Menendes Motta seguem uma ótica thompsoniana,
como as próprias autoras afirmam, referindo-se aos estudos do historiador inglês E. P. Thompson, de concepção
marxista, mas que aborda as questões econômicas por um viés de “construção de experiência histórica”, ou seja,
negociações e aprendizado, com enfoque sobre os homens comuns, principalmente trabalhadores.
42
anteriores, procuramos analisar não apenas o crescimento da cidade através das concessões,
mas principalmente entender como era o processo e as pessoas envolvidas nas duas pontas
desse sistema: requerentes e oficiais da Câmara.
55
Ambas possuem uma vasta pesquisa sobre os mecanismos da política Imperial. Pertinente a essa pesquisa
destacamos: DOLHNIKOFF, M. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil, São Paulo: Globo, 2005.
43
CAPÍTULO 1
A cidade não dissocia: ao contrário, faz convergirem, num mesmo tempo, os fragmentos
de espaço e os hábitos vindos de diversos momentos do passado.
(LEPETIT, 2001, p.141)
As questões que a Lei de Terras suscita, entretanto, estão longe de ser um consenso 57.
Elaborada para subsidiar a imigração, a lei teve um caráter duplo: formar um fundo para
colonização e normatizar o acesso às terras. Apesar de, num primeiro momento, praticamente
nada regulamentar quanto às terras urbanas, a lei será passível de interpretação por parte das
autoridades, no que diz respeito às cidades, a partir de 1854. As questões que este capítulo
procura responder versam sobre a incidência e interpretação da lei, especificamente na cidade
56
MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas Ltda. 1979,
p. 26.
57
O estabelecimento da lei não significa que antes dela não houvesse transações de compra e venda. Consultar
SUZUKI, J. C. “A gênese da moderna cidade de São Paulo”. Apresentação de Trabalho/Comunicação.
Encontros Geográficos da América Latina, México, 2004.
44
58
SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campinas: Editora da Unicamp,
1996.
59
MOTTA, Márcia Maria Menendes. Direito à terra no Brasil – A gestação do conflito 1795-1824. São Paulo:
Editora Alameda, 2009.
60
MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder – Conflito e direito à terra no Brasil do século
XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro/Vício de Leitura, 1998, p. 152.
46
questão, era prática comum os sesmeiros não retirá-la, por causa dos ônus do processo. Logo,
sesmeiros e posseiros agiam através de irregularidades e muitas vezes em conluio, apesar de
aparecerem geralmente em oposição: o pequeno posseiro auxiliava o sesmeiro a expandir seus
terrenos e, em muitos casos, a figura do sesmeiro-posseiro, ou seja, o sesmeiro aumentava
suas terras através do apossamento.
O apossamento era reconhecido como costume desde, pelo menos, 1769, com o
estabelecimento da Lei da Boa Razão pelo marquês de Pombal. O reconhecimento da posse
como costume servia para cercear o poder dos sesmeiros (MOTTA, 1998). Logo, podemos
entender que a suspensão da instituição das sesmarias em 1822, atendendo a pedidos de
posseiros do Nordeste (MOTTA, 1998), representava um rompimento com o sistema de
controle da Coroa portuguesa. Revogado o “privilégio condicional” em 182261, as sesmarias
viraram sinônimo de largas porções de terras incultas, em oposição ao posseiro, elemento
“nacional”, auxiliar da expansão, que beneficiava o território, cultivando-o. O entendimento,
por parte dos posseiros era de que a revogação das sesmarias não se aplicava à posse62.
Estavam formados os grupos que se oporiam em todas as discussões posteriores sobre a Lei
de Terras: sesmeiros e posseiros. Um olhar superficial diria que são opostos, mas a prática de
ambos era complementar e se sobrepunha, em diversas ocasiões.
A Lei de Terras nunca foi proposta como uma reforma agrária, pois, em todos os
casos, a ação da lei era retroativa, ou seja, regularizava posses e sesmarias passadas, diferindo
em alguns pontos apenas sobre o tamanho e o tempo da posse a regularizar e, claro, sobre o
valor dos impostos pagos nesses casos. Uma lei agrária já era pensada desde 182163, antes da
suspensão das sesmarias, o que demonstra que os problemas de ocupação territorial eram
anteriores à lei.
61
“O fim do sistema de sesmaria consagrou, na prática, a importância social da figura do posseiro”. MOTTA,
1998, p. 161.
62
A base para essa análise foi: SECRETO, Maria Verônica. “Legislação sobre terras no Brasil do oitocentos:
definindo a propriedade”. In: Raízes, Campina Grande, v. 26, n. 1 e 2, p. 10-20, jan./dez. 2007.
63
José Bonifácio de Andrada e Silva, quando da Convocação dos representantes brasileiros à Corte Portuguesa,
propôs uma lei que regulamentasse o acesso às terras; em 1828 foi a vez do Padre Diogo Antonio Feijó. Em
ambos os casos, o cultivo era essencial para manter as terras; diferiam quanto ao apossamento e ao acesso de
quais camadas aos bens “nacionais”. Para um estudo mais detalhado de ambos, consultar MOTTA, 1998,
capítulo IV.
47
entretanto, torna-se mais forte do que suas funções de regulamentar o acesso às terras. Não é à
toa que a lei falará basicamente sobre terras rurais e devolutas, organizando sua manutenção e
venda, porque esse é o foco da questão. Além disso, o acesso às terras teria que ser limitado
e/ou no mínimo dificultado, complementando o processo de fixação do colono à terra antes de
sua emancipação.
Em 184364, uma proposta foi apresentada por Bernardo Pereira de Vasconcelos e José
Cesário de Miranda Ribeiro. Influenciados pelas ideias de Wakefield65 para a Austrália, a
intenção era criar um mercado de terras para que o colono que aqui se estabelecesse não se
tornasse imediatamente proprietário, vendendo seu trabalho por um período antes de poder
adquirir um terreno por conta própria. Embora sob um gabinete inteiramente conservador e
centralizador, o projeto foi motivo de muitas discussões e modificações ao longo do tempo.
Em qual ponto do projeto eles discordavam66? Praticamente todos se recusavam a pagar os
impostos propostos para o estabelecimento de colônias. Concordavam com o estabelecimento
delas, mas quanto a arcar com o ônus era um verdadeiro „jogo de empurra‟, como afirma
Miriam Dolhnikoff:
[...] cada uma das instâncias de governo procurava transferir para a outra as
despesas e concentrar em suas mãos as receitas, além de empenhar-se em
ampliar os objetos sobre os quais tinha competência de decisão.67
64
Apesar de ter sido pensada nos anos 1820, o processo político do Império, com a abdicação, e a regência, a
agitação social e as disputas: “trouxeram obstáculos a uma política relacionada à questão da distribuição de
terras no país”. MOTTA, 1998, p. 171.
65
A colonização sistemática de Wakefield parte do pressuposto que é preciso estipular um preço suficiente para
as terras como forma de impedir que os trabalhadores se instalem por conta própria. Ademais, o resultado da
venda de terras deveria ser utilizado para importar colonos que, sem condições de adquirir uma parcela de terra,
tornar-se-iam trabalhadores assalariados. Uma análise mais recente acerca da contribuição do sistema de
Wakefield para a elaboração da Lei de Terras é o trabalho de Roberto Smith. Segundo o autor, “a inspiração que
serviu de eixo à elaboração do anteprojeto esteve amplamente baseada na contribuição de Wakefield”. No
entanto, o autor considera que a regularização das terras proposta pelo projeto não se “inscrevia como um projeto
de povoamento [como o pensado por Wakefield] e, sim, visando às transformações das relações de trabalho”
SMITH, Roberto. Propriedade da Terra & Transição. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 237-338.
66
José Murilo de Carvalho fala em um projeto radical de um órgão considerado conservador. O projeto previa
medição e titulação de posses mediante a possibilidade de virarem terras devolutas; ora, a lei de 1850 terá os
mesmos dispositivos, embora mais alargados, e ainda assim eles aparentemente não funcionarão.
67
DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo, 2005, p. 253.
48
Era preciso regularizar e vender as terras devolutas e era viável criar um fundo de
reserva para financiar a imigração, mas não era interessante pagar impostos a partir do
tamanho das suas terras e arcar com o ônus das mudanças desse sistema.
A Lei de Terras foi aprovada exatamente quatorze dias após a Lei Eusébio de Queirós,
que suspendeu o tráfico de escravos no território brasileiro, o que significa que o problema
com a mão de obra impulsionou a aprovação da lei muito mais do que as diferenças entre
posseiros e sesmeiros e a égide do gabinete, fosse ele conservador ou não. A lei, sem dúvida,
foi uma vitória dos posseiros e do eixo Sudeste, em diferentes aspectos. Se o grupo do
Sudeste cafeeiro em expansão foi favorecido, uma vez que a posse poderia ser revalidada,
como diz a lei, não podemos entendê-la como letra morta e ineficiente; ao contrário, ela
favoreceu explicitamente um determinado grupo em ascensão naquele momento.
68
Essa parece ter sido realmente uma preocupação válida, pois para ter o domínio, título de propriedade, era
necessária a medição e os profissionais para realizar esse trabalho eram poucos.
69
Apesar das diferenças regionais e do grupo de cafeicultores do Rio de Janeiro parecia estar mais preocupados
com a questão da colonização do que o grupo opositor.
70
MOTTA, Márcia Maria Menendes. “Sesmeiros e Posseiros nas Malhas da Lei (Um estudo sobre os debates
parlamentares acerca do projeto de Lei de Terras – 1843/1850)”. In: Raízes, Campina Grande, v. 17, n. 18,
set./98.
49
domínio condicionado ao cultivo, como anteriormente. Por outro lado, a lei não teve força
para reordenar o território, ou seja, sua implantação racionalizadora não foi eficiente 71. Todos
concordam que a posse foi extremamente favorecida com a lei, e que o descontrole sobre as
terras devolutas do Império era grande, gerando inúmeros casos de apossamentos. Afirmam
que o descontrole sobre as terras públicas era culpa exclusiva dos posseiros, pessoas que se
aproveitavam das brechas da lei para amealhar extensas glebas de terra. No entanto, o embate
entre posseiros e sesmeiros revela duas formas de apropriação territorial anteriores à própria
lei em si, dois grupos com interesses específicos e com argumentos diferentes: o privilégio,
representado pela concessão produtiva de uma sesmaria; o uso produtivo, representado pelo
apossamento e aproveitamento da terra inculta e abandonada. Ambos os interesses estiveram
em conflito antes da suspensão das sesmarias e procuraram a resolução dos seus problemas
através dos meios legais dentro do sistema representativo então vigente.
Entretanto, como a Lei agiu nos núcleos urbanos, uma vez que sua incidência em 1850
parecia se limitar exclusivamente ao rural?
71
SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 1996; CARVALHO, José Murilo de. “Modernização frustrada: a política de terras no Império. Revista
Brasileira de História n. 1, ANPUH, São Paulo, 1981; BRITO, Mônica Silveira. Modernização e tradição:
urbanização, propriedade da terra e crédito hipotecário em São Paulo na segunda metade do século XIX. São
Paulo, 2006. Tese (Doutorado em Geografia Humana). FFLCH-USP. Os dois primeiros autores consideram a lei
letra morta, e a terceira, um processo de racionalização moderno em um ambiente não favorável a mudanças.
50
72
Utilizamos a divisão efetuada VARON, Conceição Maria Ferraz de. São Paulo: terra, propriedade e
descontrole. São Paulo, 2005. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo, Universidade de São Paulo, p. 60 e 61.
73
A palavra utilizada é domínio e domínio útil. Nesse sentido quem domina, “governa e manda como senhor e
soberano”, sendo esse um conceito distinto do conceito de propriedade. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário
Portuguez & Latino. Coimbra, 1712-1728. SILVA, Antonio de Moraes. Dicionário da língua portugueza.
Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813. http://www.ieb.usp.br/online/index.asp
74
Cabe uma ressalva quanto a utilização dos termos comum e comunal, relativos aos usos da terra. Os
dicionários consultados revelam que a palavra “comum” significa ao mesmo tempo comunicar e comungar,
comutação e comunhão, revelando dois sentidos interligados. Podemos aplicar ao uso das terras: passagem de
uso comum – que comunica – com outro lugar; uso em comum – comunhão – das fontes de água ou de outros
recursos naturais. Os dicionários não registram o sentido de “comunal”, portanto, optamos por utilizar a
expressão terras de uso comum, já que a expressão antecede o sentido de propriedade, presente quando da
utilização “comunal”, que aplica o sentido de pertença integral. As terras de uso comum não são uma
propriedade coletiva, elas são de usufruto por costumes anteriores e direito consuetudinário. BLUTEAU,
Raphael. Op. Cit; CAMPOS, Nazareno José de. Terras de uso comum no Brasil – um estudo de suas diferentes
formas. São Paulo, 2000. Tese (Doutorado em Geografia Humana). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo.
51
Se por um lado transações com terra já aconteciam antes da lei, por outro, esta pode
ser considerada um marco divisor na forma de entendimento da terra, ou seja, foi a
responsável por alterar a percepção acerca do que era ou não propriedade – claro, em conjunto
com outros fatores, como o crescimento econômico e o populacional, a demanda por moradias
na cidade, o preço dos aluguéis e a própria alteração de empregos de capitais introduzida por
ela.
75
BRITO, Mônica Silveira. Modernização e tradição: urbanização, propriedade da terra e crédito hipotecário
em São Paulo na segunda metade do século XIX. São Paulo, 2006. Tese (Doutoramento em Geografia Humana),
FFLCH-USP.
52
URBANO
Historicamente, a cidade de São Paulo, sendo uma vila transferida, não possuiu foral
de criação. Isso dificultou76 a definição das suas áreas administrativas, sobrepondo rossio e
termo e dificultando a delimitação de ambas.
O termo seria a área administrada ou sob jurisdição da Câmara, constando seis léguas
em todas as direções a partir da Sé, aproximadamente 36 quilômetros – em bases atuais,
configurando o que chamamos de município. Quando da elevação de uma povoação à
categoria de vila ou cidade atribuía-se a ela uma jurisdição territorial. A administração das
terras era exercida pelos oficiais do Conselho que, inicialmente, reunia funções legislativas,
judiciárias, militares e tributárias, sobretudo composto por cidadãos eleitos entre os “homens
bons”, os melhores da terra (SIMONI, 2002, p. 17-18). A partir de 182877 as Câmaras perdem
muito de seus direitos, principalmente tributários, judiciários e militares tornando-se
“corporações meramente administrativas78”. É nesse contexto que temos de inserir a Lei de
Terras. O termo era recortado por sesmarias e usualmente a Câmara aforava terras nessas
localidades (SIMONI, 2002, p. 19). No termo também poderiam haver concessões por parte
dos oficiais do Conselho.
Usualmente o Conselho recebia um patrimônio, que deve ser separado do termo: “[...]
para rocio desta ditta villa para casas e para gado e para tudo aquilo que o povo tiver
necessidade das quaes terras elles ditos officaes as darão de sua mão para o que lhe bem
parecer [...]”.79
76
GLEZER, Raquel. Chão de terra e outros ensaios sobre São Paulo. São Paulo: Alameda, 2007
77
“Lei de 1º de outubro de 1828. Da nova forma as Camaras Municipais, marca suas attribuições, e o processo
para sua eleição, e dos Juízes de Paz” In COLLECÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1808-1889. Rio
de Janeiro. Imprensa Nacional.
78
Artigo 24º da Lei de 1º de outubro de 1828. Idem.
79
“Registro de Autoamento da Carta da Camara do rocio desta Villa e demarcação”, datado de 1598 e copiado
nos livros em 1631 (Cartas de Datas, ano 1598, 31, 28 de fevereiro de 1598, p. 78-81), apud GLEZER, Raquel.
Chão de terra e outros ensaios sobre São Paulo. São Paulo: Alameda, 2007.
53
2) Campos de “uso comum” – o rossio serviria também como uma reserva de terras para
logradouros públicos e campos de uso comum para pastagem, retirada de lenha,
abastecimento de água, lavagem de roupa. Ainda era necessário ter essa reserva de terras para
construção de prédios públicos como matadouros, cemitérios, hospitais. Em São Paulo a
velocidade da ocupação dos espaços foi tamanha a partir de 1850 que, em pouco tempo, as
reclamações sobre ocupação desses espaços de uso comum eram enviadas aos oficiais da
Câmara. Era usual uma pessoa amealhar um pedaço do caminho para acrescentar à sua casa,
cercar a fonte de água causando grande comoção na população, fechar uma estrada usada
desde tempos imemoriais. Aliás, como veremos adiante, fechar uma passagem para fontes de
água sempre era motivo de comoção popular em uma cidade com problemas crônicos de
abastecimento.
Rossio seria, portanto, essa antiga Sesmaria do Conselho, doada para o usufruto
comum e sob controle da Câmara, passível de distribuição para a população ou aferimento de
rendas para os cofres municipais e, ao mesmo tempo, destinada à expansão territorial da vila.
Glezer também detectou as diferenças entre a doação de sesmarias e a doação do “’chão” ou
80
Regulamento Artigo 42: “Não poderão vender, aforar, ou trocar bens immoveis do Conselho sem autoridade
do Presidente da Província em Conselho, emquanto não se instalarem os Conselhos Geraes, e na Corte sem a do
Ministro do Império, exprimindo os motivos, e vantagens da alienação, aforamento ou troca, com a descrição
topographica, e avaliação por peritos dos bens que se pretende alienar, aforar ou trocar”. Lei de 1º de outubro de
1828 In COLLECÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1808-1889. Rio de Janeiro. Imprensa Nacional.
54
“data de terra”: tamanho e forma de concessão. Basicamente, a sesmaria seria concedida por
ato do rei ou via donatário, demandando capitais por parte do requerente e situação social e
podendo ser uma grande extensão de terra, geralmente medida em léguas; os “chãos” ou
“datas de terra” eram concedidos pela Câmara e em braças, referência de tamanho menor.
81
“Registro Geral da Câmara da Cidade de S. Paulo, 1830-1831”. São Paulo. Publicação oficial do
Departamento de Cultura – Divisão de Documentação Histórica e social (secção Histórica), vol. XXI, século
XIX, Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais”, São Paulo, 1936, p. 347.
82
SIMONI, Lucia Noemia. O arruamento de terras e o processo de formação do espaço urbano no município de
São Paulo: 1840-1930. São Paulo, 2002. Tese (Doutorado em Estruturas Ambientais Urbanas) - Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, p. 26.
55
diferenciação apenas o tamanho do terreno concedido em cada uma: menor na área urbana e
maior nos entornos menos arruados.
83
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_32/alvara_imposto.htm
84
GLEZER, 1992, p. 65.
85
Cabe ressaltar que essas denominações não desaparecem, assim como as demarcações, o que vai lentamente
sendo transformado é o sentido para o uso dessas áreas, que se inicialmente tinham propósitos múltiplos –
expansão, uso comum, rendimento – tornam-se, na fala dos vereadores para concessão gratuita, em área de uso
comum dos moradores da cidade.
56
Planta Geral da Capital de São Paulo (1897) – Organizada sob a direcção do Dr. Gomes Cardim, Intendente de
Obras” Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008.
http://www.arquivohistorico.sp.gov.br – consulta em 22/05/2011.
Figura 2 - Termo, Rossio e Perímetro urbano em 1897. Gomes Cardim.. Detalhe da planta de 1897, após
demarcação das terras devolutas e extinção do rossio. Na planta temos as definições físicas do município em
vermelho; o antigo rossio de meia légua em quadra em verde e o de uma légua em amarelo, “deslocado” para o
leste e oeste de forma visível. Nota-se a medida em quadra e não circular. Em hachurado, além da circunscrição
do rossio de meia légua em verde, o perímetro urbano, evidentemente maior em 1897 do que em 1850; observa-
se que ele ultrapassa a meia légua nas direções oeste e leste. A área entre o arruado e o perímetro definido para o
rossio seriam as “áreas remanescentes”, fora do registro da Décima, mas teoricamente dentro do Registro
Paroquial a partir de 1854. Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL.
57
O correto é afirmar que, dentro do termo está o rossio, e que esse envolve áreas
urbanas e compreende áreas rurais a ele envoltórias. Nesse sentido, podemos afirmar que a
Lei de Terras define como urbano a área de incidência da Décima e procura regulamentar as
áreas de uso comum ignorando propositalmente a antiga demarcação do rossio, ou melhor,
incorporando-o ao conceito de terras devolutas do próprio provincial até que os vereadores
provem o contrário. Esse aparente esquecimento da Lei de Terras quanto à Sesmaria do
Conselho pode ser explicado como a tentativa de racionalização e ruptura com o antigo
sistema próprio da lei, como conceituou Britto (2006), a ação modernizadora. Contribuiu
também o fato de ser uma lei estritamente vinculada à imigração, voltada, portanto, para as
áreas rurais passíveis de venda e capazes de subsidiar a vinda de imigrantes.
Figura 3 – Termo, Rossio e Perímetro Urbano com tipologias de uso das terras. Gomes Cardim.
Verificamos a simultaneidade de algumas práticas, como a de conceder Cartas de Datas no termo da cidade e a
existência de sesmarias em comisso, tanto no rossio quanto no termo. Por outro lado, as terras aforadas
aparecem quase que exclusivamente no perímetro arruado. Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4
(20): set./out.2008, AHMWL.
58
No sentido de provar que essas terras do rossio existiam e estavam sob sua jurisdição e
guarda, os vereadores enviaram ofícios acompanhados da própria carta de doação da Sesmaria
do Conselho assinada por Martim Afonso, reiteradamente ao governo da Província, negando
com veemência a existência de terras devolutas para venda e controle da Província dentro
dela, como podemos perceber por esse ofício de 1858:
Assim, pois, a Cama. Mal. tem deliberado para reservar pa. logradouro
publico d‟este município até a máxima extensão de hum quarto de legoa
quadrada, ou meia legoa em pirimtro de campos e nas segtes localides. e
direções:
Excluindo essa área os terrenos seriam devolutos e poderiam ser vendidos pela
Província. Se observarmos, os limites propostos são bem maiores do que a meia légua
existente em 1858.
86
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, vol XIX, 1859, p. 146-161.
59
Figura 4- Perímetro do Rossio segundo os vereadores em 1858. Gomes Cardim, 1897. Em destaque
em vermelho o que deveria ser o perímetro do período. Nota-se que o significado de máxima extensão da
meia légua quase englobava uma, como viria a ser em 1897. Fonte: Informativo Arquivo Histórico
Municipal, 4 (20): se.t/out.2008, AHMWL.
A área correspondente ao rossio era delimitada por quatro marcos: a leste, para os
lados da Penha na Av. Celso Garcia (antigo caminho do Brás e Av. da Intendência no mapa
utilizado); ao norte, para os lados de Santana, na Av. Voluntários da Pátria; a oeste, na direção
de Pinheiros, na altura da Av. Paulista, e no quadrante sul, na altura do bairro do Ipiranga87.
Os vereadores conheciam a extensão de sua antiga sesmaria e a protegiam, separando-a das
terras devolutas da Província.
Quando os preparativos para implantar uma colônia de imigrantes em São Paulo foram
iniciados em 1874, o governo da Província pede novas informações sobre as áreas boas para
cultivo88. As respostas dos vereadores foram sempre vagas por falta de dados. Quando a
província toma as rédeas da medição, eles discordam das informações, como no caso dos
87
CAMARGO, Luís Soares de. “Habitações populares em São Paulo: precedentes”. Informativo Arquivo
Histórico Municipal, 4 (19), jul/ago.2008. http://www.arquivohistorico.sp.gov.br
88
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, 1874, v. 60.
60
89
Idem, v. 50, 1864, p. 118. Grifo nosso.
61
O ofício esclarece pontos interessantes: as terras no entorno da capital não são próprias
para o plantio do café, mas servem para plantar cereais e cana-de-açúcar. Além disso,
menciona o ignorar o conhecimento dessas áreas (“deve constar dos archivos da extinta
repartição das obras publicas.”). Um pouco mais adiante veremos como essa negativa de
conhecimento sobre essas terras adia a feitura do mapa do rossio.
Antes será necessário conceituar o que se entendia por terras de uso comum na época,
já que no ofício os próprios vereadores afirmam: “a Cama. Mal. tem deliberado para reservar
pa. logradouro publico d‟este município”, sem utilizar a expressão rossio. Veremos o que são
terras de uso comum tanto nos requerimentos quanto na legislação do período e nas
discussões dos vereadores, dos requerentes e até dos empresários que propunham mudanças
ou mesmo a extinção dessas áreas.
90
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-195, v. 60, 1874, p. 112.
62
Campos91 define a expressão terras de uso comum como “terra do povo” usufruída
comunalmente desde tempos imemoriais92. O significado de “imemorial”, no caso, seria o de
ser reconhecida por todos como tal, de comum acordo. Apesar de a Lei de Terras proteger as
áreas de uso comum, a noção de devoluto93 abrangeria esses campos, ou seja, áreas de uso
comum eram passíveis de venda, apesar de serem protegidas. O artigo 3º da lei define:
91
CAMPOS, Nazareno José de. Terras de uso comum no Brasil – um estudo de suas diferentes formas. São
Paulo, 2000. Tese (Doutorado em Geografia Humana). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo.
92
Idem, p. 68.
93
Devolutas seriam todas as terras por ocupar no território, ou caídas em comisso, que desde a Independência
faziam parte do patrimônio do Brasil.
94
Retirado do site http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L0601-1850.htm – consulta em dez./2009.
63
À mercê de leis que regulamentariam ou não esses espaços, os campos de uso comum
se tornam uma subcategoria protegida de terras devolutas, ou seja, existiriam terras por
apropriar – devolutas – e terras para uso dos moradores de forma comunal. Novamente, na lei
de 1850, nada é dito sobre os rossios ou o Patrimônio do Conselho.
Em 1859, os vereadores enviam ao Governo da Província uma proposta que deixa bem
claro a confusão existente entre terrenos devolutos e de uso comum:
O que a província poderia vender eram as terras devolutas, não os campos de uso
comum do termo. Entretanto, conforme verificamos no caso do ofício sobre os marcos do
rossio, para os vereadores, toda aquela área imediatamente adjacente ao perímetro urbano e
correspondente a meia légua eram áreas de uso comum ou logradouro público.
95
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-195, v. 43, 1857, p. 214-215.
96
A Repartição Geral de Terras Públicas foi extinta em 1861 com a criação do Ministério da Agricultura,
Comércio e Obras Públicas; o Registro Geral de Terras Públicas e Possuídas (1870-1875) foi desmembrado
desse ministério e em 1875 foi criada a Inspetoria de Terras e Colonização que, por sua vez, durou até 1888. In:
CARVALHO, José Murilo de. “Modernização frustrada: a política de terras no Império”. Revista Brasileira de
História, n. 1, ANPUH, São Paulo, 1981.
64
interpretaram que o patrimônio municipal – o rossio – já estava sob controle da Câmara e que,
portanto, não poderiam ser impedidos de serem concedidas a quem pedisse, como fica claro
no ofício enviado ao presidente da província:
[...]
1º Se as pessoas que tiverem adquirido por compra ou qualquer titulo
legitimo terras de cultura, ou de criação, originalmente concedidas pelas
Camaras Municipaes (não tendo estas direito a elas) deve ser garantido o seu
dominio, seja qual for a sua extensão, segundo o disposto no artº 22 do
Regulamento (1318), digo nº 1318 de 30 de janeiro do corrente anno, ainda
mesmo, que a posse de seus antecessorres senão fundasse na cultura e
morada habitual?
2º Se estando as ditas terras em poder dos primitivos concessionários devem
ser revalidadas, na conformidade do disposto na primeira parte do artº 27 do
mesmo, ou consideradas simples posses?
97
25 de Novembro de 1858, ofício enviado ao Presidente da Província. CARTAS DE DATAS DE TERRA,
1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de Cultura, 1939, volume XIX, 1860, p.
146-161.
65
Interessante que essas perguntas versam exatamente sobre concessão de lotes sem
documentação ou comprovação de tamanho – práticas de concessão, portanto – e sobre a
continuidade das doações na área dos rossios. Sobre a prática, a resposta é:
98
E pedem o mapa dos terrenos devolutos, com a suspensão das distribuição até decisão em contrário. ACTAS
DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo;
Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 44, p. 139-140.
66
Portanto, aquele ofício de 1858 dos vereadores reclamando que o aviso acima não era
aplicável em São Paulo, relativamente longo, responde às informações requeridas em 1854
com a Regulamento para aplicação da Lei de Terras.99 Para eles, não é aplicável a norma
porque a dita doação, segundo o entendimento deles, é patrimônio camarário desde tempos
passados e a Lei de Terras não poderia retirar direitos adquiridos dos lotes por conceder. Eles
se posicionam como possuidores de uma extensão de terras e apresentam a Carta de Doação
de Martim Afonso100 como documento para comprovar isso, sem fazer um arrolamento dos
próprios municipais, ou seja, o mapa dessa sesmaria. A apresentação da Carta de Doação
serviria para revalidar Sesmaria do Conselho, entretanto, seria necessário medir e elaborar
uma planta (tal como no caso de uma sesmaria de particulares).
99
Regulamento para execução da Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850, a que se refere o decreto dessa data.
COLLECÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1808-1889. Rio de Janeiro. Imprensa Nacional
100
Embora os vereadores recorram à Carta de doação de Martim Afonso, o rocio foi efetivamente demarcado
apenas no século XVIII. In: GLEZER, op. cit.
101
25 de Novembro de 1858, ofício enviado ao Presidente da Província, CARTAS DE DATAS DE TERRA,
1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de Cultura, 1939, volume XIX, 1860, p.
146-161.
67
Pedindo o aumento da meia légua para uma, argumentando que os terrenos restantes
para distribuição são estéreis e só serviriam para edificação urbana. Conforme vimos na
representação gráfica dos limites propostos para logradouros públicos, a extensão reservada
já era de praticamente uma légua. A previsão para aumento da meia légua levava em
consideração o crescimento populacional futuro, devido ao estabelecimento da ferrovia
ligando o porto de Santos à Jundiaí.
Os usos dessas áreas em comum poderiam ser diversos: pastagem coletiva de gado,
bovino, muares ou cavalos (casos mencionados sobre a Várzea do Carmo até 1892, sítio do
Bexiga até meados dos anos 1880, Várzea do Brás quando o Carmo enchia até 1880);
extração de lenha, madeira e/ou pedra (sítio ou chácara do Bexiga, por exemplo); agricultura
em conjunto, ou seja, em terrenos abertos (Várzea do Carmo); e abastecimento de água
(Bexiga e diversas propriedades particulares próximas a fontes de água).
No caso citado, provavelmente o acesso à água foi englobado por proprietário vizinho
na extensão do seu quintal. Logo em seguida vemos um pedido de acréscimo de José Pinheiro
Correa, morador da freguesia da Conceição de Guarulhos, que diz:
102
CAMPOS, Nazareno José de. Terras de uso comum no Brasil – um estudo de suas diferentes formas. São
Paulo, 2000. Tese (Doutorado em Geografia Humana). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo.
103
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. XVII, 1854, p. 13-14.
104
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. XVII, 1854, p. 19-23.
69
Alega ainda que seu quintal está aberto e tem problemas com animais que o invadem,
assim como pessoas estranhas (malfeitores). Diz ser é homem “afamado”, pai de filhas que
correm riscos e que de forma alguma quer auferir lucro do dito espaço. O fato de afirmar isso
já nos faz desconfiar das suas boas intenções. Infelizmente para o requerente, a Câmara
também recebeu um abaixo-assinado de moradores da dita freguesia que alegavam ser o local
servidão pública, um caminho, e que dois anos antes de solicitar autorização o requerente já
tinha fechado o local. O desfecho da história nos leva a supor que, diante de uma possível
reclamação dos moradores, o requerente fez um pedido formal para aquisição das terras, o que
não era procedimento incomum, visto que algumas áreas só eram fiscalizadas se denunciadas.
Reclamações desse tipo permeiam todas as Atas e Cartas de Datas, todos os anos,
apesar de, em 1850, ocorrerem em freguesias mais distantes do Centro, tais como São
Bernardo da Borda do Campo, Conceição de Guarulhos e Juquery, como demonstra uma
representação dos vereadores dirigida ao Governo da Província em 1857: “[...] solicitando a
intervenção poderosa de V.Exa. para que quanto antes seja franqueada uma servidão publica
cujo uso se acha impedido pr. acto arbitrário do sub-delegado da Frega. de Juquery [...].” 105
Nesse caso, trata-se de um atalho que já tinha sido fechado e “o povo destruio”. Para
arrematar a questão, o subdelegado colocou uma escolta de guardas armados impedindo o
acesso da população ao atalho. O fato de o atalho ser “servidão pública há mais de trinta
anos” faz do local um acesso público, uma vez que as pessoas preferiam o atalho a uma
estrada aberta recentemente, daí talvez a preocupação do subdelegado em obrigar a população
a utilizar o novo caminho, à força. Gradualmente, porém, as reclamações se tornam mais
frequentes e mais próximas do núcleo urbano.
105
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 43, 1857, p. 39-40.
70
terras no Tanque do Carvalho cuja justificativa foi: “[...] serve de muito auxílio às
lavadeiras.”106
Essa proteção das fontes de água fazia sentido, uma vez que os problemas nos
chafarizes da cidade eram recorrentes, e a falta de água, crônica. Em 1868, devido exatamente
a um problema no chafariz da Rua da Liberdade vem à tona a história de um beco utilizado
para chegar a uma fonte de água denominada Morringuinho, na região da Liberdade. A
Câmara, atendendo ao pedido de Carlos Theodoro Street, fez a concessão para acréscimo da
referida área, ou seja, autorizou Carlos Street a aumentar sua propriedade englobando um
beco. Agindo contra o uso popular, Carlos Street fechou a passagem alegando ironicamente
que ela só servia para o acoitamento de escravos fugidos, criminosos e que poucos se serviam
da água propriamente dita, provocando mais do que reclamações na população. Ele, por fim,
desiste da concessão porque:
A pressão popular, quer para utilizar a fonte ou para se reunir em ações diversas,
conforme a sugestão do requerente, foi forte demais, apesar da erudição e ironia de Carlos
Street, que colocou o povo entre aspas. Entretanto, depois de pressionado, desistiu da
concessão. Por outro lado, a Comissão de Datas de 1870 indefere um acréscimo na Rua
Formosa, afirmando que o suplicante queria fechar a fonte do local para “fazer negócio”108,
denunciando uma possível ligação de Carlos Street com a venda e monopólio de água na
cidade através dos aguadeiros.
106
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 51, p. 134.
107
Idem, v. 54, p. 81, 86, 87, 88 e 95.
108
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 56, p. 154.
71
Ainda sobre passagens que davam acesso a água, um documento sem data109 sobre o
sítio do Bexiga esclarece como a câmara procedia para verificar se tal local correspondia a
servidão pública. O atual proprietário do sítio teria fechado uma passagem para uma fonte de
água. Os reclamantes alegavam que o local era servidão pública não apenas de água, mas de
pastagem, retirada de lenha e recreio, ou seja, lazer. A comissão indicada para elucidar a
questão afirma:
Que, sendo assim certa a servidão para aquelle fim especial de tirar agoa
potável, não é certa a que se allega na representação de uso de lenha, uso das
águas para outro fim que não seja a indicada, entrada para passeio ou recreio,
pastagem gratuita de animaes [...].111
Ficamos sabendo que na área existia uma hospedaria e um pasto que não era gratuito,
além de propiciar a retirada de lenha:
Portanto, o único tipo de servidão defendido pela comissão foi o da água, sendo todos
os demais usos onerosos e vetados no sítio. No entanto, podemos inferir que a população do
entorno provavelmente usava essa fonte de água para fazer passeios, ou já teria utilizado com
esse intento, além de retirar lenha desta propriedade e utilizar o pasto. Esses usos ficam
apenas sugeridos pelo que a Comissão descartou, uma vez que só protegeu o uso da água e a
retirada desta a pé, não de outra forma: “[...] abra uma passagem franca para pessoas a pé,
respeitando assim elle a servidão de tirada de agoa potável com que está onerada aquella
propriedade.” 113
Em 1867, o abade do mosteiro de São Bento pretende que o terreno que serviu de leito
para o rio Tamanduateí, retificado em um trecho que cortava a Rua 25 de março para os
preparativos da instalação do Mercado, seja reconhecido como unicamente seu e nele sejam
proibidas concessões de lotes115. Apoiados na jurisprudência, os oficiais da Câmara afirmam
que os terrenos são públicos porque são a ribanceira de um rio, portanto, de uso comum desde
tempos imemoriais. Na mesma sessão é deferido acréscimo de áreas de requerentes moradores
com propriedades à beira do rio, ou seja, merecendo a dilatação dos limites dos seus terrenos.
Na realidade, o argumento para a concessão das terras em novas ruas abertas, bem como nos
aterrados, era higienista: promover a salubridade do local através da construção. Como lembra
Simoni (2002), no período anterior à Lei de Terras a questão da distribuição de datas estava
112
Terras e terrenos municipais e particulares, 1883-1902 e sem data, manuscritos, sem paginação.
113
Idem.
114
SANT‟ANNA, Denise Bernuzzi de. Cidade das águas – usos de rios, córregos, bicas e chafarizes em São
Paulo (1822-1901). São Paulo: Editora SENAC, 2007, p. 71.
115
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 53, 1867. p. 44-47.
73
A seguir veremos como foi criada mais uma categoria administrativa na tentativa de
racionalização e discriminação das terras devolutas além de focalizar o relacionamento dos
vereadores com a Repartição Geral das Terras Públicas.
74
A Repartição Geral de Terras Públicas era composta por um Diretor Geral das Terras
Públicas, um chefe da Repartição e um fiscal. Contava em cada província com uma
Repartição Especial das Terras Públicas, responsável pelas questões das terras devolutas nas
províncias, subordinadas ao Presidente da Província e dirigida por um Delegado do Diretor
Geral.
116
REGISTRO DE TERRAS DE SÃO PAULO. Divisão de Arquivo do Estado. São Paulo: A Divisão, 1999,
vol. 5 Freguesia de Santa Ifigênia, v. 1. Introdução. TESSITORE, Viviane.
117
Tal só vai ocorrer com o Registro Torrens, Decreto 451 B de 31 de maio de 1890. COLEÇÃO DAS LEIS DO
BRASIL, 1889-1930. Rio de Janeiro. Imprensa Nacional
75
118
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 49, 1863, p. 253-254
76
As terras sob domínio privado fora da área urbana – que definimos com as áreas
arruadas, de incidência da Décima – precisavam, portanto, ser registradas segundo a Lei de
Terras. Entretanto, a função do Registro Paroquial de separar as terras sob domínio privado e
conhecer as terras públicas fracassará exatamente por depender do registro pessoal e
individual. Apesar de não ter validade como título de propriedade – era preciso não só
declarar, mas também medir e pagar o devido valor em impostos – esse registro funcionará
como comprovante de propriedade em disputas fundiárias durante o século XX120. Em 1876, o
Decreto nº 6.129 extinguiu as Repartições Especiais de Terras Públicas nas províncias, e suas
atribuições foram transferidas para a Secretaria de Governo. Britto (2008) defende que a
função prática do Registro Paroquial foi ajudar a colocar em circulação o crédito,
impulsionando o mercado hipotecário. Para nosso estudo, interessa saber que essa área
remanescente, fora da incidência da Décima, precisava ser registrada. No segundo e terceiro
capítulos estudaremos alguns casos de cruzamento de informações com os registros,
especificamente, de Santa Ifigênia e da Sé.
119
Idem, v. 49, 1863, p. 253 e 254.
120
TESSITORE, descrevendo o estado físico da documentação aponta para falsificações significativas em
diversos volumes. REGISTRO DE TERRAS DE SÃO PAULO. Divisão de Arquivo do Estado. São Paulo: A
Divisão, 1999, vol. 5 Freguesia de Santa Ifigênia
77
Logo, aforar significava arrecadar dinheiro para os cofres públicos.Se antes a vistoria e
o arruamento eram feitos e os vereadores recebiam por isso, agora pediam que o valor fosse
pago diretamente para o arruador.
121
Representação da Câmara ao Conselho Geral sobre os rendimentos existentes e propostas de novos.
“Registro Geral da Câmara da Cidade de São Paulo, 1829/1831” – publicação da Subdivisão de Documentação
Histórica, v. XX/XXI, Departamento de Cultura (Divisão de Documentação Histórica e Social), São Paulo,
1945, p. 263-264.
78
A quantidade de pedidos, apesar de não estarem doando lotes desde 1850, era grande e
poderia significar renda para custear a abertura de ruas e praças, tornando o trabalho de abrir e
consertá-las menos oneroso aos cofres municipais:
Fora da área urbanizada era proibido acumular mais de um lote para a formação de
chácaras. Ao que tudo indica, eram necessárias solicitações de terrenos em nome de diversas
pessoas, prática corriqueira no rossio, segundo a portaria supracitada.
Esse foi o ofício enviado, mas a proposta elaborada na Câmara é mais esclarecedora,
tendo sido formulada pelo vereador Ribeiro dos Santos:
122
Representação à Assembleia Legislativa Provincial em 26 de junho de 1852. Idem, v. XXXV,p. 103.
123
Portaria do Exmo Govo. Proval. de 20 de outubro de 1852. “Registro Geral da Câmara da Cidade de São
Paulo, 1852” – publicação da Subdivisão de Documentação Histórica. v. XXXV, 1852. Dep. de Cultura (Divisão
de Documentação Histórica e Social), São Paulo, 1945, p. 134 e 135. Grifo nosso.
79
Fundar uma chácara parece tornar-se dispendioso para o requerente e nenhum recurso
ia para a municipalidade com esse processo paralelo. O ofício tenta conjugar a vontade
particular para direcionar esse dinheiro para os cofres municipais. A passagem acima nos
esclarece dois pontos: o rossio aparece como essa parte híbrida entre o rural e o urbano,
contendo lotes urbanos e chácaras, o que Britto (2008) denominou de áreas remanescentes; a
especulação com as datas de terras para a constituição de chácaras no entorno urbanizado
vinha ocorrendo, com indivíduos requerendo em nome de outros indivíduos ou comprando de
terceiros para formar pequenas chácaras.
124
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 39, 1852, p. 125.
125
Lei Provincial nº 13, de 17 de julho de 1852. In: Colecção das Leis do Império do Brasil, 1808-1889. Rio de
Janeiro. Imprensa Nacional.
80
A elaboração desse mapa resultou num „empurra-empurra‟ por décadas entre Câmara e
Província; diversos engenheiros foram contratados e dispensados de tal tarefa, gerando um
eterno e pretenso “desconhecimento”, por parte dos vereadores, da extensão e abrangência do
rossio, criando uma confusão entre as terras passíveis de serem doadas e terrenos de uso
comum dentro do rossio. Tal confusão e desconhecimento propiciaram a distribuição em larga
escala do rossio e de áreas de uso comum, gerando dezenas de reclamações encaminhadas à
Câmara sobre o fechamento de logradouros, cercamento de fontes de água e apropriações de
campos de cultivo. Como propôs Gouvêa126, pensar os porquês da ausência desse mapa pode
revelar os motivos para não elaborá-lo e a força desses motivos:
126
GOUVÊA, José Paulo Neves. Cidade do Mapa: a produção do espaço de São Paulo através de suas
representações cartográficas. São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo.
127
Ibidem, p. 262.
81
128
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 38, 1851, p. 213.
129
SIMONI, Lucia Noemia. O arruamento de terras e o processo de formação do espaço urbano no município
de São Paulo: 1840-1930. São Paulo, 2002. Tese (Doutorado em Estruturas Ambientais Urbanas) - Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, p. 55.
130
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 40, p. 49.
82
[...] não pode a Camara enviar a V. exa. pr.q tem sido inúteis os esforços q.
tem feito para conseguil-o. Ainda ultimamente pediu Ella a V. Exa. que a
coadjuvasse n‟esse intuito: mas o Engenhro. q. d‟ella se havia encarregado,
abandonou esse trabalho logo depois de começado.133
131
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. 40, 1853, p. 194. Esses casos de aforamento não entraram no banco de dados oficial.
132
Idem, v. 40, 1853, p. 195 - 206.
133
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, vol.44, 1858. Sessão Ordinária de 25 de novembro de 1858, p.
198.
83
Quando informam que a meia légua não é mais suficiente, ao mesmo tempo em que
reclamam da pouca quantidade de edifícios urbanos e dizem que os limites da Décima não se
alteraram, entram em contradição queixando-se da insuficiência da área destinada à expansão
da cidade: se estão pedindo para doar terras e aumentar a quantidade de prédios, como podem
dizer que a meia légua já está ocupada e que precisam de mais terras? Podemos imaginar que,
realmente, o engenheiro municipal poderia ter dificuldades em fornecer dados exatos e tirar a
planta do rossio ou que essa dificuldade toda, visto que sabiam exatamente quais eram as
áreas do rossio, proviesse mais dos interesses particulares em jogo.
134
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, vol. XVII, 1858, Sessão ordinária de 25 de Novembro de 1858.
135
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 49, 1863, p. 29.
136
Idem, p. 127.
84
O ofício denuncia que essa região não pertencia ao próprio municipal (rossio) e que o
juiz de paz da área demarcava e distribuía terrenos na região, que apesar de chamarem
Pacaembu correspondia ao atual como o bairro de Santa Cecília e entornos137.
Logo a seguir, surgem duas novas propostas para fazer a planta do rossio, revelando
que os serviços anteriores foram interrompidos: uma do engenheiro José Porfírio de Lima e
outra de Charles Romien. Aparentemente o contrato foi fechado com Charles Romien,
conforme o ofício enviado à Província em 29 de abril de 1863. Em dezoito meses os trabalhos
estariam prontos pelo valor de nove contos e seiscentos réis, pagos em oito prestações
trimestrais. Ainda previa a feitura de 64 cópias da planta, com levantamento topográfico e
cadastral, conforme o exemplo enviado referente à Rua da Constituição. Diante do pedido de
ajuda da Câmara, a Província informa que os vereadores têm renda própria para arcar com as
despesas das medições e aceita o contrato celebrado138. Tudo acertado e iniciado, no segundo
trimestre o engenheiro reclama que não está sendo reembolsado nas suas despesas e um
vereador protesta contra o contrato:
Sem que nada tivesse deliberado esta Camara sobre confecção do Contracto
celebrado com o Engenheiro Charles Romien para o levantamento da planta
e competente nivelamento desta Cide., fiquei sorpreso logo que soube haver
o Sr. Dr. Franco. Leandro de Toledo na qualide. de preside. Desta Cama.
assignado e concluído esse contracto com o Engenheiro, no dia 30 do mez
findo.139
As acusações são sérias: aparentemente o contrato foi feito apenas com a anuência do
presidente da Câmara, Leandro de Toledo, sem o conhecimento dos demais vereadores.
As razões que preponderão em meo espírito para protestar contra esse acto
abusivo, illegal e altamente oneroso aos cofres da municipalidade, feito pelo
zeloso e econômico presidente, Dr. Leandro de Toledo são as seguintes: 1ª –
Por ter a Camara recebido uma Portaria do Exmo. Govo. da Prova. De 26 do
mez passado que ainda não foi lida em Sessão em que pondera bem sob
quaes fundamentos devia tal contracto ser feito, e não tendo ainda tal
137
A chácara do Pacaembu abrangia uma extensa área e foi dividida em três: de baixo, de cima e do meio. A
região de baixo compreendia o atual bairro de Santa Cecília.
138
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 49, 1863, p. 112.
139
Idem, p. 139-141.
85
140
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 49, 1863, p. 139, 140 e 141.
86
Em 1866, um agrimensor, João Rodin, faz uma nova proposta para medição dos
limites do rossio da Câmara144. Logo em seguida, o governo da província remete um ofício,
exigindo a confecção de mapas padrões das freguesias. A Câmara propõe a contratação de
Carlos Rath ou de João Rodin145. Antes de conceder os terrenos durante os anos 1860, era
feito um levantamento e parcelamento prévio da área, prolongando o arruamento preexistente.
141
Idem, p. 245.
142
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 50, 1864.
143
Idem, v. 51, 1865. p. 321.
144
Idem, v. 52, 1866. p. 33.
145
Ibidem, 1866.
87
Ao que parece as medições do rossio foram feitas de forma pontual, conforme as áreas foram
sendo doadas.
Ruas foram abertas ligando regiões que sofreram rápida expansão; várzeas foram
aterradas e ocupadas, fruto da retificação dos rios. No geral, às áreas marginais aos rios eram
doadas, acrescendo-se aos lotes, de preferência pertencente aos moradores do local.
146
CAMPOS, Eudes. “A cidade de São Paulo e a era dos melhoramentos materiaes: obras públicas e arquitetura
vistas por meio de fotografias de autoria de Militão Augusto de Azevedo, datadas do período 1862-1863”. Anais
do Museu Paulista, janeiro-junho, ano/vol. 15, n. 1. Universidade de São Paulo. São Paulo, p. 11-114. p. 26.
147
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 60, 1874, p. 98.
148
Idem, p. 105.
149
Ibidem, p. 112.
150
Ofício de 21 de janeiro de 1875. Arquivo do Estado de São Paulo.
http://www.arquivoestado.sp.gov.br/viver/poder_frame.php?cod=28030&nomen=0095301007&img=ODSP0095
301007_001.jpg – consultado em 12/04/2011.
88
Devemos lembrar, tal como mencionado no início do capítulo, que a estrutura político-
administrativa do Império perpetuava o conflito herdado do período colonial entre as câmaras
municipais – lideradas pelos poderosos do local – e as Assembleias Provinciais – lideradas
pelos poderosos regionais representada na figura do vice-presidente da Província e pelos
indicados do Governo Federal representada na figura do Presidente da Província. Interesses
conflitantes e áreas de jurisdição distintas implicavam em litígio quanto as terras sob suas
alçadas, daí o adiamento do processo de demarcação do rossio.
CAPÍTULO 2
São chamados de Cartas de Datas dois tipos de documentos: as cartas por meio das
quais o requerente pedia à Câmara Municipal um lote de terreno no rossio (Sesmaria do
Conselho); e o documento153 elaborado depois do pedido era analisado e aceito, oficializando
o ato. Diferentemente das sesmarias, os lotes eram doados em medidas de braças e não
léguas. Isso persiste até 1872154, quando entra em vigor o sistema decimal e a “data” passa a
ser medida em metros quadrados. As medidas eram de 10 braças de frente e fundos à meia
quadra que, convertidos para metros, correspondiam aproximadamente 22 metros de frente e
66 metros de fundo, ou 1.452m². As novas posturas de 1875 incorporaram o novo sistema
métrico em vigor desde 1872, as datas adquiriram a dimensão de exatos 15 metros de frente
por 35 metros de extensão ou fundos, uma mudança muito questionada, que diminuía em
quase um terço o tamanho das concessões, conforme veremos a seguir.
153
Na verdade, o nome correto desse documento é “Termo de Compromisso e Concessão de Carta de Data”,
entretanto a prática afirmava que ambos eram “cartas de datas”.
154
Lei nº 1.157 de 26 de junho de 1862 In COLLECÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1808-1889.
Rio de Janeiro. Imprensa Nacional.
91
Um primeiro filtro para o requerente, dentre muitos outros durante o processo, era ser
alfabetizado ou encontrar alguém disposto a escrever um requerimento. Em seguida, era
necessário passar pelo crivo do secretário da Câmara responsável por dizer se o suplicante
tinha ou não condições materiais para construir no local: “A suppe ainda não obteve data
alguma desta Camara, e pode-se-lhe conceder no logar que pede se isso for do aggrado da
Camara.”156
Os livros antigos eram consultados para verificar se já haviam sido doados terrenos
para o requerente:
Não consta que o suppe tenha obtido data, assim com não me parece no caso
de obtel-a, por isso q sendo o suppe minimmamente pobre, sem duvida ou
quer pa transferir a outrem, como sempre acontece, ou para vender por
pouco mais de nada.157
155
“Regulamento para a concessão das Cartas de Data, que serve de additamento ao Regimento interno
registado a folhas 120 deste livro”. In REGISTRO GERAL DA CÂMARA DA CIDADE DE SÃO PAULO,
1585-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo; Departamento de Cultura, 1917-1946, v. XX-XXI, 1829-
1830, p. 346-348.
156
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939. v. XX, 1862, p. 143-144.
157
Idem. v. XX, p. 142, 1862.
92
Um segundo filtro diz respeito ao prazo para a construção: nos anos 1850 o prazo era
de um ano; posteriormente, de seis meses, podendo ser prorrogado com pedido na Câmara por
mais seis meses; em 1880, era de apenas seis meses:
158
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. XVII, 1852, 158.
93
Em 1851 surgem propostas de posturas dos vereadores para vetar a transação de lotes
sem edificações e benfeitorias, demonstrando a preocupação com o fato de concederem
terrenos e nada ser construído:
O fato de existir uma preocupação reguladora nessa direção revela que provavelmente
a alienação posterior de datas sem construção era habitual, e a cidade, na visão dos
vereadores, precisava de prédios. Além do quê, tais transações fundiárias raramente passavam
pela câmara, que nada ganhava com o processo. Ao contrário, a venda de “datas” concedidas
por terceiros impedia que a Câmara tivesse um real conhecimento dos proprietários dos lotes
– conhecimento essencial para a administração da cidade, como veremos a seguir.
159
“Registo do regimento interno approvado pela Camara Municipal em sessão de 5 de dezembro de 1829 como
se vê a folhas 69 do livro das Actas”. Registro Geral da Câmara da Cidade de São Paulo (1829-1831), São Paulo.
Departamento de Cultura, São Paulo, 1923, v. XX-XXI, 1829-1830. p. 305-314.
160
Projeto de Postura do Vereador Emigdio, substitutivo da 15ª de 8 de fevereiro de 1830. ACTAS DA
CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo;
Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 38, 1851, p. 199.
94
O suppe ainda não obteve data desta Cama Mal, e se obtiver, sem duvida que
edificará e cultivará o terreno, como convem, por isso que é o mmo. chão e
abonado. [...] O suppe. do requerimento retro está no caso de obter a data
que pede, visto ainda não ter obtido, e isto no caso que V.Sas assim queirão
deliberar, pois que o conheço, e sei que seu pae dezeja mto edeficar pa elle
uma casa.161
Artº 3º – O Fical dará parte de 6 em 6 mezes á Cama das datas q estão nas
circunstancias de reverter pa a Municipalidade pr não concluírem no prazo
marcado; e bem assim dará parte imediatamente se souber que algum
Cidadão tenha vendido a data, sem q tenha feito a propriedade.162
Aqui se expressa o desejo de controle das datas caídas em comisso, portanto, não
edificadas. Esse projeto de postura foi adiado sem ser discutido, e um dos motivos para isso
era a necessidade do aumento considerável de fiscais para zelar pela cidade. Curioso saber
que o fiscal não recebia pelo trabalho com as datas, mas seu salário de 700$rs mensais era
acrescido em 20% sobre as multas aplicadas referentes a infrações das posturas e
efetivamente pagas.163 Isso significa que o fiscal lucrava mais na vigia das posturas do que
nos processos com datas. Somente em 1860 os fiscais passaram a receber para demarcar e
161
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939. v. XX, 1861, p. 142-148.
162
“Projeto de Posturas sobre as datas de terras, apresentado pelo vereador Ribeiro dos Santos, foi adiado.” In
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de S.
Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951. v. XXXIX, 1852, p. 78.
163
Idem, v. XLIV, 1858, p. 69.
95
alinhar as datas, e isso se deveu ao volume das concessões de 1859, que atingiu a casa dos
milhares quando antes eram umas poucas centenas, ou menos. O fiscal164 e o porteiro da
Câmara, além do engenheiro, são chamados a assistir aos alinhamentos e medições,
recebendo 2$000 réis para demarcação e 1$500 réis por alinhamento.165 A partir de 1860,
portanto, o fiscal passou a ter um incentivo financeiro para participar do processo de
concessões de datas.
164
Em 1852 o fiscal recebia quatrocentos e vinte mil réis anuais, fora a porcentagem sobre as multas
efetivamente pagas. REGISTRO GERAL DA CÂMARA DA CIDADE DE SÃO PAULO, 1585-1863. São
Paulo: Archivo Municipal de S.Paulo; Departamento de Cultura, 1917-1946, v. XXV, 1852.
165
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. XLVI, 1860, p. 160-169.
166
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 46, 1860, p. 189.
167
Teoricamente só poderiam conceder uma data por pessoa durante toda a sua vida. Entretanto, existem casos
na documentação de pessoas que perdem o lote, por comisso, e requerem nova data, o que significa que era
96
(aproximadamente 22 metros) e trinta braças de fundos (66 metros), ou fundos a meia quadra,
o que transformava o lote em estreito e comprido. Depois de 1875 o tamanho do lote
concedido foi diminuído para 15 metros de frente com 35 metros de fundo, possibilitando um
aumento no número de terrenos concedidos de forma onerosa.
Apesar da restrição de uma data por pessoa, verificamos que algumas conseguiram
mais de duas datas. O Barão de Antonina, por exemplo, teve três pedidos em seu nome
atendidos no mesmo ano, sendo dois deles para a Várzea do Pary e um para a Rua da Ponte
Grande,168 o que aparentemente deu forma a uma pequena chácara de formato triangular, logo
após o Convento da Luz:
Figura 6: Chácara do Barão de Antonina na Ponte Grande – Pary, provavelmente formada com
concessões de três datas de terra. São Paulo: chácaras, sítios e fazendas ao redor do centro desde o século
XVIII. Gastão Cesar Bierrembach de Lima, Exposição do IV Centenário de São Paulo. Fonte: Arquivo Aguirra/
Museu Paulista/ USP.
possível perder e reaver um benefício. Quando das Posturas de 1875, que tornam as datas onerosas, é permitido
a concessão de mais de um lote por indivíduo desde que este tenha construído no primeiro.
168
Inferimos que são três lotes para a mesma região, já que os habitantes chamavam indistintamente a Ponte
Grande de Várzea do Pary, assim como a Mooca pode ser considerada Brás, se não vier especificado o período.
97
O fato de ser uma pessoa influente na sociedade provavelmente isentava o Barão de Antonina
da restrição de concessão de um lote por pessoa.
169
A Comissão de Datas era formada no início do mandato e podia conter entre um e cinco vereadores
dependendo do período.
98
170
Registro Geral da Câmara da Cidade de São Paulo (1829-1831), São Paulo. v. XX-XXI. Departamento de
Cultura, São Paulo, 1923.
99
[...] não se defira de hoje em diante requerimento algum pedindo datas, sem
que, alem da informação do Secretario da Camara, venha a firma do
peticionário reconhecida por Tabelião, e acompanhada a petição de Certidão
do parocho, ou de qualquer authoridade policial, ou Juiz de Paz, pela qual se
demonstre que o peticionário tem meios de edificar e cultivar, a inda que em
pequena escala, e que de facto e realmente mora nas trez freguezias desta
Capital.171 (grifo nosso)
Informo a VSª que o terreno que pede a suppe na Rua de Santo Amaro, em
frente a caza de Domingos Pedreiro, procurando indagar a quem pertencia
soube ser do Tenente João Baptista do Sacramento, este comprarão a 4
meses e já possuirão de terceiro donno, sendo verdade que, amas de 3 annos
está em (?) sem feixo algum.173
O caso mencionado acima – uma data que já fora vendida no mínimo três vezes, sem
que as transferências tivessem passado pela Câmara indica que, apesar do controle, a venda de
datas ocorria paralelamente às concessões numa velocidade impressionante. É interessante
171
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 48. 1862. p. 25.
172
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939, v. 1868.
173
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939, v. 1877.
100
notar que, apesar de repassado várias vezes, o lote continuava não cercado e não edificado, o
que pode indicar que a construção era mais cara do que o terreno, por exemplo.
Num parecer em que várias pessoas pedem datas na mesma região, em 1852, a
prioridade é para nativos ao invés dos estrangeiros:
[...] e pelo exame q. fiz conheci q. apenas pode ser concedida uma carta de
data no logar indicado, e q. pa. esta concessão se deve preferir a um
nacional, e q. tenha proporções pa. edificar com brevide.174
174
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. XVI, 1852. p. 181.
175
Encontramos apenas um caso de atestado voluntário de idoneidade, como o de Pedro Marcal de Miranda:
“attesto que o Snr. Pedro Marçal de Miranda, empregado na Casa de Correção e residente no bairro da Luz desta
freguesia é pessoa de proibidade e muito conhecida na mesma freguesia.” Cartas de Datas de Terra, 1864-1915.
São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de
Documentação Histórica e Social, 1939, 1888, v. 2045.
101
A Câmara não tomava decisões sobre os limites do terreno depois de medida e passada
a Carta de Data, daí em diante era um problema da justiça. Isso ocorre porque começam a
surgir inúmeras reclamações, como a de João Lefebre, por exemplo, que adquiriu várias datas
por compra na Várzea do Nicolau (Brás), que caíram em comisso porque outro indivíduo
pediu-lhe para não cercá-las até receber alinhamento da Câmara, agindo de má-fé. Acontece
que a pessoa que pediu para Lefebre esperar requereu as datas caídas em comisso após tê-las
denunciado à Câmara. Temos, portanto, indícios de duas práticas: pedir em nome de outras
pessoas e adquirir por compra; e também enganar os outros a fim de que suas datas caíssem
em comisso, denunciá-los à Câmara e, em seguida, requisitá-las para si.
[...] homem casado, trabalhador e de boa conducta, que precisando fazer para
si e sua mulher alguã cazinha, em que possa morar (por não ter posses para
pagar os fortes alugueres que hoje se exigem) [...]. 177
Eis o teor de grande parte dos pedidos: ser morador da cidade, ter boa conduta e
necessitar o terreno. Apesar de todos os moradores da cidade poderem efetuar um pedido,
caberia aos oficiais da Câmara deliberar se o indivíduo receberia ou não o lote, conforme já
vimos. Nesse caso, os oficiais da Câmara estabeleciam condições tendo em vista objetivos
específicos: construção rápida da área, aumento do número de prédios na cidade, ocupação de
várzeas e das áreas consideradas insalubres.
176
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 47, 1861, p. 93.
177
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. XVIII, 1859, p. 181.
103
Podemos dizer que, em períodos normais, os pedidos são ricos em detalhes sobre os
habitantes da cidade. Mellitão de Mello fez seu pedido em 1859 e entre seus argumentos está
o valor elevado dos aluguéis na cidade, reclamação constante em muitas das cartas que
analisaremos adiante.
178
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. XVI, 1852, p. 146.
104
Figura 9: Requerimento em conjunto da família Cavalcanti para o Marco da Meia Légua em 1887. São no
total 5 membros da família: pai, mãe e 3 filhos. Fonte: AHMWL.
Pensando nas redes de sociabilidade da São Paulo de 1850, podemos perceber que
provavelmente as pessoas deixavam esses pedidos em mãos de algum conhecido, seja o
vereador, o secretário, o fiscal, para serem lidos nas sessões da Câmara:
Diz Joana Baptista de Olivra. Prado rezidente nesta cidade que a quatro
mezes requereu a Vsas uma data de terras no caminho antigo do Telegrapho,
cujo requermto foi lido em sessão, porem a Suppe. foi menos felis do que
outros em razão de ter hido o seu requerimto para o poder do Sr Veriador
Ignácio de Araujo, este Sr retirou-se desta Cidade cem q. se envia-se a esta
Camara os papeis q. estavao em seu puder [...] 180
Neste caso, a requerente reclama também do alto preço dos aluguéis da cidade e pede
para ter preferência diante das outras solicitações, por já ter feito um pedido anteriormente,
deixado aos cuidados de um vereador que fora embora da cidade. Os pedidos deveriam ser
atendidos na ordem em que eram lidos nas sessões, daí a requerente estar preocupada: ela
entraria no fim da fila para receber o lote.
179
Excluímos desse recorte os anos 1880 porque os pedidos são bem específicos nesse período, ou seja,
praticamente não existe o “em qualquer parte do município”.
180
Encontramos diversos casos de vereadores que receberam pessoalmente esses pedidos e um caso de perda do
papel por parte do vereador, que foi embora da cidade e levou consigo o papel. CARTAS DE DATAS DE
TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de Cultura, 1939, v. XIX, 1860,
p. 144.
106
Outra manobra de interesse para acumular diversas datas e ludibriar a Câmara era um
requerente pedir em nome de toda a família sendo as datas demarcadas conjuntamente, uma
ao lado da outra:
[...] e dezeja que na demarcação se lhe conceda a da. Data contígua a de ma.
sogra Catharina Maria da Rocha, pr. que assim lhe fica mais fácil pa.
fazerem em comum os respectivos fechos plo. que espera [...].181 (grifo
nosso)
O argumento era de que desse modo ficava mais barato cercar os terrenos. Nesses
terrenos, por vezes dez datas eram deferidas conjuntamente. Encontramos um caso específico,
o dos Menezes, em que é possível mapear praticamente toda a gleba familiar. Aparentemente,
o chefe da família era a matriarca Catharina Maria da Rocha, que, embora não tenhamos
encontrado seu pedido, sabemos que teve um lote de terra deferido na Freguesia do Brás,
antes de 1850, logo após o Rio Tamanduateí. Disso temos ciência porque Catharina pediu
acréscimo em sua propriedade em 1861. Em agosto de 1860 são enviadas oito cartas que
remetem a Catharina, pedindo lotes no Brás, ao lado uns dos outros, configurando uma árvore
genealógica. Por meio dessas cartas constatamos que ela possuía dois irmãos, cinco filhos e
um genro, todos eles requerentes de lotes a junto da residência de Catharina, ou seja, ao lado
do lote concedido à matriarca:
Catharina Maria
da Rocha
irmão
irmã
José Rodrigues
Maria Thereza Rocha de Menezes
Escolástica
Bento da Silva Flora Augusta Amélia de João da Silva
Brasileira de
Menezes da Silva Menezes Menezes Menezes
Menezes Carneiro
marido
Luiz Felipe
Gomes Carneiro
181
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. XIX, 1859, p. 105-107.
107
Não sabemos com certeza se os pedidos dos Menezes foram atendidos; em caso
positivo, todavia, eles teriam conseguido, em média, um terreno de 176 metros de frente,
suficiente para configurar uma pequena chácara, levando em consideração, em termos
comparativos, que os terrenos declarados como tal no Registro Paroquial variavam
consideravelmente de tamanho – uma chácara pertencente a José Xavier Lopes de Araújo, no
final da Rua da Alegria, por exemplo, teria 275 metros de frente.182 Remetemos ao ofício em
que os vereadores pedem para aforar os terrenos do rossio dizendo exatamente que, para
formar uma chácara, é preciso que o indivíduo peça em nome de mais de uma pessoa:
Portanto, tal prática era aceita pela Câmara. No caso dos Menezes, bastava que todos
os membros de sua família conseguissem datas. E essa não é uma situação isolada. Há o
exemplo dos Bastide, que encaminham em 1852 nove requerimentos com o mesmo
sobrenome. Infelizmente não há como atestar seu parentesco, como no caso dos Menezes,
mas sabe-se que Herman Bastide era o engenheiro contratado da província.184 Seus pedidos
não foram atendidos e, como alertava o fiscal do período, Francisco Mariano de Borba, os
vereadores não atentaram para o fato de que havia pedidos anteriores para a mesma região:
182
REGISTRO DE TERRAS DE SÃO PAULO. Divisão de Arquivo do Estado. São Paulo: A Divisão, 1999,
vol. 5 Freguesia de Santa Ifigênia, ficha nº 119.
183
Portaria do Exmo Gov. Proval. de 20 de outubro de 1852. Registro Geral da Câmara da Cidade de São Paulo,
publicação da Subdivisão de documentação histórica, Dep. de Cultura (Divisão de Documentação Histórica e
Social), São Paulo, 1945, v. XXXV,1852, p. 134-135.
184
CAMPOS, Eudes. “A cidade de São Paulo e a era dos melhoramentos materiaes: Obras públicas e
arquitetura vistas por meio de fotografias de autoria de Militão Augusto de Azevedo, datadas do período 1862-
1863”. An. mus. paul. [online]. 2011, v.15, n.1, p. 11-114. ISSN 0101-4714.
185
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939. v. XVI, 1852, p. 176-181.
108
Comerciante 6
Comodoro 1
Conde 1
Cônego 7
Conselheiro 2
Coronel 6
Desembargador 4
Doutor 16
Doutor e secretário da Câmara 1
Empresário 3
Empresário de conservação das ruas 1
Engenheiro 7
Ex-soldado 1
Farmacêutico 1
Ferreiro e/ou engenheiro 1
Fiscal do Sul 1
Fiscal do Norte 1
Funcionário público 4
Funcionário público dos correios 1
Funcionário público, professora 3
Guarda nacional 1
Inspetor de quarteirão de Santa Ifigênia 1
Juiz Municipal 1
Liberta (os) 4
Major 2
Major e coletor 1
Marchante – Mercador de gado para o mercado 4
Médico 2
Mestre taipeiro (de taipa, tipo de construção) 1
Negociante 29
Negociante, armazém de secos e molhados 1
Oficial da cantaria 1
Oficial de justiça 2
Oficial de pedreiro 2
Oficial mecânico da estrada de ferro 1
Padre 5
Pedreiro 2
Pedreiro do cemitério 1
Prior do Convento do Carmo 1
Proprietária 1
Proprietário de fábrica de chapéus 1
Proprietário de fábrica de chapéus 1
Proprietário de fábrica de colchões e hospedaria 1
Proprietário de fabrica de fogos 1
Proprietário de fábrica de fundição de ferro e bronze 1
Proprietário de fábrica de velas 1
Proprietário de hotel 1
Proprietário de olaria 1
Proprietário do Correio Paulistano e secretário da Câmara 1
Regente do recolhimento 1
Relojoeiro 1
110
Diz Joaquina Paz, a pouco libertada da Frega. de São Bernardo, que sendo
minimamente pobre e por isso não tem abitação própria e nem terreno em
186
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo
(1850-1880). São Paulo, 1989. Dissertação (Mestrado em História Social). FFLCH/USP, p. 41.
111
que a possa fazer, vem pedir a V.Sas. que lha permitta construir hua caza na
estrada que vai para Santos [...]187
O caso de Joaquina é exemplar: mulher e liberta, requer um lote de terra que está
oficialmente fora do rossio da capital. É atendida em seu pedido, e anos depois, vai atrás da
Carta de Data, documento oficial e comprobatório da concessão. Por causa da sua
persistência, sabemos que ela efetivamente construiu no local e que, apesar de ter conseguido
o lote, precisou insistir com a ajuda de um advogado para tirar a carta comprobatória da sua
concessão. Outros libertos também participaram do processo de concessão de datas em
determinadas ocasiões: Benedita Liberta conseguiu o lote D além da ponte na Rua Nova do
Jardim, em 1874; Joaquim Victor Tito e Felisbino Jacintho, com o apadrinhamento do
vereador Matheus Marques Cantinho, conseguiram datas no Campo da Mooca em 1878; já
Procópio, João Carlos e Augusto Africano não tiveram a mesma ajuda com seus pedidos para
datas no Morro do Caaguaçu em 1868. O pedido dos três nos remete à dissertação de
mestrado de Maria Cristina Wissenbach sobre escravos e forros em São Paulo entre 1850-
1880.188 Analisando processos-crime, a autora conseguiu detectar as regiões de moradia e
circulação das populações negras em São Paulo, localizadas nos entornos do centro arruado,
em locais posteriormente valorizados exatamente por sua posição elevada em relação ao
centro antigo:
187
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. XVII, 1854, p. 15
188
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo
(1850-1880). São Paulo,1989. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. Segundo a autora, esse período é marcado pela desarticulação
crescente do regime escravista.
112
Os pedidos de Procópio, João Carlos e Augusto Africano indicam que essa localidade
realmente era zona de atração da população negra.
Caso intrigante é o de dois casais de libertos: Izaías e Cândida e Roque e sua mulher.
Juntos, eles conseguiram seis lotes de terra no Hipódromo, em 1880, por meio de pedidos
assinados a rogo – ou seja, com apadrinhamento – pelo Dr. Joaquim de Paula Souza, político
influente de quem os casais foram escravos.192
Casos velados da condição de libertos devem existir aos montes nos pedidos, mas um
em especial veio à tona por conta de conflito de interesses: Benedito Bonilha requer um lote
189
Op. cit., p. 7-8.
190
Op. cit., p. 10.
191
As pessoas reclamavam constantemente da distância do Cemitério da Consolação para o centro, que dirá do
espigão da Paulista próximo à Av. Brigadeiro Luís Antônio e ao Paraíso.
192
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939. 1880, v. 1, nº 2030.
113
193
“Requerimento de Benedicto Baunilha reclamando do engenheiro, Fernando de Albuquerque.” CARTAS DE
DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação Histórica.
Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939. 1881, v. 1, nº 2030, p. 10.
194
“Ofício do engenheiro Fernando de Albuquerque de 13 de Fevereiro de 1881”. In: CARTAS DE DATAS DE
TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação Histórica. Departamento de
Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939. 1881, v. 1, nº 2030, p. 57 e subs (numeração à
lápis).
114
A queixa de José Ignácio Rodrigues, ainda anterior à de Benedito Bonilha, diz respeito
não somente à demarcação, mas ao fato de as melhores terras terem sido dadas a outras
pessoas e de ser impossível construir no terreno recebido. Essa é uma reclamação constante: a
impossibilidade de construir no terreno alagadiço ou impróprio para plantações. William
Elliot, outro engenheiro, recebe em 1859 um terreno na Rua dos Mendes, Várzea do Pary,
próximo à Ponte Grande e logo em seguida reclama: o terreno é impróprio para plantações em
julho, pois a região permanece alagada a maior parte do ano. Outro motivo de reclamação é
quando não se consegue fechar o terreno por ação dos antigos moradores da região, que se
opõem ferozmente ao arruamento e impedem a construção dos novos moradores. É o caso de
Manoel Pereira de Magalhães, que recebeu um lote nas Perdizes e diz não ter conseguido
fechar o terreno porque durante a noite lhe roubavam o fecho. A situação o levou a pedir para
mudar a localização da data para o Marco da Meia Légua em 1883.
195
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939, v. 1, 1864-1874, p. 71.
15/12/1865.
196
OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Entre a casa e o armazém – relações sociais e experiência de
urbanização São Paulo, 1850-1900. São Paulo: Alameda, 2005.
115
Bambus, atual Avenida Rio Branco197, vindo a falecer em 1879. Seu procurador foi o
advogado abolicionista Luiz Gama,198 o que nos leva a supor que ele era no mínimo mestiço.
Seu filho, entretanto, aparece em mais de 20 dos registros paroquiais de Santa Ifigênia, tendo
inclusive 2 sítios na região da Ponte Grande de Santana. Além disso, existe a possibilidade de
Marcelino ter construído mais de uma casa nos seus terrenos, uma vez que “possuía casinhas
de aluguel”.
Olympio Catão, em 1871, faz um pedido devido aos seus serviços prestados:
Não deveis estranhar ao velho funcionário este pedir: sérvio do [Cais] por
mais de 20 annos, consagrando-se á causa da República des‟de a sua
mocidade, sendo certo que o suppe não é negociante de terras, é pobre e
carregado de filhos [...]. 199 (grifo nosso)
O alferes reformado Joaquim Xavier de Mattos Salles afirma “[...] que fes a Campanha
do Paraguay, na expedição de Matto Grosso, desejando edificar uma casinha”. Em meados de
1879, Joaquim José de Santana declara com semelhante propósito: “[...] ferimentos recebidos
na Campanha do Paraguay, ferimento que o impossibilitou do serviço”. Esses casos lembram
que, originalmente, os lotes eram concedidos exatamente para quem demonstrasse ter feito
serviços em prol da comunidade.
[...] que tendo elle suppe. por devoção hua Santa Cruz, collocada no logar
denominado Campo Redondo, tenciona levantar-lhe hua casinha para mais
decência, e como para melhor zellar deseja construir hua pequena casa para
sua habitação junto d‟aquella [...].200
197
“Nessa época, a rua dos Bambus ainda abrigava famílias de cocheiros e carroceiros, mas, pouco depois, não
só mudaria de nome, para Alameda Rio Branco, como seria valorizada, dificultando, para as famílias mais
pobres, o acesso à propriedade”. Op. cit., p. 45.
198
Op. cit., p. 41.
199
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939, v. 1, 1864-1874,
Manuscritos.
200
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. XVI, 1851. p. 32.
116
[...] sem que aquella embarace o tranzito publico q. alli se faz pr. um e outro
lado da cruz, e outro sim não servindo esta permissão ao supe. de título em
tempo algum chamar-se posse e propiede do terreno em q. levantar as das,
casas e do que se lhe fará expressa mensão por escripta.201
[...] q. essa oposição provem de ter o suppe. hido mto. alem da concessão da
Câmera, pr. isso q. esta fexando 20 a 30 braças de terreno, sendo q pelo
documto. q. juntou-se vê-se q. a Camra. Conferio-lhe unicame. faculdade p.a
edificar duas cazinhas [...].202
Os vereadores pedem para que o fiscal derrube os valos que fecham o terreno.
Entretanto, três anos, depois Caetano remete novo pedido para a Câmara: requer a
demarcação efetiva do terreno e a carta de data, o que indica que o fiscal não o privou do
terreno203. Apesar de analfabeto – todos os seus requerimentos são assinados “a rogo por não
saber ler e escrever” – Caetano, assim como outros requerentes, era muito bem informado
sobre os procedimentos da Câmara e não se intimidou até conseguir a carta de data, apesar
das restrições inicialmente impostas. Ainda em 1882 encontraremos episódios de doações
temporárias a título precário, – como o caso de Caetano, que não era considerado “dono e
proprietário” – mas tendem a burlar as decisões camarárias a longo prazo. Gasparine Luigi,
201
Idem. p. 33.
202
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. XVII. 1857. p. 96.
203
Idem, vol. XIV, 1860.
117
que cultivava em terrenos de uso comum na Várzea do Carmo, de frente para a Rua do
Gasômetro:
Em anexo, coloca uma procuração para poder construir uma casa no mesmo local,
alegando “necessidades materiais”. É o mesmo caso da cruz, agora revisitado na Várzea do
Carmo.
Aliás, as mulheres são um caso à parte nas Cartas de Datas: elas aparecem em muitos
pedidos, como o da família Menezes, tomando a iniciativa pela família. É claro que o fato de
uma mulher requerer um lote pode ser um sintoma de que seu marido, pai, irmão, tutor
queiram acumular mais terra e aumentar seu patrimônio. Entretanto, não podemos descartar o
fato de a cidade de São Paulo, como nos comprova os estudos de Maria Odila,206 ser uma
região de presença feminina marcante, seja por um fator estritamente cultural, seja em razão
de sua localização estratégica. Herança do período colonial, até o fim do primeiro quartel do
século XIX, a cidade interligava regiões diferentes, nas quais as atividades desenvolvidas
solicitavam a presença masculina fora do núcleo:
Seja como for, a presença das mulheres nos pedidos revela mais do que a submissão
ao casamento ou a um tutor, por exemplo. Elas são dos mais diferentes estratos da sociedade,
como as já citadas Marquesa de Santos e D. Bárbara Bierremback, proprietária de uma fábrica
de chapéus, que pediu lotes de terra na mesma região da Cidade Nova. Um ano depois, seu
marido consegue data contígua à de D. Bárbara e outros dois Bierremback: Isabel e João
Antonio. Ainda consta que João Bierremback fez negócio com Candido José da Silveira
Pinto, adquirindo dele o lote que fazia fundos com a data de D. Bárbara. Já falamos do caso
da liberta Joaquina Paes, que apesar de ter acontecido fora do rossio da capital, é um exemplo
de pedido e insistência para conseguir o documento.
Um ponto a ser observado é com relação ao sobrenome das mulheres, pois como
sugere Maria Odila, analisando as listas de recenseamento:
206
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense,
1984.
207
Op. cit., p. 29.
119
Optamos por um olhar mais atento aos sobrenomes (ou à ausência deles), conforme
surgiam na documentação. Um rápido levantamento e constatamos nomes simples: Maria
Joaquina conseguiu um lote na Freguesia do Brás em 1852; Maria Benedita teve um lote
deferido na Rua da Barra Funda em 1859; Maria das Dores na Travessa do Pary, esquina da
Rua do Araújo, também em 1859; Maria da Gloria na Travessa do Fox, Anna Angélica na
Rua do Pary; Maria Eliza na Rua do Arouche; e Maria das Dores no Telégrafo. Falaremos em
padrões de ocupação no capítulo 3, mas podemos adiantar que, no caso das mulheres, seus
pedidos acompanhavam o ritmo de expansão da cidade.
As mulheres fizeram 32,4% dos pedidos totais entre 1851-1890 e foram atendidas em
70% dos casos. Interessante observar que apesar de os homens terem efetuado mais pedidos, a
porcentagem de concessões entre os dois sexos foi praticamente a mesma, ou seja, em torno
de 70%.
F 2279 1618
M 4742 3193
208
Op. cit., p. 24.
120
O texto segue num tom inflamado afirmando que no livro constam diversas datas do
requerente e a venda de algumas delas sem o controle da Câmara, mencionando que qualquer
“repasse” de datas deveria ter autorização e pagamento do imposto de transferência. Não
temos indicação alguma de que o Padre Thomaz de Molina estivesse fazendo o mesmo que o
Padre Maximiano, mas é um indicativo interessante que ele tenha assinado esses requerimentos
em nome das senhoras cujos lotes recebidos faziam divisa com o seu, podendo em teoria
aumentar seu patrimônio.
Uma das hipóteses iniciais da pesquisa era a de que as pessoas com ligações na
Câmara Municipal foram as mais beneficiadas com lotes de terra. Isso foi comprovado em
uma pesquisa recente sobre questões fundiárias no período colonial.210 Os oficiais da Câmara
tratavam o patrimônio público como extensão de suas propriedades privadas, característica de
uma sociedade patrimonialista colonial. Logo, motivou-nos inicialmente a perscrutar os
pedidos dos vereadores e seus familiares na intenção de verificar usos indevidos das suas
atribuições políticas. Constatamos tratar-se de um período de transição nas formas de
apropriação do espaço e na concepção de propriedade fundiária. Nesse contexto, pareceu-nos
interessante observar num movimento oposto, a porcentagem entre pedidos dos oficiais da
Câmara e das pessoas comuns comparativamente. Para isso, pegamos os nomes dos
vereadores e secretários da Câmara do período de 1851 a 1890 e cruzamos com os pedidos de
datas211 constante do nosso banco de dados.
209
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, volume XIX, 1860, p. 170.
210
RIBEIRO, Fernando V. Aguiar. Poder local e patrimonialismo: a Câmara Municipal e a concessão de terras
urbanas na vila de São Paulo (1560-1765). São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado em História Econômica).
FFLCH/USP.
211
Os nomes dos fiscais foram tirados das Atas da Câmara. A relação vem sempre transcrita na contracapa do
material publicado.
121
212
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. XIX, 1859, p. 1.
122
Paulistano, que pediu uma data em 1859 no Campo Redondo e a conseguiu em 1865. A
diferença de tempo, no caso de Antonio Egydio, pode ter ocorrido porque em 1860 já não
tinha mais terreno devoluto no Campo Redondo e ele deve ter esperado alguma data cair em
comisso para conseguir o terreno no lugar que desejava, não por acaso um dos mais
procurados da cidade.
Até 1875, conforme já dissemos, só era permitido obter um lote de terra por pessoa.
Entretanto, isso foi burlado por alguns vereadores e a lei não impedia as pessoas de pedirem
mais de uma vez. Esse foi o caso, por exemplo, de Joaquim Gomes de Almeida, que teve uma
data deferida na Rua do Marechal, no Campo Redondo, em 1859 e que, em 1862, pediu outra
data possivelmente caída em comisso também no Campo Redondo. Joaquim Alves, por sua
vez, pede em 1859 uma data no Lavapés e é atendido. Pede novamente, ainda em 1859, um
mês depois de ter sido atendido, um lote em “qualquer lugar do município” e é ignorado. Em
fevereiro de 1860, consegue outra data, desta vez no Morro do Telégrafo (área atualmente
ocupada pelo Shopping Paulista). Vicente de Andrade envia em 1851 dois pedidos para a
Câmara com dois dias de diferença entre um e outro; no primeiro pede data no Aterrado de
Santana e, no outro, no Arouche, tendo conseguido data na segunda localidade.
Joaquim Mathias Bicudo consegue data no Aterrado de Santana em 1851, e seis meses
depois pede acréscimo em suas terras. Novamente em 1859 aumenta seu patrimônio através
de acréscimo. No Registro Paroquial de Santa Ifigênia feito por ele em 1855 consta que, além
do pedido de acréscimo, Joaquim comprou terras de dois vizinhos, Joaquim Francisco de
Toledo e Pedro Mathias. Seu terreno, na frente do Recolhimento da Luz, media 36 braças de
frente, 36 do lado esquerdo e 41 do lado direito. Antes do novo acréscimo de 1859, portanto,
ele tinha o equivalente a três datas e meia de frente. Como os fundos do seu terreno eram
voltados para o rio, sempre que esse era retificado havia a possibilidade de aumentar seu
patrimônio. Joaquina Maria das Dores aparece com quatro pedidos entre 1859-1860, sendo
dois deles atendidos para a região do Brás, inclusive num terreno alagadiço ao lado do seu.
Antonia Eufrosina, entretanto, teve que fazer três pedidos para o mesmo local, entre 1859-
1878, atingindo seu objetivo apenas no último deles, referente à Rua Dr. João Theodoro.
Gabriel Antonio Fernandes enviou quatro pedidos entre 1871-1874 e teve uma carta atendida
na Rua Nova do Gasômetro em 1874. José Alves Fernandes, no entanto, mereceu deferimento
dos três pedidos solicitados no Arouche e no Campo Redondo, vendendo um dos lotes.213
213
REGISTRO DE TERRAS DE SÃO PAULO. Divisão de Arquivo do Estado. São Paulo: A Divisão, 1999,
vol. 5 Freguesia de Santa Ifigênia., ficha nº 163.
123
O que verificamos nesses pedidos duplicados e até triplicados é que, em muitos casos,
as pessoas persistiam em suas intenções, chegando a solicitar diversos lotes ao mesmo tempo
na esperança de serem atendidos. Às vezes conseguiam, mas em muitos casos não: Joaquim
Pinto Ferraz fez três pedidos entre 1859-1863 e não foi atendido em nenhum, Antonio Carlos
Ferreira e diversos outros indivíduos que desesperadamente, pediram lotes “em qualquer parte
do município”, tiveram seus pedidos recusados sistematicamente.
Para que fins destinam-se as datas requeridas? Esse é um dos pontos interessantes da
pesquisa: apesar da data de terra ser um lote eminentemente urbano, seus eram são os mais
diversos: construir para morar; construir “rancho para tropeiros”; casa de negócio; cultivar
forragem; construir capela; casa de banho e até, como vimos, casa para uma cruz. Para fazer
esse levantamento, observamos os argumentos apresentados nas próprias Cartas de Datas.
Infelizmente, em diversas ocasiões – em 1859, por exemplo – quando os pedidos eram
muitos, as cartas eram simplificadas e perdiam sua especificidade. Entretanto, em períodos de
poucos pedidos as cartas ganhavam detalhes capazes de propiciar a reconstrução da trajetória
de vida de alguns indivíduos urbanos. Decidimos listar os argumentos, quando apareciam. Do
total, constam 2.310 ocorrências dos 7.021 requerimentos com argumentos que justificavam a
solicitação correspondente a 32% dos pedidos. Optamos por não filtrar ou agrupar os
argumentos214. Como não é da alçada deste trabalho investigar essa diferenciação, optamos
por manter os argumentos da forma que aparecem na documentação. Os argumentos serão
analisados por década para exemplificar alguns casos.
214
“Edificar casa” ou “edificar morada de casas” poderiam significar coisas diferentes, com a primeira
representando apenas uma casa simples e a segunda correspondendo a mais do que uma casa para alugar, por
exemplo.
125
215
Aqui com o sentido de “homens que possuem capital, dinheiro”.
126
A partir de 1860 cresce o número de pedidos de terras que caíram em comisso, ou seja,
lotes concedidos mas não edificados no prazo estabelecido pela Câmara. A carência de fiscais
em número suficiente para vigiar o cumprimento das posturas era suprida pela vigilância
informal de pessoas comuns que em muitos casos sabiam mais sobre o lote do que os próprios
fiscais. As datas caídas em comisso eram, na sua maioria, na região do Campo Redondo
(Arouche e imediações). Em 1861, Antonio Luís Vieira da Motta solicitou a “data de
Francisco Taques de Alvim”, até aquele momento não edificada. Já Manoel José de Oliveira
pediu a “data de Flauzina”. Rita Carolina da Silva Santos requereu a data atrás da igreja do
Brás pertencente, segundo ela, a João Fernandes Tenório. Outro argumento crescente em 1860
era o de “cultivar”. Os locais assim solicitados variavam entre a Estrada de Santo Amaro,
Mooca, Brás (o chamado “Campo da Tabatinguera”, região de várzea logo após a Ladeira da
Tabatinguera e próximo ao Brás), e o Morro do Caaguaçu (futuro espigão da Avenida
Paulista). Entre os que alegavam “pobreza extrema”, a grande maioria queria a áreas no
Morro do Telégrafo, que hoje corresponde a região do Paraíso. Curiosamente, os que falam
em “fundar propriedade” pedem lotes na “Cidade Nova” (Campo Redondo). Conforme
veremos no capítulo 3, a diferença de argumentos confirma tendências de ocupação da cidade,
contando a “Cidade Nova” com moradores mais abastados. Em 1861 o Dr. Joaquim Antonio
Pinto Júnior requereu terreno próximo ao Porto Geral (atual Rua 25 de Março, Ladeira do
Porto Geral) para construir uma casa de banho. Terreno para um templo foi solicitado na Rua
127
Lourenço Crus, por outro lado, pediu por “necessidade” um terreno no Marco da Meia
Légua em 1884. Em 1881, cinco pessoas solicitaram datas especificamente para “plantar
capim” no Catumby. O rossio da cidade abarcava os mais diferentes tipos de pedidos,
justificados como o “progresso” mediante edificação, ou o “cultivo de forragem”. Entretanto,
um argumento instigante surge a partir de 1880: “possuir”. São três pessoas diferentes
pedindo lotes na região das Perdizes com o intuito de “possuir”. Trata-se de indícios de uma
inflexão no entendimento das datas de terra, já que “edificar” sempre foi a motivação
principal. As menções indicam uma mudança de mentalidade em curso, uma vez que, nessa
altura, os lotes eram onerosos apesar de concedidos.
O comisso ocorre justamente no caso de pessoas que não cercaram e não construíram
nada no lote, culminando na devolução do terreno para a Câmara. O argumento “comisso”
ganha importância conforme vão diminuindo os terrenos a serem apropriados no entorno da
cidade. Assim, por exemplo, no início dos anos 1850 praticamente inexistiam casos de
requerimentos de lotes caídos em “comisso”. Conforme cresceu a procura por datas, a atenção
da população sobre os lotes não edificados aumentou devido a relativa escassez de terrenos no
rossio. Assim, em toda a década de 1850 temos apenas um sujeito pedindo data em “comisso”
no Brás. Esse número pula para 35 casos na década de 1860 devido à distribuição em larga
escala em 1859. Registramos apenas dez casos na década de 1870 e o número salta para 61 na
década de 1880. Em 1881, a velocidade dos pedidos poderia ser mensurada pelos pedidos de
datas em comisso por exemplo, cartas datadas do mês de agosto solicitam terreno em
“comisso” concedido em fevereiro, após os exatos seis meses exigidos pela Câmara.
Naturalmente, ficavam de olho nesses terrenos os interessados nos lotes, a espreita de um
passo em falso dos requerentes. A situação chegou a ponto de os moradores não conseguirem
construir porque os vereadores simplesmente “redoavam” a data antes mesmo desta ser
cercada:
130
interessante é a de que os moradores do local retiravam o madeiramento das cercas para fazer
combustível. Além disso, o constante alagamento da várzea provocava abandono temporário
dos terrenos.
Quando um rio era retificado, o comum era que os moradores da região merecessem
novos alinhamentos e acréscimo nos seus terrenos. Entretanto, Caetano Ferreira Balthar é
protagonista de uma séria querela com seus vizinhos ao pedir um alinhamento na Várzea do
Carmo, em 1859:
218
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, vol. 44, 1858. p. 206.
219
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, vl. XVII, 1859. p. 282.
132
Por uma nota anterior sabemos que a chácara de Caetano Balthar foi aforada
diretamente pelo Governo da Província em 1855. Seu pedido de alinhamento simplesmente
iria fechar parte da várzea, região de uso comum da cidade. Em um primeiro momento, a
Câmara analisa os “melhoramentos” a serem feitos no local caso fosse fechado, achando
prudente passar o alinhamento e principalmente abrir uma rua comunicando-o com o Pari no
terreno oferecido em troca por Balthar. Logo em seguida, um abaixo-assinado dos moradores
da cidade “vem representar contra similhante deliberação attenta a sua inconveniência e
ilegalidade”. Os assinantes justificam tratar-se de servidão pública e terreno de uso comum.
Conforme verificamos no capítulo 1, esses casos eram os mais delicados e, no geral, a Câmara
optava pela servidão pública depois de uma investigação comprobatória dos usos do terreno
motivador da disputa.
Na parte da frente do terreno morava o tenente, que requereu a parte retificada nos
fundos, sendo que nesse lado morava Azambuja. Esse caso é interessante para verificarmos
como o alinhamento poderia gerar conflitos, anexações e disputas por terra. Nesses termos, a
região da Várzea do Carmo – que formaria a Rua 25 de Março – foi concedida:
220
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, vol. 55, 1869. p. 91-93.
133
Algumas datas foram ali concedidas, portanto, com o intuito de dessecar a área, assim
como o aterrado para o edifício do Gasômetro, que gerou uma nova rua e novos lotes.
221
Idem. p. 201.
134
Como vimos, apesar da autorização para aforamento terrenos do rossio, estes foram
concedidos gratuitamente a partir de 1859. Por causa do ônus em caso de área por arruar
(sendo necessário pagar o arruador), normalmente os pedidos eram feitos em zonas já
arruadas.
222
RIBEIRO, Fernando V. Aguiar. Poder local e patrimonialismo: a Câmara Municipal e a concessão de terras
urbanas na vila de São Paulo (1560-1765). São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado em História Econômica).
FFLCH-USP.
223
Idem, p. 155.
135
Na Rua das Casinhas, segundo Eudes de Campos226, a Câmara possuía de seis imóveis
aforados a terceiros que funcionavam como mercadinhos. Eram lojas de um só cômodo cada,
224
Atas da Câmara, 1856, p. 130.
225
O “Orçamento da Receita e despeza da Camara Municipal da imperial Cidade de São Paulo para o anno
financeiro de 1863 a 1864 a contar do 1º de julho do corrente ano de 1863 até 30 de junho de 1864” demonstra
que a Câmara arrecadava com aluguéis de sua propriedade 2000$000, ou seja, duzentos mil réis por ano.
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de S.Paulo;
Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 49, 1863, p. 40-46.
226
CAMPOS, Eudes de. “Mercados públicos da São Paulo oitocentista”. In: Informativo Arquivo Histórico
Municipal, São Paulo: PMSP/SMC/DPH, 2 (10), jan./fev. 2007.
Disponível em: http://www.arquivohistorico.sp.gov.br – acesso em: 01/04/2011.
136
onde eram vendidos os produtos produzidos nas chácaras do entorno da cidade. 227 Por outro
lado, na baixada chamada de Buracão do Carmo, a Câmara também possuía treze imóveis
para venda de toucinho, banhas, farinhas e víveres. Ao lado das casinhas da Ladeira do Carmo
havia ainda um terreno que servia de lixão desde, no mínimo, 1852.
227
GIORDANO, Carolina Celestino. Ações sanitárias na imperial cidade de São Paulo: Mercados e
Matadouros. Campinas, 2006. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Pontifícia Universidade
Católica de Campinas, p. 82.
137
Figura 11 – No detalhe, a Rua das Casinhas, atrás do Palácio do Governo e voltada para Várzea do
Carmo. Mappa da Cidade de São Paulo e seus Subúrbios (1844- 1847). Engenheiro Civil C. A. Bresser.
Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set/out.2008, AHMWL.
228
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 25, 1830, p. 252.
229
Idem, v. 48, 1862, p. 136.
230
Ibidem, p. 193.
138
pretende “alugar” todas as casinhas por duzentos mil réis anuais responsabilizando-se por
todas as reformas231 que elas necessitassem. Os vereadores respondem de forma positiva:
[...] e attendendo a q. esses quartos quase nenhuma renda dão a esta Camara
pr estarem feixados há annos, [...] attendendo mais a q esses quartos
nenhuma utilide prestão ao fim pa q forão feitos, e conservados pr esta
Camara: isto é, para a venda de carnes de porco fresca e toucinho a retalho
[...] sou de parecer que acceite ella a proposta do referido Senra Cardozo,
arrendando-lhe some 6 quartos, e reserve os dois últimos deduzindo-se dos
200$rs annuaes da proposta pelos oito, a qtia de 50$rs dos dois quartos
reservados; vindo assim a ficar o arrendamento dos seis quartos por 150$rs
annuaes [...].232
A Câmara possuía, além da Rua das Casinhas, cômodos na Ladeira do Carmo com a
mesma finalidade. Daniel Senra Cardoso queria o arrendamento por 20 anos, a Câmara
propõe 12, e se precisassem das casinhas pagariam as benfeitorias feitas por ele, retomando o
prédio. Entretanto, os vereadores não aceitam de imediato e a proposta é indeferida com o
argumento de que:
231
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 39, 1852, p. 176.
232
Idem, p. 176.
233
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 40, 1853, p. 49.
139
mensais e, no final, saiu lucrando diante dos valores alcançados pelas casinhas. O destino das
duas seria o de um depósito de chá. As súplicas dos requerentes, pedindo sempre prazos de 10
a 20 anos de arrendamento, eram constantes, mas os vereadores fixaram um prazo máximo de
quatro anos para esse tipo de arrendamento, com a possibilidade de retomada do imóvel a
qualquer momento.
[...] não pode porem convir no preço que se offerece, porque tendo o tal
commodo cincoenta palmos de frente, e três portas, seria fácil devedir em
três quartos, q a maneira das outras darião quatro mil reis por mez cada um,
e talvez muito mais fasendo-se alguns repartimentos proprios pa
accommodar família, pois que alem de espaçoso o cuberto tem agua corrente
em um pequeno quintal cercado234.
No final dos anos 1850, uma das casinhas da Ladeira do Carmo mereceu proposta de
vinte mil réis mensais235 e os imóveis na Rua das Casinhas alcançam o valor de quinze mil
réis mensais. Para morador da Rua do Rosário, cujo nome infelizmente não foi registrado, em
10 anos o valor mensal do aluguel duplicou. Em 1849, ele pagava dez mil réis mensais e
considerava o valor de vinte mil réis, proposto em 1859, abusivo; infelizmente seu pedido foi
indeferido236, ou seja, em uma década o valor do aluguel (arrendamento ou aforamento)
duplicou. Ainda em 1859, as casinhas recebem propostas de dezesseis e vinte mil réis por
nove anos. A resposta da Câmara denota o pensamento da época: aceitam o valor, discordam
do tempo e incluem a condição de os inquilinos liberarem a casa quando a Câmara achar
conveniente237. O fator tempo agora estava irremediavelmente atrelado ao valor máximo
234
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 41, 1855, p. 203.
235
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 44, 1858, p. 78.
236
Idem, v. 45, 1859, p. 20.
237
Ibidem, p. 165.
140
possível a ser arrecadado e não mais a contratos enfitêuticos238 de longo prazo. Em 1861, a
casinha de nº 9 foi arrendada por Joaquim Martins Carneiro de Campos por vinte e cinco mil
réis mensais, o dobro do valor praticado na década anterior. A partir daí, as propostas só
aumentam: vinte e cinco, trinta mil réis por mês, por um prazo de quatro anos apenas. As
propostas aparecem de todos os lados e os negociantes já estabelecidos no local correm para
cobri-las. Esse é o caso de Antonio Rodrigues Santos239 que, mesmo afirmando morar e ter
negócio na casa de esquina da Rua das Casinhas há mais de 14 anos, é obrigado a cobrir o
valor de trinta mil réis proposto por outro requerente.
Por outro lado, em 1875, período em que as datas já não eram gratuitas, os vereadores
recebem autorização para aforar uma área na Várzea da Mooca, terreno do Clube Paulistano
de Corridas, o hipódromo. São 698.000 metros quadrados, com o valor de 20 réis por metro, o
mesmo cobrado a partir de 1875 pelas datas concedidas240. Interessante especular o porquê de
essa área ter sido autorizada para aforamento e não concessão por data: provavelmente era
uma área particular ou de uso provincial. Entretanto, vários pedidos de datas para a área
imediatamente adjacente ao Hipódromo surgem em 1878, conforme analisaremos no terceiro
capítulo, o que pode significar que, devido ao aforamento autorizado em 1875 essa se tornou
uma área de atração populacional e pouco ocupada, portanto, passível de apropriação em
1878.
238
O arrendamento ou aforamento pode ser descrito como um contrato enfitêutico, ou seja, a concessão de um
terreno (ou imóvel) pagando-se uma quantia ao senhor dessas terras (no caso a Câmara) para beneficiá-la. No
original o cessionário do terreno não poderia retomá-lo se as obrigações contratuais estivessem sendo cumpridas.
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez, e latino, áulico, anatômico, architectonico, bellico, botânico...et
alii. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712.
239
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 47, 1861, p. 194.
240
Idem, v. 61, 1875, p. 25.
141
Figura 12: Hipódromo. Detalhe da Planta Geral da Capital de São Paulo (1897). Gomes Cardim,. Em
amarelo a Rua do Hipódromo, motivo de diversas cartas enviadas a Câmara requerendo lotes de terra no local
(1878). Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL.
241
SIMONI, Lucia Noemia. Op. cit., p. 95.
242
Código de Posturas da Câmara Municipal da Imperial Cidade de S. Paulo, de 31 de maio de 1875, artigo 20.
142
por metro quadrado). Em 1882, o valor foi elevado para 40 réis o metro quadrado243. Brito
(2006, p. 98) faz uma comparação entre os valores da data concedida pela Câmara e uma casa
vendida por particulares na Rua João Teodoro244. A transação particular ficou em 120$000
por 216 metros quadrados e, se nela fosse aplicado o valor cobrado pela Câmara (de seis réis
a braça quadrada), o mesmo terreno custaria 129$000 réis. A equivalência dos valores
cobrados significa que a Câmara não era concorrente do governo da província na matéria em
questão denunciados a paridade almejada. O uso produtivo ainda era condição para manter a
data, ou seja, o lote ainda poderia cair em comisso caso as condições não fossem cumpridas, o
que exclui a noção de propriedade absoluta no caso específico das datas de terra, dos
arrendamentos e aforamentos camarários. Entretanto, as posturas de 1875 liberavam mais de
um lote para o mesmo indivíduo, desde que ele edificasse antes no primeiro deles.
243
SIMONI, Lucia Noemia. Op. cit., p. 97.
244
OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Entre a casa e o armazém – relações sociais e experiência de
urbanização São Paulo, 1850-1900. São Paulo: Alameda, 2005, p. 266.
143
Em 1860, o vereador Diogo de Mendonça elaborou uma proposta que mereceu estudo
detalhado por colocar em relevo as propostas de uso da Várzea do Carmo. Como era de praxe,
o vereador começa por apontar a carência de imóveis na cidade, e o alto valor dos aluguéis
em consequência disso:
245
Em 1859, a Comissão do melhoramento de edificações da cidade, encarregada de verificar o local apropriado
para o mercado, propõe a construção de uma praça, bem como o arruamento e loteamento gratuito da área.
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de S.Paulo;
Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 45, p. 21-25.
246
“Indicação do vereador Diogo para a Várzea do Carmo, 19 de Julho de 1860”, ACTAS DA CAMARA
MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de S.Paulo; Departamento de
Cultura, 1914-1951 , v. 46, 1860.
144
Ficamos sabendo então que pouco capital era empregado na construção de casas247 e
que o valor dos terrenos era praticamente equivalente ao da construção. Em seguida, o
vereador fala sobre a composição da sociedade paulista e da necessidade de moradias no
centro, próximo ao local de trabalho, uma vez que inexiste transporte público eficiente:
Diz-se (dizem) ser ella necesaria para pasto de animaes, mas são meia dusia
de cavallos ou bois unicamente em tempo seco ali pastão, e eu não sei como
seriamente possa alguém entender o povo dese soffrer a escassez de casas, a
falta de habitação, afim de que esses animaes não sejão desacommodados249.
Seria mesmo apenas meia dúzia de animais? A Várzea do Carmo era o enigma da
cidade, local de despejo de lixo em 1859, do comércio, divertimentos, verdadeira fronteira
visual e territorial:
247
Afirmação que precisa ser relativizada, uma vez que a intenção do vereador é distribuir “gratuitamente” os
terrenos, e para isso ele argumenta sobre a carestia dos materiais e terrenos.
248
Idem, vol. 46, 1860.
249
Idem, vol. 46, 1860.
145
250
SAMPAIO, Teodoro. São Paulo no século XIX e outros ciclos históricos. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 74.
251
OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Entre a casa e o armazém – relações sociais e experiência de
urbanização: São Paulo, 1850-1900. São Paulo: Alameda, 2005, p. 72.
252
Maria Luiza Ferreira Oliveira estuda exatamente as representações imagéticas da várzea, levantando muitas
das questões que este trabalho procura esclarecer, como os debates em torno das utilizações desse espaço central
e, ao mesmo tempo, fronteiriço da cidade.
146
Figura 13: Várzea do Carmo. Mappa da capital da província de São Paulo, por F. Albuquerque e J. Martin,
copiado por Francisco Sansoni, 1870. Ao centro, a Ilha dos Amores, posicionada entre o atual centro histórico, à
esquerda, e a Várzea do Carmo. A ilha dos Amores, implantada no meio de várzea, foi um projeto da década de
1870, no auge das propostas de melhorias da cidade. Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20):
set/out.2008, AHMWL.
Figura 14: Benedito Calixto. “Inundação da Várzea do Carmo” (detalhe). Fonte: Museu Paulista/ USP.
Outra pista que o vereador nos dá refere-se ao número de animais que pastava na
Várzea do Carmo ao que parece não era pouco expressivo:
Portanto, o que está em jogo é o loteamento de um terreno, no centro da cidade, que tem por
função ser pasto coletivo e gratuito e, em alguns casos, local de trocas de sitiantes além
Tamanduateí, que ali aportavam para fazer comércio. Situando essa região como um
entreposto comercial, era comum soltarem os muares enquanto faziam negócios no assim
denominado Mercado de Caipiras.254Afinal, os muares traziam as cargas.
Ora, na fala do vereador, os pastos deveriam ser pagos, posto que a Câmara
não teria a obrigação de fornecer pastagem gratuita. Portanto, a várzea não tinha por que
permanecer desocupada. Acrescente-se que os vereadores favoráveis à distribuição gratuita já
tinham uma planta de arruamento do local. Diogo de Mendonça, partidário do parcelamento,
chegou a afirmar que, com a ocupação, acabariam as enchentes na área, contribuindo para o
embelezamento da cidade e a manutenção dos cofres públicos.
Figura 15: “Rua 25 de Março”, Antonio Ferrigno, 1894. Fonte: Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo.
253
“Indicação do vereador Diogo para a Várzea do Carmo, 19 de Julho de 1860”, ACTAS DA CAMARA
MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de S.Paulo; Departamento de
Cultura, 1914-1951 , v. 46, 1860.
254
SANTOS, Carlos José Ferreira dos. “A Várzea do Carmo – Lavadeiras, Caipiras e „Pretos Véios‟.”
In Memória e Energia. São Paulo: Fundação Patrimônio Histórico da Energia de São Paulo, n. 27. 2000.
http://www.energiaesaneamento.org.br/materialeducativo/files/artigos/santos_carlos_jose_ferreira_varzea_do_ca
rmo_lavadeiras_caipiras_e_pretos_veios.pdf (retirado do site em 01/2010)
148
Fala do desenvolvimento do Brás, que os tropeiros têm pastos cercados muito mais
convenientes e seguros do que os pastos públicos e desdenha de um dos argumentos do
abaixo-assinado que informava que as pessoas tiravam minhocas do local (provavelmente
para pescar nos rios da região, inclusive dando a ela o nome de Várzea das Minhocas, nas
proximidades do Brás e da Mooca). Na discussão das atas, o mesmo argumento de que um
local apropriado é melhor do que um campo comum para pastagem é exposto:
255
Terras e Terrenos Municipais e Particulares 1883-1902 e Sem Data, Manuscrito, sem numeração.
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. XVII, 1860, p. 146-161.
149
O Sr. Tene. Corel. Claudio pedindo a palavra diz que tendo sido encarregado
de mandar proceder ao fecho da várzea do Carmo para alli estabelecer-se um
pasto para os animaes dos importadores de gêneros à Praça do Mercado, não
pôde continuar a encarregar-se de seme trabalho em vista da opposição que
ao fecho estão fazendo os jornaes e o povo; que dá-se pr demittido confiando
que a camara não recuará na sustentação do seu acto, visto ser de utilide
publica votando para que o fecho fose feito [...].257
257
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 53, 1867, p. 109 e 110.
150
A área era de aproximadamente 549.000 m² entre a cidade e o Brás (da Rua da Mooca
ao Ribeirão Anhangabaú). Como de praxe, a intenção é embelezar, drenando e canalizando o
rio, construindo largas avenidas e uma praça:
Apellar também para o futuro quando seja essa área o centro da cidade, e
fantástico parque, não nos parece nem boa argumentação, nem legitima idéa
sobre o real e verdadeiro typo de uma cidade moderna e progressista, que
adia indefinitamente seus melhoramentos só porque aquelles que se propõe
realisal-os auferem algum lucro individual.261
258
Samuel Malfatti era engenheiro renomado e Miranda de Azevedo, médico higienista, um dos pioneiros do
ramo no Brasil.
259 “
A Várzea do Carmo” – Pareceres de Engenheiros, jurisconsultos, e de médicos sobre a proposta dos drs.
A.C. de Miranda Azevedo e Samuel Malfatti, escolhida pela Camara Municipal – e opinião da Imprensa, São
Paulo. Leroy King Bookwalter, Typographia King, 1890.
260
Op. cit., p. 7.
261
Op. cit., p. 5.
151
Os empresários, que arcariam com todos os ônus decorrentes desse processo, frequentemente
afirmavam que o poder público não poderia arcar com tais despesas, de modo que a venda dos
lotes a preços “módicos”, com justa auferição de lucro, seria um processo mais lógico,
moderno e eficaz. Reafirmam que a área, do jeito que estava, era um local impróprio, sujo,
pantanoso:
Quando consultado para falar dos problemas sanitários do local, o Dr. Antonio
Caetano de Campos se pronuncia com extrema ironia, afirmando que os burros ali tem lugar
enquanto os cidadãos precisam de moradia. Segundo o médico, era um local desocupado onde
os burros eram enterrados. No entanto, vimos tratar-se de uma falácia, pois na várzea
fervilhavam atividades de abastecimento da cidade, fronteira com o entorno agrícola,
entreposto de chácaras, local ocupado pelo mercado “caipira” e pelas lavadeiras. Não era,
portanto, um cemitério de burros, mas ocupado por atividades consideradas pouco nobres aos
olhos da municipalidade e dos empreendedores imobiliários a partir de então.
Um dos pontos levantados contra o projeto era o fato de a Várzea ser “inalienável”,
o que pode significar que, ainda em 1890, a área era vista como terra de “uso comum”
destinada a pastagem gratuita e ao abastecimento de água. A passagem seguinte confirma
isso:
262
Op. cit., p. 45.
263
Op. cit., p. 57-58.
152
Novamente surge a ideia de que o logradouro é público até que não seja mais útil
enquanto tal, ou melhor, até ser incorporado ao mercado. O argumento de que, ao fazer o
Mercado ou a Ilha dos Amores, a municipalidade não pensou no uso comum é risível, mas
utilizado aqui como para dizer: o logradouro continua público por falta de vontade política de
ocupar essas terras.
A teoria miasmática,265 tão utilizada como argumento para lotear e ocupar regiões de
várzea, sofreu nesse caso uma reviravolta. Quando o contrato com os empresários foi desfeito,
surgiu em seguida a proposta de um parque na região, que deveria funcionar como pulmão da
cidade – ideia concretizada em 1911, com o plano de Bouvard.
264
Op. cit., p. 78-79.
265
Essa teoria afirmava que os miasmas dos locais úmidos eram responsáveis por diversas doenças. O Dr.
Azevedo reafirmaria em diversos artigos o caráter pestilento da Várzea, e que fazer um parque com lagos, como
propunha o Correio Paulistano, em nada alteraria o fato de a região ser foco de doenças.
266
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 49, 1863, p. 127.
267
Esse personagem, mesmo no período formal de proibição das Datas, em 1857, teve um pedido aceito pelos
vereadores – exceção gritante do período – e, como se vê, ele possivelmente teria sido grileiro na região.
153
[...] ter dado livre transito ao lugar denominado Perdizes, como lhe fora
determinado, dando-se porem que no dia immediacto, teve ainda de
completar esse serviço pr. ter sido durante a noite novamente aberto os valos
para fecho do lugar; e deixando livre esse transito, consta-lhe hoje que
prosseguem no fecho do lugar.268
A incapacidade de manter o trânsito livre na região e a rápida reconstrução dos valos nos leva
a inferir que os opositores eram organizados e que essa região, quer pela sua distância do
centro, quer pela influência do Juiz de Paz que distribui as terras de forma ilícita, não era
considerada sob influência da Câmara Municipal.
Dois anos após as primeiras denúncias, novos cercamentos na região foram efetuados
e o fiscal continuou com problemas para manter a área livre. José Fabiano Baptista enviou
requerimento aos vereadores com documentos comprovando que a área era de servidão
pública. Logo em seguida, o Coronel José Pedro de Brito Galvão afirmou que o terreno era
seu e uma comissão foi formada para apurar o assunto. Não sabemos o desfecho da história,
mas é certo que os problemas na região continuaram.
A chácara desapropriada pertencia a José Fabiano Baptista, que havia mandado ofício
à Câmara oferecendo a sua chácara para desapropriação. A área era considerada, portanto,
distante o suficiente do centro urbano para conter um matadouro. Interessante ressaltar que
outro requerimento enviado à Câmara, além de pedir que a chácara de José Fabiano não fosse
desapropriada, informava que a fonte de água da chácara estava em conflito com o curtume
abaixo, dando a entender que José Fabiano tinha problemas com os vizinhos. Apesar da
268
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 52, 1866, p. 8.
269
Idem, v. 58, 1872 p. 20.
154
desapropriação ter ocorrido em 1873, a Câmara desistiu da área e optou pela Vila Mariana,
construindo o matadouro somente quinze anos depois (1887). Os porquês dessa desistência
não são claros. Sabemos que outro terreno no chamado “Pacaembu de Cima” (mais próximo
do que hoje é a Santa Cecília) também foi oferecido à Câmara, mas a chácara de José Fabiano
foi a preferida por ser maior e mais distante do “pequeno povoado de Santa Cecília”. Durante
a década de 1870, a região das Perdizes ganhou uma capela (Santa Cecília), fato que
impulsionou os pedidos de terra ali.
270
Dr. Sebastião Pereira é marcado com dez datas e Capitão Paulino e Dinis Azambuja, com nove datas cada
um. “Relação das Datas do Pacaembu”. In: CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo.
Restauração da Subdivisão de Documentação Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação
Histórica e Social, 1939, v. 1 1880, manuscrito, p. 151 (a lápis).
271
Mercadores de gado para o açougue. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez, e latino, áulico,
anatômico, architectonico, bellico, botânico...et alii. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712.
272
Idem, 1882, v. 4, p. 229.
155
poder273”. Lembramos que era obrigação do concessionário fazer o fecho e construir no prazo
estipulado ou a concessão seria invalidada. No entanto, mais adiante na documentação,
verificamos que a manutenção do poder não foi tão bem-sucedida. Os pedidos de transferência
continuaram até que, em novembro de 1883, atingiram o auge:
[...] cujas datas foram demarcadas e cercadas pelos suppes, acontece que o
povo, invadiu aquelle território, inutilizaram as cercas e demarcações, sob o
pretexto de taes terrenos não serem próprio municipal.274
Em suma, uma vez concedido o terreno, os problemas e disputas não eram da alçada
da Câmara, devendo ser resolvidos por meios legais. Diante de novas reclamações – os
concessionários se veem acuados diante da alegação de posse dos antigos moradores – o
parecerista revela:
Por justiça dos supplicantes, resolvendo a Ilma Camara, devo informar que
podeis sem prejuízo dos Cofres Municipais serem mudados das Perdises
para o Marco da ½ Légua [...] os povos dali formalmente embargaram por
meio da força o progresso do lugar não deixando edificar no Campo das
Perdises [...].276
273
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939, 1883, v. 1, (sem
numeração de páginas).
274
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939, 1883, v. 1, (sem
numeração de páginas).
275
Idem, v. 1.
276
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939, 1883, v. 1, (sem
numeração de páginas).
156
É bastante elucidativo este parecer, que nos revela a resistência por parte dos antigos
moradores à ocupação e parcelamento do lugar. O parecerista recomenda, por fim, a
intervenção do Governo da Província, não porque a área não fosse municipal, mas para que o
direito dos concessionários fosse mantido, uma vez que a Câmara já tinha distribuído ali cerca
de 1.500 datas e poderia sofrer um prejuízo de oito contos de réis já pagos pela demarcação
das mesmas. As dúvidas que ficam são: por que motivos os antigos moradores do local não
queriam que a área fosse ocupada? Teriam poder de interferir esses novos moradores na
dinâmica do local? Os usos dos campos, antes abertos e agora fechados por força das
concessões, seriam motivos da resistência? Seriam as fontes de água potável o problema? Era
pretensão dos moradores mais antigos aumentar gradativamente as suas propriedades através
de pedidos de acréscimo ou simples posse e, por isso, embargavam os fechos? A resposta para
todas essas questões pode ser a seguinte:
Apesar da diferença entre essas duas regiões, podemos afirmar que tanto a Várzea do
Carmo quanto a área do Pacaembu e Perdizes eram limites da cidade, e que, de formas
diferentes, nas duas os seus moradores e usuários dificultavam a apropriação e a acelerada
produção do espaço. Interessante notar que essas áreas de conflito eram de natureza limítrofe
entre o termo e o rossio ainda indefinidos pela ausência do mapa supracitado. Por fim, um
último fator que aproxima essas duas áreas de naturezas opostas – já que uma é de uso comum
277
GOTTDIENER, Mark. A produção social do espaço urbano. São Paulo: Edusp, 1993. p. 199.
278
Idem, p. 206.
157
CAPÍTULO 3
A partir de 1859, os pedidos de terras municipais saltam da casa das centenas para a
dos milhares. Neste capítulo veremos como o rossio foi apropriado em etapas bem definidas
durante esses 40 anos, seguindo o ritmo imposto a partir do arruamento da “Cidade Nova” no
começo do século XIX, quando o Coronel José Toledo de Arouche Rendon arruou suas terras
caídas em comisso, dando início ao movimento de valorização da região oeste da cidade. Em
1860 todos os terrenos devolutos da região oeste – Arouche e arrabaldes – foram
completamente ocupados. A década de 1860 é marcada por um rigor maior na distribuição e
observam-se denúncias constantes de fraude. A região leste da cidade, para além da várzea do
Brás, foi concedida e iniciaram-se melhoramentos urbanos como a abertura de ruas, praças,
retificação dos rios, que proporcionaram a ocupação dessas áreas menos nobres da cidade.
279
GLEZER, Raquel. “Persistências do Antigo Regime na legislação sobre a propriedade territorial urbana no
Brasil: o caso da cidade de São Paulo (1850-1916)”. In: Revista Complutense de História de América, v. 33, p.
197-215, Madrid, 2007.
159
Com o problema da medição do rossio pendente desde 1852, durante essa década as
concessões foram suspensas diversas vezes (1853, 1854, 1855, 1856, 1858). São praticamente
cinco anos sem poder conceder terras, embora tenhamos constatado a ocorrência de pedidos
durante todos os anos e algumas concessões esparsas. Abaixo, a tabela contendo os pedidos e
as datas doadas no período.
1851 77 27
1852 144 53
1853 12 00
1854 04 00
1855 03 01
1856 08 00
1857 11 02
1858 00 00
280
25 de Novembro de 1858, ofício enviado ao Presidente da Província, CARTAS DE DATAS DE TERRA,
1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de Cultura, 1939, v. XIX, 1860, p. 146 -
161
161
[...] é notório o augmento que tem tido na mesma capital as obras publicas, e
a necessidade de se emprehenderem outras, que são reclamadas a bem da
comodidade e interesses da sua população. [...] A população tem crescido e
com ella a necessidade de se velar mais pela salubridade publica, e de se
prover medidas policiaes por meio de posturas; e estas são ineficazes si para
a sua execução se não se aplicam os meios adequados, que possão dar os
resultados que desejão.281
[...] São Paulo contava com uma economia diversificada em que conviviam
a produção voltada para o comércio interno e a açucareira destinada à
exportação, além do café já produzido no Vale do Paraíba [...] para que a
economia se dinamizasse no período adquiriu relevo a atuação da
administração pública na construção e manutenção de uma rede viária capaz
de garantir o escoamento dos produtos.282
281
“Representação da Câmara à Assembleia Provincial, de 17 de maio de 1852”. In: REGISTRO GERAL DA
CÂMARA DA CIDADE DE SÃO PAULO, 1585-1863. São Paulo: Archivo Municipal de São Paulo;
Departamento de Cultura, 1917-1946, v. 35, 1852, p. 88-89.
282
DOLHNIKOFF, M. Crescimento econômico em São Paulo. D. O. Leitura, São Paulo, v. 22, n. 1, p. 28-37,
2004.
162
planalto era pensada, mas foi em 1859 que Irineu dos Santos Evangelista, o Barão de Mauá,
conseguiu autorização imperial e parceiros para o vultoso projeto. As obras começaram
efetivamente em 1860 e terminaram em 1867. As tabelas a seguir mostram o ritmo de pedidos
(Tabela 9) e deferimentos (Tabela 10) entre 1850-1859, o que nos permite constatar as áreas
de maior e menor incidência.
Largo do Caquito 1 3 4
Largo do Rafael, Campo Redondo 1 1
Largo do Saibro 1 1 2
Lavapé, Caminho para Santos 13 13
Luz 5 1 2 8
Margens do Rio Tietê e na Coroa 2 2
Matadouro 1 1 2
Matto-Grosso, Estrada de Santo 13 13
Amaro
Mooca 5 26 31
Morro das Sete Voltas 1 1
Pacaembu 1 2 3
Pari 2 1 3
Pinheiros 8 4 1 13
Pólvora 1 1
Ponte do Lorena 1 1
Ponte dos Piques 1 1
Ponte Grande 1 1 21 23
Rua da Tabatinguera 1 1
Rua Municipal 1 1
Rua Bella 4 4
Rua da América 1 1
Rua da Barra Funda 29 29
Rua da Barra Funda, Campo da 6 6
Mooca
Rua da Boa Vista, n 38 1 1
Rua da Cruz, Pari 34 34
Rua da Esperança 1 1
Rua da Glória 1 1
Rua da Pólvora 1 1 2
Rua da Ponte Grande 38 38
Rua das Palmeiras 13 13
Rua de São João, Campo Redondo 5 5
Rua do Andrade, Campo Redondo 1 1
Rua do Araújo 1 1
Rua do Araújo, Várzea do Pari 14 14
Rua do Arouche, Campo Redondo 4 4
Rua do Azevedo, Campo Redondo 3 3
Rua do Carvalho, Campo Redondo 1 5 6
Rua do Cônego Leão 1 1 2
Rua do Freitas, Ponte Grande 3 3
Rua do Marechal 21 21
Rua do Marechal, Pari 2 2
Rua do Marechal, Arouche 4 4
164
Ladeira do Açu 1 1
Largo do Arouche, Campo Redondo 1 1
Largo do Caquito 3 3
Largo do Rafael, Campo Redondo 1 1
Largo do Saibro 1 1
Lavapés, Caminho para Santos 10 10
Luz 4 2 6
Matadouro 1 1
Mooca 5 19 24
Pacaembu 1 2 3
Pinheiros 1 1 2
Ponte Grande 1 17 18
Rua da América 1 1
Rua da Barra Funda 29 29
Rua da Barra Funda, Campo da Mooca 6 6
Rua da Cruz, Pari 34 34
Rua da Glória 1 1
Rua da Ponte Grande 38 38
Rua das Palmeiras 13 13
Rua de São João, Campo Redondo 5 5
Rua do Andrade, Campo Redondo 1 1
Rua do Araújo 1 1
Rua do Araújo, Várzea do Pari 14 14
Rua do Arouche, Campo Redondo 4 4
166
Figura 16: Localização da chácara do Carvalho. A região foi concedida através da Carta de Data em um
período de proibição. Atualmente corresponde a Barra Funda. São Paulo, chácaras e sítios e fazendas ao redor
do Centro, organizado pelo Engenheiro Gastão Cesar Bierrembach de Lima, para a exposição do IV Centenário
de São Paulo. Fonte: Arquivo Aguirra/Museu Paulista/USP
283
José Alves Fernandes pede para aforar um terreno de 4 braças por 400 réis na Estrada de Santos.
168
Figura 17: Detalhe do mapa de 1842 com os limites da Cidade Nova a partir do Arouche. CARTA DA
CAPITAL DE SÃO PAULO: O Exmo Snr Barão de Caxias mandou executar pelo Engenheiro Comumna José
Jacques da Costa Ourique Fortificador da Capital. Fonte: AHMWL.
284
CAMPOS, Eudes. “São Paulo antigo: plantas da cidade”. In: Informativo Arquivo Histórico Municipal, São
Paulo: PMSP/SMC/DPH, 4 (20): set-out/2008. Disponível em: <http://www.arquivohistorico.sp.gov.br> Acesso
em: 22/05/2009
169
Esse arruamento em suas terras caídas em comisso abre a demanda para uma série de
pedidos de datas nas novas ruas. Os terrenos devolutos ao redor da prestigiosa Chácara do
Arouche tornaram-se polo atrativo de moradia por todo o século XIX, condicionando a
expansão da cidade naquela direção e valorizando a região com a presença de moradores
ilustres:
285
CAMPOS, Eudes; RIBEIRO, Maurílio José. Origens do bairro de Santa Cecília. INFORMATIVO
ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIPAL, 2 (12): maio/junho 2007 <http://www.arquivohistorico.sp.gov.br>
286
CAMPOS, Eudes. Arquitetura Paulistana sob o Império - aspectos da formação da cultura burguesa em São
Paulo. São Paulo, 1997. Tese (Doutorado em Estruturas Ambientais Urbanas). Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo, Universidade de São Paulo. 4 v. p. 205.
287
CAMPOS, Eudes. “Nos caminhos da Luz, antigos palacetes da elite paulistana”. In: Anais do Museu Paulista,
jan-jun; ano/vol. 13, n. 01. São Paulo, p. 11-57.
170
Ponte Grande, prolongamento do eixo da Luz, ao norte, será outra região de grande
importância ao ponto de o engenheiro responsável pelas medições do rossio sugerir que a
medição não tivesse a Sé como ponto inicial:
[...] mas observa que falto de milhores instrumentos seo trabalho não será
perfeito, e que não começara a medição, pa todos os lados, do pateo da Sé;
pr que tendo a cidade maior desenvolvimento e extenção pa alguns dos
dados (lados) seria defeituosa a medição pr terminar de alguns lados dentro
da povoação, e que por isso havia, á exemplo do Rio de Janeiro, começado a
medir pa o lado da Luz da esquina do pateo de S.Bento.288 (grifo nosso)
O engenheiro percebia que o crescimento da cidade fora maior no sentido norte e que
não fazia sentido medi-la a partir da Sé. Durante toda a década de 1850 a região da Ponte
Grande foi requerida.
A direção norte, junto ao caminho da Luz, que articulava a capital à Atibaia e Minas
Gerais, concentrava alguns polos de atração como o Jardim Público, o Convento, a Casa de
Correção e o Pouso (ou rancho) de Tropeiros denominado “do Guaré”. Assim como a Ponte
Grande e a Estrada do Guaré, algumas vias que articulavam a capital ao interior também
foram alvo de pedidos e deferimentos de concessão. Enquadradas nessa categoria estão a Rua
da Constituição, que transpunha o Ribeirão Anhangabaú, através da ponte do mesmo nome,
assim como a Rua Alegre.
288
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 38, 1851, p. 213.
171
Figura 18: Detalhe do Mapa da Cidade e Seus Subúrbios. Carlos Abraão Bresser, (1844-1847). Observamos
o caminho da Luz até a Ponte Grande. Destacado em amarelo, quase defronte ao Convento da Luz se encontrava
o Pouso do Guaré289. Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL.
289
GIORDANO, Carolina Celestino. Ações sanitárias na imperial cidade de São Paulo: Mercados e
Matadouros, Campinas, 2006. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Pontifícia Universidade
Católica de Campinas. p. 51.
172
Figura 19: Extrato da Planta da Cidade de São Paulo 1868. Carlos Rath. Em destaque as saídas para
Campinas e Sorocaba e Pouso do Bexiga, Largo da Memória e Arouche. Fonte: Informativo Arquivo Histórico
Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL.
Além das áreas de acesso a cidade, foram requisitadas terras, junto de ruas já abertas,
geralmente nos interstícios de chácaras pré-existentes.
290
Os nomes das localidades foram simplificados, o que significa perda de especificidade mas, por outro lado,
um ganho em eficiência no momento de colocar em uma base de mapa essas regiões.
173
Entre os pedidos chamam a atenção várias ruas do Campo Redondo, na Barra Funda
ou Pari, que, por vezes, confundiam-se. Outro problema é a Mooca, que em muitos pedidos se
confundia com o Brás. Temos de levar em consideração que essas regiões estão tomando
forma nesse momento, juntamente com tais concessões realizadas, em geral, junto das vias de
ligação, concentrando-se em pequenas áreas ocupadas, ou nos interstícios das chácaras e
várzeas.
291
O perímetro para cobrança da Décima Urbana de 1850 pode ser encontrado na “Collecção das posturas da
Câmara Municipal da Imperial Cidade de São Paulo (1830-1863)”. Essa compilação manuscrita pode ser
encontrada no Arquivo do Estado de São Paulo – AESP, doc. E0170 ou no próprio Arquivo Histórico Municipal
Washington Luís – AHMWL sob a denominação de “Leis e decretos municipais – Coleção das posturas
municipais”, n. 310/311, manuscritos.
174
“1º Para o lado do Carmo a ponte de pedra que está alem da chácara di
falecido Marechal João (?) Joaquim Mariano Galvão, com (?) (exceção,
provavelmente) das chácaras que não estão em arruamento.
5º Bexiga até a caza que fica fronteira á estrada no fim do pasto que foi dos
Religiosos Franciscanos
12º Rua da Palha, rua de Santa Yphigenia, tanque do Zuniga, rua de São
João e as mais da Cidade Nova até sahir no Campo Redondo292.
Inferimos ainda que a região central, correspondente à Freguesia da Sé, estava quase
completamente ocupada, condicionando a irradiação das solicitações de datas para os
entornos das chácaras envoltórias da colina histórica. É necessário reafirmar que a ocupação
não se efetivava se a área já tivesse sido arruada, sob pena de o concessionário ter que arcar
com essa despesa; nesse sentido, os pedidos serão, em geral, junto dos limites da área arruada.
292
“Collecção das posturas da Câmara Municipal da Imperial Cidade de São Paulo (1830-1863)”, op.cit.
175
O Campo Redondo, extensa área logo após o Tanque do Arouche, ocupada mais tarde
pelos bairros de Vila Buarque, Santa Cecília e Campos Elíseos, polarizou anos depois os
moradores mais nobres da cidade, mas, ao contrário da Luz, sua ocupação deveu-se menos ao
pulverizado próximo de concessão de datas, observado na Luz. Embora lotes tivessem sido
concedidos nos interstícios das chácaras ali existentes, a ocupação posterior a 1880 deu-se
justamente através do loteamento dessas glebas, realizados por particulares.
293
CAMPOS, Eudes. “Nos caminhos da Luz, antigos palacetes da elite paulistana”. In: Anais do Museu Paulista,
jan-jun; ano/vol. 13, n. 1. São Paulo, p. 11-57.
176
Figura 20: Chácara do Arouche e a região do Campo Redondo. São Paulo, chácaras e sítios e fazendas à
volta de São Paulo, desde o século XVII. Gastão Cesar Bierrembach de Lima, Exposição do IV Centenário de
São Paulo. Fonte: Arquivo Aguirra/Museu Paulista/USP.
Figura 21: Tanque do Arouche e o Campo Redondo entre 1841-1847. C. A. Bresser. Primeira planta
cadastral da cidade de São Paulo, podemos notar a ocupação rarefeita, as ruas ainda sem nomes da Cidade Nova
e o isolamento das casas em meio a grandes áreas vazias. Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal,
4 (20): set./out.2008, AHMWL.
177
Figura 22: Tanque do Arouche e o Campo Redondo em 1881. Planta da Cidade de São Paulo Levantada
pela Companhia Cantareira e Esgotos, Henry B. Joyner, 1881. Em destaque o Largo do Arouche e a densa
ocupação, edificações em praticamente todo o lote. As ruas do Campo Redondo já possuem nomes diferentes
daqueles da década de 1850, que eram basicamente referenciados pelos moradores das chácaras locais: do
Carvalho, das Palmeiras, do Rafael, Jerônimo, do Azevedo. O bairro de Campos Elíseos, loteado em 1877,
aparece arruado, mas sem edificações. Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008,
AHMWL.
294
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. XVIII, p. 211-212.
295
Idem, v. XX, 1860, p. 29.
296
Ibidem, p. 136.
179
sobre a distribuição ou não nas várzeas do Brás e do Carmo leva os vereadores a quase
suspender a distribuição de datas. Os vereadores, por sua vez, estavam divididos em três
grupos distintos: um deles afirmava que aquelas várzeas eram necessárias para todos os
moradores por serem áreas de pastagem, uso comum e logradouro; o segundo grupo desejava
a demarcação e a distribuição imediata para dessecamento e construção; e por fim, o terceiro
grupo, vislumbrando a construção da ferrovia, preocupava-se com as desapropriações que
necessitariam ser feitas caso a região fosse ocupada. Os partidários da distribuição acabaram
vencendo a disputa, mas foram cobrados do mapa do rossio pelo governo da Província.
180
(1860-1869)
A distribuição de datas foi intensa durante o ano de 1859, causando certa confusão e
demora nos procedimentos de concessão. As cartas comprobatórias de certas datas passadas
em 1859 só foram emitidas entre 1860 e 1861. Fato interessante desse período é que as
divisas entre os terrenos foram demarcadas. No livro de Carta de Datas de 1864, o último
publicado, aparece uma listagem chamada 1860-1863 – Relação das datas de terras passadas
em diversas épocas. Cruzamos a informação dessa relação com nosso banco de dados e o
resultado é: o documento comprobatório era escrito depois da demarcação do terreno; nesse
caso, com um ano de diferença entre a concessão e a carta escrita. Esse é o caso de Izidoro
Marques Cantinho, cuja concessão ocorreu em fevereiro de 1859, sendo a carta passada em
agosto de 1860. O lote que ele recebeu situava-se na Rua do Rafael, Campo Redondo, esquina
com a Rua do Tanque do Arouche e divisa com Francisca Maria de Freitas. José Marques
Cantinho recebeu um lote na Rua de São João que fazia fundos com outro membro da família,
Gabriel Marques Cantinho, vereador durante toda a década de 1850. Essa série de dados
permite reconstruir o desenho das concessões com seus confrontantes, através da elaboração
de mapas das datas contendo as divisas entre vizinhos e o tamanho dos terrenos.
[...] a quebra da Casa Souto foi apenas o estopim de uma crise que se deveu,
dentre outras causas, às políticas econômicas aplicadas pelo governo
imperial desde a crise de 1857 [...] aponta-se como uma das principais
297
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 46, p. 189.
181
298
SANCHES, Almir Teubl. A questão de terras no início da Republica: o Registro Torrens e sua (in)
aplicação. São Paulo, 2008. Dissertação (Mestrado em Teoria Geral e Filosofia do Direito) – Faculdade de
Direito, Universidade de São Paulo. p. 30.
299
Op. cit. p 31.
300
Órgão criado pela Lei de Terras para fiscalizar, medir, vender as terras devolutas e promover a colonização.
Em 1861 cria-se o Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, que fica encarregado das medições.
Órgãos de nível provincial tiveram dificuldades para conhecer as terras devolutas porque a prioridade de
demarcação era particular, ou seja, o proprietário tinha que declarar seu imóvel para, então, por exclusão, serem
conhecidas as terras públicas.
182
301
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 47, 1860, p. 68.
302
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. XX, 1861, p. 32-39. Ele estava enganado, é claro, a região não
poderia ser doada pelos vereadores de acordo com a Lei de Terras pois era considerada devoluta e sob domínio
da Província.
303
Demétrio fez o Registro Paroquial e consta do primeiro volume, que é sobre a Freguesia da Sé. Era possuidor
da chácara denominada Quebra Bunda, famosa por ser o local para onde os escravos eram encaminhados para
sofrer castigos físicos. Sua chácara também era chamada “do Telégrafo”, ou seja, era uma área entre o
matadouro antigo, da Rua Humaitá, e o atual Shopping Paulista.
183
alusão ao tamanho do terreno. O antigo fiscal se isenta da culpa afirmando que desconhecia as
medidas do terreno e que o requerente apresentou uma carta de Leandro de Toledo
autorizando a concessão imediata. Ou seja, o fiscal passou a carta sem verificar as
informações necessárias304 e esse episódio, dentre outros, implicou na suspensão do cargo do
vereador por irregularidades cometidas durante sua vereança.
Através desse episódio ficamos sabendo de irregularidades por parte dos vereadores e
fiscais na concessão de terrenos maiores do que os usuais: bastava alegar que estava fora da
cidade (cidade entendida aqui como área urbanizada, visto que o matadouro estava em área
ainda relativamente desabitada). O fato de o fiscal afirmar que o ocorrido foi durante a noite,
fora do expediente e na ausência de Leandro de Toledo da cidade, atendendo a um pedido
verbal, nos leva a pensar na autonomia de decisão do fiscal que detinha um grande poder
como intermediário destas concessões. Desse período datam também as denúncias contra as
medições do engenheiro Fernando de Albuquerque.
304
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939. v. XX, 1861. p. 38.
305
Nos pareceres de cartas pedindo regiões como a Rua das Palmeiras, no Carvalho e além do Cemitério
Municipal.
306
Consta que o próprio juiz de paz da área, Francisco de Paula Xavier de Toledo, estava distribuindo os
terrenos. Atas da Câmara, v. 49, pg. 127. Outra reclamação contra o juiz de paz sobre distribuição indevida de
lotes na Água Branca.
307
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal
de S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 49, 1863, p. 29.
184
1861 108 24
1862 115 23
1863 23 13
1864 08 01
1865 26 15
1866 27 02
1867 03 03
1868 28 22
1869 32 16
Embora com muito menos concessões do que durante a década de 1850, percebemos
outro pico de pedidos entre 1860-1863, com certeza reflexo da década anterior, ou seja, áreas
que começaram a ser concedidas em 1859 e continuaram até 1863. O percentual de pedidos e
deferimentos é semelhante ao da década anterior, o que pode indicar que os problemas
técnicos para efetuar as concessões continuaram a existir.
185
Rua da Pólvora 1 1
Rua das Palmeiras 1 1
Rua do Carmo nº 81 1 1
Rua do Carvalho 5 5
Rua do Marechal 1 1
Rua do Marechal, Brás 1 1
Rua do Oriente 1 1
Rua do Prado 1 1
Rua do Rafael 3 3
Rua do Rafael, Mooca 21 21
Rua da Tabatinguera 1 1
Rua do Telégrafo 1 1
Rua dos Bambus 1 1
Rua dos Mendes 2 2
Rua Nova 1 1
São Miguel 1 1
Telégrafo 30 10 12 10 22 3 1 88
Várzea da Luz 13 13
Várzea do Carmo 10 9 19
Total geral 581 108 115 23 8 26 27 3 28 32 951
Os pedidos tornam-se mais frequentes nas regiões já ocupadas, como por exemplo, o
Campo Redondo, o Arouche, as Palmeiras e a Luz. Também avançaram na vertente sul, em
direção à região do antigo matadouro que se localizava na altura da atual Rua Humaitá. Os
pedidos para a Estrada de Santo Amaro, Morro do Caaguaçu e Telégrafo demonstram essa
tendência de ocupação. A região da fazenda da Glória, que seria uma colônia de imigrantes,
também recebe diversos pedidos, junto da Estrada de Vergueiro (assim denominada por
passar na fazenda do político Nicolau Vergueiro).
A resposta deixa claro que, para os vereadores, a suspensão das concessões era ilegal,
mas eles acataram as exigências para não criar conflitos. Entretanto, um ofício do ano
anterior, assinado pelo Presidente da Província reclamava que mesmo estando proibidos de
conceder por data ou prolongamento de alinhamento os vereadores passaram cartas na
Freguesia da Penha de França para duas pessoas309.
308
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951. v. 50, 1864, p. 130-131.
309
Idem, v. 49, 1863, p. 245.
188
Temos concessões nos extremos da década entre 1860-1862 como reflexo dos pedidos
de 1859 e após as suspensões da Província. Essas suspensões poderiam ter ligação com as
189
Figura 23: Brás e a chamada Várzea do Nicolau. São Paulo, chácaras e sítios e fazendas ao redor do Centro,
Gastão Cesar Bierrembach de Lima. Exposição do IV Centenário de São Paulo. Fonte: Arquivo Aguirra/Museu
Paulista/USP
310
Em 1863 as concessões são suspensas; em 1864 a Lei 1.237 de 24 de Setembro cria o registro de imóveis, que
apesar de não comprovar propriedade torna-se obrigatório para transações de compra e venda, sendo
regulamentada entre 1865-1867. Ainda assim o crédito através de hipotecas eram limitados: “Após certo
adiamento na criação da Carteira Hipotecária, somente em 1867 seria regulamentada pela direção do Banco do
Brasil a repartição das hipotecas, fixando regras que na prática viriam a limitá-las sobremodo. Por exemplo,
como regra, somente seriam aceitas hipotecas de imóveis localizados no „município neutro da corte, na Província
do Rio de Janeiro e nos municípios que com ela fossem limítrofes em São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo‟,
e hipotecas sobre imóveis de outras localidades somente seriam aceitas excepcionalmente, e mesmo assim para
garantir os títulos já existentes na Carteira”. SANCHES, Almir Teubl. A questão de terras no início da
Republica: o Registro Torrens e sua (in) aplicação. São Paulo, 2008. Dissertação (Mestrado em Teoria Geral e
Filosofia do Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, p. 35.
190
atual bairro do Paraíso e Av. Brigadeiro Luís Antonio) foram paulatinamente ocupadas.
Praticamente não existiam mais terrenos disponíveis no Campo Redondo, nas Palmeiras, no
Arouche e no Carvalho (Barra Funda, entornos da Chácara do Carvalho). Sabemos disso
porque num pedido do mês de fevereiro de 1860 o fiscal informou que essa região não
possuía terrenos disponíveis para serem distribuídos. Entretanto, foram distribuídos 26 lotes
no Campo Redondo, a maioria pedidos entre setembro e outubro de 1860, provavelmente
caídos em comisso entre 1859-1860, devido ao prazo para a edificação que era de 6 meses,
prorrogáveis por mais seis, com a obrigação de comparecer à Câmara para fazer o pedido.
Caso interessante é o de Francisco Taques Alvim que tem sua data concedida em julho
de 1860 e em 1862 pede mais tempo para cercar o terreno, tendo sua solicitação indeferida311,
pois em 2 anos ele não conseguiu cumprir com os prazos determinados pela Câmara. Outro
ponto interessante sobre as concessões na região oeste é o tempo entre o pedido e a
elaboração da Carta de Data, que passou a ser imediato, ou seja, enquanto as datas
concedidas em 1859 demoraram praticamente um ano para serem registradas, as datas da
década de 1860 foram pedidas, concedidas e registradas no mesmo dia312.
estivessem construídos. O processo ficou mais ágil com a Carta de Data passada no mesmo
dia do deferimento, enquanto em 1859 as Cartas poderiam levar até um ano para serem
elaboradas. Ao que parece, em determinados lugares, como o Arouche e o Campo Redondo
certas pessoas foram favorecidas. Fizemos uma comparação entre pedido e concessão em
diferentes partes do rossio. Para a Barra Funda, por exemplo, o período entre o pedido e o
documento oficial era de aproximadamente três meses. Já no Caaguaçu e Telégrafo esse
intervalo podia ser de seis meses. Essa diferença dependia da distância, do arruamento já
existente na “Cidade Nova” (facilitava a concessão das datas caídas em comisso) ou
simplesmente da vontade política dos membros da Câmara? A questão fica sem resposta, mas
indica práticas não muito lícitas no processo de concessão de terras em São Paulo e
certamente em todo o Brasil.
314
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v.52, 1866.
315
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 51, 1865, p. 198.
192
A cidade estava se expandindo para leste, berço das futuras residências operárias de
fins do século XIX e início do XX. Essa era sem dúvida uma região com problemas de
ocupação na década de 1850. Aliás, não é possível inferir sobre ocupação efetiva na área
tendo por base apenas as concessões. É importante notar que os terrenos podem ter sido
concedidos e nada ter sido construído no local, ou estes nem terem sido utilizados para fins
diversos como cultivo, pastagem etc.
[...] proponho que esta Camara tome conhecimento de uma porção de valor
aberto na várzea da Ponte grande na estrada de Santa Anna, que uns tem
feito para se apossear e outros por compra à quem a pretexto de títulos tem
vendido o que há mais de 40 annos está no domínio do público, creando,
plantando e desfrutando as mattas316.
Como propósito de comparar o valor das datas de terra vamos analisar duas
desapropriações efetuadas entre 1861-1867. A primeira avaliação é feita na Rua do Rosário,
atual XV de Novembro, no centro antigo, propriedade de Francisco Leite Lobo:
316
Idem, v. 55, 1869, p. 241.
317
Ibidem, v. 51, 1865.
318
Esse é o mesmo dono da chácara que a Câmara desapropria para a construção do matadouro no Pacaembu
durante a década de 1870. Entretanto, o crescimento da região e a pressão dos criadores de gado que achavam a
área de difícil acesso fazem os vereadores desistirem da construção do matadouro no Pacaembu.
319
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 51, 1866, p. 9.
193
Quanto a casa de Lucio Santos Capello, não tendo a vantagem de ter duas
frentes, sendo menor, e de construção mais antiga, e dando só de aluguer a
qta de 30$000, avalio em 7:000$000320.
320
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 47, 1861, p. 223.
321
Idem, v. 53, 1867.
194
A década se inicia com os prazos menores para edificação apenas seis meses, sem
possibilidade de prorrogação. Todo o processo de doação era efetuado em aproximadamente
um mês, o que na década de 1850 demorava até 1 ano para ser feito e na década de 1860
passou a ser feito no próprio momento do deferimento.
É certo que João Theodoro investiu mais dinheiro na cidade e promoveu o diálogo
entre Câmara Municipal e Província, evitando disputas que paralisassem as concessões.
Consequentemente, mais edifícios foram construídos, com novas técnicas, dando uma
aparência diferente à cidade de taipa324. Verificam-se mudanças nos materiais construtivos e
na pavimentação das ruas, por exemplo. São marcantes as mudanças físicas na capital durante
a década de 1870, com o dinheiro do café e a inserção de São Paulo e do Brasil na economia
mundial. Em 1875 é proposta a formação de Companhias Construtoras325, que ficariam
encarregadas dos terrenos caídos em comisso e dos prédios em ruínas, ou seja, uma proposta
de organização dos espaços da cidade envolvendo o público e o privado. A fiscalização ficaria
por conta da companhia; os terrenos, cedidos pela municipalidade. O argumento para a
existência das Companhias Construtoras é o mesmo utilizado desde a década de 1850: falta de
prédios, elevado valor dos aluguéis, em razão da falta de prédios e salubridade pública. É
possível constatar uma valorização da terra, nessa época, diferente dos períodos anteriores,
provavelmente fruto da onda de modificações urbanas.
324
TOLEDO, Benedito Lima de. São Paulo: três cidades em um século. São Paulo: Cosac Naify, 1983.
325
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, vol., 1875, p. 40-42. O conceito das Companhias Construtoras
nos remete ao momento atual vivenciado pela cidade de São Paulo com a Lei da Concessão Urbanística (Lei nº
14917 de 7 de maio de 2009), que repassa à iniciativa privada os direitos para desapropriar e construir em
determinadas áreas, e não coincidentemente, a primeira área de incidência da lei é a região da Santa Ifigênia nos
entornos da Estação da Luz.
326
Na verdade foi uma revisão das vigentes e elaboração de posturas que abrangessem aspectos ainda não
contemplados.
327
Apesar de já existir esse imposto para emissão da Carta comprobatória, era usual o requerente não emitir a
Carta de Data. A partir de 1875 ele será obrigado a emitir a Carta e pagar o imposto.
196
Por outro lado, a Divisão de Imigração, outro órgão criado em 1872, pediu
informações sobre as terras férteis para colonização e os vereadores negaram todas as
localidades sugeridas pelo governo provincial. Os mesmos problemas persistem desde a Lei
de Terras, segundo os vereadores: não existe mapa do rossio; as terras devolutas do
município não foram demarcadas; e não existem terrenos propícios para colônias de
imigrantes328. Apesar destas negativas, apontam a Chácara do Glória como possível local para
abrigar uma colônia de imigrantes.
1870 18 02
1871 13 13
1872 28 15
1873 26 03
1874 75 41
1875 38 07
1876 11 00
1877 25 06
1878 130 17
1879 203 45
Percebemos que tanto os pedidos como os deferimentos são em menor número nessa
década, e isso pode ser reflexo do valor das datas a partir de 1875. Outra possível explicação
refere-se à transformação material da cidade que talvez impedisse o processo de concessão,
deslocando pessoas, engenheiros e recursos para abertura de ruas e outros afazeres
urbanísticos. Claro que é preciso relativizar esses números. As Cartas de Datas de Terra
trazem menos informações e já não existe o mesmo rigor vigente nas décadas anteriores, tais
328
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo, Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 60, 1874, p. 112.
197
como pareceres dos secretários ou firmas reconhecidas. E, embora dispomos dos pedidos, não
sabemos com exatidão a quantidade de lotes concedidos. Um fator que sem dúvida inibiu a
distribuição de datas a partir de 1875 foi o novo valor do imposto sobre a data padrão que
passou de 22 metros de frente e 66 metros de fundo para 15 de frente e 35 de profundidade.
Nota-se uma diminuição do tamanho conforme adotou-se o novo padrão de medidas em 1872,
apesar da proposta de continuidade do mesmo tamanho (1.452 m2). O valor do imposto sobre
datas para o ano de 1873 aumentou para 60 réis o metro quadrado e as reclamações foram
tantas que o Código de Posturas foi suspenso para revisão até 1875. Uma das reclamações era
a quantidade de impostos presentes nas posturas e seus altos valores. Em 1875, o imposto
sobre datas foi finalmente fixado em 30 réis o metro quadrado, metade do valor sugerido, o
que ainda causou reclamações e tentativas de isenção do imposto.
Os pedidos de terreno, por sua vez, continuam alinhando-se a ruas já abertas ou novas
ruas por alinhamento. Conforme dissemos, se o requerente adquirisse um lote em local não
arruado, ele arcaria com os custos do arruamento. A abertura de novas ruas, em geral, gerava
um volume de pedidos.
329
Código de Posturas da Câmara Municipal da Imperial Cidade de São Paulo, 1875. In: Collecção das leis do
Império do Brasil, 1808-1889. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional.
198
A Rua Nova do Jardim, aberta em terrenos do Jardim da Luz, foi motivo de diversos
abaixo-assinados de moradores da cidade contrários à concessão. Os moradores da Freguesia
de Santa Ifigênia eram contra a retirada de uma parte do Jardim da Luz330 e afirmavam
irônicos que a Câmara só poderia vender, aforar ou trocar bens de seu domínio, mas não fazer
concessões gratuitas. Essas concessões ocorreram exatamente no período de elaboração do
novo código de posturas quando as datas estavam suspensas, entretanto, os vereadores agiram
dentro da legalidade ao conceder essas terras, pois tinham autorização da Província331. Apesar
do abaixo-assinado, as concessões nessa rua continuaram e todas as datas demarcadas foram
distribuídas. Em 1875, começou a distribuição das datas na Rua Dr. João Theodoro, aberta
para fazer a ligação entre a cidade e os bairros da região leste (Brás e Mooca). Essas
concessões foram efetuadas sob a vigência do novo imposto.
330
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 61, 1875.
331
Idem, v. 61, 1875. E apesar de pensarmos em privilégios, as concessões da Rua Nova do Jardim são para
pessoas de diversos níveis sociais, inclusive uma liberta (Benedicta Liberta).
200
Existiu um esforço por parte das Comissões de Datas332 desse período em verificar
quais datas receberam edificação e quais terrenos caíram em comisso. Por causa dessa
diligência que anteriormente ficava por conta dos moradores, sabemos que os terrenos
pedidos por Carlos, Anna e Tereza Boemer, no Caaguaçu, em 1872, não foram edificados e
declarados em comisso em 1877. O mesmo aconteceu com Catharina Schemk. Detalhe: esses
terrenos foram pedidos como “acréscimo” pois os requerentes já moravam no local.
Figura 24 - Rua João Theodoro fazendo a ligação da zona central com a zona leste e a Rua Nova do
Jardim. Mappa da capital da província de São Paulo, por F. Albuquerque e J. Martin, copiado por Francisco
Sansoni, 1877. Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL .
332
Comissão formada em 1877 pelos vereadores Gabriel Cantinho, Guedes Portilho e Alvares Siqueira que
pedem ao fiscal do Brás uma lista com as datas não edificadas. Op. cit., v. 63, 1877.
201
Figura 25: Rua Nova do Jardim e a Rua do Dr. João Theodoro. Cia Cantareira de Esgotos, 1881. Podemos
observar a ausência de edificações e as ruas projetadas. Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20):
set./out.2008, AHMWL.
Figura 26: Rua Nova do Jardim e a Rua do Dr. João Theodoro em 1897. Gomes Cardim. Planta Geral da
Capital de São Paulo (1897). Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL.
202
Figura 27 - Rua do Gasômetro. Companhia Cantareira e Esgotos, 1881. Fonte: Informativo Arquivo Histórico
Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL.
antiga chacara do Glória, não tendo nisso aothoridade alguma esta ILMA
Camara333. (grifo nosso)
Figura 28: Caminho de Santo Amaro e a região da Liberdade e do Glória. C. A. Bresser, 1841-1847.
Conhecida na época como Caminho para Santos, entre o ribeirão Anhangabaú e o córrego Lavapés. A ocupação
era pontual: ao longo do caminho, com edificações isoladas no meio de grandes terrenos. Fonte: Informativo
Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL.
333
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939, v. 1, 1879.
205
Figura 29: Rua de Santo Amaro e o Largo da Liberdade. Cia Cantareira de Esgotos, 1881. Verificamos o
rápido crescimento da malha urbana na região. Há edificações na Rua da Liberdade, Rua dos Estudantes,
Travessa da Liberdade e Rua do Barão de Iguape. A Rua de Santo Amaro ganha edificações e lotes estreitos dos
dois lados e já vemos o arruamento do que seria o futuro bairro do Bexiga e a Bela Vista, ainda desocupados.
Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008.
206
O volume dos pedidos aumenta de forma impressionante: são 4.261, para toda a
década de 1880. Isso pode ter ocorrido porque as pessoas enviavam mais de um pedido.
Tomemos como exemplo Elisa Maria Marret e seu filho, que enviaram três cartas cada um,
todas com a mesma data e pedindo lotes, respectivamente no Telégrafo, na Consolação e em
Perdizes. Tal como em uma loteria, onde acertassem seria lucrativo. Por outro lado, o
crescimento populacional foi considerável durante essa década. Se analisarmos os
levantamentos populacionais da época, veremos que nas três freguesias (Sé, Brás e Santa
Efigênia) a população não ultrapassava 9.000 pessoas em 1836, e que esses números
aumentam de forma drástica em 1874.
334
Como Viviane Tessitore comprovou verificando os Registros Paroquiais, em alguns casos, os registros foram
alterados para justificar terras que não seriam de tal possuidor.
207
Fontes: 1836 – MULLER, Daniel Pedro, Ensaio d’um Quadro Estatístico da Província de São Paulo;
1970 – LANGEBUCH, 1971, p. 64 e 65; VARON, 2005, p. 124 e 127.
335
Essa freguesia foi desmembrada de Santa Ifigênia em 1870, logo, não consta dos primeiros censos.
336
Contando as freguesias ditas rurais.
337
História demográfica do município:
http://smdu.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/tabelas/pop_brasil.php
338
O mesmo problema ocorre para a região do Hipódromo.
208
Por outro lado, em 1885, as datas do Morro do Telégrafo (região ocupada pelo
Shopping Paulista na Avenida Paulista) estão, praticamente todas, em aberto e abandonadas;
segundo o fiscal, sendo julgadas em comisso. Lembramos que elas foram concedidas em 1870
e em 15 anos não foram edificadas. Requerentes na região do Catumby afirmam querer um
lote de terreno para plantar capim, logo, os entornos da cidade ainda na década de 1880
poderiam funcionar como reserva agrícola. Gasparine Luigi, desde 1882, através de um
acordo com a Câmara, está cultivando um terreno na Várzea do Carmo, a título precário, de
frente para a Rua do Gasômetro:
339
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939, 18/7/1882, v. 4, 1882,
p. 229.
340
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939, v. 1, 1883.
209
Com uma procuração anexada, Gasparine requer construir uma casa no local, alegando
“necessidades materiais”. Esse caso nos lembra outro, acontecido no início da década de
1850, no qual o requerente pede terras de uso comum para construir uma capela (casa para a
cruz). No entanto, Gasparine não recebe o mesmo tratamento que Caetano, tendo seu pedido
negado. Esse acordo temporário para usufruto de local público, típico de uma cidade com
grande quantidade de terras devolutas, se volta contra a Câmara num período em que
praticamente já não é mais possível a existência de terrenos de uso comum na cidade.
Em 31 de janeiro de 1882, Antonio Monteiro dos Santos pediu data de terra no bairro
do Maranhão, Freguesia do Brás, contíguo à sua chácara, alegando assim não ser prejudicado
na distribuição de datas tal como vinha acontecendo. Ele queria deixar esse terreno entre o
seu e o dos outros proprietários como área intermediária com o intuito de não ser
incomodado. Esse caso nos remete as reclamações de Joaquim Sertório sobre os entornos da
sua chácara na Estrada de Vergueiro; em ambos os casos os moradores se sentiram
incomodados com a movimentação nos arredores das suas propriedades.
O Dr. Joaquim de Paula Souza, em um interessante requerimento, pede três datas para
o liberto Izaías e sua mulher Cândida. O requerimento conta com duas testemunhas e foi
deferido. Logo em seguida pede mais três datas para um liberto e sua mulher, atingindo um
total de seis lotes na região do Hipódromo (08/11/1880). No jornal Tribuna Liberal ,de 20 de
novembro de 1880342, existe um despacho do governo da província acerca das terras do
capitão Francisco de Paula Xavier de Toledo, na Várzea de Pinheiros, que pertenceriam a
Fazenda Nacional (são, portanto, devolutas), já que provenientes do antigo aldeamento, e
“dados por data indevidamente”.
Acontece ter o mesmo Engenheiro trocado essas datas, a seu bel prazer, e
isto sem o consentimento dos suppes [...] e não tendo o Engenheiro
autoridade para declarar as datas em comisso; e sendo certo que na posse
d‟ellas pretende acomodar amigos ou parentes 343.
Já falamos sobre o engenheiro e sua forma de defesa nesses casos, sempre na direção
de desqualificar os reclamantes. Fernando de Albuquerque, atuando como engenheiro e
demarcando terras ou elaborando mapas para a Câmara Municipal, teve um papel importante
no loteamento da região do Bexiga, conforme nos mostra a pesquisa de Sheila Schneck344,
aproveitando as oportunidades que a aquisição e venda de terrenos então proporcionava.
343
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939. v. 2041, v. 2, 1880.
344
SCHNECK, Sheila. Formação do bairro do Bexiga em São Paulo loteadores, proprietários, construtores,
tipologias edilícias e usuários (1881-1913). São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado Arquitetura e do
Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, p. 56.
345
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939, 1880, v. 1, p. 154.
211
Nº Nomes Quantidades e Nº
diversos
1º Dor. Sebastião Pereira 10 datas
2º José Leandro de Toledo 1
3º Izabel A. de Toledo 1
4º Mane? Mª de Toledo 1
5º Bento Ferraz de Toledo 1
6º João Baptista de Toledo 1
7º Britaraldo? J. Rodrigues 1
8º F? L? Rodrigues 1
9º Maria Cândida Rodrigues 1
10º Eliza Maria Rodrigues 1
11º B. G. Rodrigues Júnior (riscado) 1
12º Porfírio Álvares da Cruz 1
13º Maria Cândida da Silveira 1
14º Capm. Paulino (riscado) 9
Soma lotes das datas
15º Antonio de Oliveira Braga 1
51 - que se acham
16º Cândida Clark 1
distribuídas conforme
17º Maria Clark á lista 1
18º Elvira Oliveira Braga 1
19º Fco. Ignácio Toledo Barboza 1
20º Maria Cândida Nogueira 1
21º José Antonio Pereira 1
22º Anto Fernandes da Borba 1
23º Justino Pereira Gomes 1
24º Mel. Joaqm. Pereira Gomes 1
25º J. Pereira Gomes Jor. (riscado) 1
26º Adolpho Machado 1
27º Fca. Eliza Machado 1
28º Antonio Baptista de Campos Pereira 1
29º (nome riscado ilegível) Candido A 1
Machado
30º Joaqm Roza de Azevedo 1
31º José Machado Betlem 1
32º João Lucio 1
33º Dinis Azambuja 9/51
Chama a atenção a família Toledo, aí incluso o próprio Leandro de Toledo, bem como
os representantes da família Braga e Clark. Alguns agentes se repetem tanto no loteamento
do Bexiga quanto em outras áreas da cidade, como, por exemplo, a família Clark, constantes
212
É falso que eu como Engº da Camara destribuisse algum dia, datas por
autorisação própria ou por ordem da Camara, por quanto o meo dever
sempre limitou-se a demarcar simplesmente as concedidas, porque a
distribuição d‟ellas foi sempre munos da commissão ou antes do Snr
Cantinho único membro que a compunha. É verdade que como Engº da
Camara informei ao Snr Cantinho o abandono em que se achavão as onze
datas concedidas no Catumby a Antero de tal347.
Curioso constatar a acusação de que a Comissão de Datas era composta por um único
homem e dava ao engenheiro poder para distribuir datas a quem fosse de interesse. No
documento menciona que recebeu um cartão com as datas a serem demarcadas e a ele caberia
apenas demarcar a área. A briga vai além e demonstra práticas pouco éticas de distribuição de
terras e favorecimento de uns em detrimento de outros, o que já tinha ocorrido com o
envolvimento de outro vereador, Leandro de Toledo. O Senhor Baunilha (ou Bonilha, preto,
pobre e analfabeto348) tinha razão em reclamar: era possível ter o seu pedido aceito pela
Câmara e ser passado para trás no momento da demarcação, ficando com os piores terrenos.
Desde sempre isso poderia ocorrer, mas nos anos 1880 parece ser ainda mais provável.
346
SCHNECK, Sheila. Formação do bairro do Bexiga em São Paulo: loteadores, proprietários, construtores,
tipologias edilícias e usuários (1881-1913). São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e
Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, p. 78. Os Clark aparecem em
um abaixo-assinado para a mudança do nome do Bairro de Bexiga para Bela Vista.
347
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939. v. 2030, v. 1,
1881, p. 57.
348
Caso que analisamos no Capítulo 2, p. 111.
213
1886 119 65
1888 1 0
1889 129 6
349
Esse índice sobe para impressionantes 95% em 1882, denotando que praticamente todo pedido efetuado foi
concedido.
214
Glória 34 34
Hipódromo 27 50 17 29 5 10 13 151
Ipiranga 1 76 2 2 81
Largo do Cemitério do Brás 5 5
Largo do Hospício 9 9
Maranhão, Freguesia do 2 2
Brás
Marco da Meia Légua 62 74 234 110 168 69 18 198 53 986
Matadouro 2 1 7 10
Matadouro Vila Mariana 6 6
Matta Burros, Maranhão, 12 12
Brás
Matto Grosso, Estrada 5 12 17
Vergueiro
Mooca 18 92 370 11 9 2 32 30 1 565
Mooca, Rua sem Nome 1 1
Morro Vermelho, Estrada de 7 7
Vergueiro
Morro Vermelho, Rua da 6 6
Liberdade
Pacaembu 102 34 77 6 1 3 7 1 1 232
Palmeiras 2 2 4
Pari 1 1
Pátio de S. José, Bairro do 4 4
Maranhão
Penha 4 4
Várzea do Catumbi 16 16
Várzea do Pari 1 10 11
Várzea do Tietê 4 4
Vila Mariana 2 1 3
Total geral 425 447 2153 215 208 158 119 406 1 129 4261
Figura 30: Sítio do Pacaembu. São Paulo, chácaras e sítios e fazendas ao redor do Centro, Gastão Cesar
Bierrembach de Lima. Exposição do IV Centenário de São Paulo, 1954. Originalmente um único sítio, que com
o passar dos anos foi dividido em 3 regiões: de baixo, do meio e de cima. Inferimos que o sítio de José Fabiano
Baptista, desapropriado para construção do Matadouro era parte da região destacada em rosa pela descrição
presente no Registro Paroquial: “[...] Ao lado esquerdo da estrada que desta cidade [de São Paulo] segue para
Jundiaí que pela frente divide com esta estrada e pelos lados e fundos já com terras devolutas e já com uma
antiqüíssima estrada e com um corredor que vem sair na referida estrada de Jundiaí353”. O sítio era referido como
no Pacaembu de Cima, mas provavelmente não abrangia toda a área destacada visto fazer fundos com terras
devolutas. Fonte: Arquivo Aguirra/Museu Paulista/USP.
353
REGISTRO DE TERRAS DE SÃO PAULO. Divisão de Arquivo do Estado. São Paulo: A Divisão, 1999,
v. 5, Freguesia de Santa Ifigênia. v. 5, ficha 165.
219
As regiões concedidas coincidem com as mais pedidas, afinal, essa década teve o
maior índice entre pedidos e concessões, logo, regiões como o Catumbi, a Estrada de
Vergueiro e o Hipódromo foram concedidas em larga escala. Entretanto, novamente a
municipalidade teve que comprovar que as terras da região do Matto Grosso (correspondente
à Vila Mariana), adjacentes à Estrada de Vergueiro, eram do rossio. Os vereadores recebem
um aviso do Ministério da Agricultura que iria por à venda 43.560,00 m2 na região354. E nesse
momento os vereadores, afirmando tratar-se de terras de uso comum, propõem a construção
do Matadouro Municipal nas proximidades dessa região.
O Snr Presidente diz que o Snr. Joao Boeno, sob pretexto que os terrenos da
estrada Vergueiro erão pop. digo erão propriedade do Estado, não quiz
demarcar as datas.
354
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 67, 1881, p. 182.
222
Si a Camara tem concedido datas nos limites da meia legoa, é por que o
Alvará de 10 de Abril de 1821 permittio fazer taes alienações na parte
desnecessária para logradouro; mas o patrimonio da Camara esta contido nas
seis legoas, tanto assim que as antigas datas e aforamentos erão feitos aquém
das seis legoas, segundo consta do arquivo. Quando mesmo a Camara não
pudesse dar datas senão na meia legoa, teria direito de ir até a antiga estrada
do Carro, no bairro do Matto Grosso, caminho velho de Santos, porque,
segundo o termo de medição feito em 27 de Julho de 1769, a meia legoa
termina no Ribeirão Ipiranga. Contesta a propriedade do Estado sobre a
antiga Chacara da Gloria, por que os jesuíta nunca tiveram sobre ella senão o
domínio útil; mas quando fosse o contrário, ainda assim poderião ser
concedidas datas no lugar já determinado pela Camara, porque esta fora dos
limites da Chacara da Gloria355.
Existem muitas reclamações com relação aos terrenos caídos em comisso. Hermelino
Corrêa357, por exemplo, afirma que seu terreno concedido em 1882 foi cedido a outrem, isso
em 1887, no Marco de Meia Légua. Já o vereador Ribeiro de Lima propõe que:
Tendo a Camara concedido datas no Marco de Meia Legoa, Hippodromo e
outros lugares à diversas pessoas que há muito estão de posse dellas, mas
constando que essas pessoas ainda não pagarão os emolumentos
determinados na lei do Orçamento, sobre cada metro quadrado, indico, que
se mande intimar a todos quem forão concedidas, adim de que venhão pagar,
355
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 68, 1882, p. 146.
356
Sem a diferenciação de rossio como terras passíveis de concessão ou aforamento e termo, área administrada,
conforme verificamos no capítulo 2.
357
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939, v. 2043, 1887.
223
O imposto sobre datas era de 40 réis em 1880, segundo a Lei do Orçamento vigente, e
a proposta do vereador era de se fazer uma verificação consistente para comprovar as
construções nos terrenos concedidos na região.
Um fator digno de nota é a sutil, porém constante, mudança nos argumentos dos
requerimentos do “edificar” para o “possuir” uma data. O “edificar” sempre foi a
argumentação primária para a concessão, que visava o domínio útil, entretanto, durante os
anos 1880 o “edificar” vai cedendo espaço ao “possuir”.
O vereador Rafael Aguiar Paes de Barros é denunciado por ter fechado, ou seja, se
apossado, de terras adjacentes ao Matto Grosso, região contestada pelo governo como
devoluta360. Aparentemente ele fechou as terras desde 1870, sem pedir a sua concessão ou
comprá-las. Por outro lado, o vereador Ribeiro Lima recebe uma denúncia sobre as terras do
Marco da Meia Légua e Hipódromo:
358
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo, Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 66, 1880, p. 78.
359
Idem. Vol. 68, 1882, p. 110-115.
360
Ibidem. Vol. 70, 1884, p. 24-25.
361
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo, Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 70, 1884, p. 35.
224
O documento indica o valor de seis mil réis por uma data de terra, se a denúncia
estiver correta. Fazendo uma rápida comparação com uma desapropriação de uma data
defronte ao cemitério em 1867, cedida por 200$00 réis, e tendo por base que ambas tivessem
o mesmo tamanho, 1.452 m2, o valor do metro quadrado de uma data de terra era: em 1867,
13 décimos de réis; em 1884, 4 réis no mercado “paralelo”, enquanto que o imposto oficial
girava em torno de 40 réis o metro quadrado.362 Na realidade, ciente do valor excessivo do
imposto proposto, o vereador Antonio Gabriel Franzen propõe em 1887:
[...] sendo excessivo o preço pelo qual vende a Camara o metro de seus
terrenos (80rs) quandos os particulares annucião seus terrenos por menos da
metade, e acontecendo que por esse motivo poucos são os que pagão os
terrenos que lhe são demarcados, indico que a Camara reduza a 40rs o metro
quadrado363.
362
As posturas que foram canceladas em 1873 propunham um imposto de 60 réis o metro quadrado; entre
1875-1881 o imposto era entre 4 e 6 réis o metro quadrado.
363
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 72, 1886, p.35.
364
Idem, v. 73, 1887, p. 71.
365
Ibidem, v. 73, 1887, p. 201.
366
Ibidem, v. 73, 1887, p. 224-279.
367
“Regula o serviço de emphyteuses e dos arrendamentos dos bens municipais”. In: Coleção das Leis do Brasil,
1889-1930. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional.
225
[...] a política monetária fortemente restritiva dos anos 1880 teve como
consequência interna a forte escassez do meio circulante, escassez essa ainda
agravada pela abolição da escravidão em maio de 1888. Com isso, o crédito
interno sofreu forte recessão 368.
O Registro Torrens foi criado na Austrália e leva o nome do seu criador, Sir Robert
Richard Torrens370. Tinha como finalidade organizar os títulos de domínio, aquisição e
transferência de propriedades. O diferencial do Registro Torrens para os demais registros de
368
SANCHES, Almir Teubl. A questão de terras no início da Republica: o Registro Torrens e sua (in)
aplicação. São Paulo, 2008. Dissertação (Mestrado em Teoria Geral e Filosofia do Direito) – Faculdade de
Direito, Universidade de São Paulo, p. 48.
369
Para mais detalhes do projeto liberal de Rui Barbosa consultar: SANCHES, Almir Teubl. A questão de terras
no início da Republica: o Registro Torrens e sua (in) aplicação. São Paulo, 2008. Dissertação (Mestrado em
Teoria Geral e Filosofia do Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo – especificamente o
capítulo 3.
370
Foi criado entre 1858-1861.
226
terra, como o paroquial371, por exemplo, era efetuada uma pesquisa prévia, de caráter
judicial:
Logo, esse registro marca o final de um processo de acomodação da terra como ativo
financeiro, lastreando o crédito. Entre a Lei de Terras ao estabelecimento do Registro Torrens
a Câmara concedeu, gratuitamente e depois por um valor determinado em seu orçamento,
terrenos do rossio, apesar de não ter confeccionado o mapa descritivo dessas áreas, exigido
pelo governo provincial. Com o estabelecimento do registro, em pouco tempo as concessões
foram extintas e os poucos terrenos restantes no rossio só poderiam ser aforados.
371
Instituído pelo Decreto n. 1318 de 1854 intitulado Regulamento para a execução da Lei nº 601 de 18 de
Setembro de 1850. O Registro de Terras era efetuado nas paróquias, daí ser conhecido como Registro Paroquial.
Possuía valor meramente declaratório e não era considerado garantia de propriedade, ou seja, por meio dele não
era possível a transferência de propriedade, em teoria, claro, porque na prática ele funcionou, mas o que
discutimos aqui é a terra enquanto passível de obtenção de crédito na forma de renda capitalizada, nesse sentido,
o registro paroquial é falho.
372
SANCHES, Almir Teubl. A questão de terras no início da Republica: o Registro Torrens e sua (in)
aplicação. São Paulo, 2008. Dissertação (Mestrado em Teoria Geral e Filosofia do Direito) – Faculdade de
Direito, Universidade de São Paulo, p. 70.
373
Lei nº 39 de 24 de Maio de 1893 “Regulamenta o serviço de emphytheuses e dos arrendamentos dos bens
municipais”, artigo 4º - Não serão mais concedidas cartas de datas. Em caso algum se relevara o comisso das
que tiverem incorrido nessa pena. Portanto, além de extinguir as concessões, as terras não edificadas reverteram
ao domínio camerário.
227
Escolhemos a “Planta Geral de São Paulo organizada sob a direção do Dr. Gomes
374
Cardim, Intendente de Obras, 1897” como mapa base para espacialização do processo de
concessão de terras no perímetro urbano e no rossio, década a década, de 1850 a 1890.
O mapa foi escolhido por conter, no canto inferior esquerdo, as informações sobre os
limites do antigo rossio da cidade (de meia légua) e do novo rossio (de uma légua) bem como
os limites municipais. Entretanto, é preciso problematizar essa planta. Quando sobreposta a
plantas posteriores375, no caso a de 1905, esse mapa apresenta arruamentos em excesso. Isso
pode significar que foram ali representados arruamentos inexistentes ou futuros, com intenção
de delinear uma extensão urbana maior do que a realmente existente. SIMONI (2009)
acompanha o processo, mesmo depois da implantação da República, de medição dos bens
municipais. Através de sucessivas leis, as despesas dessa medição, que deveriam ficar a cargo
da municipalidade, foram empurradas para o Estado. Segundo a autora:
374
Pode ser encontrado no endereço eletrônico:
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart71701.jpg , 2011.
375
SIMONI, Lucia Noemia. “A planta da cidade de São Paulo de 1897: uma cartografia da cidade existente ou
da cidade futura?” In Passado & presente para o futuro, III Simpósio Luso-Brasileiro de Cartografia Histórica,
Minas Gerais, 2009 e GOUVÊA, José Paulo Neves. Cidade do Mapa: a produção do espaço de São Paulo
através de suas representações cartográficas. São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e
Urbanismo) FAU-USP.
376
SIMONI, Lucia Noemia. “A planta da cidade de São Paulo de 1897: uma cartografia da cidade existente ou
da cidade futura?” In Passado & presente para o futuro, III Simpósio Luso-Brasileiro de Cartografia Histórica,
Minas Gerais, 2009. p. 14.
228
Ao que tudo indica, optou-se por representar o mapa contendo os arruamentos futuros,
propostos por particulares. A planta representava, dessa forma, a cidade existente com a
projeção futura de seu crescimento, uma vez que foi executada com três intuitos: tombamento
de bens municipais, levantamento cadastral, arruamentos projetados por particulares.
Para uma análise do processo de concessão, optamos por traçar os diversos perímetros
urbanos definidos em função da cobrança da Décima Urbana para que pudéssemos verificar
se as concessões se concentravam dentro ou fora da mancha urbanizada. Escolhemos três
perímetros significativos:
1) O Perímetro da Décima Urbana de 1830377: com esse limite foi possível comparar
o crescimento da área urbanizada da cidade até 1850.
2) O Perímetro da Décima Urbana de 1856: obtido via ofício municipal378 enviado ao
governo da província para cobrança do imposto de 5% sobre os edifícios urbanos.
A intenção foi delimitar a região urbana da década de 1850 para localizar as
concessões dentro e fora desses limites:
377
“Incidência da Décima Urbana de 1830”. In: Collecção das posturas da Câmara Municipal da Imperial
Cidade de São Paulo (1830-1863).
378
Esse ofício pode ser encontrado no site do Arquivo do Estado de São Paulo:
http://www.arquivoestado.sp.gov.br/viver/poder_frame.php?cod=13512&nomen=0090303023&img=ODSP0090
303023_001.jpg // consulta em 11/2011.
229
1 – Interstícios de chácaras que só foram loteadas entre os anos 1870 e 1890. Trata-se
do perfil de ocupação típico da zona Oeste da cidade, região do Largo do Arouche, Palmeiras
e Santa Cecília, Barra Funda (antiga chácara do Carvalho) e Bom Retiro. Convém explicar
que, no período estudado, a zona oeste era marcada pela presença de grandes chácaras que
deram origem a futuros bairros, mediante loteamento integral das glebas por seus
proprietários ou vendas a terceiros. Até fins da década de 1870, o perfil de ocupação dessa
zona restringiu-se às franjas das chácaras e o adensamento das suas áreas envoltórias
certamente conspirou para que seus proprietários nelas vislumbrassem um excelente negócio,
com lucro certo, fruto da enorme demanda reprimida por novas e modernas moradias por
parte da elite da cidade, carente de espaços mais amplos e salubres para edificar, condição
ausente na colina central.
2 – Áreas de várzeas ocupadas mais tarde por bairros operários. Esse é o perfil da zona
Leste, área dos futuros bairros do Brás, Mooca, Catumbi e Hipódromo.
379
Cap. 1, p. 58.
380
Tabelas 9, 12, 14 e 18.
230
3 – Junto das vias de acesso à cidade, as principais vias, como na região do Lavapés
(próximo a Ladeira da Memória) vizinha ao pouso do Bexiga e na bifurcação das estradas
para Campinas e Sorocaba. Esse também é o perfil de ocupação da Estrada de Santo Amaro e
da Ponte Grande de Santana, área posterior à Luz.
Figura 32: Pari. Cia Cantareira de Esgotos, 1881. Em destaque a região entre o norte e o leste, objeto de
aproximadamente 50 concessões em 1850-1859 e que não aparece com construções no mapa de 1881. Fonte:
Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL.
381
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 58, 1972, p. 169.
382
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939. v.2, 1880, p. 252.
383
CORDEIRO, Simone Lucena (Org.). Os Cortiços de Santa Ifigênia: sanitarismo e urbanização (1893). São
Paulo: Arquivo Público do Estado de São Paulo – Imprensa Oficial, 2010.
384
Esse é um tamanho padrão, mas claro que variava conforme o tamanho do terreno disponível, os acréscimos
ou através dos alinhamentos.
235
Isso nos permite concluir que a Lei de Terras não suscitou uma corrida imobiliária
nem a solicitação de grandes glebas para estoque com vistas a realização de futuros
loteamentos. Acompanhando o histórico de algumas chácaras verificamos que foram
herdadas, compradas ou repassadas de forma quase integral e tal como foram loteadas 385.
Sobrepomos o mapa São Paulo, chácaras e sítios e fazendas ao redor do Centro (organizado
pelo Engenheiro Gastão Cesar Bierrembach de Lima, para a exposição do IV Centenário de
São Paulo, em 1954) à planta de 1897 e verificamos que a configuração original das chácaras
coincidiu com a dos novos bairros ali formados.
Começamos pela chácara do Campo Redondo, que resultou nos bairros de Santa
Cecília e Campos Elíseos. Sabemos que uma chácara de mesmo nome era propriedade do
Brigadeiro Luiz Antonio de Souza Queiroz e que seus filhos também possuíam chácaras na
região. Em 1860, foi ocupada por Robert Sharpe, empreiteiro da estrada de ferro São Paulo
Railway. Em 1868, foi adquirida pelo Barão de Mauá e entre 1878-1881 foi loteada por Glette
e Northmann, sendo então abertas as ruas dos Protestantes, Triunfo, Andradas, Piracicaba,
Helvetia, Glete, Nothmann e outras.
385
Retiramos as informações sobre as chácaras do artigo de: CANABRAVA, Alice Pifer. “As chácaras
paulistanas”. Anais da Associação dos Geógrafos Brasileiros, v. IV, Tomo I, 1949-1950. São Paulo; BUENO,
Beatriz Piccolotto Siqueira. Aspectos do mercado imobiliário em perspectiva histórica: São Paulo (1809-1950).
São Paulo: FAUUSP, 2008 e WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas:
escravos e forros em São Paulo (1850-1880). São Paulo, 1989. Dissertação (Mestrado em História Social) –
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
236
Figura 33: Campo Redondo. Sobreposição do Mapa de Chácaras e da Planta de 1897. Em destaque, a região do
que seria o Campo Redondo, que se estende desde as proximidades do centro e da Chácara do Arouche, fazendo
divisa com a Barra Funda. A chácara Mauá era apenas uma parte da extensa região. Inferimos que as concessões
se deram nos interstícios de propriedades já formadas. Fonte: São Paulo das chácaras, sítios e fazendas ao redor
do centro, Arquivo Aguirra/Museu Paulista/USP e Planta Geral da Capital de São Paulo (1897): Informativo
Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL.
Outro exemplo, a Chácara das Palmeiras era uma propriedade de 25 alqueires (algo em
torno de 2.750 m2), de propriedade de Frederico José Leite da Gama, que em 1850 foi vendida
ao Dr. Frederico Borghoff. Em 1874 ou 1884, a mesma chácara foi arrematada em leilão por
Francisco Aguiar de Barros, tornando-se propriedade de D. Angélica de Souza Queiroz
Aguiar de Barros, em 1900.
237
Figura 34: Palmeiras. Sobreposição do Mapa das Chácaras e da Planta de 1897. Aqui a região conhecida
como Palmeiras, em destaque a chácara de D. Angélica de Barros. Fonte: São Paulo das chácaras, sítios e
fazendas ao redor do centro, Arquivo Aguirra/Museu Paulista/USP e Planta Geral da Capital de São Paulo
(1897), Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL.
Figura 35: Chácara do Carvalho. Sobreposição do Mapa das Chácaras e da Planta de 1897. Em destaque a
Chácara do Carvalho sobreposta ao bairro da Barra Funda. Fonte: São Paulo das chácaras, sítios e fazendas ao
redor do centro, Arquivo Aguirra/Museu Paulista/USP e Planta Geral da Capital de São Paulo (1897),
Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL.
Figura 36: Chácara do Wandereley. Sobreposição do Mapa das Chácaras e da Planta de 1897. Em destaque a
chácara loteada em 1895 para a formação do bairro de Higienópolis. Fonte: São Paulo das chácaras, sítios e
fazendas ao redor do centro, Arquivo Aguirra/Museu Paulista/USP e Planta Geral da Capital de São Paulo
(1897), Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL.
A chácara do Bexiga386, de propriedade de Thomaz Cruz até 1880, foi vendida para
Antonio José Leite Braga e mereceu loteamento planejado por ele, tal como vemos no mapa
da Companhia Cantareira de 1881.
Com esses poucos exemplos, é possível observar que as chácaras loteadas na região
oeste da cidade foram formadas em tempos remotos, por compra, concessão ou herança, e só
loteadas entre 1870-1900, dando origem a bairros de alto padrão.
386
SCHNECK, Sheila. Formação do bairro do Bexiga em São Paulo: loteadores, proprietários, construtores,
tipologias edilícias e usuários (1881-1913). São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e
Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo.
240
Interessante observar que datas nos interstícios dos loteamentos também foram
comercializadas. Cruzando as informações das Cartas de Datas com o Registro Paroquial387
ficamos sabendo que Augusto Fausto Guimarães Alvim vendeu o terreno que possuía desde
1851 (de 10 braças de frente e 45 de extensão) próximo ao Tanque do Arouche. O comprador,
Joaquim José Ferreira388, adquiriu o terreno apenas um mês após a emissão da Carta de Datas
e o comprador assim descreve sua nova propriedade, fruto de compra de três datas, uma posse
e uma omissão de origem389, totalizando 108 metros de frente:
[...] A divisa para a frente pela estrada de Campinas tem setenta e três braças
e meia, para o lado esquerdo [...] tem cinqüenta e oito braças, para o lado
direito tem trinta e uma braças [...] fundos [...] cinqüenta e três braças390.
Esse não é um caso isolado, dentro do total de datas concedidas durante a década de
1850; os que venderam seus lotes para terceiros parecem poucos, apenas 12 em um universo
de 561 concessões. Entretanto, quando verificamos que, dentre as 561 concessões apenas 25
foram registradas, o percentual das que foram vendidas sobe para praticamente 50%. Claro, os
registros foram mínimos, pois dependiam de o proprietário declarar suas terras na paróquia de
cada freguesia e muitos não o fizeram com receio de impostos.
Essas pequenas datas poderiam se destinar ao uso próprio ou à renda de aluguel. Isso
pode ter ocorrido na região de Santa Ifigênia, que em 1893 foi alvo de um relatório391
descrevendo as condições dos imóveis encortiçados na região, cujas dimensões explicam a
sua degradação. O relatório abrange as Ruas de Santa Ifigênia, dos Gusmões, General Osório,
Duque de Caxias, Victoria, Andradas, Guayanases, Bom Retiro, Aurora, Timbiras,
Conselheiro Nébias (antiga Rua dos Bambus), Protestantes e do Triunfo.
387
Decreto Imperial 1318 de 30 de janeiro de 1854, Regulamento para execução da Lei nº 601 de 18 de
Setembro de 1850.
388
REGISTRO DE TERRAS DE SÃO PAULO. Divisão de Arquivo do Estado. São Paulo: A Divisão, 1999,
v. 5, Freguesia de Santa Ifigênia, ficha 110.
389
Conforme os dispositivos do registro permitiam, a pessoa poderia declarar abertamente a origem do terreno.
Para mais informações, consultar a introdução de: REGISTRO DE TERRAS DE SÃO PAULO. Divisão de
Arquivo do Estado. São Paulo: A Divisão, 1999, v. 1, Freguesia de Santa Ifigênia.
390
Idem.
391
Esse relatório pode ser encontrado no site do Arquivo do Estado de São Paulo ou In: CORDEIRO, Simone
Lucena (org.). Os Cortiços de Santa Ifigênia: sanitarismo e urbanização (1893). São Paulo: Arquivo Público do
Estado de São Paulo – Imprensa Oficial, 2010.
241
Figura 37: Ruas da Santa Ifigênia abrangidas pelo Relatório de 1893. Cia Cantareira de Esgotos, 1881.
Detalhe da planta de 1881 com as ruas do Distrito de Santa Ifigênia contendo cortiços, segundo o relatório de
1893. Escolhemos a planta cadastral efetuada pela Companhia Cantareira por conter o lote a lote. Observamos a
densidade populacional na região. Fontes: Mapa de 1881: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20):
set./out.2008, AHMWL e Relatório de 1893, APESP.
242
Figura 38: Destaque nas ruas constantes do Relatório de 1893 em mapa de 1881. Possíveis áreas
encortiçadas no Distrito de Santa Ifigênia. A configuração do lote mostrando áreas edificadas separadamente
com um corredor que servia como pátio, lateral ou central. Além disso a densidade das construções na região já
transparecem nesse mapa de 1881. Fontes: Mapa de 1881, Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20):
set/out.2008, AHMWL e Relatório de 1893, APESP.
Lembrando que uma data possuía em média 44 metros de frente por 66 metros de
extensão, é razoável supor que o aproveitamento do terreno poderia se dar no sentido
longitudinal, tal como nas áreas destacadas. O relatório contém três plantas do chamado típico
“cortiço urbano” e, através dessas plantas, estabelecidas como as condições mínimas de
salubridade e higiene exigidas para essas residências, podemos verificar que em cada lote
concedido por carta de data poderiam ser construídas quatro casas do “padrão operário”
aproveitando a frente do terreno, como mostra as figuras 38 e 39.
243
Figura 39: Projeto de casas para operários. Planta nº 2 do Relatório de Inspecção da Commissão de exame e
inspecção das habitações operarias e cortiços no districto de Sta. Ephigenia (1893). A proposta para a
construção de duas casas térreas e um sobrado seguindo o padrão de higiene e saneamento da época, com
corredores laterais, banheiros anexados a habitação e janelas voltadas para os corredores externos em todos os
cômodos. Fonte: APESP.
244
Figura 40: Detalhe da Planta nº 2 do Projeto de Casas Para Operários. Relatório de Inspecção da
Commissão de exame e inspecção das habitações operarias e cortiços no districto de Sta. Ephigenia (1893).
Aqui percebemos o aproveitamento do terreno: a frente da casa tem medidas de 9,68 metros (no caso da térrea) e
o sobrado 10, 60 metros. Fonte: APESP.
Figura 41: Planta do typo do cortiço urbano CASINHAS do typo mínimo. Planta nº 1 do Relatório de
Inspecção da Commissão de exame e inspecção das habitações operarias e cortiços no districto de Sta. Ephigenia
(1893). Fonte: APESP.
246
Figura 42: Projecto de casa para operários. Planta nº 3 do Relatório de Inspecção da Commissão de exame e
inspecção das habitações operarias e cortiços no districto de Sta. Ephigenia (1893). Fonte: APESP.
247
Figura 43: Projecto de casa para operários, detalhe. Relatório de Inspecção da Commissão de exame e
inspecção das habitações operarias e cortiços no districto de Sta. Ephigenia (1893). O tamanho proposto para a
casa era de 10,90 metros por 6,75 metros. Fonte: APESP.
Ainda com base no relatório de 1893 é possível constatar o valor dos aluguéis dessas
“casinhas do typo mínimo”. Vamos pegar apenas um exemplo, já que esse não é o objetivo
deste estudo. O vereador Tenente Coronel Cantinho possuía um conjunto de nove casinhas na
Rua dos Tymbiras, nº 31, em 1893. Eram casinhas com uma média de 4,80 metros de frente
por 3,00 metros de fundo, alugadas com valores variando entre 8$000 e 55$000 réis. Portanto,
hipótese de que essas datas solicitadas, uma vez edificadas, poderiam ser utilizadas para
auferir renda de aluguel, pelo menos no período posterior a 1880, pode ser confirmada através
da análise desse relatório.
248
Figura 44: Planta Cadastral da cidade de São Paulo, Sta. Ephigenia. Levantada sob a direcção do
Engenheiro V. Huet de Bacellar392. Fonte: APESP.
392
Esse mapa pode ser encontrado no site do Arquivo do Estado ou no livro publicado com o relatório final. In:
CORDEIRO, Simone Lucena (org.). Os cortiços de Santa Ifigênia: sanitarismo e urbanização (1893). São
Paulo: Arquivo Público do Estado de São Paulo – Imprensa Oficial, 2010.
249
393
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo, Departamento de
Cultura, 1939, v. XVIII, 1859, p. 206 e 224.
251
394
MARTINS, Antonio Egydio. São Paulo antigo: 1554-1910, São Paulo: Paz e Terra, 2003, p. 155.
395
MOTTA, Márcia M. Menendes. “Das discussões sobre posse e propriedade da terra na história moderna:
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avessas: por uma história social da propriedade. Guarapuava; Unicentro, 2011; Niterói, EDUFF, 2011, p. 21.
252
CONCLUSÕES
O gráfico abaixo revela dois momentos de pico nos pedidos e deferimentos de datas
de terras: 1854-1861 e 1879-1883.
4500
4000
3500
3000
2500
Pedidos
2000 Deferidos
1500
1000
500
0
1851
1853
1855
1857
1859
1861
1863
1865
1867
1869
1871
1873
1875
1877
1879
1881
1883
1885
1887
1889
253
A Câmara Municipal teve autorização para “aforar” as terras do rossio desde 1852.
Todavia, com a perspectiva das mudanças introduzidas pela futura ferrovia Santos-Jundiaí e
pensando em aumentar a área arruada da cidade sem custos para os cofres municipais, os
vereadores decidiram “conceder gratuitamente” os terrenos. No gráfico, vemos um pico de
pedidos entre 1859 e 1861. Nesse momento, as regiões oeste e norte da cidade – Arouche,
Campo Redondo e Luz – eram as mais valorizadas e encontravam-se em processo de franca
expansão, merecendo considerável número de solicitações. Para o deferimento do pedido de
concessão era necessária a existência de arruamento prévio ou o requerente arcava com os
custos dos alinhamentos. Nesse sentido, na década de 1850, as concessões seguiram os eixos
e o padrão da urbanização existente.
Os requerentes eram membros dos mais variados segmentos sociais, o que desmistifica
uma das premissas iniciais da pesquisa: a de um possível favorecimento na distribuição das
datas. O fato de uma data ter sido concedida, em muitos casos, não resultou em edificação e
cercamento, quer devido aos prazos ou mesmo às dificuldades referentes à situação do
terreno. Constatamos que funcionários públicos, libertos e um grande número de mulheres
também tiveram acesso às concessões, quer em áreas distantes do centro arruado (como o
Morro do Caaguaçu), em geral, em locais de várzea como em outras freguesias.
Concessões nos interstícios de antigas chácaras: mais frequente na região oeste da cidade
(Arouche, Campo Redondo e Carvalho), onde havia chácaras herdadas ou compradas que
só foram loteadas em fins da década de 1870 a 1890, dando origem a novos bairros. Isso
nos permite afirmar que o loteamento posterior dessas chácaras seguiu a direção de ruas
396
FRANCO, Herta. Modernização e melhoramentos urbanos em São Paulo. São Paulo, 2002. Tese (Doutorado
em Arquitetura e Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo.
255
A partir de 1893, inicia-se uma outra história da questão fundiária em São Paulo que
extrapola o escopo do presente estudo. O mergulho nas fontes primárias, se não resultou em
conclusões definitivas, apontou pistas e caminhos a serem percorridos em estudos futuros.
Dessa forma, esperamos ter contribuído para o debate historiográfico sobre um tema
complexo, ainda cheio de lacunas a responder.
256
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GLOSSÁRIO397
Aforamento: ação de dar algum prédio – imóvel – em troca de pagamento de foro. Tomar
prédio rústico ou urbano por aforamento.
Carta de Data: data significa dádiva, dom, benefício. A carta era o meio de fazer o pedido
para ser beneficiado com uma parcela de terreno do rossio.
Comisso: na jurisprudência do século XIX, comisso é a quebra de contrato, qualquer que seja.
Aqui foi utilizado ao referirmo-nos às terras que reverteram ao domínio da Câmara Municipal
quando não foram beneficiadas, ou seja, não foram cercadas ou edificadas dentro de um prazo
preestabelecido.
397
Definições retiradas dos dicionários: BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez, e latino, áulico,
anatômico, architectonico, bellico, botânico...et alii. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712;
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398
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 55, 1869, p. 91-93.
270
Data de terra ou chão de terra: lotes de terras concedidos pela Câmara a terceiros,
usualmente no rossio e ocasionalmente no termo. Os chãos de terra eram medidos em braças,
em contraposição às sesmarias, medidas em léguas.
Datas onerosas: chamamos de datas onerosas quando passam a ter um valor pago por
ocasião da concessão, estabelecido no orçamento municipal e vigente a partir de 1875. Apesar
de serem concedidas mediante pagamento, as condições para a manutenção do lote se
mantinham, como a de cultivar em tempo predeterminado, sob pena de comisso.
Foro: tributo procedido de “cousa foreira” por direito ao senhorio, que todos os anos se
pagava. Posse em que se constitui direito, privilégio. Taxa anual para o cessionário original da
área.
Laudêmio: taxa cobrada pelo foreiro quando da transmissão ou venda de bens aforados. Não
era imposto, mas quantia cobrada cada vez que o bem aforado era transmitido a outrem.
Logradouro público: campo de uso comum de uma vila, aqui com o sentido de área que
separa o público do privado. Pode ser entendido como ruas, praças e áreas de pastagem.
Rossio: antiga Sesmaria do Conselho, concedida para usufruto comum e sob controle da
Câmara, passível de distribuição para a população ou aferimento de rendas para os cofres
municipais e, ao mesmo tempo, reserva destinada à expansão territorial da vila ou cidade.
Terras de uso comum: os dicionários consultados revelam que a palavra comum significa
ao mesmo tempo comunicar e comungar, comutação e comunhão, revelando dois sentidos
interligados. Podemos aplicar ao uso das terras: passagem de uso comum – que comunica –
com outro lugar; uso em comum – comunhão – das fontes de água ou de outros recursos
naturais. As terras de uso comum não são propriedade coletiva, elas são de usufruto de todos
os cidadãos por costumes anteriores e direito consuetudinário.
Terras devolutas: A definição é dada pela lei nº 601 de 1850, no seu artigo 3º:
“1º - As que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial ou municipal.
2º - As que não se acharem no domínio particular ou qualquer título legítimo, nem forem
havidas por sesmarias, ou concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em
comissão por falta de cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura.
3º - As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que,
apesar de incursas em comissão, forem revalidadas por essa lei.
4º - As que não se acharem ocupadas por posses, que, apesar de não se fundarem em título
legal, forem legitimadas por esta Lei”.