Dissertacao Elisangela Original

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO

ELISANGELA MARIA DA SILVA

PRÁTICAS DE APROPRIAÇÃO E PRODUÇÃO DO ESPAÇO EM


SÃO PAULO: A CONCESSÃO DE TERRAS MUNICIPAIS ATRAVÉS DAS
CARTAS DE DATAS (1850 -1890)

SÃO PAULO
2012
ELISANGELA MARIA DA SILVA

PRÁTICAS DE APROPRIAÇÃO E PRODUÇÃO DO ESPAÇO EM


SÃO PAULO: A CONCESSÃO DE TERRAS MUNICIPAIS ATRAVÉS DAS
CARTAS DE DATAS (1850 -1890)

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de São Paulo.

Área de concentração: História e Fundamentos da


Arquitetura e do Urbanismo.

Orientadora: Profª Drª Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno

SÃO PAULO
2012
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

E-mail autora: [email protected]

Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo

Silva, Elisangela Maria da


S586p Práticas de apropriação e produção do espaço em São Paulo:
a concessão de terras municipais através das Cartas de Datas
(1850-1890) / Elisangela Maria da Silva. São Paulo, 2012.
271 p. : il.

Dissertação (Mestrado – Área de Concentração: História e


Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo) – FAUUSP.
Orientadora: Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno

1. Espaço urbano – Produção 2. Lei de terra 3. Sesmarias


4. Registro Torrens 5. Câmaras municipais 6. Estrutura fundiária
7. Rossio
I.Título

CDU 711:330.191.3
Ao meu pai, in memoriam.
AGRADECIMENTOS

Este é o momento em que o pesquisador faz uma retrospectiva dos passos da pesquisa,
e tenta não soar melancólico ou saudosista, mas aliviado, porque o trabalho terminou. Neste
caso, isso não é verdade, pois esta pesquisa me proporcionou contatos com tantas pessoas
incríveis que já sinto um toque de saudade.

Sem o apoio financeiro do CNPQ, pesquisar em período integral teria sido


completamente inviável.

Agradeço especialmente a minha orientadora, Profª Drª Beatriz Piccolotto Siqueira


Bueno, pela confiança no projeto, por dizer “vai dar certo” a cada momento de fraqueza da
minha parte e por ser um exemplo de professora e de pesquisadora.

Aos membros da banca de qualificação, Profª Drª Raquel Glezer e Prof. Dr. Paulo
Cesar Xavier Pereira, pelas indicações e direcionamento da pesquisa.

Aos funcionários do Arquivo Histórico Municipal Washington Luís, pelo atendimento


prestativo e pelas „dicas‟ importantes.

Ao Prof. Dr. Luís Soares de Camargo, por mostrar todo o potencial de pesquisa da
documentação no início do projeto.

Aos colegas do Treinamento Técnico FAPESP, pelas conversas sobre o século XIX e
os questionamentos plausíveis e implausíveis em tardes de verão.

Aos colegas da pós-graduação, especialmente Amália dos Santos, pelas trocas


constantes de ideias e pela ajuda imprescindível com as imagens, revisões e o resumo.

Aos amigos Sheila Sheneck e Lindener Pareto Júnior, pelo apoio e companhia.

Aos meus familiares, principalmente minha mãe, Maria Aparecida da Silva, e minha
irmã, Eliane Aparecida da Silva, pelo apoio incondicional.
“Às vezes tenho a impressão de que surjo do que escrevi, como uma serpente surge de sua
pele. É bem possível que tenha algo de ofídico, ou seja, de serpente. E acredito que da cidade
de Lisboa poderia se dizer alguma coisa parecida. Labiríntica [...] com a eterna verdade vazia
daquele céu triste e cativante como nenhuma outra, Lisboa é elegante em seu serpentear, é
uma cidade que às vezes parece surgir como uma serpente surge de sua pele.”

Enrique Vila-Matas, A viagem vertical


RESUMO

SILVA, Elisangela Maria da. Práticas de apropriação e produção do espaço em São


Paulo: a concessão de terras municipais através das Cartas de Datas (1850-1890). São
Paulo, 2012. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo, Universidade de São Paulo.

As Cartas de Datas de Terra são documentos fundamentais para o estudo da história da


estrutura fundiária da cidade de São Paulo. Herança do período colonial persistente durante
quase todo o século XIX, trata-se do meio de solicitação à Câmara de um lote de terreno no
rossio – patrimônio municipal. A presente pesquisa tem por objetivo desvendar os
mecanismos teóricos e práticos através dos quais esses lotes foram concedidos após a lei nº
601 de 1850, a Lei de Terras. Para tanto, analisamos quarenta anos de práticas camarárias na
tentativa de quantificar e qualificar os requerentes, espacializar as áreas de maior incidência
das concessões, buscando verificar um possível padrão na distribuição dos lotes. A pesquisa
acompanha todo o processo de transformação da terra em ativo financeiro em substituição ao
escravo, cobrindo o período de 1850 a 1890, balizas cronológicas correspondentes
respectivamente à Lei de Terras e ao Registro Torrens. O Registro Torrens estabeleceu novos
procedimentos para o cadastramento de terras, viabilizando dessa forma a criação de uma
base hipotecária sólida. Com a consolidação do crédito, a terra tornou-se ativo financeiro.
Três anos após a criação desse cadastro, as concessões de datas de terra foram extintas,
sinalizando o final de um processo de domínio útil ou relativo da terra (concessão) ao domínio
pleno (propriedade privada).

Palavras-chave: estrutura fundiária, datas de terra, espaço urbano, rossio, concessões, Lei de
Terras, Registro Torrens, Câmara Municipal, História, São Paulo, Urbanização.
ABSTRACT

SILVA, Elisangela Maria da. Practices of appropriation and production of space in São
Paulo: the granting of municipal land through Letters from Dates (1850-1890). São
Paulo, 2012. Dissertation (Master of Architecture and Urbanism) – Faculty of Architecture
and Urbanism, University of São Paulo.

Cartas de Datas de Terras documents are essential for the study of the constitution of the land
structure of São Paulo. This legacy of the colonial period persisted throughout most of the 19th
century, and it is the formal request for a piece of land whithin the rossio – land granted from
the Chamber. This research aims to unravel the theoretical and practical mechanisms through
which these lots were granted after the creation of law no. 601 in 1850, the Lei de Terras
(Law of the Lands). Therefore, we have analyzed forty years of practice relating to the grating
of City Council Datas (pieces of land) in an attempt to quantify and qualify applicants, stake
out areas of higher incidence of concessions, seeking after a possible standard of distributing
of lots. The research followed the whole process of land transformation into financial asset to
replace the slaves as investments, covering the period from 1850 to 1890, chronological
beacons corresponding respectively to the Lei de Terras and the Torrens Registration. The
Torrens‟ Registry established new procedures for registration of land, thus making possible
the creation of a strong base mortgage. With this consolidation of credit, the land becomes a
financial asset. Almost simultaneously to the creation of this registry, the procedure of
granting pieces of land was extinguished signaling the end of a period marked by the useful
domain of the land and replaced with the concept of full domain or private property.

Keywords: land structure, granted land, urban space, rossio, Lei de Terras (Law of the
Lands), Torrens Registration, City Council, history, São Paulo, urbanization
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 18

DOCUMENTAÇÃO E METODOLOGIA ...................................................................................................... 27

ESTRUTURA ........................................................................................................................................... 41

CAPÍTULO 1 – A QUESTÃO FUNDIÁRIA URBANA: A GÊNESE DA LEI DE TERRAS E SUAS


IMPLICAÇÕES NA CIDADE DE SÃO PAULO .............................................................................. 43

1.1. A LEI DE TERRAS E OS PROJETOS DE APROPRIAÇÃO TERRITORIAL DURANTE O


IMPÉRIO................................................................................................................................ 45
1.2. A LEI DE TERRAS E O URBANO: INCIDÊNCIAS..................................................................... 50
1.2.1. ÁREAS ADMINISTRADAS PELA CÂMARA MUNICIPAL: TERMO, ROSSIO E
PERÍMETRO URBANO................................................................................................ 52

1.2.2. DEFINIÇÃO DE TERRAS DE USO COMUM................................................................. 62


1.2.3. USOS E APROPRIAÇÃO DOS ESPAÇOS DE USO EM COMUM...................................... 68
1.2.4. INCIDÊNCIAS DO REGISTRO PAROQUIAL................................................................ 74
1.3. A ELABORAÇÃO DO MAPA DO ROSSIO................................................................................. 77

CAPÍTULO 2 – SISTEMA E MECANISMOS DE CONCESSÃO DAS CARTAS DE DATAS:


TEORIA E PRÁTICA................................................................................................................... 90

2.1. FORMALIDADES DA CONCESSÃO: TEORIA........................................................................... 91


2.2. FORMALIDADES DA CONCESSÃO: PRÁTICA....................................................................... 102
2.3. ARGUMENTOS NAS REQUISIÇÕES DE DATAS..................................................................... 124
2.4. A RUA DAS CASINHAS E AS PRÁTICAS DE AFORAMENTO DA CÂMARA: UM BREVE
ESTUDO SOBRE A VALORIZAÇÃO DESSA ÁREA ENTRE 1850-1860 .................................... 134

2.5. APROPRIAÇÃO E RESISTÊNCIA NOS EXTREMOS DO ROSSIO: A VÁRZEA DO CARMO


E A REGIÃO DO PACAEMBU E PERDIZES............................................................................. 143

CAPÍTULO 3 – PRODUÇÃO DE ESPAÇOS ATRAVÉS DAS CONCESSÕES DE TERRAS


MUNICIPAIS............................................................................................................................ 158

3.1. EXPECTATIVAS DE DESENVOLVIMENTO URBANO COM A FERROVIA SANTOS-JUNDIAÍ:


CONCESSÕES GRATUITAS AO INVÉS DO AFORAMENTO (1850-1859)................................. 160
3.2. DEMARCAÇÕES, RIGOR NA DISTRIBUIÇÃO DE DATAS E DENÚNCIAS DE FRAUDE
(1860-1869)........................................................................................................................180
3.3. O FIM DA GRATUIDADE DAS CONCESSÕES E OS MELHORAMENTOS URBANOS
(1870-1879)....................................................................................................................... 194
3.4 A EXPLOSÃO NO NÚMERO DE PEDIDOS (1880-1889)......................................................... 206
3.5. O REGISTRO TORRENS...................................................................................................... 225
3.6. ANÁLISE DO MAPA DAS CONCESSÕES............................................................................... 227
3.6.1. CHÁCARAS E INTERSTÍCIOS.................................................................................. 231

3.6.2. REGIÕES DE VÁRZEAS.......................................................................................... 249

3.6.3. VIAS DE ACESSO À CIDADE................................................................................... 250


3.6.4. ÁREAS DISTANTES DO CENTRO ARRUADO........................................................... 251

CONCLUSÕES......................................................................................................................... 252

FONTES................................................................................................................................... 256
BIBLIOGRAFIA........................................................................................................................ 257

GLOSSÁRIO............................................................................................................................ 269
LISTA DAS ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Capa e contracapa das Cartas de Datas. Fonte: AHMWL................................30

Figura 2 – Termo, Rossio e Perímetro urbano em 1897. Gomes Cardim. Fonte:


Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL............................56

Figura 3 – Termo, Rossio e Perímetro Urbano com tipologias de uso das terras.
Gomes Cardim. Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008,
AHMWL...................................................................................................................................57

Figura 4 – Perímetro do Rossio segundo os vereadores em 1858. Gomes Cardim. Fonte:


Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL............................59

Figura 5 – Requerimento do Engenheiro Hermanno Bastide. Fonte: AHMWL................92

Figura 6 – Chácara do Barão de Antonina na Ponte Grande – Pary, provavelmente


formada com concessões de três datas de terra. São Paulo – Chácaras, sítios e fazendas à
volta de São Paulo, desde o século XVIII. Gastão Cesar Bierrembach de Lima, Exposição do
IV Centenário de São Paulo. Fonte: Arquivo Aguirra/Museu Paulista/USP............................96

Figura 7 – Parecer do fiscal diante do pedido de datas. Fonte: AHMWL..........................98

Figura 8 – Parecer conjunto da Comissão de Datas em 1884. Fonte: AHMWL..............101

Figura 9 – Requerimento em conjunto da família Cavalcanti para o Marco da Meia


Légua em 1887. Fonte: AHMWL..........................................................................................104

Figura 10 – Ladeira do Carmo, em foto de Militão Augusto de Azevedo, 1862.


Fonte: Acervo DIM/DPH/SMC..............................................................................................136

Figura 11 – Rua das Casinhas, atrás do Palácio do Governo e voltada para Várzea do
Carmo. Mappa da Cidade de São Paulo e seus Subúrbios (1844- 1847). Engenheiro Civil C.
A. Bresser. Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008,
AHMWL.................................................................................................................................137
Figura 12 – Hipódromo, 1897. Gomes Cardim. Fonte: Informativo Arquivo Histórico
Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL............................................................................141

Figura 13 – Várzea do Carmo. Mappa da capital da província de São Paulo, por F.


Albuquerque e J. Martin, copiado por Francisco Sansoni, 1877. Fonte: Informativo Arquivo
Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL............................................................146

Figura 14 – Benedito Calixto. “Inundação da Várzea do Carmo” (detalhe). Fonte: Museu


Paulista/USP............................................................................................................................146

Figura 15 – “Rua 25 de Março”, Antonio Ferrigno Antonio Ferrigno, 1894. Fonte: Acervo
da Pinacoteca do Estado de São Paulo....................................................................................147

Figura 16 – Localização da chácara do Carvalho. São Paulo, chácaras e sítios e fazendas


ao redor do Centro, organizado pelo Engenheiro Gastão Cesar Bierrembach de Lima, para
a exposição do IV Centenário de São Paulo. Fonte: Arquivo Aguirra/Museu
Paulista/USP............................................................................................................................167

Figura 17 – Os limites da Cidade Nova a partir do Arouche. CARTA DA CAPITAL DE


SÃO PAULO: O Exmo Snr Barão de Caxias mandou executar pelo Engenheiro Comumna
José Jacques da Costa Ourique Fortificador da Capital, 1842. Fonte: Informativo Arquivo
Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL............................................................168

Figura 18 – Detalhe do Mapa da Cidade e Seus Subúrbios, (1844-1847). C. A. Bresser.


Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL...............171

Figura 19 – Extrato da Planta da Cidade de São Paulo 1868. Carlos Rath. Fonte:
Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL..........................172

Figura 20 – Chácara do Arouche e a região do Campo Redondo. São Paulo – Chácaras,


sítios e fazendas à volta de São Paulo, desde o século XVIII. Gastão Cesar Bierrembach de
Lima, Exposição do IV Centenário de São Paulo. Fonte: Arquivo Aguirra/Museu
Paulista/USP............................................................................................................................176

Figura 21 – Tanque do Arouche e o Campo Redondo entre 1841-1847. C. A. Bresser.


Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL...............176
Figura 22 – Tanque do Arouche e o Campo Redondo em 1881. Tanque do Arouche e o
Campo Redondo em 1881. Planta da Cidade de São Paulo Levantada pela Companhia
Cantareira e Esgotos, Henry B. Joyner, 1881. Fonte: Informativo Arquivo Histórico
Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL............................................................................177

Figura 23 – Brás e a chamada Várzea do Nicolau. São Paulo, chácaras e sítios e fazendas
ao redor do Centro, organizado pelo Engenheiro Gastão Cesar Bierrembach de Lima, para
a exposição do IV Centenário de São Paulo, em 1954. Fonte: Aguirra/Museu
Paulista/USP............................................................................................................................189

Figura 24 – Rua João Theodoro fazendo a ligação da zona central com a zona leste e a
Rua Nova do Jardim. Mappa da capital da província de São Paulo, por F. Albuquerque e J.
Martin, copiado por Francisco Sansoni, 1877. Fonte: Informativo Arquivo Histórico
Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL............................................................................200

Figura 25 – Rua Nova do Jardim e a Rua do Dr. João Theodoro. Cia Cantareira de
Esgotos, 1881. Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008,
AHMWL.................................................................................................................................201

Figura 26 – Rua Nova do Jardim e a Rua do Dr. João Theodoro em 1897. Gomes Cardim.
Planta Geral da Capital de São Paulo (1897). Fonte: Informativo Arquivo Histórico
Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL............................................................................201

Figura 27 – Rua do Gasômetro. Companhia Cantareira e Esgotos, 1881. Fonte: Informativo


Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL..............................................203

Figura 28 – Caminho de Santo Amaro e a região da Liberdade e do Glória. C. A.


Bresser, 1841-1847. Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008,
AHMWL.................................................................................................................................204

Figura 29 – Rua de Santo Amaro e o Largo da Liberdade. Cia Cantareira de


Esgotos, 1881. Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008,
AHMWL.................................................................................................................................205
Figura 30 – Sítio do Pacaembu. São Paulo, chácaras e sítios e fazendas ao redor do Centro,
Gastão Cesar Bierrembach de Lima. Exposição do IV Centenário de São Paulo, 1954. Fonte:
Aguirra/Museu Paulista/USP..................................................................................................218

Figura 31 – Concessões na Planta Geral da Capital. Gomes Cardim (1897). Fonte:


Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL .........................232

Figura 32 – Pari. Cia Cantareira de Esgotos, 1881. Fonte: Informativo Arquivo Histórico
Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL............................................................................233

Figura 33 – Campo Redondo. Fonte: São Paulo das chácaras, sítios e fazendas ao redor do
centro: Arquivo Aguirra/Museu Paulista/USP e Planta Geral da Capital de São Paulo (1897):
Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL..........................236

Figura 34 – Palmeiras. Fonte: São Paulo das chácaras, sítios e fazendas ao redor do centro:
Arquivo Aguirra/Museu Paulista/USP e Planta Geral da Capital de São Paulo (1897):
Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL..........................237

Figura 35 – Chácara do Carvalho. Fonte: São Paulo das chácaras, sítios e fazendas
ao redor do centro: Arquivo Aguirra/Museu Paulista/USP e Planta Geral da Capital
de São Paulo (1897): Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008,
AHMWL.................................................................................................................................238

Figura 36 – Chácara do Wanderley. Fonte: São Paulo das chácaras, sítios e fazendas
ao redor do centro: Arquivo Aguirra/Museu Paulista/USP e Planta Geral da Capital
de São Paulo (1897): Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008,
AHMWL.................................................................................................................................239

Figura 37 – Ruas da Santa Ifigênia abrangidas pelo Relatório de 1893. Fontes: Mapa de
1881, Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL e Relatório
de 1893, APESP......................................................................................................................241

Figura 38 – Destaque nas ruas constantes do Relatório de 1893 em mapa de 1881. Fontes:
AHMWL e APESP.................................................................................................................242

Figura 39 – Projeto de casas para operários. Relatório de Inspecção da Commissão de


exame e inspecção das habitações operarias e cortiços no districto de Sta. Ephigenia (1893).
Fonte: APESP.........................................................................................................................243
Figura 40 – Detalhe da Planta nº 2 do Projeto de Casas Para Operários. Relatório de
Inspecção da Commissão de exame e inspecção das habitações operarias e cortiços no
districto de Sta. Ephigenia (1893). Fonte: APESP.................................................................244

Figura 41 – Planta do typo do cortiço urbano CASINHAS do typo mínimo. Relatório de


Inspecção da Commissão de exame e inspecção das habitações operarias e cortiços no
districto de Sta. Ephigenia (1893). Fonte: APESP.................................................................245

Figura 42 – Projecto de casa para operários. Relatório de Inspecção da Commissão de


exame e inspecção das habitações operarias e cortiços no districto de Sta. Ephigenia (1893).
Fonte: APESP.........................................................................................................................246

Figura 43 – Projecto de casa para operários, detalhe. Relatório de Inspecção da


Commissão de exame e inspecção das habitações operarias e cortiços no districto de Sta.
Ephigenia (1893). Fonte: APESP..........................................................................................247

Figura 44 – Planta Cadastral da cidade de São Paulo, Sta. Ephigenia. Levantada sob a
direcção do Engenheiro V. Huet de Bacellar. Fonte: APESP.................................................248
LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Datas limites das Cartas de Datas de Terra............................................................28

Tabela 2 – Profissões coletadas nas Cartas de Datas entre 1851-1890..................................108

Tabela 3 – Lotes concedidos entre homens e mulheres – 1850-1890....................................119

Tabela 4 – Argumentos presentes nas Cartas de Datas entre 1850-1859...............................124

Tabela 5 – Argumentos presentes nas Cartas de Datas entre 1860-1869...............................125

Tabela 6 – Argumentos presentes nas Cartas de Datas entre 1870-1879...............................127

Tabela 7 – Argumentos presentes nas Cartas de Datas entre 1880-1890...............................128

Tabela 8 – Pedidos e deferidos por ano 1850-1859...............................................................160

Tabela 9 – Pedidos por localidade ente 1850-1859...............................................................162

Tabela 10 – Deferidos por localidades entre 1850-1859.......................................................165

Tabela 11 – Pedidos e deferidos por ano 1860-1869.............................................................184

Tabela 12 – Pedidos por localidade – 1860-1869..................................................................185

Tabela 13 – Deferidos por localidade – 1860-1869...............................................................188

Tabela 14 – Pedidos e deferidos por ano 1870-1879.............................................................194

Tabela 15 – Pedidos por localidade entre 1870-1879............................................................198

Tabela 16 – Deferidos por localidade entre 1870-1879.........................................................202

Tabela 17 – População das Freguesias de São Paulo entre 1836-1874..................................207

Tabela 18 – População de São Paulo entre 1872-1890..........................................................207

Tabela 19 – Pedidos e deferidos por ano 1880-1889.............................................................213

Tabela 20 – Pedidos por localidade entre 1880-1889............................................................214

Tabela 21 – Pedidos deferidos entre 1880-1890...................................................................219


ACERVOS CONSULTADOS E ABREVIATURAS

AHMWL – Arquivo Histórico Municipal Washington Luís – São Paulo

APESP – Arquivo Público do Estado de São Paulo

DPH – Departamento de Patrimônio Histórico

IEB-USP – Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo

MP – Museu Paulista da Universidade de São Paulo


18

INTRODUÇÃO

A mudança no sistema de apropriação fundiária no Brasil é um fato bem estudado1. O


capital, antes aplicado em escravos, vai lentamente migrando para a propriedade fundiária 2, o
que o título de Martins, O cativeiro da terra, graciosamente esclarece: o escravo ganha a
liberdade enquanto a terra, em contrapartida, é aprisionada. A mudança da aplicação da renda
capitalizada, ou seja, a garantia de obtenção de crédito para financiar a produção, com a
perspectiva do fim da escravidão, passa lentamente para a propriedade territorial. Recurso
natural abundante e em muitos casos usada comunalmente, a terra tornar-se-á ativo financeiro.
O presente estudo abrange esse momento, onde o domínio sobre a terra era relativo, até o
mesmo domínio tornar-se integral, propriedade privada de fato, sem possibilidade de retorno
ao cessionário original. O marco inicial para essa mudança, no caso brasileiro, é duplo: por
um lado, a Lei de Terras3, que regulamentava o acesso por compra e venda; por outro, a
perspectiva do fim da escravidão, trazida pela Lei Eusébio de Queiroz4.

A Lei de Terras visava criar um fundo que subsidiasse a imigração com a venda das
terras devolutas, prevendo, portanto, a mudança da mão de obra em um determinado período
de tempo, conforme a conjuntura internacional. O escravo era ativo financeiro, nesse período,
como garantia de crédito, ou seja, o crédito para a produção estava assentado na própria
ferramenta produtora. A mudança nesse sistema, conforme dissemos anteriormente, é um
movimento estrutural, assim Paulo Xavier Pereira afirma:

[...] o assalariamento do trabalho e a transformação do significado da


propriedade imobiliária se constituíram em processos que estão ligados
histórica e estruturalmente à constituição de relações sociais capitalistas no

1
Como nos estudos pioneiros de MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: Livraria Editora
Ciências Humanas Ltda, 1979; MARX, Murillo. Cidade no Brasil: Terra de quem? São Paulo: Edusp/Nobel,
1991; e SUZUKI, Júlio César. “Expansão urbana da cidade de São Paulo: uma análise da transição nas formas de
apropriação da terra e de imóveis urbanos”, In: 6 Brazilian Studies Association International Congress 2002,
Atlanta-EUA, 2002, disponível em: http://www.sitemason.vanderbilt.edu (07/2008).
2
MELLO, Zélia Cardoso de. Metamorfoses da riqueza. São Paulo, 1845-1895. São Paulo: Hucitec, 1990.
3
Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850. COLLECÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1808-1889. Rio
de Janeiro. Imprensa Nacional.
4
Lei nº 581 de 04 de setembro de 1850. Idem.
19

desenvolvimento da construção da cidade, de maneira que, nas


desigualdades da modernização de São Paulo, desde o início, estão presentes
tensões do desenvolvimento industrial e urbano na produção e apropriação
da cidade moderna” 5.

Seguimos a linha da história urbana na medida em que focamos especificamente a


cidade de São Paulo e a apropriação de seu rossio, a meia légua de terras em todas as direções
a partir da Sé, sob administração dos oficiais da Câmara, durante o último quartel do século
XIX6. Essa área, imediatamente adjacente ao sítio histórico, dará forma e direcionamento ao
crescimento da cidade, atuando como um limite entre o urbano e o rural, sendo, portanto, de
crucial importância para entendermos as dinâmicas de expansão e apropriação dos espaços.

Uma história urbana tem, portanto, o duplo desafio de defrontar-se com as


questões colocadas pelo espaço e, mais ainda, pelo tempo, articulando-as em
uma rede de significações em que o espaço problematiza o tempo e o tempo
problematiza o espaço7.

Estamos investigando a gênese da formação da cidade, uma vez que nos atemos a
estudar as concessões de terras municipais para a população da cidade de São Paulo durante
seu período de transformações mais incisivas, no final do século XIX.

Esta pesquisa surgiu durante um estágio no Arquivo Histórico Municipal e faz parte
do Projeto de Pesquisa em Políticas Públicas Arquivo Histórico Municipal Washington Luís –

5
PEREIRA, Paulo Cesar Xavier. Questão da construção: Urbanização e industrialização em São Paulo
(1872-1914). São Paulo, 1990. Tese (Doutorado em Ciência Política). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, p. 25.
6
Ao ser elevada à vila, a Câmara de Vereadores recebia duas divisões administrativas. A primeira era o termo
da vila, seis léguas em todas as direções a partir do núcleo central, e um rossio, de meia légua em quadra para:
uso comum, edificação de prédios públicos, renda através do aforamento e concessões por Cartas de Datas. No
decorrer da pesquisa especificaremos essas duas regiões. Para aprofundamento sobre a questão, consultar
GLEZER, 2007.
7
FERNANDES, Ana; GOMES, Marco Aurélio de Filgueiras. “A pesquisa recente em história urbana no Brasil:
percursos e questões”. In: PADILHA, Nino (org.). Cidade e urbanismo: história, teorias e práticas. Salvador,
1998. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). FAUFBA, p. 13-28.
20

A cidade de São Paulo e sua arquitetura (Fapesp, processo 2006/51697-8)8. Ao transcrever


um pedido para construção em 1909, foi lido um processo sobre uma data de terra concedida
em 1882, cuja propriedade era reivindicada tanto por um particular quanto pela própria
Câmara em 1909. Esse processo despertou o interesse sobre o assunto: tendo em vista que a
Lei de Terras proibia qualquer transação fora do binômio compra e venda, o que seriam essas
concessões?

As concessões de terras municipais através da Câmara, fator que remonta ao princípio


da ocupação ibérica, foram suspensas a partir da regulamentação da lei9, entretanto,
continuaram sendo concedidas pelos oficiais através das Cartas de Datas10. Escritas de
próprio punho por pessoas de todas as camadas sociais, essas cartas pediam lotes de terrenos
para diversos fins. Procuramos entender os mecanismos teóricos e práticos através dos quais
esses particulares adquiriram esses terrenos.

O recorte temporal adotado abrange essas mudanças profundas na estrutura de um


povoado que se torna o centro da economia cafeeira. Geograficamente bem posicionada11, a
cidade possuía importantes vias de comunicação com o interior, e desde o final do século
XVIII estava articulada comercialmente com diferentes províncias:

A condição de centro do sistema de comunicações do Planalto Atlântico


permitiu ao aglomerado o crescimento da atividade comercial, que se

8
Coordenado por Nestor Goulart Reis Filho e Beatriz Bueno, esse projeto informatizou parte da Série das
Edificações Particulares (1906-1915) e o Fundo Particular Severo e Villares, pertencentes ao acervo do Arquivo
Municipal. Cerca de 30.000 documentos receberam tratamento arquivístico adequado – descrição documental
em catálogo informatizado, reprodução fotográfica e digital dos desenhos – com o intuito de facilitar a sua
consulta e preservação, bem como divulgar e despertar a atenção da comunidade para a riqueza desse acervo
sobre a cidade de São Paulo e sua arquitetura. O material tratado pode ser consultado no site
http://www.sirca.com.br/site/ .
9
Decreto 1.318 de 30 de janeiro de 1854. COLLECÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1808-1889.
Rio de Janeiro. Imprensa Nacional
10
Data significava dádiva ou benefício. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez & Latino. Coimbra, 1712-
1728. SILVA, Antonio de Moraes. Dicionário da língua portugueza. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813.
http://www.ieb.usp.br/online/index.asp
11
PRADO JR., Caio da Silva. “O fator geográfico na formação e no desenvolvimento da cidade de São Paulo”.
In: Evolução política do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1972. LANGEBUCH, Juergen Richard. A estruturação
da grande São Paulo: estudo de geografia urbana. Rio Claro, 1968. 564 f. Tese (Doutorado em Ciências
Sociais). Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, Universidade Estadual de Campinas. Ambos os
autores apontam para o fato de a cidade ser o centro de um sistema de comunicações hidrográfico,
geomorfológico e, principalmente, viário no Planalto.
21

beneficiou do crescimento demográfico no século XVIII, bem como da


produção excedente que ocorria nas fazendas [...]12

O crescimento da cidade é lentamente cumulativo e, em conjunto com o comércio


interno, as mudanças políticas favoreceram a cidade: o fato de tornar-se capital da província,
o estabelecimento da Faculdade de Direito e a consequente criação de um setor de serviços
que impulsionou o comércio. No cenário político nacional, os paulistas, nos dizeres de
Dolhnikoff13, possuíam uma influência que transcendia sua importância econômica.
Entretanto, somente com a instalação da ferrovia ligando o interior paulista (Jundiaí) ao porto
de Santos e passando pela capital, em 1867, a cidade começa a ganhar impulso populacional e
visibilidade.

Embora um tipo de narrativa histórica14 tenha a tendência de deslocar as


transformações em São Paulo exatamente para a década de 1870, optamos por recuar no
tempo para entender como essas dinâmicas se desenvolveram. Podemos afirmar que as
mudanças, entendidas como um processo de acomodação de longo prazo nas práticas de
administração da cidade, iniciam-se com a subordinação das Câmaras Municipais à

12
SUZUKI, J. C. A gênese da moderna cidade de São Paulo. Apresentação de Trabalho/Comunicação.
Encontros Geográficos da América Latina, México, 2004. p. 7.
13
DOLHNIKOFF, M. “São Paulo na independência”. In: JANCSÓ, István. (org.). Independência: história e
historiografia. São Paulo: Hucitec, 2005, v. 1 , p. 557-575. A autora cita os nomes articuladores do processo de
Independência, tais como Diogo Antonio Feijó, Nicolau Pereira de Campos Vergueiro e Francisco de Paula
Sousa. Quando da articulação da lei de terras veremos também a atuação de alguns políticos paulistas.
14
Assim como a transcrição e reunião da documentação que analisaremos, essas narrativas que plantam um eixo
de mudanças para a cidade a partir de 1870 começaram a se desenvolver na década de 1930. Essa “matriz
explicativa” se inicia basicamente em 1935, com o artigo de Caio Prado Júnior sobre o papel das circunstâncias
geográficas favoráveis do sítio urbano paulista. Logo em seguida, o historiador Eurípedes de Paula Simões
define o ano de 1872 como “a segunda fundação de São Paulo”, condicionando as mudanças a três fatores
essenciais: ferrovia, imigração e João Theodoro (1828-1878) no governo da Província investindo em
melhoramentos urbanos na cidade. Como os estudos são sempre feitos tendo-se em conta os problemas do
presente do estudioso, quando verificamos a situação política de São Paulo em 1930 percebemos que a perda do
poder político na estrutura nacional faz com que os estudos do período se preocupem com uma ruptura, datando-
a exatamente no ponto em que a cidade atinge o seu auge, no século XIX. As interpretações começam a mudar
quando os estudos sobre o mercado interno brasileiro dão vazão a uma cidade muito mais ativa no início do
século XIX do que se supunha. Não cabe no âmbito desse trabalho uma análise aprofundada da historiografia das
narrativas sobre a cidade, entretanto, para um aprofundamento do assunto, consultar o primeiro capítulo de
FREHSE, Fraya, 2005; GLEZER, Raquel, 2007; para os estudos sobre mercado interno, consultar:
DOLHNIKOFF, M. Crescimento econômico em São Paulo. D. O. Leitura, São Paulo, v. 22, n. 1, p. 28-37, 2004;
MOURA, Denise A. de Macedo. Sociedade movediça: economia, cultura e relações sociais em São Paulo,
1808-1850. São Paulo: Editora Unesp, 2005.
22

Assembleia Provincial, a partir de 1828 15, tornando-as entidades meramente funcionais e com
recursos limitados para gerir a cidade. Os oficiais perdem recursos e poderes, tendo que
buscar um constante alinhamento com o presidente da Província, que era indicado pelo
Imperador, um elemento executivo alienígena. Nesse momento, para consertar estradas e
administrar os diversos aspectos da cidade, os oficiais da Câmara propõem o aforamento16
dos terrenos do rossio, com a intenção de arrecadar dinheiro para os parcos cofres camarários.

Entretanto, com a perspectiva da instalação da linha férrea Santos-Jundiaí17 e o


provável crescimento populacional da cidade, as preocupações dos oficiais da Câmara
voltam-se para a quantidade de construções na cidade e a inexistência de prédios para atender
a uma futura demanda populacional. Nesse momento, eles pedem que as terras sob sua tutela
sejam concedidas sem ônus. Claro que é necessário relativizar esse discurso oficial, afinal, os
vereadores eram intermediários nesse processo de ocupação do espaço. A concessão gratuita
do rossio não era uma unanimidade entre os vereadores da Câmara, mas parecia resolver as
questões imediatas: a abertura das ruas e a construção no terreno concedido ficavam a cargo
dos concessionários, possibilitando a ocupação de áreas de várzeas18 e de espaços vazios
indesejados.

A partir de 1875, com as transformações físicas na cidade, inclusive para arcar com as
despesas para essas mudanças, as concessões passam a ter um valor determinado no
orçamento anual da Câmara. O novo imposto criado para as Cartas de Datas coincide com a
instalação dos núcleos de imigrantes de Santana e da Glória. O conflito existente entre a
venda de terras devolutas da Província e as concessões municipais cria tensões que faz com
que, em diversas ocasiões, a Câmara seja impedida de conceder terras de forma gratuita. O

15
Lei de 1º de outubro de 1828. Dá nova forma às Câmaras Municipais, marca suas atribuições, o processo para
sua eleição e dos Juízes de Paz. Collecção das Leis do Império do Brasil, 1808-1889. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional.

16
Aforamento – Dar algum prédio em foro. Tomar prédio rústico ou urbano por aforamento. Foro – Tributo
procedido de cousa foreira ao direito senhorio, que todos os anos se paga. Posse em que se constitue direito,
privilégio. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez & Latino. Coimbra, 1712-1728. SILVA, Antonio de
Moraes. Dicionário da língua portugueza. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813.
http://www.ieb.usp.br/online/index.asp
17
Foi inaugurada em 1867, mas os planos para sua instalação começaram efetivamente em 1859.
18
O discurso higienista já estava presente na questão da ocupação das áreas insalubres da cidade como as
inúmeras várzeas que cercavam a colina histórica. Era preferível a construção, em todos os casos, do que deixá-
las expostas. Para saber mais sobre essa questão consultar: GIORDANO, Carolina Celestino. Ações sanitárias na
imperial cidade de São Paulo: Mercados e Matadouros. Campinas, 2006. Dissertação (Mestrado em
Urbanismo), PUCCAMP, 2006.
23

que parece ocorrer, nesse período, é uma paridade forçada dos valores da terra para não haver
concorrência entre instâncias administrativas19. Entretanto, não é possível dizer que o rossio, a
partir de 1875, foi liberado para o mercado imobiliário porque as concessões ainda eram
condicionais. Os terrenos do rossio estavam submetidos a um sistema teoricamente rígido de
concessão e essa concessão era diferente do tipo de propriedade que conhecemos atualmente,
uma vez que era condicionada a determinadas exigências ou reverteria ao domínio da
Câmara, o que era usualmente chamado de comisso20.

No processo que se estende pelo último quartel do século XIX, observa-se uma
mudança na forma de apropriação da terra, antes concedida seguindo rígidas diretrizes, para
ser lentamente incorporada à economia de mercado, tornando-se propriedade privada. Por um
período de tempo esses dois procedimentos com relação à terra caminharam paralelamente.

A história social do século dezenove foi, assim, o resultado de um duplo


movimento: a ampliação da organização do mercado em relação às
mercadorias genuínas foi acompanhada pela sua restrição em relação às
mercadorias fictícias. Enquanto, de um lado, os mercados se difundiam sobre
toda a face do globo e a quantidade de bens envolvidos assumiu proporções
inacreditáveis, de outro, uma rede de medidas e políticas se integravam em
poderosas instituições destinadas a cercear a ação relativa ao trabalho, à terra
e ao dinheiro. 21

É nesse contexto que a Lei de Terras, como mecanismo regulamentador, é elaborada e


que o rossio da cidade será apropriado. Nesse processo de concessão, o que validava essa lei
era a construção no terreno, demonstrando que a terra, por si só, ainda não tinha validade
significativa, remetendo ao cultivo, beneficiamento e a instituição das sesmarias desde sua
matriz ibérica.

19
BRITO, Mônica Silveira. Modernização e tradição: urbanização, propriedade da terra e crédito hipotecário
em São Paulo na segunda metade do século XIX. São Paulo, 2006. Tese (Doutorado em Geografia Humana).
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
20
Na jurisprudência do século XIX, comisso é a quebra de contrato, qualquer que seja. Aqui será utilizado ao
referirmos as terras que revertem ao domínio da Câmara Municipal caso não sejam beneficiadas, ou seja, não
sejam cercadas ou tenham construções dentro de um prazo preestabelecido.
21
POLANY, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 1980, p. 88.
24

Propomo-nos pesquisar de que forma o aparato da Câmara Municipal e de seus


oficiais, os vereadores e engenheiros, deram conta da complexidade de ordenar e conhecer o
território que consideravam como seu rossio, ou seja, até que ponto os vereadores adaptaram
o sistema de concessão dessas terras para atender realmente a uma demanda populacional. O
objetivo é acompanhar como esses lotes de terra foram distribuídos, para quem e em quais
áreas do entorno arruado, mapeando a distribuição dessas terras, ao mesmo tempo em que
verificamos os mecanismos que tornaram possível essa apropriação.

Se analisarmos a gratuidade da concessão dos terrenos do rossio, em clara oposição ao


que determinava a Lei de Terras, esse rossio estava em uma posição diferente das terras
devolutas ou das terras rurais, em um momento de transição para a propriedade privada da
terra.

Partimos da hipótese de que o mapeamento das áreas e lotes municipais concedidos


nesse momento de crescimento populacional exacerbado permita entrever os embates entre os
interesses públicos e privados, analisando de que forma interesses e privilégios de grupos
direcionaram a expansão do perímetro urbano e o crescimento da cidade de São Paulo através
da ocupação de antigos espaços de uso comum e várzeas.

As questões norteadoras dessa pesquisa, portanto, são:

a) Qual era a posição dessa parcela de terras, sob controle dos oficiais da Câmara frente
à própria legislação reguladora da propriedade fundiária? O rossio era considerado terra
urbana ou rural? Seria terra devoluta, segundo a definição da Lei de Terras? Qual era o
estatuto da Sesmaria do Conselho perante essa legislação e avisos reguladores dos anos 1850?

b) Quais foram os argumentos que os vereadores usaram para distribuir essas terras,
primeiro de forma gratuita e, após 1875, de forma onerosa? Quais eram os valores da terra
nesse momento?

c) Quem pedia os lotes de terra? Existiria uma discriminação na distribuição desses


lotes, ou seja, qualquer um poderia pedir e receber ou, como demonstra a pesquisa de
Fernando de Aguiar Ribeiro22 com as Cartas de Datas para o período colonial, apenas pessoas
ligadas à Câmara receberiam tais concessões?

22
RIBEIRO, Fernando V. Aguiar. Poder local e patrimonialismo: a Câmara Municipal e a concessão de terras
urbanas na vila de São Paulo (1560-1765). São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado em História Econômica).
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
25

d) Quais áreas foram distribuídas e por que? Quais as ligações desses locais com as
redes de sociabilidade da cidade? Nesse caso, a leitura das Atas da Câmara e do Registro
Geral nos deu pistas para entender por que determinadas áreas foram distribuídas em oposição
a outras. Em alguns casos, existiram problemas técnicos para a plena ocupação (várzea do
Brás, por exemplo); em outros casos, um interesse em ocupar áreas que estavam sendo
arruadas para melhorar as vias da cidade (novas ruas abertas), ou ainda, um interesse por lotes
nas vias de ligação da cidade, como o caso de pedido para estabelecer um rancho para
tropeiros na direção do Arouche, saída para Campinas, em 185923. No caso citado, a
instalação de um rancho na entrada da cidade era uma estratégia de negócio, como
analisaremos no Capítulo 3.

d) Como esses locais foram utilizados? Nesse caso, o cruzamento de dados com outras
fontes, como o Registro de Terras de São Paulo, por exemplo, ou a pesquisa de Maria Luiza
Ferreira de Oliveira24 nos auxiliaram a ter uma visão de conjunto das redes de sociabilidade
da cidade e sua integração como o todo. Alguns estudos comprovam que, a partir do final de
1870, as chácaras do entorno urbano foram desmembradas, arruadas e divididas em lotes para
venda. Desses arruamentos surgiram novos bairros. Portanto, a inserção de lotes e a ocupação
dos espaços se deram a partir do loteamento de chácaras, por um lado, e com a apropriação do
rossio através das Cartas de Datas, de outro.

Além do cruzamento com outras fontes, procuramos prestar atenção nos argumentos
dos requerentes para entender como seria utilizado o terreno. Expressões como: habitar,
cultivar, edificar morada de casas, fazer chácara, foram registradas sempre que surgiam.

O recorte temporal foi escolhido tendo em vista as questões a serem desvendadas:


norteado por um lado pela Lei de Terras, por outro, pelo Registro Torrens25, que oficializava
a propriedade através de um processo judicial e por localidade, diferentemente dos registros
anteriores, que eram feitos em nome do proprietário e não demandavam pesquisa prévia in
loco para serem validados. O recorte abrange o processo de apropriação de terras, desde 1850

23
Pedido feito por Henrique Moraes Pupo, concedido com a condição de ser revertida a Câmara em caso de
necessidade. COLLECÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1808-1889. Rio de Janeiro. Imprensa
Nacional, vol. XVIII, 1859.
24
OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Entre a casa e o armazém – relações sociais e experiência de
urbanização São Paulo, 1850-1900. São Paulo: Alameda, 2005.
25
Decreto 451 B de 31 de maio de 1890, regulamentado pelo Decreto 955-A de 5 de novembro de 1890.
COLEÇÃO DAS LEIS DO BRASIL, 1889-1930. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional.
26

até 1890, com a perspectiva do fim do sistema escravista e com o início do processo de
valorização da terra na cidade de São Paulo, que culminaria, em 1890, no Encilhamento26.

Acompanhamos a desagregação do sistema escravista e as tentativas de transformar a


terra em ativo financeiro, com as subsequentes leis hipotecárias do período. Além disso, em
1888, é realizada a primeira medição parcial do rossio, demarcação requerida pelo Presidente
da Província desde 1852, o que dá fim ao eterno jogo de desconhecimento dos limites de suas
terras, aquilo que chamamos de “ausência do mapa do rossio”: o problema alegado pelos
oficiais da Câmara para não realizar o levantamento e a discriminação do patrimônio
municipal. Em 1890-1891 ocorre o Encilhamento, dando fim ao processo de transformação da
terra em mercadoria, encerrando um período. O Encilhamento, em São Paulo, segundo
Reineiro Lérias, é intensificado porque: “[...] a tônica do fenômeno foi o ramo da construção
civil e o imobiliário em geral, e nem poderia ser diferente, pois a cidade estava em período de
franco crescimento” 27.

Portanto, nosso recorte temporal inicial é 1850 (Lei Eusébio de Queirós – Lei de
Terras) e se estende até 1890 (Registro Torrens), podendo ser prolongado até 189328, com a
lei que extingue definitivamente as Cartas de Datas. Passamos por todo o período da política
imperial e das regulamentações sobre o acesso à terra, acompanhando a expansão da cidade e
o processo de racionalização e especialização desses espaços apropriados e criados à medida
que o rossio era concedido.

Ao final desse período, teremos em São Paulo bairros voltados para a elite cafeeira e
bairros operários em uma cidade nitidamente separada por faixas de ocupação. O
investimento no mercado imobiliário cresceu conforme o adensamento da cidade. Os
imigrantes, escravos, ex-escravos e brancos livres provocaram, conforme previsto pelos
vereadores em 1859, uma procura crescente por moradias e a consequente elevação no preço
dos aluguéis, acelerando a ocupação de espaços na cidade.

26
Encilhamento foi a crise financeira que atingiu as praças comerciais em São Paulo e Rio de Janeiro entre
1889-1891, com forte teor especulativo. O Encilhamento causou uma bolha inflacionária, que vinha se formando
desde 1889. O Ministro da Fazenda, Rui Barbosa, na tentativa de estimular a industrialização do Brasil, adotou
uma política emissionista baseada em créditos livres aos investimentos industriais, garantidos pelas emissões
monetárias. Tais medidas geraram um movimento de especulação com papéis, a criação de empresas-fantasma e
aumento da inflação. Apesar do fracasso da política de Rui Barbosa, sua política monetária mais frouxa
possibilitou a formação de importantes grupos empresariais com atuação no mercado imobiliário.
27
LÉRIAS, Reineiro Antonio. O impacto do Encilhamento sobre a cidade de São Paulo nos anos 1890 e 1891.
São Paulo, 1987. Dissertação (Mestrado em História Econômica). FFLCH/USP, p. 110.
28
Lei nº 39 de 24 de maio de 1893. COLLECÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1808-1889. Rio de
Janeiro. Imprensa Nacional
27

DOCUMENTAÇÃO E METODOLOGIA
A documentação consultada como fonte primária foi produzida pela própria Câmara
Municipal. Documentação oficial, portanto, específica e direcionada, com seus pontos cegos e
viciada em uma única direção, mas que contém uma narrativa constante: “diálogos” sobre
como administrar a cidade, seus percalços, leituras e interpretações das leis, mudanças nas
Posturas Municipais – a sua prática, enfim. Essa documentação é rica em detalhes e
discussões sobre a cidade nesse período crucial de crescimento territorial e populacional.
Entretanto, possui a visão de apenas um dos agentes da história. Para encontrar as vozes
dissonantes é preciso atenção aos detalhes, às palavras e aos casos isolados, assim como aos
silêncios. O elemento negro, crucial para o funcionamento da cidade imperial, por exemplo,
aparece alijado do processo de concessão de terras. Entretanto, está aqui e ali, em locais
estratégicos (São Bernardo do Campo, Morro do Caaguaçu – futuro espigão da Avenida
Paulista), pedindo lotes, explicando seus porquês e sendo atendido em determinados
momentos. As mulheres, por seu turno, presentes nos estudos sobre São Paulo29, estão
também nas Cartas de Datas e têm voz ativa em muitos casos.

Parte dessa documentação foi desdobrada e publicada no início do século XX. No caso
específico das Cartas de Datas de Terra (escritas de próprio punho pelos pretendentes, para
serem lidas pelos oficiais da Câmara nas sessões) foram publicadas, com acréscimo de
qualquer menção de terra em outras produções camarárias, como as Atas, por exemplo, desde
1532 até o ano de 1864. Na verdade, as Cartas de Datas são parte de uma documentação
global da Câmara: o Registro Geral. A separação desses documentos ocorre conforme a
administração da cidade vai se especializando ao longo dos séculos. Logo, as Cartas pedindo
datas são separadas das atas de reuniões e os ofícios reunidos em um montante específico.
Assim, hoje em dia temos três vertentes que convergem em informações: as Atas da Câmara,
o Registro Geral e as Cartas de Datas.

A partir de 1865, portanto, a documentação analisada é manuscrita, restando somente


as cartas, sem acréscimo de quaisquer menções a terras presentes nas outras fontes, até a
extinção das doações em 189330. No total são quatro volumes publicados em formato de livros
com as datas limites de 1850-1864 da Cartas de Datas de Terra e 28 volumes manuscritos
para o período entre 1864-1890.

29
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense,
1984.
30
No entanto, existem no arquivo livros chamados Cartas de Datas e Aforamento até a data limite de 1915.
Sabemos, porém, que a partir de 1890 só o aforamento de terrenos era autorizado, sendo as Cartas de Datas
extintas em 1893.
28

Tabela 1 - Datas limites das Cartas de Datas de Terra

Ano Volume
TERRAS/DATAS
1842-1857 1
1852-1853 1 Volumes manuscritos
1854-1858 1 publicados
1859-1859 2
1860-1860 2
1861-1863 2
1864-1874 1
1875-1876 2
1877-1878 2
1879-1879 2
1880-1880 3
1881-1881 2
1882-1882 5
1883-1883 1 Volumes manuscritos

DATAS DE TERRA consultados

1884-1884 2
1885-1885 2
1886-1886 1
1887-1887 3
1888-1888 1
1889-1889 2
1890-1890 8
1891-1892 2
1892-1895 2 Volumes não consultados
1896-1896 2
1897-1897 4
1898-1898 12
1899-1915 2
Fonte: AHMWL/Manuscritos
29

Em 1930, a Divisão de Documentação Histórica Social do Departamento de Cultura


de São Paulo se propôs a compilar uma série de dados sobre a distribuição fundiária da
cidade, desde o princípio da colonização até meados do século XIX. A documentação
camarária foi devassada, em um extenso projeto arqueológico de resgate e difusão da
memória de São Paulo. Os registros foram cuidadosamente restaurados, organizados,
encadernados e publicados por uma instituição recente e em fase de estruturação: o
Departamento de Cultura31.

Para disponibilizar esses documentos ao público, um trabalho minucioso de pesquisa


histórica foi efetuado, uma vez que foi necessário consultar as atas com as reuniões dos
vereadores, o registro geral com os ofícios trocados com a Assembleia Provincial, assim como
os Papéis Avulsos (toda documentação que não tivesse livro próprio foi reunida nessa série)
para resgatar qualquer menção a terras presentes na documentação. Essa extensa pesquisa e a
publicação abrangem documentos desde 1555 até 186532. Cabe ressaltar, essa pesquisa
histórica e a publicação foram efetuadas no curto intervalo de aproximadamente três anos,
entre 1935-1938. Após esse período, o material foi apenas republicado (até 1940) e
conservado (a parte manuscrita) com a mesma estrutura de organização33.

31
A divisão de Documentação Histórica e Social era uma subdivisão do Departamento de Cultura. O
departamento foi organizado a partir de 1934, sob a coordenação de Mário de Andrade.
32
Apesar de a Câmara Municipal só disponibilizar livros específicos para esses registros de Cartas de Datas a
partir de 1740. Foram transcritas e publicadas todas as Atas, bem como o Registro Geral.
33
Na prática existem três séries manuscritas das Cartas de Datas: as Cartas reunidas sob o título Cartas de Datas
de Terra; as cartas espalhadas entre autos de alinhamentos na documentação chamada de Terras/Datas; as cartas
passadas pelos vereadores, não os pedidos, mas o documento oficial na documentação chamada Concessão de
Cartas de Datas. Além disso, existe uma série de mapas sobre distribuição de lotes e menções, nas Atas e no
Registro Geral da Câmara sobre a matéria.
30

Figura 1: Capa e contracapa das Cartas de Datas. Manuscritos. Fonte: AHMWL.

Em um contexto histórico de construção de identidade nacional, uma determinada


vertente da memória de São Paulo foi resgatada dos arquivos e colocada ao alcance do
público através da restauração, pesquisa, publicação e circulação da documentação produzida
pela Câmara Municipal desde o princípio da colonização34. Por trás desse projeto estava uma
concepção pedagógica de memória e cultura específicas daquele contexto histórico: a de
estruturar o Departamento de Cultura como um órgão difusor (e construtor) da história de São
Paulo.

Para entender esse contexto, é preciso compreender que, no momento anterior, São
Paulo tinha a primazia econômico-política no cenário político nacional. Em 1929, essa
liderança se desfaz e Getúlio Vargas assume o poder. Nesse contexto de perda de poder
político, a elite paulista se une ao poder público, que atrai para sua esfera uma série de
intelectuais que se engajam e executam ações visando o desenvolvimento urbano, cultural e
intelectual de São Paulo. Nesse ambiente, surgem a Escola de Sociologia e Política, a própria
Universidade de São Paulo e o Departamento de Cultura. É preciso deixar claro: não foi um
simples processo de recolha e divulgação de documentos históricos; era um estudo
sistemático e racional, uma construção em si, portanto. A Divisão de Documentação Histórica
criou intencionalmente uma narrativa unitária para as Cartas de Datas.

34
Esse é o mesmo período em que se produzem narrativas históricas que engrandecem a cidade, como já foi dito
a respeito de determinados estudos que localizam uma ruptura abrupta na história da cidade a partir de 1870.
Com os materiais do arquivo, foi feito o mesmo: cuidado, preservado, transcrito e disponibilizado ao público.
31

A Divisão de Documentação Histórica e Social, subdivisão do Departamento de


Cultura, ficava sob a direção de Sérgio Milliet35 e era dividida em três partes: a própria
Divisão Histórica e Social, a de Estatísticas Municipais e a Seção Gráfica. Logo de início,
observamos a racionalidade do projeto: recuperar o antigo, estudar para compreender o novo
(e assim direcionar as ações culturais do período), restaurar e publicar os documentos para
futuras pesquisas. No comando das pesquisas da Divisão Histórica estava Nuto Sant‟Anna
que, em um prazo hoje considerado curto, organizou a desinfecção, restauração, transcrição
paleográfica e a organização para a publicação de aproximadamente 300 anos de
documentação. Logo na introdução das Cartas de Datas, volume 1, ele deixa claro seu intento:
levar ao público a memória das grandes personalidades que ajudaram a formar a “grande
cidade de São Paulo”. Era um projeto de forte cunho político-educativo.

Entretanto, o que foi disponibilizado ao público na forma de livro, durante a década de


1930, foi muito mais do que as cartas reunidas, já que aos originais das Cartas de Datas
foram acrescentadas quaisquer menções a terras presentes no conjunto dos documentos sob a
guarda do arquivo. Eis a primeira dificuldade do pesquisador incauto que, estudando os livros
publicados, parte para a documentação manuscrita: mais informações nos livros no sentido de
reunião de dados assim como detalhes nos livros ausentes da documentação escrita
(acréscimo), fazendo o processo de concessão ter uma racionalidade unitária que, na prática,
não era real. A documentação manuscrita, por sua vez, suscita uma série de questões
diferentes das cartas publicadas: blocos de cartas praticamente idênticas; papel timbrado de
escritórios de advocacia; assinaturas a rogo (porque o requerente não sabia escrever ou
porque a pessoa que assinava poderia influir na decisão dos oficiais da Câmara), bilhetes com
autorizações de doações e ausência de cartas. São, portanto, dois tipos de documentos
completamente diferentes, que, se lidos fora do contexto, levam o pesquisador a ter uma
compreensão diferente do objeto de pesquisa.

Quando lidamos com a documentação manuscrita foi preciso reorganizar, quando


possível, essas informações; inferir se determinado sinal nas cartas manuscritas, um pequeno
“D” no canto direito superior da folha, por exemplo, era sinal de pedido atendido (deferido).

35
Paulo Duarte, em artigo na Revista Municipal do Arquivo Histórico, conta como, entre 1926-1931, reunia-se
um grupo de intelectuais formado por Mário de Andrade, Milliet, Paulo Duarte e Rubens Borba de Moraes, entre
outros, “gestando” o Departamento de Cultura. A oportunidade de colocar em prática as ideias gestadas por
longo tempo surgiu em 1934, com o retorno de Paulo Duarte à cena política.
32

Como sabemos, cada pequena decisão desse tipo influencia na leitura do conjunto. Feitas as
devidas ressalvas quanto à gênese da documentação, os documentos consultados foram:

 Cartas de Datas de Terra: conforme foi explicado, em parte publicadas e em parte


manuscritas, é a documentação de base para a pesquisa. Pouco analisada, essa é a primeira
pesquisa que tem como objetivo uma análise sistemática do seu conteúdo. Entre 1851-1864
foram consultados quatro livros publicados pela Divisão Histórica do Departamento de
Cultura e para o período 1865-1890 foram analisados 28 volumes manuscritos da Série de
Assuntos Diversos do Fundo CMSP/INTDM/PMSP sob a guarda do AHMWL;
 Atas das Sessões da Câmara Municipal de São Paulo. Prefeitura Municipal de São
Paulo. Publicação da Divisão do Arquivo Histórico – Departamento de Cultura (Divisão do
Arquivo Histórico), abrangendo os anos de 1850-1888. Por ser uma narrativa contínua sobre a
administração da cidade, foi primordial a leitura das Atas. Alguns agentes que aparecem
nelas, como vereadores, fiscais, empresários, aparecem também nos pedidos. Além disso, foi
possível acompanhar as discussões sobre o rossio e a Lei de Terras, datas onerosas ou
gratuitas, projetos de posturas regulando a prática das doações, o que nos levou a formular
que, se existiam tais projetos é porque a prática precisava ser regulamentada;
 Registro Geral da Câmara da Cidade de São Paulo. Publicação official do Archivo
Municipal de S. Paulo. Vols. XX, XXI, XXII, XXXIII, XXIV e XXV. Abrangendo os anos de
1830-1852, contêm os ofícios recebidos e enviados à Província sobre as questões de terra e
medição. Auxiliou-nos a traçar os argumentos dos vereadores sobre o rossio e os preparativos
para medir as terras devolutas;
 Concessão de Datas de Terra e Compromisso. Esta série documental reúne algumas
Cartas de Datas que foram efetivamente passadas, os documentos oficiais. A intenção era
tornar o banco de dados mais confiável, verificando as cartas emitidas – o documento
comprobatório – após o processo de pedido. Entretanto, essa documentação contém diversos
ofícios e reclamações, concessões mesmo só no primeiro livro, em listas de difícil leitura. No
total de 12 volumes, foram consultados seis: 1827-1862; 1865-1876; 1878-1881; 1880-1881;
1882-1892 e 1880-1882.
 Papéis Avulsos: foram consultados os volumes referentes aos pedidos de alinhamento
e construção do período entre 1870-1873; 1874-1876; 1872-1872. A intenção foi verificar se
as áreas doadas através das cartas tiveram construções ou pedidos de construções e o que foi
construído;
33

 Terrenos e terras municipais e particulares 1833-1902. Contêm diversos abaixo-


assinados sobre fechamento de terras e, principalmente, fontes de água e estradas;
 Posturas Municipais: Collecção das posturas da Câmara Municipal da Imperial
Cidade de São Paulo (1830-1863); Collecção de Posturas, Resoluções da Assembleia
Provincial, Editais e Regulamentos da Câmara Municipal de São Paulo que se achão em
vigor; Código de Posturas da Câmara Municipal da Imperial Cidade de São Paulo (1875);
 Registro de Terras de São Paulo. Dispositivo da Lei de Terras, o Registro Paroquial
surgiu em 1854, com o Regulamento para execução da Lei nº 601 de 18 de Setembro de 1850.
No regulamento, uma Repartição Geral das Terras Públicas foi criada com o dever de cumprir
o artigo nº 21 da Lei de Terras que determinava a medição, divisão, descrição, conservação e
fiscalização de vendas das terras devolutas. Para o registro das terras possuídas, fossem por
qualquer tipo de registro ou por posse, o declarante tinha um prazo para declarar, por escrito,
ao vigário da freguesia. Logo, o registro ficou conhecido como Registro Paroquial e, neste
trabalho, nos auxilia a separar área de incidência da Décima Urbana, rossio e termo. Foram
consultados os registros da Freguesia de Santa Ifigênia e Sé.
 Mapas: utilizamos mapas para traçar, em forma de mancha e através de comparações,
as doações. Os mapas serviram para acompanharmos o processo de ocupações no entorno das
saídas da cidade e delimitarmos o alcance do rossio.

1. Planta Geral da Capital de São Paulo (1897). Organizada sob a direção do Dr.
Gomes Cardim, Intendente de Obras. Foi utilizado como mapa-base para
espacializarmos a mancha de doações desde 1851.

2. Mappa da Cidade de São Paulo e seus Subúrbios (1844-1847). Engenheiro Ccivil


C. A. Bresser. Utilizado como comparativo de ocupação entre os períodos de 1850-
1880. É a 1ª planta cadastral da cidade, com a demarcação lote a lote, o que nos dá uma
boa visão de conjunto do que estava arruado no período.

3. Planta da Cidade de São Paulo, levantada pela Companhia Cantareira de Esgotos


em 1881. Utilizado para fazer comparações entre 1850-1880. Apesar de ser um mapa
particular para uso da Companhia Cantareira e de trazer possíveis lacunas
principalmente na região do Brás-Mooca, trata-se de uma planta cadastral que registra
lote a lote, sendo possível acompanhar as transformações na ocupação do rossio e o
tamanho dos lotes ocupados.
34

4. São Paulo, chácaras e sítios e fazendas ao redor do Centro, organizado pelo


Engenheiro Gastão Cesar Bierrembach de Lima, para a exposição do IV Centenário de
São Paulo, em 1954. Apesar das possíveis omissões, é o melhor mapa que temos sobre
as chácaras do entorno do perímetro urbano, sendo utilizado como sobreposição e
comparativo das localidades ocupadas.

Com base nas fontes primárias e secundárias buscamos responder às hipóteses e


objetivos da pesquisa. Um banco de dados foi elaborado com as informações contidas nas
cartas, inicialmente abrangendo a documentação impressa (1850-1864) e posteriormente a
documentação manuscrita (1865-1890); foi separado por ano, mês, dia, sexo, requerente,
profissão, argumento, localização, parecer e observações variadas. Preferimos dividir as
análises por décadas, apesar de termos reunido e comparado todas as informações.

Com essas separações em campos específicos procuramos responder:

a) Em quais períodos houve intensa distribuição de lotes;


b) Se os pedidos coincidem com a distribuição, ou seja, qual o tempo decorrido entre
pedido e deferimento; isso nos leva a investigar a metodologia e procedimentos técnicos por
trás das concessões: o trabalho de medição dos lotes, o arruamento e o papel dos fiscais da
cidade em verificar se o terreno estava sendo efetivamente edificado;
c) Quem são os requerentes, o que faziam e suas ligações com a Câmara Municipal e
profissões;
d) A incidência do gênero feminino, tanto nos pedidos quanto na distribuição das
datas;
e) O argumento, ou seja, por que motivo o requerente pediu o terreno. Nos períodos
mais intensos de distribuição as cartas possuíam um rigor formal menor, dificultando o
preenchimento desse campo;
f) A localização, região pretendida e região doada. Esse é um campo essencial e
através dele podemos traçar um panorama da ocupação dos espaços em São Paulo e os
possíveis motivos para isso;
g) O campo “Parecer” responde se o terreno foi doado ou não;
h) “Observações” é o campo de cruzamento com outras séries documentais,
informações sobre os requerentes e sobre as datas em que foram passadas as Cartas de Datas;
contém também os tamanhos dos terrenos e valores do imposto pago. Através dessas
informações, podemos tirar uma média do tamanho dos terrenos concedidos e obter
35

informações, tais como se o terreno foi posteriormente vendido ou consta do Registro


Paroquial.

O banco de dados foi o instrumento mais rico da análise porque possibilitou a resposta
a inúmeras perguntas sobre o processo de concessão do rossio da cidade. Por outro lado, cabe
a advertência de que, por ser uma documentação oficial seriada, por ter esse caráter duplo
(parte publicada e parte manuscrita), pelo volume crescente a partir de 1880 e pela pretensão
da pesquisadora em tentar listar todos os requerentes, o banco de dados não está completo,
assim como a pesquisa, que abre uma série de questões. Com isso, quero dizer que, por vezes,
não foi possível saber se o requerente conseguiu o lote; temos o lote distribuído, mas não
localizamos a carta do pedido; lista de localidades doadas com nomes ininteligíveis; nomes
duplicados para o mesmo pedido; ausência de localidade requerida ou deferida. Essa série de
problemas no tratamento do material precisa ser explicitada: tivemos a pretensão de saber
com exatidão o que foi doado e ocupado e, no decorrer do processo, nos demos conta de que
tal exatidão é impossível de ser conseguida e de que as falhas existem. Ainda assim, o esforço
de pesquisa produziu respostas interessantes para as perguntas suscitadas e questões abertas
para pesquisas futuras.

Para realizar os objetivos propostos os seguintes procedimentos foram adotados:

a) Criação e alimentação de um banco de dados com o máximo das informações


contidas nas Cartas de Datas. Conforme já foi explicado, as cartas foram lidas e as
informações alimentaram um banco de dados fornecendo inúmeras possibilidades de
cruzamento. A partir dele é possível responder quais áreas foram pedidas e deferidas em
determinado ano; os argumentos usados; a profissão dos requerentes; os tamanhos dos lotes
etc. O modelo de preenchimento foi feito para permitir o acréscimo de informações sempre
que possível e, conforme as outras séries documentais eram lidas, ele ganhou conteúdo.

b) Leitura das Atas da Câmara do período analisado. Conforme dito anteriormente,


ler as atas nos ajudou a compor o cenário e preencher detalhes sobre os procedimentos para
concessão dos lotes de terra – as discussões sobre quais áreas seriam doadas e por que, os
argumentos de falta de prédios e casas na cidade, a expectativa pela chegada da ferrovia e a
previsão de engrandecimento da cidade, como fica explícito nesse trecho:

[...] e como passa por certo q. brevemente devem comessar os trabalhos da


estrada de ferro d‟esta Província, urge ceder ao povo os terrenos que reclama
36

para edificações, afim de q. a afluência repentina de grande numero de


indivíduos não se torne por demais vexatória36.

Apesar de as Cartas de Datas serem o foco da nossa pesquisa, a leitura das Atas foi de
suma importância para compor o cenário de argumentos e formas com que os vereadores
conseguiram distribuir terrenos urbanos de forma gratuita (até 1875) e suas posturas quanto
aos lugares a serem distribuídos, valores de impostos a serem pagos e todas as discussões
sobre o rossio.

c) Leitura da legislação reguladora da estrutura fundiária e dos ofícios trocados entre


a Câmara Municipal e o governo da Província. Nesse caso, o problema era outro: quais
regulamentações orientavam as ações dos vereadores? Foi preciso estudar a Lei de Terras,
entendê-la no contexto urbano e verificar o que dizia sobre o rossio.

d) Mapeamento das regiões doadas. Através de sistematização do banco de dados,


foi possível levantar as regiões doadas e colocar em um mapa-base para visualizar a mancha
de ocupação. Os números indicam que, acompanhando a trilha aberta pelo Coronel Toledo de
Arouche Rendon no arruamento do que seria chamado de Cidade Nova em 1808, as terras
próximas ao Arouche (chácara do Coronel) e Tanque do Arouche e Campo Redondo37 foram
as mais requeridas e doadas durante os anos 1850. Logo em seguida, a vertente Norte, em
direção ao aterrado da Ponte Grande de Santana, era uma das mais pedidas. As regiões da
Várzea do Brás, Mooca foram ocupadas durante a década de 1870. A partir de 1870, a
vertente Sul, Morro do Caaguaçu (futuro espigão da Av. Paulista) até Estrada de Vergueiro
foi apropriada. Em todos os anos as áreas pedidas coincidiram com os principais caminhos da
cidade38.

Com base na documentação primária e em constante diálogo com a historiografia,


procuramos responder às hipóteses e objetivos da pesquisa cruzando a documentação oficial
com as pesquisas já efetuadas sobre o tema: as questões sobre a produção de espaço em pleno
estabelecimento da Lei de Terras; a Câmara Municipal e os vereadores como responsáveis
pela expansão e produção do espaço; os usos possíveis desses entornos; as questões sobre os
36
25 de Novembro de 1858, ofício enviado ao Presidente da Província, CARTAS DE DATAS DE TERRA,
1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de Cultura, 1939, vol. XIX,
1860,CCLXXV, p. 146-161.
37
Área que dará origem aos bairros de Campos Elíseos, Santa Cecília e Barra Funda.
38
Essa sistematização e algumas inferências serão tema do capítulo 2 da dissertação.
37

limites entre áreas administradas pela Câmara e terras devolutas do próprio provincial; os
valores praticados nessas transações; os tamanhos desses lotes; a valorização de determinadas
áreas em detrimento de outras; as expectativas com a linha férrea Santos-Jundiaí.

Nessa direção, nossa pesquisa segue uma linha aberta pioneiramente por Raquel
Glezer39 e Murillo Marx sobre as questões fundiárias no espaço urbano. Os estudos voltados
para o mercado imobiliário tomaram impulso primeiramente no Rio de Janeiro através de
Fania Fridman40 e Nireu Cavalcanti analisando os agentes de produção do espaço carioca
desde os princípios da colonização, em uma verdadeira pesquisa arqueológica sobre a
ocupação e os agentes produtores de espaço na cidade. Em São Paulo, Beatriz Bueno41
procurou desvendar a tessitura da cidade seguindo a trilha aberta pelos cariocas e por Raquel
Glezer, através da análise da Décima Urbana de 180942, documentação rica em detalhes sobre
imóveis, valores e proprietários dos prédios dentro do perímetro arruado definido para a
incidência do imposto. Seus estudos demonstram a existência de um importante mercado
rentista no período colonial. Apesar de existir inúmeras diferenças quando falamos em
mercado imobiliário no início e no fim do século XIX, é impossível negar ou excluir a
importância dos imóveis em São Paulo, principalmente quanto a sua localidade, desde o início
do século XIX.

Falando especificamente de terras devolutas em todo o território nacional, Lígia


Osório da Silva43 procurou analisar a questão profundamente. O mérito de seu trabalho, além
de abranger o território nacional como um todo, é falar sobre as alianças políticas do Império
que possibilitaram a suspensão das sesmarias em 1822 e a gestação da Lei de Terras. A
preocupação de Lígia Osório é definir o que são terras devolutas e como foram apropriadas
por posseiros no auge da economia do café, fornecendo inclusive, porcentagens de terras

39
GLEZER, Raquel. Chão de terra e outros ensaios sobre São Paulo. São Paulo: Alameda, 2007. MARX,
Murillo. Cidade no Brasil: Terra de quem? São Paulo: EDUSP/Nobel, 1991.
40
CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção da cidade da invasão francesa
até a chegada da Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004; FRIDMAN, Fânia. Donos do Rio em nome do rei:
uma história fundiária da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Garamond, 1999.
41
BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Aspectos do mercado imobiliário em perspectiva histórica: São Paulo
(1809-1950). São Paulo: FAUUSP, 2008.
42
Imposto criado com a chegada da orte em 1809 recaía sobre um perímetro arruado da cidade. Falaremos mais
sobre esse imposto no capítulo 1.
43
SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 1996
38

ocupadas irregularmente. Apesar de ser precursora no estudo da lei, a autora tende a polarizar
a situação, colocando a lei como gestora do conflito de terras quando, conforme veremos a
seguir, outra linha de estudos sugere que os conflitos sobre apropriação territorial deram
origem à discussão e implantação da lei.

As Cartas de Datas de Terras da cidade de São Paulo já foram estudadas em ocasiões


diferentes e com propósitos distintos. Em 1991, por exemplo, Roberto Mônaco 44 deu início a
uma investigação minuciosa sobre a relação entre terras devolutas e crescimento da cidade. O
recorte cronológico abrange quatro séculos, desde as origens da colônia até 1930 (o período
posterior a 1930 foi retomado no doutorado). Os propósitos de Mônaco foram bem sucedidos,
uma vez que o intuito era entender e mapear o processo e a passagem da terra devoluta para a
propriedade privada através da valorização e criação de um mercado de terras no final do
século XIX. Para Mônaco, “terra devoluta” tem o significado de “terra inculta ou sem uso”,
tendo ela sido “concedida pela Câmara Municipal” ou não, sem diferenciar, portanto, terra
urbana de rural e sem preocupações em distinguir as terras da Província (essas, sim,
estritamente devolutas segundo a Lei de Terras) das terras municipais, a antiga Sesmaria da
Câmara, que será defendida pelos vereadores e terá tratamento diferenciado. No entanto,
Mônaco foi o primeiro a mensurar a extensão das terras doadas na formação da cidade de São
Paulo. Consultando o índice de Cartas de Datas existente no Arquivo Histórico Municipal45 e
no Arquivo Aguirra, ele constata a existência de dois períodos de intensa aquisição de terras
devolutas: 1860 e 1880. Apesar de detectar esse interessante período, ele não se questiona
sobre as possíveis causas internas desse crescimento de apropriação territorial. Entretanto,
seus trabalhos possuem o mérito de serem os primeiros a tentar espacializar o crescimento da
cidade através da apropriação privada de suas terras públicas.

É necessário praticamente uma década para outra pesquisadora retomar o tema, sob
outro ângulo. Embora o tema norteador da tese de Simoni46 seja o arruamento de terras, ela
desenvolve uma pesquisa de suma importância para o entendimento da formação territorial
44
MÔNACO, Roberto. As terras devolutas e o crescimento da cidade de São Paulo: 1554 a 1930. São Paulo,
1991. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
Universidade de São Paulo.
45
Índice que, apesar de ser confiável para o período colonial, é falho para o período posterior a 1820.
46
SIMONI, Lucia Noêmia. O arruamento de terras e o processo de formação do espaço urbano no município de
São Paulo: 1840-1930. São Paulo, 2002. Tese (Doutorado em Estruturas Ambientais Urbanas) – Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo.
39

em São Paulo. Seu objetivo era entender a ocupação e o parcelamento do solo urbano através
dos arruamentos, particulares ou públicos, aprovados ou não pela Câmara. Para estudar os
arruamentos, Simoni estudou as formações e transformações urbanas e, principalmente, o
ordenamento jurídico da propriedade de terras. Ela discorre sobre a legislação, posse,
usurpação e a formação da cidade de São Paulo utilizando como fontes as Cartas de Datas,
Autos de Aforamentos, Atas e Anais da Câmara, Registro Geral e a Legislação,
documentação produzida oficialmente, dando ênfase ao processo de apropriação territorial
principalmente após 1875, por considerar este um período de intenso crescimento urbano no
sentido populacional. Por várias vezes ela fala sobre as concessões de terra municipais, mas
esse não é o seu principal objeto de estudo. No entanto, seu trabalho é crucial para o
entendimento do ordenamento territorial que será adotado em São Paulo e das relações entre
particulares e a Câmara Municipal no tocante a arruamentos e parcelamento de terrenos no
período pós-Lei de Terras.

Os agentes do processo de apropriação e produção territorial aparecem com clareza


nos estudos de Mônica Silveira Brito47. Ela trata exatamente dos empresários relacionados à
expansão urbana e suas ligações com a Câmara Municipal no último quartel do século XIX,
analisando a questão da aquisição de terras, arruamentos e loteamentos em conjunto com a
crescente especulação imobiliária, contrapondo o conceito de métodos “arcaicos” e práticas
“modernizantes” na aquisição de terras. As práticas modernizantes seriam a valorização das
terras, a criação do crédito hipotecário e a legislação reguladora dessas modalidades. As
práticas arcaicas seriam o descaso da municipalidade com o espaço público e as estruturas de
manutenção das relações pessoais em detrimento da aplicação estrita das leis. Nesse estudo,
veremos como o “descaso” com o espaço público pode ter tido um papel fundamental na
expansão da cidade, tal como revelado por Brito. Desde o arruamento da Cidade Nova
efetuado pelo Coronel Arouche de Toledo Rendon em suas terras caídas em comisso 1808, o
processo de produção de espaços na cidade entrou em ação, ganhando contornos precisos e
velocidade a partir da proposta de instalação da ferrovia Santos-Jundiaí.

47
BRITO, Mônica Silveira. A participação da iniciativa privada na produção do espaço urbano: São Paulo,
1890-1911. São Paulo, 2000. Dissertação (Mestrado em Geografia Humana) – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo; BRITO, Mônica Silveira. Modernização e tradição: urbanização,
propriedade da terra e crédito hipotecário em São Paulo na segunda metade do século XIX. São Paulo, 2006.
Tese (Doutorado em Geografia Humana), FFLCH-USP.
40

Analisando especificamente a Colônia de assentamento de imigrantes da Glória,


Walter Pires48 desvenda um processo de concentração fundiária entre 1875 e 1893. Em 1872 é
criada a Divisão de Imigração e, logo em seguida, os núcleos coloniais de Santana e da
Glória, seguindo o processo da substituição da mão de obra escrava pela do imigrante que
estava em andamento. Por outro lado, as datas de terra, de gratuitas passam a ser onerosas em
São Paulo, ou seja, tem seu valor estabelecido pelas Posturas Municipais de 1875, provável
reflexo da proximidade das colônias e em alinhamento com as diretrizes da Assembleia
Provincial, conforme veremos no Capítulo 2.

Como a Lei de Terras influenciou a distribuição e o ordenamento da cidade é a


pergunta que esta pesquisa procura responder, mais especificamente nos limites do entorno
arruado. Nossa definição de terra devoluta é, portanto, um pouco diferente das pesquisas
anteriores, ou melhor, fazemos distinção entre terras devolutas e terras do rossio. Os estudos
de Raquel Glezer49 e Murilo Marx já tinham estabelecido que a terra urbana recebia
tratamento diferenciado desde o princípio da colonização e, apesar de ser uma lei feita para o
rural, em 1854, com o Regulamento para execução da Lei de Terras50 e o Aviso Circular de
12 de outubro51, ela incidiu sobre o urbano52, regularizando o processo de compra, venda e
demarcação para as terras dos rossios das diversas cidades.

48
PIRES, Walter. Configuração territorial, urbanização e patrimônio: Colônia da Glória (1876-1904), São
Paulo, 2003. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
Universidade de São Paulo.
49
Especificamente sobre o período colonial: GLEZER, Raquel. Chão de terra e outros ensaios sobre São Paulo.
São Paulo: Alameda, 2007; artigo sobre a incidência da Lei de Terras no urbano em São Paulo: GLEZER,
Raquel. “Persistências do Antigo Regime na legislação sobre a propriedade territorial urbana no Brasil: o caso da
cidade de São Paulo (1850-1916)”. In: Revista Complutense de História de América, v. 33, p. 197-215, Madrid,
2007.
50
Regulamento para a execução da Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850. COLLECÇÃO DAS LEIS DO
IMPÉRIO DO BRASIL, 1808-1889. Rio de Janeiro. Imprensa Nacional
51
Aviso Circular de 12 de outubro de 1854 respondendo às questões da Província do Amazonas sobre como agir
com referência às terras do rossio ou aforadas. Voltaremos a falar sobre esse aviso circular no Capítulo 1.
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de S.Paulo;
Departamento de Cultura, 1914-1951 v. 43, 1857, p. 214-215.
52
É perigoso falar em urbano para esse período. Os usos da cidade eram mistos, a especialização em zonas
específicas começa a se aprofundar a partir de 1880; ver em ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei – legislação,
política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo: FAPESP/Studio Nobel, 1997. Para esse estudo,
preferimos utilizar a expressão “áreas arruadas” para diferenciar as regiões que consideramos ocupadas, das
“áreas não arruadas”, de uso exclusivamente agrícola.
41

ESTRUTURA

Para responder a essas questões a dissertação está estruturada em três capítulos. No


primeiro capítulo, denominado A questão fundiária: a gênese da Lei de Terras e suas
implicações na cidade de São Paulo, analisaremos as discussões e as práticas sobre a lei que
procurava regulamentar o acesso às terras. Pesquisas recentes comprovam que o posseiro53
sempre foi parte essencial do projeto de ocupação ibérico. Para compreender a Lei de Terras,
é preciso entender como a instituição das sesmarias foi implantada na colônia e, por isso, o
primeiro capítulo procura estudar os mecanismos de apropriação de terras, desde sua origem
até a suspensão da concessão de sesmarias em 1822 e o interlúdio até a aplicação da Lei de
Terras. Os autores que norteiam esse capítulo são: Márcia Menendes Motta, que procurou
contextualizar as disputas por terra no Brasil, remetendo ao confronto entre os homens livre
pobres e os grandes latifundiários desde antes da regulamentação no século XIX; por outro
lado, Maria Verônica Secreto, que aponta a oposição existente, durante o Império, entre a
questão do uso produtivo do solo e largas porções de terra não cultivadas por sesmeiros,
estabelecendo a posição dos posseiros como auxiliares na apropriação territorial no Brasil, e
claro, na concentração dessas terras nas mãos de uma minoria privilegiada. Os estudos aqui
relacionados explicariam a tensão permanente e a luta pelo direito à terra durante o período
Imperial54.

O segundo capítulo, Sistema e Mecanismos de Concessão por Cartas de Datas: teoria


e prática, procura traçar um perfil das concessões através das leituras das Cartas de Datas, em
conjunto com as reuniões da Câmara. Tentamos cobrir todos os mecanismos pelos quais a
Câmara passou em quase 40 anos de concessões. Um ponto de interesse refere-se aos agentes
por trás destes pedidos: quem eram essas pessoas, como pediam e se tinham seus pedidos
aceitos ou recusados, e quais eram os motivos para isso. Diferentemente das pesquisas

53
SECRETO, Maria Verônica. Legislação sobre terras no Brasil do oitocentos: definindo a propriedade. In:
Raízes, Campina Grande, v. 26, n. 1 e 2, p. 10-20, jan./dez. 2007.
54
A tensão é perceber como ora esses pequenos proprietários se alinham com um grande senhor e ora defendem
suas terras. Por um longo tempo, os estudos históricos opuseram grandes fazendeiros aos outros, minimizando o
papel dos homens “comuns” na história. Esses estudos resgatam a história desses homens livres, trazendo à tona
questionamentos sobre as posições políticas, interpretação das leis e interesses não apenas dos grandes
fazendeiros. Tanto Maria Verônica Secreto quanto Márcia Menendes Motta seguem uma ótica thompsoniana,
como as próprias autoras afirmam, referindo-se aos estudos do historiador inglês E. P. Thompson, de concepção
marxista, mas que aborda as questões econômicas por um viés de “construção de experiência histórica”, ou seja,
negociações e aprendizado, com enfoque sobre os homens comuns, principalmente trabalhadores.
42

anteriores, procuramos analisar não apenas o crescimento da cidade através das concessões,
mas principalmente entender como era o processo e as pessoas envolvidas nas duas pontas
desse sistema: requerentes e oficiais da Câmara.

Entretanto, a política de concessão de datas estava em estreito alinhamento com a


política imperial e, para contextualizar esse período, utilizamos os estudos de Miriam
Dolhnikoff e Mônica Dantas55. As pesquisadoras em questão analisam a política imperial
como um jogo de interesses entre centro e periferia, pensados mais como instâncias de poder
em busca do equilíbrio do que como oposição constante. Nessa situação, as autoras optam por
uma análise menos impositiva da política, pensada nesse caso como negociação.

No terceiro capítulo, intitulado Produção do espaço através das concessões


municipais: lugares apropriados, sistematizamos as informações colhidas nos documentos,
espacializando em mapas e traçando conjecturas sobre o processo de distribuição das datas em
diferentes partes da cidade, em estreito alinhamento com as diferentes redes de sociabilidade,
configurando espaços antes vazios e utilizados em comum. Ao final do processo, a cidade
estará nitidamente separada por zonas de ocupação: o centro, antigo triângulo delimitado
pelas ruas São Bento, Direita e XV de Novembro, com funções estritamente comerciais; o
oeste e o sul, Campos Elíseos, Santa Cecília, Pacaembu, Vila Mariana, como região de bairros
nobres; o leste e o norte, áreas além da várzea, como região de ocupação operária.

55
Ambas possuem uma vasta pesquisa sobre os mecanismos da política Imperial. Pertinente a essa pesquisa
destacamos: DOLHNIKOFF, M. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil, São Paulo: Globo, 2005.
43

CAPÍTULO 1

A QUESTÃO FUNDIÁRIA URBANA: A GÊNESE DA LEI DE TERRAS E SUAS


IMPLICAÇÕES NA CIDADE DE SÃO PAULO

A cidade não dissocia: ao contrário, faz convergirem, num mesmo tempo, os fragmentos
de espaço e os hábitos vindos de diversos momentos do passado.
(LEPETIT, 2001, p.141)

A lei nº 601 de 18 de setembro de 1850 tornava a compra e venda a única forma


possível de aquisição de terras em todo o Império. Considerada por muitos um marco divisor
da propriedade fundiária, a lei viria regulamentar a propriedade privada e substituir o emprego
da renda capitalizada. Antes, o capital estava atrelado ao escravo; a partir da lei, passível de
ser empregado na propriedade fundiária e criar bases hipotecárias:

[...] o principal capital do fazendeiro estava investido na pessoa do escravo,


imobilizado como renda capitalizada, isto é, tributo antecipado ao traficante
de negros com base numa probabilidade de ganho futuro. O fazendeiro
comprava a capacidade de o escravo criar riqueza. De fato, a terra sem
trabalhadores nada representava em termos econômicos; enquanto isso,
independentemente da terra, o trabalhador era um bem precioso56.

As questões que a Lei de Terras suscita, entretanto, estão longe de ser um consenso 57.
Elaborada para subsidiar a imigração, a lei teve um caráter duplo: formar um fundo para
colonização e normatizar o acesso às terras. Apesar de, num primeiro momento, praticamente
nada regulamentar quanto às terras urbanas, a lei será passível de interpretação por parte das
autoridades, no que diz respeito às cidades, a partir de 1854. As questões que este capítulo
procura responder versam sobre a incidência e interpretação da lei, especificamente na cidade

56
MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas Ltda. 1979,
p. 26.
57
O estabelecimento da lei não significa que antes dela não houvesse transações de compra e venda. Consultar
SUZUKI, J. C. “A gênese da moderna cidade de São Paulo”. Apresentação de Trabalho/Comunicação.
Encontros Geográficos da América Latina, México, 2004.
44

de São Paulo. Para isso, analisaremos os antecedentes da Lei de Terras e os diversos


interesses que ela procurou conciliar quando da sua criação; em seguida, veremos a aplicação
da lei no urbano, a partir do regulamento de 1854. Para entender como o rossio foi apropriado
será necessário diferenciar três regiões administrativas – o perímetro urbano, o termo e o
rossio – em seus limites teóricos e práticos, saber quais terras de uso comum foram de
importância estratégica para os vereadores e, por fim, analisar os motivos da passagem das
datas gratuitas para onerosas, no momento do estabelecimento de colônias de imigrantes nos
arredores da cidade.
45

1.1. A LEI DE TERRAS E OS PROJETOS DE APROPRIAÇÃO TERRITORIAL DURANTE O IMPÉRIO

Decorrem 21 anos entre a suspensão das doações de sesmarias na colônia até a


elaboração do primeiro projeto da Lei de Terras apresentado em 1843. Esse período é
considerado o auge do apossamento58 de terras no Brasil, o marco simbólico da apropriação
territorial descontrolada. No entanto, a questão que intriga inicialmente é justamente por que a
instituição das sesmarias foi suspensa em 1822. Implantada em Portugal com o intuito de
incrementar a agricultura durante a crise do século XIV59, a doação da sesmaria era um
privilégio condicional, ou seja, era necessário cumprir determinadas obrigações para poder
usufruir o terreno – condições previamente determinadas para o terreno não voltar para o
domínio original, caindo no que era chamado de comisso, a quebra do contrato. Usualmente,
as condições eram: cultivar e/ou edificar em um período predeterminado. Entretanto, a
instituição transplantada para a colônia, em vista da grandiosidade territorial, passou por
problemas e transformações. Um desses problemas era que, em território peninsular, as
sesmarias, embora obrigassem ao cultivo, não se referiam a terras virgens e despovoadas,
como no caso da colônia. Era preciso colonizar as novas terras: “[...] a questão não se resumia
à necessidade de aproveitamento das terras, mas implicava fundamentalmente ocupar e
explorar estas terras, dominá-las enquanto área colonial.” 60

A posse produtiva da sesmaria criava novas categorias sociais, como os arrendatários,


e a sublocação de parcelas de terras para pequenos lavradores. Além disso, existia a prática do
apossamento que, se por um lado auxiliava a expansão, por outro, dificultava a fiscalização
por parte da Coroa do cumprimento da exigência do cultivo e da demarcação das terras
(MOTTA, 1998). Longe da dualidade aparente, existiam complexas camadas em conflito pela
terra.

Juridicamente só o sesmeiro poderia comprovar sua posse produtiva com a Carta de


Sesmaria. Essa carta assegurava o pleno domínio produtivo das terras e expressava o controle
da coroa portuguesa sobre o território ocupado. Embora a Carta de Sesmaria regulamentasse a

58
SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campinas: Editora da Unicamp,
1996.
59
MOTTA, Márcia Maria Menendes. Direito à terra no Brasil – A gestação do conflito 1795-1824. São Paulo:
Editora Alameda, 2009.
60
MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder – Conflito e direito à terra no Brasil do século
XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro/Vício de Leitura, 1998, p. 152.
46

questão, era prática comum os sesmeiros não retirá-la, por causa dos ônus do processo. Logo,
sesmeiros e posseiros agiam através de irregularidades e muitas vezes em conluio, apesar de
aparecerem geralmente em oposição: o pequeno posseiro auxiliava o sesmeiro a expandir seus
terrenos e, em muitos casos, a figura do sesmeiro-posseiro, ou seja, o sesmeiro aumentava
suas terras através do apossamento.

O apossamento era reconhecido como costume desde, pelo menos, 1769, com o
estabelecimento da Lei da Boa Razão pelo marquês de Pombal. O reconhecimento da posse
como costume servia para cercear o poder dos sesmeiros (MOTTA, 1998). Logo, podemos
entender que a suspensão da instituição das sesmarias em 1822, atendendo a pedidos de
posseiros do Nordeste (MOTTA, 1998), representava um rompimento com o sistema de
controle da Coroa portuguesa. Revogado o “privilégio condicional” em 182261, as sesmarias
viraram sinônimo de largas porções de terras incultas, em oposição ao posseiro, elemento
“nacional”, auxiliar da expansão, que beneficiava o território, cultivando-o. O entendimento,
por parte dos posseiros era de que a revogação das sesmarias não se aplicava à posse62.
Estavam formados os grupos que se oporiam em todas as discussões posteriores sobre a Lei
de Terras: sesmeiros e posseiros. Um olhar superficial diria que são opostos, mas a prática de
ambos era complementar e se sobrepunha, em diversas ocasiões.

A Lei de Terras nunca foi proposta como uma reforma agrária, pois, em todos os
casos, a ação da lei era retroativa, ou seja, regularizava posses e sesmarias passadas, diferindo
em alguns pontos apenas sobre o tamanho e o tempo da posse a regularizar e, claro, sobre o
valor dos impostos pagos nesses casos. Uma lei agrária já era pensada desde 182163, antes da
suspensão das sesmarias, o que demonstra que os problemas de ocupação territorial eram
anteriores à lei.

O comprometimento da lei com o projeto de imigração do Império e a mudança na


estrutura da mão de obra diante da expectativa da abolição do tráfico negreiro é posterior,

61
“O fim do sistema de sesmaria consagrou, na prática, a importância social da figura do posseiro”. MOTTA,
1998, p. 161.
62
A base para essa análise foi: SECRETO, Maria Verônica. “Legislação sobre terras no Brasil do oitocentos:
definindo a propriedade”. In: Raízes, Campina Grande, v. 26, n. 1 e 2, p. 10-20, jan./dez. 2007.
63
José Bonifácio de Andrada e Silva, quando da Convocação dos representantes brasileiros à Corte Portuguesa,
propôs uma lei que regulamentasse o acesso às terras; em 1828 foi a vez do Padre Diogo Antonio Feijó. Em
ambos os casos, o cultivo era essencial para manter as terras; diferiam quanto ao apossamento e ao acesso de
quais camadas aos bens “nacionais”. Para um estudo mais detalhado de ambos, consultar MOTTA, 1998,
capítulo IV.
47

entretanto, torna-se mais forte do que suas funções de regulamentar o acesso às terras. Não é à
toa que a lei falará basicamente sobre terras rurais e devolutas, organizando sua manutenção e
venda, porque esse é o foco da questão. Além disso, o acesso às terras teria que ser limitado
e/ou no mínimo dificultado, complementando o processo de fixação do colono à terra antes de
sua emancipação.

Em 184364, uma proposta foi apresentada por Bernardo Pereira de Vasconcelos e José
Cesário de Miranda Ribeiro. Influenciados pelas ideias de Wakefield65 para a Austrália, a
intenção era criar um mercado de terras para que o colono que aqui se estabelecesse não se
tornasse imediatamente proprietário, vendendo seu trabalho por um período antes de poder
adquirir um terreno por conta própria. Embora sob um gabinete inteiramente conservador e
centralizador, o projeto foi motivo de muitas discussões e modificações ao longo do tempo.
Em qual ponto do projeto eles discordavam66? Praticamente todos se recusavam a pagar os
impostos propostos para o estabelecimento de colônias. Concordavam com o estabelecimento
delas, mas quanto a arcar com o ônus era um verdadeiro „jogo de empurra‟, como afirma
Miriam Dolhnikoff:

[...] cada uma das instâncias de governo procurava transferir para a outra as
despesas e concentrar em suas mãos as receitas, além de empenhar-se em
ampliar os objetos sobre os quais tinha competência de decisão.67

64
Apesar de ter sido pensada nos anos 1820, o processo político do Império, com a abdicação, e a regência, a
agitação social e as disputas: “trouxeram obstáculos a uma política relacionada à questão da distribuição de
terras no país”. MOTTA, 1998, p. 171.
65
A colonização sistemática de Wakefield parte do pressuposto que é preciso estipular um preço suficiente para
as terras como forma de impedir que os trabalhadores se instalem por conta própria. Ademais, o resultado da
venda de terras deveria ser utilizado para importar colonos que, sem condições de adquirir uma parcela de terra,
tornar-se-iam trabalhadores assalariados. Uma análise mais recente acerca da contribuição do sistema de
Wakefield para a elaboração da Lei de Terras é o trabalho de Roberto Smith. Segundo o autor, “a inspiração que
serviu de eixo à elaboração do anteprojeto esteve amplamente baseada na contribuição de Wakefield”. No
entanto, o autor considera que a regularização das terras proposta pelo projeto não se “inscrevia como um projeto
de povoamento [como o pensado por Wakefield] e, sim, visando às transformações das relações de trabalho”
SMITH, Roberto. Propriedade da Terra & Transição. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 237-338.
66
José Murilo de Carvalho fala em um projeto radical de um órgão considerado conservador. O projeto previa
medição e titulação de posses mediante a possibilidade de virarem terras devolutas; ora, a lei de 1850 terá os
mesmos dispositivos, embora mais alargados, e ainda assim eles aparentemente não funcionarão.
67
DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo, 2005, p. 253.
48

Era preciso regularizar e vender as terras devolutas e era viável criar um fundo de
reserva para financiar a imigração, mas não era interessante pagar impostos a partir do
tamanho das suas terras e arcar com o ônus das mudanças desse sistema.

As discussões mostram que, mesmo sob o signo do partido conservador, outros


interesses estavam presentes nesse projeto. Além do valor do imposto, as questões discutidas
eram com relação ao tamanho das sesmarias e sua revalidação; as posses seriam consideradas
ou não retroativamente, e as medições e seus prazos68. No entanto, dois grupos69 se opunham
ferrenhamente nesses debates: sesmeiros e posseiros. Para acalmar o grupo de posseiros,
Rodrigues Torres introduziu emenda no projeto reconhecendo as posses do período entre
1822-1841. Ainda assim, a possibilidade da perda de terrenos caso não pagassem os impostos
fez as discussões morrerem. A maior oposição parecia vir dos representantes das províncias
do nordeste, claramente favoráveis aos sesmeiros, contra os representantes das províncias do
Sul, favoráveis aos posseiros70. Faz sentido essa divisão, se analisarmos o contexto econômico
do período: o avanço do café e do processo de ocupação territorial no Sudeste, a mudança de
eixo econômico desse processo, deslocavam o foco da região Nordeste.

A Lei de Terras foi aprovada exatamente quatorze dias após a Lei Eusébio de Queirós,
que suspendeu o tráfico de escravos no território brasileiro, o que significa que o problema
com a mão de obra impulsionou a aprovação da lei muito mais do que as diferenças entre
posseiros e sesmeiros e a égide do gabinete, fosse ele conservador ou não. A lei, sem dúvida,
foi uma vitória dos posseiros e do eixo Sudeste, em diferentes aspectos. Se o grupo do
Sudeste cafeeiro em expansão foi favorecido, uma vez que a posse poderia ser revalidada,
como diz a lei, não podemos entendê-la como letra morta e ineficiente; ao contrário, ela
favoreceu explicitamente um determinado grupo em ascensão naquele momento.

A Lei de Terras é usualmente considerada um marco na historiografia sobre a


urbanização. Segundo essa historiografia, a criação da lei possibilitou o afloramento de um
mercado de terras e, a partir de 1850, a terra seria considerada propriedade efetiva, e não

68
Essa parece ter sido realmente uma preocupação válida, pois para ter o domínio, título de propriedade, era
necessária a medição e os profissionais para realizar esse trabalho eram poucos.
69
Apesar das diferenças regionais e do grupo de cafeicultores do Rio de Janeiro parecia estar mais preocupados
com a questão da colonização do que o grupo opositor.
70
MOTTA, Márcia Maria Menendes. “Sesmeiros e Posseiros nas Malhas da Lei (Um estudo sobre os debates
parlamentares acerca do projeto de Lei de Terras – 1843/1850)”. In: Raízes, Campina Grande, v. 17, n. 18,
set./98.
49

domínio condicionado ao cultivo, como anteriormente. Por outro lado, a lei não teve força
para reordenar o território, ou seja, sua implantação racionalizadora não foi eficiente 71. Todos
concordam que a posse foi extremamente favorecida com a lei, e que o descontrole sobre as
terras devolutas do Império era grande, gerando inúmeros casos de apossamentos. Afirmam
que o descontrole sobre as terras públicas era culpa exclusiva dos posseiros, pessoas que se
aproveitavam das brechas da lei para amealhar extensas glebas de terra. No entanto, o embate
entre posseiros e sesmeiros revela duas formas de apropriação territorial anteriores à própria
lei em si, dois grupos com interesses específicos e com argumentos diferentes: o privilégio,
representado pela concessão produtiva de uma sesmaria; o uso produtivo, representado pelo
apossamento e aproveitamento da terra inculta e abandonada. Ambos os interesses estiveram
em conflito antes da suspensão das sesmarias e procuraram a resolução dos seus problemas
através dos meios legais dentro do sistema representativo então vigente.

Entretanto, como a Lei agiu nos núcleos urbanos, uma vez que sua incidência em 1850
parecia se limitar exclusivamente ao rural?

71
SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 1996; CARVALHO, José Murilo de. “Modernização frustrada: a política de terras no Império. Revista
Brasileira de História n. 1, ANPUH, São Paulo, 1981; BRITO, Mônica Silveira. Modernização e tradição:
urbanização, propriedade da terra e crédito hipotecário em São Paulo na segunda metade do século XIX. São
Paulo, 2006. Tese (Doutorado em Geografia Humana). FFLCH-USP. Os dois primeiros autores consideram a lei
letra morta, e a terceira, um processo de racionalização moderno em um ambiente não favorável a mudanças.
50

1.2. A LEI DE TERRAS E O URBANO: INCIDÊNCIAS

Para melhor compreendermos a situação da apropriação do rossio no momento da


implantação da Lei de Terras em São Paulo, dividimos a situação fundiária na província de
São Paulo em nove categorias72:

1. Terras utilizadas em edificações públicas, o que viria a ser chamado posteriormente de


“bens públicos”;
2. Terras dadas em sesmarias cujos beneficiários haviam satisfeito todas as condições
expressas na legislação, tendo adquirido, portanto, o domínio útil73.
3. Terras cedidas em sesmarias cujos beneficiários não atenderam as condições
implícitas na lei, tais como: aproveitamento, construção, cercamento ou pagamento de
foro. Terras irregulares, caídas em comisso.
4. Terras cedidas por Cartas de Datas e aproveitadas conforme as posturas vigentes
impunham;
5. Terras cedidas por Cartas de Datas e não aproveitadas, caídas em comisso;
6. Terras aforadas pela Câmara;
7. Terras de uso comum74, logradouros públicos;
8. Terras devolutas, nunca utilizadas, que voltaram a pertencer à Coroa Portuguesa
depois da independência do Estado Brasileiro;
9. Terras apossadas.

72
Utilizamos a divisão efetuada VARON, Conceição Maria Ferraz de. São Paulo: terra, propriedade e
descontrole. São Paulo, 2005. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo, Universidade de São Paulo, p. 60 e 61.
73
A palavra utilizada é domínio e domínio útil. Nesse sentido quem domina, “governa e manda como senhor e
soberano”, sendo esse um conceito distinto do conceito de propriedade. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário
Portuguez & Latino. Coimbra, 1712-1728. SILVA, Antonio de Moraes. Dicionário da língua portugueza.
Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813. http://www.ieb.usp.br/online/index.asp
74
Cabe uma ressalva quanto a utilização dos termos comum e comunal, relativos aos usos da terra. Os
dicionários consultados revelam que a palavra “comum” significa ao mesmo tempo comunicar e comungar,
comutação e comunhão, revelando dois sentidos interligados. Podemos aplicar ao uso das terras: passagem de
uso comum – que comunica – com outro lugar; uso em comum – comunhão – das fontes de água ou de outros
recursos naturais. Os dicionários não registram o sentido de “comunal”, portanto, optamos por utilizar a
expressão terras de uso comum, já que a expressão antecede o sentido de propriedade, presente quando da
utilização “comunal”, que aplica o sentido de pertença integral. As terras de uso comum não são uma
propriedade coletiva, elas são de usufruto por costumes anteriores e direito consuetudinário. BLUTEAU,
Raphael. Op. Cit; CAMPOS, Nazareno José de. Terras de uso comum no Brasil – um estudo de suas diferentes
formas. São Paulo, 2000. Tese (Doutorado em Geografia Humana). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo.
51

Se por um lado transações com terra já aconteciam antes da lei, por outro, esta pode
ser considerada um marco divisor na forma de entendimento da terra, ou seja, foi a
responsável por alterar a percepção acerca do que era ou não propriedade – claro, em conjunto
com outros fatores, como o crescimento econômico e o populacional, a demanda por moradias
na cidade, o preço dos aluguéis e a própria alteração de empregos de capitais introduzida por
ela.

A Lei de 1850 realmente não faz qualquer menção ao antigo Patrimônio do


Conselho75. Essa área remanescente entre o rural e o efetivamente construído e sujeito à
cobrança do imposto da décima urbana será empurrada para o rol das áreas de uso comum,
num primeiro momento. A lei regulamentará o uso das áreas de uso comum e é nessa
categoria que a área do rossio iria cair, caso os vereadores não discutissem o tempo todo com
o governo da província, separando nitidamente o antigo rossio desta categoria, provando que
poderiam usufruir dessa sesmaria de forma diferente das terras de uso comum.

Achamos pertinente precisar historicamente o significado das categorias


administrativas termo, rossio e perímetro urbano para entender os movimentos de
apropriação fundiária em São Paulo.

75
BRITO, Mônica Silveira. Modernização e tradição: urbanização, propriedade da terra e crédito hipotecário
em São Paulo na segunda metade do século XIX. São Paulo, 2006. Tese (Doutoramento em Geografia Humana),
FFLCH-USP.
52

1.2.1. ÁREAS ADMINISTRADAS PELA CÂMARA MUNICIPAL: TERMO, ROSSIO E PERÍMETRO

URBANO

Historicamente, a cidade de São Paulo, sendo uma vila transferida, não possuiu foral
de criação. Isso dificultou76 a definição das suas áreas administrativas, sobrepondo rossio e
termo e dificultando a delimitação de ambas.

O termo seria a área administrada ou sob jurisdição da Câmara, constando seis léguas
em todas as direções a partir da Sé, aproximadamente 36 quilômetros – em bases atuais,
configurando o que chamamos de município. Quando da elevação de uma povoação à
categoria de vila ou cidade atribuía-se a ela uma jurisdição territorial. A administração das
terras era exercida pelos oficiais do Conselho que, inicialmente, reunia funções legislativas,
judiciárias, militares e tributárias, sobretudo composto por cidadãos eleitos entre os “homens
bons”, os melhores da terra (SIMONI, 2002, p. 17-18). A partir de 182877 as Câmaras perdem
muito de seus direitos, principalmente tributários, judiciários e militares tornando-se
“corporações meramente administrativas78”. É nesse contexto que temos de inserir a Lei de
Terras. O termo era recortado por sesmarias e usualmente a Câmara aforava terras nessas
localidades (SIMONI, 2002, p. 19). No termo também poderiam haver concessões por parte
dos oficiais do Conselho.

Usualmente o Conselho recebia um patrimônio, que deve ser separado do termo: “[...]
para rocio desta ditta villa para casas e para gado e para tudo aquilo que o povo tiver
necessidade das quaes terras elles ditos officaes as darão de sua mão para o que lhe bem
parecer [...]”.79

As funções desse patrimônio podem ser separadas em três categorias:

76
GLEZER, Raquel. Chão de terra e outros ensaios sobre São Paulo. São Paulo: Alameda, 2007
77
“Lei de 1º de outubro de 1828. Da nova forma as Camaras Municipais, marca suas attribuições, e o processo
para sua eleição, e dos Juízes de Paz” In COLLECÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1808-1889. Rio
de Janeiro. Imprensa Nacional.
78
Artigo 24º da Lei de 1º de outubro de 1828. Idem.
79
“Registro de Autoamento da Carta da Camara do rocio desta Villa e demarcação”, datado de 1598 e copiado
nos livros em 1631 (Cartas de Datas, ano 1598, 31, 28 de fevereiro de 1598, p. 78-81), apud GLEZER, Raquel.
Chão de terra e outros ensaios sobre São Paulo. São Paulo: Alameda, 2007.
53

1) Distribuição aos moradores – a critério dos oficiais da Câmara – para edificação ou


lavoura e criação. No caso de São Paulo a distribuição era gratuita, mas poderia haver
pagamentos de foro e laudêmios (apud BRITTO, 2006, p. 56-57). A concessão dependia do
cumprimento de determinadas obrigações por parte do concessionário: edificar em
determinado prazo, por exemplo, ou estariam sujeitas a pena de comisso, ou seja, as terras
voltariam para a Câmara.

2) Campos de “uso comum” – o rossio serviria também como uma reserva de terras para
logradouros públicos e campos de uso comum para pastagem, retirada de lenha,
abastecimento de água, lavagem de roupa. Ainda era necessário ter essa reserva de terras para
construção de prédios públicos como matadouros, cemitérios, hospitais. Em São Paulo a
velocidade da ocupação dos espaços foi tamanha a partir de 1850 que, em pouco tempo, as
reclamações sobre ocupação desses espaços de uso comum eram enviadas aos oficiais da
Câmara. Era usual uma pessoa amealhar um pedaço do caminho para acrescentar à sua casa,
cercar a fonte de água causando grande comoção na população, fechar uma estrada usada
desde tempos imemoriais. Aliás, como veremos adiante, fechar uma passagem para fontes de
água sempre era motivo de comoção popular em uma cidade com problemas crônicos de
abastecimento.

3) Incremento das rendas municipais – através do recebimento de foros e laudêmios de


propriedades municipais. No caso de São Paulo, a Rua das Casinhas (atual Rua do Tesouro,
na Sé) os imóveis pertencentes a Câmara eram fonte de renda mediante o pagamento de
aluguéis, principalmente depois de 1828, quando as câmaras perdem a maior parte da
arrecadação de impostos. Aliás, depois desse novo regimento qualquer transação envolvendo
aforamento, venda ou troca de bens do Conselho deveria ser submetida para aprovação da
Província80.

Rossio seria, portanto, essa antiga Sesmaria do Conselho, doada para o usufruto
comum e sob controle da Câmara, passível de distribuição para a população ou aferimento de
rendas para os cofres municipais e, ao mesmo tempo, destinada à expansão territorial da vila.
Glezer também detectou as diferenças entre a doação de sesmarias e a doação do “’chão” ou

80
Regulamento Artigo 42: “Não poderão vender, aforar, ou trocar bens immoveis do Conselho sem autoridade
do Presidente da Província em Conselho, emquanto não se instalarem os Conselhos Geraes, e na Corte sem a do
Ministro do Império, exprimindo os motivos, e vantagens da alienação, aforamento ou troca, com a descrição
topographica, e avaliação por peritos dos bens que se pretende alienar, aforar ou trocar”. Lei de 1º de outubro de
1828 In COLLECÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1808-1889. Rio de Janeiro. Imprensa Nacional.
54

“data de terra”: tamanho e forma de concessão. Basicamente, a sesmaria seria concedida por
ato do rei ou via donatário, demandando capitais por parte do requerente e situação social e
podendo ser uma grande extensão de terra, geralmente medida em léguas; os “chãos” ou
“datas de terra” eram concedidos pela Câmara e em braças, referência de tamanho menor.

Segundo o “Regulamento para a concessão das Cartas de Datas, que serve de


aditamento ao Regimento interno” 81, contido nas posturas municipais de 1830, o tamanho da
concessão dentro do rossio era de, no máximo, 10 braças de frente, medida equivalente a 22
metros; já os fundos era o chamado “a meia quadra”, ou seja, metade da quadra ou até
encontrar o limite do terreno vizinho. É importante destacar que, como notou Simoni (2002),
o regulamento pressupunha a existência de uma rua, ou seja, do arruamento das terras. O
arruamento era condição primeira para as concessões:

E que os fundos do terreno só teria limites se abertas as ruas necessárias à


constituição de um quarteirão. Do contrário, o concessionário estava livre
para estender sua data de terras até que colidisse com direitos de vizinhos,
gerando conflitos82.

As posturas vigentes ou o regulamento não orientavam quanto à configuração do


espaço, ou seja, quais os critérios para ocupação desses espaços. Esses critérios ficaram a
cargo dos oficiais da Câmara e da valorização de determinados espaços da cidade em
detrimento de outros.

Glezer, estudando a legislação sobre terras no período colonial, verificou a mudança


de nomenclatura sofrida, com a área do termo se tornando difusa a ponto de praticamente
desaparecer das falas dos vereadores, sendo constantemente confundida com o rossio. As
duas áreas são fundidas sob uma única administração pelos vereadores, sendo critério de

81
“Registro Geral da Câmara da Cidade de S. Paulo, 1830-1831”. São Paulo. Publicação oficial do
Departamento de Cultura – Divisão de Documentação Histórica e social (secção Histórica), vol. XXI, século
XIX, Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais”, São Paulo, 1936, p. 347.
82
SIMONI, Lucia Noemia. O arruamento de terras e o processo de formação do espaço urbano no município de
São Paulo: 1840-1930. São Paulo, 2002. Tese (Doutorado em Estruturas Ambientais Urbanas) - Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, p. 26.
55

diferenciação apenas o tamanho do terreno concedido em cada uma: menor na área urbana e
maior nos entornos menos arruados.

Segundo o alvará de 27 de junho de 180883, que estabelecia a cobrança da Décima


Urbana, imposto de 10% sobre o valor de todos os prédios urbanos, a prerrogativa de
demarcar essas áreas recaía sobre a Câmara dos Vereadores. Reafirmado pela Lei de 27 de
agosto de 1830, o artigo 4º determinava: “As Camaras Municipaes marcarão nas cidades, e
villas, os limites, dentro dos quaes deve ter lugar o lançamento, e, outrossim, designarão os
lugares notáveis para esse fim, attendendo a sua população”. A região fora da incidência da
Décima estava livre de registro: “O fato de não serem obrigadas ao registro significava que
essas porções eram protegidas e estavam, ao menos temporariamente, livres do mercado de
terras”.84

Logo, devia-se separar a área de incidência da Décima Urbana do rossio, e este, do


termo. Dentro da área de incidência da Décima, os terrenos do próprio municipal só deveriam
ser aforados.

São, portanto, três instâncias administrativas diferentes: o termo, o rossio e os limites


do perímetro urbano para taxação da Décima correspondentes à área efetivamente arruada da
cidade. Como o arruamento era prerrogativa para a doação, supomos que as doações ocorriam
nos limites da área urbano-arruada da cidade. Com a Lei de Terras em 1850, outra
denominação desaparecerá ou será gradativamente substituída: Sesmaria do Conselho e
rossio85. Essa noção de rossio vai lentamente sendo substituída por áreas de uso comum e, em
muitos casos, confundida com os limites da Décima Urbana, ou reconfigurando esses limites.
Como Mônica Britto propôs, vamos denominar essa área entre o limite da parte arruada
(décima) e o termo de áreas remanescentes.

83
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_32/alvara_imposto.htm
84
GLEZER, 1992, p. 65.
85
Cabe ressaltar que essas denominações não desaparecem, assim como as demarcações, o que vai lentamente
sendo transformado é o sentido para o uso dessas áreas, que se inicialmente tinham propósitos múltiplos –
expansão, uso comum, rendimento – tornam-se, na fala dos vereadores para concessão gratuita, em área de uso
comum dos moradores da cidade.
56

Planta Geral da Capital de São Paulo (1897) – Organizada sob a direcção do Dr. Gomes Cardim, Intendente de
Obras” Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008.
http://www.arquivohistorico.sp.gov.br – consulta em 22/05/2011.

Figura 2 - Termo, Rossio e Perímetro urbano em 1897. Gomes Cardim.. Detalhe da planta de 1897, após
demarcação das terras devolutas e extinção do rossio. Na planta temos as definições físicas do município em
vermelho; o antigo rossio de meia légua em quadra em verde e o de uma légua em amarelo, “deslocado” para o
leste e oeste de forma visível. Nota-se a medida em quadra e não circular. Em hachurado, além da circunscrição
do rossio de meia légua em verde, o perímetro urbano, evidentemente maior em 1897 do que em 1850; observa-
se que ele ultrapassa a meia légua nas direções oeste e leste. A área entre o arruado e o perímetro definido para o
rossio seriam as “áreas remanescentes”, fora do registro da Décima, mas teoricamente dentro do Registro
Paroquial a partir de 1854. Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL.
57

O correto é afirmar que, dentro do termo está o rossio, e que esse envolve áreas
urbanas e compreende áreas rurais a ele envoltórias. Nesse sentido, podemos afirmar que a
Lei de Terras define como urbano a área de incidência da Décima e procura regulamentar as
áreas de uso comum ignorando propositalmente a antiga demarcação do rossio, ou melhor,
incorporando-o ao conceito de terras devolutas do próprio provincial até que os vereadores
provem o contrário. Esse aparente esquecimento da Lei de Terras quanto à Sesmaria do
Conselho pode ser explicado como a tentativa de racionalização e ruptura com o antigo
sistema próprio da lei, como conceituou Britto (2006), a ação modernizadora. Contribuiu
também o fato de ser uma lei estritamente vinculada à imigração, voltada, portanto, para as
áreas rurais passíveis de venda e capazes de subsidiar a vinda de imigrantes.

Figura 3 – Termo, Rossio e Perímetro Urbano com tipologias de uso das terras. Gomes Cardim.
Verificamos a simultaneidade de algumas práticas, como a de conceder Cartas de Datas no termo da cidade e a
existência de sesmarias em comisso, tanto no rossio quanto no termo. Por outro lado, as terras aforadas
aparecem quase que exclusivamente no perímetro arruado. Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4
(20): set./out.2008, AHMWL.
58

No sentido de provar que essas terras do rossio existiam e estavam sob sua jurisdição e
guarda, os vereadores enviaram ofícios acompanhados da própria carta de doação da Sesmaria
do Conselho assinada por Martim Afonso, reiteradamente ao governo da Província, negando
com veemência a existência de terras devolutas para venda e controle da Província dentro
dela, como podemos perceber por esse ofício de 1858:

Assim, pois, a Cama. Mal. tem deliberado para reservar pa. logradouro
publico d‟este município até a máxima extensão de hum quarto de legoa
quadrada, ou meia legoa em pirimtro de campos e nas segtes localides. e
direções:

Pela Estrada de Santo Amaro – na várzea e campos do mesmo nome.

Pelo caminho q. vai ter as vertentes do Ypiranga – nos campos do mesmo.

Pela estrada de Cutia – nos campos do alto do Cemitério e do Pirajuçara.

Pela estrada de Jundiahy – nos campos do alto do Anastácio.

Pela estrda. de Bragança – nos campos do alto de Santa Anna.

Pelo caminho da Conceição dos Guarulhos – nos campos do Guapira indo


pela estrada de Santa Anna.

Pela estrada da Penha – no alto do Tatuapé, e Maranhão.

Pela estrada da Mooca – nos campos e várzeas do mesmo nome.

Pela estrada de Santos – nos campos do alto do Ypiranga.

Pela estrda. do Ó – as várzeas do mesmo nome86.

Excluindo essa área os terrenos seriam devolutos e poderiam ser vendidos pela
Província. Se observarmos, os limites propostos são bem maiores do que a meia légua
existente em 1858.

86
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, vol XIX, 1859, p. 146-161.
59

Figura 4- Perímetro do Rossio segundo os vereadores em 1858. Gomes Cardim, 1897. Em destaque
em vermelho o que deveria ser o perímetro do período. Nota-se que o significado de máxima extensão da
meia légua quase englobava uma, como viria a ser em 1897. Fonte: Informativo Arquivo Histórico
Municipal, 4 (20): se.t/out.2008, AHMWL.

A área correspondente ao rossio era delimitada por quatro marcos: a leste, para os
lados da Penha na Av. Celso Garcia (antigo caminho do Brás e Av. da Intendência no mapa
utilizado); ao norte, para os lados de Santana, na Av. Voluntários da Pátria; a oeste, na direção
de Pinheiros, na altura da Av. Paulista, e no quadrante sul, na altura do bairro do Ipiranga87.
Os vereadores conheciam a extensão de sua antiga sesmaria e a protegiam, separando-a das
terras devolutas da Província.

Quando os preparativos para implantar uma colônia de imigrantes em São Paulo foram
iniciados em 1874, o governo da Província pede novas informações sobre as áreas boas para
cultivo88. As respostas dos vereadores foram sempre vagas por falta de dados. Quando a
província toma as rédeas da medição, eles discordam das informações, como no caso dos

87
CAMARGO, Luís Soares de. “Habitações populares em São Paulo: precedentes”. Informativo Arquivo
Histórico Municipal, 4 (19), jul/ago.2008. http://www.arquivohistorico.sp.gov.br
88
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, 1874, v. 60.
60

preparativos para a instalação da colônia da Glória em região muito próxima do limite do


rossio, no quadrante sul da cidade:

[...] demarcação dos terrenos da Chácara da Gloria o local do pedregulho na


estrada de Santos e o local denominado Matto-Grosso de servidão publica,
bem como alguns pedaços de Campos que estão no goso da população para
pastagens, e outros misteres, não pode a Camara Municipal adherir a essa
demarcação [...] não mande vender senão os terrenos que forem servidão
publica [...].89

Na verdade, além da Chácara da Glória os terrenos adjacentes – Matto-Grosso seria


uma área adjacente ao Telégrafo, região final do morro do Caaguaçu, atual Av. Paulista,
próximo ao Paraíso – seriam englobados; o que eles pedem é que se atente para o que é do
município (no caso do rossio) e o que são terras devolutas estrito sensu, e não aderem à
demarcação, levando a representação ao governo imperial, adiando e dificultando o processo
para a instalação da colônia.

Logo a seguir, um novo ofício da província pede a discriminação das terras do


patrimônio, localidade, medidas e demarcações e finalidades de cada uma. A Comissão de
Datas da Câmara responde, em ofício de 18 de julho:

[...] relativamente a terrenos do Município em que se podem estabelecer


colonos, é de parecer que se responda ao mesmo Governo: Que não sendo as
terras do município da capital próprias para a cultura do café, e sendo em
geral aproveitadas para o plantio de cereaes e canna, só para esta espécie de
lavoura se poderão formar com vantagem colônias agrícolas no mesmo
município, e que sendo todos esses terrenos em roda da capital em uma zona
limitada, é mui fácil a condução ao principal mercado consumidor da
província e mesmo no cazo de exportação e fácil acesso ao porto marítimo
de Santos.
Ignora se há terrenos devolutos o que deve constar dos archivos da extinta
repartição das obras publicas. Quanto ao preço são em geral muito
moderados os dos terrenos deste município por que não prestão-se ao cultivo
do café como os de outros municípios do interior, não são em geral

89
Idem, v. 50, 1864, p. 118. Grifo nosso.
61

procurados. É o que a Camara póde informar na auzencia de dados


estatísticos.90

O ofício esclarece pontos interessantes: as terras no entorno da capital não são próprias
para o plantio do café, mas servem para plantar cereais e cana-de-açúcar. Além disso,
menciona o ignorar o conhecimento dessas áreas (“deve constar dos archivos da extinta
repartição das obras publicas.”). Um pouco mais adiante veremos como essa negativa de
conhecimento sobre essas terras adia a feitura do mapa do rossio.

Antes será necessário conceituar o que se entendia por terras de uso comum na época,
já que no ofício os próprios vereadores afirmam: “a Cama. Mal. tem deliberado para reservar
pa. logradouro publico d‟este município”, sem utilizar a expressão rossio. Veremos o que são
terras de uso comum tanto nos requerimentos quanto na legislação do período e nas
discussões dos vereadores, dos requerentes e até dos empresários que propunham mudanças
ou mesmo a extinção dessas áreas.

90
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-195, v. 60, 1874, p. 112.
62

1.2.2. DEFINIÇÃO DE TERRAS DE USO COMUM

Campos91 define a expressão terras de uso comum como “terra do povo” usufruída
comunalmente desde tempos imemoriais92. O significado de “imemorial”, no caso, seria o de
ser reconhecida por todos como tal, de comum acordo. Apesar de a Lei de Terras proteger as
áreas de uso comum, a noção de devoluto93 abrangeria esses campos, ou seja, áreas de uso
comum eram passíveis de venda, apesar de serem protegidas. O artigo 3º da lei define:

São terras devolutas:


§ 1º As que não se acharem applicadas a algum uso publico nacional,
provincial, ou municipal.
§ 2º As que não se acharem no dominio particular por qualquer titulo
legitimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo
Geral ou Provincial, não incursas em commisso por falta do cumprimento
das condições de medição, confirmação e cultura.
§ 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do
Governo, que, apezar de incursas em commisso, forem revalidadas por esta
Lei.
§ 4º As que não se acharem occupadas por posses, que, apezar de não se
fundarem em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei.
Art. 4º Serão revalidadas as sesmarias, ou outras concessões do Governo
Geral ou Provincial, que se acharem cultivadas, ou com principios de
cultura, e morada habitual do respectivo sesmeiro ou concessionario, ou de
quem os represente, embora não tenha sido cumprida qualquer das outras
condições, com que foram concedidas94.

Nesse caso, por exclusão, só existiriam duas categorias de terras: apropriadas e


passíveis de apropriação. Apesar disso, o artigo 5º, que trata justamente das posses, afirma:

91
CAMPOS, Nazareno José de. Terras de uso comum no Brasil – um estudo de suas diferentes formas. São
Paulo, 2000. Tese (Doutorado em Geografia Humana). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo.
92
Idem, p. 68.
93
Devolutas seriam todas as terras por ocupar no território, ou caídas em comisso, que desde a Independência
faziam parte do patrimônio do Brasil.
94
Retirado do site http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L0601-1850.htm – consulta em dez./2009.
63

§ 4º Os campos de uso commum dos moradores de uma ou mais freguezias,


municipios ou comarcas serão conservados em toda a extensão de suas
divisas, e continuarão a prestar o mesmo uso, conforme a pratica actual,
emquanto por Lei não se dispuzer o contrario.

À mercê de leis que regulamentariam ou não esses espaços, os campos de uso comum
se tornam uma subcategoria protegida de terras devolutas, ou seja, existiriam terras por
apropriar – devolutas – e terras para uso dos moradores de forma comunal. Novamente, na lei
de 1850, nada é dito sobre os rossios ou o Patrimônio do Conselho.

Em 1859, os vereadores enviam ao Governo da Província uma proposta que deixa bem
claro a confusão existente entre terrenos devolutos e de uso comum:

Tendo o Governo ordenado a venda da maior pte. dos campos de uso


comum, existentes no Município [...] e sendo tal venda excessivamte.
prejudicial a grande parte da população do Município, especialmte. ás
classes menos favorecidas da fortuna, que do gozo d‟esses campos de uso
comum tirão meios de subsistência [...]” 95

O que a província poderia vender eram as terras devolutas, não os campos de uso
comum do termo. Entretanto, conforme verificamos no caso do ofício sobre os marcos do
rossio, para os vereadores, toda aquela área imediatamente adjacente ao perímetro urbano e
correspondente a meia légua eram áreas de uso comum ou logradouro público.

O Regulamento para execução da Lei de Terras, de 1854, criou a Repartição Geral de


Terras Públicas96 para o registro, demarcação e posterior venda e conservação das terras
devolutas. Proibidos de efetuar doações de terras do rossio desde 1853, os vereadores
defenderiam sua prática de concessão e conseguiriam autorização para tanto a partir de 1859.
Como isso foi possível? Apesar de a lei afirmar a proibição das concessões, reiterar que a
aquisição de terras se daria apenas através de compra e venda no meio rural, os vereadores

95
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-195, v. 43, 1857, p. 214-215.
96
A Repartição Geral de Terras Públicas foi extinta em 1861 com a criação do Ministério da Agricultura,
Comércio e Obras Públicas; o Registro Geral de Terras Públicas e Possuídas (1870-1875) foi desmembrado
desse ministério e em 1875 foi criada a Inspetoria de Terras e Colonização que, por sua vez, durou até 1888. In:
CARVALHO, José Murilo de. “Modernização frustrada: a política de terras no Império”. Revista Brasileira de
História, n. 1, ANPUH, São Paulo, 1981.
64

interpretaram que o patrimônio municipal – o rossio – já estava sob controle da Câmara e que,
portanto, não poderiam ser impedidos de serem concedidas a quem pedisse, como fica claro
no ofício enviado ao presidente da província:

[...] e como a consulta feita ao Governo Central pelo Prezidente do


Amazonas refere-se unicamente as terras originariamte. concedidas pelas
Camas. Municipaes – não tendo estas direito a ellas (ou seja, sem
comprovação de possuir uma Sesmaria do Conselho medida) – parece
evidente q. o Avizo de 12 de outubro de 1854 q. a ella respondeo, e mdou
suspender a destrebuição de terras urbanas, não he Applicável a Cama.
Municipal d‟esta cidade, quanto aos terrenos que ainda não concedeo,
comprehendidos nos limites da referida doação (de Martim Afonso, que
comprova ser uma sesmaria legítima de acordo com a lei); por isso a Cama.
rezolveo continuar a cedel-os ao povo, e pede a V. Exa.que se digne a
aprovar esta rezolução [...]. 97

A Sesmaria do Conselho é considerada, pelos vereadores, como uma sesmaria


recebida, passível de ser revalidada através da demarcação conforme os padrões da Lei de
Terras e, portanto, passível de ser doada.

O aviso de 12 de outubro a que os vereadores se referem é a resposta do Governo


Imperial à Província do Amazonas, que versa exatamente sobre a concessão de terras dos
rossios que não foram regulamentadas pela lei, em 1850:

[...]
1º Se as pessoas que tiverem adquirido por compra ou qualquer titulo
legitimo terras de cultura, ou de criação, originalmente concedidas pelas
Camaras Municipaes (não tendo estas direito a elas) deve ser garantido o seu
dominio, seja qual for a sua extensão, segundo o disposto no artº 22 do
Regulamento (1318), digo nº 1318 de 30 de janeiro do corrente anno, ainda
mesmo, que a posse de seus antecessorres senão fundasse na cultura e
morada habitual?
2º Se estando as ditas terras em poder dos primitivos concessionários devem
ser revalidadas, na conformidade do disposto na primeira parte do artº 27 do
mesmo, ou consideradas simples posses?

97
25 de Novembro de 1858, ofício enviado ao Presidente da Província. CARTAS DE DATAS DE TERRA,
1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de Cultura, 1939, volume XIX, 1860, p.
146-161.
65

3º Sendo permitida a revalidação, e não achando determinados títulos


passados pelas Camaras os limites das terras concedidas mas somente o
lugar onde principião, qual a máxima parte, que se lhe deve dar, qdo se exija
maior porção, do que o que tiver sido à qualquer outro destribuido pela
mesma Camara?
4º Se devem ser considerados como cahidos em comisso os concessionarios
de lotes urbanos que não tiverem dado começo a edificação dentro do maior
prazo concedido a outros pela mesma Camara municipal ainda que seus
títulos sejão omissos a tal respeito?
5º Se, em quantos pelos poderes competentes não for concedido para
patrimônio das Camaras os terrenos dos povoados e seus arrebaldes, deve
ficar suspensa a destribuição de lotes às pessoas que pretenderem edificar e
no caso contrario, quaes as condições com q. deve ser feita a distribuição?
[...]

Interessante que essas perguntas versam exatamente sobre concessão de lotes sem
documentação ou comprovação de tamanho – práticas de concessão, portanto – e sobre a
continuidade das doações na área dos rossios. Sobre a prática, a resposta é:

[...] quanto ao primeiro quesito os proprietários ahi mencionados achão-se


incluídos, na ampla dispozição do artº 22 do citado Regulamento nº 1318 de
30 de janeiro do corrente anno;
quanto ao 2º – que as terras que estiverem em poder dos primitivos
concessionários, devem ser consideradas simples posses, e como taes
sujeitas a legitimação na conformidade do artº 1 e 4 do mesmo Regulamento,
quanto ao terceiro que, consideradas as ditas terras como simples posses e
sugeitas a legitimação, devem se regular segundo o disposto nos artos 44 e
seguintes do dito Regulamento:
quanto ao quarto e ao quinto finalmente que convindo para resolver as ditas
duvidas, e para melhor regularidade e conveniência das povoações existentes
o tornar-se extensiva a ellas as dispozições dos artos. 77 e seguintes do
mencionado Regulamento, na parte que lhe forem aplicáveis, cumpre que V.
Exça. exija das respectivas Camaras Municipais as informações
98
necessárias...

98
E pedem o mapa dos terrenos devolutos, com a suspensão das distribuição até decisão em contrário. ACTAS
DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo;
Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 44, p. 139-140.
66

As doações do rossio precisariam de legitimação como simples posses, caso


estivessem sem a documentação original, o que era frequente dado que, para possuir o
documento comprobatório – a Carta de Data –, era necessário pagar o imposto. No caso de
novas concessões ficavam efetivamente proibidas; só o aforamento perpétuo para os lotes
urbanos era permitido para auferir rendimentos às câmaras, depois de serem demarcadas e
reservadas terras para o estabelecimento de prédios públicos e outras necessidades urbanas. Se
interpretarmos ao pé da letra essa resposta, o rossio desapareceu da interpretação da lei ou foi
englobado pelo conceito de terras de uso comum. Na área urbana só era permitido o
aforamento de terrenos, devendo as demais terras serem reservadas para logradouro público,
se necessário, medidas e demarcadas.

Portanto, aquele ofício de 1858 dos vereadores reclamando que o aviso acima não era
aplicável em São Paulo, relativamente longo, responde às informações requeridas em 1854
com a Regulamento para aplicação da Lei de Terras.99 Para eles, não é aplicável a norma
porque a dita doação, segundo o entendimento deles, é patrimônio camarário desde tempos
passados e a Lei de Terras não poderia retirar direitos adquiridos dos lotes por conceder. Eles
se posicionam como possuidores de uma extensão de terras e apresentam a Carta de Doação
de Martim Afonso100 como documento para comprovar isso, sem fazer um arrolamento dos
próprios municipais, ou seja, o mapa dessa sesmaria. A apresentação da Carta de Doação
serviria para revalidar Sesmaria do Conselho, entretanto, seria necessário medir e elaborar
uma planta (tal como no caso de uma sesmaria de particulares).

Nesse mesmo ofício, os vereadores fazem uma previsão interessante:

He porem certo, que os terrenos comprehendidos nos limites marcados na


doação feita por Martim Affonso não são, e menos serão d‟aqui a alguns
annos, sufficientes para as necessides. dos habitantes da cidade [...]. 101

99
Regulamento para execução da Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850, a que se refere o decreto dessa data.
COLLECÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1808-1889. Rio de Janeiro. Imprensa Nacional
100
Embora os vereadores recorram à Carta de doação de Martim Afonso, o rocio foi efetivamente demarcado
apenas no século XVIII. In: GLEZER, op. cit.
101
25 de Novembro de 1858, ofício enviado ao Presidente da Província, CARTAS DE DATAS DE TERRA,
1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de Cultura, 1939, volume XIX, 1860, p.
146-161.
67

Pedindo o aumento da meia légua para uma, argumentando que os terrenos restantes
para distribuição são estéreis e só serviriam para edificação urbana. Conforme vimos na
representação gráfica dos limites propostos para logradouros públicos, a extensão reservada
já era de praticamente uma légua. A previsão para aumento da meia légua levava em
consideração o crescimento populacional futuro, devido ao estabelecimento da ferrovia
ligando o porto de Santos à Jundiaí.

O governo da província respondeu favoravelmente ao pedido dos vereadores para


continuarem a distribuir o rossio gratuitamente, mas exigiu uma planta com os ditos terrenos e
o planejamento de uso futuro para logradouros e prédios públicos. A insistência dos
vereadores em separar esse rossio das áreas de uso comum e lembrar sua existência específica,
apesar do silêncio da lei, pode ter influenciado na decisão da província em aceitar essa
diferenciação. Quanto ao aumento da meia légua requerido, remetem ao Governo Geral o
pedido. Nesse mesmo momento, em vez de uma planta com os terrenos reservados para
logradouros, os vereadores enviam as divisas aproximadas da área do rossio, conforme já
analisamos, autorizando a província a vender os terrenos fora dessa área. A ausência do mapa
do rossio prosseguiria até o momento em que praticamente todas as áreas remanescentes
estivessem ocupadas.
68

1.2.3. USOS E APROPRIAÇÃO DOS ESPAÇOS DE USO EM COMUM

Nesta parte da pesquisa, analisaremos os espaços de uso comum e como foram


utilizados antes da incidência da Lei de Terras e depois. Campos102 afirma que essas terras
usadas em comum seriam, inicialmente, relativamente pobres para serem utilizadas em uma
atividade agrícola sistemática, ou demandariam um gasto elevado para uso, por necessitarem
de dessecamento, por exemplo, no caso das várzeas. Sabemos, pela topografia da cidade de
São Paulo, que as várzeas eram abundantes nas regiões leste e norte. No geral, afirma que o
uso em comum se dá quando ocorre um excesso de solo disponível.

Os usos dessas áreas em comum poderiam ser diversos: pastagem coletiva de gado,
bovino, muares ou cavalos (casos mencionados sobre a Várzea do Carmo até 1892, sítio do
Bexiga até meados dos anos 1880, Várzea do Brás quando o Carmo enchia até 1880);
extração de lenha, madeira e/ou pedra (sítio ou chácara do Bexiga, por exemplo); agricultura
em conjunto, ou seja, em terrenos abertos (Várzea do Carmo); e abastecimento de água
(Bexiga e diversas propriedades particulares próximas a fontes de água).

As Atas da Câmara registram diversas reclamações de usos e delimitações desses


espaços. Já em 1854, ano da regularização da Lei de Terras, o fiscal do Norte da Sé relata:
“[...] Notifiquei a Francisco de Barros para que não continuasse a fazer huma caza que está
dando princípio; em terreno que é servidão publica ao pé da ponte do Espinheiro [...]”. 103

No caso citado, provavelmente o acesso à água foi englobado por proprietário vizinho
na extensão do seu quintal. Logo em seguida vemos um pedido de acréscimo de José Pinheiro
Correa, morador da freguesia da Conceição de Guarulhos, que diz:

[...] nos fundos da mma. Caza, em continuação ao quintal um corredor mais


ou menos de 8 braças de comprimento e de 3 de largura [...] não serve ao
transito ao publico. [...] e ao contro. (contrário) pode no futuro se prestar a
passagem exclusivamte. de malfeitores [...].104

102
CAMPOS, Nazareno José de. Terras de uso comum no Brasil – um estudo de suas diferentes formas. São
Paulo, 2000. Tese (Doutorado em Geografia Humana). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo.
103
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. XVII, 1854, p. 13-14.
104
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. XVII, 1854, p. 19-23.
69

Alega ainda que seu quintal está aberto e tem problemas com animais que o invadem,
assim como pessoas estranhas (malfeitores). Diz ser é homem “afamado”, pai de filhas que
correm riscos e que de forma alguma quer auferir lucro do dito espaço. O fato de afirmar isso
já nos faz desconfiar das suas boas intenções. Infelizmente para o requerente, a Câmara
também recebeu um abaixo-assinado de moradores da dita freguesia que alegavam ser o local
servidão pública, um caminho, e que dois anos antes de solicitar autorização o requerente já
tinha fechado o local. O desfecho da história nos leva a supor que, diante de uma possível
reclamação dos moradores, o requerente fez um pedido formal para aquisição das terras, o que
não era procedimento incomum, visto que algumas áreas só eram fiscalizadas se denunciadas.

Reclamações desse tipo permeiam todas as Atas e Cartas de Datas, todos os anos,
apesar de, em 1850, ocorrerem em freguesias mais distantes do Centro, tais como São
Bernardo da Borda do Campo, Conceição de Guarulhos e Juquery, como demonstra uma
representação dos vereadores dirigida ao Governo da Província em 1857: “[...] solicitando a
intervenção poderosa de V.Exa. para que quanto antes seja franqueada uma servidão publica
cujo uso se acha impedido pr. acto arbitrário do sub-delegado da Frega. de Juquery [...].” 105

Nesse caso, trata-se de um atalho que já tinha sido fechado e “o povo destruio”. Para
arrematar a questão, o subdelegado colocou uma escolta de guardas armados impedindo o
acesso da população ao atalho. O fato de o atalho ser “servidão pública há mais de trinta
anos” faz do local um acesso público, uma vez que as pessoas preferiam o atalho a uma
estrada aberta recentemente, daí talvez a preocupação do subdelegado em obrigar a população
a utilizar o novo caminho, à força. Gradualmente, porém, as reclamações se tornam mais
frequentes e mais próximas do núcleo urbano.

Já na Freguesia da Penha de França, em 1872, os moradores plantavam mandioca, café


e feijão em conjunto, num terreno público. O fiscal foi verificar e os que plantaram pedem um
prazo de um ano para a colheita ser efetuada após o qual, abririam mão do terreno. O caso é
interessante porque explicita uma prática pouco explorada: plantar conjuntamente em terrenos
públicos, de uso comum.

Era comum a Câmara indeferir, por exemplo, pedidos de fechamento de terras ou


acréscimo de terrenos em fontes de água ou rios, como foi o caso de um indeferimento de

105
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 43, 1857, p. 39-40.
70

terras no Tanque do Carvalho cuja justificativa foi: “[...] serve de muito auxílio às
lavadeiras.”106

Essa proteção das fontes de água fazia sentido, uma vez que os problemas nos
chafarizes da cidade eram recorrentes, e a falta de água, crônica. Em 1868, devido exatamente
a um problema no chafariz da Rua da Liberdade vem à tona a história de um beco utilizado
para chegar a uma fonte de água denominada Morringuinho, na região da Liberdade. A
Câmara, atendendo ao pedido de Carlos Theodoro Street, fez a concessão para acréscimo da
referida área, ou seja, autorizou Carlos Street a aumentar sua propriedade englobando um
beco. Agindo contra o uso popular, Carlos Street fechou a passagem alegando ironicamente
que ela só servia para o acoitamento de escravos fugidos, criminosos e que poucos se serviam
da água propriamente dita, provocando mais do que reclamações na população. Ele, por fim,
desiste da concessão porque:

[...] alguns indivíduos, em nome do povo, levantando grande celeuma contra


o fecho do becco sem sahida, sito na Rua da Liberdade, pretendendo-se
mesmo cometter attentados cazo se effectue o dito fecho, afim de evitar
questões que podem tomar um caracter grave, desisto da concessão que esta
Ilma. Camara se dignou a fazer-me, ficando o “publico”, com direito de
beber na água do Moringuinho sem impedimento algum. 107

A pressão popular, quer para utilizar a fonte ou para se reunir em ações diversas,
conforme a sugestão do requerente, foi forte demais, apesar da erudição e ironia de Carlos
Street, que colocou o povo entre aspas. Entretanto, depois de pressionado, desistiu da
concessão. Por outro lado, a Comissão de Datas de 1870 indefere um acréscimo na Rua
Formosa, afirmando que o suplicante queria fechar a fonte do local para “fazer negócio”108,
denunciando uma possível ligação de Carlos Street com a venda e monopólio de água na
cidade através dos aguadeiros.

106
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 51, p. 134.
107
Idem, v. 54, p. 81, 86, 87, 88 e 95.
108
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 56, p. 154.
71

Ainda sobre passagens que davam acesso a água, um documento sem data109 sobre o
sítio do Bexiga esclarece como a câmara procedia para verificar se tal local correspondia a
servidão pública. O atual proprietário do sítio teria fechado uma passagem para uma fonte de
água. Os reclamantes alegavam que o local era servidão pública não apenas de água, mas de
pastagem, retirada de lenha e recreio, ou seja, lazer. A comissão indicada para elucidar a
questão afirma:

Esta procedeu a todas as indagações percisas de modo a poder dar um


parecer seguro e concencioso em matéria de tanto melindre: para isso ouvio
a pessoas... tas e soccoreo se assim das tradições serradas na memória dos
Municípies, examinou o documento judicial antigo extrahido do cartório, e
os archivos desta Camara n‟aquillo que podia oreintal-a, procedeu
finalmente a um exame local [...]. 110

Logo ficamos sabendo os procedimentos certificar-se dos usos do local. Realmente,


estabelecer o uso público em propriedade particular era uma questão delicada. Por exemplo,
essa passagem já tinha sido fechada anteriormente e os problemas sempre recomeçavam com
a mudança de proprietário do sítio. De comum acordo, era deixado um portão para passagem
a pé, e à noite o proprietário fechava essa passagem. Ainda na investigação, a Comissão
descarta a servidão de pastagem gratuita, a retirada de lenha e mesmo o uso recreativo da água
e/ou lugar, como alegavam os reclamantes:

Que, sendo assim certa a servidão para aquelle fim especial de tirar agoa
potável, não é certa a que se allega na representação de uso de lenha, uso das
águas para outro fim que não seja a indicada, entrada para passeio ou recreio,
pastagem gratuita de animaes [...].111

Ficamos sabendo que na área existia uma hospedaria e um pasto que não era gratuito,
além de propiciar a retirada de lenha:

E também certo que todos os que queriam se servir de qualquer utilidade


fornecida por aquella propriedade, a não ser furtivamente, pediam licença e
permissão ao proprietário, pagando-lhe até um preço estipulado, como
109
Pela leitura do documento e por comparação de nomes aferimos que é posterior a 1848.
110
Terras e terrenos municipais e particulares, 1883-1902 e sem data, manuscritos, sem paginação.
111
Idem.
72

aconteceu a um dos membros da Comissão abaixo assignado, que precisando


dali tirar alguãs Canadas de pedregulho, por ellas pagou o que
Convencionou com o dono da chácara [...].112

Portanto, o único tipo de servidão defendido pela comissão foi o da água, sendo todos
os demais usos onerosos e vetados no sítio. No entanto, podemos inferir que a população do
entorno provavelmente usava essa fonte de água para fazer passeios, ou já teria utilizado com
esse intento, além de retirar lenha desta propriedade e utilizar o pasto. Esses usos ficam
apenas sugeridos pelo que a Comissão descartou, uma vez que só protegeu o uso da água e a
retirada desta a pé, não de outra forma: “[...] abra uma passagem franca para pessoas a pé,
respeitando assim elle a servidão de tirada de agoa potável com que está onerada aquella
propriedade.” 113

É importante ressaltar quem geralmente frequentava bicas, chafarizes e rios:

A coleta de água e o despejo do lixo e das águas servidas eram, em geral,


tarefa de escravos, trabalhadores pobres e crianças. Eram eles, portanto, os
frequentadores assíduos de rios, córregos e chafarizes.114

Em 1867, o abade do mosteiro de São Bento pretende que o terreno que serviu de leito
para o rio Tamanduateí, retificado em um trecho que cortava a Rua 25 de março para os
preparativos da instalação do Mercado, seja reconhecido como unicamente seu e nele sejam
proibidas concessões de lotes115. Apoiados na jurisprudência, os oficiais da Câmara afirmam
que os terrenos são públicos porque são a ribanceira de um rio, portanto, de uso comum desde
tempos imemoriais. Na mesma sessão é deferido acréscimo de áreas de requerentes moradores
com propriedades à beira do rio, ou seja, merecendo a dilatação dos limites dos seus terrenos.
Na realidade, o argumento para a concessão das terras em novas ruas abertas, bem como nos
aterrados, era higienista: promover a salubridade do local através da construção. Como lembra
Simoni (2002), no período anterior à Lei de Terras a questão da distribuição de datas estava

112
Terras e terrenos municipais e particulares, 1883-1902 e sem data, manuscritos, sem paginação.
113
Idem.
114
SANT‟ANNA, Denise Bernuzzi de. Cidade das águas – usos de rios, córregos, bicas e chafarizes em São
Paulo (1822-1901). São Paulo: Editora SENAC, 2007, p. 71.
115
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 53, 1867. p. 44-47.
73

atrelada à agricultura, beneficiamento do local. Depois da lei, a questão desloca-se para a


construção de prédios em razão da chegada de novos habitantes, frente ao aumento do aluguel
na cidade. Na verdade, a intenção do abade era de conceder os terrenos dessa área, lucrando
com isso, uma vez que esses terrenos se valorizariam com a construção da linha férrea Santos-
Jundiaí. A Câmara descarta essa hipótese e distribui essa área mediante expansão do
alinhamento, ou seja, puxando o fundo de diversas casas que estavam de costas para o rio.
Importante ressaltar como os interesses fundiários vão se aguçando com a chegada da linha
férrea, conforme veremos adiante.

A seguir veremos como foi criada mais uma categoria administrativa na tentativa de
racionalização e discriminação das terras devolutas além de focalizar o relacionamento dos
vereadores com a Repartição Geral das Terras Públicas.
74

1.2.4. INCIDÊNCIAS DO REGISTRO PAROQUIAL

O Registro Paroquial nasceu com a Repartição Geral de Terras Públicas no


Regulamento de 1854 para a execução da Lei de Terras. A Repartição tinha, por objetivo,
discriminar, medir e fiscalizar as terras devolutas. Entretanto, agia por exclusão: era
necessário que particulares reconhecessem suas terras ocupadas antes de o poder público
saber quais eram as terras devolutas, fossem aquelas adquiridas através de sesmaria, doação
ou posse. Com essas hesitações típicas da Lei de Terras, não era possível medir as terras
devolutas sem a cooperação particular, criando uma permanente nuvem de falta de
informações devido à hesitação dos particulares em registrarem seus domínios.

A Repartição Geral de Terras Públicas era composta por um Diretor Geral das Terras
Públicas, um chefe da Repartição e um fiscal. Contava em cada província com uma
Repartição Especial das Terras Públicas, responsável pelas questões das terras devolutas nas
províncias, subordinadas ao Presidente da Província e dirigida por um Delegado do Diretor
Geral.

Segundo Tessitore116, juízes comissários e municipais coordenariam a medição e a


demarcação de terras, sendo o vigário da paróquia o responsável pelos registros, daí advindo
seu nome popular: registro do vigário ou registro paroquial. O declarante deveria fazer a
declaração em duas vias, e o pároco copiava em livro específico; uma das vias era devolvida
ao declarante com a data da declaração, a outra era enviada para a Repartição Especial de
Terras Públicas (em nível provincial). Não existia processo formal para averiguar a
veracidade das informações117. O Registro Paroquial, portanto, cumpria o papel de receber as
declarações dos proprietários nas freguesias, apesar de não constituir título de propriedade
sozinho. Para se ter um registro de propriedade era necessário medir e pagar o imposto sobre
as terras. A função do registro era meramente informativa, na tentativa de conhecer o alcance
das terras devolutas. Interessante observar como o registro seguiu a divisão eclesiástica e não
propriamente a civil. Qualquer que fosse a forma de apropriação – compra, concessão ou
posse – poderia ser declarada. Apesar de não ter validade como título de propriedade, o

116
REGISTRO DE TERRAS DE SÃO PAULO. Divisão de Arquivo do Estado. São Paulo: A Divisão, 1999,
vol. 5 Freguesia de Santa Ifigênia, v. 1. Introdução. TESSITORE, Viviane.
117
Tal só vai ocorrer com o Registro Torrens, Decreto 451 B de 31 de maio de 1890. COLEÇÃO DAS LEIS DO
BRASIL, 1889-1930. Rio de Janeiro. Imprensa Nacional
75

Registro Paroquial será apresentado como comprovante de propriedade, durante o século


XIX, em diversas contendas envolvendo limites de terras.

Os vereadores em São Paulo dificultaram ao máximo o envio de livros de Concessão


de Cartas de Datas e informações sobre o rossio para a Repartição Especial. Assim
respondem à solicitação de informações sobre concessões anteriores a 1850.

[...] pondera respeitozamente a Sua Exa. que o seo Regimento prohibe a


sahida de livros do archivo municipal, sem exceptuar cazo algum, como o
declararão os Avizos 22 e 26 de Julho de 1831, entrando portanto em duvida
se taes livros podem ser entregues ao Porteiro da dita Repartição118

O problema de comunicação entre a Repartição e os vereadores prossegue:

A Camara Municipal vem recorrer à V. Exa. contra o modo porque em ditto


officio é tratada em suas relações com a Prezidencia da Província, recebendo
portaria, como esta de 20 do corrente, assignada pelo Secretario de Governo,
em que não se determina que a Camara Municipal se entenda com o Chefe
da Repartição das terras públicas, mas sim que a Camara municipal forneça
os livros ao Porteiro da dita Repartição. A Camara Municipal entendendo q.
V. Exa. não consentirá que continue uma pratica toda em desprestigio do
principio e instituição municipal, recorre à V. Exa. para que informado do
occorrido e solicito na manutenção das instituições nacionaes, se digne fazel-
a cessar com é de esperar da ilustração e sabedoria de V. Exa. Ocorre levar
ao conhecimento de V. Exa. que o Brigadeiro Director da Repartição das
terras publicas ordenou ao porteiro que não passasse recibo dos livros,
pensando talvez fazer pressão sobre esta Camara, mas V. Exa.
comprehenderá bem que este meio de relações entre funcionários e
repartições publicas não pode produzir rezultado vantajozo ao serviço. Já o
archivo da Camara Municipal tem sido disfalcado de muitos papeis e livros
importantes, e este pelo desleixo das Camaras anteriores, que concedião a
particulares (segundo diz o porteiro) a permissão de levarem taes papeis e
livros para suas cazas de onde não voltarão ao archivo: dos livros de terras
ora requizitados informa o Porteiro que não existe no archivo a muito tempo
o de 1832-36, que se presumem estarem no poder do Conde de Iguassu

118
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 49, 1863, p. 253-254
76

desde 8 para 9 annos, e ora a Camara Municipal providencia sua restituição


ao archivo.119

Logo percebemos que um dos problemas é o fato de os vereadores sentirem-se


desprestigiados ao terem que entregar seus livros ao porteiro da instituição; além disso,
avisam sobre o sumiço de livros, algo que já aconteceu e pode vir a acontecer novamente, e
negam o pedido.

As terras sob domínio privado fora da área urbana – que definimos com as áreas
arruadas, de incidência da Décima – precisavam, portanto, ser registradas segundo a Lei de
Terras. Entretanto, a função do Registro Paroquial de separar as terras sob domínio privado e
conhecer as terras públicas fracassará exatamente por depender do registro pessoal e
individual. Apesar de não ter validade como título de propriedade – era preciso não só
declarar, mas também medir e pagar o devido valor em impostos – esse registro funcionará
como comprovante de propriedade em disputas fundiárias durante o século XX120. Em 1876, o
Decreto nº 6.129 extinguiu as Repartições Especiais de Terras Públicas nas províncias, e suas
atribuições foram transferidas para a Secretaria de Governo. Britto (2008) defende que a
função prática do Registro Paroquial foi ajudar a colocar em circulação o crédito,
impulsionando o mercado hipotecário. Para nosso estudo, interessa saber que essa área
remanescente, fora da incidência da Décima, precisava ser registrada. No segundo e terceiro
capítulos estudaremos alguns casos de cruzamento de informações com os registros,
especificamente, de Santa Ifigênia e da Sé.

119
Idem, v. 49, 1863, p. 253 e 254.
120
TESSITORE, descrevendo o estado físico da documentação aponta para falsificações significativas em
diversos volumes. REGISTRO DE TERRAS DE SÃO PAULO. Divisão de Arquivo do Estado. São Paulo: A
Divisão, 1999, vol. 5 Freguesia de Santa Ifigênia
77

1.3. A ELABORAÇÃO DO MAPA DO ROSSIO

Em outubro de 1852, o governo da província emitiu uma portaria condicionando a


venda e aforamento de terrenos pelos vereadores à elaboração do mapa do rossio, contendo os
limites do mesmo e deixando bem claro a separação entre as terras devolutas da província e
as da câmara. Isso ocorreu, portanto, antes do regulamento de 1854 sobre a Lei de Terras.
Nesse momento, devido à falta de alusão da Lei de Terras à Sesmaria do Conselho, as
concessões estavam suspensas em São Paulo. Desde 1830, encontramos pedidos dos
vereadores para poder aforar os terrenos do rossio devido aos parcos cofres municipais que
perderam impostos com a reformulação das câmaras de 1828:

Entretanto, conhecendo, que estes reditos são diminutissimos para as


exobitantes despesas (por que até agora as obras publicas de consideração na
cidade eram feitas pela Fazenda Nacional, e por contribuições arranjadas
pelos capitães generaes, hoje tudo pesa sobre a Camara) lembrou-se propor
para augmento de suas rendas os seguintes artigos:
1° - Poder aforar o terreno devoluto, que houvesse dentro do rocio da cidade,
e das freguesias do município conforme o que já subiu ao conhecimento do
Conselho.
2° - Que recebendo a antiga Camara 4$000 réis por cada vistoria para Carta
de Data, cuja quantia se repartia pelos vereadores, como o fiscal com o
secretário, e arruador é que fazem hoje esta diligencia, deliberou em 6 de
junho de 1829, que se recebessem os ditos 4$000 réis, e se propuzesse como
meio augmentar suas.121

Logo, aforar significava arrecadar dinheiro para os cofres públicos.Se antes a vistoria e
o arruamento eram feitos e os vereadores recebiam por isso, agora pediam que o valor fosse
pago diretamente para o arruador.

Em 1852 pedem novamente autorização para aforar terrenos devido a:

121
Representação da Câmara ao Conselho Geral sobre os rendimentos existentes e propostas de novos.
“Registro Geral da Câmara da Cidade de São Paulo, 1829/1831” – publicação da Subdivisão de Documentação
Histórica, v. XX/XXI, Departamento de Cultura (Divisão de Documentação Histórica e Social), São Paulo,
1945, p. 263-264.
78

[...] o incremento rápido q. vae tendo a Capital, e as edificações numerosas


q. se levantão dentro della e em seus subúrbios, tornão muito valiozos taes
terrenos, ou pelo menos a frequência com que solicitados demonstra q. delles
se poderia tirar algum proveito pa. as rendas municipais.122 [grifo nosso]

A quantidade de pedidos, apesar de não estarem doando lotes desde 1850, era grande e
poderia significar renda para custear a abertura de ruas e praças, tornando o trabalho de abrir e
consertá-las menos oneroso aos cofres municipais:

Ainda há alguns lugares, próprios pa. edificações urbanas, e outros podem


apparecer em consequência da abertura de novas ruas, ou praças, cuja venda
poderia produzir algum benefício pa. os cofres municipais. Não poucas
vezes a Camara despende avultadas qtias. pa. abertura de ruas ou praças, e
depois vê-se forçada aceder os terrenos adjacentes gratuitame., o q. é visível
q. não pode convir aos interesses Municipaes. (grifo nosso)

E ainda discorre sobre os terrenos mais afastados da área urbanizada:

Quanto aos terrenos dos subúrbios pondera a Cama. q. sendo elles


principalme. aproveitaveis, pa. a pequena cultura em chácaras, a legislação
actual difficulta a concessão; pois q. limitada a atribuição da Cama. a
concessão de dez braças de frente e fundo corresponde., e sendo prohibidas
mais de uma data a um só individuo, resulta q. aquelle q. quer fundar uma
chácara nos terrenos do rocio, é obrigado a requerer dez ou mais datas em
nome alheio pa. depois adquiril-os pr. Venda [...].123

Fora da área urbanizada era proibido acumular mais de um lote para a formação de
chácaras. Ao que tudo indica, eram necessárias solicitações de terrenos em nome de diversas
pessoas, prática corriqueira no rossio, segundo a portaria supracitada.

Esse foi o ofício enviado, mas a proposta elaborada na Câmara é mais esclarecedora,
tendo sido formulada pelo vereador Ribeiro dos Santos:

122
Representação à Assembleia Legislativa Provincial em 26 de junho de 1852. Idem, v. XXXV,p. 103.
123
Portaria do Exmo Govo. Proval. de 20 de outubro de 1852. “Registro Geral da Câmara da Cidade de São
Paulo, 1852” – publicação da Subdivisão de Documentação Histórica. v. XXXV, 1852. Dep. de Cultura (Divisão
de Documentação Histórica e Social), São Paulo, 1945, p. 134 e 135. Grifo nosso.
79

[...] pa q conceda a esta Camara, a authorização de aforar os terrenos


devolutos dos rocios da Cide e Freguezias, ponderando-se a necesside de
criar rendas Municipaes, e facilitar pr este meio a edificação de chácaras,
concedendo a Camara o maximo de duzentas braças a um só indivíduos,
pagando o foreiro annualme um reis pr braça quadrada, e os terrenos da cide
pa prédios urbanos vender-se em hasta publica pagando os foreiros pela carta
de uma só vez dois reis por braça quadrada, sendo até cincoenta braças; de
cincoenta para cima um reis que será dividida em três partes sendo duas para
o Secretario e uma para o Fiscal, ficando em vigor a postura de 8 de
Fevereiro de 1830124. (grifo nosso).

Fundar uma chácara parece tornar-se dispendioso para o requerente e nenhum recurso
ia para a municipalidade com esse processo paralelo. O ofício tenta conjugar a vontade
particular para direcionar esse dinheiro para os cofres municipais. A passagem acima nos
esclarece dois pontos: o rossio aparece como essa parte híbrida entre o rural e o urbano,
contendo lotes urbanos e chácaras, o que Britto (2008) denominou de áreas remanescentes; a
especulação com as datas de terras para a constituição de chácaras no entorno urbanizado
vinha ocorrendo, com indivíduos requerendo em nome de outros indivíduos ou comprando de
terceiros para formar pequenas chácaras.

A Lei Provincial nº 13, de 17 de julho de 1852, autorizou o aforamento por um réis a


braça quadrada, exatamente como proposto pelos vereadores, valor a ser pago anualmente.
Entretanto, condiciona-o ao mapa do rossio:

[...] foi authorisada a Camara Municipal da Capital a aforar os terrenos do


rocio da mesma e das Freguezias respectivas, q. não forem necessários pa.
logradouro publico, e não forem próprias pa. edificações urbanas deve ser
indispensavelmente precedida de certos trabalhos preparatórios a bem dos
interesses públicos e particulares, pr. meio dos quaes fique com clareza
averiguado, - 1º quaes os terrenos pertencentes inquestionavelmente ao rocio
da Capital 125[...]

124
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 39, 1852, p. 125.
125
Lei Provincial nº 13, de 17 de julho de 1852. In: Colecção das Leis do Império do Brasil, 1808-1889. Rio de
Janeiro. Imprensa Nacional.
80

Logo o pedido foi aceito, excluindo-se as áreas necessárias para logradouros


públicos, mas, para tanto, a planta do rossio deveria ser feita o mais breve possível.
Interessante a preocupação, presente nesse ofício, com as terras a serem separadas e
reservadas para praças, largos e o crescimento geral da cidade, em estrito alinhamento com as
diretrizes da Lei de Terras e antes do Regulamento para execução da lei, que é de 1854.

A elaboração desse mapa resultou num „empurra-empurra‟ por décadas entre Câmara e
Província; diversos engenheiros foram contratados e dispensados de tal tarefa, gerando um
eterno e pretenso “desconhecimento”, por parte dos vereadores, da extensão e abrangência do
rossio, criando uma confusão entre as terras passíveis de serem doadas e terrenos de uso
comum dentro do rossio. Tal confusão e desconhecimento propiciaram a distribuição em larga
escala do rossio e de áreas de uso comum, gerando dezenas de reclamações encaminhadas à
Câmara sobre o fechamento de logradouros, cercamento de fontes de água e apropriações de
campos de cultivo. Como propôs Gouvêa126, pensar os porquês da ausência desse mapa pode
revelar os motivos para não elaborá-lo e a força desses motivos:

Nesse caso, especificamente, é importante notar que o poder dos mapas se


fará presente exatamente através da sua ausência, visto que os membros do
Conselho de São Paulo evitaram e protelaram a execução dessa planta o
máximo que puderam [...].127

A não execução do mapa gerava incertezas de limites que favoreciam a ocupação


desses espaços teoricamente vazios. Apesar disso, em dezembro de 1852, é nomeada, pelos
vereadores, uma comissão para fazer as medições, e o engenheiro José Porfírio de Lima fica
encarregado destes trabalhos. Em seguida, a Câmara pede uma relação das datas caídas em
comisso, ou seja, que não foram beneficiadas e que voltaram para o seu patrimônio. Tudo
concorria para a elaboração do mapa. Interessante notar que, antes disso, mais precisamente
em setembro de 1851, um engenheiro municipal envia um ofício sobre os trabalhos de
medição do rossio, informando que havia começado as atividades:

126
GOUVÊA, José Paulo Neves. Cidade do Mapa: a produção do espaço de São Paulo através de suas
representações cartográficas. São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo.

127
Ibidem, p. 262.
81

[...] a partir do centro da cidade; mas observa que falto de milhores


instrumentos seo trabalho não será perfeito, e que não começara a medição,
pa todos os lados, do pateo da Sé; pr que tendo a cidade maior
desenvolvimento e extenção pa alguns dos dados (lados) seria defeituosa a
medição pr terminar de alguns lados dentro da povoação, e que por isso
havia, á exemplo do Rio de Janeiro, começado a medir pa o lado da Luz da
esquina do pateo de S.Bento.128

Portanto, os trabalhos de medição foram iniciados antes da autorização para


aforamento do rossio e ficamos sabendo que o crescimento da cidade era desigual, ou melhor,
a área de crescimento da cidade era a região da Luz, ao norte.

O pedido da Província sobre as terras reservadas é uma antecipação do Regulamento


de 1854. Segundo Simoni (2002)129, entre 1852-1853, devido a problemas internos de eleição
dos vereadores, o processo de medição do rossio foi interrompido e todos os funcionários da
câmara, demitidos. Por esse período, os terrenos do matadouro foram aforados e, logo em
seguida, foram suspensas todas as transações envolvendo essas terras, por causa do
Regulamento de 1854. Essa suspensão legal da concessão ou aforamento de lotes do rossio
durou até 1858, fruto da expectativa quanto à construção da ferrovia Santos-Jundiaí.

Antes da liberação das concessões, o governo da Província, em 1855, pede


informações sobre os limites da Décima e sobre terrenos existentes para lavoura e criação de
animais na cidade130. Na prática, eles querem saber exatamente os limites de cada perímetro:
onde começa e termina a cobrança da Décima, quais terrenos são de uso comum e quais de
uso agrícola. A Câmara responde de forma vaga, avisa que os limites da Décima não se
alteraram desde 1833 – e essa informação é importante, uma vez que revela que a cidade não
cresceu entre 1833 e 1855 –, bem como que não existem terrenos específicos na cidade para
lavoura e criação, mas apenas algumas chácaras no entorno que abastecem a região central.

128
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 38, 1851, p. 213.
129
SIMONI, Lucia Noemia. O arruamento de terras e o processo de formação do espaço urbano no município
de São Paulo: 1840-1930. São Paulo, 2002. Tese (Doutorado em Estruturas Ambientais Urbanas) - Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, p. 55.
130
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 40, p. 49.
82

Durante o período de suspensão, são inúmeros os pedidos de aforamento e/ou


alinhamento de terrenos, como o de Francisco dos Santos Silva que, em 3 de fevereiro de
1853 pede: “[...] aforamento de 10 braças de frente e 30 de fundo de um terreno em frente à
chácara de Vicente de Souza Queiróz.” 131

Outra prática comum era pedir alinhamento abocanhando um pedaço de terreno


contíguo ao seu, como no caso de Alexandre de Monteiro Rolland, que pediu por alinhamento
um terreno defronte à sua casa e entrou em uma disputa, com mais três pessoas, para receber o
alinhamento. Acontece que o processo esbarra em algo inusitado: o alinhamento requerido
encontra-se junto de um canal de água próximo ao chafariz da Liberdade132, na fonte de água
chamada de Morringuinho, que será motivo de inúmeras disputas com o passar dos anos.

Em 1858, os vereadores enviam o ofício contestando o fato de não poderem distribuir


gratuitamente as terras do rossio para edificações na cidade, tendo em vista a chegada da
ferrovia. Informam no mesmo ofício sobre a planta do rossio que:

[...] não pode a Camara enviar a V. exa. pr.q tem sido inúteis os esforços q.
tem feito para conseguil-o. Ainda ultimamente pediu Ella a V. Exa. que a
coadjuvasse n‟esse intuito: mas o Engenhro. q. d‟ella se havia encarregado,
abandonou esse trabalho logo depois de começado.133

Quatro anos se passaram e, em vez de aforamento, querem distribuir gratuitamente o


rossio sem deixar registrado em mapa os limites dessas terras. Na verdade vão além e pedem
o aumento da meia légua do rossio para uma légua, alegando que essa meia légua já era
insuficiente:

[...] He porem certo, que os terrenos comprehendidos nos limites marcados


na doação feita por Martim Affonso não são, e menos serão d‟aqui a alguns
annos, suficientes para as necessidades dos habitantes da cide.; por isso pede
a Cama. Municipal, que além d‟esses, se lhe conceda os que forem precizos

131
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. 40, 1853, p. 194. Esses casos de aforamento não entraram no banco de dados oficial.
132
Idem, v. 40, 1853, p. 195 - 206.
133
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, vol.44, 1858. Sessão Ordinária de 25 de novembro de 1858, p.
198.
83

para perfazerem huma legoa em redor da cidade, considerando como ponto


central o pateo da Sé.134

Quando informam que a meia légua não é mais suficiente, ao mesmo tempo em que
reclamam da pouca quantidade de edifícios urbanos e dizem que os limites da Décima não se
alteraram, entram em contradição queixando-se da insuficiência da área destinada à expansão
da cidade: se estão pedindo para doar terras e aumentar a quantidade de prédios, como podem
dizer que a meia légua já está ocupada e que precisam de mais terras? Podemos imaginar que,
realmente, o engenheiro municipal poderia ter dificuldades em fornecer dados exatos e tirar a
planta do rossio ou que essa dificuldade toda, visto que sabiam exatamente quais eram as
áreas do rossio, proviesse mais dos interesses particulares em jogo.

Passadas as doações dos anos 1859-1860, continuam as recomendações para a


medição do rossio e a confecção da planta com os terrenos devolutos. Especificamente em
1863, temos a solicitação do conselheiro do presidente da Província recomendando a
demarcação: “visto que lhe foi participado pelo subdelegado de policia do districto do Sul
haverem pessoas invadindo no mesmo pretexto de terem sido doadas por esta Camara.” 135

As denúncias de apropriação ilícita de terras continuaram e influenciaram a pressão


que o governo da província fazia sobre a câmara para acelerar as medições. Em pelo menos
um caso, a própria câmara avisa a província sobre fechamento de terrenos:

Indicamos que se officie ao Exmo. Governo fazendo-lhe sciente, para os


effeitos legais, do facto de estarem diversos indivíduos de posse e já com
edificação em terrenos nacionaes no bairro da Agoa Branca desde o
Pacaembu, constando que taes terrenos tem sido distribuídos pelo juis de
paz. Franco. de Paula Xavier de Toledo [...].136

134
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, vol. XVII, 1858, Sessão ordinária de 25 de Novembro de 1858.
135
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 49, 1863, p. 29.
136
Idem, p. 127.
84

O ofício denuncia que essa região não pertencia ao próprio municipal (rossio) e que o
juiz de paz da área demarcava e distribuía terrenos na região, que apesar de chamarem
Pacaembu correspondia ao atual como o bairro de Santa Cecília e entornos137.

Logo a seguir, surgem duas novas propostas para fazer a planta do rossio, revelando
que os serviços anteriores foram interrompidos: uma do engenheiro José Porfírio de Lima e
outra de Charles Romien. Aparentemente o contrato foi fechado com Charles Romien,
conforme o ofício enviado à Província em 29 de abril de 1863. Em dezoito meses os trabalhos
estariam prontos pelo valor de nove contos e seiscentos réis, pagos em oito prestações
trimestrais. Ainda previa a feitura de 64 cópias da planta, com levantamento topográfico e
cadastral, conforme o exemplo enviado referente à Rua da Constituição. Diante do pedido de
ajuda da Câmara, a Província informa que os vereadores têm renda própria para arcar com as
despesas das medições e aceita o contrato celebrado138. Tudo acertado e iniciado, no segundo
trimestre o engenheiro reclama que não está sendo reembolsado nas suas despesas e um
vereador protesta contra o contrato:

Sem que nada tivesse deliberado esta Camara sobre confecção do Contracto
celebrado com o Engenheiro Charles Romien para o levantamento da planta
e competente nivelamento desta Cide., fiquei sorpreso logo que soube haver
o Sr. Dr. Franco. Leandro de Toledo na qualide. de preside. Desta Cama.
assignado e concluído esse contracto com o Engenheiro, no dia 30 do mez
findo.139

As acusações são sérias: aparentemente o contrato foi feito apenas com a anuência do
presidente da Câmara, Leandro de Toledo, sem o conhecimento dos demais vereadores.

As razões que preponderão em meo espírito para protestar contra esse acto
abusivo, illegal e altamente oneroso aos cofres da municipalidade, feito pelo
zeloso e econômico presidente, Dr. Leandro de Toledo são as seguintes: 1ª –
Por ter a Camara recebido uma Portaria do Exmo. Govo. da Prova. De 26 do
mez passado que ainda não foi lida em Sessão em que pondera bem sob
quaes fundamentos devia tal contracto ser feito, e não tendo ainda tal
137
A chácara do Pacaembu abrangia uma extensa área e foi dividida em três: de baixo, de cima e do meio. A
região de baixo compreendia o atual bairro de Santa Cecília.
138
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 49, 1863, p. 112.
139
Idem, p. 139-141.
85

Portaria sido discutida, e nem apresentada em Sessão desta Camara na forma


de seo regimento para que ella resolvesse sobre a melhor forma de leval-o a
effeito se conveniente fosse: é manifesto, pois, a infracção da lei, das ordens
do Exmo. Govo. Proval., pelo que, por modo nenhum, a menos que não se
julgue irresponsável e superior o Sr. Dr. Leandro de Toledo, podia effectuar
um contracto que não só devião ser bem discutidas as suas bases, como
também porque devião ser ellas dadas pelas Comissões competentes para
serem ou não approvadas. 2ª – Por entender que no município existem obras
de maior urgência, que reclamão a attenção desta municipalidade. 3ª – Por
que, quando mesmo esta Camara tivesse deliberado a celebração de
semelhante contrato, devia ter sido elle submetido, antes de sua execução, a
aprovação do Exmo. Govo. Proval., como expressamente determinou a S.
Exa. no final da Citada Portaria. 4ª – finalme., por que a execução de um
contracto de seme.natureza vem pesar gravemte. sobre os Cofres desta
municipalidade, visto como não há verba decretada oara isso, nem outra pela
qual possa ser paga a avultada qta. de 9:600$000, a cujo pagamento está ella
agora obrigada pelo contracto assignado pelo Sr. Leandro de Toledo sem
authorisação desta Camara. Assim pois, com quanto se conheça a utilidade
do levantamento da planta, e nivellamento desta Cide., com tudo não posso
deixar, – na qualide. de Vereador desta Camara, de fortemente protestar
contra este acto de abuso de authoridade, praticado pelo Sr. presidente
Leandro de Toledo, tanto mais quanto é S.Sa. o próprio que faz propalar que
elle é o único estorvo dos disperdicios dos dinheiros desta
140
Municipalidade!

O documento é extenso, porém nos revela os motivos do protesto do vereador contra o


contrato: foi um ato de um homem só; existem obras mais urgentes a serem feitas na cidade; e
o orçamento da Câmara não comporta o valor proposto. A discussão é interessante porque,
conforme veremos adiante, o vereador Leandro de Toledo estava envolvido em denúncias de
fraude, distribuição de datas de forma irregular sendo inclusive suspenso do cargo, em função
inclusive do seu interesse sempre crescente pela distribuição de terrenos, principalmente na
região do Morro do Telégrafo. Tal como o Juiz de Paz Francisco de Paula Xavier de Toledo,
talvez seu parente, atuava à revelia do sistema.

140
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 49, 1863, p. 139, 140 e 141.
86

O contrato é por fim anulado e, em 29 de outubro de 1863, um ofício do governo da


Província para a Câmara reclama que, mesmo tendo proibido a concessão de terras, inclusive
por alinhamentos, vereadores passaram Cartas de Datas na freguesia de Penha de França141.
Em novembro, os vereadores pedem autorização para dar continuidade aos alinhamentos. Em
1865, temos novo ofício da província requerendo a medição dos limites da capital e pedindo
cópia do foral de Martim Afonso juntamente com carta topográfica da capital. O engenheiro
Raymundo Alves do Sacramento Blake pede pagamento pelos trabalhos realizados, nos
levando a formular hipótese de que provavelmente estavam levantando a planta nesse
momento, embora de forma parcial e entrecortada. Logo a seguir, surge um novo problema de
pagamento: o engenheiro pede o pagamento e o ofício é enviado à província e devolvido para
a Câmara, na linha do jogo de „empurra-empurra‟ supracitado. À qual esfera caberia a
despesa? A Câmara propõe que os trabalhos sejam efetuados depois da época de chuvas,
justamente para diminuir as despesas142. De uma forma parcial ou limitada, presumimos que a
Câmara deve ter enviado algum tipo de medição ou limite para a província, pois em 1865 foi
autorizada a prosseguir com as concessões do rossio. Esse período é marcado por uma série
de preparativos na capital: mudança do nome das ruas, prolongamento de alinhamento em
diversas direções denunciando o processo de construção e consertos de ruas então em
andamento. Apesar dos preparativos e do projeto de compra de marcos demarcatórios (sete
marcos de pedra para delimitar o rossio), observamos que o engenheiro responsável pelas
medições era constantemente deslocado para outras regiões e trabalhos.143

Em 1866, um agrimensor, João Rodin, faz uma nova proposta para medição dos
limites do rossio da Câmara144. Logo em seguida, o governo da província remete um ofício,
exigindo a confecção de mapas padrões das freguesias. A Câmara propõe a contratação de
Carlos Rath ou de João Rodin145. Antes de conceder os terrenos durante os anos 1860, era
feito um levantamento e parcelamento prévio da área, prolongando o arruamento preexistente.

141
Idem, p. 245.
142
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 50, 1864.
143
Idem, v. 51, 1865. p. 321.
144
Idem, v. 52, 1866. p. 33.
145
Ibidem, 1866.
87

Ao que parece as medições do rossio foram feitas de forma pontual, conforme as áreas foram
sendo doadas.

Durante a década de 1860 e seguintes, à medida que os “melhoramentos urbanos”


foram sendo realizados na capital:

[...] as transformações impostas a São Paulo nesse período nada mais


eram que os primeiros passos em direção à fase capitalista da cidade
[...] quando passaria a ser ordenada – produzida, como dizem – pela
iniciativa privada, conforme as leis do mercado imobiliário.146

Ruas foram abertas ligando regiões que sofreram rápida expansão; várzeas foram
aterradas e ocupadas, fruto da retificação dos rios. No geral, às áreas marginais aos rios eram
doadas, acrescendo-se aos lotes, de preferência pertencente aos moradores do local.

Em 1874, o assunto surge novamente e a Província pede informações sobre as terras


do patrimônio: localidades medidas e demarcadas, para qual fim estavam destinadas147. A
Câmara também examina uma proposta de uma planta cadastral para a capital e subúrbios
apresentada pelo engenheiro Antonio Chardon148. No ano de 1874 ocorrem a formação de
diversos estabelecimentos de colônias de imigrantes em São Paulo. Em resposta a Comissão
de Datas ofício de 18 de Junho sobre Aviso do Ministério da Agricultura, a Câmara responde
que os terrenos da cidade não servem para a cultura do café e que são relativamente
baratos.149

Novamente em 1875, dados sobre o rossio são requeridos pelo Presidente da


Província, nesse momento João Theodoro Xavier. Os terrenos que estão sendo concedidos são
apenas os da meia légua150 e ainda não possuem o mapa comprobatório dessas terras. Por

146
CAMPOS, Eudes. “A cidade de São Paulo e a era dos melhoramentos materiaes: obras públicas e arquitetura
vistas por meio de fotografias de autoria de Militão Augusto de Azevedo, datadas do período 1862-1863”. Anais
do Museu Paulista, janeiro-junho, ano/vol. 15, n. 1. Universidade de São Paulo. São Paulo, p. 11-114. p. 26.
147
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 60, 1874, p. 98.
148
Idem, p. 105.
149
Ibidem, p. 112.
150
Ofício de 21 de janeiro de 1875. Arquivo do Estado de São Paulo.
http://www.arquivoestado.sp.gov.br/viver/poder_frame.php?cod=28030&nomen=0095301007&img=ODSP0095
301007_001.jpg – consultado em 12/04/2011.
88

fim, a partir de 1886, o governo provincial retomou o processo de demarcação e medição de


terras e, segundo Simoni (2002), esta retomada se deveu ao interesse por ampliar os núcleos
coloniais, para permitir o assentamento de imigrantes. Inferimos que, se o governo provincial
não tivesse efetuado as medições, estas não teriam ocorrido por iniciativa dos vereadores. A
medição prosseguiu até 1889151 e os motivos que levaram a dilatação do tempo para feitura da
planta do rossio refere-se mais aos interesses locais do que a problemas logísticos:

A elaboração desses instrumentos de controle das terras públicas sob


administração municipal afetava interesses das autoridades locais, uma vez
que poderia, em especial, acarretar o cerceamento de seu poder de conceder
datas, que permitia fosse alimentado um esquema político-administrativo
baseado no clientelismo e na troca de favores. Esta perspectiva ajuda a
explicar não só a recusa quanto à elaboração dos instrumentos de controle
acima citados, como também as irregularidades e a falta de uniformidade no
tratamento das concessões realizadas pela Câmara Municipal.152

Devemos lembrar, tal como mencionado no início do capítulo, que a estrutura político-
administrativa do Império perpetuava o conflito herdado do período colonial entre as câmaras
municipais – lideradas pelos poderosos do local – e as Assembleias Provinciais – lideradas
pelos poderosos regionais representada na figura do vice-presidente da Província e pelos
indicados do Governo Federal representada na figura do Presidente da Província. Interesses
conflitantes e áreas de jurisdição distintas implicavam em litígio quanto as terras sob suas
alçadas, daí o adiamento do processo de demarcação do rossio.

A perspectiva clientelista de troca de favores entre o público e particular e a resistência


em abrir mão do controle das terras do rossio explicam a mudança dos vereadores entre 1852-
1858, que optam pela concessão gratuita em vez do aforamento, mesmo com autorização.
Provavelmente a velocidade da valorização fundiária do período, conforme acompanharemos
151
MÔNACO, Roberto. As terras devolutas e o crescimento da cidade de São Paulo: 1554 a 1930. São Paulo,
1991. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
Universidade de São Paulo, p. 75; MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: Livraria Editora
Ciências Humanas Ltda., 1979, p. 92; SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850.
Campinas: Editora da Unicamp, 1996, p. 228-229 – segundo a qual os trabalhos de medição estavam ocorrendo
em Santo Amaro e na capital.
152
BRITO, Mônica Silveira. Modernização e tradição: urbanização, propriedade da terra e crédito hipotecário
em São Paulo na segunda metade do século XIX. São Paulo, 2006. Tese (Doutorado em Geografia Humana).
FFLCH-USP, p. 74.
89

através dos valores propostos para as casinhas do próprio municipal, desacreditava os


contratos de aforamento que em geral eram longos, de 10 anos ou mais. As práticas arcaicas
como o aforamento e mesmo a concessão gratuita estavam sendo reelaboradas tendo em vista
o rápido incremento da cidade e a valorização fundiária em andamento.
90

CAPÍTULO 2

SISTEMA E MECANISMOS DE CONCESSÃO DAS CARTAS DE DATAS: TEORIA E


PRÁTICA

São chamados de Cartas de Datas dois tipos de documentos: as cartas por meio das
quais o requerente pedia à Câmara Municipal um lote de terreno no rossio (Sesmaria do
Conselho); e o documento153 elaborado depois do pedido era analisado e aceito, oficializando
o ato. Diferentemente das sesmarias, os lotes eram doados em medidas de braças e não
léguas. Isso persiste até 1872154, quando entra em vigor o sistema decimal e a “data” passa a
ser medida em metros quadrados. As medidas eram de 10 braças de frente e fundos à meia
quadra que, convertidos para metros, correspondiam aproximadamente 22 metros de frente e
66 metros de fundo, ou 1.452m². As novas posturas de 1875 incorporaram o novo sistema
métrico em vigor desde 1872, as datas adquiriram a dimensão de exatos 15 metros de frente
por 35 metros de extensão ou fundos, uma mudança muito questionada, que diminuía em
quase um terço o tamanho das concessões, conforme veremos a seguir.

Neste capítulo veremos quem eram os requerentes e quais os procedimentos empregados


pela Câmara ao longo do século XIX, desde a regulamentação da Lei de Terras, referente as
concessões de datas. São 40 anos de procedimentos e, apesar de existir um Regulamento para
Concessão de Cartas de Datas, em muitos casos o bom senso e a prática cotidiana ditaram os
mecanismos de concessão.

153
Na verdade, o nome correto desse documento é “Termo de Compromisso e Concessão de Carta de Data”,
entretanto a prática afirmava que ambos eram “cartas de datas”.
154
Lei nº 1.157 de 26 de junho de 1862 In COLLECÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1808-1889.
Rio de Janeiro. Imprensa Nacional.
91

2.1. FORMALIDADES DA CONCESSÃO: TEORIA

Segundo o Regulamento para a Concessão das Cartas de Datas155, o terreno


requerido por carta seria lido em sessão e encaminhado ao fiscal para levantamento de
informações sobre o terreno: se devoluto ou se parte do rossio não correspondente a
logradouros ou espaços de uso comum, verificava-se a real necessidade e capacidade
financeira do suplicante. Tal como um privilégio real, a concessão era mediante o
cumprimento de certos pré-requisitos, entre eles se o requerente seria capaz de cumprir as
exigências feitas pela Câmara de cercar e construir no terreno em tempo determinado.

Um primeiro filtro para o requerente, dentre muitos outros durante o processo, era ser
alfabetizado ou encontrar alguém disposto a escrever um requerimento. Em seguida, era
necessário passar pelo crivo do secretário da Câmara responsável por dizer se o suplicante
tinha ou não condições materiais para construir no local: “A suppe ainda não obteve data
alguma desta Camara, e pode-se-lhe conceder no logar que pede se isso for do aggrado da
Camara.”156

Os livros antigos eram consultados para verificar se já haviam sido doados terrenos
para o requerente:

Não consta que o suppe tenha obtido data, assim com não me parece no caso
de obtel-a, por isso q sendo o suppe minimmamente pobre, sem duvida ou
quer pa transferir a outrem, como sempre acontece, ou para vender por
pouco mais de nada.157

No processo surgiam dúvidas sobre o requerente: conseguiria ele edificar no lote ou o


queria apenas para vender por “pouco mais de nada”, alienando o patrimônio camarário? O
filtro colocado às concessões diz respeito ao que o requerente poderia fazer com o lote em vez

155
“Regulamento para a concessão das Cartas de Data, que serve de additamento ao Regimento interno
registado a folhas 120 deste livro”. In REGISTRO GERAL DA CÂMARA DA CIDADE DE SÃO PAULO,
1585-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo; Departamento de Cultura, 1917-1946, v. XX-XXI, 1829-
1830, p. 346-348.
156
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939. v. XX, 1862, p. 143-144.
157
Idem. v. XX, p. 142, 1862.
92

de nele construir ou beneficiá-lo, interesses prioritários da Câmara. O processo requeria o


conhecimento tanto da cidade quanto dos moradores em questão.

Figura 5: Requerimento do Engenheiro Hermanno Bastide. Fonte: AHMWL.

Um segundo filtro diz respeito ao prazo para a construção: nos anos 1850 o prazo era
de um ano; posteriormente, de seis meses, podendo ser prorrogado com pedido na Câmara por
mais seis meses; em 1880, era de apenas seis meses:

[...] com as obrigações do costume, inclusive a de levantar-lhe a parede da


frente a altura de receber os portaes, dentro do prazo de seis mezes, contados
da data desta carta, a de cobrir a caza de cercar todo o terreno com muros
dentro de um anno, e a de concluir a edificação ao ponto de receber morador
dentro de dois annos, sob pena de ser havido o terreno por devoluto, na
conformidade das Posturas.158

158
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. XVII, 1852, 158.
93

O papel do secretário era fixado no Regimento Interno da Câmara159. Além de ler e


afixar os editais, consultar e tutelar os livros, o secretário era responsável por todos os
registros, e a ele deveriam se reportar os fiscais das freguesias da cidade. Por sua vez, aos
fiscais cabia zelar pelo cumprimento das posturas vigentes e “prestar as informações
necessárias”. Tendo a dupla função, portanto, de vigiar e informar, o fiscal era parte essencial
na cadeia de informações sobre a cidade prestadas à Câmara. Inicialmente, apenas um fiscal
era suficiente, mas com o crescimento da cidade foi preciso aumentar o número de agentes:
somente a Freguesia da Sé contava com dois fiscais, enquanto as outras freguesias tinham
cada uma um fiscal.

Em 1851 surgem propostas de posturas dos vereadores para vetar a transação de lotes
sem edificações e benfeitorias, demonstrando a preocupação com o fato de concederem
terrenos e nada ser construído:

Todos os indivíduos q d‟ora em diante obtiverem dactas de terras, não


poderão vendel-as, doal-as, ou de outro qualquer modo alienal-as sem que
primeiro cerquem, construão edifícios, e cultivem as mmas dactas dentro do
praso de um anno; sob pena no caso de transferirem á outrem, antes de
cumpridas aquellas condiçoens, na nullidade da tranferencia, e de ser julgado
o terreno devoluto, perdendo as bemfeitorias que houverem feito. O praso de
um anno poderá ser espaçado por mais outro anno somente.160

O fato de existir uma preocupação reguladora nessa direção revela que provavelmente
a alienação posterior de datas sem construção era habitual, e a cidade, na visão dos
vereadores, precisava de prédios. Além do quê, tais transações fundiárias raramente passavam
pela câmara, que nada ganhava com o processo. Ao contrário, a venda de “datas” concedidas
por terceiros impedia que a Câmara tivesse um real conhecimento dos proprietários dos lotes
– conhecimento essencial para a administração da cidade, como veremos a seguir.

Existia, da parte da municipalidade, um rigor processual na concessão de datas, e tudo


deveria ser minuciosamente registrado num processo:

159
“Registo do regimento interno approvado pela Camara Municipal em sessão de 5 de dezembro de 1829 como
se vê a folhas 69 do livro das Actas”. Registro Geral da Câmara da Cidade de São Paulo (1829-1831), São Paulo.
Departamento de Cultura, São Paulo, 1923, v. XX-XXI, 1829-1830. p. 305-314.
160
Projeto de Postura do Vereador Emigdio, substitutivo da 15ª de 8 de fevereiro de 1830. ACTAS DA
CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo;
Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 38, 1851, p. 199.
94

O suppe ainda não obteve data desta Cama Mal, e se obtiver, sem duvida que
edificará e cultivará o terreno, como convem, por isso que é o mmo. chão e
abonado. [...] O suppe. do requerimento retro está no caso de obter a data
que pede, visto ainda não ter obtido, e isto no caso que V.Sas assim queirão
deliberar, pois que o conheço, e sei que seu pae dezeja mto edeficar pa elle
uma casa.161

Podemos supor que os membros mais influentes da sociedade paulistana não


encontravam dificuldades em obter boas áreas para construção. Com relação aos mais pobres,
esse era um processo extremamente difícil, apesar de não ser impossível, desde que
conhecessem as etapas.

Novamente em 1852 surge a preocupação com a venda de datas sem edificação:

Artº 1º – Todos os Cidadãos q obtiverem datas de terras, não poderão


vender, nem alienar a outros, sem q. tenhão edificado sua propriede. Os
contraventores perderão o direito q nellas tem, e bem assim os benefícios q
tiver feito, revertendo tudo pa a Municipalidade.

Artº 2º – Se depois de principiada a obra pr alguma circunstancia não puder


concluir sua propriede, pedirá a Camara mais prazo pa esse fim.

Artº 3º – O Fical dará parte de 6 em 6 mezes á Cama das datas q estão nas
circunstancias de reverter pa a Municipalidade pr não concluírem no prazo
marcado; e bem assim dará parte imediatamente se souber que algum
Cidadão tenha vendido a data, sem q tenha feito a propriedade.162
Aqui se expressa o desejo de controle das datas caídas em comisso, portanto, não
edificadas. Esse projeto de postura foi adiado sem ser discutido, e um dos motivos para isso
era a necessidade do aumento considerável de fiscais para zelar pela cidade. Curioso saber
que o fiscal não recebia pelo trabalho com as datas, mas seu salário de 700$rs mensais era
acrescido em 20% sobre as multas aplicadas referentes a infrações das posturas e
efetivamente pagas.163 Isso significa que o fiscal lucrava mais na vigia das posturas do que
nos processos com datas. Somente em 1860 os fiscais passaram a receber para demarcar e

161
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939. v. XX, 1861, p. 142-148.
162
“Projeto de Posturas sobre as datas de terras, apresentado pelo vereador Ribeiro dos Santos, foi adiado.” In
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de S.
Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951. v. XXXIX, 1852, p. 78.
163
Idem, v. XLIV, 1858, p. 69.
95

alinhar as datas, e isso se deveu ao volume das concessões de 1859, que atingiu a casa dos
milhares quando antes eram umas poucas centenas, ou menos. O fiscal164 e o porteiro da
Câmara, além do engenheiro, são chamados a assistir aos alinhamentos e medições,
recebendo 2$000 réis para demarcação e 1$500 réis por alinhamento.165 A partir de 1860,
portanto, o fiscal passou a ter um incentivo financeiro para participar do processo de
concessões de datas.

Em 1860 nota-se a persistência da preocupação com a identidade do requerente


embora, como dito anteriormente, o volume de lotes concedidos tenha ultrapassado a casa dos
milhares, sendo praticamente impossível conhecer todos os que pediram ou obtiveram lotes.
Ainda assim, o vereador Salles Guerra propôs que a Câmara não concedesse data alguma:

sem que se prove a identidade do pretendente, sendo a firma reconhecida,


afim de que cessem os muitos abusos que se tem dado, concedendo-se a uma
só pessoa representada por diversos indivíduos não conhecidos dezenas de
datas.166 (grifo nosso)

O descontrole, a perda da identidade diante do volume de pedidos e da certeza sobre as


posses e possibilidades de o indivíduo construir no lote tornam-se preocupação recorrente da
Câmara, assim como a especulação fundiária realizada por certos indivíduos que, antes da
demarcação da data, conseguiam arrematar, por um valor irrisório, quase nada, terras de
outros indivíduos. Em março de 1861 é proposto que o secretário verifique se o requerente já
possui data ou não, olhando os registros com mais cuidado.

Inicialmente de posse das informações preliminares, a Câmara daria seu parecer


dependendo das condições do requerente, quase sempre explicando os motivos. Era vetada a
concessão de mais de uma data por pessoa,167 e o tamanho era fixado em dez braças de frente

164
Em 1852 o fiscal recebia quatrocentos e vinte mil réis anuais, fora a porcentagem sobre as multas
efetivamente pagas. REGISTRO GERAL DA CÂMARA DA CIDADE DE SÃO PAULO, 1585-1863. São
Paulo: Archivo Municipal de S.Paulo; Departamento de Cultura, 1917-1946, v. XXV, 1852.
165
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. XLVI, 1860, p. 160-169.
166
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 46, 1860, p. 189.
167
Teoricamente só poderiam conceder uma data por pessoa durante toda a sua vida. Entretanto, existem casos
na documentação de pessoas que perdem o lote, por comisso, e requerem nova data, o que significa que era
96

(aproximadamente 22 metros) e trinta braças de fundos (66 metros), ou fundos a meia quadra,
o que transformava o lote em estreito e comprido. Depois de 1875 o tamanho do lote
concedido foi diminuído para 15 metros de frente com 35 metros de fundo, possibilitando um
aumento no número de terrenos concedidos de forma onerosa.

Apesar da restrição de uma data por pessoa, verificamos que algumas conseguiram
mais de duas datas. O Barão de Antonina, por exemplo, teve três pedidos em seu nome
atendidos no mesmo ano, sendo dois deles para a Várzea do Pary e um para a Rua da Ponte
Grande,168 o que aparentemente deu forma a uma pequena chácara de formato triangular, logo
após o Convento da Luz:

Figura 6: Chácara do Barão de Antonina na Ponte Grande – Pary, provavelmente formada com
concessões de três datas de terra. São Paulo: chácaras, sítios e fazendas ao redor do centro desde o século
XVIII. Gastão Cesar Bierrembach de Lima, Exposição do IV Centenário de São Paulo. Fonte: Arquivo Aguirra/
Museu Paulista/ USP.

possível perder e reaver um benefício. Quando das Posturas de 1875, que tornam as datas onerosas, é permitido
a concessão de mais de um lote por indivíduo desde que este tenha construído no primeiro.
168
Inferimos que são três lotes para a mesma região, já que os habitantes chamavam indistintamente a Ponte
Grande de Várzea do Pary, assim como a Mooca pode ser considerada Brás, se não vier especificado o período.
97

O fato de ser uma pessoa influente na sociedade provavelmente isentava o Barão de Antonina
da restrição de concessão de um lote por pessoa.

Se o parecer da Comissão de Datas169 fosse favorável, mas em região sem arruamento,


proceder-se-ia ao auto de vistoria, arruamento e alinhamento. Com a presença do fiscal, do
secretário e do arruador, juntamente com os vizinhos “confinantes” do terreno, a área era
medida e dividida em lotes segundo o tamanho especificado. Nesta ocasião, o fiscal perguntava
em voz alta aos presentes se aquele terreno era realmente devoluto ou logradouro público ou
ainda área de uso comum, se alguém se opunha àquele procedimento e por quais motivos,
sendo tudo transcrito no auto depois lavrado. Este auto era então encaminhado à Câmara, que
emitia o seu parecer e, posteriormente, a Carta de Data. O auto tinha um custo, assim como a
vistoria, o arruamento e o alinhamento. Portanto, tais medidas, em razão de serem públicas,
envolviam etapas e exigiam um conhecimento razoável da área a ser concedida, que sempre
antecedia as concessões. Isso descarta a hipótese de que a Câmara desconhecia a extensão do
seu patrimônio, uma vez que os vereadores, através dos fiscais, estavam envolvidos em
processos de concessão cuja prática requeria conhecimento mediante estudos prévios das
áreas a serem concedidos.

169
A Comissão de Datas era formada no início do mandato e podia conter entre um e cinco vereadores
dependendo do período.
98

Figura 7: Parecer de um fiscal diante do pedido de datas. Transcrição: “Cuumprindo a respeitável


determinação de V.Sas. sobre o requerimento incluso de Eufrásia Cipriano do Espírito Santo cumpreme
informar V.Sas. que o allegado da Supp em seo Requerimento é todo verdade a do que V.Sas. julgarão como
lhes convier. Deus guarde V.Sas. Freguesia da Conceição de Guarulhos, 19 de Abril de 1852. Rafael Tobias (?).
Fiscal”. Fonte: AHMWL.
Outrossim, os terrenos passíveis de concessão eram de conhecimento público desde
antes de 1851, uma vez que os pedidos se concentraram exatamente nas regiões onde existiam
terras para apropriação, priorizando-se terrenos em áreas já arruadas ou contígua a elas
(bastando prolongar o arruamento), uma vez que a opção por uma área não arruada
representava a obrigação de arcar com as despesas. Este auto de arruamento tinha um custo
de 4$000 réis para o requerente, e antes de 1830, essa quantia era repartida entre os
vereadores. Em 26 de janeiro de 1830, numa Representação ao Conselho Geral sobre os
rendimentos da Câmara,170 os vereadores propõem que esse valor seja dividido entre o fiscal,
o secretário e o arruador, já que são esses os efetivos responsáveis pela verificação e

170
Registro Geral da Câmara da Cidade de São Paulo (1829-1831), São Paulo. v. XX-XXI. Departamento de
Cultura, São Paulo, 1923.
99

realização do processo de arruamento. Entretanto, tal mudança só ocorreu a partir de 1860


devido a demanda das concessões de 1859.

Em 1862, os vereadores ainda tentam controlar o processo de distribuição de datas


requerendo, dessa vez, uma certidão de autoridade pública ou policial sobre o requerente:

[...] não se defira de hoje em diante requerimento algum pedindo datas, sem
que, alem da informação do Secretario da Camara, venha a firma do
peticionário reconhecida por Tabelião, e acompanhada a petição de Certidão
do parocho, ou de qualquer authoridade policial, ou Juiz de Paz, pela qual se
demonstre que o peticionário tem meios de edificar e cultivar, a inda que em
pequena escala, e que de facto e realmente mora nas trez freguezias desta
Capital.171 (grifo nosso)

Na documentação manuscrita, a partir de 1862 é possível ver as assinaturas com firma


reconhecidas nos pedidos de datas. Ainda em 1868 aparecem pequenos pareceres sobre os
requerentes, indicando que, mesmo com o grande volume de pedidos e apesar da
subjetividade das informações, a investigação sobre a condição financeira dos requerentes
continuava: “Penso que o suplicante está no caso de obter a dacta que requer 172”. Em 1877,
um parecer desse tipo demonstra que as especulações sobre as datas, a despeito dos
mecanismos de refinamento e controle por parte da Câmara, continuaram:

Informo a VSª que o terreno que pede a suppe na Rua de Santo Amaro, em
frente a caza de Domingos Pedreiro, procurando indagar a quem pertencia
soube ser do Tenente João Baptista do Sacramento, este comprarão a 4
meses e já possuirão de terceiro donno, sendo verdade que, amas de 3 annos
está em (?) sem feixo algum.173

O caso mencionado acima – uma data que já fora vendida no mínimo três vezes, sem
que as transferências tivessem passado pela Câmara indica que, apesar do controle, a venda de
datas ocorria paralelamente às concessões numa velocidade impressionante. É interessante

171
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 48. 1862. p. 25.
172
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939, v. 1868.
173
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939, v. 1877.
100

notar que, apesar de repassado várias vezes, o lote continuava não cercado e não edificado, o
que pode indicar que a construção era mais cara do que o terreno, por exemplo.

Num parecer em que várias pessoas pedem datas na mesma região, em 1852, a
prioridade é para nativos ao invés dos estrangeiros:

[...] e pelo exame q. fiz conheci q. apenas pode ser concedida uma carta de
data no logar indicado, e q. pa. esta concessão se deve preferir a um
nacional, e q. tenha proporções pa. edificar com brevide.174

Essa preferência pelo elemento nacional, compreensível dentro dos padrões do


período, vai perdendo força conforme a cidade se expande e passa a receber cada vez mais
novos moradores. O fato de, a partir de 1875, as datas não serem gratuitas abre espaço para
que os estrangeiros também adquiram lotes.

As informações do fiscal e do secretário sobre as pessoas – informações muitas vezes


subjetivas, pessoais, que requeriam um conhecimento intrínseco da realidade social da
pequena cidade imperial – desaparecem a partir do final de 1877,175 indicando que, com as
novas posturas que tornaram a data onerosa, já não havia a necessidade de saber das
condições financeiras do requerente, embora a construção continuasse sendo um requisito
para a confirmação da concessão. Uma vez pagos os emolumentos sobre o lote, o requerente
poderia inclusive requerer mais um terreno, desde que tivesse edificado no anterior. Apesar
das mudanças das posturas de 1875, a preocupação com a edificação se mantém com as datas
onerosas.

174
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. XVI, 1852. p. 181.
175
Encontramos apenas um caso de atestado voluntário de idoneidade, como o de Pedro Marcal de Miranda:
“attesto que o Snr. Pedro Marçal de Miranda, empregado na Casa de Correção e residente no bairro da Luz desta
freguesia é pessoa de proibidade e muito conhecida na mesma freguesia.” Cartas de Datas de Terra, 1864-1915.
São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de
Documentação Histórica e Social, 1939, 1888, v. 2045.
101

Figura 8: Parecer conjunto da Comissão de Datas em 1884. Fonte: AHMWL.


102

2.2. FORMALIDADES DA CONCESSÃO: PRÁTICA

A Câmara não tomava decisões sobre os limites do terreno depois de medida e passada
a Carta de Data, daí em diante era um problema da justiça. Isso ocorre porque começam a
surgir inúmeras reclamações, como a de João Lefebre, por exemplo, que adquiriu várias datas
por compra na Várzea do Nicolau (Brás), que caíram em comisso porque outro indivíduo
pediu-lhe para não cercá-las até receber alinhamento da Câmara, agindo de má-fé. Acontece
que a pessoa que pediu para Lefebre esperar requereu as datas caídas em comisso após tê-las
denunciado à Câmara. Temos, portanto, indícios de duas práticas: pedir em nome de outras
pessoas e adquirir por compra; e também enganar os outros a fim de que suas datas caíssem
em comisso, denunciá-los à Câmara e, em seguida, requisitá-las para si.

Lefebre consta como proprietário de hotel em 1861,176 dono de um lote de terras na


Mooca e assinante a rogo para no mínimo três pessoas no mesmo período e na mesma
localidade, o que denota que era uma pessoa com posses e conhecida a ponto de assinar
documentos em nome de outras pessoas. A firma reconhecida exigida em 1860 comprovaria a
existência do cidadão, mas não impossibilitaria que o próprio João Lefebre adquirisse lotes de
terceiros por compra.

[...] homem casado, trabalhador e de boa conducta, que precisando fazer para
si e sua mulher alguã cazinha, em que possa morar (por não ter posses para
pagar os fortes alugueres que hoje se exigem) [...]. 177

Eis o teor de grande parte dos pedidos: ser morador da cidade, ter boa conduta e
necessitar o terreno. Apesar de todos os moradores da cidade poderem efetuar um pedido,
caberia aos oficiais da Câmara deliberar se o indivíduo receberia ou não o lote, conforme já
vimos. Nesse caso, os oficiais da Câmara estabeleciam condições tendo em vista objetivos
específicos: construção rápida da área, aumento do número de prédios na cidade, ocupação de
várzeas e das áreas consideradas insalubres.

176
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 47, 1861, p. 93.
177
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. XVIII, 1859, p. 181.
103

Podemos dizer que, em períodos normais, os pedidos são ricos em detalhes sobre os
habitantes da cidade. Mellitão de Mello fez seu pedido em 1859 e entre seus argumentos está
o valor elevado dos aluguéis na cidade, reclamação constante em muitas das cartas que
analisaremos adiante.

Os pedidos normalmente trazem o nome do requerente e sua condição ressaltada de


morador antigo da cidade, localização pretendida e motivos (que denominamos argumentos)
da requisição:

Illmos. Snrs. Vereadores da Camara Mal. – Dis Antonio Benedicto da Luz


natural e residente na freguesia de Santa Efigenia d‟esta cidade, que tendo
muita necessidade de fazer hua casa para morar não só com sua mai viúva,
como com dous filhos legítimos menores que tem em seu poder,
respeitozamte. requer a VV.SS. hajão conceder ao suppe. hua data de terra,
do lado direito do aterrado, que segue para a ponte grande, logo adiante do
novo canal do Tamandatey: plo. q. R. Mce. – Assigno a rogo do snr. Anto.
Binidito da Luz. – Luiz Pacheco de Tolledo. / Ao Sr. Fiscal.178

A fórmula final, “espero receber mercê”, designa o benefício esperado, afinal a


concessão era uma forma de privilégio, e o “a rogo” imputa ao requerente a condição de
analfabeto ou incapacitado, donde a necessidade de que outra pessoa escrevesse ou assinasse
a carta em seu lugar. O “a rogo” também poderia significar, em alguns casos, certo
“apadrinhamento” e informar a quem fosse ler que o requerente era conhecido e/ou tinha boas
relações, afinal esse também era um dos critérios para a concessão e auxiliava o parecer final.
O “a rogo”, entretanto, poderia indicar quem estava por trás dos pedidos, indicando uma
manobra de acúmulo de terras: se o requerente conseguisse o lote, o assinante “a rogo” o
compraria por um valor mínimo, aumentando assim seu patrimônio. Esse parece ter sido o
propósito de João Lefebre, que tinha conseguido um lote na Mooca em 1860 e assinou três
outros pedidos “a rogo” para a mesma área. A indicação de que Lefebre comprava lotes é
objeto da reclamação feita por ele à Câmara, a respeito das datas que comprou mas não
fechou porque foi enganado por um vizinho, conforme visto anteriormente.

178
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. XVI, 1852, p. 146.
104

Figura 9: Requerimento em conjunto da família Cavalcanti para o Marco da Meia Légua em 1887. São no
total 5 membros da família: pai, mãe e 3 filhos. Fonte: AHMWL.

Como os pedidos feitos em determinados anos (1859, por exemplo) ultrapassam em


muito os números dos pedidos anteriores, foi muito comum o requerente deixar a localização
105

em aberto, ou com a indicação “aonde houver terras devolutas”. No decorrer da pesquisa,


percebemos que os pedidos com indicação clara de localização eram mais atendidos do que os
pedidos com a localização em branco, ou com os dizeres “em qualquer parte do Município”, o
que indica que estar bem informado sobre as localidades em vias de concessão era um
requisito essencial para o deferimento do processo. Para comprovar essa primeira hipótese, a
de que conhecer o local facilitava a concessão, separamos no banco de dados os pedidos
deferidos entre 1851 e 1879,179 isto é, os pedidos que foram efetivados, entre localização
conhecida e desconhecidos (cuja localização se refere a “qualquer parte do município, terras
devolutas, qualquer parte” e fórmulas vagas afins). O resultado foi que apenas 14 pedidos “em
branco” foram atendidos contra 1.191 pedidos de quem sabia exatamente a localização da
região pretendida.

Pensando nas redes de sociabilidade da São Paulo de 1850, podemos perceber que
provavelmente as pessoas deixavam esses pedidos em mãos de algum conhecido, seja o
vereador, o secretário, o fiscal, para serem lidos nas sessões da Câmara:

Diz Joana Baptista de Olivra. Prado rezidente nesta cidade que a quatro
mezes requereu a Vsas uma data de terras no caminho antigo do Telegrapho,
cujo requermto foi lido em sessão, porem a Suppe. foi menos felis do que
outros em razão de ter hido o seu requerimto para o poder do Sr Veriador
Ignácio de Araujo, este Sr retirou-se desta Cidade cem q. se envia-se a esta
Camara os papeis q. estavao em seu puder [...] 180

Neste caso, a requerente reclama também do alto preço dos aluguéis da cidade e pede
para ter preferência diante das outras solicitações, por já ter feito um pedido anteriormente,
deixado aos cuidados de um vereador que fora embora da cidade. Os pedidos deveriam ser
atendidos na ordem em que eram lidos nas sessões, daí a requerente estar preocupada: ela
entraria no fim da fila para receber o lote.

179
Excluímos desse recorte os anos 1880 porque os pedidos são bem específicos nesse período, ou seja,
praticamente não existe o “em qualquer parte do município”.
180
Encontramos diversos casos de vereadores que receberam pessoalmente esses pedidos e um caso de perda do
papel por parte do vereador, que foi embora da cidade e levou consigo o papel. CARTAS DE DATAS DE
TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de Cultura, 1939, v. XIX, 1860,
p. 144.
106

Outra manobra de interesse para acumular diversas datas e ludibriar a Câmara era um
requerente pedir em nome de toda a família sendo as datas demarcadas conjuntamente, uma
ao lado da outra:

[...] e dezeja que na demarcação se lhe conceda a da. Data contígua a de ma.
sogra Catharina Maria da Rocha, pr. que assim lhe fica mais fácil pa.
fazerem em comum os respectivos fechos plo. que espera [...].181 (grifo
nosso)

O argumento era de que desse modo ficava mais barato cercar os terrenos. Nesses
terrenos, por vezes dez datas eram deferidas conjuntamente. Encontramos um caso específico,
o dos Menezes, em que é possível mapear praticamente toda a gleba familiar. Aparentemente,
o chefe da família era a matriarca Catharina Maria da Rocha, que, embora não tenhamos
encontrado seu pedido, sabemos que teve um lote de terra deferido na Freguesia do Brás,
antes de 1850, logo após o Rio Tamanduateí. Disso temos ciência porque Catharina pediu
acréscimo em sua propriedade em 1861. Em agosto de 1860 são enviadas oito cartas que
remetem a Catharina, pedindo lotes no Brás, ao lado uns dos outros, configurando uma árvore
genealógica. Por meio dessas cartas constatamos que ela possuía dois irmãos, cinco filhos e
um genro, todos eles requerentes de lotes a junto da residência de Catharina, ou seja, ao lado
do lote concedido à matriarca:

Catharina Maria
da Rocha

irmão
irmã
José Rodrigues
Maria Thereza Rocha de Menezes

Escolástica
Bento da Silva Flora Augusta Amélia de João da Silva
Brasileira de
Menezes da Silva Menezes Menezes Menezes
Menezes Carneiro

marido
Luiz Felipe
Gomes Carneiro

181
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. XIX, 1859, p. 105-107.
107

Não sabemos com certeza se os pedidos dos Menezes foram atendidos; em caso
positivo, todavia, eles teriam conseguido, em média, um terreno de 176 metros de frente,
suficiente para configurar uma pequena chácara, levando em consideração, em termos
comparativos, que os terrenos declarados como tal no Registro Paroquial variavam
consideravelmente de tamanho – uma chácara pertencente a José Xavier Lopes de Araújo, no
final da Rua da Alegria, por exemplo, teria 275 metros de frente.182 Remetemos ao ofício em
que os vereadores pedem para aforar os terrenos do rossio dizendo exatamente que, para
formar uma chácara, é preciso que o indivíduo peça em nome de mais de uma pessoa:

[...] e sendo prohibidas mais de uma data a um só individuo, resulta


q. aquelle q. quer fundar uma chácara nos terrenos do rocio, é obrigado a
requerer dez ou mais datas em nome alheio pa. depois adquiril-os pr. venda
[.l..].183 (grifo nosso)

Portanto, tal prática era aceita pela Câmara. No caso dos Menezes, bastava que todos
os membros de sua família conseguissem datas. E essa não é uma situação isolada. Há o
exemplo dos Bastide, que encaminham em 1852 nove requerimentos com o mesmo
sobrenome. Infelizmente não há como atestar seu parentesco, como no caso dos Menezes,
mas sabe-se que Herman Bastide era o engenheiro contratado da província.184 Seus pedidos
não foram atendidos e, como alertava o fiscal do período, Francisco Mariano de Borba, os
vereadores não atentaram para o fato de que havia pedidos anteriores para a mesma região:

Nesta ocasião cumpre-me declarar que me consta haverem requerimentos


feitos antes do que também remeteo a V. Sas. pedindo terrenos no mesmo
lugar [...].185

182
REGISTRO DE TERRAS DE SÃO PAULO. Divisão de Arquivo do Estado. São Paulo: A Divisão, 1999,
vol. 5 Freguesia de Santa Ifigênia, ficha nº 119.
183
Portaria do Exmo Gov. Proval. de 20 de outubro de 1852. Registro Geral da Câmara da Cidade de São Paulo,
publicação da Subdivisão de documentação histórica, Dep. de Cultura (Divisão de Documentação Histórica e
Social), São Paulo, 1945, v. XXXV,1852, p. 134-135.
184
CAMPOS, Eudes. “A cidade de São Paulo e a era dos melhoramentos materiaes: Obras públicas e
arquitetura vistas por meio de fotografias de autoria de Militão Augusto de Azevedo, datadas do período 1862-
1863”. An. mus. paul. [online]. 2011, v.15, n.1, p. 11-114. ISSN 0101-4714.
185
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939. v. XVI, 1852, p. 176-181.
108

O tamanho reduzido do lote era um indicativo do tratamento diferenciado para as


terras urbanas, apesar da ressalva e da existência de chácaras nos entornos, dificultando a
separação entre o urbano e o rural tal como os definimos nos dias atuais.

Os requerentes eram das mais variadas camadas da cidade, barões, libertos,


professores, padres, advogados, alferes, soldados, fiscais, secretários, vereadores,
engenheiros, inspetores de quarteirão e empresários. Antes de analisar os diferentes tipos
sociais que requeriam os lotes de terra, é preciso fazer algumas ressalvas. Retiramos as
informações sobre as profissões dos requerentes da documentação sempre que possível
cruzando as Cartas de Datas com as Atas da Câmara. Para o total da documentação no
intervalo entre 1851-1890, por exemplo, temos 7021 pedidos e inferimos as atividades de 283
pessoas. Portanto, ao traçar um panorama entre pedidos e atividades desses agentes,
trabalhamos com 4% do montante dos pedidos. Ainda que pequena, essa amostra permite
entender quem eram os requerentes e como efetuaram os pedidos e suas ligações com a cidade
e com a Câmara Municipal. Foi mais fácil verificar quem eram os requerentes nos anos 1850,
1860 e 1870 porque, conforme veremos adiante, os pedidos dos anos 1880 são pobres em
detalhes e seguem um padrão de escrita conciso, excluindo os pormenores. O fato de requerer
datas não significava necessariamente a intenção de construir ou obter a posse efetiva do lote,
conforme já verificamos. O requerente pode ter repassado a data, vendido, perdido o prazo
para construir de modo que o lote caísse em comisso ou o requerente pode ter se mudado da
cidade, etc. Os números apresentados, portanto, são apenas estimativas.

Tabela 2 - Profissões coletadas nas Cartas de Datas entre 1851-1890


Profissão Quantidade
Africano livre 7
Agregada 1
Alferes 9
Alferes, oficial mecânico da estrada de ferro 1
Artista 1
Bacharel 10
Barão 2
Capitão 10
Carpinteiro 2
Caseiro do matadouro 1
Cirurgião de boca 1
Cirurgião-mor 3
Cocheiro 2
109

Comerciante 6
Comodoro 1
Conde 1
Cônego 7
Conselheiro 2
Coronel 6
Desembargador 4
Doutor 16
Doutor e secretário da Câmara 1
Empresário 3
Empresário de conservação das ruas 1
Engenheiro 7
Ex-soldado 1
Farmacêutico 1
Ferreiro e/ou engenheiro 1
Fiscal do Sul 1
Fiscal do Norte 1
Funcionário público 4
Funcionário público dos correios 1
Funcionário público, professora 3
Guarda nacional 1
Inspetor de quarteirão de Santa Ifigênia 1
Juiz Municipal 1
Liberta (os) 4
Major 2
Major e coletor 1
Marchante – Mercador de gado para o mercado 4
Médico 2
Mestre taipeiro (de taipa, tipo de construção) 1
Negociante 29
Negociante, armazém de secos e molhados 1
Oficial da cantaria 1
Oficial de justiça 2
Oficial de pedreiro 2
Oficial mecânico da estrada de ferro 1
Padre 5
Pedreiro 2
Pedreiro do cemitério 1
Prior do Convento do Carmo 1
Proprietária 1
Proprietário de fábrica de chapéus 1
Proprietário de fábrica de chapéus 1
Proprietário de fábrica de colchões e hospedaria 1
Proprietário de fabrica de fogos 1
Proprietário de fábrica de fundição de ferro e bronze 1
Proprietário de fábrica de velas 1
Proprietário de hotel 1
Proprietário de olaria 1
Proprietário do Correio Paulistano e secretário da Câmara 1
Regente do recolhimento 1
Relojoeiro 1
110

Representante da Companhia de Gás 1


Secretário 1
Secretário da câmara 7
Soldado 1
Tenente 7
Tenente coronel 3
Tenente coronel, vereador 2
Tenente honorário do exército 1
Tenente/amanuense, secretário 1
Vereador 56
Veterinário 1
Vigário 1
Viúva 9
Total geral 283

Existem algumas discrepâncias na tabela, como, por exemplo, a quantidade de


vereadores detectados. Cabe ressaltar que o trabalho com as fontes oficiais fornece os nomes
dos vereadores de cada período, logo foi simples inserir esses nomes e localizar seus pedidos.
O mesmo se aplica aos engenheiros e funcionários públicos em geral, camada expressiva no
conjunto dos requerentes. Entretanto, um fator chama a atenção: a quantidade de “africanos”,
forros ou libertos que se declararam enquanto tais.

Como carregadores, trabalhadores nos portos e nas oficinas, lavadeiras,


quitandeiras e domésticas, artesãos, escravos e negros transitavam com
extrema agilidade pelas ruas das cidades, chamando a atenção por seus
trejeitos, cores e sons [...]. 186

Embora parte essencial no funcionamento da cidade imperial, a presença dos escravos


nos documentos oficiais é pontual, tornando-os quase invisíveis. São poucos os casos
“declarados” da condição de forros e libertos nas Cartas de Datas. Dentre eles, chamamos
atenção para um caso especial:

Diz Joaquina Paz, a pouco libertada da Frega. de São Bernardo, que sendo
minimamente pobre e por isso não tem abitação própria e nem terreno em

186
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo
(1850-1880). São Paulo, 1989. Dissertação (Mestrado em História Social). FFLCH/USP, p. 41.
111

que a possa fazer, vem pedir a V.Sas. que lha permitta construir hua caza na
estrada que vai para Santos [...]187

O caso de Joaquina é exemplar: mulher e liberta, requer um lote de terra que está
oficialmente fora do rossio da capital. É atendida em seu pedido, e anos depois, vai atrás da
Carta de Data, documento oficial e comprobatório da concessão. Por causa da sua
persistência, sabemos que ela efetivamente construiu no local e que, apesar de ter conseguido
o lote, precisou insistir com a ajuda de um advogado para tirar a carta comprobatória da sua
concessão. Outros libertos também participaram do processo de concessão de datas em
determinadas ocasiões: Benedita Liberta conseguiu o lote D além da ponte na Rua Nova do
Jardim, em 1874; Joaquim Victor Tito e Felisbino Jacintho, com o apadrinhamento do
vereador Matheus Marques Cantinho, conseguiram datas no Campo da Mooca em 1878; já
Procópio, João Carlos e Augusto Africano não tiveram a mesma ajuda com seus pedidos para
datas no Morro do Caaguaçu em 1868. O pedido dos três nos remete à dissertação de
mestrado de Maria Cristina Wissenbach sobre escravos e forros em São Paulo entre 1850-
1880.188 Analisando processos-crime, a autora conseguiu detectar as regiões de moradia e
circulação das populações negras em São Paulo, localizadas nos entornos do centro arruado,
em locais posteriormente valorizados exatamente por sua posição elevada em relação ao
centro antigo:

Nos quadros da urbanização intermitente e da indefinição das atribuições


puramente urbanas, a escravidão em São Paulo apresentou alguns traços
experimentados em outras cidades brasileiras. Presente nos diversos setores
econômicos citadinos, a escravidão disseminava-se pelas várias camadas
sociais e estas, por sua vez, usufruíam dos cativos sobretudo através de
modalidades de ganho e de aluguel. Mas mostrou-se, sobretudo, desfigurada:
a pobreza dos senhores [...], a proporção relativamente pequena dos cativos
no cômputo da população, evidenciou principalmente a feição desorganizada

187
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. XVII, 1854, p. 15
188
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo
(1850-1880). São Paulo,1989. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. Segundo a autora, esse período é marcado pela desarticulação
crescente do regime escravista.
112

da instituição, confundindo escravos com os demais setores desclassificados


da sociedade.189 (grifo nosso)

A autora aponta o Morro do Caaguaçu e região do Telégrafo no espigão da futura


Avenida Paulista e entornos do Paraíso, além desses locais, destaca a região da futura Av.
Brigadeiro Luís Antônio marcada pela presença de grande número de libertos e escravos
fugidos:

[...] o afastamento das populações negras – sobretudo dos libertos – do


núcleo central. Nas zonas das chácaras, não muito distantes da Sé,
formavam-se as primeiras periferias da cidade onde se abrigavam tais
populações. Coincidentemente, nos mesmos locais que, posteriormente,
seriam eleitos como as zonas nobres dos palacetes da burguesia do café.190

Os pedidos de Procópio, João Carlos e Augusto Africano indicam que essa localidade
realmente era zona de atração da população negra.

Ao observamos o Mappa da Cidade de São Paulo e seus Subúrbios (1844-1847). do


Engenheiro civil C. A. Bresser., verificamos o quanto essa região, naquele momento, era
distante do centro da cidade.191 Ainda assim, ao invés da posse, algumas pessoas optaram pelo
caminho oficial, ou seja, o pedido de concessão de datas, o que pode significar que a Lei de
Terras, apesar de todos os problemas, abre caminho para o sentido de propriedade.

Caso intrigante é o de dois casais de libertos: Izaías e Cândida e Roque e sua mulher.
Juntos, eles conseguiram seis lotes de terra no Hipódromo, em 1880, por meio de pedidos
assinados a rogo – ou seja, com apadrinhamento – pelo Dr. Joaquim de Paula Souza, político
influente de quem os casais foram escravos.192

Casos velados da condição de libertos devem existir aos montes nos pedidos, mas um
em especial veio à tona por conta de conflito de interesses: Benedito Bonilha requer um lote

189
Op. cit., p. 7-8.
190
Op. cit., p. 10.
191
As pessoas reclamavam constantemente da distância do Cemitério da Consolação para o centro, que dirá do
espigão da Paulista próximo à Av. Brigadeiro Luís Antônio e ao Paraíso.
192
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939. 1880, v. 1, nº 2030.
113

na Mooca e, no processo de demarcação, o engenheiro a serviço da Câmara, Fernando de


Albuquerque, não demarca o lote do requerente, passando outras pessoas a sua frente:

[...] tendo o suppe requerido a Ilma Camara antecessora de ? uma data de


terras no lugar Hyppodromo [...] Isto porém não aconteceu, apresentou-se o
Dr. Engenheiro só, e demarcou ao supplicante um lugar, que o supplicante
rogou-se ?, dizendo do referido Engenheiro que já tinha sido por ele dado a
outrem [...] acontece porem que, depois de ter o supplicante feito despesas
com títulos e alinhamento, que pagou ao secretário d‟esta Camara
apresentou-se o mesmo Engenheiro e exijio a entrega da referida data a
outrem [...].”193

O engenheiro afirma, em defesa própria, que o suplicante é velho, pobre e entendeu


tudo errado, já que sua data foi demarcada como de costume e dentro das normas:

Em vista do requerimento que Bunilha apresentou a Camara o engenheiro


dirigio-se ao lugar e por informações dos visinhos soube que aquelle terreno
tinha sido demarcado para outra pessoa depois da demarcação feita para
Bunilha [...] não podemos deixar de estranhar a maneira porque procurou-se
accusar ao engenheiro da Camara[...].194

Frisa o engenheiro Fernando de Albuquerque que o suplicante é desvalido, analfabeto,


preto e tem problemas para compreender o que acontece no seu redor. O ponto interessante da
defesa do engenheiro é exatamente esse: desqualificar o requerente, pintá-lo como
praticamente senil e expor negativamente a sua cor e condição social.

Essa não é a única reclamação contra o engenheiro citado:

Tendo eu requerido a V.V.SSª pedindo uma dacta de terreno que essa


camara possue na rua da pólvora em frente ao matadouro para ahi construir
uma pequena casa aonde podesse habitar com minha mulher e cinco filhos

193
“Requerimento de Benedicto Baunilha reclamando do engenheiro, Fernando de Albuquerque.” CARTAS DE
DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação Histórica.
Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939. 1881, v. 1, nº 2030, p. 10.
194
“Ofício do engenheiro Fernando de Albuquerque de 13 de Fevereiro de 1881”. In: CARTAS DE DATAS DE
TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação Histórica. Departamento de
Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939. 1881, v. 1, nº 2030, p. 57 e subs (numeração à
lápis).
114

de 8 annos para menos. Dignarão-se V.V.SSª deferir o meu requerimento


concedendo-me o terreno, acontece porem que indo não a comissão ou
algum Vereador dermarcar e destribuir as dactas pelos requisitantes que por
direito e em relação a sua pobresa devião ter foi segundo disem o seu
secretario quem demarcou e destribuio dando os melhores lugares a pessoas
de fortuna e recursos e que posteriormente aos pobres pedirão dacta e
demarcando para mim e outros pobres os lugares peiores que existem
impossível a pessoas pobres nelles construírem qual quer casa pelo grande
dispêndio de dinheiro que é preciso. Em vista, pois de tam injusta
distribuição e de ser-me inútil a dacta nº 23 que me derão os Snrs
distribuidors, agradeço a V.V.SSª a bondade de terem deferido minha
pretensão a fim de que reverta essa dacta de terreno em favor de quem já
tem duas, trez e mais dactas de terreno.195

A queixa de José Ignácio Rodrigues, ainda anterior à de Benedito Bonilha, diz respeito
não somente à demarcação, mas ao fato de as melhores terras terem sido dadas a outras
pessoas e de ser impossível construir no terreno recebido. Essa é uma reclamação constante: a
impossibilidade de construir no terreno alagadiço ou impróprio para plantações. William
Elliot, outro engenheiro, recebe em 1859 um terreno na Rua dos Mendes, Várzea do Pary,
próximo à Ponte Grande e logo em seguida reclama: o terreno é impróprio para plantações em
julho, pois a região permanece alagada a maior parte do ano. Outro motivo de reclamação é
quando não se consegue fechar o terreno por ação dos antigos moradores da região, que se
opõem ferozmente ao arruamento e impedem a construção dos novos moradores. É o caso de
Manoel Pereira de Magalhães, que recebeu um lote nas Perdizes e diz não ter conseguido
fechar o terreno porque durante a noite lhe roubavam o fecho. A situação o levou a pedir para
mudar a localização da data para o Marco da Meia Légua em 1883.

Graças à pesquisa de Maria Luiza Ferreira de Oliveira,196 pudemos reconstruir outra


ocorrência igualmente interessante: o caso de um cocheiro chamado Marcelino Alves da Cruz.
Ele pediu data nas Palmeiras ou Campo Redondo (atual região dos Campos Elíseos), em 05
de dezembro de 1861. Foi atendido em seu pedido e construiu sua casa de taipa na Rua dos

195
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939, v. 1, 1864-1874, p. 71.
15/12/1865.
196
OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Entre a casa e o armazém – relações sociais e experiência de
urbanização São Paulo, 1850-1900. São Paulo: Alameda, 2005.
115

Bambus, atual Avenida Rio Branco197, vindo a falecer em 1879. Seu procurador foi o
advogado abolicionista Luiz Gama,198 o que nos leva a supor que ele era no mínimo mestiço.
Seu filho, entretanto, aparece em mais de 20 dos registros paroquiais de Santa Ifigênia, tendo
inclusive 2 sítios na região da Ponte Grande de Santana. Além disso, existe a possibilidade de
Marcelino ter construído mais de uma casa nos seus terrenos, uma vez que “possuía casinhas
de aluguel”.

Olympio Catão, em 1871, faz um pedido devido aos seus serviços prestados:

Não deveis estranhar ao velho funcionário este pedir: sérvio do [Cais] por
mais de 20 annos, consagrando-se á causa da República des‟de a sua
mocidade, sendo certo que o suppe não é negociante de terras, é pobre e
carregado de filhos [...]. 199 (grifo nosso)

Nota-se a ênfase no afirmar abertamente que não é negociante de terras.

O alferes reformado Joaquim Xavier de Mattos Salles afirma “[...] que fes a Campanha
do Paraguay, na expedição de Matto Grosso, desejando edificar uma casinha”. Em meados de
1879, Joaquim José de Santana declara com semelhante propósito: “[...] ferimentos recebidos
na Campanha do Paraguay, ferimento que o impossibilitou do serviço”. Esses casos lembram
que, originalmente, os lotes eram concedidos exatamente para quem demonstrasse ter feito
serviços em prol da comunidade.

Pedido de cunho aparentemente religioso, Caetano Rodrigues Mendes alega em 1851


que precisa de um terreno:

[...] que tendo elle suppe. por devoção hua Santa Cruz, collocada no logar
denominado Campo Redondo, tenciona levantar-lhe hua casinha para mais
decência, e como para melhor zellar deseja construir hua pequena casa para
sua habitação junto d‟aquella [...].200

197
“Nessa época, a rua dos Bambus ainda abrigava famílias de cocheiros e carroceiros, mas, pouco depois, não
só mudaria de nome, para Alameda Rio Branco, como seria valorizada, dificultando, para as famílias mais
pobres, o acesso à propriedade”. Op. cit., p. 45.
198
Op. cit., p. 41.
199
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939, v. 1, 1864-1874,
Manuscritos.
200
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. XVI, 1851. p. 32.
116

Seria inocentemente religioso se essa região não fosse de intenso crescimento


populacional. Localização cobiçada durante a década de 1850, trata-se da chamada “Cidade
Nova” desde loteamento arruado em 1808 pelo Coronel José de Arouche de Toledo Rendon.
O pedido de Caetano é aceito, mas com condições:

[...] sem que aquella embarace o tranzito publico q. alli se faz pr. um e outro
lado da cruz, e outro sim não servindo esta permissão ao supe. de título em
tempo algum chamar-se posse e propiede do terreno em q. levantar as das,
casas e do que se lhe fará expressa mensão por escripta.201

Apesar da ressalva expressa de não se dizer, em tempo algum, dono e proprietário


quando do Registro Paroquial em 1856, o registro de nº 51 de Santa Ifigênia informa como
sua propriedade o terreno que lhe foi concedido conforme as condições explicitadas. Em
1857, moradores da região reclamam que, além de não construir uma casa decente para a
cruz, Caetano fechou mais terreno do que o necessário para sua morada, privando as pessoas
do logradouro público. Em vez de se defender da acusação, Caetano pede providências da
Câmara, que responde:

[...] q. essa oposição provem de ter o suppe. hido mto. alem da concessão da
Câmera, pr. isso q. esta fexando 20 a 30 braças de terreno, sendo q pelo
documto. q. juntou-se vê-se q. a Camra. Conferio-lhe unicame. faculdade p.a
edificar duas cazinhas [...].202

Os vereadores pedem para que o fiscal derrube os valos que fecham o terreno.
Entretanto, três anos, depois Caetano remete novo pedido para a Câmara: requer a
demarcação efetiva do terreno e a carta de data, o que indica que o fiscal não o privou do
terreno203. Apesar de analfabeto – todos os seus requerimentos são assinados “a rogo por não
saber ler e escrever” – Caetano, assim como outros requerentes, era muito bem informado
sobre os procedimentos da Câmara e não se intimidou até conseguir a carta de data, apesar
das restrições inicialmente impostas. Ainda em 1882 encontraremos episódios de doações
temporárias a título precário, – como o caso de Caetano, que não era considerado “dono e
proprietário” – mas tendem a burlar as decisões camarárias a longo prazo. Gasparine Luigi,
201
Idem. p. 33.
202
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. XVII. 1857. p. 96.
203
Idem, vol. XIV, 1860.
117

que cultivava em terrenos de uso comum na Várzea do Carmo, de frente para a Rua do
Gasômetro:

[...] em virtude da deliberação da Câmara, em sessão de hontem, obrigou-se


a conservar cercado e cultivado a nesga de terreno que lhe foi concedida pela
Camara na Várzea do Carmo, com frente para a rua do Gasômetro, até que
convenha a mesma Câmara [...].204

Em anexo, coloca uma procuração para poder construir uma casa no mesmo local,
alegando “necessidades materiais”. É o mesmo caso da cruz, agora revisitado na Várzea do
Carmo.

Luiz Gama,o advogado abolicionista, intercede em 1882 em favor de outras pessoas.


Aparecem requerimentos em papel timbrado com o carimbo de Luiz Gama, Travessa da Sé n.
4, interferindo em favor de “Benedicta Joaquina do Carmo, desta cidade, minimamente pobre,
por que deseja garantir a creação e educação de seus filhos [...]”.205 Para aguçar nossa
curiosidade sobre o assunto, Benedicta requereu lote na Rua de Santo Amaro, que, conforme
já dissemos, era região que atraía forros e libertos em São Paulo.

A presença de todos os grupos sociais e profissionais, desde professoras até barões,


indica que qualquer um poderia requerer um lote de terra, embora não signifique que todos
tenham sido atendidos – ou mesmo que tenham conseguido construir. Por outro lado, as
profissões destacadas poderiam ser expressas nas cartas justamente para ter o pedido
justificado: ser negociante e comerciante comprovava que a pessoa poderia edificar no
terreno; já doutor, bacharel e capitão ressaltava sua condição perante a Câmara; o vereador e
o secretário da Câmara tinham prestado serviços à cidade, e assim por diante. A título de
exemplo, cabe mencionar que o fotógrafo Militão Augusto de Azevedo requereu lote na
Estrada de Vergueiro em 1880, tendo seu pedido atendido, assim como anos antes, em 1859, a
Marquesa de Santos também fora agraciada com uma data no Arouche.

CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação


Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939, v. 2040, 1885.
Manuscritos.
205
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939, v. 5, 1882,
Manuscritos. 12/8/1882.
118

Aliás, as mulheres são um caso à parte nas Cartas de Datas: elas aparecem em muitos
pedidos, como o da família Menezes, tomando a iniciativa pela família. É claro que o fato de
uma mulher requerer um lote pode ser um sintoma de que seu marido, pai, irmão, tutor
queiram acumular mais terra e aumentar seu patrimônio. Entretanto, não podemos descartar o
fato de a cidade de São Paulo, como nos comprova os estudos de Maria Odila,206 ser uma
região de presença feminina marcante, seja por um fator estritamente cultural, seja em razão
de sua localização estratégica. Herança do período colonial, até o fim do primeiro quartel do
século XIX, a cidade interligava regiões diferentes, nas quais as atividades desenvolvidas
solicitavam a presença masculina fora do núcleo:

Entretanto, não era apenas o deslocamento ou a presença intermitente dos


homens que explicariam o fenômeno de mulheres sós chefes de família:
fator crucial seria também a rígida divisão de esferas de atividades de um
sexo e outro [...].207

Seja como for, a presença das mulheres nos pedidos revela mais do que a submissão
ao casamento ou a um tutor, por exemplo. Elas são dos mais diferentes estratos da sociedade,
como as já citadas Marquesa de Santos e D. Bárbara Bierremback, proprietária de uma fábrica
de chapéus, que pediu lotes de terra na mesma região da Cidade Nova. Um ano depois, seu
marido consegue data contígua à de D. Bárbara e outros dois Bierremback: Isabel e João
Antonio. Ainda consta que João Bierremback fez negócio com Candido José da Silveira
Pinto, adquirindo dele o lote que fazia fundos com a data de D. Bárbara. Já falamos do caso
da liberta Joaquina Paes, que apesar de ter acontecido fora do rossio da capital, é um exemplo
de pedido e insistência para conseguir o documento.

Um ponto a ser observado é com relação ao sobrenome das mulheres, pois como
sugere Maria Odila, analisando as listas de recenseamento:

Tinham o costume sugestivo de abandonar os nomes de família e de adotar


nomes próprios [...]. Talvez porque tivessem nascido bastardas, ou porque

206
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense,
1984.
207
Op. cit., p. 29.
119

vivessem em concubinato, mais provavelmente porque não tinham os meios


decentes de sobrevivência, impostos pelos padrões da terra.208

Optamos por um olhar mais atento aos sobrenomes (ou à ausência deles), conforme
surgiam na documentação. Um rápido levantamento e constatamos nomes simples: Maria
Joaquina conseguiu um lote na Freguesia do Brás em 1852; Maria Benedita teve um lote
deferido na Rua da Barra Funda em 1859; Maria das Dores na Travessa do Pary, esquina da
Rua do Araújo, também em 1859; Maria da Gloria na Travessa do Fox, Anna Angélica na
Rua do Pary; Maria Eliza na Rua do Arouche; e Maria das Dores no Telégrafo. Falaremos em
padrões de ocupação no capítulo 3, mas podemos adiantar que, no caso das mulheres, seus
pedidos acompanhavam o ritmo de expansão da cidade.

As mulheres fizeram 32,4% dos pedidos totais entre 1851-1890 e foram atendidas em
70% dos casos. Interessante observar que apesar de os homens terem efetuado mais pedidos, a
porcentagem de concessões entre os dois sexos foi praticamente a mesma, ou seja, em torno
de 70%.

Tabela 3 - Lotes concedidos entre homens e mulheres – 1850-1890

Sexo Pedidos Concedidos

F 2279 1618

M 4742 3193

Total 7021 4811

Entretanto, não podemos descartar as possibilidades de fraudes nos pedidos e no repasse


de datas, a exemplo de dois casos suspeitos que mereceu a interferência do Padre Thomaz de
Molina. O Padre requereu e conseguiu uma data na Várzea do Pary, próximo à Ponte Grande de
Santana; logo em seguida, seu nome aparece “a rogo” intercedendo por duas mulheres,
Gertrudes Maria Rosa Gonçalves e Adelaide Eufrosina Gonçalves de Souza, ambas pedindo os
lotes confinantes com o do padre. Esses dois casos, datados de 1859, nos remetem a outro
sacerdote objeto de reclamação da Câmara:

208
Op. cit., p. 24.
120

[...] Admira que um Padre, veterano se anime a fazer um abaixo assignado


desta ordem, deixando de fallar a verdade [...] O Sr. Pe. Maximiano José
Côrrea da Silva, já versado na possessão de datas, sem duvida não hade
ignorar, que um individuo não pode ter em seu nome mais de do que uma
data [...]. 209

O texto segue num tom inflamado afirmando que no livro constam diversas datas do
requerente e a venda de algumas delas sem o controle da Câmara, mencionando que qualquer
“repasse” de datas deveria ter autorização e pagamento do imposto de transferência. Não
temos indicação alguma de que o Padre Thomaz de Molina estivesse fazendo o mesmo que o
Padre Maximiano, mas é um indicativo interessante que ele tenha assinado esses requerimentos
em nome das senhoras cujos lotes recebidos faziam divisa com o seu, podendo em teoria
aumentar seu patrimônio.

Uma das hipóteses iniciais da pesquisa era a de que as pessoas com ligações na
Câmara Municipal foram as mais beneficiadas com lotes de terra. Isso foi comprovado em
uma pesquisa recente sobre questões fundiárias no período colonial.210 Os oficiais da Câmara
tratavam o patrimônio público como extensão de suas propriedades privadas, característica de
uma sociedade patrimonialista colonial. Logo, motivou-nos inicialmente a perscrutar os
pedidos dos vereadores e seus familiares na intenção de verificar usos indevidos das suas
atribuições políticas. Constatamos tratar-se de um período de transição nas formas de
apropriação do espaço e na concepção de propriedade fundiária. Nesse contexto, pareceu-nos
interessante observar num movimento oposto, a porcentagem entre pedidos dos oficiais da
Câmara e das pessoas comuns comparativamente. Para isso, pegamos os nomes dos
vereadores e secretários da Câmara do período de 1851 a 1890 e cruzamos com os pedidos de
datas211 constante do nosso banco de dados.

209
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, volume XIX, 1860, p. 170.
210
RIBEIRO, Fernando V. Aguiar. Poder local e patrimonialismo: a Câmara Municipal e a concessão de terras
urbanas na vila de São Paulo (1560-1765). São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado em História Econômica).
FFLCH/USP.
211
Os nomes dos fiscais foram tirados das Atas da Câmara. A relação vem sempre transcrita na contracapa do
material publicado.
121

Em um total de 7021 pedidos, apenas 69 são diretamente de vereadores, secretários e


fiscais. Esse valor representa menos de 1% do total dos pedidos. Dos 69 casos, 58 são de
vereadores. Antonio Joaquim Tavares Rodovalho faz dois pedidos num intervalo de dez anos,
curiosamente para acréscimos, ou seja, ele já tinha um lote no local e desejava acrescentar
área ao redor. Interessante que, no período abrangido pelos pedidos de Rodovalho, 1851 e
1861, prevalecia a postura que proibia mais de uma data para um único indivíduo. Entretanto,
como o caso era de acréscimo, ou seja, para incorporação a uma propriedade já estabelecida, o
vereador, tecnicamente, não estava descumprindo postura alguma. O caso do vereador
Francisco José de Azevedo Júnior corresponde a pedido de um lote em 1851, no Aterrado da
Ponte Grande, seguido de um acréscimo em 1852 cujo tamanho era, praticamente, o de uma
data (oito braças de frente por 25 de fundo). Gabriel Marques Cantinho consegue em 1859,
na Rua de São João, um lote que fazia divisa com o terreno do irmão e, logo em seguida,
obtém mais uma data no Campo Redondo, próxima à Rua de São João. João Tobias de
Aguiar Castro consegue um lote na Rua do Araújo, Várzea do Pary, também em 1859, e dois
meses depois pede acréscimo para uma propriedade na Freguesia do Brás, em frente à igreja.
Claudio José Pereira requereu uma data na Rua do Araújo em 1859 e outra na Várzea do Pary
com um mês de diferença entre os pedidos. Luiz Pacheco de Toledo pede acréscimo na
propriedade que já possuía no Aterrado da Ponte Grande em 1851, requerendo novo
acréscimo em 1859. Vale lembrar que todos os casos analisados são de pessoas que pediram e
conseguiram duas datas, à revelia das diretrizes emanadas das posturas de 1830, que só
seriam alteradas a partir de 1875. Portanto, o fato de ser vereador permitia ao grupo
descumprir a lei, 53% dos pedidos foram atendidos. Apesar São claras as vantagens
concedidas aos pedidos dos vereadores, tais como a concessão de mais de um lote em período
de proibição dessa prática.

Os fiscais da cidade também fizeram pedidos. Rufino Mariano de Barros obteve um


terreno na Rua da Glória, próximo à Ponte do Lavapés, em 1859. Ao alinhar para construir no
terreno, ele reclama dos custos do alinhamento e do fecho.212 Já o fiscal do Sul da Sé,
Francisco Antonio de Borba, não teve seu pedido atendido. Em 1859, Manoel José Carneiro,
secretário da Câmara em 1857, recebeu uma data na Rua do Matadouro. Assim também
ocorreu com Antonio Egydio de Moraes, secretário em 1852 e proprietário do jornal Correio

212
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. XIX, 1859, p. 1.
122

Paulistano, que pediu uma data em 1859 no Campo Redondo e a conseguiu em 1865. A
diferença de tempo, no caso de Antonio Egydio, pode ter ocorrido porque em 1860 já não
tinha mais terreno devoluto no Campo Redondo e ele deve ter esperado alguma data cair em
comisso para conseguir o terreno no lugar que desejava, não por acaso um dos mais
procurados da cidade.

Até 1875, conforme já dissemos, só era permitido obter um lote de terra por pessoa.
Entretanto, isso foi burlado por alguns vereadores e a lei não impedia as pessoas de pedirem
mais de uma vez. Esse foi o caso, por exemplo, de Joaquim Gomes de Almeida, que teve uma
data deferida na Rua do Marechal, no Campo Redondo, em 1859 e que, em 1862, pediu outra
data possivelmente caída em comisso também no Campo Redondo. Joaquim Alves, por sua
vez, pede em 1859 uma data no Lavapés e é atendido. Pede novamente, ainda em 1859, um
mês depois de ter sido atendido, um lote em “qualquer lugar do município” e é ignorado. Em
fevereiro de 1860, consegue outra data, desta vez no Morro do Telégrafo (área atualmente
ocupada pelo Shopping Paulista). Vicente de Andrade envia em 1851 dois pedidos para a
Câmara com dois dias de diferença entre um e outro; no primeiro pede data no Aterrado de
Santana e, no outro, no Arouche, tendo conseguido data na segunda localidade.

Joaquim Mathias Bicudo consegue data no Aterrado de Santana em 1851, e seis meses
depois pede acréscimo em suas terras. Novamente em 1859 aumenta seu patrimônio através
de acréscimo. No Registro Paroquial de Santa Ifigênia feito por ele em 1855 consta que, além
do pedido de acréscimo, Joaquim comprou terras de dois vizinhos, Joaquim Francisco de
Toledo e Pedro Mathias. Seu terreno, na frente do Recolhimento da Luz, media 36 braças de
frente, 36 do lado esquerdo e 41 do lado direito. Antes do novo acréscimo de 1859, portanto,
ele tinha o equivalente a três datas e meia de frente. Como os fundos do seu terreno eram
voltados para o rio, sempre que esse era retificado havia a possibilidade de aumentar seu
patrimônio. Joaquina Maria das Dores aparece com quatro pedidos entre 1859-1860, sendo
dois deles atendidos para a região do Brás, inclusive num terreno alagadiço ao lado do seu.
Antonia Eufrosina, entretanto, teve que fazer três pedidos para o mesmo local, entre 1859-
1878, atingindo seu objetivo apenas no último deles, referente à Rua Dr. João Theodoro.
Gabriel Antonio Fernandes enviou quatro pedidos entre 1871-1874 e teve uma carta atendida
na Rua Nova do Gasômetro em 1874. José Alves Fernandes, no entanto, mereceu deferimento
dos três pedidos solicitados no Arouche e no Campo Redondo, vendendo um dos lotes.213

213
REGISTRO DE TERRAS DE SÃO PAULO. Divisão de Arquivo do Estado. São Paulo: A Divisão, 1999,
vol. 5 Freguesia de Santa Ifigênia., ficha nº 163.
123

O que verificamos nesses pedidos duplicados e até triplicados é que, em muitos casos,
as pessoas persistiam em suas intenções, chegando a solicitar diversos lotes ao mesmo tempo
na esperança de serem atendidos. Às vezes conseguiam, mas em muitos casos não: Joaquim
Pinto Ferraz fez três pedidos entre 1859-1863 e não foi atendido em nenhum, Antonio Carlos
Ferreira e diversos outros indivíduos que desesperadamente, pediram lotes “em qualquer parte
do município”, tiveram seus pedidos recusados sistematicamente.

O que verificamos no decorrer da pesquisa é que pleitear localidade previamente


escolhida era um passo importante, afinal, as cartas com clara indicação de lugar eram
respondidas em geral de forma positiva, enquanto aquelas vagas corria o risco de esperar
indefinidamente. Apesar de pedirem mais de uma vez, são raros os casos de pessoas
agraciadas com mais de uma data entre 1851-1874. Conforme vimos, as exceções envolviam
pessoas influentes, como o Barão de Antonina ou algum vereador, mas não se tratava da regra
geral.

Observando as recorrências de um mesmo nome no banco de dados, verificamos que


aproximadamente 599 indivíduos aparecem fazendo mais de um pedido. Essas pessoas
apresentaram 1.324 requerimentos, correspondendo a 18% do total de pedidos. A média de
pedidos varia entre 2 e 3 lotes, sendo que a maior parte desses pedidos foi feita após as
posturas de 1875, ou seja, dentro dos parâmetros exigidos pela legislação municipal da época.

Entretanto, por razões metodológicas, quando o requerimento era feito em nome de


diversas pessoas, só geramos uma entrada no banco de dados, afinal compreendia apenas uma
Carta de Data. Notamos que a frequência de pedidos em conjunto (atingindo um máximo de
19 em uma única carta num caso isolado) foram mais frequentes entre 1882-1887 e tiveram
como foco a região do Pacaembu e das Perdizes, apesar de existir esse tipo de registro desde
1852 para localidades diversas. Trata-se de 61 requerimentos enquadrados nessa modalidade,
ou seja, das 599 pessoas que fizeram mais de um pedido, aproximadamente 10% o fizeram em
um único requerimento. O caso mais chocamente é o de Amador da Cunha Bueno, que em
1882 elaborou um pedido para 19 pessoas de diferentes sobrenomes, todos para a região da
Mooca. Dox 61 requerimentos feitos em nome de um grupo de pessoas, aproximadamente 27
mereceram deferimento, ou seja, 44% do montante.
124

2.3. ARGUMENTOS UTILIZADOS NAS REQUISIÇÕES DE DATAS

Para que fins destinam-se as datas requeridas? Esse é um dos pontos interessantes da
pesquisa: apesar da data de terra ser um lote eminentemente urbano, seus eram são os mais
diversos: construir para morar; construir “rancho para tropeiros”; casa de negócio; cultivar
forragem; construir capela; casa de banho e até, como vimos, casa para uma cruz. Para fazer
esse levantamento, observamos os argumentos apresentados nas próprias Cartas de Datas.
Infelizmente, em diversas ocasiões – em 1859, por exemplo – quando os pedidos eram
muitos, as cartas eram simplificadas e perdiam sua especificidade. Entretanto, em períodos de
poucos pedidos as cartas ganhavam detalhes capazes de propiciar a reconstrução da trajetória
de vida de alguns indivíduos urbanos. Decidimos listar os argumentos, quando apareciam. Do
total, constam 2.310 ocorrências dos 7.021 requerimentos com argumentos que justificavam a
solicitação correspondente a 32% dos pedidos. Optamos por não filtrar ou agrupar os
argumentos214. Como não é da alçada deste trabalho investigar essa diferenciação, optamos
por manter os argumentos da forma que aparecem na documentação. Os argumentos serão
analisados por década para exemplificar alguns casos.

Tabela 4 – Argumentos presentes nas Cartas de Datas entre 1850-1859


Argumentos Ano
1851 1852 1853 1854 1855 1856 1857 1859 Total
Acréscimo 8 8 2 1 1 2 3 12 37
Acréscimo, aforar, arrendar 1 1
Aforar 1 1 4 1 7
Comisso 1 1
Edificar 15 15
Edificar casa 2 2
Edificar casa para si e para uma cruz 1 1
Edificar casa, aumento do patrimônio 1 1
Edificar morada de casas 3 3
Edificar prédio 1 1
Edificar, habitar 1 1
Estabelecer negócio 1 1
Fábrica de louça 1 1
Fazer oficina de ferreiro 1 1
Olaria 1 1
Rancho para tropeiros 1 1
Total geral 30 9 4 1 2 6 4 19 75

214
“Edificar casa” ou “edificar morada de casas” poderiam significar coisas diferentes, com a primeira
representando apenas uma casa simples e a segunda correspondendo a mais do que uma casa para alugar, por
exemplo.
125

Entre 1850-1859, percebemos a grande quantidade de acréscimos. Esse argumento era


utilizado em momento de suspensão de concessões de terra. Consistia em pedir um pedaço de
terreno anexo ao já possuído. Domingos de Paiva e Azevedo, homem de negócios segundo a
lista de capitalistas215 do Almanak de 1857, queria obter um acréscimo em 1853. Sabendo da
suspensão das concessões desde a Lei de Terras, ele propõe “aforar ou arrendar” o terreno.
José Alves Fernandes propôs o valor anual de 400 réis por braça, sendo um total de 4 braças
arrendadas em 1855 na região em torno da Rua de Santo Amaro. Felisberto Vieira de Oliveira
propõe a compra de um terreno “aquém” de Pinheiros com 60 braças de frente (132 metros)
por mil réis por braça ou um aforamento de 10 réis anuais por braça (cada braça
correspondia a 2,2 metros). A palavra “patrimônio” presente no requerimento do(a) Regente
do Recolhimento de Santa Teresa correspondia a um terreno utilizado como lixão na Ladeira
do Carmo, o que nos leva a inferir que se trata de um terreno a ser utilizado com para auferir
renda de aluguel. A expressão “morada de casas” aparece em três requerimentos diferentes no
o mesmo local. Lino Pires de Albuquerque se intitula negociante e propõe “estabelecer
negócio” na Estrada para Santos. João Evangelista da Silva pretende abrir uma “fábrica de
louça” na Barra Funda, região famosa por suas olarias. Mariano José de Oliveira obtém duas
datas de terra na região da Ponte Grande para montar uma olaria e Henrique Pupo de Moraes,
“um rancho para tropeiros” na Estrada para Campinas, logo após o Arouche.

Tabela 5 – Argumentos presentes nas Cartas de Datas entre 1860-1869


Argumentos Ano
1860 1861 1862 1863 1864 1865 1866 1867 1868 1869 Total
Acréscimo 8 8 5 1 2 2 4 30
Alto valor dos aluguéis 1 1
Comisso 1 30 1 2 34
Comisso, acréscimo 1 1
Comprar 1 1 2
Construir casa de banho 1 1
Construir templo 14 14
Cultivar 4 4
Edificar 6 15 2 3 3 1 2 2 34
Edificar casa 2 22 9 33
Edificar casa, cultivar 1 19 8 28
Edificar casa, data 1 1
abandonada

215
Aqui com o sentido de “homens que possuem capital, dinheiro”.
126

Edificar casa, pobre 7 2 9


Edificar casa, pobre, alto 1 1
valor dos aluguéis
Edificar casa, residência 1 1
Edificar fábrica de pólvora 1 1
Edificar morada de casa 1 1
Edificar, cultivar 12 3 5 3 1 24
Edificar, cultivar, pobre 1 1
Edificar, habitar 3 14 6 6 29
Edificar, morada de casas 2 2
Edificar, pobre 1 1
Formar chácara 3 3
Fundar propriedade 2 2
Habitar 1 2 3
Habitar, alto valor dos 1 1
aluguéis
Pobre 1 1
Pobre, habitar 1 1
Terreno devoluto, edificar 3 3
casa
Total geral 11 83 95 5 8 20 16 3 17 9 267

A partir de 1860 cresce o número de pedidos de terras que caíram em comisso, ou seja,
lotes concedidos mas não edificados no prazo estabelecido pela Câmara. A carência de fiscais
em número suficiente para vigiar o cumprimento das posturas era suprida pela vigilância
informal de pessoas comuns que em muitos casos sabiam mais sobre o lote do que os próprios
fiscais. As datas caídas em comisso eram, na sua maioria, na região do Campo Redondo
(Arouche e imediações). Em 1861, Antonio Luís Vieira da Motta solicitou a “data de
Francisco Taques de Alvim”, até aquele momento não edificada. Já Manoel José de Oliveira
pediu a “data de Flauzina”. Rita Carolina da Silva Santos requereu a data atrás da igreja do
Brás pertencente, segundo ela, a João Fernandes Tenório. Outro argumento crescente em 1860
era o de “cultivar”. Os locais assim solicitados variavam entre a Estrada de Santo Amaro,
Mooca, Brás (o chamado “Campo da Tabatinguera”, região de várzea logo após a Ladeira da
Tabatinguera e próximo ao Brás), e o Morro do Caaguaçu (futuro espigão da Avenida
Paulista). Entre os que alegavam “pobreza extrema”, a grande maioria queria a áreas no
Morro do Telégrafo, que hoje corresponde a região do Paraíso. Curiosamente, os que falam
em “fundar propriedade” pedem lotes na “Cidade Nova” (Campo Redondo). Conforme
veremos no capítulo 3, a diferença de argumentos confirma tendências de ocupação da cidade,
contando a “Cidade Nova” com moradores mais abastados. Em 1861 o Dr. Joaquim Antonio
Pinto Júnior requereu terreno próximo ao Porto Geral (atual Rua 25 de Março, Ladeira do
Porto Geral) para construir uma casa de banho. Terreno para um templo foi solicitado na Rua
127

da Alegria por iniciativa de 14 homens que se comprometeram a devolver as terras para a


Câmara, 140 braças no total, a qualquer momento, conforme fosse solicitado.

Tabela 6 – Argumentos presentes nas Cartas de Datas entre 1870-1879


Argumentos Ano
1870 1871 1872 1873 1874 1875 1876 1877 1878 1879 Total
Acréscimo 6 6 3 1 1 5 22
Aforamento 1 1
Comisso 1 4 3 1 9
Construção de capela 1 1
Cultivar 1 1
Cultivar forragem 1 1
Cultivar, edificar 6 6
Edificar 1 7 11 5 4 44 75 147
Edificar prédio 1 1
Edificar, casa 9 9
Edificar, casa, serviços militares 2 2
prestados
Edificar, cultivar 1 2 5 8
Edificar, habitar 1 1 2 1 12 10 35 62
Edificar, morada de casas 2 2
Edificar, prédio 9 1 10
Edificar, habitar 2 2
Formar estabelecimento 2 2
industrial
Habitar, comisso 1 1
Total geral 2 7 16 4 1 20 7 20 79 131 287

Em 1875, José Porfírio de Lima Filho, provavelmente filho do engenheiro José


Porfírio de Lima – que atuara por diversos anos como vereador em São Paulo e como
engenheiro da Câmara – requereu lote para construir um “estabelecimento industrial para
cultura de vinha, linho, senteio [sic] e outros vegetais [...]”. Para tanto, pediu concessão de 10
datas de frente e seis de extensão, em terreno alagadiço, onde fariabenfeitorias “sem custos
para a Câmara”. No seu parecer, o fiscal afirmou existirem terrenos disponíveis na Freguesia
do Brás, um em especial com 120 braças de frente e com fundos alagadiços. Apesar de ter
conseguido as datas solicitadas, ele nunca construiu ou plantou no local porque em 1877 esse
terreno aparece como caído em comisso. Na região do Caaguaçu um grupo de pessoas
requereu terreno para à construção de uma capela.
128

Tabela 7 – Argumentos presentes nas Cartas de Datas entre 1880-1890


Argumento Ano
1880 1881 1882 1883 1884 1885 1886 1887 1888 1889 Total
Acréscimo 4 1 1 2 1 1 6 1 17
Aterrar 1 1
Casa 1 1
Casa, habitar 1 1
Comisso 1 11 1 18 10 5 15 58
Comisso, casa de negócio 1 1
Comisso, edificar 1 1
Construir chiqueiro 1 1
Construir, casa 1 1
Construir, prédio 2 6 8
Cultivar 4 1 5
Deposito 1 1
Edificar 91 65 367 16 19 42 26 186 15 827
Edificar, aumento de capital 2 2
Edificar, casa 29 14 29 8 2 82
Edificar, casa, habitar 1 1
Edificar, casas 6 1 9 16
Edificar, chácara 1 1
Edificar, comisso 1 1
Edificar, cultivar 2 13 15
Edificar, habitar 59 66 109 76 140 16 3 30 4 503
Edificar, habitar, pobre, 1 1
aleijado
Edificar, morada de casa 7 3 9 19
Edificar, moradas 7 7
Edificar, negócio 1 1
Edificar, pobre 2 2
Edificar, prédio 9 1 2 7 7 1 44 7 78
Estação, aforamento 1 1
Fabrica de fogos 1 1
Habitar 2 1 3
Habitar, patrimônio 1 1
Morada de casa 1 1
Necessidade 1 1
Plantar capim 5 5
Pobre 3 1 4
Pobre, edificar 2 2
Pobre, edificar, casa 1 1
Possuir 3 3
Povoar, progresso 1 1
Servidão, acréscimo 1 1
Troca 1 2 3
Trocar de local 1 1
Total geral 215 157 566 105 171 80 96 250 41 1681
129

Lourenço Crus, por outro lado, pediu por “necessidade” um terreno no Marco da Meia
Légua em 1884. Em 1881, cinco pessoas solicitaram datas especificamente para “plantar
capim” no Catumby. O rossio da cidade abarcava os mais diferentes tipos de pedidos,
justificados como o “progresso” mediante edificação, ou o “cultivo de forragem”. Entretanto,
um argumento instigante surge a partir de 1880: “possuir”. São três pessoas diferentes
pedindo lotes na região das Perdizes com o intuito de “possuir”. Trata-se de indícios de uma
inflexão no entendimento das datas de terra, já que “edificar” sempre foi a motivação
principal. As menções indicam uma mudança de mentalidade em curso, uma vez que, nessa
altura, os lotes eram onerosos apesar de concedidos.

Apesar da variedade de argumentos, podemos destacar três grandes categorias:


edificação, comisso e acréscimo. Dentro da alegação de edificar, temos várias subcategorias
que vão desde o simples habitar até estabelecimento de um negócio, por exemplo. Esse é o
argumento mais utilizado, e não à toa, já que uma das condições para concessão era a
edificação no prazo de seis meses, sob pena de perder o terreno – o que nos remete à segunda
categoria o: comisso.

O comisso ocorre justamente no caso de pessoas que não cercaram e não construíram
nada no lote, culminando na devolução do terreno para a Câmara. O argumento “comisso”
ganha importância conforme vão diminuindo os terrenos a serem apropriados no entorno da
cidade. Assim, por exemplo, no início dos anos 1850 praticamente inexistiam casos de
requerimentos de lotes caídos em “comisso”. Conforme cresceu a procura por datas, a atenção
da população sobre os lotes não edificados aumentou devido a relativa escassez de terrenos no
rossio. Assim, em toda a década de 1850 temos apenas um sujeito pedindo data em “comisso”
no Brás. Esse número pula para 35 casos na década de 1860 devido à distribuição em larga
escala em 1859. Registramos apenas dez casos na década de 1870 e o número salta para 61 na
década de 1880. Em 1881, a velocidade dos pedidos poderia ser mensurada pelos pedidos de
datas em comisso por exemplo, cartas datadas do mês de agosto solicitam terreno em
“comisso” concedido em fevereiro, após os exatos seis meses exigidos pela Câmara.
Naturalmente, ficavam de olho nesses terrenos os interessados nos lotes, a espreita de um
passo em falso dos requerentes. A situação chegou a ponto de os moradores não conseguirem
construir porque os vereadores simplesmente “redoavam” a data antes mesmo desta ser
cercada:
130

Mariano da Purificação Fonseca e sua filha D. Maria do Carmo vem perante


V.S. reclamar contra o seguinte:

Por concessão do Governo Provincial e contracto assignado pelos


concessionários supra, em 15 de Dezembro de 1874, forão-lhes concedidas
as dactas nº 9 e 10 dos terrenos situados a margem do rio Tamanduatehy,
entre o atterrado da Mooca, ou rua Nova da Tabatinguera e o mesmo rio,
tendo os supplicantes edificado e vallado, n‟aquella epocha firmando por
esse modo a sua posse e domínio sobre as mesmas dactas.

A pouco tempo, porém, as grandes e freqüentes enchentes d‟aquelle rio,


forçaram não só os moradores do prédio que haviam edificado, a refugiarem-
se em outra parte, como lançaram por terra todas as edificações que ali
existia.

Presentemente chegou ao conhecimento dos supplicantes que aquellas datas


estavam sendo demarcadas por ordem d‟essa Camara, para serem concedidas
a outros indivíduos; mas pelo que fica dito, V.Sª comprehenderá
perfeitamente que o domínio dos supplicantes sobre os ditos terrenos está
perfeitamente consolidado de conformidade com a legislação em vigor, e
nem se poderá argumentar que os supplicantes abandonassem taes dactas, e
que por conseguinte, pela prescrição perdessem o seo direito, porquanto até
o presente apezar dos grandes prejuízos causados pelas enchentes do
mencionado rio, sempre os supplicantes conservaram suas dactas cercadas,
como exige a lei, e se hoje taes cercas não existem é porque os moradores
circumvizinhos aproveitaram se das madeiras para combustível [...]. (grifo
nosso)

No documento supracitado, no parecer a lápis, os vereadores pedem informações ao


Governo da Província sobre a posse dos suplicantes.216 A informação dissonante é a de que os
terrenos foram concedidos pela esfera provincial, o que não foi comprovado de forma
alguma.217 Sendo a região da Várzea do Carmo sempre muito cobiçada, essa concessão parece
suspeita. O mais provável é que os lotes tenham sido adquiridos por terceiros, já que não há
nenhum documento comprobatório anexo à reclamação. Contudo, a informação mais
216
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. 1, 1882, Manuscritos.
217
Talvez o significado aqui seja “com autorização provincial”, ou seja, que a concessão dos terrenos do leito
retificado do rio teria sido autorizada pela Província, portanto quem os concedeu foi a Câmara, com autorização
da Província.
131

interessante é a de que os moradores do local retiravam o madeiramento das cercas para fazer
combustível. Além disso, o constante alagamento da várzea provocava abandono temporário
dos terrenos.

No momento do alinhamento e em períodos de suspensão das concessões muitos


moradores pediram acréscimo de suas propriedades. O “acréscimo” poderia ser desde uma
“quina” (esquina) de terreno com três ou cinco braças até 10, 20 ou 30 braças, perfazendo
mais do que uma data de terra padrão (10 braças de frente com fundos a meia quadra ou 30
braças de extensão, aproximadamente). Em 1852, o vereador Francisco José de Azevedo
Júnior conseguiu acrescentar à sua propriedade, no Aterrado da Ponte Grande, oito braças de
frente e 25 de extensão – o que correspondia à praticamente um novo lote. É preciso lembrar
que até 1875 era permitido requerer apenas um lote de terreno, sendo vetada a concessão de
duas ou mais datas de terra para um único indivíduo. Entretanto, quando se pedia um lote
“para o acréscimo”, burlava-se essa cláusula das posturas. Maria Joana da Luz requer o
prolongamento do alinhamento do seu muro em aproximadamente seis braças, assim como
Jerônimo José de Andrade, que requer um beco sem saída no quintal da sua casa. Em alguns
casos, esses acréscimos acabavam prejudicando o trânsito público, como no pedido de André
Christie para fechar um largo na Rua do Cônego Leão – ele arrumaria algumas ruas e, em
troca, a Câmara lhe concederia uma ponta de terreno. Os moradores, no entanto, reclamaram
que o fechamento da ponta de terreno atrapalharia o trânsito na região.218

Quando um rio era retificado, o comum era que os moradores da região merecessem
novos alinhamentos e acréscimo nos seus terrenos. Entretanto, Caetano Ferreira Balthar é
protagonista de uma séria querela com seus vizinhos ao pedir um alinhamento na Várzea do
Carmo, em 1859:

[...] desejando aformozear e edeficar nos terrenos de sua chácara na frente


correspondente a várzea do Carmo dezeja que V.Sas. se sirvão mandar-lhe
dar um alinhamento desde a embocadura da rua que passa por traz da Igreja
do Braz e ao lado da sua dita chácara [...] O suppe. está prompto a ceder a
Camara um terreno que se acha na margem esquerda da mesma valla [...].219

218
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, vol. 44, 1858. p. 206.
219
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, vl. XVII, 1859. p. 282.
132

Por uma nota anterior sabemos que a chácara de Caetano Balthar foi aforada
diretamente pelo Governo da Província em 1855. Seu pedido de alinhamento simplesmente
iria fechar parte da várzea, região de uso comum da cidade. Em um primeiro momento, a
Câmara analisa os “melhoramentos” a serem feitos no local caso fosse fechado, achando
prudente passar o alinhamento e principalmente abrir uma rua comunicando-o com o Pari no
terreno oferecido em troca por Balthar. Logo em seguida, um abaixo-assinado dos moradores
da cidade “vem representar contra similhante deliberação attenta a sua inconveniência e
ilegalidade”. Os assinantes justificam tratar-se de servidão pública e terreno de uso comum.
Conforme verificamos no capítulo 1, esses casos eram os mais delicados e, no geral, a Câmara
optava pela servidão pública depois de uma investigação comprobatória dos usos do terreno
motivador da disputa.

Ainda sobre o alinhamento de 1867 na Várzea do Carmo, Diniz Augusto de Araujo


Azambuja reclamou em 1869 a perda do alinhamento do seu terreno para o Tenente Coronel
João Ribeiro dos Santos Camargo. A Comissão Permanente estabelecida para analisar a
contenda, avaliando o caso, culpou os oficiais da gestão anterior pelo alinhamento errado,
assim definindo a questão:

alinhamento [...] é a fixação do limite que separa o caminho publico da


propriede. particular digo privada, e que conseqüentemente á respeito só
póde dar-se questão entre o poder publico e os proprietários ribeirinhos,
visto como pelo alinhamento só póde ter lugar uma de duas cousas: ou a
desapropriação de uma parte da propriede. particular ribeirinha em favor do
publico para melhor direcção ou commodidade do caminho publico, ou
então a annexação pela mesma razão de uma parte do caminho púlbico a
propriedade ribeirinha não podia a Camara transacta dar a outrem que não o
proprietário ribeirinho o terreno que a titulo de alinhamento deixava de ser
propriedade publica.220

Na parte da frente do terreno morava o tenente, que requereu a parte retificada nos
fundos, sendo que nesse lado morava Azambuja. Esse caso é interessante para verificarmos
como o alinhamento poderia gerar conflitos, anexações e disputas por terra. Nesses termos, a
região da Várzea do Carmo – que formaria a Rua 25 de Março – foi concedida:

220
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, vol. 55, 1869. p. 91-93.
133

Que se conceda repartidamente por datas aquelles terrenos junto ao mercado,


onde se depositão agoas estagnadas, removendo dessa forma o inconveniente
daquelle deposito pela obrigação que tem os possuidores das datas de
incontinente aterrarem para depois edificarem como lhes cumpre.221

Algumas datas foram ali concedidas, portanto, com o intuito de dessecar a área, assim
como o aterrado para o edifício do Gasômetro, que gerou uma nova rua e novos lotes.

O alinhamento e o acréscimo funcionavam como formas de aumentar a propriedade de


determinados particulares, burlando as posturas que restringiam a concessão de datas uma
única por indivíduo. A burla se efetivava mediante a oferta, de troca de favores entre a
Câmara e particulares (“acrescento esse beco em troca de arrumar algumas ruas” etc.). Em
muitos casos, o fechamento de terrenos causou grande celeuma, exatamente por retirar
espaços que a população considerava essenciais para a sua sobrevivência, como fontes de
água e áreas usadas conjuntamente, como as várzeas.

221
Idem. p. 201.
134

2.4. A RUA DAS CASINHAS E AS PRÁTICAS DE AFORAMENTO DA CÂMARA: UM BREVE ESTUDO


SOBRE A VALORIZAÇÃO DESSA ÁREA ENTRE 1850-1860

Como vimos, apesar da autorização para aforamento terrenos do rossio, estes foram
concedidos gratuitamente a partir de 1859. Por causa do ônus em caso de área por arruar
(sendo necessário pagar o arruador), normalmente os pedidos eram feitos em zonas já
arruadas.

Em 1875, segundo o código novo de posturas, as datas se tornaram onerosas: quais os


motivos para isso? Uma das hipóteses explicativas é a da concomitância de procedimentos
arcaicos e modernizantes. A vertente explicativa, protagonizada por Mônica Britto (2000)
conceitua a dinâmica e o embate entre a regularização mediantes procedimentos
racionalizadores e as ligações pessoais. As concessões alimentaram uma rede de troca de
favores entre o poder público e o privado, ou seja, favoreceram uma rede de compadrio e
cumplicidade de moradores da cidade com relações privilegiadas com os oficiais da Câmara.
Essa hipótese é corroborada por Fernando Ribeiro222, que em sua dissertação de mestrado
ressalta a recorrência de concessões de datas para sujeitos com relações estreitas com
membros da Câmara que entendiam o rossio como uma extensão de seus próprios
patrimônios:

[...] ao analisar sistematicamente as concessões de terra pela municipalidade


e cruzando esses dados com os nomes de oficiais da Câmara e seus parentes,
verificamos uma situação distinta [...] as terras do rocio, patrimônio da
Câmara, foram consideradas como patrimônio dos membros dessa e foram
repartidos entre os seus oficiais e seus familiares.223

Na ótica de Fernando Ribeiro, a concepção patrimonialista da função da Câmara


prevaleceu, pelo menos, desde o estabelecimento da vila de São Paulo até o período de 1765.
Mônica Brito (2009), ressalta as mesmas práticas clientelistas, vigentes ainda no último
quartel do século XIX.

222
RIBEIRO, Fernando V. Aguiar. Poder local e patrimonialismo: a Câmara Municipal e a concessão de terras
urbanas na vila de São Paulo (1560-1765). São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado em História Econômica).
FFLCH-USP.
223
Idem, p. 155.
135

Em 1856 , discute-se a proibição da concessão de terrenos gratuitamente:

Fica prohibida a concessão de terrenos gratuitamente a particulares.


Qualquer individuo que pedir terrenos pertencentes à Municipalidade, por
pequeno que seja pagará de foro anualmente dez reis por braça quadrada
para o Cofre da Camara. Se o foreiro quizer vender as benfeitorias, ou posse
dos dittos terrenos aforados, a Camara terá direito de receber os Laudêmios
devidos dos senhorios e possuidores de terrenos em iguais circunstancias.224

A questão da gratuidade e da “data onerosa” era polêmica. O vereador Rodovalho


volta atrás e pede para não aprovarem a postura e, em vez disso, sugere que se pague ao
arruador todas as vezes que for chamado para arruamentos e alinhamentos na razão de dois
mil réis por dia. Provavelmente era mais vantajoso pagar o arruador de forma indireta do que
cobrar dos concessionários, nos levando a pensar nos arranjos efetuados entre moradores e
membros da Câmara para abertura e conservação das ruas.

Em paralelo à prática de conceder lote ao requerente, coexistia o “aforamento” de


terrenos e casas de propriedade da Câmara225. As áreas aforadas provavelmente
circunscreviam-se no perímetro urbano definido por ocasião do estabelecimento do imposto
da Décima Urbana correspondendo à concessão de imóvel em troca de pagamento ou do
“foro”. As casas da Rua das Casinhas (atual Rua do Tesouro), e o chamado Buracão da
Ladeira do Carmo enquadravam-se nessa situação. Delas aferia-se renda, e jamais foram
concedidas aos requerentes.

Na Rua das Casinhas, segundo Eudes de Campos226, a Câmara possuía de seis imóveis
aforados a terceiros que funcionavam como mercadinhos. Eram lojas de um só cômodo cada,

224
Atas da Câmara, 1856, p. 130.
225
O “Orçamento da Receita e despeza da Camara Municipal da imperial Cidade de São Paulo para o anno
financeiro de 1863 a 1864 a contar do 1º de julho do corrente ano de 1863 até 30 de junho de 1864” demonstra
que a Câmara arrecadava com aluguéis de sua propriedade 2000$000, ou seja, duzentos mil réis por ano.
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de S.Paulo;
Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 49, 1863, p. 40-46.

226
CAMPOS, Eudes de. “Mercados públicos da São Paulo oitocentista”. In: Informativo Arquivo Histórico
Municipal, São Paulo: PMSP/SMC/DPH, 2 (10), jan./fev. 2007.
Disponível em: http://www.arquivohistorico.sp.gov.br – acesso em: 01/04/2011.
136

onde eram vendidos os produtos produzidos nas chácaras do entorno da cidade. 227 Por outro
lado, na baixada chamada de Buracão do Carmo, a Câmara também possuía treze imóveis
para venda de toucinho, banhas, farinhas e víveres. Ao lado das casinhas da Ladeira do Carmo
havia ainda um terreno que servia de lixão desde, no mínimo, 1852.

Figura 10 – Ladeira do Carmo, em foto de Militão Augusto de Azevedo, 1862. Acervo:


DIM/DPH/SMC.

227
GIORDANO, Carolina Celestino. Ações sanitárias na imperial cidade de São Paulo: Mercados e
Matadouros. Campinas, 2006. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Pontifícia Universidade
Católica de Campinas, p. 82.
137

Figura 11 – No detalhe, a Rua das Casinhas, atrás do Palácio do Governo e voltada para Várzea do
Carmo. Mappa da Cidade de São Paulo e seus Subúrbios (1844- 1847). Engenheiro Civil C. A. Bresser.
Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set/out.2008, AHMWL.

Acompanhamos nas Atas os valores cobrados para o aforamento das casinhas no


correr dos anos 1850-1860, período em que a Câmara cogita fazer um mercado maior para a
cidade, para verificarmos o seu ao longo do tempo.

Temos indicação de que já em 1830 as casinhas da Ladeira do Carmo eram pedidas


com intuito de simples moradia: “Dito do mesmo (Joaquim Francisco Gonçalves) para alugar
um quarto das casinhas do centro da cidade: deliberou-se que não tem logar por serem as ditas
casinhas para os lavradores.” 228

As casinhas, portanto, eram reservadas para os lavradores venderem seus produtos.


Em 1862, o valor para arrendamento era de 5$000 réis e os vereadores propõem aumento para
8$000229. Logo em seguida aparece um dos quartos “alugado” (o termo utilizado é esse ou
arrendamento, em detrimento de aforamento) por 10$000 réis230. Daniel Senra Cardoso

228
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 25, 1830, p. 252.
229
Idem, v. 48, 1862, p. 136.
230
Ibidem, p. 193.
138

pretende “alugar” todas as casinhas por duzentos mil réis anuais responsabilizando-se por
todas as reformas231 que elas necessitassem. Os vereadores respondem de forma positiva:

[...] e attendendo a q. esses quartos quase nenhuma renda dão a esta Camara
pr estarem feixados há annos, [...] attendendo mais a q esses quartos
nenhuma utilide prestão ao fim pa q forão feitos, e conservados pr esta
Camara: isto é, para a venda de carnes de porco fresca e toucinho a retalho
[...] sou de parecer que acceite ella a proposta do referido Senra Cardozo,
arrendando-lhe some 6 quartos, e reserve os dois últimos deduzindo-se dos
200$rs annuaes da proposta pelos oito, a qtia de 50$rs dos dois quartos
reservados; vindo assim a ficar o arrendamento dos seis quartos por 150$rs
annuaes [...].232

A Câmara possuía, além da Rua das Casinhas, cômodos na Ladeira do Carmo com a
mesma finalidade. Daniel Senra Cardoso queria o arrendamento por 20 anos, a Câmara
propõe 12, e se precisassem das casinhas pagariam as benfeitorias feitas por ele, retomando o
prédio. Entretanto, os vereadores não aceitam de imediato e a proposta é indeferida com o
argumento de que:

He inteiramente prejudicial aos interesses do Município; pois q estando hoje


os prédios elevados a alugueres extraordinários, esse arrendamento só
serviria de por pêas (freios) à Cama em poder melhorar aqueles prédios, e o
seu aluguer em nada remediaria as precisoens da Cama e com
particularidade sabe a Comçam que a ter de fazer esse arrendamto há
interessados q darião o duplo, e talves mais: pr isso He de parecer q seja
indeferida a pretensão do suppe.233

No período de acelerada valorização do valor dos aluguéis, permanecer presa a um


contrato recebendo o mesmo valor por 12 anos não parecia razoável à Câmara. No final,
Daniel conseguiu arrendar duas das casinhas pelo valor de 120$000 réis, por quatro anos,
desde que as arrumasse no prazo de, no máximo, oito meses. Conseguiu alugar por 5$000 réis

231
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 39, 1852, p. 176.
232
Idem, p. 176.
233
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 40, 1853, p. 49.
139

mensais e, no final, saiu lucrando diante dos valores alcançados pelas casinhas. O destino das
duas seria o de um depósito de chá. As súplicas dos requerentes, pedindo sempre prazos de 10
a 20 anos de arrendamento, eram constantes, mas os vereadores fixaram um prazo máximo de
quatro anos para esse tipo de arrendamento, com a possibilidade de retomada do imóvel a
qualquer momento.

Em 31 de outubro de 1862, Benjamim Ribeiro da Silva é autorizado a arrendar uma


casinha da Câmara com algumas condições: o aluguel não poderia ser inferior a 12$000 mil
réis mensais; o arrendamento não poderia exceder quatro anos; pagaria a despesa com a
construção da calçada de cantaria. Sobre as casas da Ladeira do Carmo, a Câmara afirma:

[...] não pode porem convir no preço que se offerece, porque tendo o tal
commodo cincoenta palmos de frente, e três portas, seria fácil devedir em
três quartos, q a maneira das outras darião quatro mil reis por mez cada um,
e talvez muito mais fasendo-se alguns repartimentos proprios pa
accommodar família, pois que alem de espaçoso o cuberto tem agua corrente
em um pequeno quintal cercado234.

No final dos anos 1850, uma das casinhas da Ladeira do Carmo mereceu proposta de
vinte mil réis mensais235 e os imóveis na Rua das Casinhas alcançam o valor de quinze mil
réis mensais. Para morador da Rua do Rosário, cujo nome infelizmente não foi registrado, em
10 anos o valor mensal do aluguel duplicou. Em 1849, ele pagava dez mil réis mensais e
considerava o valor de vinte mil réis, proposto em 1859, abusivo; infelizmente seu pedido foi
indeferido236, ou seja, em uma década o valor do aluguel (arrendamento ou aforamento)
duplicou. Ainda em 1859, as casinhas recebem propostas de dezesseis e vinte mil réis por
nove anos. A resposta da Câmara denota o pensamento da época: aceitam o valor, discordam
do tempo e incluem a condição de os inquilinos liberarem a casa quando a Câmara achar
conveniente237. O fator tempo agora estava irremediavelmente atrelado ao valor máximo

234
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 41, 1855, p. 203.
235
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 44, 1858, p. 78.
236
Idem, v. 45, 1859, p. 20.
237
Ibidem, p. 165.
140

possível a ser arrecadado e não mais a contratos enfitêuticos238 de longo prazo. Em 1861, a
casinha de nº 9 foi arrendada por Joaquim Martins Carneiro de Campos por vinte e cinco mil
réis mensais, o dobro do valor praticado na década anterior. A partir daí, as propostas só
aumentam: vinte e cinco, trinta mil réis por mês, por um prazo de quatro anos apenas. As
propostas aparecem de todos os lados e os negociantes já estabelecidos no local correm para
cobri-las. Esse é o caso de Antonio Rodrigues Santos239 que, mesmo afirmando morar e ter
negócio na casa de esquina da Rua das Casinhas há mais de 14 anos, é obrigado a cobrir o
valor de trinta mil réis proposto por outro requerente.

Por outro lado, em 1875, período em que as datas já não eram gratuitas, os vereadores
recebem autorização para aforar uma área na Várzea da Mooca, terreno do Clube Paulistano
de Corridas, o hipódromo. São 698.000 metros quadrados, com o valor de 20 réis por metro, o
mesmo cobrado a partir de 1875 pelas datas concedidas240. Interessante especular o porquê de
essa área ter sido autorizada para aforamento e não concessão por data: provavelmente era
uma área particular ou de uso provincial. Entretanto, vários pedidos de datas para a área
imediatamente adjacente ao Hipódromo surgem em 1878, conforme analisaremos no terceiro
capítulo, o que pode significar que, devido ao aforamento autorizado em 1875 essa se tornou
uma área de atração populacional e pouco ocupada, portanto, passível de apropriação em
1878.

238
O arrendamento ou aforamento pode ser descrito como um contrato enfitêutico, ou seja, a concessão de um
terreno (ou imóvel) pagando-se uma quantia ao senhor dessas terras (no caso a Câmara) para beneficiá-la. No
original o cessionário do terreno não poderia retomá-lo se as obrigações contratuais estivessem sendo cumpridas.
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez, e latino, áulico, anatômico, architectonico, bellico, botânico...et
alii. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712.
239
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 47, 1861, p. 194.
240
Idem, v. 61, 1875, p. 25.
141

Figura 12: Hipódromo. Detalhe da Planta Geral da Capital de São Paulo (1897). Gomes Cardim,. Em
amarelo a Rua do Hipódromo, motivo de diversas cartas enviadas a Câmara requerendo lotes de terra no local
(1878). Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL.

Refletindo sobre as datas onerosas, porque em determinado momento torna-se


desinteressante conceder gratuitamente os lotes de terra, Simoni (2002, p. 92) considera a
década de 1870 um período de afinidade entre o município e a província, o que gera decisões
mais coerentes. E em 1872, a Divisão de Imigração e os núcleos coloniais de Santana e Glória
foram criados. Ao mesmo tempo, suspenderam as concessões de terras até a revisão das
posturas municipais então vigentes. Provavelmente, o processo de valorização fundiária da
cidade, a atração de imigrantes e a riqueza advinda pela expansão do café tornaram a década
um período de transformações visíveis, com melhoramentos feitos em larga escala, novas ruas
abertas: “O plano de melhorias implicou em alterações tributárias [...]” 241. E o código de
posturas de 1873 que estipulava o valor de trezentos réis por braça quadrada, foi suspenso
para ser revisado. Na revisão, o valor a ser estipulado ficou a cargo do orçamento anual da
receita municipal, sendo submetido à aprovação do governo provincial242. O orçamento de
1875 a 1881 fixava a quantia de 20 a 30 réis por braça quadrada (aproximadamente seis réis

241
SIMONI, Lucia Noemia. Op. cit., p. 95.
242
Código de Posturas da Câmara Municipal da Imperial Cidade de S. Paulo, de 31 de maio de 1875, artigo 20.
142

por metro quadrado). Em 1882, o valor foi elevado para 40 réis o metro quadrado243. Brito
(2006, p. 98) faz uma comparação entre os valores da data concedida pela Câmara e uma casa
vendida por particulares na Rua João Teodoro244. A transação particular ficou em 120$000
por 216 metros quadrados e, se nela fosse aplicado o valor cobrado pela Câmara (de seis réis
a braça quadrada), o mesmo terreno custaria 129$000 réis. A equivalência dos valores
cobrados significa que a Câmara não era concorrente do governo da província na matéria em
questão denunciados a paridade almejada. O uso produtivo ainda era condição para manter a
data, ou seja, o lote ainda poderia cair em comisso caso as condições não fossem cumpridas, o
que exclui a noção de propriedade absoluta no caso específico das datas de terra, dos
arrendamentos e aforamentos camarários. Entretanto, as posturas de 1875 liberavam mais de
um lote para o mesmo indivíduo, desde que ele edificasse antes no primeiro deles.

243
SIMONI, Lucia Noemia. Op. cit., p. 97.
244
OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Entre a casa e o armazém – relações sociais e experiência de
urbanização São Paulo, 1850-1900. São Paulo: Alameda, 2005, p. 266.
143

2.5. APROPRIAÇÃO E RESISTÊNCIA NOS EXTREMOS DO ROSSIO: A VÁRZEA DO CARMO E A

REGIÃO DO PACAEMBU E PERDIZES

A expectativa de crescimento econômico da capital a partir da construção da linha


férrea ligando Santos a Jundiaí condicionou propostas para resolver os problemas da Várzea
do Carmo. Tais propostas, como a de 1859, estavam atreladas à construção da nova Praça do
Mercado e ao embelezamento e construção de prédios na cidade à custa de particulares, que
ficariam encarregados de dessecar e construir em seus terrenos – sob pena, como visto, de
caírem em comisso245. A região do Pacaembu fora designada para receber o novo Matadouro
Municipal exatamente pela distância do núcleo urbano, entretanto os moradores da região se
opuseram não apenas à construção do matadouro, mas também ao estabelecimento de novos
moradores no local.

Em 1860, o vereador Diogo de Mendonça elaborou uma proposta que mereceu estudo
detalhado por colocar em relevo as propostas de uso da Várzea do Carmo. Como era de praxe,
o vereador começa por apontar a carência de imóveis na cidade, e o alto valor dos aluguéis
em consequência disso:

Os homes de fortuna preferem dar diverso emprego aos seus capitães


[capitais] e aquelles que a força de economia podem reunir as quantias
precisas para construírem a própria habitação e de libertarem do pezado
imposto do alluguel encontrão invencível obstáculo já no insignificante
numero de terrenos desocupados situados no coração da cidade, e já nos
exorbitantes preços em que elles importão, as vezes quase equivalente
aquelle pelo qual se pode obter a construcção de um pequeno prédio.246
(grifo nosso)

245
Em 1859, a Comissão do melhoramento de edificações da cidade, encarregada de verificar o local apropriado
para o mercado, propõe a construção de uma praça, bem como o arruamento e loteamento gratuito da área.
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de S.Paulo;
Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 45, p. 21-25.
246
“Indicação do vereador Diogo para a Várzea do Carmo, 19 de Julho de 1860”, ACTAS DA CAMARA
MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de S.Paulo; Departamento de
Cultura, 1914-1951 , v. 46, 1860.
144

Ficamos sabendo então que pouco capital era empregado na construção de casas247 e
que o valor dos terrenos era praticamente equivalente ao da construção. Em seguida, o
vereador fala sobre a composição da sociedade paulista e da necessidade de moradias no
centro, próximo ao local de trabalho, uma vez que inexiste transporte público eficiente:

A cidade tem em seu seio em verdade grande extensão territorial despovoada


e desaproveitadas [...]. O povo, e principalmente os classes menos abastadas
não querem a residência a longa distancia do centro das cidades em
habitações isoladas umas das outras [...] em uma população como a nossa
composta em immensa parte ou quase exclusivamente de empregados
públicos, estudantes, artífices e comerciantes, pessoas que tem necessidade
de não habitar os subúrbios, máxime não contando ainda a Cidade com
vehiculos ou meios de transporte fáceis, e ao alcance das fortunas
modestas248. (grifo nosso)

Terrenos centrais desocupados, população estritamente urbana e a falta de transporte


público, eis as justificativas iniciais para o parcelamento de um terreno eminentemente
desocupado e sem uso no centro da cidade. No entanto, o próprio vereador deixa escapar que
a Várzea do Carmo não era tão desocupada assim:

Diz-se (dizem) ser ella necesaria para pasto de animaes, mas são meia dusia
de cavallos ou bois unicamente em tempo seco ali pastão, e eu não sei como
seriamente possa alguém entender o povo dese soffrer a escassez de casas, a
falta de habitação, afim de que esses animaes não sejão desacommodados249.

Seria mesmo apenas meia dúzia de animais? A Várzea do Carmo era o enigma da
cidade, local de despejo de lixo em 1859, do comércio, divertimentos, verdadeira fronteira
visual e territorial:

247
Afirmação que precisa ser relativizada, uma vez que a intenção do vereador é distribuir “gratuitamente” os
terrenos, e para isso ele argumenta sobre a carestia dos materiais e terrenos.
248
Idem, vol. 46, 1860.
249
Idem, vol. 46, 1860.
145

A várzea, que depois se denominou do Carmo, ainda que em parte cedida


pela Câmara ao mosteiro de S. Bento, era, de fato, um vasto logradouro
publico, encharcado, onde se faziam os despejos da cidade, soltavam-se
animais, cortava-se lenha, e onde os ociosos vinham caçar e as lavadeiras
fazer o seu mister.250

Diversos memorialistas afirmam que a região era área de confluência de estradas,


entreposto de produtos vindos das chácaras além Tamanduateí e área de circulação da parcela
mais pobre da população, portanto, local nunca de todo vazio:

A várzea, local de onde tirava a sobrevivência a parcela mais pobre da


população, devia ser uma região muito movimentada, região de comércio,
das lavadeiras e seus familiares que dali extraíam capim, lenha, peixes.251

Era também local de passeio, em alguns momentos da história da cidade, e


dependendo do memorialista, um local agradável ou detestável, mas sempre uma área de
interesse.252

250
SAMPAIO, Teodoro. São Paulo no século XIX e outros ciclos históricos. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 74.
251
OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Entre a casa e o armazém – relações sociais e experiência de
urbanização: São Paulo, 1850-1900. São Paulo: Alameda, 2005, p. 72.
252
Maria Luiza Ferreira Oliveira estuda exatamente as representações imagéticas da várzea, levantando muitas
das questões que este trabalho procura esclarecer, como os debates em torno das utilizações desse espaço central
e, ao mesmo tempo, fronteiriço da cidade.
146

Figura 13: Várzea do Carmo. Mappa da capital da província de São Paulo, por F. Albuquerque e J. Martin,
copiado por Francisco Sansoni, 1870. Ao centro, a Ilha dos Amores, posicionada entre o atual centro histórico, à
esquerda, e a Várzea do Carmo. A ilha dos Amores, implantada no meio de várzea, foi um projeto da década de
1870, no auge das propostas de melhorias da cidade. Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20):
set/out.2008, AHMWL.

Figura 14: Benedito Calixto. “Inundação da Várzea do Carmo” (detalhe). Fonte: Museu Paulista/ USP.

Outra pista que o vereador nos dá refere-se ao número de animais que pastava na
Várzea do Carmo ao que parece não era pouco expressivo:

Acresce que os donos de cavallos e bestas ou os possuem para allugal-os, ou


para uso próprio. Se para allugarem elles produsem uma renda e nada mais
147

rasoavel de que afim de obtel-a fazer módica despeza em que importa o


pagmto do pasto253.

Portanto, o que está em jogo é o loteamento de um terreno, no centro da cidade, que tem por
função ser pasto coletivo e gratuito e, em alguns casos, local de trocas de sitiantes além
Tamanduateí, que ali aportavam para fazer comércio. Situando essa região como um
entreposto comercial, era comum soltarem os muares enquanto faziam negócios no assim
denominado Mercado de Caipiras.254Afinal, os muares traziam as cargas.

Ora, na fala do vereador, os pastos deveriam ser pagos, posto que a Câmara
não teria a obrigação de fornecer pastagem gratuita. Portanto, a várzea não tinha por que
permanecer desocupada. Acrescente-se que os vereadores favoráveis à distribuição gratuita já
tinham uma planta de arruamento do local. Diogo de Mendonça, partidário do parcelamento,
chegou a afirmar que, com a ocupação, acabariam as enchentes na área, contribuindo para o
embelezamento da cidade e a manutenção dos cofres públicos.

Figura 15: “Rua 25 de Março”, Antonio Ferrigno, 1894. Fonte: Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo.

253
“Indicação do vereador Diogo para a Várzea do Carmo, 19 de Julho de 1860”, ACTAS DA CAMARA
MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de S.Paulo; Departamento de
Cultura, 1914-1951 , v. 46, 1860.

254
SANTOS, Carlos José Ferreira dos. “A Várzea do Carmo – Lavadeiras, Caipiras e „Pretos Véios‟.”
In Memória e Energia. São Paulo: Fundação Patrimônio Histórico da Energia de São Paulo, n. 27. 2000.
http://www.energiaesaneamento.org.br/materialeducativo/files/artigos/santos_carlos_jose_ferreira_varzea_do_ca
rmo_lavadeiras_caipiras_e_pretos_veios.pdf (retirado do site em 01/2010)
148

Nesse mesmo ano, outra polêmica envolvendo indiretamente a Várzea do Carmo


chega até os vereadores na forma de dois abaixo-assinados contendo uma longa discussão
sobre as datas já distribuídas no Brás em 1859. O primeiro abaixo-assinado pede a suspensão
das datas na várzea entre o Brás e o Pari, região imediatamente adjacente ao Carmo, com base
na afirmação de que a região era logradouro público e utilizado para pastagem quando a
Várzea do Carmo estava cheia. Logo em seguida, um contra-abaixo-assinado é enviado e
alega:
O argumento único e trivial em que se funda essa representação é que o
referido campo é logradouro. Quando assim fosse, o que se contesta, é
sabido que os logradouros públicos só se estabelecem fora das povoações e
sem prejuiso do natural desenvolvimento e crescimento das mmas: o campo
de SM. Christovão na Corte do Império deixou de ser logradouro publico
logo que as (?) publicas o reclamarão para nelle se faserem edificações
[...].255

Fala do desenvolvimento do Brás, que os tropeiros têm pastos cercados muito mais
convenientes e seguros do que os pastos públicos e desdenha de um dos argumentos do
abaixo-assinado que informava que as pessoas tiravam minhocas do local (provavelmente
para pescar nos rios da região, inclusive dando a ela o nome de Várzea das Minhocas, nas
proximidades do Brás e da Mooca). Na discussão das atas, o mesmo argumento de que um
local apropriado é melhor do que um campo comum para pastagem é exposto:

He um facto hoje reconhecido que as terras apropriadas são de maior


proveito e vantagem do q. aquellas q. ficão em comunhão, e he isto q.
ensinão os Economistas modernos.256

Portanto, a vantagem e o proveito de que fala a Comissão dos Vereadores é


econômico, e um lugar de uso em comum não condiz com os preceitos dos economistas
modernos de aproveitamento e embelezamento do espaço. Além disso, fica explícito que os
logradouros públicos podem deixar de ser logradouros quando for “conveniente”, e que não
teria sentido manter terras de uso comum no meio da cidade.

255
Terras e Terrenos Municipais e Particulares 1883-1902 e Sem Data, Manuscrito, sem numeração.
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. XVII, 1860, p. 146-161.
149

Analisando o argumento sempre utilizado para distribuir essas áreas gratuitamente


para edificações, verificamos que há falhas na alegação. Ao falar que a distribuição leva em
conta a parcela pobre da cidade que não pode arcar com o alto valor dos aluguéis, os
vereadores induzem um leigo a pensar que qualquer pessoa poderia ser agraciada com uma
parcela gratuita de terreno no rossio, o que não era de todo verdade. O suplicante precisava
passar pelo crivo dos vereadores ou do secretário da Câmara e além disso, era preciso cercar e
construir num determinado prazo e ainda arcar com as despesas de emissão da carta de data
ou de arruamento, caso a área ainda não estivesse arruada. Portanto, nem todos conseguiam
cumprir os prazos – sendo constantes na documentação os pedidos para que fossem
estendidos os prazos para tanto. Se em teoria todos poderiam pedir, na prática apenas alguns
conseguiam e a longo prazo se tornava ainda mais difícil manter e edificar no terreno.
Conforme os anos passam, os prazos se tornam mais curtos (seis meses para construção total)
e os próprios vizinhos denunciam o comisso com vistas a pleitear o lote para si. Logo, o
argumento mais utilizado para promover parcelamento das áreas de uso comum era ilusório.

Voltando aos abaixo-assinados, é interessante observar que algumas assinaturas


coincidem em ambos os documentos. A discussão foi intensa, pois alguns vereadores eram
favoráveis a deixar livre a área para a futura linha férrea. Ainda assim, a proposta de
continuidade das concessões na Várzea do Brás, adjacente ao Carmo, foi aprovada.

Sete anos depois da proposta de loteamento da Várzea do Carmo e após a construção


do primeiro mercado da capital, um terreno fechado para pasto foi motivo de confusão:

O Sr. Tene. Corel. Claudio pedindo a palavra diz que tendo sido encarregado
de mandar proceder ao fecho da várzea do Carmo para alli estabelecer-se um
pasto para os animaes dos importadores de gêneros à Praça do Mercado, não
pôde continuar a encarregar-se de seme trabalho em vista da opposição que
ao fecho estão fazendo os jornaes e o povo; que dá-se pr demittido confiando
que a camara não recuará na sustentação do seu acto, visto ser de utilide
publica votando para que o fecho fose feito [...].257

Mandaram cercá-lo, e a questão foi parar na justiça. As pessoas que utilizavam a


Várzea do Carmo eram definitivamente contra um pasto de aluguel na área, de modo que era
muito difícil para a municipalidade impor sua vontade nessa região.

257
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 53, 1867, p. 109 e 110.
150

Durante a década de 1890, logo após a Proclamação da República, outra grande


polêmica mobilizou a imprensa sobre a Várzea do Carmo, desta vez contra a Intendência
Municipal. A controvérsia se deu em torno da proposta apresentada por dois particulares,
Samuel Malfatti e César de Miranda Azevedo,258 de realizar um empreendimento imobiliário
na região. Passados aproximadamente 29 anos, a questão continuava a mesma: sanear a
várzea por meio da construção de um bairro modelo. O custo ficaria por conta dos dois
empresários e a municipalidade cederia o terreno. Concorrência feita e vencida, o Correio
Paulistano inicia uma série de ataques denunciando o lucro que os empresários obteriam com
o empreendimento. Estes revidam com uma série de artigos em diversos jornais, apoiados
pelo parecer de engenheiros, médicos e jurisconsultos sobre a questão. Chegam a publicar um
livreto259 com todos os pareceres e com a sua versão dos fatos.

A área era de aproximadamente 549.000 m² entre a cidade e o Brás (da Rua da Mooca
ao Ribeirão Anhangabaú). Como de praxe, a intenção é embelezar, drenando e canalizando o
rio, construindo largas avenidas e uma praça:

Projectamos fazer todas as ruas com carácter de avenidas; oferecemos


também um vasto jardim, com área enorme de 40:000 metros quadrados,
com cascatas, chalets, pavilhões campestres, etc.260

A passagem supracitada enfatiza a construção de uma área de lazer, provavelmente em


resposta ao artigo de jornal que reclamava a implementação de um vasto parque no centro da
cidade em vez de um loteamento residencial:

Apellar também para o futuro quando seja essa área o centro da cidade, e
fantástico parque, não nos parece nem boa argumentação, nem legitima idéa
sobre o real e verdadeiro typo de uma cidade moderna e progressista, que
adia indefinitamente seus melhoramentos só porque aquelles que se propõe
realisal-os auferem algum lucro individual.261

258
Samuel Malfatti era engenheiro renomado e Miranda de Azevedo, médico higienista, um dos pioneiros do
ramo no Brasil.
259 “
A Várzea do Carmo” – Pareceres de Engenheiros, jurisconsultos, e de médicos sobre a proposta dos drs.
A.C. de Miranda Azevedo e Samuel Malfatti, escolhida pela Camara Municipal – e opinião da Imprensa, São
Paulo. Leroy King Bookwalter, Typographia King, 1890.
260
Op. cit., p. 7.
261
Op. cit., p. 5.
151

Os empresários, que arcariam com todos os ônus decorrentes desse processo, frequentemente
afirmavam que o poder público não poderia arcar com tais despesas, de modo que a venda dos
lotes a preços “módicos”, com justa auferição de lucro, seria um processo mais lógico,
moderno e eficaz. Reafirmam que a área, do jeito que estava, era um local impróprio, sujo,
pantanoso:

É o caso de dizer-se que alli há caveira de burro. E garanto que não há só


uma; há milhares dellas apenas soterrados, porque aos burros tem sido
permittido alli morrer e alli ficar.262

Quando consultado para falar dos problemas sanitários do local, o Dr. Antonio
Caetano de Campos se pronuncia com extrema ironia, afirmando que os burros ali tem lugar
enquanto os cidadãos precisam de moradia. Segundo o médico, era um local desocupado onde
os burros eram enterrados. No entanto, vimos tratar-se de uma falácia, pois na várzea
fervilhavam atividades de abastecimento da cidade, fronteira com o entorno agrícola,
entreposto de chácaras, local ocupado pelo mercado “caipira” e pelas lavadeiras. Não era,
portanto, um cemitério de burros, mas ocupado por atividades consideradas pouco nobres aos
olhos da municipalidade e dos empreendedores imobiliários a partir de então.

Um dos pontos levantados contra o projeto era o fato de a Várzea ser “inalienável”,
o que pode significar que, ainda em 1890, a área era vista como terra de “uso comum”
destinada a pastagem gratuita e ao abastecimento de água. A passagem seguinte confirma
isso:

A inalienabilidade dos terrenos também occorreu muito tarde aos


reccorrentes, motivo porque não puderam provar que a várzea constitue
logradouro público. A única utilidade licita que tira o povo d‟aquelles lados
é o uso da água e esse não sofre alteração [...] servidão de passagem e de
depósito de lixo nunca foi estabelecida, era apenas tolerada [...].263

Fala-se, ainda, sobre as construções efetuadas no lugar:

Na várzea mesmo, quando a Camara quis edificar o mercado não se


importou com o logradouro; do logradouro foi tirada a ilha dos Amores. Até

262
Op. cit., p. 45.
263
Op. cit., p. 57-58.
152

na rua se fazem ali kiosques e cocheiras, e do centro da várzea, trancando


uma margem do rio, se destaca logradouro para companhia de cavallinhos!264

Por fim, no parecer da Câmara sobre o cancelamento do empreendimento é


reconhecido que a região é logradouro público inalienável. Além do mais, o fato de os
empresários, de acordo com o contrato proposto, poderem desapropriar algumas áreas no
entorno pode ter contribuído para os virulentos ataques da imprensa.

Novamente surge a ideia de que o logradouro é público até que não seja mais útil
enquanto tal, ou melhor, até ser incorporado ao mercado. O argumento de que, ao fazer o
Mercado ou a Ilha dos Amores, a municipalidade não pensou no uso comum é risível, mas
utilizado aqui como para dizer: o logradouro continua público por falta de vontade política de
ocupar essas terras.

A teoria miasmática,265 tão utilizada como argumento para lotear e ocupar regiões de
várzea, sofreu nesse caso uma reviravolta. Quando o contrato com os empresários foi desfeito,
surgiu em seguida a proposta de um parque na região, que deveria funcionar como pulmão da
cidade – ideia concretizada em 1911, com o plano de Bouvard.

Essa área também tem um histórico de confronto entre concessionários e a Câmara


Municipal. Praticamente não mencionadas nas atas ou cartas de datas até então, a partir de
1860 começam a surgir requerimentos pedindo alinhamento, melhoria nas estradas e
denúncias de fechamentos indevidos na área do Pacaembu e Perdizes. Em 1863 os vereadores
enviam um ofício ao Governo da Província reclamando da distribuição ilícita de terras na
Água Branca desde o Pacaembu.266 Provavelmente consideravam essa área terra devoluta,
fora do rossio da cidade e o ofício tinha a intenção de alertar o governo sobre posses
indevidas na região. Interessante notar que o distribuidor das terras era o próprio juiz de paz,
Francisco de Paula Xavier de Toledo.267 Depois de três anos, o fiscal da região informa

264
Op. cit., p. 78-79.
265
Essa teoria afirmava que os miasmas dos locais úmidos eram responsáveis por diversas doenças. O Dr.
Azevedo reafirmaria em diversos artigos o caráter pestilento da Várzea, e que fazer um parque com lagos, como
propunha o Correio Paulistano, em nada alteraria o fato de a região ser foco de doenças.
266
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 49, 1863, p. 127.
267
Esse personagem, mesmo no período formal de proibição das Datas, em 1857, teve um pedido aceito pelos
vereadores – exceção gritante do período – e, como se vê, ele possivelmente teria sido grileiro na região.
153

[...] ter dado livre transito ao lugar denominado Perdizes, como lhe fora
determinado, dando-se porem que no dia immediacto, teve ainda de
completar esse serviço pr. ter sido durante a noite novamente aberto os valos
para fecho do lugar; e deixando livre esse transito, consta-lhe hoje que
prosseguem no fecho do lugar.268

A incapacidade de manter o trânsito livre na região e a rápida reconstrução dos valos nos leva
a inferir que os opositores eram organizados e que essa região, quer pela sua distância do
centro, quer pela influência do Juiz de Paz que distribui as terras de forma ilícita, não era
considerada sob influência da Câmara Municipal.

Dois anos após as primeiras denúncias, novos cercamentos na região foram efetuados
e o fiscal continuou com problemas para manter a área livre. José Fabiano Baptista enviou
requerimento aos vereadores com documentos comprovando que a área era de servidão
pública. Logo em seguida, o Coronel José Pedro de Brito Galvão afirmou que o terreno era
seu e uma comissão foi formada para apurar o assunto. Não sabemos o desfecho da história,
mas é certo que os problemas na região continuaram.

Em 1872, os vereadores, contra os argumentos dos criadores de gado, desapropriaram a


área do chamado “Pacaembu do Meio” para construção do novo matadouro da cidade:

Ditos dos abaixo assignados empregados no corte e venda de gado


representando contra a decisão tomada pela Câmara de ser mudado o
matadouro [...] visto a distancia que há dessa chácara ao centro da Cidade,
muitos morros, grandes aterros a fazer-se, o que dificulta o transito por
aqueles lugares [...]. 269

A chácara desapropriada pertencia a José Fabiano Baptista, que havia mandado ofício
à Câmara oferecendo a sua chácara para desapropriação. A área era considerada, portanto,
distante o suficiente do centro urbano para conter um matadouro. Interessante ressaltar que
outro requerimento enviado à Câmara, além de pedir que a chácara de José Fabiano não fosse
desapropriada, informava que a fonte de água da chácara estava em conflito com o curtume
abaixo, dando a entender que José Fabiano tinha problemas com os vizinhos. Apesar da

268
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 52, 1866, p. 8.
269
Idem, v. 58, 1872 p. 20.
154

desapropriação ter ocorrido em 1873, a Câmara desistiu da área e optou pela Vila Mariana,
construindo o matadouro somente quinze anos depois (1887). Os porquês dessa desistência
não são claros. Sabemos que outro terreno no chamado “Pacaembu de Cima” (mais próximo
do que hoje é a Santa Cecília) também foi oferecido à Câmara, mas a chácara de José Fabiano
foi a preferida por ser maior e mais distante do “pequeno povoado de Santa Cecília”. Durante
a década de 1870, a região das Perdizes ganhou uma capela (Santa Cecília), fato que
impulsionou os pedidos de terra ali.

Consultando as Cartas de Datas, verificamos que em 1880, 51 lotes foram


demarcados e distribuídos entre 33 indivíduos, com favorecimento explícito de três deles, que
receberam entre nove e dez datas.270 Além do mais, os pedidos de data na região se iniciam
em 1877 e avolumaram-se até 1880. Inferimos que a valorização da região em menos de cinco
anos foi intensa a ponto de a Câmara desistir de construir o matadouro ali, apesar da
desapropriação do terreno de José Fabiano já estar efetivada. Isso pode significar que tanto a
pressão dos “marchantes271” – que afirmavam ser a região cheia de morros e carente de
aterros – quanto o processo de valorização e zoneamento de espaços impulsionaram a
mudança do Matadouro Municipal para a Vila Mariana.

A distribuição de datas deflagra outros conflitos na região. Diversas pessoas reclamam


que, apesar de terem formalmente obtido terrenos, não conseguiam cercá-los:

[...] chegou ao conhecimento dos suppe que os moradores d‟aquele lugar,


considerando os terrenos constituindo servidão publica, oppõem-se á que
sejão fechados ou valados pelos concessionários os terrenos as suas datas,
tendo já destruído algumas cercas e entupido alguns valos abertos para fecho
dos terrenos [...].272

A contenda se instala e os concessionários pedem transferência das datas demarcadas


para outra região, ao que o parecerista responde: “Estando legalmente concedidas aos
supplicantes as datas a que se referem, usem dos recursos de direito para manutenção de

270
Dr. Sebastião Pereira é marcado com dez datas e Capitão Paulino e Dinis Azambuja, com nove datas cada
um. “Relação das Datas do Pacaembu”. In: CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo.
Restauração da Subdivisão de Documentação Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação
Histórica e Social, 1939, v. 1 1880, manuscrito, p. 151 (a lápis).
271
Mercadores de gado para o açougue. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez, e latino, áulico,
anatômico, architectonico, bellico, botânico...et alii. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712.
272
Idem, 1882, v. 4, p. 229.
155

poder273”. Lembramos que era obrigação do concessionário fazer o fecho e construir no prazo
estipulado ou a concessão seria invalidada. No entanto, mais adiante na documentação,
verificamos que a manutenção do poder não foi tão bem-sucedida. Os pedidos de transferência
continuaram até que, em novembro de 1883, atingiram o auge:

[...] cujas datas foram demarcadas e cercadas pelos suppes, acontece que o
povo, invadiu aquelle território, inutilizaram as cercas e demarcações, sob o
pretexto de taes terrenos não serem próprio municipal.274

Passado mais de um ano após o início da disputa, a Câmara responde da seguinte


maneira:

[...] é de parecer que seja indeferido esse requerimento, não só porque o


facto apresentado como rasão justificativa do pedido é um abuso, contra o
qual há recursos legaes, dos quaes os suppes podem satisfatoriamente lançar
mão, como também porque a Camara não pode permutar terrenos275.

Em suma, uma vez concedido o terreno, os problemas e disputas não eram da alçada
da Câmara, devendo ser resolvidos por meios legais. Diante de novas reclamações – os
concessionários se veem acuados diante da alegação de posse dos antigos moradores – o
parecerista revela:

Por justiça dos supplicantes, resolvendo a Ilma Camara, devo informar que
podeis sem prejuízo dos Cofres Municipais serem mudados das Perdises
para o Marco da ½ Légua [...] os povos dali formalmente embargaram por
meio da força o progresso do lugar não deixando edificar no Campo das
Perdises [...].276

273
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939, 1883, v. 1, (sem
numeração de páginas).
274
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939, 1883, v. 1, (sem
numeração de páginas).
275
Idem, v. 1.
276
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939, 1883, v. 1, (sem
numeração de páginas).
156

É bastante elucidativo este parecer, que nos revela a resistência por parte dos antigos
moradores à ocupação e parcelamento do lugar. O parecerista recomenda, por fim, a
intervenção do Governo da Província, não porque a área não fosse municipal, mas para que o
direito dos concessionários fosse mantido, uma vez que a Câmara já tinha distribuído ali cerca
de 1.500 datas e poderia sofrer um prejuízo de oito contos de réis já pagos pela demarcação
das mesmas. As dúvidas que ficam são: por que motivos os antigos moradores do local não
queriam que a área fosse ocupada? Teriam poder de interferir esses novos moradores na
dinâmica do local? Os usos dos campos, antes abertos e agora fechados por força das
concessões, seriam motivos da resistência? Seriam as fontes de água potável o problema? Era
pretensão dos moradores mais antigos aumentar gradativamente as suas propriedades através
de pedidos de acréscimo ou simples posse e, por isso, embargavam os fechos? A resposta para
todas essas questões pode ser a seguinte:

Meu argumento básico é que as formas espaciais são produtos contingentes


da articulação dialética entre ação e estrutura. Elas não são manifestações
puras de forças sociais profundas; em vez disso, constituem um mundo de
aparências que a análise deve penetrar.277

A ressalva expressa aqui é a de que, juntamente com a economia, as forças políticas e


sociais também contribuem para a produção e apropriação do espaço. Esses fenômenos
sociais seriam mais contingentes do que predeterminados:

A natureza contingente das formas espaciais significa que os padrões atuais


nem são funcionais nem disfuncionais para o capitalismo – de fato, são
ambas as coisas ao mesmo tempo [...].278

Apesar da diferença entre essas duas regiões, podemos afirmar que tanto a Várzea do
Carmo quanto a área do Pacaembu e Perdizes eram limites da cidade, e que, de formas
diferentes, nas duas os seus moradores e usuários dificultavam a apropriação e a acelerada
produção do espaço. Interessante notar que essas áreas de conflito eram de natureza limítrofe
entre o termo e o rossio ainda indefinidos pela ausência do mapa supracitado. Por fim, um
último fator que aproxima essas duas áreas de naturezas opostas – já que uma é de uso comum

277
GOTTDIENER, Mark. A produção social do espaço urbano. São Paulo: Edusp, 1993. p. 199.
278
Idem, p. 206.
157

e a outra arrabalde da cidade – é a valorização do espaço. Num período curto, precisamente


entre 1872-1880, já não era mais possível construir um matadouro na região do Pacaembu
devido à expansão da cidade naquela direção e a ocupação da área. A reação dos antigos
moradores, que desfaziam várias vezes os valos e fechos dos novos moradores, nos remete a
uma forma de resistência, ou que os interesses locais eram mais fortes que os interesses
centrais.
158

CAPÍTULO 3

PRODUÇÃO DE ESPAÇOS ATRAVÉS DAS CONCESSÕES DE TERRAS MUNICIPAIS

Desde 1852 com autorização para aforar em lugar de conceder gratuitamente, os


vereadores iniciaram um processo acelerado de parcelamento do rossio. O governo da
Província aceitou os argumentos de que a cidade necessitava de novas edificações, embora
tenha condicionado as concessões ao mapa do rossio.

A partir de 1859, os pedidos de terras municipais saltam da casa das centenas para a
dos milhares. Neste capítulo veremos como o rossio foi apropriado em etapas bem definidas
durante esses 40 anos, seguindo o ritmo imposto a partir do arruamento da “Cidade Nova” no
começo do século XIX, quando o Coronel José Toledo de Arouche Rendon arruou suas terras
caídas em comisso, dando início ao movimento de valorização da região oeste da cidade. Em
1860 todos os terrenos devolutos da região oeste – Arouche e arrabaldes – foram
completamente ocupados. A década de 1860 é marcada por um rigor maior na distribuição e
observam-se denúncias constantes de fraude. A região leste da cidade, para além da várzea do
Brás, foi concedida e iniciaram-se melhoramentos urbanos como a abertura de ruas, praças,
retificação dos rios, que proporcionaram a ocupação dessas áreas menos nobres da cidade.

Em 1875, com o fim da gratuidade, temos a ocupação da vertente sul da cidade e de


espaços limítrofes, como a região de Perdizes e Pacaembu. Como vimos, nessas últimas, os
moradores antigos ou usuários dos terrenos tentaram impedir o cercamento de terrenos.
Durante 1880 o movimento de pedidos de lotes caídos em comisso foi intenso, ou seja, as
datas não edificadas nos períodos anteriores foram requeridas e ocupadas. Verifica-se a
recorrência de expressões e palavras pouco usuais até então nos pedidos de datas:
“propriedade” (1862), “possuir” (1887), “lotes urbanos” (1881), o que indica a coexistência
de práticas típicas do antigo regime279 com mudanças de mentalidade relativa à questão
fundiária então em curso.

279
GLEZER, Raquel. “Persistências do Antigo Regime na legislação sobre a propriedade territorial urbana no
Brasil: o caso da cidade de São Paulo (1850-1916)”. In: Revista Complutense de História de América, v. 33, p.
197-215, Madrid, 2007.
159

Neste capítulo espacializaremos os requerimentos, verificando as regiões mais


requeridas em cada década. Para tanto, elegemos as plantas cadastrais (1844/47-1881) como
mapa-base para espacialização das concessões. A Planta Geral da Capital de São Paulo
(1897), organizada sob a direção do Dr. Gomes Cardim, foi escolhida por representar a cidade
no final do recorte temporal proposto, bem como por se tratar do mapa oficial realizado pelo
Intendente de Obras da municipalidade, que utilizamos com o intuito de documentar a
explosão urbana ocorrida nas décadas estudadas. Este mapa tem a peculiaridade de
representar num pequeno quadrado, à esquerda, o perímetro antigo e o atual, demonstrando
que a área do velho rossio havia sido completamente ocupada e urbanizada. Esses
procedimentos de ocupação são o foco deste Capítulo 3.
160

3.1. EXPECTATIVAS FERROVIA SANTOS-JUNDIAÍ:


DE DESENVOLVIMENTO URBANO COM A
CONCESSÕES GRATUITAS AO INVÉS DO AFORAMENTO (1850-1859)

A preocupação com as mudanças decorrentes da futura estrada de ferro é visível neste


ofício enviado em 1858 para o governo da província pedindo autorização para continuar as
doações:

[...] e como passa por certo q. brevemente devem comessar os trabalhos da


estrada de ferro d‟esta Província, urge ceder ao povo os terrenos que reclama
para edificações, afim de q. a afluência repentina de grande numero de
indivíduos não se torne por demais vexatória.280

Com o problema da medição do rossio pendente desde 1852, durante essa década as
concessões foram suspensas diversas vezes (1853, 1854, 1855, 1856, 1858). São praticamente
cinco anos sem poder conceder terras, embora tenhamos constatado a ocorrência de pedidos
durante todos os anos e algumas concessões esparsas. Abaixo, a tabela contendo os pedidos e
as datas doadas no período.

Tabela 8 - Pedidos e deferidos por ano 1850-1859


TABELA GERAL 1851-1859

Ano Pedidos Deferidos

1851 77 27

1852 144 53

1853 12 00

1854 04 00

1855 03 01

1856 08 00

1857 11 02

1858 00 00

1859 940 478

Total 1199 561/46.7%

280
25 de Novembro de 1858, ofício enviado ao Presidente da Província, CARTAS DE DATAS DE TERRA,
1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de Cultura, 1939, v. XIX, 1860, p. 146 -
161
161

Como a tabela demonstra, mesmo em períodos de suspensão, entre 1853-1859,


existiram pedidos de datas através de acréscimos, alinhamentos e aforamentos. Ao comparar
os pedidos de 1851 e 1852 percebemos que giravam em torno de 100, 150 e que em 1859
explodem para a casa do milhar. Formulamos a hipótese de que o crescimento das demandas
decorreu das expectativas de mudanças, impulsionadas pela construção da futura ferrovia
ligando São Paulo ao porto de Santos. A porcentagem entre os pedidos e os deferimentos gira
em torno de 46%, podendo indicar as dificuldades técnicas e práticas inerentes ao processo de
concessão de datas de terra e que envolviam: deslocamento de fiscais, verificação de limites e
disponibilidade da terra, medição e demarcação e, por fim, a elaboração do documento final.
O ofício abaixo, solicitando a contratação de mais um fiscal para a cidade, deixa transparecer
a aceleração do ritmo de crescimento da cidade:

[...] é notório o augmento que tem tido na mesma capital as obras publicas, e
a necessidade de se emprehenderem outras, que são reclamadas a bem da
comodidade e interesses da sua população. [...] A população tem crescido e
com ella a necessidade de se velar mais pela salubridade publica, e de se
prover medidas policiaes por meio de posturas; e estas são ineficazes si para
a sua execução se não se aplicam os meios adequados, que possão dar os
resultados que desejão.281

Para compreender esse momento é necessário entender o lento processo de


transformação pelo qual a cidade de São Paulo vinha passando:

[...] São Paulo contava com uma economia diversificada em que conviviam
a produção voltada para o comércio interno e a açucareira destinada à
exportação, além do café já produzido no Vale do Paraíba [...] para que a
economia se dinamizasse no período adquiriu relevo a atuação da
administração pública na construção e manutenção de uma rede viária capaz
de garantir o escoamento dos produtos.282

A perspectiva da ferrovia acirrava os ânimos e criava expectativas de mais


investimentos em melhorias e serviços na cidade. Desde 1837 uma ferrovia ligando o porto ao

281
“Representação da Câmara à Assembleia Provincial, de 17 de maio de 1852”. In: REGISTRO GERAL DA
CÂMARA DA CIDADE DE SÃO PAULO, 1585-1863. São Paulo: Archivo Municipal de São Paulo;
Departamento de Cultura, 1917-1946, v. 35, 1852, p. 88-89.
282
DOLHNIKOFF, M. Crescimento econômico em São Paulo. D. O. Leitura, São Paulo, v. 22, n. 1, p. 28-37,
2004.
162

planalto era pensada, mas foi em 1859 que Irineu dos Santos Evangelista, o Barão de Mauá,
conseguiu autorização imperial e parceiros para o vultoso projeto. As obras começaram
efetivamente em 1860 e terminaram em 1867. As tabelas a seguir mostram o ritmo de pedidos
(Tabela 9) e deferimentos (Tabela 10) entre 1850-1859, o que nos permite constatar as áreas
de maior e menor incidência.

Tabela 9 - Pedidos por localidade entre 1850-1859


PEDIDOS ENTRE 1850-1859
LOCALIDADES 1851 1852 1853 1854 1855 1856 1857 1859 Total
Água Branca 1 1
Arouche 26 7 33
Bairro da Pólvora 1 1
Barra Funda 12 12
Brás 1 35 47 83
Caaguaçu 1 1
Cambuci 1 1
Caminho de Santos 1 1
Campo Redondo 1 4 2 1 54 62
Canal do Tamanduateí 3 3
Carmo 1 1
Carvalho 1 1
Chácara da Barra Funda 1 1
Desconhecido 3 41 6 1 300 351
Estrada da Penha 2 2
Estrada de Campinas 1 3 9 13
Estrada de Santo Amaro 13 7 7 27
Estrada de Santos 1 1 2 4
Estrada de Vergueiro 1 1
Freguesia da Conceição de 1 1
Guarulhos
Freguesia de Nossa Senhora do Ó 5 13 1 1 1 21
Freguesia de Santa Ifigênia 2 1 3
Freguesia de São Bernardo, Borda 2 1 3
do Campo
Glória 1 1
Ladeira da Tabatinguera 1 1
Ladeira do Açu 1 1
Ladeira do Carmo 4 4
Ladeira do Porto Geral e a Rua 2 2
Municipal
Largo do Arouche, Campo 1 1
Redondo
163

Largo do Caquito 1 3 4
Largo do Rafael, Campo Redondo 1 1
Largo do Saibro 1 1 2
Lavapé, Caminho para Santos 13 13
Luz 5 1 2 8
Margens do Rio Tietê e na Coroa 2 2
Matadouro 1 1 2
Matto-Grosso, Estrada de Santo 13 13
Amaro
Mooca 5 26 31
Morro das Sete Voltas 1 1
Pacaembu 1 2 3
Pari 2 1 3
Pinheiros 8 4 1 13
Pólvora 1 1
Ponte do Lorena 1 1
Ponte dos Piques 1 1
Ponte Grande 1 1 21 23
Rua da Tabatinguera 1 1
Rua Municipal 1 1
Rua Bella 4 4
Rua da América 1 1
Rua da Barra Funda 29 29
Rua da Barra Funda, Campo da 6 6
Mooca
Rua da Boa Vista, n 38 1 1
Rua da Cruz, Pari 34 34
Rua da Esperança 1 1
Rua da Glória 1 1
Rua da Pólvora 1 1 2
Rua da Ponte Grande 38 38
Rua das Palmeiras 13 13
Rua de São João, Campo Redondo 5 5
Rua do Andrade, Campo Redondo 1 1
Rua do Araújo 1 1
Rua do Araújo, Várzea do Pari 14 14
Rua do Arouche, Campo Redondo 4 4
Rua do Azevedo, Campo Redondo 3 3
Rua do Carvalho, Campo Redondo 1 5 6
Rua do Cônego Leão 1 1 2
Rua do Freitas, Ponte Grande 3 3
Rua do Marechal 21 21
Rua do Marechal, Pari 2 2
Rua do Marechal, Arouche 4 4
164

Rua do Marechal, Brás 1 1


Rua do Marechal, Várzea do Pari 14 14
Rua do Matadouro 2 2
Rua do Ouvidor 1 1
Rua do Pari 24 24
Rua do Prado 2 2
Rua do Prado, Várzea do Pari 7 7
Rua do Quartel 1 1
Rua do Rafael 6 6
Rua do Rafael, Arouche 1 1
Rua do Rafael, Campo Redondo 3 3
Rua do Rafael, Mooca 3 3
Rua do Rafael, Campo Redondo 1 1
Rua do Rego 1 1
Rua do Tanque do Arouche 1 1
Rua do Tiete, Ponte Grande 1 1
Rua dos Mendes 2 2
Rua dos Mendes, Brás 1 1
Rua dos Mendes, Campo da Mooca 1 1
Rua dos Mendes, Várzea do Pari 17 17
Rua Municipal 2 2
Santana 5 6 1 12
Sé 1 1
Telégrafo 10 10
Terra no Pari 1 1
Travessa de Santa Cruz, Campo 3 3
Redondo
Travessa do Azevedo, Campo 5 5
Redondo
Travessa do Fox, Várzea do Pari 7 7
Travessa do Jerônimo, Campo 2 2
Redondo
Travessa do Pari 11 11
Travessa do Prado 5 5
Travessa do Rafael, Campo 4 4
Redondo
Travessa do Villaça, Ponte Grande 4 4
Várzea do Brás 1 1
Várzea do Carmo 43 43
Várzea do Pari 41 41
TOTAL GERAL 77 144 12 4 3 8 11 940 1199
165

Tabela 10 – Deferidos por localidades entre 1850-1859


DEFERIDOS ENTRE 1850-1859
LOCALIDADES 1851 1852 1855 1857 1859 Total
Arouche 9 4 13
Barra Funda 6 6
Brás 9 11 20
Caaguaçu 1 1
Campo Redondo 1 1 1 25 28
Canal do Tamanduateí 3 3
Chácara da Barra Funda 1 1
Desconhecido 2 22 6 30
Estrada de Campinas 3 3
Estrada de Santo Amaro 1 4 5
Estrada de Santos 1 2 3
Estrada de Vergueiro 1 1
Freguesia de Nossa Senhora do Ó 5 1 6
Freguesia de São Bernardo, Borda do 1 1
Campo
Ladeira da Tabatinguera 1 1

Ladeira do Açu 1 1
Largo do Arouche, Campo Redondo 1 1
Largo do Caquito 3 3
Largo do Rafael, Campo Redondo 1 1
Largo do Saibro 1 1
Lavapés, Caminho para Santos 10 10
Luz 4 2 6
Matadouro 1 1
Mooca 5 19 24
Pacaembu 1 2 3
Pinheiros 1 1 2
Ponte Grande 1 17 18
Rua da América 1 1
Rua da Barra Funda 29 29
Rua da Barra Funda, Campo da Mooca 6 6
Rua da Cruz, Pari 34 34
Rua da Glória 1 1
Rua da Ponte Grande 38 38
Rua das Palmeiras 13 13
Rua de São João, Campo Redondo 5 5
Rua do Andrade, Campo Redondo 1 1
Rua do Araújo 1 1
Rua do Araújo, Várzea do Pari 14 14
Rua do Arouche, Campo Redondo 4 4
166

Rua do Azevedo, Campo Redondo 3 3


Rua do Carvalho, Campo Redondo 1 5 6
Rua do Freitas, Ponte Grande 3 3
Rua do Marechal 20 20
Rua do Marechal, Pari 2 2
Rua do Marechal, Arouche 4 4
Rua do Marechal, Brás 1 1
Rua do Marechal, Várzea do Pari 14 14
Rua do Matadouro 2 2
Rua do Ouvidor 1 1
Rua do Pari 22 22
Rua do Prado 2 2
Rua do Prado, Várzea do Pari 7 7
Rua do Rafael 6 6
Rua do Rafael, Arouche 1 1
Rua do Rafael, Campo Redondo 4 4
Rua do Rafael, Mooca 3 3
Rua do Tanque do Arouche 1 1
Rua do Tiete, Ponte Grande 1 1
Rua dos Mendes 2 2
Rua dos Mendes, Brás 1 1
Rua dos Mendes, Campo da Mooca 1 1
Rua dos Mendes, Várzea do Pari 17 17
Santana 3 5 1 9
Telégrafo 5 5
Travessa de Santa Cruz, Campo Redondo 3 3
Travessa do Azevedo, Campo Redondo 5 5
Travessa do Fox, Várzea do Pari 7 7
Travessa do Jerônimo, Campo Redondo 2 2
Travessa do Pari 11 11
Travessa do Prado 5 5
Travessa do Rafael, Campo Redondo 4 4
Travessa do Villaça, Ponte Grande 4 4
Várzea do Carmo 1 1
Várzea do Pari 41 41
Total geral 27 53 1 2 478 561
167

Mesmo proibidos de conceder terras, a Câmara concede um lote em 1855283 e duas


datas em 1857: uma delas para a Rua do Carvalho, no entorno da Chácara do Carvalho,
região logo acima do Campo Redondo; outra na Estrada para Sorocaba, região da atual
Consolação. Os dois beneficiados com esses terrenos eram membros da família Toledo: Bento
José e Francisco de Paula Xavier. Aliás, devemos ressaltar que Bento José de Toledo
conseguiu data em 1857 e novamente em 1859, ambas no Campo Redondo, contrariando a
regra de apenas um lote por pessoa. Francisco de Paula Xavier fez quatro pedidos, dois para a
região da Ponte do Lorena e dois para o Campo Redondo, sendo atendido apenas no segundo
caso.

Figura 16: Localização da chácara do Carvalho. A região foi concedida através da Carta de Data em um
período de proibição. Atualmente corresponde a Barra Funda. São Paulo, chácaras e sítios e fazendas ao redor
do Centro, organizado pelo Engenheiro Gastão Cesar Bierrembach de Lima, para a exposição do IV Centenário
de São Paulo. Fonte: Arquivo Aguirra/Museu Paulista/USP

As concessões no rossio seguiram um ritmo bem definido durante a década de


1850-1859. Primeiramente na direção da chamada Cidade Nova, entre o Morro do Chá, Igreja
de Santa Ifigênia e Tanque do Arouche, na área arruada pelo Coronel José Toledo de Arouche

283
José Alves Fernandes pede para aforar um terreno de 4 braças por 400 réis na Estrada de Santos.
168

Rendon, detentor de uma extensa gleba na região. O arruamento preliminar corresponde à


abertura de uma praça para treinamentos militares, a Praça da Legião, hoje Largo do
Arouche284.

Figura 17: Detalhe do mapa de 1842 com os limites da Cidade Nova a partir do Arouche. CARTA DA
CAPITAL DE SÃO PAULO: O Exmo Snr Barão de Caxias mandou executar pelo Engenheiro Comumna José
Jacques da Costa Ourique Fortificador da Capital. Fonte: AHMWL.

284
CAMPOS, Eudes. “São Paulo antigo: plantas da cidade”. In: Informativo Arquivo Histórico Municipal, São
Paulo: PMSP/SMC/DPH, 4 (20): set-out/2008. Disponível em: <http://www.arquivohistorico.sp.gov.br> Acesso
em: 22/05/2009
169

Pouco antes, em 1807 ou 1808, o marechal Arouche arruou, a mando


da Câmara, suas terras caídas em comisso no Morro do Chá.
Delineou então ruas retas mas sem se cortarem ortogonalmente, que
puseram em comunicação o caminho de Sorocaba (Rua da
Consolação), o caminho de Jundiaí (Ruas Sete de Abril e Arouche),
o caminho do Ó (Ruas do Seminário e General Couto de Magalhães)
e o caminho da Luz (Avenida Tiradentes), que ia em direção ao
norte.285

Esse arruamento em suas terras caídas em comisso abre a demanda para uma série de
pedidos de datas nas novas ruas. Os terrenos devolutos ao redor da prestigiosa Chácara do
Arouche tornaram-se polo atrativo de moradia por todo o século XIX, condicionando a
expansão da cidade naquela direção e valorizando a região com a presença de moradores
ilustres:

A Luz, o Arouche e o Campo Redondo constituíam regiões habitadas por


importantes personagens, que sabiam muito bem recorrer ao peso de seu
prestígio, sempre que necessário. Em consequência disso, toda vez que um
desavisado pretendia localizar um equipamento indesejável fosse ao norte,
fosse a oeste da cidade sua iniciativa fracassava. Em 1830, um vereador
cogitou transferir o Matadouro Municipal para os lados do Arouche e, mais
tarde, pretenderam erguer o Cemitério Municipal na Luz (1832) e a seguir no
Campo Redondo (1855). Obviamente nenhuma dessas iniciativas encontrou
condições de prosperar.286

Além disso, exatamente por abrigar os equipamentos urbanos menos nobres287 (o


Matadouro, o Cemitério de Indigentes, a Casa da Pólvora) ou pela contiguidade à várzea, as
regiões Sul e Leste só foram ocupadas posteriormente. A Luz e os entornos da futura linha
férrea também tornaram-se áreas extremamente valorizadas nesse período. O aterrado da

285
CAMPOS, Eudes; RIBEIRO, Maurílio José. Origens do bairro de Santa Cecília. INFORMATIVO
ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIPAL, 2 (12): maio/junho 2007 <http://www.arquivohistorico.sp.gov.br>
286
CAMPOS, Eudes. Arquitetura Paulistana sob o Império - aspectos da formação da cultura burguesa em São
Paulo. São Paulo, 1997. Tese (Doutorado em Estruturas Ambientais Urbanas). Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo, Universidade de São Paulo. 4 v. p. 205.
287
CAMPOS, Eudes. “Nos caminhos da Luz, antigos palacetes da elite paulistana”. In: Anais do Museu Paulista,
jan-jun; ano/vol. 13, n. 01. São Paulo, p. 11-57.
170

Ponte Grande, prolongamento do eixo da Luz, ao norte, será outra região de grande
importância ao ponto de o engenheiro responsável pelas medições do rossio sugerir que a
medição não tivesse a Sé como ponto inicial:

[...] mas observa que falto de milhores instrumentos seo trabalho não será
perfeito, e que não começara a medição, pa todos os lados, do pateo da Sé;
pr que tendo a cidade maior desenvolvimento e extenção pa alguns dos
dados (lados) seria defeituosa a medição pr terminar de alguns lados dentro
da povoação, e que por isso havia, á exemplo do Rio de Janeiro, começado a
medir pa o lado da Luz da esquina do pateo de S.Bento.288 (grifo nosso)

O engenheiro percebia que o crescimento da cidade fora maior no sentido norte e que
não fazia sentido medi-la a partir da Sé. Durante toda a década de 1850 a região da Ponte
Grande foi requerida.

A direção norte, junto ao caminho da Luz, que articulava a capital à Atibaia e Minas
Gerais, concentrava alguns polos de atração como o Jardim Público, o Convento, a Casa de
Correção e o Pouso (ou rancho) de Tropeiros denominado “do Guaré”. Assim como a Ponte
Grande e a Estrada do Guaré, algumas vias que articulavam a capital ao interior também
foram alvo de pedidos e deferimentos de concessão. Enquadradas nessa categoria estão a Rua
da Constituição, que transpunha o Ribeirão Anhangabaú, através da ponte do mesmo nome,
assim como a Rua Alegre.

288
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 38, 1851, p. 213.
171

Figura 18: Detalhe do Mapa da Cidade e Seus Subúrbios. Carlos Abraão Bresser, (1844-1847). Observamos
o caminho da Luz até a Ponte Grande. Destacado em amarelo, quase defronte ao Convento da Luz se encontrava
o Pouso do Guaré289. Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL.

Também a oeste observam-se que os acessos para Campinas e para Sorocaba


igualmente motivaram atenção dos requerentes. Essa região começou a tomar impulso com a
abertura da Rua Nova de São José (atual Líbero Badaró), e na bifurcação entre as estradas de
Campinas e Sorocaba, próximo ao Largo da Memória, havia o Pouso do Bexiga, na linha do
rancho existente junto da Ponte Grande.

289
GIORDANO, Carolina Celestino. Ações sanitárias na imperial cidade de São Paulo: Mercados e
Matadouros, Campinas, 2006. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Pontifícia Universidade
Católica de Campinas. p. 51.
172

Figura 19: Extrato da Planta da Cidade de São Paulo 1868. Carlos Rath. Em destaque as saídas para
Campinas e Sorocaba e Pouso do Bexiga, Largo da Memória e Arouche. Fonte: Informativo Arquivo Histórico
Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL.

Além das áreas de acesso a cidade, foram requisitadas terras, junto de ruas já abertas,
geralmente nos interstícios de chácaras pré-existentes.

A tabelas 9 e 10 compõe-se dos pedidos da década inteira290. Nela reunimos as


localidades deferidas, ou seja, que foram de fato concedidas. Nesta primeira década analisada
(1850-1859), constatamos imprecisão na identificação das localidades, indicando-as por
referências vagas como uma rua próxima, uma chácara, uma fonte de água ou edifício
público, constituindo-se em dados bastante imprecisos.

290
Os nomes das localidades foram simplificados, o que significa perda de especificidade mas, por outro lado,
um ganho em eficiência no momento de colocar em uma base de mapa essas regiões.
173

Observando a tabela de pedidos referente à década de 1850 verificamos dois


momentos de pico nos requerimentos (entre 1850-1852) e a explosão de pedidos (em 1859). O
Arouche, o Campo Redondo (Santa Cecília, Vila Buarque e arredores) e o Brás lideravam em
número de pedidos. Pelas solicitações podemos perceber que a região do Brás mais visada era
a imediatamente posterior a Várzea do Carmo, havendo poucos pedidos junto da igreja do
Brás. Notamos poucos pedidos para a região central, o que pode significar que essa área já
estava totalmente ocupada, sem lotes municipais vazios, tal como mencionado no capítulo 2,
quando analisamos o caso do lixão da Ladeira do Carmo.

Entre os pedidos chamam a atenção várias ruas do Campo Redondo, na Barra Funda
ou Pari, que, por vezes, confundiam-se. Outro problema é a Mooca, que em muitos pedidos se
confundia com o Brás. Temos de levar em consideração que essas regiões estão tomando
forma nesse momento, juntamente com tais concessões realizadas, em geral, junto das vias de
ligação, concentrando-se em pequenas áreas ocupadas, ou nos interstícios das chácaras e
várzeas.

Também observamos pedidos em outras freguesias, como por exemplo a de Nossa


Senhora do Ó. Além disso, um caso interessante é o da própria freguesia de Santa Ifigênia,
abrangida em determinadas partes pelo perímetro urbano definido por ocasião da taxação da
Décima Urbana em 1850, o que significa que tais concessões fizeram-se em área urbana291.
Segundo uma lei de 27 de agosto de 1830, as superintendências para lançamento da décima
foram extintas e esse encargo foi dado aos coletores a nível municipal, cabendo à Câmara
decidir quais eram os limites para essa cobrança:

Designação dos limites para a cobrança da Décima dos Prédios Urbanos

A Camara Municipal da Cidade de São Paulo em conformidade do Artigo 4º


da Lei de 27 de Agosto de 1830 resolve:

Os limites dentro dos quaes deve ter logar o lançamento do imposto da


Décima dos Prédios Urbanos são as seguintes:

291
O perímetro para cobrança da Décima Urbana de 1850 pode ser encontrado na “Collecção das posturas da
Câmara Municipal da Imperial Cidade de São Paulo (1830-1863)”. Essa compilação manuscrita pode ser
encontrada no Arquivo do Estado de São Paulo – AESP, doc. E0170 ou no próprio Arquivo Histórico Municipal
Washington Luís – AHMWL sob a denominação de “Leis e decretos municipais – Coleção das posturas
municipais”, n. 310/311, manuscritos.
174

“1º Para o lado do Carmo a ponte de pedra que está alem da chácara di
falecido Marechal João (?) Joaquim Mariano Galvão, com (?) (exceção,
provavelmente) das chácaras que não estão em arruamento.

2º Para a descida da Tabatinguera, a caza do falecido João José Rodrigues

3º Lado do Cemitério a caza edificada por Candido Gonçalves Gomide hoje


do Cônego (?) Manoel da Costa e Almeida.

4º Rua do Rego a casa da herança do Capitão Luiz Antonio do Valle

5º Bexiga até a caza que fica fronteira á estrada no fim do pasto que foi dos
Religiosos Franciscanos

6º Piques a dita da herança do Alferes José Antonio de Abranches próxima


ao portão do Padre Ignácio

7º Porto de São Bento a casa de Policena Angélica de Oliveira

8º Rua da Constituição a dita de Francisco Alves de Araujo

9º Rua Triste casa de Joaquim da Silva Serrano

10º Rua da Alegria caza da Marquesa de Santos em nº 10

11º Rua Alegre dita de Ignácio de Freitas Teixeira

12º Rua da Palha, rua de Santa Yphigenia, tanque do Zuniga, rua de São
João e as mais da Cidade Nova até sahir no Campo Redondo292.

Segundo essas indicações, a “Cidade Nova” fazia parte da incidência do imposto,


assim como parte da Rua de São João, por exemplo. Entretanto, o Campo Redondo ainda não
integrava o perímetro urbano em 1850.

Inferimos ainda que a região central, correspondente à Freguesia da Sé, estava quase
completamente ocupada, condicionando a irradiação das solicitações de datas para os
entornos das chácaras envoltórias da colina histórica. É necessário reafirmar que a ocupação
não se efetivava se a área já tivesse sido arruada, sob pena de o concessionário ter que arcar
com essa despesa; nesse sentido, os pedidos serão, em geral, junto dos limites da área arruada.

292
“Collecção das posturas da Câmara Municipal da Imperial Cidade de São Paulo (1830-1863)”, op.cit.
175

Eudes Campos, em artigo293 sobre os moradores e as tipologias arquitetônicas da


região da Luz, demonstra que a área possuía moradores ilustres como membros da família
Paes de Barros em seus diversos ramos. Além disso, a região da Luz valorizou-se com a linha
férrea, mas no final do século XIX perdeu prestígio para os novos bairros planejados. Se a
ferrovia valorizava a elite, num primeiro momento, provavelmente a expulsou, devido à
expansão da estação de trem e do volume de pessoas e cargas na região. Simoni (2002) afirma
que o arruamento do entorno da linha férrea foi feito através de doações como forma de
promover e valorizar a região.

O Campo Redondo, extensa área logo após o Tanque do Arouche, ocupada mais tarde
pelos bairros de Vila Buarque, Santa Cecília e Campos Elíseos, polarizou anos depois os
moradores mais nobres da cidade, mas, ao contrário da Luz, sua ocupação deveu-se menos ao
pulverizado próximo de concessão de datas, observado na Luz. Embora lotes tivessem sido
concedidos nos interstícios das chácaras ali existentes, a ocupação posterior a 1880 deu-se
justamente através do loteamento dessas glebas, realizados por particulares.

293
CAMPOS, Eudes. “Nos caminhos da Luz, antigos palacetes da elite paulistana”. In: Anais do Museu Paulista,
jan-jun; ano/vol. 13, n. 1. São Paulo, p. 11-57.
176

Figura 20: Chácara do Arouche e a região do Campo Redondo. São Paulo, chácaras e sítios e fazendas à
volta de São Paulo, desde o século XVII. Gastão Cesar Bierrembach de Lima, Exposição do IV Centenário de
São Paulo. Fonte: Arquivo Aguirra/Museu Paulista/USP.

Figura 21: Tanque do Arouche e o Campo Redondo entre 1841-1847. C. A. Bresser. Primeira planta
cadastral da cidade de São Paulo, podemos notar a ocupação rarefeita, as ruas ainda sem nomes da Cidade Nova
e o isolamento das casas em meio a grandes áreas vazias. Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal,
4 (20): set./out.2008, AHMWL.
177

Figura 22: Tanque do Arouche e o Campo Redondo em 1881. Planta da Cidade de São Paulo Levantada
pela Companhia Cantareira e Esgotos, Henry B. Joyner, 1881. Em destaque o Largo do Arouche e a densa
ocupação, edificações em praticamente todo o lote. As ruas do Campo Redondo já possuem nomes diferentes
daqueles da década de 1850, que eram basicamente referenciados pelos moradores das chácaras locais: do
Carvalho, das Palmeiras, do Rafael, Jerônimo, do Azevedo. O bairro de Campos Elíseos, loteado em 1877,
aparece arruado, mas sem edificações. Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008,
AHMWL.

O Brás mereceu diversas concessões durante a década de 1850, estendendo seus


limites até a Rua da Mooca. Muitos pedidos para a Várzea do Carmo não foram atendidos.
Conforme o rio ia sendo retificado, os moradores da região requeriam, argumentando
acréscimo de propriedade. A Câmara preferia conceder essas terras mediante o
prolongamento ou retificação dos alinhamentos; dessa forma, o morador do local
acrescentava pedaços de terrenos menores à sua propriedade. A onda de pedidos no Brás, em
1859, também se deve à construção da nova Praça do Mercado e às perspectivas de
remodelação dessa área da cidade.
178

Em 1859 uma polêmica envolveu indiretamente a Várzea do Carmo e as concessões


no Brás e na Várzea do Pari, chegando aos vereadores no formato de abaixo-assinado e contra
abaixo-assinado. O primeiro abaixo-assinado pede a suspensão das datas na várzea que ia do
Brás ao Pari, afirmando que a região era logradouro público, de uso comum e, como tal,
utilizado para pastagem quando a Várzea do Carmo estava alagada. Conforme verificamos no
Capítulo 1, a querela inscreve-se no âmbito da mudança de perspectiva quanto ao destino das
terras de uso comum, então em andamento. A Lei de Terras protegia essas áreas desde que
fossem assim declaradas, mas na prática formavam-se cada vez mais terras apropriadas ou
passíveis de apropriação.

De mesma linha são as reclamações sobre concessões de terrenos contíguos à ponte do


Lavapés. Os moradores fazem um abaixo-assinado para impedir a concessão: “[...] VV.sas
não ignorão a falta que esta cide. te de fontes publicas, sendo aquella a única daquelle lado, a
excepção do rio Tamanduatehy, que pela posição de seu porto, e dificuldade de lá chegar, é
menos frequentada[...]”294.

As questões referentes ao uso comum das terras do rossio começam a se multiplicar


com o avolumar das concessões. Num desses problemas, ficamos sabendo que as práticas
camarárias com relação às concessões nem sempre seguiam as normas estabelecidas. Os
vizinhos reclamam, através de abaixo-assinado, que José Getulio de Almeida Machado estava
fechando um terreno que era logradouro público. Este se defende, afirmando ter autorização
da Câmara para tanto, e que o terreno fora concedido em troca de outro, retomado pela
municipalidade. O secretário da Câmara na época, José Pascoal Baylão 295, foi consultado e
afirmou ter dado autorização verbal para o fechamento do terreno, sem tê-lo, no entanto,
medido. Afirmou ainda que o vereador Leandro de Toledo autorizou a transação, tudo isso
verbalmente, quando todo o procedimento teria que ser registrado.

Reclamação e abaixo-assinado semelhantes296 fazem os moradores da Freguesia do


Brás e da Estrada da Mooca, referindo-se a terrenos que o Presidente da Província havia
vendido para duas pessoas. A reclamação é que tais terrenos eram parte do rossio da Câmara e
usados como pastagem de animais, de uso comum e inalienável por venda. Por fim, a disputa

294
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939, v. XVIII, p. 211-212.
295
Idem, v. XX, 1860, p. 29.
296
Ibidem, p. 136.
179

sobre a distribuição ou não nas várzeas do Brás e do Carmo leva os vereadores a quase
suspender a distribuição de datas. Os vereadores, por sua vez, estavam divididos em três
grupos distintos: um deles afirmava que aquelas várzeas eram necessárias para todos os
moradores por serem áreas de pastagem, uso comum e logradouro; o segundo grupo desejava
a demarcação e a distribuição imediata para dessecamento e construção; e por fim, o terceiro
grupo, vislumbrando a construção da ferrovia, preocupava-se com as desapropriações que
necessitariam ser feitas caso a região fosse ocupada. Os partidários da distribuição acabaram
vencendo a disputa, mas foram cobrados do mapa do rossio pelo governo da Província.
180

3.2. DEMARCAÇÕES, RIGOR NA DISTRIBUIÇÃO DAS DATAS E DENÚNCIAS DE FRAUDE

(1860-1869)

A distribuição de datas foi intensa durante o ano de 1859, causando certa confusão e
demora nos procedimentos de concessão. As cartas comprobatórias de certas datas passadas
em 1859 só foram emitidas entre 1860 e 1861. Fato interessante desse período é que as
divisas entre os terrenos foram demarcadas. No livro de Carta de Datas de 1864, o último
publicado, aparece uma listagem chamada 1860-1863 – Relação das datas de terras passadas
em diversas épocas. Cruzamos a informação dessa relação com nosso banco de dados e o
resultado é: o documento comprobatório era escrito depois da demarcação do terreno; nesse
caso, com um ano de diferença entre a concessão e a carta escrita. Esse é o caso de Izidoro
Marques Cantinho, cuja concessão ocorreu em fevereiro de 1859, sendo a carta passada em
agosto de 1860. O lote que ele recebeu situava-se na Rua do Rafael, Campo Redondo, esquina
com a Rua do Tanque do Arouche e divisa com Francisca Maria de Freitas. José Marques
Cantinho recebeu um lote na Rua de São João que fazia fundos com outro membro da família,
Gabriel Marques Cantinho, vereador durante toda a década de 1850. Essa série de dados
permite reconstruir o desenho das concessões com seus confrontantes, através da elaboração
de mapas das datas contendo as divisas entre vizinhos e o tamanho dos terrenos.

Os mecanismos de concessão vão se modificando durante a década de 1860: os


vereadores tentam peneirar os requerentes exigindo que as Cartas tivessem firma
reconhecida297; o secretário da Câmara consulta os livros antigos para ver se a pessoa já tinha
recebido doação. Além disso, a logística da Câmara, atrasando o processo de concessão e
emitindo as cartas de 1859 só nos anos seguintes após arruar e dar alinhamento para as novas
construções, atrasou todo o processo de concessão, que será relativamente escasso durante
toda o período de 1860-1869. Esse é um período complicado do Império, com reflexos na
Província e na Câmara Municipal, marcado pela crise financeira e o endividamento público
decorrente da Guerra do Paraguai:

[...] a quebra da Casa Souto foi apenas o estopim de uma crise que se deveu,
dentre outras causas, às políticas econômicas aplicadas pelo governo
imperial desde a crise de 1857 [...] aponta-se como uma das principais

297
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 46, p. 189.
181

causas da crise de 1864 a política monetária, com a excessiva valorização da


moeda nacional frente a libra esterlina[...].298

Outra dificuldade do período eram as garantias para o pagamento de empréstimos à


concessão de crédito agrícola: ancoradas na propriedade de escravos, com a proibição do
tráfico negreiro, havia a necessidade de se encontrar outros tipos de garantias.

[...] os empréstimos tinham garantias bastante deficientes, tendo em vista


que até então as dívidas eram normalmente garantidas pela propriedade de
escravos, a qual se encontrava em franca decadência pelo paulatino processo
de ilegitimação a que se submetia [...].299

O problema com os precários registros imobiliários e as poucas informações das


demarcações das terras devolutas vem à tona num processo lento de vinculação do crédito à
propriedade imobiliária. Por outro lado, a extinção da Repartição Geral de Terras Públicas
em 1861300, com a criação de outro órgão, criou expectativas e novas discussões na Província
que se refletiram de imediato na Câmara, referentes à legalidade do processo de concessão
gratuita.

As discussões na Câmara indicam que o processo de concessão foi desacelerado por


conta dos arruamentos e alinhamentos a serem realizados antes das concessões, retirando o
ônus dos autos de vistoria e arruamentos dos particulares. Isso é importante porque, se num
primeiro momento, desacelerou as concessões por deslocar continuamente o engenheiro,
fiscais e arruador da Câmara, por outro lado, possibilitou um processo de concessão mais
rápido e eficiente no futuro (finais de 1870 e 1880).

Existe um esforço para a uniformização desses procedimentos proporcional ao


número dos problemas causados. Começam a aparecer com mais frequência denúncias de
fraudes, favoritismos e substituição de lotes. O vereador Leandro de Toledo, um dos

298
SANCHES, Almir Teubl. A questão de terras no início da Republica: o Registro Torrens e sua (in)
aplicação. São Paulo, 2008. Dissertação (Mestrado em Teoria Geral e Filosofia do Direito) – Faculdade de
Direito, Universidade de São Paulo. p. 30.
299
Op. cit. p 31.
300
Órgão criado pela Lei de Terras para fiscalizar, medir, vender as terras devolutas e promover a colonização.
Em 1861 cria-se o Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, que fica encarregado das medições.
Órgãos de nível provincial tiveram dificuldades para conhecer as terras devolutas porque a prioridade de
demarcação era particular, ou seja, o proprietário tinha que declarar seu imóvel para, então, por exclusão, serem
conhecidas as terras públicas.
182

principais integrantes da Comissão de Datas e defensor da gratuidade das concessões desde


1857, foi suspenso do cargo em 1861301 e um dos motivos prováveis foi a denúncia recebida
pelo novo fiscal da cidade, Francisco Baruel de Miranda, no mês de abril daquele ano. Um
requerente, o Doutor José Getúlio de Almeida Machado, dizia que seus terrenos no Arouche,
adquiridos por compra, foram concedidos para outras pessoas e requereu uma data para
compensar aquela aparente perda. O lote seria na região chamada de Matto-Grosso, próximo
ao Matadouro Municipal na área sul, considerada, portanto, fora da cidade: “e que julgo
valiosa por ser fora da cidade, e não estar sujeita a postura das datas”302. Acontece que,
mesmo sem receber o aval da Câmara, ele estava fechando e cultivando no terreno, e
denúncias de populares foram enviadas ao fiscal. Na sua defesa, o doutor acusava o fiscal de
estar atendendo às solicitações de Demétrio da Costa do Nascimento, marchante, ou seja,
fornecedor de reses para o matadouro, vizinho e possuidor de uma chácara imensa na região
provavelmente adquirida por apossamento303. No dia seguinte à defesa do Doutor, um abaixo-
assinado foi enviado à Câmara informando que o terreno era de uso comum para a retirada de
lenha e pasto dos moradores, ou seja, não poderia estar concedido. Desde 1850, Demétrio da
Costa pediu duas vezes esse mesmo terreno (por acréscimo e por compra) para o governo da
Província e teve os pedidos negados com a justificativa de que a região era área de servidão
pública e de uso comum. Por fim, ao pedir informações ao fiscal anterior, os procedimentos
irregulares do vereador Leandro de Toledo vieram à tona. José Pascoal Baylão, o antigo
secretário, afirmou que o vereador, autorizado a conceder todas as datas pedidas, mandou
passar uma carta sem medição e sem verificação do local, confiando nas informações
passadas verbalmente pelo requerente. Acontece que o terreno em questão não tinha as
medidas usuais de uma data (10 braças de frente e fundos a meia quadra), medindo cento e
trinta e cinco braças de frente e aproximadamente meia légua de fundos. Isso permite
entender o significado da expressão “fora das posturas” a que o Doutor se refere, fazendo

301
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 47, 1860, p. 68.
302
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. XX, 1861, p. 32-39. Ele estava enganado, é claro, a região não
poderia ser doada pelos vereadores de acordo com a Lei de Terras pois era considerada devoluta e sob domínio
da Província.
303
Demétrio fez o Registro Paroquial e consta do primeiro volume, que é sobre a Freguesia da Sé. Era possuidor
da chácara denominada Quebra Bunda, famosa por ser o local para onde os escravos eram encaminhados para
sofrer castigos físicos. Sua chácara também era chamada “do Telégrafo”, ou seja, era uma área entre o
matadouro antigo, da Rua Humaitá, e o atual Shopping Paulista.
183

alusão ao tamanho do terreno. O antigo fiscal se isenta da culpa afirmando que desconhecia as
medidas do terreno e que o requerente apresentou uma carta de Leandro de Toledo
autorizando a concessão imediata. Ou seja, o fiscal passou a carta sem verificar as
informações necessárias304 e esse episódio, dentre outros, implicou na suspensão do cargo do
vereador por irregularidades cometidas durante sua vereança.

Através desse episódio ficamos sabendo de irregularidades por parte dos vereadores e
fiscais na concessão de terrenos maiores do que os usuais: bastava alegar que estava fora da
cidade (cidade entendida aqui como área urbanizada, visto que o matadouro estava em área
ainda relativamente desabitada). O fato de o fiscal afirmar que o ocorrido foi durante a noite,
fora do expediente e na ausência de Leandro de Toledo da cidade, atendendo a um pedido
verbal, nos leva a pensar na autonomia de decisão do fiscal que detinha um grande poder
como intermediário destas concessões. Desse período datam também as denúncias contra as
medições do engenheiro Fernando de Albuquerque.

Como as áreas da “Cidade Nova” já haviam sido praticamente todas concedidas305, os


pedidos então destinavam-se às áreas mais afastadas e consideradas fora área arruada. Na
região do Pacaembu e das Perdizes verificamos diversos problemas para a municipalidade. Os
que recebiam lotes de terreno na região reclamavam que não era possível construir porque os
moradores do local os impediam e as denúncias de fechamentos indevidos chegavam ao
Presidente da Província306. Por conta dessas denúncias e do processo de regularização
fundiária em andamento, as concessões foram suspensas em 1863, ficando condicionadas à
confecção do mapa do rossio307. Isso criava um círculo vicioso de pedidos para compra de
terrenos da municipalidade e denúncias de cercamentos indevidos enviados ao Presidente da
Província, além de apossamentos, o que incentivava o presidente a questionar os vereadores
sobre a legalidade das concessões no rossio.

304
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo: Departamento de
Cultura, 1939. v. XX, 1861. p. 38.
305
Nos pareceres de cartas pedindo regiões como a Rua das Palmeiras, no Carvalho e além do Cemitério
Municipal.
306
Consta que o próprio juiz de paz da área, Francisco de Paula Xavier de Toledo, estava distribuindo os
terrenos. Atas da Câmara, v. 49, pg. 127. Outra reclamação contra o juiz de paz sobre distribuição indevida de
lotes na Água Branca.
307
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal
de S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 49, 1863, p. 29.
184

Tabela 11 - Pedidos e deferidos por ano – 1860-1869

TABELA GERAL 1860-1869

Ano Pedido Deferido

1860 581 378

1861 108 24

1862 115 23

1863 23 13

1864 08 01

1865 26 15

1866 27 02

1867 03 03

1868 28 22

1869 32 16

Total 951 497/52%

Embora com muito menos concessões do que durante a década de 1850, percebemos
outro pico de pedidos entre 1860-1863, com certeza reflexo da década anterior, ou seja, áreas
que começaram a ser concedidas em 1859 e continuaram até 1863. O percentual de pedidos e
deferimentos é semelhante ao da década anterior, o que pode indicar que os problemas
técnicos para efetuar as concessões continuaram a existir.
185

Tabela 12 – Pedidos por localidade – 1860-1869


PEDIDOS ENTRE 1860-1861
LOCALIDADES 1860 1861 1862 1863 1864 1865 1866 1867 1868 1869 Total
Arouche 11 6 1 18
Barra Funda 22 7 1 30
Beco das Sete Voltas 1 1
Brás 113 4 6 3 1 2 129
Caaguaçu 4 1 3 12 2 21 3 46
Cadete 1 1
Cambuci 1 1 2
Campo de Tabatinguera 6 6
Campo Redondo 29 2 24 55
Carvalho 3 1 4
Consolação 10 6 24 1 7 2 1 51
Desconhecido 19 2 7 5 1 2 1 9 46
Estrada de Santo Amaro 2 6 3 4 1 1 3 20
Estrada de Vergueiro 1 1 1 3
Freguesia de Conceição de 1 1
Guarulhos
Freguesia de Nossa 7 3 1 11
Senhora da Penha de
França
Freguesia de Santa Ifigênia 1 1 2
Freguesia de São Bernardo 1 1
Glória 13 1 1 15
Ladeira Porto Geral 1 1
Lavapés 13 3 1 17
Luz 3 1 5 9
Mato Cumprido 1 1
Mooca 218 24 17 259
Pacaembu 2 1 3
Palmeiras 5 5
Pari 1 1
Pinheiros 1 1
Ponte do Carmo 1 1
Rua 25 de Março 5 5
Rua 25 de Março nº 2 1 1
Rua Alegre e a da 1 1
Constituição
Rua da Alegria 14 14
Rua da Barra Funda, 20 20
Mooca
Rua da Glória 2 2
Rua da Liberdade 1 1
Rua da Mooca 4 4
186

Rua da Pólvora 1 1
Rua das Palmeiras 1 1
Rua do Carmo nº 81 1 1
Rua do Carvalho 5 5
Rua do Marechal 1 1
Rua do Marechal, Brás 1 1
Rua do Oriente 1 1
Rua do Prado 1 1
Rua do Rafael 3 3
Rua do Rafael, Mooca 21 21
Rua da Tabatinguera 1 1
Rua do Telégrafo 1 1
Rua dos Bambus 1 1
Rua dos Mendes 2 2
Rua Nova 1 1
São Miguel 1 1
Telégrafo 30 10 12 10 22 3 1 88
Várzea da Luz 13 13
Várzea do Carmo 10 9 19
Total geral 581 108 115 23 8 26 27 3 28 32 951

Os pedidos tornam-se mais frequentes nas regiões já ocupadas, como por exemplo, o
Campo Redondo, o Arouche, as Palmeiras e a Luz. Também avançaram na vertente sul, em
direção à região do antigo matadouro que se localizava na altura da atual Rua Humaitá. Os
pedidos para a Estrada de Santo Amaro, Morro do Caaguaçu e Telégrafo demonstram essa
tendência de ocupação. A região da fazenda da Glória, que seria uma colônia de imigrantes,
também recebe diversos pedidos, junto da Estrada de Vergueiro (assim denominada por
passar na fazenda do político Nicolau Vergueiro).

Com a distribuição suspensa em 1864, condicionada novamente à feitura do mapa do


rossio, a Província recebeu pedidos de compra de terras e enviou à Câmara para que ela
mandasse informações sobre as áreas. O caso da Rua de Santa Cruz, nas proximidades do
Bexiga, mereceu a seguinte resposta dos vereadores:

Ilustríssimo e Exmo Senr. A Camara Municipal desta Imperial Cidade


informando ao requerimento incluso de Joaquim de Sant‟Anna e Sa. Expõe á
V.Exa. que o terreno pedido não é dos denominados devolutos pa o effeito
de poder ser comprado pelo Suppe mas sim terreno municipal que esta
Camara pode dar por pedido de data em conformidade da Postura approvada
pelo Conselho Geral em 3 de Fevro de 1832, e publicada em 9 do dito mez.
187

A Camara Municipal considera justa a petição do Suppe, mas só ella pode


conceder esse terreno, gratuitamente, não o tendo feito á mais tempo porque
o Exmo antecessor de V.Exa prohibio a concessão de datas municipaes, por
Portaria que nestes sentido expedio. É certo, Exmo Sr que o Governo
Provincial não podia impedir o exercício de uma atribuição da Camara
Municipal, tanto mais quanto essa atribuição deriva-se de uma Postura
approvada pelo poder competente, ainda não revogada, e deriva-se também
do titulo de doação de terras feita pr Martim Affonso ao município desta
Capital; mas a Camara Municipal não se oppoz á Portaria referida, porque
entendeo que não devia provocar um conflicto com o Governo, cabendo ao
mmo Governo reconhecer que não podia privar esta corporação do exercício
de um direito que a lei lhe conferio [...].308

A resposta deixa claro que, para os vereadores, a suspensão das concessões era ilegal,
mas eles acataram as exigências para não criar conflitos. Entretanto, um ofício do ano
anterior, assinado pelo Presidente da Província reclamava que mesmo estando proibidos de
conceder por data ou prolongamento de alinhamento os vereadores passaram cartas na
Freguesia da Penha de França para duas pessoas309.

308
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951. v. 50, 1864, p. 130-131.
309
Idem, v. 49, 1863, p. 245.
188

Tabela 13 – Deferidos por localidade – 1860-1869


DEFERIDOS ENTRE 1860-1869
LOCALIDADES 1860 1861 1862 1863 1864 1865 1866 1867 1868 1869 Total
Arouche 10 1 11
Barra Funda 18 18
Beco das Sete Voltas 1 1
Brás 79 2 3 1 85
Caaguaçu 1 1 1 2 18 3 26
Cambuci 1 1
Campo Redondo 23 1 2 26
Consolação 8 1 9 2 20
Desconhecido 5 1 4 8 18
Estrada de Vergueiro 1 1 2
Freguesia de Conceição de 1 1
Guarulhos
Freguesia de Nossa Senhora 1 1
da Penha de França
Glória 1 1 2
Lavapés 11 2 13
Mooca 144 144
Palmeiras 2 2
Rua 25 de Março 2 2
Rua da Alegria 14 14
Rua da Barra Funda, Campo 20 20
da Mooca
Rua da Liberdade 1 1
Rua do Carmo nº 81 1 1
Rua do Carvalho 3 3
Rua do Marechal 1 1
Rua do Oriente 1 1
Rua do Prado 1 1
Rua do Rafael 3 3
Rua do Rafael, Mooca 21 21
Rua do Telégrafo 1 1
Rua dos Mendes 2 2
Rua Nova 1 1
Telégrafo 16 1 6 10 14 47
Várzea da Luz 7 7
Total geral 378 24 23 13 1 15 2 3 22 16 497

Temos concessões nos extremos da década entre 1860-1862 como reflexo dos pedidos
de 1859 e após as suspensões da Província. Essas suspensões poderiam ter ligação com as
189

Leis Hipotecárias lançadas entre 1864-1865310? A documentação consultada não permite


verificar essa hipótese, mas existe a possibilidade de a reorganização do crédito estar
diretamente ligada à suspensão das concessões. Outro fator importante que demandou
recursos humanos e financeiros foi a Guerra do Paraguai, iniciada em dezembro de 1864 e
finalizada em 1870, o que pode ter tido influência direta na suspensão das concessões de
datas.

As regiões que mereceram concessões em grande quantidade foram as da Mooca e do


Brás, nesse momento ainda indistintas, com o requerente ora chamando o local de “Freguesia
do Brás no Campo da Mooca”, ora de “Várzea da Mooca próxima ao Brás”. A “Várzea do
Nicolau”, área imediatamente adjacente ao Brás, também foi objeto de concessões.

Figura 23: Brás e a chamada Várzea do Nicolau. São Paulo, chácaras e sítios e fazendas ao redor do Centro,
Gastão Cesar Bierrembach de Lima. Exposição do IV Centenário de São Paulo. Fonte: Arquivo Aguirra/Museu
Paulista/USP

Conforme verificamos nos pedidos, a região do Caaguaçu, Telégrafo e antigo


Caminho de Santo Amaro, vertente Sul do espigão da Paulista (correspondente à zona do

310
Em 1863 as concessões são suspensas; em 1864 a Lei 1.237 de 24 de Setembro cria o registro de imóveis, que
apesar de não comprovar propriedade torna-se obrigatório para transações de compra e venda, sendo
regulamentada entre 1865-1867. Ainda assim o crédito através de hipotecas eram limitados: “Após certo
adiamento na criação da Carteira Hipotecária, somente em 1867 seria regulamentada pela direção do Banco do
Brasil a repartição das hipotecas, fixando regras que na prática viriam a limitá-las sobremodo. Por exemplo,
como regra, somente seriam aceitas hipotecas de imóveis localizados no „município neutro da corte, na Província
do Rio de Janeiro e nos municípios que com ela fossem limítrofes em São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo‟,
e hipotecas sobre imóveis de outras localidades somente seriam aceitas excepcionalmente, e mesmo assim para
garantir os títulos já existentes na Carteira”. SANCHES, Almir Teubl. A questão de terras no início da
Republica: o Registro Torrens e sua (in) aplicação. São Paulo, 2008. Dissertação (Mestrado em Teoria Geral e
Filosofia do Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, p. 35.
190

atual bairro do Paraíso e Av. Brigadeiro Luís Antonio) foram paulatinamente ocupadas.
Praticamente não existiam mais terrenos disponíveis no Campo Redondo, nas Palmeiras, no
Arouche e no Carvalho (Barra Funda, entornos da Chácara do Carvalho). Sabemos disso
porque num pedido do mês de fevereiro de 1860 o fiscal informou que essa região não
possuía terrenos disponíveis para serem distribuídos. Entretanto, foram distribuídos 26 lotes
no Campo Redondo, a maioria pedidos entre setembro e outubro de 1860, provavelmente
caídos em comisso entre 1859-1860, devido ao prazo para a edificação que era de 6 meses,
prorrogáveis por mais seis, com a obrigação de comparecer à Câmara para fazer o pedido.

Caso interessante é o de Francisco Taques Alvim que tem sua data concedida em julho
de 1860 e em 1862 pede mais tempo para cercar o terreno, tendo sua solicitação indeferida311,
pois em 2 anos ele não conseguiu cumprir com os prazos determinados pela Câmara. Outro
ponto interessante sobre as concessões na região oeste é o tempo entre o pedido e a
elaboração da Carta de Data, que passou a ser imediato, ou seja, enquanto as datas
concedidas em 1859 demoraram praticamente um ano para serem registradas, as datas da
década de 1860 foram pedidas, concedidas e registradas no mesmo dia312.

Em resumo, na década de 1860 as concessões verificadas nas regiões norte e oeste


corresponderam a datas caídas em comisso, ou seja, não edificadas e devolvidas à Câmara,
pois também não existiam mais terrenos disponíveis no Aterrado de Santana ou na região da
Luz.

A tabela permite verificar que as áreas do Brás e da Mooca foram distribuídas em


larga escala em 1860. O que chama a atenção é realmente o alargamento geográfico dos
pedidos: vão da região do Telégrafo, Morro do Caaguaçu (região que hoje é Avenida Paulista
próxima ao Paraíso) até o Pacaembu, no extremo oeste, área considerada “fora da cidade” 313.
Ainda é grande o número de pedidos para a região da “Cidade Nova” (Arouche, Palmeiras),
mas em fevereiro de 1860 temos a indicação de que todos os terrenos das Palmeiras já
estavam concedidos, o mesmo valendo para a região próxima ao Cemitério da Consolação.
Podemos inferir que os lotes da “Cidade Nova” já estavam distribuídos, mas nada indica que
311
Francisco Taques Alvim foi vereador em 1864. ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO,
1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 45, 1859 p. 55
312
Caso das datas do Arouche, pedidas em 05/10 e 20/12 e com o documento escrito no mesmo dia.
313
Sabemos disso porque foi cogitada a mudança do matadouro para essa área, exatamente por ser considerada
distante do centro populacional, mas o crescimento chegou rápido ao Pacaembu e o matadouro foi construído na
vertente sul da cidade (Vila Mariana).
191

estivessem construídos. O processo ficou mais ágil com a Carta de Data passada no mesmo
dia do deferimento, enquanto em 1859 as Cartas poderiam levar até um ano para serem
elaboradas. Ao que parece, em determinados lugares, como o Arouche e o Campo Redondo
certas pessoas foram favorecidas. Fizemos uma comparação entre pedido e concessão em
diferentes partes do rossio. Para a Barra Funda, por exemplo, o período entre o pedido e o
documento oficial era de aproximadamente três meses. Já no Caaguaçu e Telégrafo esse
intervalo podia ser de seis meses. Essa diferença dependia da distância, do arruamento já
existente na “Cidade Nova” (facilitava a concessão das datas caídas em comisso) ou
simplesmente da vontade política dos membros da Câmara? A questão fica sem resposta, mas
indica práticas não muito lícitas no processo de concessão de terras em São Paulo e
certamente em todo o Brasil.

Outras irregularidades afloram na documentação. Por exemplo, no caso da distribuição


de datas contestadas pelo vereador e morador da região do Telégrafo, Joaquim Sertório, em
1865. Ele afirmava que os terrenos concedidos pela Câmara eram parte da sua propriedade,
causando um mal-estar entre seus pares e muitas reclamações da população314. Por causa
dessa contenda, os concessionários do Telégrafo pediram transferência para a Rua 25 de
Março, o que os vereadores negaram, continuando as distribuições nas terras anexas às de
Sertório. Provavelmente eram terras nos entornos de sua fazenda ou chácara, e isso o
incomodava. Aliás, não era somente Joaquim Sertório que reclamava das atividades da
Câmara. Francisco Leandro de Toledo, filho do vereador Leandro de Toledo, reclamava do
valor cobrado pelo alinhamento no terreno no qual estava construindo no Largo do Arouche:
10$ ou 20$ réis315. Em outro pedido, ficamos sabendo que um dos terrenos do Lavapés foi
concedido mais de seis vezes e nunca foi sequer fechado. Em 1865 mudam os nomes das ruas
e estas recebem nova numeração das casas. Em 1867, o abade do Mosteiro de São Bento
pretende que os terrenos abertos na Rua 25 de Março, com a retificação do Rio Tamanduateí,
sejam reconhecidos como seus. Apoiados na jurisprudência referente a terrenos de uso
comum, os vereadores afirmam que estes são definitivamente públicos, pois antes eram parte
do leito do rio e não das terras do Mosteiro.

314
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v.52, 1866.
315
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 51, 1865, p. 198.
192

A cidade estava se expandindo para leste, berço das futuras residências operárias de
fins do século XIX e início do XX. Essa era sem dúvida uma região com problemas de
ocupação na década de 1850. Aliás, não é possível inferir sobre ocupação efetiva na área
tendo por base apenas as concessões. É importante notar que os terrenos podem ter sido
concedidos e nada ter sido construído no local, ou estes nem terem sido utilizados para fins
diversos como cultivo, pastagem etc.

Apesar da discrepância e diferenças de concessões entre as duas décadas, é


interessante notar que o percentual de pedidos deferidos é praticamente o mesmo: 46% para a
década de 1850 e 52% para 1860. As razões para isso podem ser de caráter técnico: pessoas
para alinhar, demarcar, fiscalizar, passar as cartas, verificar todos os pedidos.

Ao final da década, as reclamações sobre apropriações em diversas partes da cidade


aumentam. No caminho de Santana, chamado antes de Ponte Grande, por exemplo:

[...] proponho que esta Camara tome conhecimento de uma porção de valor
aberto na várzea da Ponte grande na estrada de Santa Anna, que uns tem
feito para se apossear e outros por compra à quem a pretexto de títulos tem
vendido o que há mais de 40 annos está no domínio do público, creando,
plantando e desfrutando as mattas316.

As denúncias de apossamento de terras se intensificam nos limites do rossio, em


regiões distantes como a Água Branca, Perdizes, Pacaembu ou no areal de Santana. O fiscal
informa que derrubou as cercas que fechavam um terreno público nas Perdizes, que durante a
noite foram reerguidas317. No Pacaembu, José Fabiano Baptista318 denunciou o Coronel José
Pedro de Brito Galvão por estar fechando terrenos de servidão pública319.

Como propósito de comparar o valor das datas de terra vamos analisar duas
desapropriações efetuadas entre 1861-1867. A primeira avaliação é feita na Rua do Rosário,
atual XV de Novembro, no centro antigo, propriedade de Francisco Leite Lobo:

316
Idem, v. 55, 1869, p. 241.
317
Ibidem, v. 51, 1865.
318
Esse é o mesmo dono da chácara que a Câmara desapropria para a construção do matadouro no Pacaembu
durante a década de 1870. Entretanto, o crescimento da região e a pressão dos criadores de gado que achavam a
área de difícil acesso fazem os vereadores desistirem da construção do matadouro no Pacaembu.
319
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 51, 1866, p. 9.
193

[...] na rua do Rozario, ao sair do pateo da Sé; attendendo a boa localidade


em que se acha situada a propriedade do referido Lobo, com frente para duas
ruas novamente reedificada, com bom commodo para armazém e caza
commoda para família, sendo sabido que as propriedades nesta Cidade dão
seis por cento mais ou menos, e sendo de lei que quando se tenha de
desapropriar qual quer Casa, se faça a conta do aluguer que rende um mez, e
multiplique-se este por vinte annos, abatendo as despezas prováveis na
Conservação da dita propriedade, o restante será o preço da desapropriação;
o alluguer desta propriedade é de 55$000 mensaes; que perfazem nos 20
annos 13:200$000. As despezas prováveis pode-se orçar em 4:000$000, e
por tanto avalio a dita Casa em 9:200$000.

Quanto a casa de Lucio Santos Capello, não tendo a vantagem de ter duas
frentes, sendo menor, e de construção mais antiga, e dando só de aluguer a
qta de 30$000, avalio em 7:000$000320.

Portanto, a primeira foi avaliada em 13:200$000 réis e a segunda, menor e mais


antiga, em 7:000$000 réis. Nota-se que para fazer a desapropriação era levado em
consideração o valor do aluguel da propriedade. As construções são destacadas mais do que o
tamanho do terreno, por exemplo, que não sabemos qual seria. Sabemos apenas que a
primeira casa foi novamente reedificada, ou seja, foi reformada. Em 26 de novembro de 1867,
um ofício do procurador da Câmara informa que uma pessoa cede a data que lhe foi
concedida defronte ao cemitério mediante 200$000 réis de indenização pelas construções
feitas no local321. O cemitério provavelmente é o da Consolação, e se considerarmos que uma
data padrão media 22 metros de frente e aproximadamente 60 metros de fundo temos um
terreno de 1.452 m2 avaliado em aproximadamente 16% do valor de uma construção na Rua
XV de Novembro. É preciso ressaltar que não sabemos o tamanho dos terrenos no primeiro
caso e que nas duas situações o que está sendo avaliado são as chamadas benfeitorias, as
construções no local.

320
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 47, 1861, p. 223.
321
Idem, v. 53, 1867.
194

3.3. O FIM DA GRATUIDADE DAS CONCESSÕES E OS MELHORAMENTOS URBANOS (1870-1879)

A década se inicia com os prazos menores para edificação apenas seis meses, sem
possibilidade de prorrogação. Todo o processo de doação era efetuado em aproximadamente
um mês, o que na década de 1850 demorava até 1 ano para ser feito e na década de 1860
passou a ser feito no próprio momento do deferimento.

Em muitos casos as cartas não trazem data ou parecer de fiscais e engenheiros. Se na


década de 1860 os requerentes eram obrigados a ter firma reconhecida e trazer especificações
quanto ao seu poder financeiro, na década de 1870 verifica-se a progressiva eliminação dessas
formalidades, causando mais suspeitas sobre os requerentes e diversas reclamações. Em 1879
desaparecem os pareceres, os quais muitas vezes envolvem dupla solicitação, ou seja, pedem
mais de um lote de terreno em uma única carta. Antes disso, a partir de 1875, as datas passam
de gratuitas a onerosas, gerando dúvidas e muitos protestos por parte da população.

É um momento intenso de “melhoramentos materiaes”322, transformações físicas na


cidade, abertura de ruas, enfim, de reorganização urbana. Com efeito, as mudanças já vinham
ocorrendo mas, entre 1872 e 1875, com João Theodoro na Presidência da Província,
profundas transformações são feitas na cidade de São Paulo, o que se torna um marco na
história e na historiografia da cidade. Esse é um período comumente vinculado a um “surto de
desenvolvimento”, mas a documentação consultada, aponta que tais transformações, visíveis
em 1870, já estavam em curso desde a década de 1850. Um exemplo disso é o pedido dos
vereadores para o aumento da meia légua datado de 1859, mediante argumentos para a
distribuição gratuita de datas em vista do beneficiamento de áreas públicas por particulares e
até mesmo em função da questão do saneamento das várzeas e afastamento dos depósitos de
lixo do “triângulo central”323. A construção do Mercado Municipal, as discussões para a
construção do Novo Matadouro, as posturas proibindo a criação de suínos dentro do
perímetro urbano, são alguns dos exemplos que, juntos, apontam para o crescimento
populacional e econômico de São Paulo como polo da Província a partir do deslocamento da
economia do café para o oeste paulista e implantação da ferrovia desde 1859. Inclusive as
322
A expressão é retirada de um artigo sobre as transformações urbanas da cidade: CAMPOS, Eudes. A cidade
de São Paulo e a era dos melhoramentos materiaes: Obras públicas e arquitetura vistas por meio de fotografias
de autoria de Militão Augusto de Azevedo, datadas do período 1862-1863. An. mus. paul. [online], 2011, v.15,
n.1, p. 11-114. ISSN 0101-4714.
323
Expressão que designa as três ruas principais da cidade durante o século XIX: Ruas Direita, São Bento e XV
de Novembro.
195

constantes reclamações, referentes ao aumento do valor dos aluguéis, fruto da carência de


novos imóveis presentes em diversos requerimentos corroboram essa hipótese.

É certo que João Theodoro investiu mais dinheiro na cidade e promoveu o diálogo
entre Câmara Municipal e Província, evitando disputas que paralisassem as concessões.
Consequentemente, mais edifícios foram construídos, com novas técnicas, dando uma
aparência diferente à cidade de taipa324. Verificam-se mudanças nos materiais construtivos e
na pavimentação das ruas, por exemplo. São marcantes as mudanças físicas na capital durante
a década de 1870, com o dinheiro do café e a inserção de São Paulo e do Brasil na economia
mundial. Em 1875 é proposta a formação de Companhias Construtoras325, que ficariam
encarregadas dos terrenos caídos em comisso e dos prédios em ruínas, ou seja, uma proposta
de organização dos espaços da cidade envolvendo o público e o privado. A fiscalização ficaria
por conta da companhia; os terrenos, cedidos pela municipalidade. O argumento para a
existência das Companhias Construtoras é o mesmo utilizado desde a década de 1850: falta de
prédios, elevado valor dos aluguéis, em razão da falta de prédios e salubridade pública. É
possível constatar uma valorização da terra, nessa época, diferente dos períodos anteriores,
provavelmente fruto da onda de modificações urbanas.

Um novo Código de Posturas326 foi elaborado e as distribuições ficaram suspensas


entre 1873-1875. Pela primeira vez, foram os próprios vereadores que suspenderam as
concessões até a elaboração do novo código327, o que demonstra o interesse em transformar a
data de terra em fonte de renda para arcar com as despesas públicas. Isso demonstra certo
alinhamento entre o governo da Província e a municipalidade no processo de arrecadação de
impostos e transformações físicas da cidade.

324
TOLEDO, Benedito Lima de. São Paulo: três cidades em um século. São Paulo: Cosac Naify, 1983.
325
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S.Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, vol., 1875, p. 40-42. O conceito das Companhias Construtoras
nos remete ao momento atual vivenciado pela cidade de São Paulo com a Lei da Concessão Urbanística (Lei nº
14917 de 7 de maio de 2009), que repassa à iniciativa privada os direitos para desapropriar e construir em
determinadas áreas, e não coincidentemente, a primeira área de incidência da lei é a região da Santa Ifigênia nos
entornos da Estação da Luz.
326
Na verdade foi uma revisão das vigentes e elaboração de posturas que abrangessem aspectos ainda não
contemplados.
327
Apesar de já existir esse imposto para emissão da Carta comprobatória, era usual o requerente não emitir a
Carta de Data. A partir de 1875 ele será obrigado a emitir a Carta e pagar o imposto.
196

Por outro lado, a Divisão de Imigração, outro órgão criado em 1872, pediu
informações sobre as terras férteis para colonização e os vereadores negaram todas as
localidades sugeridas pelo governo provincial. Os mesmos problemas persistem desde a Lei
de Terras, segundo os vereadores: não existe mapa do rossio; as terras devolutas do
município não foram demarcadas; e não existem terrenos propícios para colônias de
imigrantes328. Apesar destas negativas, apontam a Chácara do Glória como possível local para
abrigar uma colônia de imigrantes.

Tabela 14 – Pedidos e deferidos por ano – 1870-1879


TABELA GERAL 1870-1879

Ano Pedido Deferido

1870 18 02

1871 13 13

1872 28 15

1873 26 03

1874 75 41

1875 38 07

1876 11 00

1877 25 06

1878 130 17

1879 203 45

Total 567 149/26%

Percebemos que tanto os pedidos como os deferimentos são em menor número nessa
década, e isso pode ser reflexo do valor das datas a partir de 1875. Outra possível explicação
refere-se à transformação material da cidade que talvez impedisse o processo de concessão,
deslocando pessoas, engenheiros e recursos para abertura de ruas e outros afazeres
urbanísticos. Claro que é preciso relativizar esses números. As Cartas de Datas de Terra
trazem menos informações e já não existe o mesmo rigor vigente nas décadas anteriores, tais

328
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo, Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 60, 1874, p. 112.
197

como pareceres dos secretários ou firmas reconhecidas. E, embora dispomos dos pedidos, não
sabemos com exatidão a quantidade de lotes concedidos. Um fator que sem dúvida inibiu a
distribuição de datas a partir de 1875 foi o novo valor do imposto sobre a data padrão que
passou de 22 metros de frente e 66 metros de fundo para 15 de frente e 35 de profundidade.
Nota-se uma diminuição do tamanho conforme adotou-se o novo padrão de medidas em 1872,
apesar da proposta de continuidade do mesmo tamanho (1.452 m2). O valor do imposto sobre
datas para o ano de 1873 aumentou para 60 réis o metro quadrado e as reclamações foram
tantas que o Código de Posturas foi suspenso para revisão até 1875. Uma das reclamações era
a quantidade de impostos presentes nas posturas e seus altos valores. Em 1875, o imposto
sobre datas foi finalmente fixado em 30 réis o metro quadrado, metade do valor sugerido, o
que ainda causou reclamações e tentativas de isenção do imposto.

Segundo as posturas de 1873-1875, as concessões de terras do patrimônio municipal


poderiam ser efetuadas “pela quantia que for determinada em sua receita”, ou seja, seria
estabelecido um valor pela Câmara. Fica explícito que a concessão de datas ainda era
condicional, sendo necessária a construção na primeira data para a concessão da segunda:
“Art. 21. Não se concederá ao mesmo indivíduo, e ao mesmo tempo, duas datas de terreno,
nem se lhe concederá segunda sem ter acabado a edificação da primeira concedida” 329. Não se
trata, portanto, de venda ou a liberação do rossio ao livre mercado imobiliário, mas de uma
questão de arrecadação de impostos através da concessão de datas, o que já estava presente
nas discussões da Câmara desde a década de 1850.

Os pedidos de terreno, por sua vez, continuam alinhando-se a ruas já abertas ou novas
ruas por alinhamento. Conforme dissemos, se o requerente adquirisse um lote em local não
arruado, ele arcaria com os custos do arruamento. A abertura de novas ruas, em geral, gerava
um volume de pedidos.

329
Código de Posturas da Câmara Municipal da Imperial Cidade de São Paulo, 1875. In: Collecção das leis do
Império do Brasil, 1808-1889. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional.
198

Tabela 15 – Pedidos por localidade entre 1870-1879


PEDIDOS ENTRE 1870-1879
LOCALIDADES 1870 1871 1872 1873 1874 1875 1876 1877 1878 1879 Total
Água Branca 3 2 5
Água Comprida 1 1
Alto da Boa Vista 5 5
Aterrado Penha 2 2
Brás 6 2 1 2 6 3 20
Caaguaçu 12 2 1 1 2 1 19
Carmo 1 1
Carvalho 1 1 1 3
Catumbi 3 5 8
Consolação 1 6 6 13
Desconhecido 7 1 8
Estrada de Santo Amaro 1 1 2
Estrada de Vergueiro 1 11 1 1 2 2 18
Hipódromo 23 85 108
Hospício dos Alienados 2 2 4
Ipiranga e Mooca 1 1
Largo do Comércio da 1 1 2
Luz
Largo do Tanque do 2 2
Zunega
Lázaros 1 1
Maranhão 1 1
Marco da Meia Légua 1 5 2 2 2 40 86 138
Mooca 3 1 1 5 2 10 12 34
Pacaembu 9 9
Pari 1 1 1 3
Perdizes 6 2 8
Ponte das Casas 1 1
Ponte do Ferrão 1 1
Ponte Grande 1 1
Rua da Saúde, Campo da 1 1
Mooca
Rua de Santo Amaro 5 21 1 3 3 1 34
Rua do Brás 3 3
Rua do Catumbi 6 4 10
Rua do Gasômetro 1 6 7
Rua do Gasômetro, data 1 1
nº 17
Rua do Gasômetro, data 1 1
nº 19
Rua do Gasômetro, data 1 1
nºA
Rua do Hipódromo 3 3
199

Rua do Marco de Meia 1 1


Légua
Rua do Norte, Campo da 4 4
Mooca
Rua do Pacaembu 1 1
Rua Dr. João Theodoro 1 2 1 8 8 20
Rua Nova do Campo da 1 1
Mooca
Rua Nova do Catumbi 1 1
Rua Nova do Gasômetro 17 17
Rua Nova do Jardim 53 53
Rua Sem Nome, Mooca 1 1
Tabatinguera 1 1
Telégrafo 2 8 2 3 15
Telegrafo, data de nº 15 1 1
Várzea do Carmo 10 10
Várzea do Tietê 2 2
Total geral 18 20 28 26 75 38 11 25 131 236 608

No final da década de 1870, os pedidos se concentram na região do Marco da Meia


Légua, no Brás e na Mooca. A Rua de Santo Amaro também merece um número significativo
de pedidos a partir de 1875.

A Rua Nova do Jardim, aberta em terrenos do Jardim da Luz, foi motivo de diversos
abaixo-assinados de moradores da cidade contrários à concessão. Os moradores da Freguesia
de Santa Ifigênia eram contra a retirada de uma parte do Jardim da Luz330 e afirmavam
irônicos que a Câmara só poderia vender, aforar ou trocar bens de seu domínio, mas não fazer
concessões gratuitas. Essas concessões ocorreram exatamente no período de elaboração do
novo código de posturas quando as datas estavam suspensas, entretanto, os vereadores agiram
dentro da legalidade ao conceder essas terras, pois tinham autorização da Província331. Apesar
do abaixo-assinado, as concessões nessa rua continuaram e todas as datas demarcadas foram
distribuídas. Em 1875, começou a distribuição das datas na Rua Dr. João Theodoro, aberta
para fazer a ligação entre a cidade e os bairros da região leste (Brás e Mooca). Essas
concessões foram efetuadas sob a vigência do novo imposto.

330
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 61, 1875.
331
Idem, v. 61, 1875. E apesar de pensarmos em privilégios, as concessões da Rua Nova do Jardim são para
pessoas de diversos níveis sociais, inclusive uma liberta (Benedicta Liberta).
200

Existiu um esforço por parte das Comissões de Datas332 desse período em verificar
quais datas receberam edificação e quais terrenos caíram em comisso. Por causa dessa
diligência que anteriormente ficava por conta dos moradores, sabemos que os terrenos
pedidos por Carlos, Anna e Tereza Boemer, no Caaguaçu, em 1872, não foram edificados e
declarados em comisso em 1877. O mesmo aconteceu com Catharina Schemk. Detalhe: esses
terrenos foram pedidos como “acréscimo” pois os requerentes já moravam no local.

Figura 24 - Rua João Theodoro fazendo a ligação da zona central com a zona leste e a Rua Nova do
Jardim. Mappa da capital da província de São Paulo, por F. Albuquerque e J. Martin, copiado por Francisco
Sansoni, 1877. Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL .

332
Comissão formada em 1877 pelos vereadores Gabriel Cantinho, Guedes Portilho e Alvares Siqueira que
pedem ao fiscal do Brás uma lista com as datas não edificadas. Op. cit., v. 63, 1877.
201

Figura 25: Rua Nova do Jardim e a Rua do Dr. João Theodoro. Cia Cantareira de Esgotos, 1881. Podemos
observar a ausência de edificações e as ruas projetadas. Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20):
set./out.2008, AHMWL.

Figura 26: Rua Nova do Jardim e a Rua do Dr. João Theodoro em 1897. Gomes Cardim. Planta Geral da
Capital de São Paulo (1897). Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL.
202

Tabela 16 – Deferidos por localidade entre 1870-1879


DEFERIDOS ENTRE 1870-1879
LOCALIDADES 1870 1871 1872 1873 1874 1875 1877 1878 1879 Total
Água Branca 1 1
Aterrado da Penha 1 1
Brás 5 1 6
Caaguaçu 9 1 1 1 12
Carvalho 1 1
Catumbi 3 5 8
Desconhecido 6 6
Estrada de Santo Amaro 1 1
Estrada de Vergueiro 7 1 1 9
Hipódromo 20 49 69
Largo do Comércio da Luz 1 1
Largo do Tanque do Zunega 2 2
Marco da Meia Légua 1 1 8 44 54
Mooca 1 5 4 10
Pacaembu 3 3
Perdizes 6 2 8
Rua da Saúde, Campo da 1 1
Mooca
Rua de Santo Amaro 1 1 2
Rua do Catumbi 6 4 10
Rua do Gasômetro 1 1
Rua do Gasômetro, data nº a 1 1
Rua do Marco da Meia Légua 1 1
Rua do Norte, Campo da 4 4
Mooca
Rua Dr. João Theodoro 1 5 7 13
Rua Nova do Campo da 1 1
Mooca
Rua Nova do Catumbi 1 1
Rua nova do Gasômetro 16 16
Rua Nova do Jardim 24 24
Rua Sem Nome, Mooca 1 1
Telégrafo 1 1
Telégrafo, data de nº 15 1 1
Várzea do Carmo 1 1
Total geral 2 13 18 3 41 8 6 51 129 271
203

As ocupações são pontuais e em novas ruas abertas, como na Rua do Gasômetro.

Figura 27 - Rua do Gasômetro. Companhia Cantareira e Esgotos, 1881. Fonte: Informativo Arquivo Histórico
Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL.

As concessões ao redor do Hipódromo também foram em número significativo. A


municipalidade foi autorizada a aforar o terreno de 698.000 m2 para o Clube Paulistano de
Corridas, futuro Jockey Club de São Paulo e isso atraiu um interesse significativo para a
região. Começam a surgir pedidos por procuração e os requerimentos foram padronizados
tornando-se exatamente iguais, mudando apenas as assinaturas, em muitos casos ilegíveis. A
maior parte desses pedidos concentravam-se nas imediações do Hipódromo.

Em 1879 todas as concessões no morro do Telégrafo são contestadas dentro da própria


Câmara:

Pelo que me conste que a Câmara transacta tivesse no morro do Telegrapho


concedido datas, o certo é que procedendo a indagação da D. Leopoldo,
engenheiro chefe de medições de terra desta capital, foi me por ele
observado que aqueles terrenos pertencem ao Governo, procedência da
204

antiga chacara do Glória, não tendo nisso aothoridade alguma esta ILMA
Camara333. (grifo nosso)

Figura 28: Caminho de Santo Amaro e a região da Liberdade e do Glória. C. A. Bresser, 1841-1847.
Conhecida na época como Caminho para Santos, entre o ribeirão Anhangabaú e o córrego Lavapés. A ocupação
era pontual: ao longo do caminho, com edificações isoladas no meio de grandes terrenos. Fonte: Informativo
Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL.

333
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939, v. 1, 1879.
205

Figura 29: Rua de Santo Amaro e o Largo da Liberdade. Cia Cantareira de Esgotos, 1881. Verificamos o
rápido crescimento da malha urbana na região. Há edificações na Rua da Liberdade, Rua dos Estudantes,
Travessa da Liberdade e Rua do Barão de Iguape. A Rua de Santo Amaro ganha edificações e lotes estreitos dos
dois lados e já vemos o arruamento do que seria o futuro bairro do Bexiga e a Bela Vista, ainda desocupados.
Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008.
206

3.4. A EXPLOSÃO DO NÚMERO DE PEDIDOS (1880-1889)

Os requerimentos continuam padronizados na década de 1880, como um formulário


onde só a assinatura do requerente é alterada, e em muitos casos ainda ilegível. Perdem em
informações e ganham uniformização. Aliás, esse é o período das informações fragmentadas:
bilhetes com pareceres sem as cartas e vice-versa; mapas de distribuição inseridos no meio da
documentação sem data; reclamações sobre fraudes; reclamações sobre o engenheiro,
referentes a demarcações erradas; problemas relativos a concessionários nas Perdizes e
Pacaembu; papéis timbrados de advogados requerendo em nome de pessoas mais simples;
grandes senhores pedindo lotes para seus ex- escravos, agora libertos.

Os manuscritos dessa década contêm um volume de papéis cujas informações são


ainda mais dispersas, levando-nos a questionar, inclusive, se as falhas na encadernação não
corresponderiam a fraudes para esconder informações334.

O volume dos pedidos aumenta de forma impressionante: são 4.261, para toda a
década de 1880. Isso pode ter ocorrido porque as pessoas enviavam mais de um pedido.
Tomemos como exemplo Elisa Maria Marret e seu filho, que enviaram três cartas cada um,
todas com a mesma data e pedindo lotes, respectivamente no Telégrafo, na Consolação e em
Perdizes. Tal como em uma loteria, onde acertassem seria lucrativo. Por outro lado, o
crescimento populacional foi considerável durante essa década. Se analisarmos os
levantamentos populacionais da época, veremos que nas três freguesias (Sé, Brás e Santa
Efigênia) a população não ultrapassava 9.000 pessoas em 1836, e que esses números
aumentam de forma drástica em 1874.

334
Como Viviane Tessitore comprovou verificando os Registros Paroquiais, em alguns casos, os registros foram
alterados para justificar terras que não seriam de tal possuidor.
207

Tabela 17 – População das Freguesias de São Paulo entre 1836–1874

Freguesias 1836 1874


Sé 5668 9223
Santa Ifigênia 3064 4459
Brás 659 2308
Consolação335 0 3357
Total 9391 19347

Fontes: 1836 – MULLER, Daniel Pedro, Ensaio d’um Quadro Estatístico da Província de São Paulo;
1970 – LANGEBUCH, 1971, p. 64 e 65; VARON, 2005, p. 124 e 127.

Se durante a década de 1870 a população nas quatro freguesias girava em torno de


20.000 pessoas, em 1890 o censo constata 60.000 pessoas no município336. Essa elevação na
taxa de crescimento é atribuída à imigração e tem reflexos nas concessões municipais.

Tabela 18 – População de São Paulo entre 1872-1890

Anos Município de São Paulo Estado de São Paulo Brasil

População Taxa de População Taxa de População Taxa de


Crescimento Crescimento Crescimento
1872 31.385 837.354 10.112.061
4,1 2,8 2,0
1890 64.934 1.384.753 14.333.915
Fonte: População nos anos de levantamento censitário, município e região metropolitana de São Paulo,
Estado e Brasil, 1872 – 1890337.

Sobre os lotes distribuídos temos poucas e dispersas informações, sendo difícil


afirmar a quantidade de lotes concedidos, pois são raras as cartas com pareceres. Por exemplo,
no livro de 1884 (entre as páginas 17-18), existe um parecer favorável a 10 pedidos na Estrada
da Penha e apenas uma pessoa requerendo esta área338. Não por acaso, essa pessoa é Antonia
Benedicta Marques Cantinho, parente de Gabriel Marques Cantinho, vereador durante toda a
década de 1870. A certeza de distribuição desses lotes decai enquanto os pedidos aumentam,
constituindo um verdadeiro paradoxo.

335
Essa freguesia foi desmembrada de Santa Ifigênia em 1870, logo, não consta dos primeiros censos.
336
Contando as freguesias ditas rurais.
337
História demográfica do município:
http://smdu.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/tabelas/pop_brasil.php
338
O mesmo problema ocorre para a região do Hipódromo.
208

Os moradores das Perdizes querem exclusividade e tentam impedir novas construções


no local. Os reclamantes pedem que as datas sejam transferidas para a Estrada de Vergueiro
ou no Cambucy, ao que o parecerista, sem assinar, responde: “Estando legalmente concedidas
aos supplicantes as datas a que se referem, usem dos recursos de direito para manutenção de
339
poder” . Temos reclamações de roubo de materiais e pessoas que receberam as datas em
1882 e em 1885 reclamam que perderam seus lotes por não conseguirem edificar ou sequer
fechar o terreno. Nos pareceres transparece a preocupação da Câmara com a perda de oito
contos de réis em impostos pagos por aproximadamente 1.500 datas demarcadas na região 340.
Logo depois dessa reclamação, a Câmara muda a localização de alguma das datas das
Perdizes para o Hipódromo, e uma série de pedidos de troca de localidade aparecem, com
pessoas que receberam datas no Marco de Meia Légua, pedindo para trocar para o Pacaembu
de Cima, por exemplo. Sabemos de antemão que as terras do Marco da Meia Légua eram de
várzea e difíceis para construir e plantar, logo, esses pedidos não foram atendidos.

Alguns moradores reclamam da distância entre o lote recebido e o centro da cidade;


outros pedem em agosto datas caídas em comisso no final de fevereiro, denotando uma
excelente memória e fiscalização (não da Câmara, mas dos próprios requerentes sobre os
terrenos). Um requerente reclama do vizinho e afirma que deveria ser o favorito para aquela
data, já que possuía sete outras na região, demonstrando que, por já possuir uma quantidade
de lotes, mesmo que existissem outros requerentes, ele teria prioridade.

Por outro lado, em 1885, as datas do Morro do Telégrafo (região ocupada pelo
Shopping Paulista na Avenida Paulista) estão, praticamente todas, em aberto e abandonadas;
segundo o fiscal, sendo julgadas em comisso. Lembramos que elas foram concedidas em 1870
e em 15 anos não foram edificadas. Requerentes na região do Catumby afirmam querer um
lote de terreno para plantar capim, logo, os entornos da cidade ainda na década de 1880
poderiam funcionar como reserva agrícola. Gasparine Luigi, desde 1882, através de um
acordo com a Câmara, está cultivando um terreno na Várzea do Carmo, a título precário, de
frente para a Rua do Gasômetro:

339
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939, 18/7/1882, v. 4, 1882,
p. 229.
340
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939, v. 1, 1883.
209

[...] em virtude da deliberação da Câmara, em sessão de hontem, obrigou-se


a conservar cercado e cultivado a nesga de terreno que lhe foi concedida pela
Camara na Várzea do Carmo, com frente para a rua do Gasômetro, até que
convenha á mesma Camara341.

Com uma procuração anexada, Gasparine requer construir uma casa no local, alegando
“necessidades materiais”. Esse caso nos lembra outro, acontecido no início da década de
1850, no qual o requerente pede terras de uso comum para construir uma capela (casa para a
cruz). No entanto, Gasparine não recebe o mesmo tratamento que Caetano, tendo seu pedido
negado. Esse acordo temporário para usufruto de local público, típico de uma cidade com
grande quantidade de terras devolutas, se volta contra a Câmara num período em que
praticamente já não é mais possível a existência de terrenos de uso comum na cidade.

Em 31 de janeiro de 1882, Antonio Monteiro dos Santos pediu data de terra no bairro
do Maranhão, Freguesia do Brás, contíguo à sua chácara, alegando assim não ser prejudicado
na distribuição de datas tal como vinha acontecendo. Ele queria deixar esse terreno entre o
seu e o dos outros proprietários como área intermediária com o intuito de não ser
incomodado. Esse caso nos remete as reclamações de Joaquim Sertório sobre os entornos da
sua chácara na Estrada de Vergueiro; em ambos os casos os moradores se sentiram
incomodados com a movimentação nos arredores das suas propriedades.

O Dr. Joaquim de Paula Souza, em um interessante requerimento, pede três datas para
o liberto Izaías e sua mulher Cândida. O requerimento conta com duas testemunhas e foi
deferido. Logo em seguida pede mais três datas para um liberto e sua mulher, atingindo um
total de seis lotes na região do Hipódromo (08/11/1880). No jornal Tribuna Liberal ,de 20 de
novembro de 1880342, existe um despacho do governo da província acerca das terras do
capitão Francisco de Paula Xavier de Toledo, na Várzea de Pinheiros, que pertenceriam a
Fazenda Nacional (são, portanto, devolutas), já que provenientes do antigo aldeamento, e
“dados por data indevidamente”.

O engenheiro a serviço da Câmara, Fernando de Albuquerque, foi alvo de uma série de


reclamações, como a de Manoel Dias da Cruz e D. Ana Cândida de Oliveira dizendo que ele
teria demarcado as datas no Marco de Meia Légua, e as concedido a João M. Rudge. Rudge
(1839-1897) era empresário tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro, casado com uma
341
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939. v. 2041, 1886.
342
Idem, v. 3, 1880.
210

descendente da família Vergueiro e, portanto, personalidade importante da cidade. O


engenheiro alegou que os suplicantes tinham desistido das datas, ao que os requerentes
replicaram:

Acontece ter o mesmo Engenheiro trocado essas datas, a seu bel prazer, e
isto sem o consentimento dos suppes [...] e não tendo o Engenheiro
autoridade para declarar as datas em comisso; e sendo certo que na posse
d‟ellas pretende acomodar amigos ou parentes 343.

Já falamos sobre o engenheiro e sua forma de defesa nesses casos, sempre na direção
de desqualificar os reclamantes. Fernando de Albuquerque, atuando como engenheiro e
demarcando terras ou elaborando mapas para a Câmara Municipal, teve um papel importante
no loteamento da região do Bexiga, conforme nos mostra a pesquisa de Sheila Schneck344,
aproveitando as oportunidades que a aquisição e venda de terrenos então proporcionava.

Em 1880345, uma relação a lápis denominada “Relação das datas do Pacaembu”


contem 33 nomes com 51 lotes distribuídos, mas nenhuma carta de data dos pedidos foi
encontrada. A seguir, a transcrição da relação:

343
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939. v. 2041, v. 2, 1880.
344
SCHNECK, Sheila. Formação do bairro do Bexiga em São Paulo loteadores, proprietários, construtores,
tipologias edilícias e usuários (1881-1913). São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado Arquitetura e do
Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, p. 56.
345
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939, 1880, v. 1, p. 154.
211

Relação das datas do Pacaembu

Nº Nomes Quantidades e Nº
diversos
1º Dor. Sebastião Pereira 10 datas
2º José Leandro de Toledo 1
3º Izabel A. de Toledo 1
4º Mane? Mª de Toledo 1
5º Bento Ferraz de Toledo 1
6º João Baptista de Toledo 1
7º Britaraldo? J. Rodrigues 1
8º F? L? Rodrigues 1
9º Maria Cândida Rodrigues 1
10º Eliza Maria Rodrigues 1
11º B. G. Rodrigues Júnior (riscado) 1
12º Porfírio Álvares da Cruz 1
13º Maria Cândida da Silveira 1
14º Capm. Paulino (riscado) 9
Soma lotes das datas
15º Antonio de Oliveira Braga 1
51 - que se acham
16º Cândida Clark 1
distribuídas conforme
17º Maria Clark á lista 1
18º Elvira Oliveira Braga 1
19º Fco. Ignácio Toledo Barboza 1
20º Maria Cândida Nogueira 1
21º José Antonio Pereira 1
22º Anto Fernandes da Borba 1
23º Justino Pereira Gomes 1
24º Mel. Joaqm. Pereira Gomes 1
25º J. Pereira Gomes Jor. (riscado) 1
26º Adolpho Machado 1
27º Fca. Eliza Machado 1
28º Antonio Baptista de Campos Pereira 1
29º (nome riscado ilegível) Candido A 1
Machado
30º Joaqm Roza de Azevedo 1
31º José Machado Betlem 1
32º João Lucio 1
33º Dinis Azambuja 9/51

Chama a atenção a família Toledo, aí incluso o próprio Leandro de Toledo, bem como
os representantes da família Braga e Clark. Alguns agentes se repetem tanto no loteamento
do Bexiga quanto em outras áreas da cidade, como, por exemplo, a família Clark, constantes
212

nas enigmáticas datas distribuídas no Pacaembu e como moradores do Bexiga346. O próprio


Fernando Braga e sua família, outro empreendedor do loteamento do Bexiga, aparece
assinando a rogo (que conforme verificamos era uma forma de apadrinhamento da carta) para
Lourenço Cruz, em 1884. Se até agora nos abstivemos de falar em especulação, ao analisar a
década de 1880 determinados fatos simplesmente pulam dos documentos, demonstrando a
velocidade e a ânsia acumuladora de terras.

Fernando de Albuquerque sofreu um ataque dentro da própria Câmara para a qual


demarcava datas, pelo vereador Marques Cantinho, ambos envolvidos ativamente no mercado
imobiliário. Eis um trecho da sua defesa:

É falso que eu como Engº da Camara destribuisse algum dia, datas por
autorisação própria ou por ordem da Camara, por quanto o meo dever
sempre limitou-se a demarcar simplesmente as concedidas, porque a
distribuição d‟ellas foi sempre munos da commissão ou antes do Snr
Cantinho único membro que a compunha. É verdade que como Engº da
Camara informei ao Snr Cantinho o abandono em que se achavão as onze
datas concedidas no Catumby a Antero de tal347.

Curioso constatar a acusação de que a Comissão de Datas era composta por um único
homem e dava ao engenheiro poder para distribuir datas a quem fosse de interesse. No
documento menciona que recebeu um cartão com as datas a serem demarcadas e a ele caberia
apenas demarcar a área. A briga vai além e demonstra práticas pouco éticas de distribuição de
terras e favorecimento de uns em detrimento de outros, o que já tinha ocorrido com o
envolvimento de outro vereador, Leandro de Toledo. O Senhor Baunilha (ou Bonilha, preto,
pobre e analfabeto348) tinha razão em reclamar: era possível ter o seu pedido aceito pela
Câmara e ser passado para trás no momento da demarcação, ficando com os piores terrenos.
Desde sempre isso poderia ocorrer, mas nos anos 1880 parece ser ainda mais provável.

346
SCHNECK, Sheila. Formação do bairro do Bexiga em São Paulo: loteadores, proprietários, construtores,
tipologias edilícias e usuários (1881-1913). São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e
Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, p. 78. Os Clark aparecem em
um abaixo-assinado para a mudança do nome do Bairro de Bexiga para Bela Vista.
347
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939. v. 2030, v. 1,
1881, p. 57.
348
Caso que analisamos no Capítulo 2, p. 111.
213

Tabela 19 – Pedidos e deferidos por ano 1880-1889

TABELA GERAL 1880-1889

Ano Pedido Deferido

1880 425 340

1881 447 384

1882 2153 2060

1883 215 190

1884 208 180

1885 158 133

1886 119 65

1887 406 122

1888 1 0

1889 129 6

Total 4261 3480/81.6%

Além da quantidade impressionante de pedidos, principalmente em 1882, a quantidade


de lotes concedidos supera 80% durante a década349, apesar da sensível diminuição no final do
período. Esse fato indica que os problemas técnicos para a distribuição de datas foram
praticamente superados e, apesar da ausência do mapa do rossio, os vereadores, engenheiros,
arruadores e fiscais trabalharam em conjunto para aperfeiçoar o sistema de concessões.

349
Esse índice sobe para impressionantes 95% em 1882, denotando que praticamente todo pedido efetuado foi
concedido.
214

Tabela 20 – Pedidos por localidade entre 1880-1889

PEDIDOS ENTRE 1880-1889


LOCALIDADES 1880 1881 1882 1883 1884 1885 1886 1887 1888 1889 Total
Água Branca, Consolação 5 2 7
Água Fria 1 1
Alameda do Triunfo 2 2
Areal, Santana 1 1
Aterrado de Santana 2 1 3
Bairro do Cambuim, Marco 1 1
da Meia Légua
Beco das Minhocas, Brás 1 1
Belenzinho, Estrada da 1 1
Penha
Bella União, entre Rua 1 1
Tamandaré e a Estrada
Vergueiro
Bethlem, Caminho da Penha 3 3
Bexiga 15 15
Boa Vista 1 1
Brás 3 23 1 27
Brás e Penha, entre 10 10
Caaguassú 18 24 22 4 3 4 75
Cambucy 2 2
Campo das Minhocas 5 5

Campo das Minhocas ou 4 4


Hipódromo
Catumbi 55 78 98 20 1 6 10 1 11 280
Cemitério do Brás 1 2 3
Cemitério Municipal, 2 2
Consolação
Colina do Ipiranga 1 1
Consolação 1 1 1 3
Desconhecido 5 1 2 1 1 4 14
Estrada de Pinheiros 25 25
Estrada de Santo Amaro 10 1 1 1 13
Estrada de Vergueiro 27 23 140 3 2 4 3 202
Estrada de Vergueiro, nº 1 1 1
Estrada de Vergueiro, nº 2 1 1
Estrada de Vergueiro, nº 3 1 1
Estrada de Vergueiro, nº 4 1 1
Estrada de Vergueiro, nº 42 1 1
Estrada de Vergueiro, nº 43 1 1
Estrada de Vergueiro, nº 44 1 1
Gasômetro 1 1
215

Glória 34 34
Hipódromo 27 50 17 29 5 10 13 151
Ipiranga 1 76 2 2 81
Largo do Cemitério do Brás 5 5
Largo do Hospício 9 9
Maranhão, Freguesia do 2 2
Brás
Marco da Meia Légua 62 74 234 110 168 69 18 198 53 986
Matadouro 2 1 7 10
Matadouro Vila Mariana 6 6
Matta Burros, Maranhão, 12 12
Brás
Matto Grosso, Estrada 5 12 17
Vergueiro
Mooca 18 92 370 11 9 2 32 30 1 565
Mooca, Rua sem Nome 1 1
Morro Vermelho, Estrada de 7 7
Vergueiro
Morro Vermelho, Rua da 6 6
Liberdade
Pacaembu 102 34 77 6 1 3 7 1 1 232
Palmeiras 2 2 4
Pari 1 1
Pátio de S. José, Bairro do 4 4
Maranhão
Penha 4 4

Penha, Marco da Meia 1 1


Légua
Perdizes 8 18 520 1 12 13 132 38 742
Ponte Grande 4 4
Rua 25 de Março 6 6
Rua da Barra Funda 1 1
Rua da Liberdade 3 3
Rua da Mangueira, Pari 2 2
Rua da Saúde, Campo da 2 2
Mooca
Rua de Santa Rosa, Várzea 1 5 6
do Carmo
Rua de Santo Amaro 1 3 312 2 4 322
Rua de Santo Amaro, Bexiga 8 8
Rua de São Christino, Mooca 1 1
Rua de São José, nº 13 1 1
Rua de São Leopoldo, Marco 3 3
da Meia Légua
Rua do Brás 1 1
Rua do Catumbi, Marco da 12 7 1 20
Meia Légua
216

Rua do Conde D'Eu 1 31 1 33


Rua do Dr. Henrique Luís, 1 1
Hipódromo
Rua do Hospício 1 2 1 4
Rua do Ipiranga 2 2
Rua do Norte, Campo da 1 2 5 8
Mooca
Rua do Pacaembu 4 4
Rua do Pacaembu, 8 8
Consolação
Rua do Pari 1 1
Rua do Tanque, Pacaembu 3 3
Rua do Telégrafo 1 1
Rua dos Guaianazes 1 1
Rua dos Prazeres, Catumbi 2 1 3
Rua Dr. João Teodoro 1 1 2
Rua Nova do Catumbi 3 3
Rua Nova do Pacaembu 1 1
Rua que vai da Consolação 7 7
para o Morro do Bexiga
Rua São Caetano 1 1
Rua Sem Nome 1 1
Rua Sem Nome do Campo 3 3
da Mooca, Hipódromo
Rua Sem Nome, Catumbi 3 3
Rua Sem Nome, Mooca 2 3 5

Ruas de Santo Amaro e 39 39


Santa Cruz, entre
Ruas dos Guaianases e 1 1
Conselheiro Nébias
Santana, Aterrado da Ponte 5 1 6
Grande
Tanque do Bexiga 4 4 8
Tanque do Carvalho 1 1
Telégrafo 1 2 22 4 29
Telégrafo, Estrada do 2 2 3 7
Vergueiro
Travessa Carneiro Leão, 1 1
Mooca
Travessa da Rua de São 3 3
Leopoldo
Travessa de Santa Cruz 1 1
Travessa de Santa Cruz, 56 56
Campo de São Francisco
Travessa do Hipódromo 1 1
Várzea do Carmo 2 1 1 4
Várzea do Cassandoca, 4 4
Mooca
217

Várzea do Catumbi 16 16
Várzea do Pari 1 10 11
Várzea do Tietê 4 4
Vila Mariana 2 1 3
Total geral 425 447 2153 215 208 158 119 406 1 129 4261

As regiões mais solicitadas seguem padrões anteriores: junto de ligações viárias.


Estendem-se para o leste, na direção além das várzeas, além do Brás, Mooca, Hipódromo,
Catumbi e o Marco de Meia Légua; seus novos bairros têm nomes curiosos, como Beco das
Minhocas e Bairro das Minhocas. A Estrada do Vergueiro e a Estrada de Santo Amaro,
seguindo em direção à colina do Ipiranga e à Vila Mariana, igualmente recebem inúmeros
pedidos de datas. No extremo oposto, Perdizes recebe 742 pedidos ao longo da década, e
grande parte se concentra em 1882 (520 pedidos).

Em 1881 verificamos a expressão “lote urbano de terreno” “[...] pedem a VVSSas


dignem de conceder lhe um lote urbano de terrenos[...] ”350. Essa expressão não era comum,
podemos afirmar que era inexistente nos requerimentos até esse momento. Ao afirmar que o
lote desejado era “urbano”, o requerente deixava transparecer o crescimento da cidade.

O Pacaembu, em 1881, não possuía mais terrenos passíveis de concessão. A história


das concessões nessa área tem estreita ligação com o projeto do Matadouro e a desistência
posterior da Câmara decidindo lotear a área dos terrenos desapropriados em 1873. Foram
“separados” lotes de terra (51 no total) e concedidos por volta de 201 lotes, o restante foi
reservado para venda em hasta pública em 1887351. Aliás, ao receber pedidos para o
Pacaembu, a Câmara negou sob a alegação de que conceder datas diminuiria os preços dos
terrenos que seriam vendidos em leilão352. Os requerentes pedem para comprá-los e não são
atendidos, o que demonstra que, de certa forma, a Câmara reservou esses terrenos, frutos de
desapropriação, para venda em momento oportuno. Resta a dúvida: o matadouro não foi
construído na região por pressão dos criadores de gado (que consideravam a região de difícil
acesso, pela sua topografia irregular) ou por pressão dos moradores da região, que sempre se
opuseram a novos moradores (de diferentes níveis sociais) no local?
350
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939, v. 1, 1881.
351
Provavelmente toda a chácara desapropriada de José Fabiano Baptista foi reservada para ser vendida. Os lotes
concedidos ou reservados foram demarcados no interstício das chácaras preexistentes na região.
352
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939, v. 2043, 1887.
218

Figura 30: Sítio do Pacaembu. São Paulo, chácaras e sítios e fazendas ao redor do Centro, Gastão Cesar
Bierrembach de Lima. Exposição do IV Centenário de São Paulo, 1954. Originalmente um único sítio, que com
o passar dos anos foi dividido em 3 regiões: de baixo, do meio e de cima. Inferimos que o sítio de José Fabiano
Baptista, desapropriado para construção do Matadouro era parte da região destacada em rosa pela descrição
presente no Registro Paroquial: “[...] Ao lado esquerdo da estrada que desta cidade [de São Paulo] segue para
Jundiaí que pela frente divide com esta estrada e pelos lados e fundos já com terras devolutas e já com uma
antiqüíssima estrada e com um corredor que vem sair na referida estrada de Jundiaí353”. O sítio era referido como
no Pacaembu de Cima, mas provavelmente não abrangia toda a área destacada visto fazer fundos com terras
devolutas. Fonte: Arquivo Aguirra/Museu Paulista/USP.

353
REGISTRO DE TERRAS DE SÃO PAULO. Divisão de Arquivo do Estado. São Paulo: A Divisão, 1999,
v. 5, Freguesia de Santa Ifigênia. v. 5, ficha 165.
219

Tabela 21 – Pedidos deferidos entre 1880-1890

PEDIDOS DEFERIDOS ENTRE 1880-1889


LOCALIDADES 1880 1881 1882 1883 1884 1885 1886 1887 1889 Total
Água Branca, Consolação 5 1 6
Água Fria 1 1
Aterrado de Santana 2 2
Bairro de Cambuim, Marco da 1 1
Meia Légua
Beco das Minhocas, Brás 1 1
Bella União, entre Rua Tamandaré 1 1
e a Estrada Vergueiro
Bexiga 13 13
Boa Vista 1 1
Brás 3 20 1 24
Brás e Penha, entre 10 10
Caaguassú 15 20 22 3 3 63
Cambucy 2 2
Campo das Minhocas 5 5
Campo das Minhocas ou 4 4
Hipódromo
Catumbi 47 64 97 17 1 6 9 241
Cemitério do Brás 1 2 3
Consolação 1 1
Desconhecido 5 1 6
Estrada de Pinheiros 24 24
Estrada de Santo Amaro 8 1 1 10
Estrada de Vergueiro 10 23 131 1 1 166
Estrada de Vergueiro, nº 1 1 1
Estrada de Vergueiro, nº 2 1 1
Estrada de Vergueiro, nº 3 1 1
Estrada de Vergueiro, nº 4 1 1
Estrada de Vergueiro, nº 42 1 1
Estrada de Vergueiro, nº 43 1 1
Estrada de Vergueiro, nº 44 1 1
Glória 33 33
Hipódromo 26 47 17 21 5 10 13 139
Ipiranga 1 76 77
Largo do Cemitério do Brás 5 5
Maranhão, Freguesia do Brás 1 1
Marco da Meia Légua 51 67 228 105 154 69 15 77 766
Matadouro 2 2
Matadouro Vila Mariana 5 5
Matta Burros, Maranhão, 10 10
Freguesia do Brás
220

Matto Grosso, Estrada Vergueiro 5 12 17


Mooca 16 79 361 11 9 2 18 15 511
Mooca, Rua sem Nome 1 1
Morro do Telégrafo, Estrada do 2 2 4
Vergueiro
Morro Vermelho, Estrada de 5 5
Vergueiro
Morro Vermelho, Rua da 5 5
Liberdade
Pacaembu 88 31 72 5 1 3 1 201
Palmeiras 2 2 4
Patio de S. José, Bairro do 3 3
Maranhão
Penha, Marco da Meia Légua 1 1
Perdizes 8 16 478 5 1 22 5 535
Ponte Grande 4 4
Rua da Liberdade 3 3
Rua da Mangueira, Pari 2 2
Rua da Saúde, Campo da Mooca 2 2
Rua de Santa Rosa, Várzea do 1 1
Carmo
Rua de Santo Amaro 3 307 310
Rua de Santo Amaro, Bexiga 8 8
Rua de São Christino, Mooca 1 1
Rua de São José, nº 13 1 1
Rua de São Leopoldo, Marco da 1 1
Meia Légua
Rua do Catumbi, Marco da Meia 10 4 14
Légua
Rua do Conde D'Eu 1 31 32
Rua do Hospício 2 2
Rua do Norte, Campo da Mooca 1 2 3
Rua do Pacaembu, Freguesia da 12 12
Consolação
Rua do Pari 1 1
Rua do Tanque, Pacaembu 3 3
Rua do Telégrafo 1 1
Rua dos Guaianazes 1 1
Rua dos Prazeres, Catumbi 2 1 3
Rua Nova do Catumbi 2 2
Rua Nova do Pacaembu 1 1
Rua Sem Nome do Campo da 3 3
Mooca, Hipódromo
Rua Sem Nome, Catumbi 3 3
Rua Sem Nome, Mooca 2 3 5
Ruas de Santo Amaro e Santa 37 37
Cruz, entre
221

Santana, Aterrado da Ponte 5 5


Grande
Tanque do Carvalho 1 1
Telégrafo 1 20 21
Travessa Carneiro Leão, Mooca 1 1
Travessa da Rua de São Leopoldo 3 3
Travessa de Santa Cruz, Campo de 54 54
São Francisco
Travessa do Hipódromo 1 1
Várzea do Carmo 2 2
Várzea do Cassandoca, Mooca 4 4
Várzea do Catumbi 14 14
Vila Mariana 1 1
Total geral 340 384 2060 190 180 133 65 122 6 3480

As regiões concedidas coincidem com as mais pedidas, afinal, essa década teve o
maior índice entre pedidos e concessões, logo, regiões como o Catumbi, a Estrada de
Vergueiro e o Hipódromo foram concedidas em larga escala. Entretanto, novamente a
municipalidade teve que comprovar que as terras da região do Matto Grosso (correspondente
à Vila Mariana), adjacentes à Estrada de Vergueiro, eram do rossio. Os vereadores recebem
um aviso do Ministério da Agricultura que iria por à venda 43.560,00 m2 na região354. E nesse
momento os vereadores, afirmando tratar-se de terras de uso comum, propõem a construção
do Matadouro Municipal nas proximidades dessa região.

A comissão de Justiça, composta pelos vereadores João Álvares da Siqueira Boeno,


Américo Braziliense de Almeida Rodrigo Monteiro e Joaquim Sertório, se recusa a demarcar
datas na Estrada de Vergueiro, o que gera uma discussão com o presidente da Câmara, Elias
Chaves.

O Snr Presidente diz que o Snr. Joao Boeno, sob pretexto que os terrenos da
estrada Vergueiro erão pop. digo erão propriedade do Estado, não quiz
demarcar as datas.

O patrimonio da Camara desta Capital não deve ser confundido com a


determinação do sei rocio para logradouro commum. Este consta da Carta de
sismaria de 25 de Março de 1724, aquella consta do foral da Villa de S.
Paulo de Piratininga, confirmado pelo foral de 18 de Março de 1660.

354
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 67, 1881, p. 182.
222

Si a Camara tem concedido datas nos limites da meia legoa, é por que o
Alvará de 10 de Abril de 1821 permittio fazer taes alienações na parte
desnecessária para logradouro; mas o patrimonio da Camara esta contido nas
seis legoas, tanto assim que as antigas datas e aforamentos erão feitos aquém
das seis legoas, segundo consta do arquivo. Quando mesmo a Camara não
pudesse dar datas senão na meia legoa, teria direito de ir até a antiga estrada
do Carro, no bairro do Matto Grosso, caminho velho de Santos, porque,
segundo o termo de medição feito em 27 de Julho de 1769, a meia legoa
termina no Ribeirão Ipiranga. Contesta a propriedade do Estado sobre a
antiga Chacara da Gloria, por que os jesuíta nunca tiveram sobre ella senão o
domínio útil; mas quando fosse o contrário, ainda assim poderião ser
concedidas datas no lugar já determinado pela Camara, porque esta fora dos
limites da Chacara da Gloria355.

No documento reproduzido acima fica clara a forma como as concessões eram


interpretadas, ou seja, datas e aforamentos também eram feitos no termo, considerando este
também como patrimônio da Câmara356; as alienações no rossio ocorriam apenas nas áreas
desnecessárias para uso comum. A Chácara da Glória seria propriedade camarária; outrora
pertencente aos jesuítas e revertida à Câmara, era motivo de contendas. Entretanto, os
entornos da chácara até o ribeirão Ipiranga eram parte da meia légua, passíveis de concessão,
portanto. Essa antiga disputa é suscitada porque Joaquim Sertório (e provavelmente os outros
membros da comissão de justiça) opunha-se a concessões nos entornos de sua chácara desde
1865.

Existem muitas reclamações com relação aos terrenos caídos em comisso. Hermelino
Corrêa357, por exemplo, afirma que seu terreno concedido em 1882 foi cedido a outrem, isso
em 1887, no Marco de Meia Légua. Já o vereador Ribeiro de Lima propõe que:
Tendo a Camara concedido datas no Marco de Meia Legoa, Hippodromo e
outros lugares à diversas pessoas que há muito estão de posse dellas, mas
constando que essas pessoas ainda não pagarão os emolumentos
determinados na lei do Orçamento, sobre cada metro quadrado, indico, que
se mande intimar a todos quem forão concedidas, adim de que venhão pagar,

355
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 68, 1882, p. 146.
356
Sem a diferenciação de rossio como terras passíveis de concessão ou aforamento e termo, área administrada,
conforme verificamos no capítulo 2.
357
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939, v. 2043, 1887.
223

sob pena de cahirem em commisso as mesmas datas. Outro sim, que os


fiscaes informarem com urgência, se os possuidores dessas datas são os
mesmos à quem forão concedidas ou outros que as não requererão; se
alguém está de posse de mais de uma data e com que título; quaes as pessoas
à quem forão concedidas e desde quando e se existe naquelles lugares mais
alguma data que não tenha sido dada358.

O imposto sobre datas era de 40 réis em 1880, segundo a Lei do Orçamento vigente, e
a proposta do vereador era de se fazer uma verificação consistente para comprovar as
construções nos terrenos concedidos na região.

Um fator digno de nota é a sutil, porém constante, mudança nos argumentos dos
requerimentos do “edificar” para o “possuir” uma data. O “edificar” sempre foi a
argumentação primária para a concessão, que visava o domínio útil, entretanto, durante os
anos 1880 o “edificar” vai cedendo espaço ao “possuir”.

A preparação da planta cadastral da cidade é um tema que perpassa toda a década,


começando com a discussão sobre como arrecadar o dinheiro necessário para tanto. É
proposto um imposto sobre muros359, dividindo a cidade em três perímetros sobre as quais
recairiam cobranças diferentes. Entretanto os vereadores não chegaram a um acordo sobre as
divisões da cidade e a cobrança diferenciada entre áreas arruadas e chácaras ou sítios (regiões
agrícolas).

O vereador Rafael Aguiar Paes de Barros é denunciado por ter fechado, ou seja, se
apossado, de terras adjacentes ao Matto Grosso, região contestada pelo governo como
devoluta360. Aparentemente ele fechou as terras desde 1870, sem pedir a sua concessão ou
comprá-las. Por outro lado, o vereador Ribeiro Lima recebe uma denúncia sobre as terras do
Marco da Meia Légua e Hipódromo:

[...] constando-lhe que diversas pessoas estão de posse de alguns terrenos no


Marco da Meia Lego e Hippodromo, pertencentes a municipalidade, sem que
tenhão pagos os emolumentos e sem títulos, sendo informado que algumas
destas pessoas pagarão seis mil réis de cada um data á um tal Correia
morador no mesmo logar, que dis ser encarregado da Camara, e parecendo-
lhe que isto é uma especulação de quem quer que seja [...]361

358
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo, Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 66, 1880, p. 78.
359
Idem. Vol. 68, 1882, p. 110-115.
360
Ibidem. Vol. 70, 1884, p. 24-25.
361
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo, Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 70, 1884, p. 35.
224

O documento indica o valor de seis mil réis por uma data de terra, se a denúncia
estiver correta. Fazendo uma rápida comparação com uma desapropriação de uma data
defronte ao cemitério em 1867, cedida por 200$00 réis, e tendo por base que ambas tivessem
o mesmo tamanho, 1.452 m2, o valor do metro quadrado de uma data de terra era: em 1867,
13 décimos de réis; em 1884, 4 réis no mercado “paralelo”, enquanto que o imposto oficial
girava em torno de 40 réis o metro quadrado.362 Na realidade, ciente do valor excessivo do
imposto proposto, o vereador Antonio Gabriel Franzen propõe em 1887:
[...] sendo excessivo o preço pelo qual vende a Camara o metro de seus
terrenos (80rs) quandos os particulares annucião seus terrenos por menos da
metade, e acontecendo que por esse motivo poucos são os que pagão os
terrenos que lhe são demarcados, indico que a Camara reduza a 40rs o metro
quadrado363.

Entre 1887-1888 observa-se uma quase ruptura no processo de concessão de datas. O


presidente da Câmara, Frederico Abranches, foi nomeado Inspetor de Terras e Colonização e
Inspetor de Imigração364, o que provavelmente teve influência nas discussões camarárias
sobre aforar terrenos ao invés de conceder. Entretanto, as concessões foram suspensas até a
verificação das reclamações e o pagamento de todas as datas365 distribuídas. Entretanto, logo
em seguida, no mesmo ano, surgiram propostas para venda em hasta pública das terras
municipais, o que foi rejeitado, propondo-se então o aforamento366. A partir desse momento
todos os pedidos foram indeferidos com o argumento de que “planta estava em andamento”.
Verificando a documentação até 1890, observamos que os pedidos de datas se transformaram
em aforamento de terrenos.

Oficialmente, apenas em 1893, com a Lei nº 39 de 24 de maio367, as concessões de


datas foram extintas. Antes disso, duas transformações importantes que estavam em
andamento tiveram um peso considerável na decisão de acabar com as concessões de terrenos
do rossio.

362
As posturas que foram canceladas em 1873 propunham um imposto de 60 réis o metro quadrado; entre
1875-1881 o imposto era entre 4 e 6 réis o metro quadrado.
363
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 72, 1886, p.35.
364
Idem, v. 73, 1887, p. 71.
365
Ibidem, v. 73, 1887, p. 201.
366
Ibidem, v. 73, 1887, p. 224-279.
367
“Regula o serviço de emphyteuses e dos arrendamentos dos bens municipais”. In: Coleção das Leis do Brasil,
1889-1930. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional.
225

3.5. O REGISTRO TORRENS

Analisamos até aqui 40 anos de concessões de terras municipais após a


regulamentação da Lei de 1850. Em paralelo às concessões, ocorreram transformações nas
políticas de empréstimo agrícola, bem como tentativas de registro de propriedades e a criação
de uma carteira hipotecária. Entretanto, diversos fatores continuavam a impor limites para o
crédito fundiário:

[...] a política monetária fortemente restritiva dos anos 1880 teve como
consequência interna a forte escassez do meio circulante, escassez essa ainda
agravada pela abolição da escravidão em maio de 1888. Com isso, o crédito
interno sofreu forte recessão 368.

Analisando em conjunto, a Guerra do Paraguai contribuiu para uma recessão durante


os anos 1870, que desencadeou uma política fiscal restritiva durante os anos 1880. Quando
ocorreu a abolição da escravidão, o processo de consolidação da terra como garantia de
crédito ainda estava em andamento. Um dos empecilhos para essa consolidação era o registro
de terras. A equação era simples: os títulos emitidos sem um registro de terras eficaz
causavam desconfiança, o que limitava o crédito. Quando da implantação da aliança
republicana, Rui Barbosa369 apostou na criação do crédito imobiliário. Nesse momento, um
sistema de registro e cadastro de terras, tendo em vista a hipoteca, torna-se urgente.

O Registro Torrens foi criado na Austrália e leva o nome do seu criador, Sir Robert
Richard Torrens370. Tinha como finalidade organizar os títulos de domínio, aquisição e
transferência de propriedades. O diferencial do Registro Torrens para os demais registros de

368
SANCHES, Almir Teubl. A questão de terras no início da Republica: o Registro Torrens e sua (in)
aplicação. São Paulo, 2008. Dissertação (Mestrado em Teoria Geral e Filosofia do Direito) – Faculdade de
Direito, Universidade de São Paulo, p. 48.
369
Para mais detalhes do projeto liberal de Rui Barbosa consultar: SANCHES, Almir Teubl. A questão de terras
no início da Republica: o Registro Torrens e sua (in) aplicação. São Paulo, 2008. Dissertação (Mestrado em
Teoria Geral e Filosofia do Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo – especificamente o
capítulo 3.
370
Foi criado entre 1858-1861.
226

terra, como o paroquial371, por exemplo, era efetuada uma pesquisa prévia, de caráter
judicial:

Assim sendo, precederá ao assento do imóvel um processo preliminar, de


caráter judiciário, onde haverá prévia discussão dos títulos exibidos ao
oficial, abrindo-se prazo, dentro do qual aqueles títulos poderão ser
impugnados, em contestação de pedido. [...] 372.

O Registro Torrens tinha caráter quase incontestável, e analisando a longa tentativa de


transformação da terra em ativo financeiro, ou seja, garantia de crédito para a produção, em
conjunto com as sucessivas leis hipotecárias do período, vemos nesse registro o fim de um
processo em relação ao tratamento da terra. Quase simultaneamente ao Registro Torrens
(1890), as Cartas de Datas foram definitivamente extintas (1893)373. A concessão deixa de
existir, mas permanece, ainda por um tempo, a permissão para aforamento.

Logo, esse registro marca o final de um processo de acomodação da terra como ativo
financeiro, lastreando o crédito. Entre a Lei de Terras ao estabelecimento do Registro Torrens
a Câmara concedeu, gratuitamente e depois por um valor determinado em seu orçamento,
terrenos do rossio, apesar de não ter confeccionado o mapa descritivo dessas áreas, exigido
pelo governo provincial. Com o estabelecimento do registro, em pouco tempo as concessões
foram extintas e os poucos terrenos restantes no rossio só poderiam ser aforados.

371
Instituído pelo Decreto n. 1318 de 1854 intitulado Regulamento para a execução da Lei nº 601 de 18 de
Setembro de 1850. O Registro de Terras era efetuado nas paróquias, daí ser conhecido como Registro Paroquial.
Possuía valor meramente declaratório e não era considerado garantia de propriedade, ou seja, por meio dele não
era possível a transferência de propriedade, em teoria, claro, porque na prática ele funcionou, mas o que
discutimos aqui é a terra enquanto passível de obtenção de crédito na forma de renda capitalizada, nesse sentido,
o registro paroquial é falho.
372
SANCHES, Almir Teubl. A questão de terras no início da Republica: o Registro Torrens e sua (in)
aplicação. São Paulo, 2008. Dissertação (Mestrado em Teoria Geral e Filosofia do Direito) – Faculdade de
Direito, Universidade de São Paulo, p. 70.
373
Lei nº 39 de 24 de Maio de 1893 “Regulamenta o serviço de emphytheuses e dos arrendamentos dos bens
municipais”, artigo 4º - Não serão mais concedidas cartas de datas. Em caso algum se relevara o comisso das
que tiverem incorrido nessa pena. Portanto, além de extinguir as concessões, as terras não edificadas reverteram
ao domínio camerário.
227

3.6. ANÁLISE DO MAPA DAS CONCESSÕES

Escolhemos a “Planta Geral de São Paulo organizada sob a direção do Dr. Gomes
374
Cardim, Intendente de Obras, 1897” como mapa base para espacialização do processo de
concessão de terras no perímetro urbano e no rossio, década a década, de 1850 a 1890.

O mapa foi escolhido por conter, no canto inferior esquerdo, as informações sobre os
limites do antigo rossio da cidade (de meia légua) e do novo rossio (de uma légua) bem como
os limites municipais. Entretanto, é preciso problematizar essa planta. Quando sobreposta a
plantas posteriores375, no caso a de 1905, esse mapa apresenta arruamentos em excesso. Isso
pode significar que foram ali representados arruamentos inexistentes ou futuros, com intenção
de delinear uma extensão urbana maior do que a realmente existente. SIMONI (2009)
acompanha o processo, mesmo depois da implantação da República, de medição dos bens
municipais. Através de sucessivas leis, as despesas dessa medição, que deveriam ficar a cargo
da municipalidade, foram empurradas para o Estado. Segundo a autora:

A lei (n. 264 de agosto de 1896) criava a Comissão Técnica de


Melhoramentos, subordinada à Intendência de Obras, encarregada de
elaborar o Plano Geral da Cidade e dos serviços municipais regulares,
relacionados à elaboração do plano. Com isso, a Comissão que devia realizar
o levantamento topográfico e cadastral da cidade, ficava também incumbida
de decidir sobre a aprovação dos novos alinhamentos de ruas, em
conformidade com os planos parciais e o Plano Geral em elaboração.
Assumia, ainda, o serviço de tombamento de dos terrenos municipais que
consistia do registro dos requerimentos de concessão de terrenos, já
realizados e os em andamento. [..]376.

374
Pode ser encontrado no endereço eletrônico:
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart71701.jpg , 2011.
375
SIMONI, Lucia Noemia. “A planta da cidade de São Paulo de 1897: uma cartografia da cidade existente ou
da cidade futura?” In Passado & presente para o futuro, III Simpósio Luso-Brasileiro de Cartografia Histórica,
Minas Gerais, 2009 e GOUVÊA, José Paulo Neves. Cidade do Mapa: a produção do espaço de São Paulo
através de suas representações cartográficas. São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e
Urbanismo) FAU-USP.
376
SIMONI, Lucia Noemia. “A planta da cidade de São Paulo de 1897: uma cartografia da cidade existente ou
da cidade futura?” In Passado & presente para o futuro, III Simpósio Luso-Brasileiro de Cartografia Histórica,
Minas Gerais, 2009. p. 14.
228

Ao que tudo indica, optou-se por representar o mapa contendo os arruamentos futuros,
propostos por particulares. A planta representava, dessa forma, a cidade existente com a
projeção futura de seu crescimento, uma vez que foi executada com três intuitos: tombamento
de bens municipais, levantamento cadastral, arruamentos projetados por particulares.

Para uma análise do processo de concessão, optamos por traçar os diversos perímetros
urbanos definidos em função da cobrança da Décima Urbana para que pudéssemos verificar
se as concessões se concentravam dentro ou fora da mancha urbanizada. Escolhemos três
perímetros significativos:

1) O Perímetro da Décima Urbana de 1830377: com esse limite foi possível comparar
o crescimento da área urbanizada da cidade até 1850.
2) O Perímetro da Décima Urbana de 1856: obtido via ofício municipal378 enviado ao
governo da província para cobrança do imposto de 5% sobre os edifícios urbanos.
A intenção foi delimitar a região urbana da década de 1850 para localizar as
concessões dentro e fora desses limites:

“Assunto: demarcação de limites para imposto de 5% sobre prédios urbanos

Em satisfação a exigência de V. Exa. constando da Portaria de de 6 do


corrente, A Camara Municipal d‟esta Imperial Cidade, informa a V. Exa. que
lhe parece conveniente que a circunscripção (sic) para a cobrança do imposto
de cinco por cento sobre o rendimento dos prédios urbanos, ultimamente
decretados fosse pela maneira seguinte:

1º Para o lado do Carmo, a ponte denominada = Pretas

2º Para o lado da Mooca até a chácara do Capitão Joaquim Sertório

3º Para o lado da Gloria até a ponte do Lavapés

4º Para o lado da Polvora até o Matadouro publico

5º Para o lado do Bexiga, estrada de Santo Amaro – até a chácara do Capitão


Benjamim José Gonsalves

6º Para o lado da Consolação até o portão da chácara do Capitão


Hermenegildo José dos Santos, exclusive (sic)

377
“Incidência da Décima Urbana de 1830”. In: Collecção das posturas da Câmara Municipal da Imperial
Cidade de São Paulo (1830-1863).
378
Esse ofício pode ser encontrado no site do Arquivo do Estado de São Paulo:
http://www.arquivoestado.sp.gov.br/viver/poder_frame.php?cod=13512&nomen=0090303023&img=ODSP0090
303023_001.jpg // consulta em 11/2011.
229

7º Para o lado da Luz, até a Ponte Grande

8º Para o lado do Curro, na estrada de Campinas até a chácara das Palmeiras


pertencente ao Brigadeiro Leite Lobo

9º Para o lado do Campo Redondo, até o portão de Antonio Domingues


Villano (?)

Deus guarde V.Exca – Paço da Camara Municipal de S Paulo 11 de Junho de


1856”
3) Os limites do rossio, a separação para logradouros públicos segundo a Câmara
Municipal em 1860379.

Representam, portanto, três momentos da mancha urbana sobre o mapa. Além de


colocar os limites dos perímetros citados, elaboramos uma tabela simplificada das áreas
concedidas em cada década380. De posse dessas informações, optamos por traçar em forma de
mancha as datas de terra concedidas, tentando localizar aproximadamente as regiões de maior
incidência em cada década. Elaboramos uma legenda com o intuito de mensurar – em ordem
de grandeza – o volume das concessões deferidas. Tal metodologia nos permite observar as
tendências de produção do espaço urbano nos 40 anos objetos da presente pesquisa.

Ao analisar o mapa identificamos quatro tendências de concessão por zona ou região:

1 – Interstícios de chácaras que só foram loteadas entre os anos 1870 e 1890. Trata-se
do perfil de ocupação típico da zona Oeste da cidade, região do Largo do Arouche, Palmeiras
e Santa Cecília, Barra Funda (antiga chácara do Carvalho) e Bom Retiro. Convém explicar
que, no período estudado, a zona oeste era marcada pela presença de grandes chácaras que
deram origem a futuros bairros, mediante loteamento integral das glebas por seus
proprietários ou vendas a terceiros. Até fins da década de 1870, o perfil de ocupação dessa
zona restringiu-se às franjas das chácaras e o adensamento das suas áreas envoltórias
certamente conspirou para que seus proprietários nelas vislumbrassem um excelente negócio,
com lucro certo, fruto da enorme demanda reprimida por novas e modernas moradias por
parte da elite da cidade, carente de espaços mais amplos e salubres para edificar, condição
ausente na colina central.

2 – Áreas de várzeas ocupadas mais tarde por bairros operários. Esse é o perfil da zona
Leste, área dos futuros bairros do Brás, Mooca, Catumbi e Hipódromo.
379
Cap. 1, p. 58.
380
Tabelas 9, 12, 14 e 18.
230

3 – Junto das vias de acesso à cidade, as principais vias, como na região do Lavapés
(próximo a Ladeira da Memória) vizinha ao pouso do Bexiga e na bifurcação das estradas
para Campinas e Sorocaba. Esse também é o perfil de ocupação da Estrada de Santo Amaro e
da Ponte Grande de Santana, área posterior à Luz.

4– Áreas muito distantes da cidade, como o Morro do Caaguaçu e Telégrafo, depois a


colina do Ipiranga e a Vila Mariana.
231

3.6.1. CHÁCARAS E INTERSTÍCIOS

Observando o mapa percebemos que as concessões efetivadas entre 1850-1859


situavam-se no rossio, mais ou menos próximas à área urbanizada correspondente ao
perímetro da Décima Urbana definido em 1856. Os lotes mais distantes coincidiam com
acessos estratégicos da cidade, como, por exemplo, a Ponte Grande (saída para o Norte pelo
caminho da Luz tendo como limite a várzea e um pouso de tropeiros na região, conhecido
como pouso do Guaré) e a leste, em direção ao Brás, próximos dos limites arruados.

As concessões contíguas ao núcleo urbanizado condizem com a direção do processo


de urbanização no período – pós-Cidade Nova – ou seja, o eixo Oeste, na proximidade da
Chácara das Palmeiras e do Campo Redondo, nos interstícios ou franjas das chácaras ainda
não arruadas. Observamos concessões pontuais no perímetro urbano, mas o grosso da
distribuição concentrou-se no entorno da mancha urbanizada. Até mesmo a área de várzea do
Pari, que sequer aparece no mapa de 1881 da Companhia Cantareira de Água e Esgotos,
mereceu concessão.
232

Figura 31: Concessões na planta de 1897 (versão reduzida).


233

Figura 32: Pari. Cia Cantareira de Esgotos, 1881. Em destaque a região entre o norte e o leste, objeto de
aproximadamente 50 concessões em 1850-1859 e que não aparece com construções no mapa de 1881. Fonte:
Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL.

Para visualizarmos as concessões nas áreas intermediárias às chácaras sobrepusemos


dois mapas. Observamos que para existir a concessão era necessário o arruamento prévio,
logo, as pessoas optavam por pedir junto de estradas ou ruas próximas de imóveis já
edificados. Não coincidentemente, o loteamento da Chácara do Campo Redondo segue uma
tendência de ocupação anterior.
234

Desde 1872, o Barão de Mauá, proprietário da chácara, propõe a abertura de 15 ruas


mediante a apresentação de planta, mas não se predispõe a arcar com as despesas de abertura
das ruas. O vereador Silva Lopes propõe que: “se mande abrir, roçar e destocar as ruas que
381
por esta Câmara foi deliberado nos terrenos dados pelo Senhor Barão de Mauá [...]” .
Entretanto, o arruamento não foi efetuado. Foi necessário que Frederico Glette e
Victor Nothmann comprassem a antiga chácara e fizessem o loteamento do que viria a ser o
bairro de Campos Elíseos. Em 1880, outro terreno pertencente ao Barão de Mauá mereceu
discussão na Câmara, desta vez como massa falida. Os peticionários requereram que o
terreno, avaliado em 2:500$000 réis, fosse declarado de utilidade pública para a construção de
uma praça382. O terreno ficava entre a Rua General Osório, Barão do Triunfo, hoje em dia
apenas Rua do Triunfo, e Rua da Estação, atual Rua Mauá. Essa área, abrangendo essas e
outras ruas, foi alvo de um extenso relatório em 1893 sobre cortiços383. Aqui é interessante
perguntar: os cortiços, objetos do presente relatório, foram edificados nas datas concedidas
entre 1850-9?

Observamos que as concessões esparsas realizadas na zona oeste da cidade eram de


pequenas dimensões, no geral 10 braças de frente e 10 de fundo, com 30 braças de
extensão384. Como cada braça equivale a aproximadamente 2,2 metros, uma data padrão
possuía 44 metros de frente por 66 de extensão (1.452 m2). Esse era o típico lote concedido
nessa área: fragmentado entre pequenos proprietários, nos interstícios de antigas chácaras já
constituídas. Quanto aos requerentes eram, no geral, pessoas de perfil social pouco
expressivo, o que nos permite formular a hipótese de que o grosso dos loteamentos
posteriores se deu nas chácaras, compradas ou recebidas por herança, com raros casos de
desmembramento delas. Ou seja, elas forram loteadas “inteiras” a partir do final de 1870,
desta vez para um público refinado, diferentemente das concessões anteriores que resultaram
nos prováveis cortiços do Relatório de 1893. Os loteamentos posteriores dessas chácaras
ajustaram suas ruas nas direções do parcelamento do solo pré-estabelecido pelas concessões
dos anos anteriores.

381
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 58, 1972, p. 169.
382
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1864-1915. São Paulo. Restauração da Subdivisão de Documentação
Histórica. Departamento de Cultura. Divisão de Documentação Histórica e Social, 1939. v.2, 1880, p. 252.
383
CORDEIRO, Simone Lucena (Org.). Os Cortiços de Santa Ifigênia: sanitarismo e urbanização (1893). São
Paulo: Arquivo Público do Estado de São Paulo – Imprensa Oficial, 2010.
384
Esse é um tamanho padrão, mas claro que variava conforme o tamanho do terreno disponível, os acréscimos
ou através dos alinhamentos.
235

Isso nos permite concluir que a Lei de Terras não suscitou uma corrida imobiliária
nem a solicitação de grandes glebas para estoque com vistas a realização de futuros
loteamentos. Acompanhando o histórico de algumas chácaras verificamos que foram
herdadas, compradas ou repassadas de forma quase integral e tal como foram loteadas 385.
Sobrepomos o mapa São Paulo, chácaras e sítios e fazendas ao redor do Centro (organizado
pelo Engenheiro Gastão Cesar Bierrembach de Lima, para a exposição do IV Centenário de
São Paulo, em 1954) à planta de 1897 e verificamos que a configuração original das chácaras
coincidiu com a dos novos bairros ali formados.

Começamos pela chácara do Campo Redondo, que resultou nos bairros de Santa
Cecília e Campos Elíseos. Sabemos que uma chácara de mesmo nome era propriedade do
Brigadeiro Luiz Antonio de Souza Queiroz e que seus filhos também possuíam chácaras na
região. Em 1860, foi ocupada por Robert Sharpe, empreiteiro da estrada de ferro São Paulo
Railway. Em 1868, foi adquirida pelo Barão de Mauá e entre 1878-1881 foi loteada por Glette
e Northmann, sendo então abertas as ruas dos Protestantes, Triunfo, Andradas, Piracicaba,
Helvetia, Glete, Nothmann e outras.

385
Retiramos as informações sobre as chácaras do artigo de: CANABRAVA, Alice Pifer. “As chácaras
paulistanas”. Anais da Associação dos Geógrafos Brasileiros, v. IV, Tomo I, 1949-1950. São Paulo; BUENO,
Beatriz Piccolotto Siqueira. Aspectos do mercado imobiliário em perspectiva histórica: São Paulo (1809-1950).
São Paulo: FAUUSP, 2008 e WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas:
escravos e forros em São Paulo (1850-1880). São Paulo, 1989. Dissertação (Mestrado em História Social) –
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
236

Figura 33: Campo Redondo. Sobreposição do Mapa de Chácaras e da Planta de 1897. Em destaque, a região do
que seria o Campo Redondo, que se estende desde as proximidades do centro e da Chácara do Arouche, fazendo
divisa com a Barra Funda. A chácara Mauá era apenas uma parte da extensa região. Inferimos que as concessões
se deram nos interstícios de propriedades já formadas. Fonte: São Paulo das chácaras, sítios e fazendas ao redor
do centro, Arquivo Aguirra/Museu Paulista/USP e Planta Geral da Capital de São Paulo (1897): Informativo
Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL.

Outro exemplo, a Chácara das Palmeiras era uma propriedade de 25 alqueires (algo em
torno de 2.750 m2), de propriedade de Frederico José Leite da Gama, que em 1850 foi vendida
ao Dr. Frederico Borghoff. Em 1874 ou 1884, a mesma chácara foi arrematada em leilão por
Francisco Aguiar de Barros, tornando-se propriedade de D. Angélica de Souza Queiroz
Aguiar de Barros, em 1900.
237

Figura 34: Palmeiras. Sobreposição do Mapa das Chácaras e da Planta de 1897. Aqui a região conhecida
como Palmeiras, em destaque a chácara de D. Angélica de Barros. Fonte: São Paulo das chácaras, sítios e
fazendas ao redor do centro, Arquivo Aguirra/Museu Paulista/USP e Planta Geral da Capital de São Paulo
(1897), Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL.

A chácara do Carvalho, pertencente ao Barão de Iguape (Antonio da Silva Prado)


herdada em 1875, foi loteada em 1890 dando origem ao Bairro da Barra Funda. Entretanto,
desde 1859 é mencionada uma Rua da Barra Funda nos pedidos de datas e nessa região
também existiu uma olaria que servia de referência para a população.
238

Figura 35: Chácara do Carvalho. Sobreposição do Mapa das Chácaras e da Planta de 1897. Em destaque a
Chácara do Carvalho sobreposta ao bairro da Barra Funda. Fonte: São Paulo das chácaras, sítios e fazendas ao
redor do centro, Arquivo Aguirra/Museu Paulista/USP e Planta Geral da Capital de São Paulo (1897),
Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL.

A chácara do Arouche, pioneira na ocupação além do vale do Anhangabaú, a oeste,


pertencia ao Coronel Arouche de Toledo Rendon e foi vendida em 1886 para Rodolfo da
Rocha Miranda, que a loteou.

As chácaras de Floriano Wanderley e do Conselheiro Ramalho foram compradas por


Victor Northmann e Martinho Burchard em 1895 e deram origem ao “Boulervard Burchard”,
atual bairro de Higienópolis.
239

Figura 36: Chácara do Wandereley. Sobreposição do Mapa das Chácaras e da Planta de 1897. Em destaque a
chácara loteada em 1895 para a formação do bairro de Higienópolis. Fonte: São Paulo das chácaras, sítios e
fazendas ao redor do centro, Arquivo Aguirra/Museu Paulista/USP e Planta Geral da Capital de São Paulo
(1897), Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set./out.2008, AHMWL.

A chácara do Bexiga386, de propriedade de Thomaz Cruz até 1880, foi vendida para
Antonio José Leite Braga e mereceu loteamento planejado por ele, tal como vemos no mapa
da Companhia Cantareira de 1881.

Com esses poucos exemplos, é possível observar que as chácaras loteadas na região
oeste da cidade foram formadas em tempos remotos, por compra, concessão ou herança, e só
loteadas entre 1870-1900, dando origem a bairros de alto padrão.

Na mesma direção, entre 1860-1869, a expansão a oeste alcançou Perdizes e o


Pacaembu, mas foi durante os anos 1880 que essa região mereceu concessões em larga escala.

386
SCHNECK, Sheila. Formação do bairro do Bexiga em São Paulo: loteadores, proprietários, construtores,
tipologias edilícias e usuários (1881-1913). São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e
Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo.
240

Interessante observar que datas nos interstícios dos loteamentos também foram
comercializadas. Cruzando as informações das Cartas de Datas com o Registro Paroquial387
ficamos sabendo que Augusto Fausto Guimarães Alvim vendeu o terreno que possuía desde
1851 (de 10 braças de frente e 45 de extensão) próximo ao Tanque do Arouche. O comprador,
Joaquim José Ferreira388, adquiriu o terreno apenas um mês após a emissão da Carta de Datas
e o comprador assim descreve sua nova propriedade, fruto de compra de três datas, uma posse
e uma omissão de origem389, totalizando 108 metros de frente:

[...] A divisa para a frente pela estrada de Campinas tem setenta e três braças
e meia, para o lado esquerdo [...] tem cinqüenta e oito braças, para o lado
direito tem trinta e uma braças [...] fundos [...] cinqüenta e três braças390.

Esse não é um caso isolado, dentro do total de datas concedidas durante a década de
1850; os que venderam seus lotes para terceiros parecem poucos, apenas 12 em um universo
de 561 concessões. Entretanto, quando verificamos que, dentre as 561 concessões apenas 25
foram registradas, o percentual das que foram vendidas sobe para praticamente 50%. Claro, os
registros foram mínimos, pois dependiam de o proprietário declarar suas terras na paróquia de
cada freguesia e muitos não o fizeram com receio de impostos.

Essas pequenas datas poderiam se destinar ao uso próprio ou à renda de aluguel. Isso
pode ter ocorrido na região de Santa Ifigênia, que em 1893 foi alvo de um relatório391
descrevendo as condições dos imóveis encortiçados na região, cujas dimensões explicam a
sua degradação. O relatório abrange as Ruas de Santa Ifigênia, dos Gusmões, General Osório,
Duque de Caxias, Victoria, Andradas, Guayanases, Bom Retiro, Aurora, Timbiras,
Conselheiro Nébias (antiga Rua dos Bambus), Protestantes e do Triunfo.

387
Decreto Imperial 1318 de 30 de janeiro de 1854, Regulamento para execução da Lei nº 601 de 18 de
Setembro de 1850.
388
REGISTRO DE TERRAS DE SÃO PAULO. Divisão de Arquivo do Estado. São Paulo: A Divisão, 1999,
v. 5, Freguesia de Santa Ifigênia, ficha 110.
389
Conforme os dispositivos do registro permitiam, a pessoa poderia declarar abertamente a origem do terreno.
Para mais informações, consultar a introdução de: REGISTRO DE TERRAS DE SÃO PAULO. Divisão de
Arquivo do Estado. São Paulo: A Divisão, 1999, v. 1, Freguesia de Santa Ifigênia.
390
Idem.
391
Esse relatório pode ser encontrado no site do Arquivo do Estado de São Paulo ou In: CORDEIRO, Simone
Lucena (org.). Os Cortiços de Santa Ifigênia: sanitarismo e urbanização (1893). São Paulo: Arquivo Público do
Estado de São Paulo – Imprensa Oficial, 2010.
241

Figura 37: Ruas da Santa Ifigênia abrangidas pelo Relatório de 1893. Cia Cantareira de Esgotos, 1881.
Detalhe da planta de 1881 com as ruas do Distrito de Santa Ifigênia contendo cortiços, segundo o relatório de
1893. Escolhemos a planta cadastral efetuada pela Companhia Cantareira por conter o lote a lote. Observamos a
densidade populacional na região. Fontes: Mapa de 1881: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20):
set./out.2008, AHMWL e Relatório de 1893, APESP.
242

Ao observar com atenção a planta de 1881, podemos detectar as casinhas objeto do


relatório de 1893, geralmente implantadas em lotes estreitíssimos, com uma abertura lateral
ou sem ligação com a rua. Separamos três áreas que possivelmente correspondem a cortiços já
em 1881, ano do levantamento deste mapa.

Figura 38: Destaque nas ruas constantes do Relatório de 1893 em mapa de 1881. Possíveis áreas
encortiçadas no Distrito de Santa Ifigênia. A configuração do lote mostrando áreas edificadas separadamente
com um corredor que servia como pátio, lateral ou central. Além disso a densidade das construções na região já
transparecem nesse mapa de 1881. Fontes: Mapa de 1881, Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20):
set/out.2008, AHMWL e Relatório de 1893, APESP.

Lembrando que uma data possuía em média 44 metros de frente por 66 metros de
extensão, é razoável supor que o aproveitamento do terreno poderia se dar no sentido
longitudinal, tal como nas áreas destacadas. O relatório contém três plantas do chamado típico
“cortiço urbano” e, através dessas plantas, estabelecidas como as condições mínimas de
salubridade e higiene exigidas para essas residências, podemos verificar que em cada lote
concedido por carta de data poderiam ser construídas quatro casas do “padrão operário”
aproveitando a frente do terreno, como mostra as figuras 38 e 39.
243

Figura 39: Projeto de casas para operários. Planta nº 2 do Relatório de Inspecção da Commissão de exame e
inspecção das habitações operarias e cortiços no districto de Sta. Ephigenia (1893). A proposta para a
construção de duas casas térreas e um sobrado seguindo o padrão de higiene e saneamento da época, com
corredores laterais, banheiros anexados a habitação e janelas voltadas para os corredores externos em todos os
cômodos. Fonte: APESP.
244

Figura 40: Detalhe da Planta nº 2 do Projeto de Casas Para Operários. Relatório de Inspecção da
Commissão de exame e inspecção das habitações operarias e cortiços no districto de Sta. Ephigenia (1893).
Aqui percebemos o aproveitamento do terreno: a frente da casa tem medidas de 9,68 metros (no caso da térrea) e
o sobrado 10, 60 metros. Fonte: APESP.

Em muitos desses imóveis constatamos a presença de armazéns, tal como no projeto


anterior (Figura 38) contendo um armazém na frente, corredor lateral com acesso para 6
casas. A frente do terreno teria 13,7 metros e a lateral 29 metros.
245

Figura 41: Planta do typo do cortiço urbano CASINHAS do typo mínimo. Planta nº 1 do Relatório de
Inspecção da Commissão de exame e inspecção das habitações operarias e cortiços no districto de Sta. Ephigenia
(1893). Fonte: APESP.
246

E por fim, uma proposta de aproveitamento de um terreno de 90 metros por 90 metros.

Figura 42: Projecto de casa para operários. Planta nº 3 do Relatório de Inspecção da Commissão de exame e
inspecção das habitações operarias e cortiços no districto de Sta. Ephigenia (1893). Fonte: APESP.
247

Figura 43: Projecto de casa para operários, detalhe. Relatório de Inspecção da Commissão de exame e
inspecção das habitações operarias e cortiços no districto de Sta. Ephigenia (1893). O tamanho proposto para a
casa era de 10,90 metros por 6,75 metros. Fonte: APESP.

Ainda com base no relatório de 1893 é possível constatar o valor dos aluguéis dessas
“casinhas do typo mínimo”. Vamos pegar apenas um exemplo, já que esse não é o objetivo
deste estudo. O vereador Tenente Coronel Cantinho possuía um conjunto de nove casinhas na
Rua dos Tymbiras, nº 31, em 1893. Eram casinhas com uma média de 4,80 metros de frente
por 3,00 metros de fundo, alugadas com valores variando entre 8$000 e 55$000 réis. Portanto,
hipótese de que essas datas solicitadas, uma vez edificadas, poderiam ser utilizadas para
auferir renda de aluguel, pelo menos no período posterior a 1880, pode ser confirmada através
da análise desse relatório.
248

Figura 44: Planta Cadastral da cidade de São Paulo, Sta. Ephigenia. Levantada sob a direcção do
Engenheiro V. Huet de Bacellar392. Fonte: APESP.

392
Esse mapa pode ser encontrado no site do Arquivo do Estado ou no livro publicado com o relatório final. In:
CORDEIRO, Simone Lucena (org.). Os cortiços de Santa Ifigênia: sanitarismo e urbanização (1893). São
Paulo: Arquivo Público do Estado de São Paulo – Imprensa Oficial, 2010.
249

3.6.2. REGIÕES DE VÁRZEAS

Ainda entre 1850-1859 as áreas de várzeas imediatamente adjacentes à Ponte Grande e


à Várzea do Carmo foram objetos de concessões. Em 1859, William Elliot, engenheiro, e sua
esposa, recebem lotes na Rua dos Mendes, na Várzea do Pari. Logo que seu requerimento foi
aceito ele reclamou não ser possível plantar no terreno em julho. Esse não é um caso isolado,
os pedidos em áreas de várzeas são para estabelecer olarias, como no caso de Mariano José de
Oliveira, que recebeu dois lotes de terra na Rua da Ponte Grande, numa época em que era
proibido conceder mais de um lote para a mesma pessoa, e Antonio dos Santos de Azevedo
pediu autorização para construir um chiqueiro de porcos na Freguesia do Brás. Pedidos
datados de 1862 para a região da Mooca e da Tabatinguera mencionam a intenção de cultivo
por parte do requerente. O mesmo ocorreu com um terreno alagadiço defronte a uma olaria,
na Barra Funda, em 1880. No Catumbi e no Marco da Meia Légua, os requerentes são mais
específicos e pedem lotes para plantar capim, em 1881. Esses exemplos podem indicar que
essas áreas funcionavam como ponto de abastecimento para a cidade, com terrenos próprios
para plantação de cereais e criação de animais.

Nessa região se constituíram os futuros bairros do Brás e da Mooca. Aliás, como já


mencionado, os concessionários mencionavam Brás e Mooca de forma indistinta entre
1850-1860 e as concessões ainda eram muito próximas da várzea. A partir de 1870,
provavelmente devido à abertura de vias de ligação com a zona leste, as regiões mais distantes
foram distribuídas. Convém lembrar que na região leste havia diversas vias de acesso à
cidade. Ligando-a ao Vale do Paraíba, temos a Rua do Brás, então conhecida como Avenida
da Intendência e atualmente Avenida Rangel Pestana. Não por acaso, o Brás possuía um
pouso de tropeiros. Havia também a ferrovia Santos-Jundiaí e muitas concessões eram
próximas dela.
250

3.6.3. VIAS DE ACESSO À CIDADE

As concessões nas vias de acesso à cidade, embora em grande número, eram


fragmentadas, ou seja, aparentemente não configuravam terrenos suficientes para que uma
única pessoa formasse uma chácara. Vemos um número considerável de concessões na saída
Norte, entre 1850-1859, em ambos os lados do caminho da Luz e em direção à Ponte Grande.
Esse caminho levava à Atibaia e Minas Gerais. Muitos pedidos concentravam-se na “Ponte
Grande e arrabaldes do rancho”, remetendo ao pouso de tropeiros ali construído. A demanda
pela região era tão grande que, em 1858, uma moradora do local recorreu ao presidente da
Província para adquirir terras num período em que as concessões estavam suspensas. A
moradora era Antonia da Silva Telles de Oliveira393, que, ao enviar o seu pedido à Província,
gerou impasse na Câmara e a revolta de moradores da cidade. O vereador Leandro de Toledo
enviou petição para reverter a compra feita, afirmando que essa região era parte do rossio da
cidade. Logo a seguir, as concessões foram autorizadas pelo presidente da Província.

Na região oeste, na saída para Campinas, o negociante Henrique Pupo de Moraes


pediu lote para estabelecer um rancho de tropeiros próximo ao Arouche. O terreno foi
concedido com o compromisso de que as terras fossem restituídas à Câmara assim que ela
precisasse.

Observamos também concessões dentro do perímetro urbano de pequenos


“acréscimos” em propriedades já existentes, como no caso do engenheiro Carlos Abrão
Bresser, com propriedade na Rua do Ouvidor, esquina do Largo São Francisco. Outro
exemplo é o de Daniel Cardoso Senra, comerciante com casa na Luz, que pediu “acréscimo”
para os fundos de seu terreno. Curiosa é a menção ao “bocado” de terreno na Ladeira do
Tabatinguera que o bacharel João José Rodrigues pediu, medindo 10 braças de frente
(44 metros) e 30 de fundos (66 metros).

As concessões entre 1860-1869 seguiram as mesmas direções daquelas de 1850-1859:


a leste, na direção do Brás e Mooca; a oeste, além do Largo do Arouche. Na linha da década
anterior as concessões eram fragmentadas dentro do perímetro urbano e uma considerável
parcela concentrou-se na região da Estrada de Santo Amaro. Tratavam-se de zonas ainda
pouco articuladas à cidade, provavelmente utilizadas para agricultura ou criação de animais.

393
CARTAS DE DATAS DE TERRA, 1555-1863. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo, Departamento de
Cultura, 1939, v. XVIII, 1859, p. 206 e 224.
251

Entretanto, as concessões na Estrada de Santo Amaro cresceram de forma


impressionante durante os anos 1880-1889. Essa região, apesar da distância, foi articulada à
região central a partir de 1883, o que certamente contribuiu para a sua progressiva
urbanização: “Em meados de 1883 deu-se princípio à construção da Companhia Carris de
Ferro, da Capital a Santo Amaro, da qual era superintendente o engenheiro Alberto
Kuhlmann, e que ficou concluída em 1886 [...]” 394.

3.6.4. ÁREAS DISTANTES DO CENTRO ARRUADO

Em escala muito maior entre 1880-1889, as concessões ultrapassaram as fronteiras


anteriores, chegando ao morro do Ipiranga, provavelmente por causa da construção do
Monumento ali projetado. Também são consideráveis as concessões na região do novo
Matadouro na Vila Mariana e no Morro do Telégrafo e Caaguaçu. Essas últimas áreas foram
articuladas à cidade pela linha do tramway que ligava o novo Matadouro Municipal ao centro
da cidade. As pessoas poderiam simplesmente ter se apossado de áreas tão distantes do centro,
entretanto, preferiram a legalidade de uma carta de data para garantir a propriedade. Isso nos
leva a questionar o sentido de propriedade, ou melhor, a legitimação do processo de acesso à
terra:

“O fato é que para se investigar a história das propriedades e posses na


história moderna é preciso reconhecer que, ao contrário do período liberal, a
partir do século XIX, a terra, no período moderno, era um bem, cujos
direitos estavam fincados numa hierarquia muito complexa e que não se
resumia a uma única e linear explicação”395.

394
MARTINS, Antonio Egydio. São Paulo antigo: 1554-1910, São Paulo: Paz e Terra, 2003, p. 155.
395
MOTTA, Márcia M. Menendes. “Das discussões sobre posse e propriedade da terra na história moderna:
velhas e novas ilações”. In: MOTTA, Márcia Maria Menendes; SECRETO, Verônica (Orgs.) O direito às
avessas: por uma história social da propriedade. Guarapuava; Unicentro, 2011; Niterói, EDUFF, 2011, p. 21.
252

CONCLUSÕES

Ao final desta jornada, com base em farta documentação primária, chegamos a


algumas conclusões. Podemos afirmar que as datas concedidas entre 1850 e 1890 de forma
fragmentada, não configuraram glebas para loteamentos. Entretanto, as concessões esparsas,
nos interstícios de propriedades existentes ou nas vias de acesso à cidade alargaram o
perímetro arruado, urbanizando o entorno das chácaras, várzeas e ligações viárias.

O gráfico abaixo revela dois momentos de pico nos pedidos e deferimentos de datas
de terras: 1854-1861 e 1879-1883.

Relação entre pedidos e deferimentos entre 1850-1889

4500

4000

3500

3000

2500

Pedidos
2000 Deferidos

1500

1000

500

0
1851
1853
1855
1857
1859
1861
1863
1865
1867
1869
1871
1873
1875
1877
1879
1881
1883
1885
1887
1889
253

Alguns marcos temporais marcam esta longa história, a saber:

 1852: autorização para aforamento dos bens do rossio.


 1859-1861: concessão gratuita de terrenos.
 1875: fim da gratuidade (“datas onerosas”).
 1888: suspensão das concessões.
 1893: extinção completa das concessões.

A Câmara Municipal teve autorização para “aforar” as terras do rossio desde 1852.
Todavia, com a perspectiva das mudanças introduzidas pela futura ferrovia Santos-Jundiaí e
pensando em aumentar a área arruada da cidade sem custos para os cofres municipais, os
vereadores decidiram “conceder gratuitamente” os terrenos. No gráfico, vemos um pico de
pedidos entre 1859 e 1861. Nesse momento, as regiões oeste e norte da cidade – Arouche,
Campo Redondo e Luz – eram as mais valorizadas e encontravam-se em processo de franca
expansão, merecendo considerável número de solicitações. Para o deferimento do pedido de
concessão era necessária a existência de arruamento prévio ou o requerente arcava com os
custos dos alinhamentos. Nesse sentido, na década de 1850, as concessões seguiram os eixos
e o padrão da urbanização existente.

A estrutura burocrática montada na Câmara para atender essas solicitações previa o


conhecimento profundo da vida financeira do solicitante, da cidade e suas freguesias.
Entretanto e apesar do controle ao acesso às terras do rossio, muitos desses lotes ficaram sem
cercamento ou foram repassados a terceiros no mercado de terras.

Durante as décadas de 1860 e 1870, dois processos interligados ocorreram em paralelo


e afetaram a distribuição de datas: as tentativas de criação de uma carteira hipotecária em
todo o Império através da valorização fundiária (uma vez que o escravo, lastro do crédito até
aquele momento, estava em franco processo de extinção) e o estabelecimento de colônias de
imigrantes nos arredores do rossio. No gráfico, observamos que as concessões gratuitas
mantiveram-se estáveis durante esse período. Além disso, as concessões praticamente só
ocorreram em ruas novas recém-abertas, possibilitando por vezes o avanço em direção a áreas
distantes, de várzea, como por exemplo o Catumbi.

Após o “fim da gratuidade”, em 1875, a quantidade de concessões subiu


gradativamente, até alcançar outro pico entre 1879 e 1883. Nesse período, foram distribuídas
grandes quantidades de lotes, principalmente na região leste. Depois desse segundo ápice, os
254

vereadores começaram a falar em “aforamento” até a “suspensão das concessões” em 1888.


Interessante observar que uma das causas da não gratuidade das datas, a partir de 1875, era
propiciar dinheiro para a Câmara viabilizar as reformas urbanísticas então em andamento por
ocasião da gestão do Presidente da Província João Theodoro396. Ou seja, as concessões
seguiram os rumos das reformas urbanísticas e essas reformas foram efetuadas com os
recursos advindos delas.

Mesmo tendo um valor de mercado, continuamos a chamá-las de concessões após


1875, até a extinção completa das datas de terra em 1893. Isso se deve ao fato de, embora
“onerosas”, vincularem-se a prazos para construção que, uma vez não cumpridos,
condicionariam a devolução do lote à Câmara. Ou seja, mesmo sendo concedidas mediante
pagamento à Câmara não estavam plenamente liberadas para o mercado livre, não se
constituindo em propriedade absoluta de fato.

Os requerentes eram membros dos mais variados segmentos sociais, o que desmistifica
uma das premissas iniciais da pesquisa: a de um possível favorecimento na distribuição das
datas. O fato de uma data ter sido concedida, em muitos casos, não resultou em edificação e
cercamento, quer devido aos prazos ou mesmo às dificuldades referentes à situação do
terreno. Constatamos que funcionários públicos, libertos e um grande número de mulheres
também tiveram acesso às concessões, quer em áreas distantes do centro arruado (como o
Morro do Caaguaçu), em geral, em locais de várzea como em outras freguesias.

Apesar do grande número de concessões em determinados períodos, essas não chegam


a configurar grandes glebas, ou seja, foram raros os casos de acúmulo de mais de uma data,
prática proibida antes de 1875. Quando ocorreu, deveu-se a pedidos em nome de diversos
membros de uma mesma família com intuito de formar umas grande gleba. A maioria das
concessões desse período se deram em áreas envoltórias de propriedades já constituídas, mas
foram fragmentadas, raramente ampliando-as em extensões.

Analisando as concessões, podemos estabelecer algumas tendências:

 Concessões nos interstícios de antigas chácaras: mais frequente na região oeste da cidade
(Arouche, Campo Redondo e Carvalho), onde havia chácaras herdadas ou compradas que
só foram loteadas em fins da década de 1870 a 1890, dando origem a novos bairros. Isso
nos permite afirmar que o loteamento posterior dessas chácaras seguiu a direção de ruas

396
FRANCO, Herta. Modernização e melhoramentos urbanos em São Paulo. São Paulo, 2002. Tese (Doutorado
em Arquitetura e Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo.
255

pré-estabelecidas ou estendidas pelo parcelamento do solo definido pelas concessões


fragmentadas em lotes esparsos.
 Concessões em vias de acesso: especialmente junto à Ponte Grande de Santana, no Brás, na
Estrada de Santo Amaro e também da região oeste, na Consolação. Trata-se de importantes
vias de ligação da cidade com o interior, o litoral e a Corte. Cada uma dessas áreas possuía
um pouso de tropeiros e, em pelo menos em dois casos, estas hospedarias foram edificadas
em datas obtidas por concessão.
 Concessões em várzeas: no Brás, na Mooca, na Ponte Grande e no entorno dos rios que
cortavam a cidade. A intenção nesse caso era “sanear” essas áreas através das construções.
Em muitos casos, as pessoas requeriam lotes de terra para cultivar e, apesar do grande
número de concessões, não podemos afirmar que a datas mereceram a correspondente
quantidade de edificações entre 1850-1890.
 Concessões em regiões distantes das áreas arruadas: aqui é o caso de se questionar a
legalidade do processo em andamento e atentar para o apossamento de terrenos.
Curiosamente, verificou-se, em muitos casos, a opção pelo pedido oficial junto à Câmara
ao invés do apossamento em áreas pouco fiscalizadas, distantes do centro da cidade.

As tendências observadas não foram estanques e observamos a concomitância de todas


elas numa mesma área. Entretanto, com o fim da escravidão em 1888, e para arcar com os
custos da elaboração do mapa representando o patrimônio municipal, a Câmara optou pelo
“aforamento de terrenos”. Em 1889, o processo de implantação da República condicionou a
suspensão das discussões sobre aforamento e a interrupção das concessões. O Registro
Torrens, em 1890, alterou o mecanismo de registro, possibilitando o que até então nenhum
outro sistema havia facultado: o cadastramento dos terrenos por localidade e não por nome, ou
seja, um sistema racional e passível de ser cartografado.

Finalmente, em 1893, é declarado o “fim das concessões de terras do rossio”,


restando apenas a possibilidade de aforar terrenos em determinadas partes da cidade, ou
melhor, restando apenas a possibilidade de aforar terrenos que ainda estivessem desocupados
no rossio.

A partir de 1893, inicia-se uma outra história da questão fundiária em São Paulo que
extrapola o escopo do presente estudo. O mergulho nas fontes primárias, se não resultou em
conclusões definitivas, apontou pistas e caminhos a serem percorridos em estudos futuros.
Dessa forma, esperamos ter contribuído para o debate historiográfico sobre um tema
complexo, ainda cheio de lacunas a responder.
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269

GLOSSÁRIO397

A rogo: a pedido de alguém, o ato de interceder por alguém.

Aforamento: ação de dar algum prédio – imóvel – em troca de pagamento de foro. Tomar
prédio rústico ou urbano por aforamento.

Alinhamento: “alinhamento [...] é a fixação do limite que separa o caminho publico da


propriede. particular digo privada, e que consequentemente á respeito só pode dar-se questão
entre o poder publico e os proprietários ribeirinhos (no caso de ribanceiras de rios).”398 O
alinhamento é a separação do limite entre o logradouro público e as propriedades privadas.

Braça: unidade de medida correspondente ao comprimento de dois braços abertos e


estendidos juntamente com a parte do corpo que está no meio deles até a extremidade do dedo
do meio de cada mão. Equivalente a 2,2 metros, usada para medir datas de terra em oposição
às sesmarias.

Carta de Data: data significa dádiva, dom, benefício. A carta era o meio de fazer o pedido
para ser beneficiado com uma parcela de terreno do rossio.

Comisso: na jurisprudência do século XIX, comisso é a quebra de contrato, qualquer que seja.
Aqui foi utilizado ao referirmo-nos às terras que reverteram ao domínio da Câmara Municipal
quando não foram beneficiadas, ou seja, não foram cercadas ou edificadas dentro de um prazo
preestabelecido.

Contratos enfitêuticos: o arrendamento ou aforamento pode ser descrito como um contrato


enfitêutico, ou seja, a concessão de um terreno (ou imóvel) mediante o pagamento de uma
quantia ao senhor dessas terras (no caso, a Câmara) para beneficiá-la. No original, o
cessionário do terreno não poderia retomá-lo se as obrigações contratuais estivessem sendo
cumpridas.

397
Definições retiradas dos dicionários: BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez, e latino, áulico,
anatômico, architectonico, bellico, botânico...et alii. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712;
SILVA, Antonio de Moraes. Dicionário da língua portugueza. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813.
398
ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1560-1886. São Paulo: Archivo Municipal de
S. Paulo; Departamento de Cultura, 1914-1951, v. 55, 1869, p. 91-93.
270

Data de terra ou chão de terra: lotes de terras concedidos pela Câmara a terceiros,
usualmente no rossio e ocasionalmente no termo. Os chãos de terra eram medidos em braças,
em contraposição às sesmarias, medidas em léguas.

Datas onerosas: chamamos de datas onerosas quando passam a ter um valor pago por
ocasião da concessão, estabelecido no orçamento municipal e vigente a partir de 1875. Apesar
de serem concedidas mediante pagamento, as condições para a manutenção do lote se
mantinham, como a de cultivar em tempo predeterminado, sob pena de comisso.

Décima Urbana: primeiro imposto urbano estabelecido a partir de 1808, correspondia à


décima parte dos rendimentos dos prédios urbanos. Foi inicialmente aplicado no Rio de
Janeiro e depois em todas as cidades, vilas e lugares notáveis à beira-mar. Para tanto,
implicava na definição do perímetro arruado da cidade.

Foro: tributo procedido de “cousa foreira” por direito ao senhorio, que todos os anos se
pagava. Posse em que se constitui direito, privilégio. Taxa anual para o cessionário original da
área.

Laudêmio: taxa cobrada pelo foreiro quando da transmissão ou venda de bens aforados. Não
era imposto, mas quantia cobrada cada vez que o bem aforado era transmitido a outrem.

Légua ou légoa: unidade de medida itinerária – de comprimentos longos – utilizada até a


introdução do sistema métrico decimal. Equivalente a aproximadamente 6 quilômetros.

Logradouro público: campo de uso comum de uma vila, aqui com o sentido de área que
separa o público do privado. Pode ser entendido como ruas, praças e áreas de pastagem.

Marchantes: fornecedores de reses para o matadouro.

Perímetro urbano: perímetro definido para taxação da Décima Urbana, correspondente à


área efetivamente arruada da cidade.

Posse ou apossamento: ato de se apropriar de determinada área, devoluta, abandonada ou


parte dos campos de uso comum, sem observar as determinações vigentes.

Posturas municipais: Posturas da cidade, posturas da Câmara ou Senado da Câmara; eram


as leis, regimentos, estatutos e usanças.
271

Rossio: antiga Sesmaria do Conselho, concedida para usufruto comum e sob controle da
Câmara, passível de distribuição para a população ou aferimento de rendas para os cofres
municipais e, ao mesmo tempo, reserva destinada à expansão territorial da vila ou cidade.

Sesmarias: terras concedidas, medidas em léguas, destinadas à produção sob pena de


comisso. Surgidas em Portugal durante escassez de alimentos do século XIV, o objetivo era
beneficiar as terras para incrementar a produção de alimentos. Sistema implantado no Brasil,
sofreu alterações, uma vez que as terras na colônia eram vastas e incultas.

Termo: área administrada ou sob jurisdição da Câmara, correspondendo a seis léguas em


todas as direções a partir da Sé – aproximadamente 36 quilômetros –, configurando o que
denominamos de limites do município ou perímetro municipal.

Terras de uso comum: os dicionários consultados revelam que a palavra comum significa
ao mesmo tempo comunicar e comungar, comutação e comunhão, revelando dois sentidos
interligados. Podemos aplicar ao uso das terras: passagem de uso comum – que comunica –
com outro lugar; uso em comum – comunhão – das fontes de água ou de outros recursos
naturais. As terras de uso comum não são propriedade coletiva, elas são de usufruto de todos
os cidadãos por costumes anteriores e direito consuetudinário.

Terras devolutas: A definição é dada pela lei nº 601 de 1850, no seu artigo 3º:

“1º - As que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial ou municipal.
2º - As que não se acharem no domínio particular ou qualquer título legítimo, nem forem
havidas por sesmarias, ou concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em
comissão por falta de cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura.

3º - As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que,
apesar de incursas em comissão, forem revalidadas por essa lei.

4º - As que não se acharem ocupadas por posses, que, apesar de não se fundarem em título
legal, forem legitimadas por esta Lei”.

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