TESE Virginia Baum2021 VersãoFinal Pósbanca - SUBJETIVIDADE
TESE Virginia Baum2021 VersãoFinal Pósbanca - SUBJETIVIDADE
TESE Virginia Baum2021 VersãoFinal Pósbanca - SUBJETIVIDADE
Porto Alegre
2021
Virginia Dornelles Baum
Porto Alegre
2021
VIRGINIA DORNELLES BAUM
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________
Orientadora: Dra. Bettina Steren dos Santos
___________________________________________________
Examinadora: Dra. Monica De La Fare (PUCRS)
____________________________________________________
Examinadora: Dra. Cristina Massot Madeira Coelho (UnB)
____________________________________________________
Examinadora: Dra. Juliana dos Santos Rocha
____________________________________________________
Examinadora: Dra. Simone Costa Moreira (UFRGS)
AGRADECIMENTOS
Esta tese é um estudo de caso em profundidade que se detém sobre a temática da constituição
subjetiva da docência e da aprendizagem, segundo a Teoria da Subjetividade, de González Rey,
a qual se associa à Epistemologia Qualitativa, do mesmo autor. Busca-se responder ao seguinte
problema: como são produzidas as configurações subjetivas acerca da docência na história de
vida de uma pedagoga reconhecida por seus pares por desenvolver um bom trabalho com as
diversas formas de ser e de aprender no contexto escolar? Tendo como objetivo geral produzir
um modelo teórico que visa a construir inteligibilidade a respeito de tal problemática, utilizou-
se a Metodologia Construtiva-Interpretativa. Os principais recursos empregados para se induzir
os sistemas conversacionais foram: a inserção no contexto de trabalho da participante
(momentos informais), um questionário preliminar e a utilização de imagens associadas a etapas
da vida. A construção da informação foi pautada pela história de vida da participante, isso
permitiu que se chegasse à tese de que professores como Sofia, que vivem a docência de modo
a configurá-la subjetivamente como potência, como possibilidade de construção de caminhos
subjetivos alternativos pela via dialógica, atribuem valor e significado tanto à sua atuação
pedagógica quanto aos processos de aprendizagem escolar e de escolarização, influenciando,
assim, novas produções subjetivas, seja no âmbito individual, seja no âmbito social. Chega-se,
dessa forma, à construção hipotética de que a docência é uma expressão da subjetividade de
Sofia, que se articula em torno de núcleos organizativos, mais ou menos estáveis, que
representam os princípios orientadores da docência da participante, são eles: o vínculo com a
profissão, a flexibilidade, a humildade pedagógica e a ética docente. Por sua vez, cada um
desses núcleos expressa, de maneira mais ou menos evidente, os valores essenciais de Sofia,
que são: afeto, empatia, honestidade e respeito. Ou seja, a maneira como Sofia conduz sua
docência está articulada em torno de valores que se (re)configuram ao longo da sua vida como
princípios. Nessa produção subjetiva destacam-se as memórias afetivas configuradas como
legados, as quais estão intimamente associadas ao valor do vínculo de qualidade e à inclusão
escolar por meio da aprendizagem efetiva – evidenciando a potência da educação dialógica
como promotora de oportunidades e de mobilidade da dinâmica social, potência essa que ainda
é pouco explorada e, muitas vezes, até combatida.
This thesis is an case study that focuses on the subject of the subjective constitution of teaching
and learning, according to the Theory of Subjectivity, by González Rey, which is associated
with Qualitative Epistemology, by the same author. In this way, we seeks to answer the
following problem: How are subjective configurations about teaching produced in the life story
of a pedagogue recognized by her coworkers for developing a good job with the different ways
of being and learning in the school context? Having as a general objective to produce a
theoretical model that intends to build intelligibility about the problem. The Constructive-
Interpretative Methodology was used. The main resources used to induce conversational
systems were: insertion into the participant's work context (informal moments), a preliminary
questionnaire and the use of images associated with life stages. The construction of the
information was guided by the participant's life story, which allowed the thesis that teachers
like Sofia, who live teaching in order to subjectively configure it as a power, as a possibility of
building alternative subjective ways for the dialogic process, attribute value and meaning both
to their pedagogical performance, to the processes of school learning and schooling, influencing
new subjective productions, both in the individual and in the social sphere. Thus, the
hypothetical construction is elaborated that teaching is an expression of Sofia's subjectivity,
which is articulated around organizational cores, more or less stable, which represent the
guiding principles of the participant's teaching, are named: the bond with the profession,
flexibility, pedagogical humility and teaching ethics. In turn, each of these cores expresses, in
a more or less evident way, Sofia's essential values, which are: affection, empathy, honesty and
respect. In other words, the way Sofia conducts her teaching is articulated around values that
(re)configure themselves throughout her life as principles. In this subjective production,
affective memories are configured as legacies, which are closely associated with the value of
the quality bond and school inclusion with effective learning. Evidencing the potential of
dialogic education as a promoter of opportunities and mobility of social dynamics, a potential
that is still little explored and, often, even opposed.
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 13
1.1 ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA PESQUISA ................................................... 17
1.2 CONSTITUIÇÃO SUBJETIVA DA DOCÊNCIA: ATUALIZAÇÕES SOBRE O
CAMPO DE PESQUISA .................................................................................................... 18
2 FUNDAMENTOS DA PESQUISA ................................................................................... 26
2.1 EPISTEMOLOGIA QUALITATIVA .......................................................................... 26
2.1.1 O caráter construtivo-interpretativo do conhecimento ....................................... 31
2.1.2 A validade do caso singular no processo de produção de conhecimento ........... 31
2.1.3 O caráter dialógico da investigação .................................................................... 33
2.2 TEORIA DA SUBJETIVIDADE ................................................................................. 34
2.2.1 Subjetividade ...................................................................................................... 36
2.2.2 Sentido subjetivo e configuração subjetiva ........................................................ 38
2.2.3 Categoria de sujeito e de agente ......................................................................... 40
2.2.4 Subjetividade, personalidade e docência ............................................................ 41
2.3 A CONSTITUIÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DA DOCÊNCIA NOS
ANOS INICIAIS NO BRASIL ................................................................................... 42
2.3.1 Antecedentes históricos ...................................................................................... 44
2.3.2 O Brasil: ideais e rupturas................................................................................... 51
2.3.3 Uma síntese reflexiva ......................................................................................... 69
2.4 DOCÊNCIA, APRENDIZAGEM E SUBJETIVIDADE:
ENTRELAÇAMENTOS POSSÍVEIS ............................................................................... 71
3 PERCURSO METODOLÓGICO .................................................................................... 81
3.1 A METODOLOGIA CONSTRUTIVO-INTERPRETATIVA .................................... 81
3.2 PRECEITOS ÉTICOS E DESAFIOS APLICADOS À PESQUISA ........................... 83
3.3 A ESCOLHA DA PARTICIPANTE: UMA DECISÃO RELACIONAL.................... 86
3.3.1 Afinal, por que Sofia foi escolhida? ................................................................... 88
3.3.2 Quem é a professora Sofia? Como ela é percebida em seu local de trabalho? ... 89
3.3.3 Mas a questão que fica é justamente como se constituiu essa forma de ser
docente? Quando teve origem? Que aspectos foram fundantes dessa maneira de
exercer a docência? ...................................................................................................... 96
3.4 O TRABALHO DE CAMPO: UM CONTÍNUO FLUXO RELACIONAL,
ATIVO E REFLEXIVO CONJUNTO ............................................................................. 101
4 “EU APRENDI”: A CONSTRUÇÃO DA INFORMAÇÃO
NO CASO DE SOFIA ......................................................................................................... 110
4.1 HONRANDO UM LEGADO: A HISTÓRIA DE SOFIA ......................................... 115
4.2 UM MERGULHO NA CONFIGURAÇÃO SUBJETIVA
DA DOCÊNCIA DE SOFIA ............................................................................................ 161
4.2.1 Vínculo com a profissão ................................................................................... 163
4.2.2 Flexibilidade ..................................................................................................... 174
4.2.2.1 Ampliação de perspectivas ................................................................... 175
4.2.2.1.1 Aprendizagem escolar .................................................................. 175
4.2.2.1.2 Função social da escola............................................................... 184
4.2.2.1.3 Ser professor de crianças............................................................. 192
4.2.2.2 Características da docência ................................................................. 198
4.2.2.2.1 Dinamicidade ............................................................................... 199
4.2.2.2.2 Sensibilidade e adaptabilidade .................................................... 203
4.2.3 Humildade pedagógica ..................................................................................... 209
4.2.3.1 Aprendizagem contínua ........................................................................ 209
4.2.3.2 Constituição de redes ........................................................................... 215
4.2.4 Ética docente ..................................................................................................... 220
4.2.4.1 Responsabilidade profissional ............................................................. 221
4.2.4.2 Direitos do estudante ........................................................................... 228
4.2.4.2.1 Direito a ser reconhecido na sua unicidade ............................. 229
4.2.4.2.2 Direito ao respeito ..................................................................... 234
4.2.4.2.3 Direito à aprendizagem ............................................................. 238
5 UM CONVITE AO DIÁLOGO COM SOFIA .............................................................. 245
5.1 UMA BREVE SÍNTESE CONCLUSIVA ................................................................. 246
5.1.1 A dinâmica da configuração da docência ......................................................... 247
5.1.2 Os núcleos organizativos .................................................................................. 250
5.1.3 Desenvolvimento subjetivo .............................................................................. 258
5.2 PROVOCAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 259
REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 261
APÊNDICE I – QUESTIONÁRIO ENVIADO AOS PARTICIPANTES
DA PESQUISA (ASSENTIMENTO) ................................................................................ 266
APÊNDICE II – INSTRUMENTO FOTOS E IMAGENS.............................................. 268
APÊNDICE III - LISTA DE INDICADORES ................................................................. 269
13
1 INTRODUÇÃO
Esta tese propõe-se a refletir sobre a temática da docência e sua relação com o ensino e
a aprendizagem, no contexto da Educação Básica, sob a perspectiva da Teoria da Subjetividade,
de Fernando Luís González Rey. Interessa-me mais especificamente a questão das
configurações subjetivas produzidas a respeito da docência, do ensino e da aprendizagem por
professores pedagogos que atuam na Educação Básica, os quais são reconhecidos por seus pares
por desenvolverem um bom trabalho diante dos diversos processos de aprendizagem que
ocorrem no ambiente escolar.
Tal temática emergiu de forma clara durante meus estudos de mestrado (BAUM, 2015),
em especial durante o trabalho de campo e nas reflexões que suscitaram a partir daquele
momento. Embora tais estudos tenham sido realizados em meu local de trabalho e a partir de
uma prática que pesquisadores costumam realizar, até então não havia refletido sobre os
diferentes processos de aprendizagem presentes nesse ambiente, sobre os seus fatores
intervenientes, sobre o papel da emocionalidade neles, além de outras questões que envolvem
a docência para além das técnicas pedagógicas e das minhas próprias concepções de docência,
ensino e aprendizagem. Foi apenas durante o processo de análise, momento em que me investi
de um olhar reflexivo e analítico mais profundo, que o modo como entendo a aprendizagem
humana, bem como minhas próprias concepções sobre docência e ensino, foi evidenciado.
Também foi o momento em que percebi que a relação estabelecida com alunos e alunas, os
quais enfrentavam dificuldades no processo de escolarização, demandava do docente muito
mais do que estratégias e técnicas pedagógicas de ensino. Os estudantes requeriam sustentação
para o enfrentamento da situação de aprendizagem, ou seja, era necessário investir em sua
subjetividade para que pudessem se sentir capazes de transcender as dificuldades e ressignificar
o que estava por trás do aprender, suas marcas subjetivas.
Compreendi que tais princípios e atitudes fazem parte de quem eu sou e da forma como
entendo e atuo no mundo, tanto no âmbito profissional quanto no âmbito pessoal, ou seja, estão
configurados em minha subjetividade. Percebi, também, que esse processo de constituição
subjetiva foi sendo produzido ao longo da minha história singular de vida, e não apenas durante
minha formação profissional acadêmica. Ele também está relacionado às minhas experiências
de aprendizagem e docência: na minha trajetória como aluna, estagiária, professora, orientadora
educacional e gestora; na relação com colegas da escola, nos espaços de formação, com
professores que foram marcantes e que serviram de exemplo; com meus valores e exemplos
familiares e de convívio (amigos, vizinhos, conhecidos); no encontro com conhecimentos,
14
saberes e teorias. Notei que a forma como entendo a aprendizagem foi sendo produzida desde
as primeiras experiências de que recordo. Por sua vez, a ideia que tenho de docência, de ensino
e de como vivo o cotidiano escolar, foi sendo produzida desde as primeiras experiências que
tive com as pessoas que me ensinaram algo, que fizeram sentido e às quais me vinculei
afetivamente. Assim, experiências no seio da família, nas relações com os pares, na constituição
de vínculos significativos com pessoas que ensinam e que aprendem comigo, cada sorriso,
lágrima ou abraço, foram constituindo quem eu sou hoje e as lentes com as quais percebo o
mundo ao meu redor, e, consequentemente, a minha profissão.
Ao analisar brevemente minha trajetória de constituição docente e os achados da minha
pesquisa de mestrado, percebo que são inúmeras as formas de os indivíduos relacionarem-se
com seus processos de aprendizagem, as quais podem facilitar ou criar obstáculos em seus
processos de escolarização e vida acadêmica-profissional. Trata-se de produções singulares,
complexas e relacionais que se (re)compõem ao longo de suas trajetórias e, por isso, há
diversidade de situações no ambiente escolar diante dos desafios da escolarização. Deparei-me
inúmeras vezes com crianças que não acreditavam no seu potencial de aprendizagem, com
pessoas que por algum sofrimento impunham barreiras ao estabelecimento de vínculos, com
pessoas que por questões (também) orgânicas tinham dificuldades para dar conta do que a
escola lhes exigia, tais como as crianças cujos casos foram analisados em minha dissertação.
Isso sempre foi algo que me mobilizou pessoal e profissionalmente, e, além disso, essas
experiências foram direcionando a forma como entendo o ensino e a aprendizagem no ambiente
escolar e fora dele, além de serem decisivas nas minhas escolhas acadêmicas, constituindo um
curso de ação que me é próprio. Essas experiências fizeram eu compreender meu compromisso
com a docência, de forma a me sentir responsável pelo meu papel como docente, por apoiar os
diferentes processos de aprendizagem de cada criança a fim de potencializar suas
possibilidades, sem julgar sua trajetória de vida. Essa implicação impulsionava-me a qualificar
as construções culturais de cada estudante, que estavam estabelecidas no currículo e, mais do
que isso, efetivamente buscar (de maneira incansável) construir espaços em que cada um se
sentisse capaz de aprender, saboreasse suas conquistas e estabelecesse vínculo afetivo saudável
com esse processo, de forma a (re)constituir e (res)significar marcas. Esse compromisso ressoa,
inegavelmente, sobre como entendo o ensino, a docência e todos os processos que ocorrem no
ambiente escolar.
Minha pesquisa de mestrado evidenciou algo que sempre carreguei comigo: cada
criança, na condição de aluno, demanda que acreditemos que ela seja capaz de aprender na
escola. No papel de professora e, mais ainda, de orientadora educacional, foram incontáveis as
15
vezes que percebi que o único espaço em que efetivamente se acreditava na capacidade de
algumas crianças era a escola. Muitas foram as batalhas travadas para “provar” às próprias
crianças, seus familiares, seus pares e à comunidade escolar que elas tinham capacidade de
aprender e dar conta dos desafios escolares (e, por que não, do mundo), mas para isso
demandariam, cada uma delas, um suporte diferenciado. Entender os ritmos, as necessidades,
as capacidades, as possibilidades e as potencialidades de cada criança faz parte do meu trabalho
diário como orientadora; apoiar o professor na compreensão de seus alunos como seres
humanos únicos e no desenvolvimento de estratégias pedagógicas para atendê-los, também.
Essas batalhas constituem boa parte da minha trajetória profissional. Mais do que isso,
são uma parte essencial de quem eu sou, da minha constituição subjetiva, da forma como vejo
o mundo. Trata-se de algo muito mais forte do que a vontade consciente, que a motivação para
o trabalho é algo impregnado no íntimo e que me faz persistir mesmo diante das mais duras
experiências, das situações mais adversas e da desistência de (praticamente) todos, inclusive da
própria criança. Mesmo diante de tudo, permanece em mim algo que vai além de uma simples
crença (de que todos aprendem em seu tempo e de que os processos de aprendizagem não se
encerram na escola). Compreendo que a docência ultrapassa a “transmissão de conteúdos” e o
uso de técnicas pedagógicas para o “bom ensinar”. É um ato de formação para a vida que se dá
na relação com o outro e tem um impacto muito significativo na constituição humana,
favorecendo marcas na subjetividade de cada um dos envolvidos, daí a enorme responsabilidade
do docente. Entendo que cada ser humano é um universo particular, que o processo de
escolarização é uma pequena, mas importante, parte desse universo e todos, por sua vez,
merecem ter a melhor experiência possível ao longo de sua trajetória na escola, experiências
significativas e que levem em conta a criança tal como ela é (não imagens ideais), bem como
seu percurso de vida único. É por tudo isso que compreendendo que a educação é um sistema
altamente complexo, que exige um compromisso profissional e ético muito sério e responsável.
Dessa maneira, parte-se da tese de que conceber a docência sob tal ótica tem como
potencialidade apoiar o processo de escolarização das inúmeras pessoas que frequentam o
ambiente escolar, especialmente se pensarmos nos diferentes processos de aprendizagem e
escolarização que hoje estão presentes na Educação Básica. Minha experiência profissional tem
me mostrado que, cada vez mais, temos classes plurais com demandas individuais
diversificadas, sejam elas sociais, psicológicas, psiquiátricas, orgânicas, relacionais ou
específicas de aprendizagem. Creio que tal pluralidade sempre existiu, mas assumi-la de forma
mais explícita é um movimento recente. Tendo em vista tal quadro, o exercício e a compreensão
da docência demandam considerar o caráter complexo desses fenômenos sociais, ou seja, já não
16
1
O termo subjetividade é definido por González Rey (2009a) como um nível diferenciado da psique humana,
produzido a partir de processos simbólicos de natureza cultural e relacionado às emoções. Esse conceito será
mais bem abordado no subcapítulo Teoria da Subjetividade.
2
Conforme González Rey e Mitjáns Martínez (2017c), as configurações subjetivas são núcleos dinâmicos, mais
ou menos estáveis, produzidos por sentidos subjetivos, que têm como característica se constituírem e se
reorganizarem ao longo de toda a vida da pessoa. Esse conceito será mais bem discutido no subcapítulo Teoria
da Subjetividade.
17
subjetividade na maneira como o professor conduz a sua docência. Por tais razões, refletir sobre
como se produzem as configurações subjetivas de docentes, em particular daqueles que são
reconhecidos por enfrentar bem as demandas diante das diversas formas de ser e de aprender
no ambiente escolar, é um importante tema a ser desenvolvido em pesquisas da área da
educação – campo no qual esta pesquisa se inscreve.
Pelo percurso aqui exposto, esta tese pretende se debruçar sobre a temática da
constituição subjetiva da docência e da aprendizagem segundo a Teoria da Subjetividade, de
Luís Fernando González Rey, tendo como participante do estudo uma professora que atua nos
Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Para tanto, propõe-se como problema de pesquisa: como
são produzidas as configurações subjetivas acerca da docência na história de vida de uma
pedagoga reconhecida por seus pares por desenvolver um bom trabalho com as diversas
formas de ser e de aprender no contexto escolar?
Assim, propõem-se algumas questões de pesquisa com vistas a elucidar ainda mais o
foco da proposta:
a) Como a participante configura subjetivamente a docência nos Anos Iniciais do Ensino
Fundamental em sua vida?
b) Como o vínculo da docente se configura subjetivamente com a sua profissão?
c) Quais valores e princípios estão presentes em sua docência? Como eles se expressam?
d) Como a professora configura subjetivamente a concepção de aprendizagem escolar?
Que fatores estão relacionados? Qual é o papel da dialogicidade nesse processo?
e) Que papel o aprender ocupa na configuração subjetiva de sua docência?
Desses questionamentos, surge como objetivo geral da presente proposta de pesquisa
produzir um modelo teórico 3 acerca de como são constituídas as configurações subjetivas
relacionadas à docência ao longo da história de vida de uma pedagoga reconhecida por seus
pares por desenvolver um bom trabalho com as diversas formas de ser e de aprender no
contexto escolar.
3
Na perspectiva adotada, um modelo teórico não é compreendido como uma teoria em si, mas como um processo
que visa a gerar inteligibilidade a respeito de um determinado fenômeno humano. Esta pesquisa se propõe a
estudar o valor da Teoria da Subjetividade para explicar a constituição subjetiva da docência e da aprendizagem
de uma pedagoga. Essa temática será mais bem explicada ao longo do capítulo metodológico.
18
Para tanto, utilizou-se como fonte de pesquisa as seguintes bases de dados: Biblioteca
Digital de Teses e Dissertações (BDTD)4, Repositório Institucional da Universidade de Brasília
(UnB)5 e Catálogo de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES)6. Foram considerados neste estudo teses e dissertações referentes aos
últimos cinco anos (2016 a 2021). A fim de delimitar a busca às pesquisas que correspondessem
a perspectiva teórica, epistemológica e metodológica adotada nesta tese, utilizaram-se como
descritores as expressões “subjetividade”, “González Rey” e “docência” de maneira
combinada.
O material encontrado passou por um processo de triagem por resumos. Para a
composição do corpus de análise, descartaram-se trabalhos cujas temáticas distanciavam-se
muito dos propósitos desta pesquisa e aqueles que apresentavam modelos híbridos, ou seja,
que não faziam uso simultâneo da Teoria da Subjetividade, da Epistemologia Qualitativa e da
Metodologia Construtivo-interpretativa, conceitos desenvolvidos por González Rey. Optou-se
por esse critério de corte por serem os modelos híbridos uma das principais críticas feitas pelo
próprio González Rey e por seus colaboradores às pesquisas que se detêm a estudar a Teoria da
Subjetividade, sendo a utilização simultânea da Teoria da Subjetividade, da Epistemologia
Qualitativa e do Método Construtivo-interpretativo considerada elemento altamente relevante
na construção do rigor teórico e metodológico da pesquisa que utiliza tal perspectiva
(GONZÁLEZ REY; MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017c). Dessa maneira, chegou-se aos resultados
apresentados a seguir.
Na base de dados da BDTD (Quadro 1), foram encontrados nove trabalhos (8
dissertações e 1 tese), sendo que quatro deles (44%) são oriundos da UnB, onde há dois grupos
de pesquisa que estudam a Teoria da Subjetividade, um na área de Educação (3 dissertações e
1 tese sobre a temática) e outro na área da Psicologia. Dos nove trabalhos encontrados, foram
selecionados quatro para compor o corpus de análise (3 dissertações e 1 tese), todas produzidas
no Programa de Pós-graduação em Educação da UnB.
4
Disponível em: http://bdtd.ibict.br.
5
Disponível em: https://repositorio.unb.br.
6
Disponível em: http://catalogodeteses.capes.gov.br/catalogo-teses.
20
Dessa forma, considerando o cruzamento das três bases de dados pesquisadas, chegou-
se ao total de seis trabalhos a serem analisados de maneira mais criteriosa de seu conteúdo
(Quadro 4).
Nesse caso, inviabiliza-se aos profissionais que se tornem sujeitos de suas práticas
pedagógicas, as quais se tornam rotinas naturalizadas não reflexivas e despersonalizadas. Dessa
maneira, salienta-se alguns dos inúmeros recursos subjetivos que estão presentes na produção
de saberes pedagógicos: a) a valorização de uma rede colaborativa na escola; b) a
intencionalidade pedagógica; c) o olhar investigativo; e d) a produção de ideias em um processo
de autoria 7 /autonomia. Considera-se que os docentes constituem saberes pedagógicos na
relação entre seus pares, sendo essa produção circunscrita na dimensão subjetiva, mantendo,
assim, relação direta com o desenvolvimento de um conjunto de produções subjetivas.
A dissertação de Silva (2016) busca compreender de que forma o professor organiza a
sua prática se expressando como sujeito no trabalho pedagógico. A autora realizou a pesquisa
com duas professoras, e compreende que a docência “está permeada de sentidos subjetivos que
a tornam [uma ação] complexa” (SILVA, 2016, p. 126) para os indivíduos envolvidos e que a
forma como as professoras subjetivam seu papel como docente “constitui processos simbólicos
e emocionais presentes nas ações educativas realizadas e criadas por elas” (SILVA, 2016, p.
127), estando, para ambas, relacionados com a dimensão da possibilidade. Para as duas
participantes do estudo, a docência está associada a sentidos subjetivos de responsabilidade
7
Entende autoria como processo de “[...] criar ideias e posicionamentos de maneira ativa, implicados no contexto
atual e comprometidos com a trama social em que faz parte” (MUNDIM, 2016, p. 199).
23
frente ao trabalho pedagógico por elas desenvolvido, contribuindo para uma ação
compromissada com as necessidades dos alunos e o fomento do seu protagonismo. A autora
refere que na docência das professoras estão presentes sentidos subjetivos relacionados aos
vínculos afetivos e ao estabelecimento de relações interpessoais entre professores e alunos,
concluindo que tais elementos são geradores de outros “sentidos subjetivos que apoiam a
organização do trabalho pedagógico do professor, mobilizando as escolhas das estratégias mais
favorecedoras à aprendizagem” (SILVA, 2016, p. 129-130).
A dissertação de Barrios Díaz (2017), por sua vez, dedica-se a explorar os aspectos que
integram a constituição subjetiva do professor de Educação Infantil. De acordo com o autor, a
construção da informação permitiu identificar uma série de elementos que estão presentes na
constituição subjetiva das professoras e, dessa forma, organizou suas sínteses conclusivas em
cinco subtópicos. No item A relevância do núcleo familiar para a constituição subjetiva,
explica que o núcleo familiar aparece como elemento central na constituição docente, uma vez
que nele se “desenvolveram valores e construíram recursos subjetivos para se posicionar diante
da vida” (BARRIOS DÍAZ, 2017, p. 132). No subtítulo Docência como possibilidade de
descoberta de si, declara que a docência é uma produção dinâmica, uma vez que o professor
vive “a possibilidade de reelaboração de si no curso de suas vivências” (BARRIOS DÍAZ, 2017,
p. 133), sendo que a forma como vive a docência repercute não apenas em seu âmbito
profissional, mas também em sua própria constituição subjetiva como ser humano, e a escola,
nessa perspectiva, é fonte de produção de sentidos subjetivos sobre a identidade do docente. No
subtópico A escola como espaço relacional e de ação docente, refere que as participantes
valorizam as relações sociais estabelecidas no ambiente escolar, com os diferentes indivíduos
que compõem esse espaço, entendendo-o como uma possibilidade de desenvolvimento pessoal
e de aprendizagem, sendo os processos relacionais vividos junto às crianças uma faceta
importante para o desenvolvimento de estratégias de ensino e de exercício da docência,
favorecendo, dessa forma, as aprendizagens constituídas na escola. O subtópico As relações de
parceria na escola diz respeito à constituição das aprendizagens nas trocas com a equipe
pedagógica, sendo esta considerada uma parceria significativa, especialmente na inserção do
professor no ambiente profissional. Conforme o autor, esses dois últimos tópicos expressam
“como o encontro com o outro é uma relação fundamental no processo de constituição
subjetiva” dos seres humanos (BARRIOS DÍAZ, 2017, p. 135-136). Por fim, no último
subtópico, intitulado A docência como processo de aprendizagem, evidencia-se o fato de que
as professoras “reconhecem que suas perspectivas e estratégias pedagógicas foram
desenvolvidas dentro do próprio processo de viver a docência” (BARRIOS DÍAZ, 2017, p.
24
137), e esse sentimento de pertencimento é apontado como fator importante nesse processo,
sendo associado à possibilidade de construir uma educação na qual acreditam e podem exercer
a autoria. O autor conclui que o campo da educação é um terreno complexo, no qual há o
encontro entre diversas subjetividades, e educar “é o ato de trocar com o outro os nossos valores
e perspectivas de mundo e a partir desse encontro viver a possibilidade de crescimento”
(BARRIOS DÍAZ, 2017, p. 138).
A dissertação de Vaz (2017) procura entender a forma como uma professora busca
conhecer as especificidades de seus alunos na dinâmica relacional da sala de aula. Para isso,
realizou-se um estudo de caso em uma turma de 1º ano do Ensino Fundamental de uma escola
pública do Distrito Federal. Como resultado, averiguou-se que a maneira como a professora
estabelecia a relação com seus alunos era expressa em suas escolhas pedagógicas, seus valores,
suas crenças, suas concepções de aprendizagem e de infância, bem como nas produções
subjetivas a respeito de seus alunos. Identificou-se que
2 FUNDAMENTOS DA PESQUISA
O autor afirma que, no que se refere à subjetividade humana, não é possível atribuir
valor universal às categorias concretas (enquadramentos) elaboradas pela Psicologia até então,
e entende que “un concepto es siempre una producción intelectual asociada a cierta
inteligibilidad, cuyo significado siempre está contextualizado en la temporalidad de un sistema
teórico” (GONZÁLEZ REY, 2009a, p. 210). Ou seja, é necessário considerar as limitações do
saber humano, a influência da interpretação do pesquisador e a impossibilidade de se apreender
27
Por essa razão, a autora afirma que é contraditório reconhecer a complexidade dos
fenômenos psicológicos humanos e seguir utilizando categorias que a neguem, e critica que o
pensamento científico ainda trate fenômenos complexos de forma simplista. Para a autora, a
Teoria da Subjetividade busca romper com tal compreensão de ciência e se propõe a entender
a subjetividade humana a partir de uma perspectiva complexa, demandando, portanto, uma
compreensão de epistemologia e de metodologia que contemple tal caráter nos processos de
28
Tal perspectiva assume, segundo Mitjáns Martínez (2005), que a subjetividade humana
é um fenômeno complexo que nunca ocorre de forma linear, e o real passa a ser entendido como
a composição de momentos que se entrecruzam e se retroalimentam, por isso a articulação entre
a subjetividade social e a individual como processos indissociáveis e em contínuo
desenvolvimento. A partir dessa compreensão, a Epistemologia Qualitativa admite que a
inteligibilidade a respeito da subjetividade se dá em uma constante e não linear tensão entre as
ações humanas estudadas, o que compreende sentidos e configurações subjetivas produzidas, e
a produção teórica da pesquisa, o que envolve o processo construtivo-interpretativo. O que
representa um desafio ao pesquisador, que realiza um exercício contínuo “por diferentes vias,
tenta construi-la [a realidade estudada] e acompanhá-la” (MITJÁNS MARTÍNEZ, 2005, p. 13)
sem decompô-la ou simplificá-la. A autora ainda salienta que
Sobre a gênese da Teoria da Subjetividade, González Rey (2003, 2009a, 2017), ao longo
de sua obra, aborda de forma consistente as diferentes vertentes psicológicas, suas
potencialidades e lacunas, e, por fim, volta-se especialmente aos autores da Psicologia soviética.
Ele afirma que esse movimento teve por potencialidade admitir sua base filosófica (o que
facilitou o desenvolvimento de suas bases teóricas) e assumir a dialética como modelo de
pensamento (o que facilitou a compreensão de psique como sistema em constante
desenvolvimento) (GONZÁLEZ REY, 2009a). Destaca as contribuições de Vygotsky e de
Rubinstein, especialmente na dedicação de ambos em representar a psique humana como um
sistema complexo em que os aspectos afetivos e cognitivos aparecem de modo indissociável.
Também, ambos assumem uma “orientación interpretativa inseparable de lo empírico.
Vygotsky primero, y después Rubinstein, asumen una posición interpretativa ante el saber”
(GONZÁLEZ REY, 2009a, p. 213). Enfatizam o caráter gerador da psique a partir do impacto
das emoções e suas consequências para o desenvolvimento psíquico humano, porém, “sin
ninguna relación inmediata y linear con referentes externos” (GONZÁLEZ REY, 2009a, p.
213), visto que as condições políticas que enfrentavam não permitiam avançar nessa
perspectiva. Dessa forma, González Rey (2009a, p. 214), a partir dessa lacuna, se propõe a
pensar sobre “un nuevo sistema psíquico que se configura en el proceso de vida del sujeto a
partir de las nuevas relaciones de las emociones con otros elementos de la vida”, entre eles seu
contexto sócio-histórico-cultural.
Outros desafios surgiram, conforme González Rey e Mitjáns Martínez (2017b),
especialmente no que se refere às formas de validação dos conhecimentos produzidos sobre a
subjetividade na perspectiva histórico-cultural, de maneira a legitimá-los perante a comunidade
científica. Assim, os autores referem que diante da “ausência de discussões epistemológicas na
Psicologia soviética, decidi [González Rey] avançar em uma proposta epistemológica capaz de
sustentar minhas experiências metodológicas no estudo da personalidade” (GONZÁLEZ REY;
MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017b, p. 275-276, tradução nossa), reconhecendo a estreita inter-
relação entre teoria, epistemologia e metodologia. González Rey e Mitjáns Martínez (2016, p.
9) afirmam que:
Por essa razão, cada indivíduo, mesmo inserido em um mesmo ambiente sócio-
histórico-cultural, irá produzir-se subjetivamente de forma distinta, impossibilitando um
processo de generalização amplo, como o proposto por outras vertentes psicológicas. Assim, o
autor refere que o valor heurístico da subjetividade reside justamente nessa característica e
justifica o uso do caso singular como fonte fidedigna de estudo da subjetividade.
Outro aspecto apontado pelo autor é o entendimento dos sentidos subjetivos e das
configurações subjetivas como expressões da psique humana culturalmente contextualizada e
organizadoras da subjetividade. Quanto ao processo de entendimento dos sentidos e
configurações subjetivas produzidas pelo indivíduo, González Rey (2009a, p. 217) aponta que:
modelos teóricos que ganhem legitimidade pela sua capacidade de articulação com
sistemas múltiplos de significados diferentes que, gerados por via indireta, podem
encaixar-se na capacidade explicativa do modelo teórico em desenvolvimento no
curso da pesquisa. (GONZÁLEZ REY; MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017c, p. 30).
Conforme González Rey (2009a), a consideração do caso singular (seja ele individual
ou social) como fonte relevante para a construção de um conhecimento cientificamente válido
está estritamente associada à ideia de desenvolvimento de modelos teóricos. Para a
Epistemologia Qualitativa, conforme González Rey e Mitjáns Martínez (2017c, p. 29), a
singularidade representa uma “informação diferenciada que se fundamenta no caso específico
que toma significado em um modelo teórico que transcende”, sendo este validado a partir da
coerência entre as informações e da recursividade do processo de construção interpretativa do
32
modelo teórico. Por tal razão, o foco da pesquisa direciona-se à qualidade das informações
provenientes de diversos contextos (formais ou informais) de expressão do participante.
Um aspecto relevante refere-se a buscar criar condições para que o participante da
pesquisa exerça uma posição ativa dentro desse processo, agindo, assim, como sujeito ou agente
da ação. Tal implicação com o processo de pesquisa, segundo os autores, é uma condição para
a qualificação da informação, pois garante uma expressão mais fluida e natural do participante.
Outra questão importante para validação de caso particular é sua relevância para o
desenvolvimento de modelos teóricos, visto que são baseados em uma teoria, “mas não
representam uma aplicação da teoria; eles representam novas construções teóricas que são
inspiradas pelos principais conceitos oferecidos pela teoria geral” (GONZÁLEZ REY;
MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017b, p. 281, tradução nossa) gerando inteligibilidade sobre a
realidade. Assim, para os autores,
Dessa forma, essa perspectiva entende que conceitos como o de sentido e configuração
subjetivos não são definições a priori, mas ganham significado em sua inter-relação com o
empírico dentro de um modelo teórico específico. Para os autores (2017b, p. 281, tradução
nossa), esses “significados sempre resultam das construções teóricas do pesquisador”. Por isso,
“não representam o tipo de categorias que podem ser aplicadas a qualquer nova informação”
(GONZÁLEZ REY; MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017b, p. 281, tradução nossa), uma vez que
somente dentro de determinado modelo teórico as informações singulares adquirem significado.
Para González Rey (2009a, p. 220) um modelo teórico é
definição teórica que, nas pesquisas, aparece como modelo teórico a ser construído” a partir de
diferentes fontes de informação. Desse modo, pode-se dizer que toda pesquisa na perspectiva
da subjetividade tem a finalidade de gerar modelos teóricos a respeito de um determinado viés,
fato ou situação que envolva a produção subjetiva dos indivíduos pesquisados.
Nessa perspectiva, os recursos são, na realidade, indutores de diálogo, que tem como
objetivo provocar a emersão de memórias, concepções, valores, ideais, etc., os quais, por sua
vez, constituem determinada configuração subjetiva ou estão presentes em algum sentido
subjetivo específico.
Os autores (2016, p. 9) ainda falam a respeito da “transformación del participante en
sujeto de la investigación” como potencialidade da perspectiva dialógica. Isso acontece em
função de o processo de pesquisa exposto estar comprometido com a expressão autêntica do
34
sujeito tem valor essencial na configuração das influências que recebe [...]. Portanto,
toda ação subjetiva, entre elas o conhecimento, é contraditória, porque, por um lado,
contribui para conhecer um domínio da realidade ou outras pessoas, e, por outro,
representa uma deformação do conhecido, na qual o outro apresenta configurado em
um registro emocional único, em que a história do sujeito aparece subjetivada como
constituinte do evento ou experiência que o afeta.
2.2.1 Subjetividade
[...] às experiências atuais de um sujeito ou instância social, mas à forma em que uma
experiência atual adquire sentido e significação dentro da constituição subjetiva da
história do agente de significação, que pode ser tanto social como individual.
(GONZÁLEZ REY, 2003, p. 202).
37
Indivíduos vivem dentro de redes sociais subjetivas que resultam de discursos sociais
dominantes, representações sociais e outras produções subjetivas de seus sistemas de
relações imediatos. Estas redes complexas de produções sociais subjetivas configuram
a subjetividade social. O conceito de subjetividade social é dirigido a entender as
configurações subjetivas complexas das diferentes instâncias e sistemas de relações
sociais dentro dos sistemas mais complexos de instâncias sociais que definem a
sociedade. (GONZÁLEZ REY, 2017, p. 253, tradução nossa).
Dessa forma, não se pode dizer que os sentidos subjetivos são negativos ou positivos,
uma vez que são dimensões do sentir que estão presentes no que é vivido pelos indivíduos,
como marcas de sua experiência humana que se projetam sobre o presente, organizando-os
subjetivamente. Para González Rey e Mitjáns Martínez (2017c, p. 51), os sentidos subjetivos
são caracterizados por um “fluxo de emoções com múltiplas expressões simbólicas”, que
configuram os estados emocionais dominantes nos indivíduos, repercutindo na forma como
vivem e sentem sua vida.
González Rey (2017) acrescenta que essas unidades geram intermináveis formações
subjetivas no fluxo da experiência humana, estando associadas a diferentes configurações
subjetivas, em um movimento caótico, mas relacionalmente organizado. Para o autor (2017, p.
249, tradução nossa), os sentidos subjetivos “são caminhos pelos quais o passado e a
diversidade de experiências atuais vividas pelos indivíduos, em diferentes instâncias sociais,
são integrados em uma configuração subjetiva” que pautam o agir e o decidir no presente.
Contudo, cabe aqui destacar que os sentidos subjetivos não são estruturas estáticas, pelo
contrário, eles são ressignificados e reestruturados à medida que a pessoa vive, o que revela seu
caráter plástico. Conforme González Rey e Mitjáns Martínez (2017c, p. 51), os sentidos
subjetivos expressam seu valor heurístico justamente por sua plasticidade, e tal característica
possibilita “não reduzir um estado afetivo dominante, um comportamento ou ação da pessoa a
uma causa específica”, mas a uma teia de relações elaborada de maneira complexa em um
determinado momento da vida, podendo se alterar em outra situação. Quanto ao processo de
geração de sentidos subjetivos, González Rey (2017, p. 250-251, tradução nossa) afirma que:
39
[...] são unidades simbólico-emocionais que existem num movimento sem fim dentro
do qual alguns se sobrepõem a outros e se desdobram em outros, formando uma rede
subjetiva. Dentro dessa rede, as configurações subjetivas, em movimento, geram as
emoções dominantes, percepções, pensamentos, medos, fantasias e outros estados
subjetivos dominantes que caracterizam qualquer função psicológica. A ação humana
nunca é uma ação instrumental isolada, ela é subjetivamente configurada durante a
ação. As configurações subjetivas são a movimentação da mistura complexa de
processos psicológicos que surgem durante a ação do sujeito dentro de uma
experiência em curso.
Assim, pode-se dizer que é no curso da experiência de vida que a pessoa gera novos
sentidos e configurações subjetivas, a partir de valores compartilhados nos ambientes sociais
dos quais faz parte.
Os sentidos subjetivos não são apreensíveis diretamente nem elaborados em palavras.
Para González Rey e Mitjáns Martínez (2017c, p. 51), “eles apenas nos permitem levantar
conjecturas sobre a multiplicidade de processos que se configuram subjetivamente nos estados
dominantes que caracterizam uma experiência vivida”, estando além de representações
conscientes daqueles que estão envolvidos no processo.
As configurações subjetivas, por sua vez, podem ser definidas como núcleos dinâmicos
organizados, mais ou menos estáveis, alimentados por diversos sentidos subjetivos. Para os
autores, trata-se de “uma formação autogeradora, que surge no fluxo diverso dos sentidos
subjetivos” convergentes (GONZÁLEZ REY; MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017c, p. 63), gerando
sistemas sensíveis em movimento. González Rey (2017, p. 249, tradução nossa) acrescenta que
as configurações subjetivas são criadas a partir do “fluxo de sentidos subjetivos em seu
movimento caótico e sem fim”. Desse modo, sua constituição ocorre ao longo de toda a vida e
se expressa por meio de estados subjetivos mais estáveis que vão direcionando a forma de um
indivíduo ser e agir no mundo.
González Rey e Mitjáns Martínez (2017c) destacam que o passado e o presente se
articulam na organização das configurações subjetivas, sendo a ação humana presente
entendida como “um ponto de encontro, colisão e condição dos mundos vividos pelos seus
protagonistas nas configurações subjetivas singulares em que essa experiência presente é
vivida” (GONZÁLEZ REY; MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017c, p. 84-85). Portanto, todo
comportamento humano é, na realidade, configurado subjetivamente “por sentidos subjetivos
que permitem enxergar nele processos da história e da mobilidade da experiência atual dos
participantes nos diferentes contextos de suas vidas” (GONZÁLEZ REY; MITJÁNS
MARTÍNEZ, 2017c, p. 40). Segundo os autores, um comportamento presente não está restrito
apenas às experiências atuais do indivíduo, mas a toda sua historicidade, sentidos e
configurações subjetivas produzidos no curso da ação até o presente momento, no qual os
40
[...] em cada momento, algumas escolhas possíveis estavam dadas aos agentes, tanto
por seu modo de pensar como pelas condições objetivas a que se viram submetidos e,
em cada momento, as diferentes posições sociais que os agentes ocuparam [...] fizeram
com que seus discursos sobre educação e suas opções tivessem consequências
absolutamente diferentes daquelas que nós, observando o campo após a batalha,
consideraríamos as melhores.
1
Compreendida aqui conforme proposto por Saviani (2013, p. 6) como o “movimento real da educação, orientando
e, mais do que isso, constituindo a própria substância da prática educativa”, provocando, com isso, eco na forma
como se realiza o próprio ato educativo.
2
Redação da Lei nº 9.394, de dezembro de 1996, art. 4º, inciso I, alterado pela Lei nº 12.796, de 2013, prevê a
obrigatoriedade da Educação Básica dos 4 aos 17 anos (BRASIL, 1996).
44
os ideais e os interesses que levaram à estruturação da situação atual. Assim, este subcapítulo
está organizado de forma a levantar os antecedentes históricos relacionados à estruturação da
política educacional brasileira atual e suas repercussões para o exercício da docência no país.
[...] Para as classes governantes uma escola, isto é, um processo de educação separado,
visando a preparar para as tarefas do poder, que são o “pensar” ou o “falar” (isto é, a
política) e o “fazer” a esta inerente (isto é, as armas); para os produtores governados
nenhuma escola inicialmente, mas só um treinamento no trabalho, cujas modalidades,
que foram mostradas por Platão, são destinadas a permanecer imutáveis durante
milênios: observar e imitar a atividade dos adultos no trabalho, vivendo com eles. Para
as classes excluídas e oprimidas, sem arte nem parte, nenhuma escola e nenhum
treinamento, mas, em modo e em graus diferentes, a mesma aculturação que descende
do alto para as classes subalternas.
Será o iluminismo que caracterizará de modo orgânico e explícito este novo modelo
de mentalidade e de cultura, com sua fé no sapere aude e na rasion como critique;
com sua oposição à metafísica e seu vínculo estreitíssimo com a ciência e o seu iter
lógico e experimental. (CAMBI, 1999, p. 198).
3
Comenius nasceu em 28 de março de 1592, na Morávia, e foi criado em uma família protestante seguidora da
Igreja Morva, baseada nas ideias do reformista de Jan Huss. Foi ordenado pastor da Igreja Morava em 1616.
47
universal, princípios estes que permanecem no ideário educacional até a atualidade. Segundo
Cambi (1999), tais ideias se estruturaram em função da organização de um
Tal preceito ressalta a tarefa central que a educação deve assumir na sociedade moderna,
atribuindo a ela o valor de ciência e constituindo, assim, a ideia de uma disciplina autônoma à
filosofia (ideal clássico) e à teologia (ideal medieval).
Manacorda (2006), por sua vez, afirma que tal projeto se enriqueceu com o passar do
tempo, especialmente no que diz respeito à solução de problemas práticos, tais como a
“experimentação concreta das coisas, [...] visando a não somente o pensar e falar, mas também
o agir e negociar” (MANACORDA, 2006, p. 221). Comenius também foi o responsável por
propor “a pesquisa e a valorização de todas as metodologias que hoje seriam chamadas de
ativas” (MANACORDA, 2006, p. 221), além de sugerir uma ampla reforma nas escolas em um
período que se pretendia a obrigatoriedade do ensino elementar na Europa. Segundo Piletti e
Piletti (2012), as ideias de Comenius baseavam-se na perspectiva de tornar a educação
suficientemente barata a ponto de ser possível incluir também os mais pobres no processo de
escolarização elementar, assim, seu foco centrou-se em ensinar muitos, ao mesmo tempo e de
forma eficiente. Para tornar isso possível, Comenius dedicou-se ao desenvolvimento de um
método bastante sistematizado, concebendo o que hoje chamamos de educação tradicional,
caracterizada pela centralidade da figura do professor, o qual é responsável por expor
didaticamente “a matéria aos alunos, que, por sua vez, o escutam e obedecem” (PILETTI;
PILETTI, 2012, p. 78).
Comenius publicou a Didactica Magna (Amsterdã, 1657), obra que compila suas
concepções pedagógicas, sua estrutura e seu método de ensino, fazendo “dele o primeiro
verdadeiro sistematizador do discurso pedagógico, aquele que relaciona organicamente os
aspectos técnicos da formação com uma abrangente reflexão sobre o homem” (CAMBI, 1999,
p. 287). Comenius propôs que a instrução devia ocorrer, prioritariamente, na instituição escolar,
iniciar na mais tenra idade e se estender ao longo da vida, além de atender a toda a população,
sem fazer diferença de sexo ou classe social. Ainda, entendia que os conteúdos cognoscentes
deveriam ser aqueles necessários ao homem, não um saber enciclopédico, mas os fundamentos,
as razões e os fins das coisas mais importantes; estes, por sua vez, deveriam ser estruturados
didaticamente com avanço gradual no nível de aprofundamento e dificuldade, devendo-se
48
assumiu o poder político, infligindo profundas mudanças não só no modo de produção, mas
também nas questões relacionadas ao modo como se vive em sociedade. Nesse contexto,
conforme Manacorda (2006), a escola estatal e o aparato fabril capitalista articularam-se em
seus propósitos e necessidades. Por um lado, muitas crianças foram recrutadas para o trabalho
nas fábricas a fim de colaborar com o sustento de suas famílias. Por outro, o desenvolvimento
tecnológico potencializou o desenvolvimento da ciência e a criação de novos cursos
universitários ou técnicos, como as engenharias. Mesmo assim, grande parte da Europa, durante
os séculos XVIII e XIX, foi se direcionando à universalização do acesso à educação, conquista
obtida mediante muitas lutas, conflitos de interesses, tensões e reinvindicações das classes
produtivas (já cientes do poder de sua mão de obra), associadas à necessidade socioeconômica
daquele momento. Ao final do século XIX, segundo Manacorda (2006), todos os países
europeus já discutiam e legislavam com vistas à universalização do acesso à educação pública.
No entanto, cabe destacar que em Portugal o processo de desenvolvimento da Revolução
Industrial atrasou em virtude de ser dependente da Inglaterra (nação fortemente industrializada
na época). Por tal razão, Portugal, durante o século XVIII, ainda vivia as tensões entre a religião
(hegemonicamente católica) e o racionalismo iluminista. Por interferência de portugueses que
residiam no exterior, como Marquês de Pombal, o país passou a receber influência cultural de
perspectiva iluminista. Segundo Saviani (2013), essas pessoas defendiam, entre outros
aspectos, o desenvolvimento cultural, científico e industrial do império português de forma
independente da Inglaterra e, no que se referia à educação, tais intelectuais propunham a
libertação do domínio Jesuíta, constituindo uma educação a serviço da coroa.
Assim, quando nomeado ministro de Dom José I, Pombal (1759) determinou o
“fechamento dos colégios jesuítas, introduzindo-se as aulas régias a serem mantidas pela coroa”
(SAVIANI, 2013, p. 82), instituindo a educação pública, mas, ainda, com forte viés religioso.
Também, decretou a reforma de estudos menores (estudos primários e secundários, em 1759) e
de estudos maiores (estudos de nível superior, em 1772). A primeira reforma determinou aos
professores a importância do ensino da leitura, da escrita e do contar, das línguas latina, grega
e hebraica, além do ensino da retórica. Ainda, determinava que o método empregado para tais
aprendizagens deveria ser breve, claro e fácil, indo do mais fácil ao mais difícil, baseando-se
na repetição e na memorização. Quanto à retórica, os discípulos deveriam compreender do que
se tratava, mas não deveriam ser instrumentalizados de modo a fazer grandes atos com tais
conhecimentos.
No Brasil Colônia, as aulas régias foram marcadas pela precariedade (condições
materiais insatisfatórias, salários reduzidos e, frequentemente, atrasados aos professores),
51
tornando-se aulas avulsas, sem articulação entre si. Nesse contexto, o ensino religioso voltou a
se destacar, pois as instituições educacionais mais organizadas permaneciam concentradas nos
conventos católicos situados nos grandes centros, que recebiam não apenas postulantes a
padres, mas também filhos da elite oligárquica brasileira com vistas a prepará-los para os
estudos posteriores na Universidade de Coimbra, em Portugal.
Diante dos tensionamentos provenientes da dependência da coroa portuguesa aos
ingleses e das pressões oriundas do império napoleônico, a família real portuguesa chegou ao
Brasil em 1808, fugida da invasão napoleônica, e trouxe a capital da metrópole para este país
por uma questão de necessidade. Segundo Saviani (2013, p. 117), os “dilemas vividos nas
relações entre Portugal e sua principal colônia [o Brasil] introduziram um razoável grau de
complexidade ao processo de transição para o Brasil independente”. Assim, na tentativa de
conciliar a necessidade de reformas liberais resultantes de demandas econômicas e o
pensamento tradicional incorporado à cultura portuguesa por suas origens católicas, deu-se
preferência à monarquia constitucional e uma transição para a independência do Brasil em
1822, sem lutas ou bruscas rupturas.
se modificando a partir das reformas pombalinas, com a abertura de aulas régias, que deveriam
ser ministradas por mulheres, destinadas ao público feminino, abrindo o nicho de mercado do
magistério a esse público, mas ainda de forma bastante limitada.
Conforme Saviani (2013), na assembleia constituinte de 1823, Dom Pedro I destacou a
necessidade de desenvolver uma legislação específica sobre a instrução pública, a fim de se
organizar “um sistema de escolas públicas, segundo um plano comum, a ser implantando em
todo o território do novo Estado” (SAVIANI, 2013, p. 119). Assim surgiu o então chamado
Tratado Completo de Educação da Mocidade Brasileira. Em julho de 1823 foi aprovada a
proposta intitulada Memória de Martim Francisco, que consistia:
[...] num plano amplo e detalhado que previa a organização do conjunto da instrução
pública dividida em três graus: o primeiro grau cuidaria da instrução comum tendo
como objeto as verdades e os conhecimentos úteis e necessários a todos os homens, e
teria a duração de três anos, abrangendo a faixa etária de 9 a 12 anos de idade. O
segundo grau, com duração de seis anos, versaria sobre os estudos básicos referentes
às diversas profissões. E o terceiro grau se destinaria a prover educação científica para
a elite dirigente do país. (SAVIANI, 2013, p. 120).
da função docente) como auxiliares dos professores no ensino de classes numerosas, cabendo
ao docente a função de supervisionar toda a escola, instituindo por essa prática uma formação
em serviço, praticada por crianças maiores (em torno dos 13 anos) às menores, ou seja, uma
atividade não profissionalizada, baseada no “notório” saber.
Em 1834, por meio do Ato Adicional, a incumbência de manter e de gerir as escolas
primárias e secundárias passou a ser dos governos provinciais, o que desconstruiu a ideia de
criar um sistema nacional de instrução. Isso abriu espaço para a criação das primeiras Escolas
Normais (1835 – Niterói/RJ), a fim de resolver o problema da insuficiência de preparo e de
número de professores primários. Cabe destacar, contudo, que as primeiras Escolas Normais se
destinavam à formação de homens para o magistério; a primeira delas a admitir mulheres foi a
da Bahia, em 1843, em um “curso especial” (STAMATTO, 2002).
A reforma de Couto Ferraz para os municípios da Corte, em 1854, adotou o princípio
iluminista da obrigatoriedade do ensino de primeiro grau4, contudo, tal exigência restringia-se
somente a meninos livres maiores de 7 anos. Quanto à formação de professores, Couto Ferraz
era cético a respeito da eficiência das Escolas Normais (alto custo e poucos alunos
matriculados), instituindo, assim, a contratação de professores adjuntos:
Embora tal reforma tenha servido de referência para outras províncias, algumas ações
não foram efetivas, sendo uma delas a substituição da formação de professores primários, por
meio da Escola Normal, pelos professores adjuntos. Segundo Saviani (2013, p. 134), as
“províncias deram sequência ao esforço de criar Escolas Normais, sendo que a própria Escola
Normal de Niterói, fechada por Couto Ferraz em 1849, foi reaberta em 1859”. Diversas Escolas
Normais foram fundadas junto aos Liceus em diferentes províncias, mas o desprestígio da
profissão de professor primário associado à baixa remuneração esvaziaram a procura de homens
por tais cursos, dando espaço para a ocupação das mulheres. Relacionadas a essa questão
estavam as precárias condições de formação inicial das mulheres (visto que as classes eram
separadas por gênero), as quais enfrentavam dificuldades para almejar aproveitamento nos
4
Conforme Saviani (2013, p. 132), a escola primária dividia-se “em duas classes: a primeira compreenderia escolas
de instrução elementar, denominadas escolas de primeiro grau; a segunda corresponderia à instrução primária
superior, ministrada nas escolas de segundo grau”.
54
Liceus (destinados à formação das elites masculinas), restando a elas ingressar no Curso
Normal, o qual associava o ensino secundário com a profissionalização, e, posteriormente, com
a profissão de docente no ensino primário (KULESZA, 1998).
Para Tanuri (2000), a organização dos Cursos Normais era extremamente simples,
contava com um ou dois professores que ministravam todas as disciplinas ao longo dos dois
anos de duração. O currículo, por sua vez, era bastante elementar, “não ultrapassando o nível e
o conteúdo dos estudos primários, acrescido de rudimentar formação pedagógica, está limitado
a uma única disciplina (Pedagogia ou Método de Ensino) e de caráter essencialmente
prescritivo” (TANURI, 2000, p. 65).
Em 1879, com a Reforma de Leôncio de Carvalho, ocorreu, entre outros aspectos, a
regulamentação das Escolas Normais, fixando-se orientações para seu funcionamento e
currículo, que foram se tornando complexas. Ocorreu a processual valorização das Escolas
Normais com vistas ao desenvolvimento quantitativo e qualitativo do ensino primário,
associada à crescente demanda feminina pelo Curso Normal, dadas às questões sociais já
expostas. Assim, gradativamente se deu a separação (inclusive física) dos Cursos Normais e
dos Liceus (reservados para o público masculino). Também corrobora a feminização da
educação da infância a ideia de que esta:
[...] era o prolongamento de seu papel de mãe e da atividade educadora que já exercia
em casa [...]. De um lado, o magistério era a única profissão que conciliava as funções
domésticas da mulher [...]. De outra parte, o magistério feminino apresentava-se como
solução para o problema de mão de obra para a escola primária, pouco procurada pelo
elemento masculino em vista da reduzida remuneração. (TANURI, 2000, p. 66).
Stamatto (2002) aponta que a inserção da mulher no magistério não foi algo tacitamente
aceito pela sociedade, havia nas legislações provinciais inúmeros instrumentos, que não se
aplicavam aos homens, para dificultar o acesso feminino. A autora (2002, p. 6) coloca que
além da boa conduta [...] a professora deveria ter uma certa idade, solicitar
autorização do pai, ou do marido se fosse casada, apresentar certidão de óbito se fosse
viúva e, se separada, justificar sua separação comprovando comportamento honrado..
Trata-se, pois, de um modelo que foi sendo disseminado por todo o país, tendo
conformado a organização pedagógica da escola elementar que se encontra em
vigência, atualmente, nas quatro primeiras séries do que hoje se denomina ensino
fundamental.
Quanto ao significado pedagógico da implantação dos grupos escolares, cumpre
observar que, por um lado, a graduação do ensino levava a uma mais eficiente divisão
do trabalho escolar ao formar classes com alunos de mesmo nível de aprendizagem.
E essa homogeneização do ensino possibilitava um melhor rendimento escolar. Mas,
por outro lado, essa forma de organização conduzia, também, a mais refinados
mecanismos de seleção, com altos padrões e exigência escolar, “determinando
inúmeras e desnecessárias barreiras à continuidade do processo educativo”, o que
acarretava “o acentuado aumento da repetência nas primeiras séries do curso” [...] era
uma escola mais eficiente para o objetivo de seleção e formação das elites. A questão
da educação das massas populares ainda não se colocava. (SAVIANI, 2013, p. 174-
175).
populares, os melhores e os mais capazes, por seleção, devem formar o vértice de uma pirâmide
de base imensa”. Cabe destacar que o Manifesto provocou críticas, especialmente dos
intelectuais afiliados à Igreja Católica, sendo sua principal bandeira o combate à laicização do
ensino, assim, realizaram forte pressão sobre a Assembleia Nacional Constituinte de 1931,
dizendo que “só indicaria aos eleitores católicos os candidatos que subscrevessem as teses”
(SAVIANI, 2013, p. 264) por eles defendidas. A pressão foi tão intensa que obtiveram êxito
em seu intento, de forma a oficializar a colaboração recíproca entre Igreja e Estado na
Constituição de 1934.
Conforme Tanuri (2000), na segunda metade dessa década desencadearam-se
movimentos no Distrito Federal, organizados por Anísio Teixeira, e em São Paulo, os quais
desmembraram o Curso Normal de dois níveis a fim de transformar o nível mais elevado em
Escola de Professores, posteriormente incorporados pelas universidades públicas na forma de
Faculdades de Educação, cujo currículo centrava-se, especialmente, em disciplinas
pedagógicas, configurando, assim, as linhas gerais do que seria a formação de professores até
a implantação da Lei nº 5.692/71. Assim,
refere que a educação ao longo da vida é um dos preceitos fundantes para a educação do século
XXI, visto que essa seria uma necessidade a ser desenvolvida em uma sociedade em constante
transformação, tornando-se indispensável “que cada um aprenda a aprender” (DELORS, 2010,
p. 13). Outro princípio abordado por Delors (2010) é o da igualdade de oportunidades, a fim de
que cada indivíduo tenha a possibilidade de empreender sua educação conforme julgar mais
adequado, cabendo ao professor orientá-lo nesse processo.
Embora esses princípios tenham um cunho positivo e prevejam certo grau de “justiça”,
eles não garantem a equidade de condições para toda a população, especialmente a pertencente
às camadas marginalizadas da sociedade, ainda mais aquelas de países de capitalismo periférico
(entre eles o Brasil). Também trazem em seu bojo os princípios acordados no Consenso de
Washington (1989), que balizou as políticas de estado mundiais, a fim de implantar sistemas de
austeridade, que vieram a direcionar investimentos e medidas nos anos subsequentes. Assim,
conforme Frigotto e Ciavatta (2003), entram na cena educacional global, além da Unesco,
organismos internacionais, tais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial
e o Banco Interamericano de Desenvolvimento. Tais concepções se fazem presentes no cenário
mundial e vêm marcando as reformas educativas desde a década de 1990, aproximando cada
vez mais os princípios educacionais (não explícitos à população) à lógica corporativa do
mercado e à perspectiva das práticas de empreendedorismo individual, o que leva, segundo os
autores (2003, p. 96), a “uma afirmação patológica da competição e do individualismo”.
Outro aspecto importante referente à transposição das leis do mercado para a educação
é a questão da livre concorrência. Para Saviani (2013, p. 440), tal perspectiva entende “aqueles
que ensinam como prestadores de serviços, os que aprendem como clientes e a educação como
produto que pode ser produzido com qualidade variável”. Essa concepção, dentro de uma lógica
que valoriza a iniciativa privada e a redução dos encargos do Estado, abre espaço para a
ampliação de oferta educacional com os mais variados níveis de qualidade e valores, colocando
o mercado como avaliador dessa oferta e regulador da procura, além de estabelecer à União o
papel avaliativo e regulatório limitado em nível nacional, com políticas de ranqueamento. Em
razão disso, é cada vez mais frequente no mercado educacional brasileiro a abertura a
conglomerados econômicos internacionais, cujo objetivo é pautado na lei de mercado, ou seja,
na maximização dos lucros.
Em contrapartida, a partir do final da década de 1980, conquistas resultantes de
tensionamentos sociais nacionais e internacionais se materializaram em formato de lei,
corroborando a ampliação da obrigatoriedade da escolarização, a redução do trabalho infantil,
a universalização do acesso à educação, a atenção aos altos índices de analfabetismo e evasão
66
escolar, bem como a destinação de recursos públicos para investimento na área, que culminaram
em políticas e iniciativas relacionadas a configurar uma educação mais inclusiva, seja destinada
ao público-alvo da Educação Especial, seja às camadas exclusas da escolarização no tempo
certo (Educação de Jovens e Adultos, correção de fluxo idade-série) ou excluídas da
escolarização em razão de condições específicas de vida (Educação para o Campo, Educação
Indígena e Quilombola, Inclusão Social, Educação de trabalhadores, discussões sobre gênero e
preconceito, etc.). Tais ações foram referendadas pela Constituição Federal de 1988 (BRASIL,
1988, documento on-line), que em seu artigo 208, inciso VII, parágrafo 1º declara: “o acesso
ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo”, ou seja, aplicável a qualquer
cidadão brasileiro, independentemente de sua condição. Esses movimentos resultaram em
processos que vêm mobilizando as redes escolares (públicas e privadas), os profissionais da
educação e os cursos de formação de professores a repensar seus princípios, suas teorias e suas
práticas com vistas a efetivar não apenas a universalização do acesso, mas garantir a
permanência e aproveitamento qualificado aos bens culturais promovidos pela educação e o
desenvolvimento do pensamento crítico.
Essas medidas podem ser observadas, em maior ou menor grau, no Estatuto da Criança
e do Adolescente (BRASIL, 1990), nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica
(BRASIL, 2013) e nos Planos Nacionais de Educação (BRASIL, 2001, 2010, 2014), os quais
preveem diretrizes e princípios à educação nacional, além de estabelecer metas relacionadas à
expansão do acesso, permanência e aproveitamento dos estudos escolares, ao respeito à
diversidade, à elevação do nível da formação inicial e continuada de professores, à
implementação de políticas de valorização do magistério e à proteção da criança e do
adolescente. Tais políticas contribuíram para o avanço nas discussões do campo educacional,
culminando em ampliação de perspectivas de acesso aos níveis mais elevados de instrução para
parte da população que, até então, encontrava-se alijada dessa possibilidade.
Consequentemente, o nível cultural médio da população brasileira foi elevado e as taxas de
analfabetismo e evasão escolar foram reduzidas, ampliando-se o acesso a todos os níveis da
Educação Básica e Ensino Superior. Frigotto (2011) refere que a primeira década do século
XXI foi um período importante na ampliação dos investimentos federais em Educação Básica
e Ensino Superior, mesmo que de forma limitada, destacando-se nesse aspecto a criação e
ampliação dos Institutos Federais de Ciência e Tecnologia (IFETs), as políticas de cotas, a
criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos
Profissionais da Educação (Fundeb, o qual incorporou a Educação Infantil e o Ensino Médio)
e a fixação do piso nacional do magistério. Conforme o autor, entretanto, “ampliou-se,
67
[...] cada geração humana compartilha uma mesma cultura. No entanto, cada
indivíduo, grupo ou instituição vive subjetivamente de maneira diferente dentro dessa
cultura, porque as trajetórias históricas e singulares de cada geração são produzidas
subjetivamente. Experiências são produções subjetivas, não um reflexo ou
assimilação de fatos externos, influências ou objetos. A subjetividade é a característica
distintiva do caráter histórico de grupos, instituições e sociedades porque a
subjetividade é a história de cada uma dessas instâncias e o que faz deles diferentes
dentro da mesma cultura.
Por essa razão, o estudo da subjetividade humana aplica-se adequadamente para buscar
compreender como ocorre a constituição subjetiva da docência em professores, esclarecendo o
curso de ação presente em sua historicidade. Dessa forma, essa perspectiva de pesquisa abre
espaço para entender a docência como processo configurado de modo subjetivo em cada
professor, de forma singular, na inter-relação entre a subjetividade social presente nas
comunidades as quais pertencem e de sua constituição subjetiva individual.
Assim, não é possível analisar a docência sem considerar os fatores relacionados à
subjetividade, fator ainda pouco explorado no cenário brasileiro de pesquisa, o que evidencia
uma lacuna importante a ser explorada em estudos em educação, especialmente no momento
histórico atual, marcado por inúmeras incertezas e rupturas. Talvez essa seja uma oportunidade
para se pensar sobre as potencialidades de abertura de espaços reflexivos acerca das implicações
da subjetividade humana na constituição da docência para, então, se repensar as práticas de
ensino e de aprendizagem efetuadas no âmbito da Educação Básica, o qual esta tese pretende
se dedicar.
71
5
Entende-se por escolarização o percurso de educação formal.
72
compõem a experiência humana e, por isso, são vivenciadas de forma integrada e dinâmica
pelas pessoas, constituindo uma unidade vivencial na experiência de vida.
Tacca e González Rey (2008) criticam o modelo de escola centrado no desenvolvimento
dos aspectos cognitivo-intelectuais, organizado em formato único, baseado na ideia de que
“todos são iguais e devem aprender as mesmas coisas, ao mesmo tempo e da mesma forma”
(TACCA; GONZÁLEZ REY, 2008, p. 140). Para os autores, desconsiderar as implicações
subjetivas que um processo de homogeneização pode imprimir em cada indivíduo resulta em
sistemas excludentes, que selecionam os aptos e os inaptos à escolarização.
Por outro lado, na atualidade, torna-se necessário considerar que na escola está presente
uma grande diversidade de modos de ser e de viver a experiência de escolarização, o que
demanda à instituição e ao docente pensar formas diferenciadas de promoção do
desenvolvimento integral dos alunos, de seus aspectos cognitivo-intelectuais e emocionais,
além do aprimoramento de habilidades relacionais exigidas pelo contexto socioeconômico e
histórico em que está inserido, promovendo, para isso, “todo um cenário e contexto que
oportunizam diferentes sugestões e formas de aprender” (TACCA; GONZÁLEZ REY, 2008,
p. 141), valorizando-as. Tacca e González Rey (2008, p. 141) acrescentam que um dos grandes
desafios da escola é justamente “transitar entre a igualdade e a diferença, entre aquilo que
precisa e deve ser igual para todos e entre aquilo que só pode ser visto sob o prisma da
diversidade”, o que demanda à escola, às redes de ensino e ao professor um repensar constante
das suas práticas, um olhar investigativo sobre a realidade que os cerca, de forma a aproximar
as necessidades dos alunos aos objetivos da escola. Para isso, os autores defendem que seria
necessário rever alguns pontos, tais como: a fragmentação do conhecimento em áreas
estanques; a padronização do conhecimento e da forma de instrução; a padronização da
compreensão da pessoa (seja por faixa etária, seja por condição socioeconômica ou por suas
condições de saúde física e mental); a ideia de uma educação voltada à reprodução de conteúdos
e conceitos; e a concepção de uma educação orientada exclusivamente para o desenvolvimento
cognitivo-intelectual do aluno.
Para os autores, a Teoria da Subjetividade permite avançar nessas reflexões,
evidenciando a complexidade do contexto escolar, uma vez que propõe
González Rey (2014) reforça tal perspectiva destacando que a emocionalidade suscitada
pelo processo de escolarização varia de pessoa para pessoa, estando presentes nesse percurso
emoções que emergem a partir do momento atual, mas também relacionadas a outros episódios
de sua história de vida, gerando sentidos subjetivos de diferentes origens em cada um. Assim,
há de se considerar que a forma como o professor medeia o conhecimento incide de diferentes
maneiras em cada aluno, influenciando sua forma de aprender, daí a relevância daquele “que
aprende na complexidade de sua organização subjetiva, pois os sentidos subjetivos que vão se
desenvolvendo na aprendizagem são inseparáveis da complexidade da subjetividade do sujeito”
(GONZÁLEZ REY, 2014, p. 34). Essa abordagem teria por potencialidade, conforme Tacca e
González Rey (2008), livrar muitos alunos de rótulos que lhes foram impostos diante de sua
inabilidade em adaptar-se às demandas da homogeneização dos processos educativos e perceber
as situações de fracasso escolar e processos inclusivos sob uma nova ótica, mais sensível às
diferenças e em consonância com as necessidades da pessoa que aprende.
Madeira-Coelho (2012), por sua vez, propõe uma perspectiva de aprendizagem escolar
e de docência que contemple o princípio da diversidade e o lugar ativo do aluno e do professor,
sendo esse último considerado como pessoa que ensina e que aprende, simultaneamente, em
seu fazer e em sua construção do saber. Para ela, a aprendizagem pode ser entendida como uma
ação singular da pessoa que aprende, na qual estão presentes, além das funções intelectuais e
cognitivas, as “relações estabelecidas, em um sistema simbólico emocional configurado ao
longo” da experiência de vida (MADEIRA-COELHO, 2012, p. 113).
González Rey (2012) ainda afirma que a aprendizagem humana também é uma
produção subjetiva da pessoa que aprende. Nela, as emoções e os processos simbólicos
implicados não são fatores isolados, mas sentidos subjetivos que têm origem nas configurações
subjetivas produzidas a partir das experiências de aprender do indivíduo. Assim, a motivação
para aprender, a cognição e o pensamento reflexivo são entendidos como expressão da
emergência de emocionalidades que marcaram a história da pessoa, de forma a se configurar
de maneira subjetiva em sua personalidade, o que explicaria o porquê do (não) aprender. Para
o autor, o processo de aprender em um contexto escolar reflete uma complexa dinâmica, em
que a
Assim, González Rey (2012) propõe repensar a dinâmica da sala de aula, de forma a pôr
aquele que aprende em uma posição mais ativa, que o convoque à responsabilidade de
estabelecer relações entre o conhecimento e o mundo. Para isso, é essencial que o professor
tenha o papel de mediador desse conhecimento, colocando o aluno na posição de sujeito que
aprende6. Como medidas para se estimular a emergência do sujeito que aprende na escola,
González Rey (2012) propõe: o desenvolvimento de espaços dialógicos responsáveis; a
valorização da criticidade e da exposição de diferentes pontos de vista, incentivando a reflexão
sobre os problemas cotidianos; a “criação de um cenário social participativo na sala de aula, e
a organização das tarefas de ensino de forma provocadora e não acabada, que obrigue os alunos
a pensar e a se posicionar” (GONZÁLEZ REY, 2012, p. 38). Tal dinâmica, para o autor, está
comprometida com o desenvolvimento integral do aluno e com o seu processo de
desenvolvimento subjetivo7.
Bezerra (2016) acrescenta que o professor, além de estar comprometido com o
desenvolvimento integral do aluno, precisa assumir um compromisso intencional e consciente
com a aprendizagem dele, investindo no caráter social e relacional do processo, o que
redimensiona a sua função e o papel da escola. Essa complexa trama dinâmica e relacional,
configurada no espaço da sala de aula e mediada pelo professor, ocasiona o estabelecimento de
vínculos cada vez mais consistentes entre os alunos, os professores e o conhecimento, sendo
essa relação potencialmente geradora de novos sentidos e configurações subjetivas que se
projetam não apenas nas aprendizagens presentes, mas, também, nas futuras, dando, conforme
Scoz, Tacca e Castanho (2012), sentido aos diferentes elementos presentes no contexto escolar.
Para Bezerra (2016), outro importante aspecto sobre esse estreitamento de vínculos relacionais
está na possibilidade de aproximação do professor aos processos de significação de seus alunos,
gerando inteligibilidade sobre os seus processos de aprendizagem. Isso possibilitaria uma
6
González Rey (2012, p. 36-37) refere que o indicador mais relevante para se identificar o sujeito que aprende “é
a forma diferenciada em que ele usa o que aprende ante a situações muito diversas que [...] podem se relacionar
com o aprendido”, favorecendo a “emergência de configurações subjetivas facilitadoras” da aprendizagem.
7
Desenvolvimento subjetivo é o processo pelo qual se alteram configurações subjetivas dominantes do indivíduo,
à medida que sentidos subjetivos geradores de mudanças vêm à tona, o que implicaria modificações na forma
como as pessoas envolvidas entendem, vivem e sentem suas experiências, no caso a escolar (GONZÁLEZ REY;
MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017b).
77
adequação constante da forma como exerce o seu ofício, de modo a contemplar estratégias que
tornem possível alcançar os objetivos de aprendizagem escolar estabelecidos.
Ainda, compreender a escolarização sob tal ponto de vista atribui um caráter educativo
a essa experiência, conforme González Rey (2009b), suscitando a capacidade dos envolvidos
de gerar novas emoções e reflexões, além de estabelecer relações, estimulando-os “a asumir
una posición dentro de un espacio social que le integre a un camino de intercambio, crítica y
reflexión, dentro del cual se desarrolla tanto la persona como el espacio social en cuestión”
(GONZÁLEZ REY, 2009b, p. 17), o que estaria intimamente relacionado com a possibilidade
de os alunos, os professores e, desejavelmente, a comunidade escolar assumirem a posição de
sujeitos que aprendem.
Contudo, para se atingir tal patamar, é necessário pensar a docência (sua constituição,
saberes, práticas e identidade) sob outra perspectiva, aberta à relação, ao estabelecimento de
vínculos saudáveis e ao aprender constante com o outro, para o outro e sobre o outro. A docência
é uma atividade profissional marcada pela relação de interdependência entre o docente e o
discente, na qual um “não existe sem o outro. Docentes e discentes se constituem, se criam e
recriam mutuamente, numa invenção de si que é também uma invenção do outro” (TEIXEIRA,
2007, p. 429). Para Madeira-Coelho (2012, p.113), a matéria básica da docência reside nessa
interatividade, sendo que “essas relações interativas só podem ser compreendidas e explicadas
se considerarmos as configurações subjetivas dos indivíduos que vivem suas relações nesse
contexto social de desenvolvimento que é a escola”. Scoz, Tacca e Castanho (2012)
acrescentam que, nessas dinâmicas relacionais, professores e alunos, além de dividirem o
mesmo ambiente, compartilham-se como pessoas, (re)constituindo-se subjetivamente de forma
mútua, em uma dinâmica subjetiva.
Levando-se em conta tais questões, pode-se dizer que a docência é constituída, entre
outros elementos, por configurações e sentidos subjetivos que subjazem a forma como o
professor a concebe e a exerce. Por tal razão, Madeira-Coelho (2012) afirma que a formação
acadêmica, embora seja uma instância formativa importantíssima, não pode ser considerada a
única, visto que a academia “organiza um conjunto de expectativas e estratégias para o
enfrentamento dos desafios que o professor vai encontrar no início da carreira, mas é no
exercício de sua profissão que vai ocorrer o tornar-se professor” (MADEIRA-COELHO, 2012,
p. 116). Para a autora, a docência se consolida não apenas a partir da aquisição de
conhecimentos teóricos, metodológicos e didáticos, mas também na relação com o ambiente
profissional e na prática reflexiva, de modo que a prática profissional “ao mesmo tempo em que
propicia a aprendizagem continuada, vai conferindo ao profissional da docência sentidos
78
Dessa forma, segundo Bezerra (2016), entende-se que o professor deixaria de ser apenas
um reprodutor do conhecimento escolar e passaria a valorizar a dimensão afetiva-relacional da
docência, de forma a imprimir qualidade, implicação e sentido à experiência escolar do aluno.
Esses investimentos teriam por potencialidade o desenvolvimento de vínculos, cada vez mais
estreitos entre os envolvidos, e o conhecimento, favorecendo a dinâmica de ensino e de
aprendizagem.
Para isso, Tacca e González Rey (2008, p. 160) sugerem que
3 PERCURSO METODOLÓGICO
Dado o objeto de estudo ao qual esta tese pretende se deter (acerca da subjetividade
humana), optou-se pela adesão à Epistemologia Qualitativa como perspectiva de compreensão
de ciência e produção de conhecimento e à Metodologia Construtivo-interpretativa como
método para se produzir tal conhecimento, ambas de autoria de González Rey.
Em razão dessa concomitância, propõe-se pensar o processo de pesquisa não como uma
sequência de etapas estanques, mas como momentos recursivos e fluidos de elaboração.
Seguindo tal lógica, a Metodologia Construtivo-interpretativa organiza esse processo em três
momentos, os quais nomeio como:
1) Escolha dos participantes e construção do cenário social da pesquisa.
2) Trabalho dialógico como perspectiva de atuação no campo.
3) Construção da informação.
A presente tese foi realizada em dois momentos: o primeiro refere-se à produção do
projeto de tese, apropriação teórica e planejamento da etapa seguinte; o segundo refere-se
justamente às etapas citadas acima, ou seja, escolha do participante, construção do cenário
social da pesquisa, trabalho dialógico e construção da informação, com duração total
aproximada de 26 meses.
Além disso, cabe destacar que atualmente as pesquisas realizadas nas áreas das Ciências
Humanas e Sociais encontram-se regidas pelo que é disposto na Resolução nº 510, de 7 de abril
de 2016 (BRASIL, 2016), do Plenário do Conselho Nacional de Saúde, que trata das medidas
éticas aplicáveis aos estudos das referidas áreas do conhecimento. Sendo a educação uma área
afim às Ciências Humanas e Sociais, esta investigação seguiu o recomendado na referida
resolução, especialmente no que diz respeito a concebê-la como processo de reflexão,
promotora de benefícios voltados à sociedade e à academia, mas também no que tange aos
participantes, seus direitos civis, sociais e culturais. Por se tratar de uma pesquisa pautada em
sistemas conversacionais, cujo recurso essencial é a interação dialógica, não implica riscos
maiores do que os existentes na vida cotidiana.
Assim, os procedimentos éticos que foram tomados na presente pesquisa são:
a) sigilo sobre a identidade da participante da pesquisa e/ou a divulgação de dados que
possam, de alguma maneira, identificá-la, incluso informações detalhadas sobre o seu
local de trabalho;
b) garantia de confidencialidade quanto às informações prestadas ao pesquisador;
c) aprovação da participante quanto à publicação das informações prestadas;
d) assentimento da participante da pesquisa por meio de convite expresso verbalmente e
posteriormente via e-mail (etapa já realizada);
e) consentimento da participante via Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE): mesmo a Resolução nº 510 (BRASIL, 2016) não especificando a forma como
deve ser feito, esta pesquisa adotou o TCLE como forma de dar ciência aos participantes
e esclarecer os termos da sua participação, além de especificar a natureza da pesquisa,
sua justificativa, objetivos, métodos e potenciais riscos/benefícios;
f) aprovação da Comissão Científica da Escola de Humanidades da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, a qual definiu não ser necessário submetê-
la ao CEP/CONEP1.
Dada a natureza da pesquisa, seus objetivos e suas implicações epistemológicas,
metodológicas e teóricas, González Rey et al. (2017) citam alguns desafios que o pesquisador
pode enfrentar ao longo de seu trabalho de campo e desenvolvimento teórico:
a) Estabelecimento de vínculo entre o participante e o pesquisador: González Rey e
Mitjáns Martínez (2017c) apontam que esse é um recurso essencial para o bom
1
CEP sigla para Comitê de Ética na Pesquisa, CONEP refere-se à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa,
vinculada ao Ministério da Saúde (Acesso em: http://conselho.saude.gov.br/plataforma-brasil-
conep?view=default).
85
conforme González Rey e Mitjáns Martínez (2017c), tem por potencial eliminar
possíveis barreiras à fluência dos sistemas conversacionais.
É preciso destacar que o próprio González Rey et al. (2017) afirmam, em diversos
pontos de sua obra, que são inúmeros os desafios de se trabalhar com essa perspectiva,
principalmente porque não é possível ter ideia, a priori, de quais resultados serão obtidos em
contato com o campo. Pode-se dizer que trabalhar com essa perspectiva epistemológica,
metodológica e teórica é um ato de coragem e requer muito envolvimento intelectual do
pesquisador.
2
Os nomes citados ao longo desta pesquisa não correspondem aos verdadeiros. Essa medida foi tomada para
preservar a identidade da participante.
3
Modelo disponível no Apêndice II.
88
efetivamente ocorreu. Nas visitas à escola, além da observação de seu trabalho, foi possível
conversar com seus colegas sobre a visão deles a respeito de Sofia. Essas ocasiões foram
registradas como momentos informais da pesquisa, sendo de riquíssima importância para uma
compreensão mais complexa da realidade vivida pela participante. Foram circunstâncias mais
solenes, como aulas, reuniões e conselhos de classe, mas também momentos muito
descontraídos, como pausas para um café, um almoço e até comemorações. Todos as situações
compartilhadas foram de construção de muito conhecimento, sensibilidade e respeito mútuo.
Durante o ano de 2020, porém, a maioria dos contatos foi virtual, em virtude da
emergência pública da pandemia de coronavírus (COVID-19). Mesmo assim, se manteve o
diálogo através do aplicativo WhatsApp (mensagens de texto e de áudio trocadas e de
videochamadas). Foi uma situação bastante desafiadora para todos, momento em que
professores e escolas precisaram se reinventar, o que consumiu boa parte da energia e
disposição dos profissionais da educação. Além disso, foi um período em que muitas pessoas
(o que inclui a pesquisadora) precisaram cuidar da sua própria saúde e da saúde de seus
familiares. Assim, durante o ano de 2020, o processo de construção da informação seguiu um
ritmo mais lento, mas o vínculo que se constituiu entre pesquisadora e participante se
consolidou de tal forma que a relação avançou para além da pesquisa. Hoje, muito mais do que
participante e pesquisadora, nos tornamos amigas, um grato presente desta pesquisa.
A escolha por Sofia como participante desta pesquisa se deu pelo fato de ela
corresponder aos seguintes critérios:
a) pedagoga que atua em Anos Iniciais;
b) profissional com a qual a pesquisadora já havia compartilhado experiências de docência,
ou seja, já tinham sido colegas de trabalho e, por tal razão, conhecia como a participante
exercia essa tarefa;
c) pessoa que exerce a docência com excelência, sendo reconhecida entre seus pares;
d) pessoa que, de forma natural, trabalha bem com os diferentes processos de
aprendizagem;
e) pessoa que percebe a criança como um ser humano integral e contextualizado;
f) profissional que trabalha as aprendizagens que ocorrem na escola como aprendizagens
para a vida, como parte da constituição humana;
89
g) professora reconhecida por seus alunos como pessoa significativa em seus processos de
escolarização;
h) profissional que afirma gostar do que faz, apesar dos desafios inerentes à profissão.
Cabe ressaltar que Sofia foi, entre as profissionais inicialmente consideradas, a única
que atendeu a todos os critérios citados e, por isso, o estudo focou-se nela. Tais características
foram verificadas a partir da convivência com a participante, e, posteriormente, confirmadas
junto a seus colegas de trabalho. Além disso, a pesquisadora conhece Sofia profissionalmente
há mais de dez anos, o que possibilita a constituição de um cenário social da pesquisa ainda
mais consistente, uma vez que já havia um vínculo prévio constituído entre as partes, bem como
uma relação profissional de confiança. Assim, dadas as características do estudo, essa relação
prévia proporcionou a criação de um cenário social favorável à livre expressão da participante
e seu engajamento no processo de pesquisa.
3.3.2 Quem é a professora Sofia? Como ela é percebida em seu local de trabalho?
A escolha pelo nome Sofia partiu da própria participante. Quando questionada sobre por
qual nome gostaria de ser referida na tese, justificou: “Pensei em Sofia. Está ligado ao
significado que quer dizer sabedoria. Não que eu tenha, mas é algo que eu sempre busco”.
Sofia é uma mulher casada, de 49 anos, mãe de uma menina de 20 anos. Ela tem
aproximadamente 23 anos de experiência docente. Sofia é a segunda irmã de seis filhos. Desde
pequena queria ser professora, manifestando isso em muitos momentos ao longo dos encontros,
associando essas memórias a forte emocionalidade e convicção de que fez uma escolha acertada
para sua vida.
Ela trabalha na mesma escola desde 2001, uma escola pública na periferia de Porto
Alegre, reconhecida pela comunidade escolar pela qualidade do ensino e por receber muitos
professores em formação para práticas de estágios, Residência Pedagógica4 e PIBID5. Antes
dessa experiência profissional, trabalhou por três anos como auxiliar administrativa e por quatro
anos como recreacionista em uma escola de educação infantil, na qual iniciou como estagiária
e foi efetivada enquanto cursava o segundo semestre de Pedagogia. Segundo Sofia, ser
professora de Anos Iniciais é:
4
O Programa de Residência Pedagógica é vinculado à CAPES e integra a Política Nacional de Formação de
Professores, tendo por objetivo proporcionar formação a partir da imersão em prática docente para licenciandos.
5
O Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) é um programa do Ministério da Educação
(MEC) que visa à formação de licenciandos.
90
“Parte do que sou. Tentei ser outras coisas, inclusive busquei outras formações, mas acabei me frustrando e
voltando ao desejo inicial de ser professora de Anos Iniciais. Gosto do que faço e sinto-me recompensada. [...]
Acredito que ser professora de Anos Iniciais é uma tarefa de muita responsabilidade, pois participamos das
primeiras experiências dos alunos(as) na educação formal. Por vezes, essas experiências podem ser fundamentais
para a relação que essa criança estabelecerá com o conhecimento e a aprendizagem.” (Sofia)
Quando eu, a pesquisadora, a conheci, Sofia já era professora efetiva na escola em que
hoje trabalha. Era a única professora efetiva nos Anos Iniciais, as demais turmas eram regidas
por professoras com contratos temporários, e trabalhava com um 2º ano bastante desafiador.
Nesse período, Sofia, além de ser professora de sua turma, coordenava os Anos Iniciais e segue
assim até os dias atuais. Ela saiu da sala de aula apenas para cursar mestrado em educação.
Tive a oportunidade de trabalhar com Sofia por alguns anos. Juntas enfrentamos o
grande desafio que era constituir uma identidade para o trabalho em Anos Iniciais naquela
escola, visto que, com a rotatividade de professores, esse processo ficou bastante prejudicado.
Apenas com a entrada de outras três professoras efetivas, quase dois anos depois, é que se
conseguiu maior estabilidade no quadro docente e, efetivamente, iniciou-se um trabalho de
constituição de uma identidade de trabalho em Anos Iniciais na instituição, culminando na
finalização do projeto pedagógico da equipe de Anos Iniciais em 2019, algo pelo qual Sofia
batalhou incansavelmente ao longo de muitos anos.
Sofia é reconhecida pelo grupo de pares e equipe gestora como uma excelente
professora, que constantemente consegue atingir bons resultados, independentemente das
condições de seus alunos, no que se refere ao avanço de aprendizagens escolares e ao
desenvolvimento socioemocional, além do desenvolvimento de outras habilidades, como a
autonomia, a proatividade e a capacidade argumentativa. Também é vista como uma pessoa
que agrega ao grupo e articula esforços em prol do profissionalismo e da busca pelas melhores
condições possíveis de desenvolvimento de todos os alunos, ou seja, uma pessoa que
efetivamente luta dia a dia pela educação pública brasileira.
Tais características foram citadas por suas colegas de trabalho. As conversas surgiram
de forma natural, em momentos bastante informais. Com a anuência de Sofia, expus a alguns
de seus colegas a intenção da pesquisa e eles se dispuseram a fazer depoimentos a respeito de
Sofia e da relação profissional que vinham compartilhando com ela ao longo dos anos de
convivência. Ao todo, foram coletados seis depoimentos, gravados de forma individual, de
colegas de trabalho de diferentes áreas. Além disso, foi possível observar e anotar em diário de
campo como se dava a relação cotidiana entre eles. Para iniciar todas as dinâmicas
91
conversacionais apenas a seguinte questão foi proposta: “Para você, quem é Sofia?”. Na
sequência, são apresentados trechos dessas conversas que se referem às características citadas.
“Sou professora dos Anos Iniciais da escola há mais de 10 anos, ao lado da professora Sofia. Para mim, ela é a
‘cara da equipe’. Com os alunos e com os colegas, sua competência é inquestionável. [...] A Sofi anda pelo
corredor sabendo o nome dos pais, dos alunos e dos colegas. Sabe mais que o nome, sabe o que recém ganhou
um irmão, o que estava doente e o que perdeu o avô. Codinome dela: trabalho. É das que gosta de ser a última a
sair, para ter certeza que janelas estão fechadas e computadores desligados. Uma característica importante é que
a Sofi valoriza a opinião de todos. Nunca toma uma decisão sozinha, sem ter certeza de que ao menos tem a
avaliação de todos e a concordância da maioria. Falo também de uma professora que tem o respeito dos seus
alunos sem gerar medo. A disciplina é conquistada com afeto. [...] Já passamos por situações bastante
desafiadoras [...]. Já brigamos, já choramos e já nos apoiamos muito. Sempre para oferecer o melhor que
podemos para nossos alunos. A Sofi se preocupa com os alunos mesmo quando eles já estão ‘grandes’, brilham
os olhos quando pergunta: ‘Lembra do fulano? Me atendeu numa farmácia e lembrou de mim!’” (Professora
Olívia)
“Nessa etapa de 1º ao 5º ano é fundamental a organização e as ações comuns aos professores para dar unidade
à equipe e tranquilidade às crianças. Nas reuniões de equipe e nas conversas na hora do recreio recebi muita
ajuda da Sofi. Mas acho que a Sofi serviu muito mais de exemplo na forma de dar aula e de falar com as
turmas... Fiquei bem encantada com aquela pedagogia amorosa e firme da Sofi, ensinando comprometimento e
envolvendo os estudantes. [...] A Sofi conhecia muito detalhadamente os alunos, suas formas de aprender e de
interagir com as famílias, sempre com uma palavra para animar e fazer crescer o grupo, sempre gentil com os
colegas. [...] Encontrei na Sofi uma pessoa em quem confiar para fazer o bem, de quem ganhei abraços de apoio
nas horas difíceis [cita alguns momentos desafiadores que viveu]. Lembro-me de ter sido acolhida por ela. Aquilo
me fortaleceu. Não sei explicar. Em vez de ficar magoada [refere-se à situação citada antes], me fortaleci e penso
ter ajudado o estudante. [...] Foi uma experiência grandiosa.” (Professora Joana)
Cabe destacar que Joana, assim como Olívia, ressalta o quanto Sofia conhece seus
alunos, a forma como eles aprendem e se relacionam, e como esse investimento em conhecê-
los vai constituindo sua docência na relação com o outro, ao mesmo tempo que constitui outros
docentes e a identidade da equipe. Além disso, fala de uma postura aberta a aprender do outro,
a acolhê-lo em suas necessidades e dar-lhe o devido suporte, gerando no coletivo uma
emocionalidade que fortalece o grupo e cada um de seus membros. Tais aspectos também
podem ser observados no depoimento de Lúcia (professora residente), que vivenciou diferentes
papéis na comunidade escolar.
“Falar da Sofi é... é um mistério, né!? [...] Eu tive a oportunidade de conhecê-la como mãe enquanto ela foi
professora da minha filha, também em outros momentos enquanto presidente da associação de pais, também
enquanto parte da comunidade e, posteriormente, também como professora residente, estando do lado dela,
aprendendo com ela, né!? Quando eu a ouvia falar que estava preocupada com um aluno, sobre determinadas
coisas, eu tentava entender o que que isso significava [...]. E eu não conseguia dimensionar isso. E eu aprendi
com ela como analisar o aluno, como a gente vai potencializar ele [...]. No sentido de avaliar, de como ele
começou e como ele terminou aquele processo de aprendizagem [...]. Então, a Sofi, para mim, representa a
experiência, representa a grandeza de realmente ter a paciência de ensinar, não só as crianças, mas me ensinar
como ela fez [...]. E realmente eu sou grata por isso. Muito grata! Realmente, né!? Como profissional eu vejo que
ela consegue ter uma força, num sentido de ser firme com a criança, para que ela realmente venha a entender e
a aprender a ter aquela disciplina necessária naquele momento, assim, mas por outro lado ela também sabe
transformar uma situação em aprendizado [...]. Uma situação que, aparentemente, não vai ser muito produtiva,
transformar aquilo em aprendizado. E é muito interessante isso!” (Professora residente Lúcia)
desenvolvimento de seus alunos e demais membros da comunidade educativa e para que eles
atuem ativamente em sua vida, gerando possibilidades de ação. Isso é evidenciado nos
depoimentos pelo fato de Sofia se importar com cada um para além dos muros da escola, da
valorização de todos como seres humanos e da maneira como é relatada a sua atuação
profissional, sobressaindo-se a postura aberta a um diálogo construtivo.
Outro aspecto destacado pelas colegas de Sofia é sua capacidade de promover a
aprendizagem e o desenvolvimento de seus alunos, independentemente das condições
apresentadas por eles. Assim, busquei conversar com uma das professoras da área de Educação
Especial da escola, que também foi professora com contrato temporário nesse local, atuando
nos Anos Iniciais nessa ocasião. Helena (professora de Educação Especial) fala sobre sua
experiência junto a Sofia:
“Eu considero a professora Sofia alguém muito aberta com relação aos processos inclusivos. Alguém muito
preocupada, muito engajada com relação à inclusão dos alunos, não só àqueles que são público-alvo da
Educação Especial, mas todos os alunos, respeitando seus tempos, as singularidades com relação aos
aprendizados, aos processos de ensino e aprendizagem. Entendo que a Sofia sempre se empenha e busca fazer
uma leitura da turma, uma leitura dos sujeitos dessa turma, no sentido de poder ofertar o acesso àqueles que
apresentam singularidades no seu processo de aprendizagem ou que têm alguma especificidade. Ela busca, né,
adaptar materiais, ela busca... reconstituir o planejamento, os objetivos. [...]” (Professora Helena)
Aqui é possível verificar como Sofia vive os diferentes processos de ser e aprender no
ambiente escolar. Assim como exposto na fala de Lúcia e das demais, Helena relata que Sofia
entende as diferenças entre as crianças como oportunidades de aprendizagem e de
desenvolvimento, sugerindo acreditar na capacidade de aprender com o outro,
independentemente de quem são. Os depoimentos sugerem também que Sofia não se limita a
apenas adaptações (curricular, de objetivos ou de atividades) para atender melhor cada criança,
mas se propõe a entender como cada uma aprende. Esse processo, como já citado anteriormente,
passa, no caso de Sofia, pelo estabelecimento de uma relação aprofundada entre professor,
aluno e comunidade educativa. Relação essa marcada na fala de Helena como uma “leitura”,
seja do indivíduo, em sua singularidade, seja da turma como grupo, espaço e tempo de
aprendizagem coletiva e relacional. Assim, pode-se dizer que há aqui uma compreensão mais
complexa do ato educativo, superando a ideia tradicionalmente estabelecida de transmissão de
conhecimentos. Helena ainda relata como foi sua experiência como professora temporária da
escola em Anos Iniciais junto a Sofia:
“É uma professora com a qual eu tive a chance de trabalhar como docência compartilhada e com a qual eu
aprendi muito, né! Eu lembro que eu cheguei sem grandes experiências em Anos Iniciais e, mesmo assim, ela
esteve sempre aberta a ouvir as minhas sugestões, as minhas proposições de planejamento e permitia que eu
me expressasse, enfim... Eu entendo que essa abertura foi fundamental para que se constituísse essa docência
compartilhada, esse processo de docência compartilhada, que é fundamental se a gente vai pensar um processo
94
inclusivo. [...] Além disso, eu a entendo como uma pessoa muito preocupada com os seus compromissos na escola,
sempre muito envolvida com o seu trabalho, tanto dentro de sala de aula quanto com relação aos aspectos
burocráticos do seu trabalho [...].” (Professora Helena)
Nesse trecho, novamente é possível perceber a ação de Sofia para com seus colegas,
sendo capaz de valorizar cada um, independentemente de sua experiência, percebendo o outro
como um indivíduo em constante constituição, em constante desenvolvimento. Também é
possível notar sua capacidade de abrir espaço para que as pessoas (sejam alunos, sejam colegas,
seja a comunidade) se expressem, atuem de forma propositiva e proativa, o que aponta
fortemente um potencial de abertura de espaço para que cada professor se coloque na posição
ativa perante a docência.
Observa-se nos depoimentos que seus colegas citam diferentes aprendizagens
constituídas na relação com Sofia e referem, expressamente, o quanto ela os constituiu como
docentes. Esse aspecto diz respeito ao caráter formativo da relação profissional com a
participante. No caso de Helena, ela reconhece o quanto foi influenciada por Sofia na
constituição de sua docência:
“Eu penso que a Sofia... eu sempre falo isso para ela... que é alguém que de alguma forma me orientou na
docência. Me ensinou muito do que é ser professora. Muitas das coisas que eu aprendi em sala de aula,
principalmente pensando no 5º ano, foi com a Sofia. E não é por acaso que nós dividimos a docência
compartilhada no meu primeiro ano como temporária no colégio e no meu último ano também. Dividimos seis
meses primeiro e depois seis meses com outra turma. E foram duas turmas de segundo ciclo, 4º e 5º anos, mas
foram experiências que eu compreendo como importantíssimas, mesmo que curtas, se a gente for pensar em
espaço de tempo, porque não era uma... não era uma divisão e função, nunca foi assim. Nós conseguíamos
dialogar de fato e construir uma docência pautada no compartilhamento de princípios muito sintônicos (sic),
né!” (Professora Helena)
“Um dos nossos princípios, que era inegociável, era levar em consideração as diferentes formas de aprender.
Isso se expressava nas nossas práticas, em como a gente conseguia equilibrar a atenção voltada para alguns
alunos específicos e a atenção para a turma, os planejamentos adaptados, o lúdico, a brincadeira dentro da sala
de aula e o currículo. Então, eu entendo que a Sofia é uma das minhas inspirações na docência. E penso que o
meu primeiro ano com ela foi imensamente significativo porque foi o meu ingresso nos Anos Iniciais e... foi
naquele momento que eu pude aprender como se constitui uma docência compartilhada na prática, né! Não é
por acaso que hoje, como professora de Educação Especial na escola, Sofia e eu fazemos a articulação em função
de um aluno específico, ela como professora de 5º ano e eu como professora de Educação Especial, e nós
continuamos com a mesma sintonia da docência compartilhada. Temos ideias muito próximas, o diálogo é
constante, as atividades são compartilhadas... Eu entendo que a parceria com a Sofia é muito profícua sempre.”
(Professora Helena)
As características citadas por Helena referem-se a outro aspecto que a professora julga
necessário para se trabalhar com as diferentes formas de ser e de aprender na escola – o trabalho
conjunto dialogado, que une esforços e olhares em prol dos alunos. Essa perspectiva é expressa
no trecho como “docência compartilhada na prática”. Essa forma de atuação, como diz Helena,
pode ser traduzida como um trabalho que busca o equilíbrio entre atender às necessidades dos
alunos, no que se refere às diferentes formas de aprender e viver o espaço escolar, e atender às
necessidades coletivas da turma, tudo isso pautado pelo direito à aprendizagem e ao
desenvolvimento integral de todos.
Também se colheu o depoimento de uma professora recém nomeada a fim de averiguar
se tais percepções a respeito de Sofia eram notadas apenas com o tempo de convivência ou se
era algo rapidamente observado. A professora Heloisa havia sido nomeada há menos de três
meses e pode-se aferir, pelo seu depoimento, as mesmas características citadas anteriormente
por outras colegas, como o comprometimento com sua profissão, a disponibilidade e a abertura
ao diálogo, representadas nos discursos como uma postura humilde para com o outro.
“Bom... então, eu conheci a Sofi quando eu estava no mestrado e ela foi apresentar a dissertação de mestrado
dela e, naquela época, eu percebi já de cara que os interesses, os meus interesses de pesquisa, eram muito
semelhantes aos da Sofi em alguns aspectos e fiquei muito interessada pelo trabalho dela. [...] Então, durante o
concurso, durante o mestrado e, depois, durante o concurso para ser professora da escola, mesmo sem a gente
se conhecer (eu tinha visto a Sofi somente uma vez) já era uma memória muito boa, uma inspiração. Depois,
quando eu ingressei no colégio, ao conhecer a Sofi pessoalmente como colega, eu vi uma pessoa extremamente
acolhedora, uma trabalhadora incansável, ela é uma pessoa muito humilde, ética, justa e amorosa. Sabe, eu...
eu me emociono, assim... porque eu realmente olho para a Sofi e vejo uma grande inspiração como pessoa e
como profissional. Acho ela doce e ao mesmo tempo firme com as suas convicções. Uma pessoa experiente na
área e sempre estudando [...]. Sempre buscando se aprimorar para resolver os problemas que vão surgindo, do
cotidiano da docência. Eu me sinto muito honrada de ser colega da Sofi e, eu estava aqui pensando [...] Nas
memórias que eu tenho dela agora como colega, assim... a Sofi geralmente é a última a sair da sala dos
professores, é a última a ir embora, ela tem uma postura muito humilde nas reuniões e, mesmo exercendo posições
de coordenação, por exemplo, como coordenadora da equipe, ela é extremamente humilde, ela não se coloca em
outro patamar, apesar de cumprir com muita seriedade a função que ela tem. E eu também fico pensando, assim,
que a Sofi é uma pessoa sempre disponível [...] Para conversar, para trocar uma ideia, para ouvir a gente... É
muito bom ser colega da Sofi! [risos] Ela realmente é uma inspiração para mim! Eu olho para ela e penso ‘Bah!
Eu quero, como docente, ser como a Sofi! Do fundo do meu coração!’” [risos] (Professora Heloisa)
96
Com base nos depoimentos anteriores e neste último, é possível ter uma ideia sobre a
compreensão que o grupo de colegas têm a respeito de Sofia. É preciso ressaltar que, durante
os depoimentos, suas colegas se expressavam de forma muito afetiva, transbordando
emocionalidade traduzida sob a forma de admiração, suspiros e sorrisos, tal como se percebe
explicitamente na fala da professora Heloisa. Na narrativa de suas colegas, sempre se destacou
a forma como Sofia lidava com os desafios cotidianos (com amorosidade e com firmeza) e
como ela conduzia seu trabalho, com muito respeito, responsabilidade, comprometimento,
diálogo e humildade.
A partir desses depoimentos é possível entender um pouco sobre quem é Sofia, como
professora de Anos Iniciais, e as razões pelas quais ela foi escolhida como participante desta
pesquisa. Além de confirmarem a validade de Sofia como participante da pesquisa (visto que
seu perfil profissional combina adequadamente com os propósitos do estudo), os relatos
coletados já sugerem alguns caminhos de investigação a respeito dos elementos que constituem
as configurações subjetivas de Sofia a respeito da docência, sendo esses utilizados como
disparadores para o processo dialógico com a participante.
3.3.3 Mas a questão que fica é justamente como se constituiu essa forma de ser docente?
Quando teve origem? Que aspectos foram fundantes dessa maneira de exercer a docência?
Para tentar identificar como essas características foram desenvolvidas ao longo de sua
trajetória como docente naquela escola, conversei com a professora mais antiga do grupo, que
estava em vias de se aposentar na instituição e acompanhou Sofia desde seu estágio na escola,
ou seja, praticamente desde o início da carreira dela. No depoimento da professora Ana, é
possível perceber que algumas das características pertinentes à forma como Sofia exerce sua
docência, já apontadas pelas demais colegas, eram observadas desde seu estágio na instituição.
“Por volta dos anos de 2001 ou 2002, conheci a Sofi no estágio docente realizado na 1ª série aqui na escola. Uma
turma dificílima, com dificuldades e limitações de aprendizagem e de disciplina. Sofia, muito dedicada e
concentrada, conseguiu controlar aquelas crianças agitadíssimas com muita garra e pulso firme, fazendo com
que se engajassem nas atividades propostas, assim como melhorassem os resultados de alfabetização. Fez o
estágio praticamente sozinha em sala de aula, sem a regente de classe, pois, durante esse período, a professora
titular estava envolvida com a coordenação pedagógica da escola, e pouco frequentava a sala de aula de sua
turma. Sofi, extremamente organizada e desafiadora, obteve um bom resultado com sua turma. De 2003 a 2005,
Sofi foi professora com contrato temporário e, em 2007, foi aprovada no concurso para professor efetivo. Sempre
desafiadora, firme em suas propostas e controle de casos difíceis, manifestou qualidades que já havia
evidenciado em seu estágio, entre elas, o interesse em realizar um bom trabalho, preocupação em solucionar as
dificuldades de aprendizagem, trazendo sua percepção e criando estratégias de trabalho, e, se possível, tentando
envolver o grupo de professores que atuavam em sua equipe.” (Professora Ana)
97
“A coerência com a proposta de conteúdos da série e a avaliação que realizava eram claras, assim como sempre
foram criativos os recursos didáticos utilizados para a aprendizagem dos seus alunos. Evidenciava preocupação
em resolver as dificuldades de aprendizagem de cada um, demonstrando interesse, domínio, satisfação e amor
pelo que fazia. Nunca foi de faltar ao trabalho ou de deixar os alunos ou colega professor sem seu apoio, estando
sempre disposta e disponível para fazer com que tudo desse certo na proposta educacional da série em que estive
junto ou próxima, acompanhando o seu trabalho. Como professora de Música, eu sempre senti alegria e prazer
ao atuar com as turmas conduzidas pela Sofi. O trabalho dela refletia na minha sala de aula. Eles [os alunos]
eram organizados, nunca faltava material, [...] evidenciavam o conhecimento daquilo que já havia sido
trabalhado em sala de aula [...]. Senti os reflexos do trabalho de Sofi nas vezes em que atuei no 6º e 7º anos, [...]
a turma dela estava preparada em todos os sentidos, obtendo melhores resultados, isso que as turmas mais difíceis,
geralmente, ficavam sob sua responsabilidade. Estudiosa, criativa e pesquisadora, Sofi foi coerente com seus
princípios na maneira de agir e se envolveu com toda a proposta do colégio, doando-se integralmente como
professora. Assumiu a coordenação de equipe, organizando a proposta pedagógica dos Anos Iniciais, juntamente
com a orientação educacional, os professores de 1º a 5º anos e os especializados, compartilhando, ouvindo e
oportunizando espaço para todos os envolvidos. De 2001 a 2019, praticamente, 19 anos de convivência, só tenho
elogios e agradecimentos pelos desafios, pelos compartilhamentos, pela convivência, pelo respeito e pelo
aprendizado prazeroso junto à Sofia e à equipe.” (Professora Ana)
É importante destacar o quanto o trabalho de Sofia se expande para além de sua sala de
aula. Quando Ana refere que percebia os reflexos do trabalho de Sofia em sua turma e
acrescenta que os alunos eram bem-preparados “em todos os sentidos” isso fala, novamente, a
respeito da forma como Sofia compreende e vive a docência, a aprendizagem e a experiência
escolar, como ações que não se iniciam e não se concluem em sua sala de aula, mas que fazem
parte de algo muito maior e mais complexo, que é a vida de uma pessoa e a identidade de um
coletivo. Ou seja, o ensinar e o aprender na escola não se limitam aos conteúdos escolares, mas
a formas de se constituir humano na relação com o outro.
Também cabe aqui referir que, com base nos depoimentos colhidos junto a suas colegas
de trabalho, especialmente no depoimento de Ana, a docência (em especial a docência em Anos
Iniciais) no caso de Sofia, vem se constituindo antes mesmo de seu estágio curricular. Tornar-
se professora vem se constituindo com base em valores anteriores ao efetivo exercício da
atividade propriamente dita, culminando em uma ação docente carregada de historicidade que
compõe o todo complexo que é o professor em sua ação profissional. Também cabe ressaltar
aqui o papel essencial de uma postura aberta ao diálogo nessa constituição.
Assim, é possível afirmar que, se compararmos a pessoa do professor com a imagem de
um iceberg (Figura 1), nas pesquisas a respeito da docência ao longo dos anos, esse vem sendo
98
tradicionalmente retratado apenas como a ponta do bloco de gelo, ou seja, aquilo que se mostra
de forma explícita aos olhos do observador, como os métodos, a didática e os saberes
constituídos, apresentados em seu discurso ou na observação de sua prática.
A presente pesquisa, por sua vez, no que tange à inovação científica, se propõe a imergir
nas profundezas da água fria para tentar vislumbrar alguns fragmentos daquilo que não é
percebido da superfície, do que não é dito diretamente, do que é sentido, expondo a
complexidade e a seriedade da docência. Para isso, a alternativa viável seria mergulhar na
constituição humana e subjetiva da docência, investigando a trajetória de vida de professores
desde as primeiras experiências como indivíduos em constituição contínua nesse mundo. Trata-
se de uma tarefa de profunda complexidade, compromisso ético com o participante,
desprendimento de ideias preconcebidas, respeito e profundo acolhimento do outro; uma das
tarefas mais difíceis e desafiadoras que já enfrentei na minha vida, não apenas como
pesquisadora.
Atualmente, Sofia trabalha com o 5º ano do Ensino Fundamental. Desde que está
atuando nessa etapa de ensino, os números do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica
(IDEB) da escola em Anos Iniciais vem aumentando, como pode ser observado na Figura 2.
99
Fonte: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep, 2020,
documento on-line).
Em 2019, por exemplo, a escola obteve média superior à média nacional das escolas
privadas na mesma etapa de ensino (Figura 3). Diante do panorama brasileiro da escola pública,
é um excelente resultado, fruto da união de esforços de uma equipe articulada por Sofia.
Quando verifiquei o resultado da escola, mandei uma mensagem para Sofia e ela
prontamente atribuiu os bons índices ao empenho coletivo: “Estou feliz com nosso resultado.
Não que ele represente o todo do nosso trabalho. Mas isso indica que podemos juntar a
6
A identificação da escola foi omitida para que a identidade de Sofia pudesse ser mantida em anonimato. Cabe
destacar que em 2017 Sofia não estava a frente de uma turma de 5º ano da escola, mas designada a ser regente
de uma turma de 4º ano que enfrentava grandes desafios de aprendizagem e socialização. Este foi um dos anos
em que a professora Helena trabalhou junto com Sofia como docência compartilhada.
100
formação cidadã com os conteúdos básicos sem problemas”. Nessa humilde declaração de
Sofia já podemos perceber parte de sua essência e de suas crenças: ela é uma professora que
preza pelo trabalho coletivo e compreende a formação dos alunos e a aprendizagem escolar
como um processo que extrapola os muros da escola, uma formação para a cidadania, para a
vida. Essa é uma das razões pelas quais suas colegas a tem como exemplo e sempre se referem
a ela com muita estima.
Ao longo do semestre em que frequentei a escola, observei a interação dela junto aos
alunos. Sofia é sempre lembrada por eles como uma professora ao mesmo tempo firme e
acolhedora, alguém especial com quem podem contar, independentemente da situação,
servindo-lhes como uma pessoa de referência na instituição, mesmo eles estando em outras
etapas de ensino. Isso se evidenciou nos gestos dos alunos, na forma como a buscavam para
resolver impasses, nas visitas feitas por seus ex-alunos durante os recreios, os quais queriam
lhe contar novidades, mostrar seus desenhos e registros, e também nos diálogos informais que
observei ao longo do segundo semestre de 2019.
A seguir, é interessante destacar alguns exemplos dessas relações estabelecidas por
Sofia na escola e que ilustram a forma como ela vive a docência.
Um dos alunos da turma de Sofia, que teve uma grande evolução ao longo daquele ano
letivo no que se refere ao seu comprometimento com a escola e com o seu processo de
desenvolvimento e aprendizagem, ao concluir o ano, quando questionado como havia sido
aquele período, o que havia aprendido de mais importante, disse expressamente e carregado de
emocionalidade: “Eu me tornei uma pessoa melhor” – não um aluno melhor, que aprendeu
apenas conteúdos e se saiu bem nas avaliações, mas uma pessoa melhor, um ser humano melhor.
Outra aluna, com importantes questões de ansiedade, não quis falar, preferiu se
expressar por meio de um desenho para a professora Sofia. No desenho, que retratava as duas
de mãos dadas e, em suas expressões, a menina parecia muito angustiada, já Sofia tinha um
semblante calmo e acolhedor dizendo que tudo ficaria bem, lhe agradeceu por lhe dar suporte
quando ela precisava, nos momentos de fragilidade. Era uma imagem que verdadeiramente
transbordava emocionalidade e acolhimento. Sofia, por sua vez, guardou o desenho como um
tesouro, algo que lhe arrancou lágrimas de alegria ao recebê-lo.
Outro caso foi o seu encontro com a mãe de um ex-aluno ocasião em que ela referiu as
boas lembranças que tinha do período em que o menino era aluno de Sofia (há
aproximadamente 15 anos). A mãe relatou que sabia que seu filho havia dado “bastante
trabalho”, mas que ambos não esquecem desse período, que as boas lembranças se
sobrepunham às dificuldades. Além disso, percebia-se no semblante da mãe, pessoa humilde
101
que trabalhava na higienização da escola naquele momento, gratidão pelo acolhimento que seu
filho recebeu da professora. Ela também relatou o quanto o menino enfrentou dificuldades ao
longo de sua escolarização, e que se lembrava com carinho do período em que Sofia havia sido
sua professora, pois havia investido nele.
São marcas como essas que Sofia deixa em seus alunos e na comunidade, que ficam
para a vida de cada um que com ela convive e se impregna no ser e no viver os Anos Iniciais
daquela escola, constituindo os docentes das crianças e influenciando o tornar-se professora, o
tornar-se aluno, o tornar-se cidadão.
formais quanto nos informais. Eles também foram importantes para fazer fechamentos e
observar a postura e a dinâmica relacional de Sofia com seus colegas, alunos e comunidade
educativa, criando, assim, um consistente arcabouço de informações interconectadas que
traçaram um panorama bastante complexo a respeito da participante. Além disso, constituíram
uma rica experiência que proporcionou à pesquisadora a possibilidade de estabelecer relações
entre a história de vida narrada por Sofia e sua ação cotidiana.
Durante as experiências informais também foi possível levantar depoimentos de colegas
e de sua filha a respeito de suas compreensões sobre Sofia, o que foi muito útil para traçar linhas
de indicadores a respeito das suas configurações subjetivas no que se refere à docência.
Já os encontros formais compreenderam as experiências dialógicas com Sofia e foram
gravadas em áudio e posteriormente transcritas. Esses momentos se deram ao longo de quatro
encontros, de aproximadamente duas horas cada, os quais buscavam reconstituir a história de
vida da participante a fim de estabelecer relações com os possíveis indicadores que surgiam.
Esses encontros formais eram intercalados com vários momentos informais, ocorrendo
mensalmente.
Também nos encontros formais se buscava verificar a coerência dos indicadores junto
à participante. Esse processo provocou nela inúmeros momentos de (re)elaboração de sua
experiência de vida, além de provocar a emergência de diversos sentidos subjetivos, os quais
foram descritos em paralelo às transcrições da dinâmica conversacional, sob a forma de
anotações a respeito das expressões faciais, silêncios, sorrisos e choro, entre outras reações de
emocionalidade.
Essa articulação de momentos foi de suma importância para uma compreensão mais
complexa e aprofundada do caso, além de permitir a exploração e a articulação de indicadores
oriundos de diversas facetas da vida de Sofia. O texto apresentado nesta tese é, na realidade,
um trabalho de reescrita e reelaboração exaustiva que buscou estabelecer uma coerência
consistente entre os indicadores levantados, uma verdadeira experiência de artesania,
comparável, talvez, com a experiência de esculpir uma imagem em um bloco de mármore.
Foram necessários inúmeros momentos de lapidação e polimento até se chegar a uma lógica
passível de compreensão para o leitor.
Cabe destacar que as escolhas de pesquisa estão de acordo com o preconizado pela
Metodologia Construtiva-interpretativa. A esse respeito, González Rey (2005) entende que a
maioria das questões sociais e dos problemas humanos se expressa por meio da linguagem, seja
de forma direta (expressão verbal) ou indireta (emocionalidade, expressões, silêncios, reações,
103
etc.). Assim, a Metodologia Construtivo-interpretativa elege como via principal ao acesso dos
fenômenos da subjetividade a comunicação humana. O autor entende que:
A comunicação é uma via privilegiada para conhecer as configurações e os processos
de sentido que caracterizam os sujeitos individuais e que permitem conhecer o modo
como as diversas condições objetivas da vida social afetam o homem. Por intermédio
da comunicação, não conhecemos apenas os diferentes processos simbólicos
organizados e recriados nesse processo, estamos tentando conhecer outro nível
diferenciado da produção social, acessível ao conhecimento somente por meio do
estudo diferenciado dos sujeitos que compartilham um evento ou uma condição social.
(GONZÁLEZ REY, 2005, p. 13-14).
7
Por escolha e opções entende-se que são expressões da subjetividade e, por isso, nunca serão totalmente
conscientes.
105
investigador quanto o participante estão implicados nas reflexões e conclusões de forma ativa,
sendo que cabe ao pesquisador provocar o avanço da “conversación sobre las conjeturas que va
desarrollando en el propio curso de la investigación” (GONZÁLEZ REY; MITJÁNS
MARTÍNEZ, 2016, p. 11-12). González Rey (2005) aponta que o objetivo da conversação é
conduzir a pessoa a campos relevantes da experiência vivida nos quais os sentidos e as
configurações subjetivas estudadas estão relacionadas.
Sobre tal dinâmica, os autores afirmam que
[...] instrumentos metodológicos diferentes podem ser usados como recursos para
avançar na profundidade de diálogo durante a pesquisa. Portanto, nesta proposta,
instrumentos nunca resultam em resultados diretos; os instrumentos são indutores
provocantes para as expressões dos participantes. (GONZÁLEZ REY; MITJÁNS
MARTÍNEZ, 2017b, p. 296, tradução nossa).
Assim, os instrumentos podem ser previstos, mas não há como garantir a priori se serão
efetivamente utilizados ou se outros surgirão na interação com o campo. Ou seja, a escolha
prévia é apenas uma possibilidade, um roteiro que pode ou não se efetivar, cujo objetivo é criar
um clima conversacional dinâmico, além de deslocar o participante para novas zonas de sentido
ainda não exploradas, facilitando a expressão sobre aspectos ainda não pensados
espontaneamente, “oferecendo opções de novos momentos de produção de sentidos que
incentivam o desenvolvimento de novas informações, em um processo que tende ao infinito”
(GONZÁLEZ REY, 2005, p. 77).
Assim, foram previstos inicialmente como recursos complementares indutores de
diálogo o questionário, o completamento de frases, a escrita livre e os relatos a partir de fotos
ou desenhos. Durante os encontros formais se fez a proposta de utilização de diferentes
indutores de diálogo, tais como: questões abertas, relatos induzidos de forma indireta por
fotografias que retratavam etapas da vida do ser humano, e registros livres da participante em
uma caderneta. Cabe destacar que a inserção e a efetiva utilização desses indutores foram feitas
a partir da observação sobre o melhor canal de expressão da participante.
Contudo, não foram utilizados os instrumentos completamento de frase e escrita livre,
uma vez que a participante não se engajou nessas propostas, sendo estes descartados ao longo
da pesquisa. Por sua vez, investiu-se mais na convivência informal com a participante em seu
local de trabalho, relatado em diário de campo, de forma a explorar outros canais de
comunicação, como diálogos induzidos por observações do cotidiano – Sofia se sentia mais
confortável para se expressar por meio do diálogo com a pesquisadora. Durante o processo
dialógico estabelecido, considerou-se tanto a expressão verbal quanto a não verbal (como
expressões faciais, pausas, suspiros, lágrimas, sorrisos, gargalhadas, indignação, etc.), e, por
essa razão, esse canal foi priorizado nos encontros formais e informais.
Mesmo assim, os seguintes instrumentos complementares foram utilizados como
indutores de diálogo e reflexão durante o processo de pesquisa.
108
8
No Apêndice III é possível analisar a sequência de imagens utilizadas, as quais remetem a diferentes etapas da
vida da participante, juntamente com a questão aberta proposta.
109
MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017c p. 88). Esse é outro ponto sensível da investigação, uma
constante que exige do pesquisador flexibilidade, disponibilidade para colocar em xeque suas
crenças e convicções e se abrir para o universo do outro, sendo esse considerado pelos autores
como um processo essencial para a produção do modelo teórico.
110
Uma nuvem não sabe por que se move em tal direção. Sente um impulso...
É para este lugar que devo ir agora? Mas o céu sabe os motivos e
desenhos por trás de todas as nuvens. E você também saberá, quando se
erguer o suficiente para ver além dos horizontes.
Richard Bach
1
“Eu aprendi” foi a expressão que mais se escutou de Sofia ao longo dos encontros com a pesquisadora.
111
As hipóteses, conforme González Rey e Mitjáns Martínez (2017c), são entendidas como
processos intelectuais do pesquisador, representando o esforço de buscar integrar indicadores
por meio da especulação e da formulação de significados, a fim de formar caminhos
explicativos do problema de pesquisa. Nessa perspectiva metodológica, a especulação faz parte
do processo de construção teórica do pesquisador e é entendida como:
Essa medida foi tomada a fim de buscar maior conformidade ao proposto por González
Rey e Mitjáns Martínez (2017b). Para os autores, a construção de hipóteses também ocorre ao
longo de todo o processo de pesquisa. Nesse curso, duas ou mais hipóteses contraditórias podem
conviver até o momento em que algum indicador venha a confirmar ou a refutar alguma delas,
construindo um sistema coerente de hipóteses explicativas do problema de pesquisa. Os autores
ainda advertem que a coerência entre as hipóteses é o único critério de legitimidade de um
modelo teórico, por isso a necessidade de se atentar criteriosamente para a sua formulação.
Por fim, os modelos teóricos são entendidos, conforme González Rey e Mitjáns
Martínez (2017b, p. 286, tradução nossa), como “construções, hipóteses, ideias e insights que
regem o caminho seguido pela pesquisa teórica do pesquisador”. Para González Rey (2005),
trata-se de uma síntese teórica2 do processo investigativo, desenvolvida pelo pesquisador, que
expressa a inteligibilidade sobre o campo pesquisado, conferindo legitimidade à pesquisa a
partir da estruturação de núcleos de significado. Essa síntese sempre está relacionada às
escolhas teóricas do pesquisador, além de seus valores e intuições, mas deve sempre estar aberta
às descobertas que surgem no campo empírico, atributo essencial desse modelo metodológico.
Conforme González Rey e Mitjáns Martínez (2017b, p. 286, tradução nossa), a “subjetividade
só é acessível por meio de modelos teóricos” e:
2
Nessa perspectiva, entende-se que “o teórico não se reduz a teorias que constituem fontes de saber preexistentes
em relação ao processo de pesquisa, mas concerne, muito particularmente, aos processos de construção
intelectual que acompanham a pesquisa. O teórico expressa-se em um caminho que tem, em seu centro, a
atividade pensante e construtiva do pesquisador” (GONZÁLEZ REY, 2005, p. 11).
114
Dessa forma, é perceptível que a lógica por trás do estudo das configurações e dos
sentidos subjetivos é aberta ao emergente, pois os indivíduos não estão conscientes dos sentidos
e das configurações subjetivas que perpassam suas ações e decisões e, assim, não têm condições
de os explicitarem diretamente em seu discurso. A subjetividade, conforme os autores
estudados, aparece de forma indireta e, nesse contexto, o modelo teórico é a forma encontrada
para a exposição do conhecimento produzido durante o processo de pesquisa que tem como
objetivo o estudo da subjetividade.
Assim, para buscar explicitar de forma didática o modelo teórico construído ao longo
desta pesquisa, o caso de Sofia será apresentado em duas etapas, descritas a seguir.
A primeira, intitulada “Honrando um legado: a história de Sofia”, se propõe a
reconstituir a história de vida da participante cronologicamente, de forma a explicitar e explicar
o contexto no qual ela está inserida. Objetiva investigar como Sofia vem produzindo sua
subjetividade ao longo do tempo, constituindo significados, crenças, valores e princípios que
se tornaram as bases para a produção de sua configuração subjetiva a respeito da docência,
levando com isso possíveis rotas de investigação. Também tem o intuito de identificar
experiências de vida marcantes que lhe geraram fortes fluxos de emocionalidade e que se
projetam em suas atitudes e escolhas atuais.
A segunda etapa, intitulada “Um mergulho na configuração subjetiva da docência de
Sofia”, por sua vez, se propõe a analisar os elementos constitutivos das configurações subjetivas
de docência, expondo uma síntese hipotética da pesquisa. Destaca-se que tais elementos, na
realidade, se integram de forma dinâmica e recursiva em um desenvolvimento expansivo de
produção subjetiva, sendo este ensaio apenas um retrato estático de um momento da história de
vida de Sofia, mas de grande valor em sua constituição subjetiva. Dessa forma, o texto foi
organizado em torno de eixos de análise que representam núcleos organizativos de
configurações subjetivas, os quais relacionam-se à constituição subjetiva da docência no caso
de Sofia.
115
A história narrada por Sofia fala de uma pessoa e de conflitos, conta sobre uma
subjetividade individual contextualizada na subjetividade social dos espaços e das instituições
que frequenta ou frequentou, as quais lhe possibilitaram alternativas de vida, construção de
valores e princípios que se reorganizam conforme transcorre a experiência da vida. Em dado
momento da dinâmica conversacional, Sofia constata que as instituições das quais fez parte
tinham dupla função: proporcionar-lhe a construção de aprendizagens, de valores e de
princípios essenciais, os quais carrega até hoje; e mostrar-lhe que mesmo as instituições têm
suas fragilidades e limites, são imperfeitas assim como as pessoas que as compõem. Sofia
reconhece, assim, o quanto as instituições sociais a constituem como ser humano na relação
com o mundo, influenciando dialeticamente a forma como as vive e como percebe o mundo ao
seu redor, o que indica a construção de uma configuração subjetiva a respeito do papel das
instituições sociais em sua vida.
Tal constatação pode ser observada, por exemplo, no trecho a seguir, no qual Sofia
percebe o quanto sua família, que em um primeiro momento parecia muito bem estruturada, era
na realidade cheia de imperfeiçoes e contradições. Isso a leva a elaborar essa compreensão
como uma aprendizagem, a qual se manifesta também em sua docência sob a forma como
acolhe as famílias de seus alunos, nas suas imperfeiçoes, na sua realidade, como uma instituição
social de grande valor na vida da crianças, instituições também em contínuo processo de
(re)elaboração.
“[...] superproteger os filhos, é a marca registrada da minha família né... e exigir muito da filha que virou a ilha
também era, que era eu né [riso]... exigiam demais de mim... bom, eu acho que foi isso né... aprender isso!
Aprender também que as famílias são bem imperfeitas, minha família depois eu vi que tava muito imperfeita, né!
Que família que era cheia de problema!” (Sofia)
116
Porém, para se entender a perspectiva de Sofia a respeito da sua forma de ser e de viver
as instituições sociais, entre elas o seu local de trabalho, faz-se necessário conhecer um pouco
de sua história de vida – o que possibilitou mapear alguns elementos de sua historicidade
presentes em sua docência como expressões dessas configurações subjetivas que se
constituíram ao longo de sua vida. Dessa maneira, constituíram-se núcleos organizativos que
orientam a forma como ela vive a sua profissão.
Sofia relata que seus pais se conheceram por meio de sua avó paterna, que trabalhava
no mesmo hospital que sua mãe. Narra que sua mãe ficou órfã muito cedo, que estudou pouco
e que sempre precisou trabalhar para sobreviver.
“O meu pai e a minha mãe se conheceram através da minha avó, mãe do meu pai, a minha vó e a minha mãe
trabalhavam no mesmo hospital [...]. A minha mãe morava ali por volta do Moinhos de Vento, em uma casa
alugada. Ela ficou órfã cedo, 11 anos a minha mãe ficou órfã, a minha mãe sofria muito [...]. Ela é a última de 9
irmãos, então ela sofreu bastante. Minha mãe vem para Porto Alegre para trabalhar, primeiro vai morar com os
irmãos [...] não consegue terminar de estudar, daí tem que vir para Porto Alegre e trabalhar para viver.” (Sofia)
Sofia expressa certo pesar ao relatar a vida pregressa de sua mãe, citando dois pontos
importantes na constituição subjetiva de sua família: o primeiro é o fato de, antes mesmo de
nascer, ser necessário, em seu núcleo familiar, lidar com o luto da perda de entes queridos; o
outro elemento está relacionado à oportunidade de estudar, expressado no trecho pelo fato de
sua mãe ter precisado parar de estudar para sobreviver. Assim, Sofia já nasce em um contexto
em que oportunidades para estudar foram negadas na vida de seus progenitores e isso surge
como um fator bastante significativo na produção subjetiva da participante. A compreensão do
quanto a orfandade da mãe faz parte da subjetividade social da família pode ser averiguada
também no seguinte trecho:
“[...] às vezes eu acho que até hoje ela faz o luto da mãe dela, a gente nunca pôde curtir muito o dia das mães,
sabe... era difícil para ela... a minha mãe... então, para a gente, assim, era aquele momento triste, às vezes tu
queria viver aquele momento legal, dar presente para a mãe, e ela sempre lembrava da mãe dela.” (Sofia)
Indicador O luto constitui uma marca muito significativa na configuração subjetiva social de sua
família, pautando a maneira como tal instituição familiar vive e sente os momentos
Luto compartilhados.
117
Em contrapartida, Sofia expressa certo orgulho de sua avó e de sua mãe serem mulheres
independentes e trabalhadoras, mesmo que as razões estivessem atreladas a necessidade de
sobrevivência delas. De forma indireta, o conflito existente na vida de sua mãe entre a
“oportunidade de estudar” e a “necessidade de sobreviver” produz na constituição subjetiva da
família uma valorização das oportunidades de escolarização de seus descendentes, suportadas
pela luta pela sobrevivência, quebrando, de certa forma, o sofrimento provocado pela orfandade
e pela pobreza. Esse fluxo indica que a oportunidade de estudar vai se constituindo como um
valor socialmente compartilhado na família, com o qual Sofia se identifica e se vincula com
o grupo familiar.
Indicador A oportunidade de estudar constitui-se como um valor que Sofia compartilha com a
sua família. Relaciona-se à história de vida da mãe e da avó paterna, do conflito entre
Oportunidade de a oportunidade de estudar e a necessidade de sobreviver. Nesse contexto, oportunizar
estudar o estudo para seus descendentes ganha um lugar de valor, sendo significado como
possibilidade de mudança nas condições de vida e ascensão social.
Sofia segue seu relato falando de sua irmã mais velha. Afirma que sua mãe não fala
muito sobre o assunto, que não sabe quem é o pai da irmã, mas sabe que a mãe engravidou antes
de se casar com o seu pai e precisou trabalhar para sustentar sozinha ela e a filha. Somente
depois de algum tempo, seus pais se conheceram e se casaram. Sua irmã morou com eles até os
16 anos, quando abandonou os estudos, casou-se e foi morar com o marido, tornando-se uma
dona de casa. Sofia complementa que é aproximadamente sete anos mais nova que sua irmã e
que por esse motivo conviveu pouco com ela na infância (de oito a nove anos). Ainda, ressalta
o vínculo frágil entre sua irmã e sua família nuclear, passando-lhe a impressão de não
pertencimento.
“E a minha irmã mora muito afastada de nós, eu quase não consigo ver ela como alguém da minha família. Assim,
eu a conheço. Óbvio! Nós moramos os meus primeiros anos de vida juntas. Eu morei com ela, mas ela não tem
muito vínculo conosco. Assim, é o que eu lembro... então, minha mãe tem essa gravidez, ela tem essa filha,
trabalha, se mantém, mantém a filha. [...] Eu tenho sete anos e pouco de diferença da minha irmã.” (Sofia)
Pelo trecho narrado por Sofia, é possível perceber o quanto a gravidez precoce de sua
mãe se constitui outra marca dolorosa da família, algo sobre o qual não se fala abertamente.
Inclusive, cabe destacar que, no questionário de sondagem inicial, Sofia omite a existência de
sua irmã mais velha, tal como sua mãe se nega a falar sobre o assunto, o que expressa quanta
emocionalidade o tema gera em sua família, especialmente porque o vínculo familiar não se
fortaleceu com sua irmã. Posteriormente, Sofia fala mais sobre a irmã, relatando que ela se
casou muito cedo e que passou por muitas dificuldades devido às suas escolhas de vida. Por
118
ter convivido pouco tempo com a irmã e pelo fraco vínculo estabelecido com a família nuclear,
Sofia é considerada a irmã mais velha de cinco irmãos (o que exclui sua meia irmã).
Outro fato que se sobressai no relato de Sofia sobre a sua constituição familiar é o peso
das escolhas, expresso no sentimento de pesar quando fala da vida de sua mãe e irmã: do
quanto a gravidez precoce de sua mãe lhe gerou mais dificuldades em sobreviver e do quanto
sua irmã ter saído de casa cedo lhe fez “passar trabalho” e ter menos oportunidades de acesso
ao estudo. Pode-se afirmar que se trata de fatos importantes na vida de Sofia, pois na sequência
das interações dialógicas é possível observar inúmeras vezes que ela refere que escolheu um
caminho diferente da sua mãe ou da sua irmã, pois percebeu que se fizesse as mesmas
escolhas haveria a possibilidade de passar pelo mesmo sofrimento que as duas haviam passado.
Ou seja, diante de situações de escolhas de vida, Sofia, tocada pela emocionalidade emergente,
pela empatia, pela percepção mais ou menos consciente do entorno e ciente das experiências
de vida compartilhadas com ela, pondera suas possibilidades e concebe caminhos alternativos
possíveis de ação viáveis naquele momento.
Indicador O processo de produção subjetiva expresso por Sofia segue um fluxo que se iniciou na
infância e foi se aprimorando ao longo da vida. Esse fluxo é expresso sob a forma
Fluxo de produção como ela faz suas escolhas de vida, sendo elas mais ou menos conscientes, embora
subjetiva haja algum nível de reflexão. Nos relatos de Sofia se identificou o seguinte fluxo:
1. Situação desencadeadora: provoca a emergência de sentidos subjetivos expressos
por Sofia como identificação com o vivido ou sua contestação.
2. Elaboração da realidade – articulam-se em três dimensões:
Sentir: envolve a empatia e as memórias (inconsciente).
Refletir: observar o entorno (mais ou menos consciente) – Quem? O quê? Como?
Ponderar: considerar caminhos de ação possíveis naquele contexto, levando em
conta os recursos de vida produzidos e as aprendizagens construídas.
3. Significação – processo de produção ou reorganização de configuração subjetivas,
o qual articula o que é compreendido com o que é sentido, gerando a abertura de
caminhos alternativos de ação não totalmente conscientes.
119
Sofia, então, segue o relato de sua história de vida colocando que: “[...] aí (sua mãe)
conhece o meu pai. E o meu pai se apaixona por ela e tal, e se casam, né, e demora um tempo
para que a minha mãe engravide de mim” (Sofia). Ela fala do seu nascimento com algum humor
e certa tristeza, pois não foi um bebê planejado:
“Antes de eu nascer, ela (sua mãe) dizia que estava tomando remédio, e ela disse que não parou de tomar remédio,
e ela não sabe como... ela falava que devia ter atrasado alguma coisa... ‘Eu me lembro de ter atrasado, mas
lembro de ter tomado depois’, mas quando ela está com três meses de gravidez, ela está tomando remédio e
descobre que ela está gravida de mim! [sorriso] Então, eu não sou planejada [...] bom... mas eu tô aqui! [risos
altos]” (Sofia)
Sofia nasceu na década de 1970, em um dia chuvoso do mês de abril, no hospital Divina
Providência, em Porto Alegre, distante de onde seus pais viviam. No relato dela, é possível
perceber certa aceitação sobre o fato de não ter sido uma criança planejada, visto que se refere
ao assunto com humor e leveza. Isso pôde ser diretamente aferido quando ela fala que, mesmo
diante da situação de sua concepção, seguiu sua vida, culminando na expressão: “Então, eu não
sou planejada [...] bom..., mas eu tô aqui!” (Sofia), seguida de risadas.
Outra situação referida por Sofia, e que é marcante em sua infância, é o fato de sua
família, durante sua gestação, desejar um filho menino, quando na realidade, nasce Sofia, uma
menina. Quando ela narra o dia do seu nascimento, muda visivelmente de expressão e, embora
tente manter o humor enquanto faz a narrativa, é possível perceber tristeza em seus olhos e um
pouco de ressentimento. Sofia conta a história do dia em que nasceu conforme sua mãe lhe
narra:
“Então.... o meu pai e a minha mãe não falavam muito diretamente, mas eles aguardavam um menino, tá
[ênfase]! Eles aguardavam um menino! [riso] E o que que acontece? Acontece que a minha mãe me conta a
história: que eu nasci e aí ele (seu pai) chega no hospital correndo e pergunta assim “O que que era?” e ele está
todo molhado, ele chegou para levar a sacola, porque ele estava trabalhando, alguém levou a minha mãe [para
o hospital], ou coisa assim. E ele perguntou assim: “Já nasceu?”, “Já!”, “E o que que é?”, “É uma menina!”,
“Ah, tá [expressão de desânimo]! Então depois eu volto para ver ela”. A minha mãe contando a história, porque
ele estava todo molhado e ele foi em casa para tomar banho. Eu nasci no Divina Providência, no bairro Glória,
e ela disse assim, brinca, brincava: “Ah! Não era um menino e tu nem entrou para ver ela!”. Isso me marcava
[expressão de tristeza e ressentimento]!” (Sofia)
É possível inferir pela forma como a história foi narrada que em sua família a situação
é tratada com jocosidade. Porém, Sofia sente com tristeza e algum ressentimento o fato de
não ter atendido à primeira expectativa que sua família lhe depositava, chegando a mudar
o tom de voz ao falar sobre o assunto, expressando algum desânimo, algo que lhe dói, mas de
certa forma aceita como parte de sua história de vida. Esse sentimento emergente revela o
120
quanto não ter atendido à expectativa inicial de sua família lhe marcou, tal como ela mesma
afirmou (“Isso me marcava!”) e confirmou pela sua expressividade – trata-se de um fato que
segue produzindo fluxos intensos de emocionalidade até hoje. Aqui, abre-se um ponto de
reflexão sobre a relação existente do fato de Sofia referir diversas vezes ao longo das dinâmicas
conversacionais se sentir insegura, do quanto acredita no seu íntimo que precisa ser suficiente
em tudo, do quanto se sentia exigida a ser “certinha”, com o fato de não ter sido suficiente nas
primeiras expectativas que lhe foram depositadas. Também depõe sobre essa relação o fato de
Sofia citar ao longo dos seus relatos o quanto lhe incomoda a diferença de tratamento segundo
o gênero da pessoa.
Sofia segue sua narrativa explicando o quanto ter nascido uma menina, contrariando as
expectativas de sua família, marcou sua primeira infância e as fases posteriores. Quando narra
sobre o período da primeira infância, é perceptível, tanto no discurso verbal quanto não verbal,
o quanto ela buscou atender às expectativas de sua família quanto a ter um filho menino,
chegando ao ponto de identificar-se como um menino, o que pode ser observado no seguinte
trecho:
“Eu queria sempre ser um menino, eu vivia de calção, eu adorava jogar bola, eu era um menino. E quando as
pessoas diziam assim “ah, a menininha!”, eu dizia assim “eu sou o machinho do meu pai!”, porque eu aprendi
a dizer isso quando eu era pequenininha. Claro, havia alguns temores na família de que eu não ia ficar, né...
[riso] de que eu não faria uma opção hétero, né [riso]!?” (Sofia)
Indicador Na infância, Sofia sente a necessidade de atender às expectativas familiares que lhe
foram depositadas, provocando a sensação de sentir-se muito exigida, referindo isso a
Atender às uma exigência externa, personificada especialmente na mãe e sua religiosidade. Com
expectativas o passar do tempo, Sofia produz um sentimento de autoexigência que reflete a
depositadas x insegurança sentida frente às altas expectativas que ela mesma se depositava.
Autoexigência Entende-se que ambos os processos são expressões da subjetividade de Sofia que se
relacionam ao fato de ela ter nascido uma menina, contrariando o desejo de seus pais.
Cabe aqui destacar que algumas das exigências depositadas no imaginário de Sofia ou
almejadas por ela referem-se a desejos irreais ou metas inatingíveis, gerando sentimento de
impotência, angústia e insegurança, que se projetam em diferentes esferas da vida dela. A
esse exemplo, cita-se o processo de construção dos pareceres descritivos (avaliação) de seus
alunos. Ela relata, em momentos informais, que sempre ocorre o mesmo: modifica a escrita dos
pareceres até o final do prazo dado pela secretaria da escola, pois sempre está insegura quanto
ao resultado, se eles expressam verdadeiramente a trajetória do aluno. Isso lhe consome muitas
horas de dedicação, algumas noites sem dormir, produzindo sentimento de angústia (visto que
há um prazo para conclusão) e algumas reclamações de seus familiares quanto ao excessivo
tempo fora da escola que a elaboração dos pareceres descritivos lhe consome. Sofia relata que
envia os documentos mesmo eles não estando do jeito que ela queria (meta irreal). Aqui,
salienta-se o quão contraditório é o funcionamento da subjetividade humana, capaz de gerar
fluxos de emoções ao mesmo tempo ambíguos (como exigência e insegurança, satisfação e
angústia, atitude e impotência), mas, mesmo assim, complementares de certa forma, pois
geram desacomodação nas estruturas subjetivas da pessoa. Também, é possível observar o
quanto as emoções produzidas no passado emergem e se fazem presentes no cotidiano de forma
inconsciente.
Sofia conclui a fala sobre sua chegada neste mundo com a seguinte frase: “Então é isso
que eu me lembro da minha chegada nesse mundo... eu sinto assim: uma menina que eles
queriam menino, mas, mesmo assim, eu fui criando o meu caminho lá dentro [da família]”.
Essa afirmação é muito expressiva, visto que define a forma como Sofia vem vivendo sua vida,
“criando” o seu caminho, mesmo que esse seja divergente do socialmente esperado.
Sobre a subjetividade social em que Sofia cresceu, destacam-se os papéis de duas
instituições: a família e a igreja, as quais sempre estiveram muito presentes, produzindo
crenças sobre o ser e o viver no mundo. Segundo Sofia, sua “família é muito religiosa, a
minha mãe muito católica, depois muito evangélica”, seu pai, por sua vez, era mais aberto ao
sincretismo religioso, tipicamente brasileiro. Mesmo diante desse quadro de diversidade
122
religiosa, pessoalizados nas figuras de seu pai e de sua mãe, a configuração subjetiva da
religiosidade familiar estrutura-se de maneira bastante conservadora, alinhando-se ao momento
histórico vivido no Brasil (Ditadura Militar). Essa contextualização social e a historicidade do
casal influenciaram dialeticamente a produção da subjetividade social do núcleo familiar e as
subjetividades individuais dos pais de Sofia. Pode-se dizer que, pelos relatos da participante, a
subjetividade social do contexto vivido por ela é bastante marcada pela diferenciação de
papéis sociais entre homens e mulheres, o que se evidencia no trecho a seguir:
“[...] eu vivi muito intensamente essa questão de viver, assim, de brincadeira de menino porque eu tinha primos
meninos da minha idade: brincar, subir em árvore, correr, andar de bicicleta, jogar bola [nostalgia]... e, também,
participar de brincadeiras de menina, isso não tinha muita diferença para mim. Mas isso era uma coisa que me
marcou. Eu era aquela que assistia, às vezes, jogo de futebol com o meu pai, eu andava de bicicleta na garupa
do meu pai, mas eu fazia muita coisa, assim, eu parecia mesmo um menino...” (Sofia)
Nesse trecho, é possível observar que Sofia, mesmo dizendo que a diferenciação entre
os sexos não era considerada por ela, de forma indireta expressa a crença socialmente
produzida, mas não refletida, da diferenciação de papéis entre homens e mulheres. Trata-se de
uma expressão da configuração da subjetividade social dominante na família, a qual, de
forma tácita, preconiza o comportamento esperado para um sexo e outro. A expressão
“brincadeira de menino” associava-se a jogos e a brincadeiras corporais, tais como subir em
árvore, jogar futebol, correr e andar de bicicleta, atividades pelas quais Sofia tinha grande
apreço em sua infância. Essa crença familiar compartilhada corrobora a compreensão do
indicador que se refere à busca de Sofia por atender às expectativas que lhe eram depositadas
por seus genitores, evidenciada na necessidade implícita que sentia de atender ao desejo
inconsciente de seus pais de ser um menino, refletindo-se, assim, na maneira como vivia sua
infância.
Já as “brincadeiras de meninas” estariam mais ligadas à simulação de tarefas
domésticas ou de maternagem, como brincar de bonecas. Também, conforme relatado por
Sofia, havia um “cuidado” familiar maior com as meninas, como não a deixar ir para a praia
com seus tios que tinham apenas filhos meninos. Sobre esse aspecto, pode ser entendido por
não se expor, não ser uma menina saliente, pela necessidade de manter o recato e a obediência.
Ela refere que se lembra de seu “[...] pai ser mesmo muito cuidadoso comigo. Aquele cuidado,
assim, de não sair para rua [...]” (Sofia), mas, também, um cuidado que era entendido como
“mimo” por seus familiares.
Tal perspectiva vai ao encontro de outra crença presente na subjetividade social
dominante das instituições das quais fazia parte (família e igreja): a de que meninos gozam de
maior liberdade pois seriam criados para serem provedores de suas famílias e as meninas seriam
123
criadas para serem esposas submissas e mães dedicadas ao lar. Sofia relata que na família
sempre se sentiu muito sozinha enquanto menina. Tinha primos meninos com quem brincava
“de coisas de meninos”, mas não tinha contato com outras meninas da mesma idade. Relata que
sua irmã é algo cerca de sete anos mais velha que ela e seus irmãos passaram a nascer quando
ela já tinha 9 anos e, por essa razão, viveu como se fosse filha única por um período. Muitas
vezes, Sofia refere que se sentia “uma ilha” em seu núcleo familiar, o que lhe suscitava
sentimento de solidão. Além disso, relata que sempre foi uma criança com problemas
respiratórios importantes: “[...] uma criança muito debilitada, com questões respiratórias, tudo
que é doença respiratória eu tenho, eu tive, e ainda eu tenho as sequelas até hoje: bronquite,
asma, broncopneumonia [...]” (Sofia). Tais condições a impedia, muitas vezes, de sair para
brincar. Assim, Sofia relata que os livros e a imaginação foram seus maiores companheiros até
entrar na escola – experiências que foram configurando subjetivamente a infância na vida de
Sofia.
“Eu brincava sozinha, eu criava mundos imaginários, eu brincava no meu pátio sozinha, eu sonho ainda que eu
brinco no meu pátio! [...]. Então, eu fui uma criança que brincou muito, que se divertiu muito! E que hoje sente
muita falta [...]. Quando eu estava na infância, Natal, assim, era uma época maravilhosa! Tinha uma porção de
gente, a casa vivia cheia [...]. Então, infância me lembra isso, me lembra festa de aniversário com canudinho... a
família boa, boa no sentido assim de se reunir... de... de... confraternizar, de estar junto! [...] Eu fico feliz quando
eu penso na minha infância! [forte emocionalidade]” (Sofia)
Pode-se observar o quanto, para Sofia, a ideia de infância está ligada ao brincar, à
criatividade e a sentimentos que remetem a se divertir e a viver experiências felizes, mesmo
que sozinha em seu imaginário. No trecho a seguir, por sua vez, é possível perceber como o
brincar e a imaginação criaram um espaço importante de expressividade na vida de Sofia e o
quanto essa configuração subjetiva de infância se projeta na forma como percebe a infância de
seus alunos.
“Eu brincava muito, eu brincava de supermercado, eu montava o supermercado com caixa, com dinheiro, com
notinha, por isso que eu fico pensando ‘as crianças não recortam nada!’, eu recortava, eu tinha... eu fazia
aquilo... eu construía casas... sabe aquelas coisas que a Beatriz [filha da pesquisadora] trouxe aqui, eu fazia
aquilo direto [casinhas com sucata], eu construía casas, eu criava mundos, né [forte emocionalidade]! Sozinha,
sempre muito sozinha!” (Sofia)
Essa perspectiva de infância vai sendo configurada por Sofia como um aspecto marcante
em sua vida, carregado de emocionalidade suscitada por suas memórias. Compreende-se que
Sofia, convocada pelo sentimento de solidão, buscava construir opções viáveis para lidar com
esse sentimento e com as condições vividas, encontrando um caminho alternativo de ação no
mundo por meio da imaginação. Esse processo dá sentido a essa etapa de sua vida, o que indica
a elaboração de uma configuração subjetiva de infância, associada ao brincar, ao experienciar
124
Entretanto, não foram apenas momentos agradáveis que marcaram a infância de Sofia,
como já dito anteriormente, a questão de sua família desejar um filho menino a marcou muito
desde o seu nascimento. Ela refere algumas vezes que sua família não é perfeita e que acredita
que nenhuma o seja. Acredita também que seus pais fizeram o melhor possível em sua criação,
naquele momento, e se a magoaram de alguma forma ao longo do tempo não foi com
intencionalidade. Sobre o desejo de seus pais, em especial de sua mãe, em ter um filho menino,
Sofia relata:
“[...] meu pai era uma pessoa que oscilava muito de humor [...] nessa minha primeira infância a minha mãe tentou
várias vezes engravidar, para tentar ter um filho homem, porque esse era o grande objetivo da vida da minha
mãe, era ter um filho homem, né [riso]! Eu vim, porque vim, mas... o objetivo da minha mãe era ter um filho
homem, a minha mãe teve várias gravidezes, várias! Uma delas o menino nasceu morto... inteirinho... ele morreu
porque passou da hora, meu pai teve que fazer o enterro e tudo [expressão de dor]. Então, assim, hã... tinham
questões financeiras sérias [...]. E a minha mãe tentava engravidar, eu nem sei bem por que ela fazia isso, numa
situação daquela, mas ela tentava engravidar e ela tinha essa situação e perdia. Então eu vivi... eu me lembro
125
assim disso acontecendo... da minha mãe sofrendo de ter perdido o bebê, e a minha mãe frágil emocionalmente.
Hoje, claro, eu sei que isso é uma fragilidade, de estar fazendo o luto, né! E eu no meio daquilo ali, entendeu?
Tentando sobreviver emocionalmente, eu acho, assim [forte emocionalidade em sua expressão]” (Sofia)
Esse trecho corrobora a inteligibilidade do indicador que se refere a busca de Sofia por
atender às expectativas que lhe eram depositadas por seus pais. Se, por um lado, reforça a ideia
de o quanto era importante para a mãe de Sofia ter filhos meninos, mobilizando-a a
concretizar esse desejo mesmo que às custas de mais situações de luto e sofrimento, por outro,
denuncia a relevância da crença na diferenciação de papéis sociais entre os sexos na
subjetividade social em sua família. Tal fluxo fortalece a marca do luto na família e reforça
em Sofia a sensação latente de não se sentir suficiente. Ao relatar esse fato, Sofia fala do
quanto foi difícil lidar com a perda de seus irmãos que não chegaram a nascer, e o quanto toda
a família sofria com esses dois eventos associados: atender a uma expectativa social de ter
filhos meninos versus lidar com o luto da perda dessas crianças. Dessa conjunção de fatores é
possível inferir que não atender à expectativa de ter filhos meninos levaram os pais de Sofia a
um sentimento de impotência ou de incapacidade que é ampliado pelo luto, deflagrando um
processo de sofrimento psíquico que resulta em um nível de fragilidade emocional percebido,
inclusive, por uma criança. Sofia expressa de forma verbal e não verbal o quanto todos sofreram
nesse processo, fala do quão delicada era a situação emocional dos seus pais e do quanto ela
tentava sobreviver no meio de tudo o que se passava. A imaginação era, então, uma espécie de
fuga daquela realidade, que lhe permitia ser apenas uma criança, uma realidade alternativa na
qual poderia ter alguns momentos de felicidade e gozo.
É importante ressaltar uma fala de Sofia: “E eu no meio daquilo ali, entendeu? Tentando
sobreviver emocionalmente”. Sofia, uma menina que ao nascer frustrou as expectativas
familiares de seus pais em ter um filho menino, o que por si só lhe provocava certa insegurança,
precisa enfrentar a solidão e a debilidade da sua saúde, vê-se em meio a uma dinâmica familiar
na qual a dor do luto se fazia constantemente presente. O contexto vivido exige dela lidar com
a finitude da vida e a fragilidade emocional de seus genitores, mobilizando-a, num impulso
de vida, a buscar “sobreviver emocionalmente”. Portanto, configura-se subjetivamente o
enfrentamento das adversidades como uma necessidade de sobrevivência, como algo que a
evoca a manifestar força emocional mesmo que intimamente esteja fragilizada.
Deve-se considerar que essa é uma elaboração presente de Sofia a respeito do seu
passado e, por conseguinte, trata-se da leitura de um adulto a respeito da sua própria infância,
ou seja, uma reconstrução de sua historicidade na qual passado e presente se misturam. Os
elementos apontados até o momento corroboram a produção de inteligibilidade a respeito de
como Sofia configura-se subjetivamente por meio de fluxos dinâmicos de produção subjetiva.
Percebe-se também que o processo de elaboração do vivido vai se reestruturando
progressivamente de forma a acompanhar o nível de desenvolvimento intelectual de Sofia.
Inicialmente, Sofia seguia um fluxo basicamente inconsciente, reconfigurando-se
127
recursivamente de forma a se tornar mais reflexiva, porém, nunca plenamente consciente, visto
que não tem como controlar a emergência da emocionalidade. Por sua vez, a atribuição de
significado à experiência vivida é produzida no encontro dessa elaboração com valores e
princípios que lhe são básicos, constituindo, assim, caminhos subjetivos alternativos de ação
condizentes com sua essência, os quais são manifestados em suas ações e escolhas de vida.
Levando-se em conta os relatos produzidos por suas colegas, apresentados
anteriormente na contextualização de Sofia, percebe-se que ela, no tempo presente e nas
circunstâncias atuais (fase adulta em contexto profissional), manifesta sua ação no mundo, entre
outras maneiras, a partir da provocação ao diálogo, o que produz movimentos dialéticos de
configuração da sua própria subjetividade, da subjetividade de suas colegas e da subjetividade
social que é compartilhada. Nessa provocação dialógica, Sofia busca expor seu ponto de vista,
acolher a perspectiva dos demais e provocar trocas construtivas, criando zonas de
inteligibilidade a respeito do cotidiano vivido no contexto escolar. Assim, recursivamente,
novos fluxos de elaboração se produzem, podendo gerar, também, novas aprendizagens. Isso
pode ser observado no relato das professoras Joana e Helena, as quais narram como Sofia as
acolheu em seu ingresso na escola, valorizando suas experiências, mesmo sendo iniciantes.
Sofia não dava respostas prontas ou ordens diretas, mas, no papel de coordenadora, as
provocava à reflexão, à implicação com a (re)construção do coletivo e à (re)constituição de
uma perspectiva de trabalho coerente e consistente junto às crianças, que, ao mesmo tempo,
as respeitasse como profissionais e levasse em conta as necessidades do grupo.
Cabe destacar que não se trata de um fluxo linear, mas um processo que se organiza de
modo global, tal como uma nuvem carregada de íons e moléculas, mais ou menos estáveis, que
se agrupam e reagrupam de forma integrada, interconectada, produzindo novos íons e
moléculas. Assim, a subjetividade reelabora-se e complexifica-se em um contínuo que tem um
início, mas não tem fim, no qual estão presentes o ontem, o hoje e as possibilidades do amanhã.
É interessante perceber que esse processo, no caso de Sofia, inicia-se antes mesmo do
seu nascimento, uma vez que as crenças e as vivências de seus genitores, de certa forma,
estruturam os desejos depositados no bebê e, de maneira processual, passam a configurar
subjetivamente o espaço que ele irá ocupar no mundo, imprimindo-se na subjetividade da
criança que nasce. A partir desses primeiros contatos efetivos do bebê no mundo, das trocas
que este faz com seus principais cuidadores, ele passa, então, a atuar de forma a criar meios que
lhe possibilite existir, interagir, aprender e se desenvolver na processualidade da experiência
vivida. No caso de Sofia, traços desse fluxo de produção subjetiva podem ser observados nos
relatos da participante desde a mais tenra idade, vindo a desenvolvê-lo ao longo do tempo a
128
partir da experiência de ser e de viver no mundo. É possível identificar que no início de sua
vida Sofia busca de forma mais intensa atender às expectativas de seus progenitores, fase que
corresponde em sua historicidade à infância, uma etapa da vida na qual há maior dependência
biopsicossocial da criança para com seus pais. Nesse momento, Sofia manifesta suas produções
subjetivas por meio de ações, atitudes e comportamentos que buscam atender ao que lhe é
depositado, submetendo-se aos desejos de seus genitores e à configuração subjetiva social
dominante naquela instituição, inclusive, busca atender aos mais irracionais desejos, como se
portar como “o machinho” do seu pai. Essa expressividade também é manifestada sob uma
espécie de retração que a faz se voltar para a sua imaginação, para a construção de um mundo
alternativo de fantasia, a fim de suportar ser e viver naquela realidade sem frustrar ainda mais
sua família. Porém, infere-se que o fluxo de produção subjetiva em Sofia está lá, ativo, agindo
de forma a reconfigurar-se continuamente, desenvolvendo outras estratégias de viver, de ser e
de estar no mundo.
Também, cabe destacar que a emocionalidade relacionada a não atender às expectativas
iniciais de sua família quanto ao sexo emerge ao longo da vida de Sofia, muitas vezes sob a
sensação de insuficiência, elaborada por ela como uma exigência exterior, exercida por sua
mãe, por seu pai ou pelas questões religiosas. É possível perceber que primeiramente a
participante expressa que essa exigência externa teria a ver com a manifestação de uma crença
presente na família relacionada à diferenciação de papéis entre homens e mulheres. Porém,
posteriormente, de forma contraditória a essa primeira leitura, Sofia refere que também se sentia
mais exigida que sua irmã mais velha.
“Eu sempre fui muito exigida, eu acho que eu sempre fui muito mais exigida que todos os outros meus irmãos,
essa é uma leitura que eu tenho, porque eu não podia deixar meu quarto desarrumado, eu não podia deixar o
meu guarda-roupas desarrumado [...] E eu estava lá, vivendo aquela vida e eu era sempre muito exigida... fosse
o que eu fizesse eu tinha que colocar tudo no lugar! Meus irmãos depois de mim, minha irmã... o pouco que eu
lembro... seguido ela casou e foi ter a vida dela... 16 anos... foi muito rápido... parece que eles podem fazer o que
quiserem e não são tão exigidos. Esses dias eu falei para minha mãe ‘obrigada!’. Exigiu muito de mim e eu tô,
onde eu tô! ‘Obrigada!’ E hoje eu vejo os outros meio perdidos no que tão fazendo da vida. Cada um vivendo sua
vida, mas coisas que já eu não faço, porque como eu fui muito exigida eu fiz outras escolhas, bom [...] O que mais
que eu lembro assim... que eu vejo assim... eu com a minha mãe [...] eu tenho boas lembranças com a minha mãe,
mas a minha mãe era exigente demais, né! Então, as minhas lembranças com ela era ela fazendo eu ler, ela
fazendo eu arrumar as coisas, ela me levando à igreja, assim, entendeu...” (Sofia)
Isso leva a pensar no fato de essa exigência externa, expressa por Sofia, na realidade ser
fruto de uma leitura dos fatos carregada de emocionalidade que remete a não atender as
expectativas iniciais de seus genitores, daí a associação com a questão do gênero. Ou seja, uma
produção subjetiva, o que corrobora o entendimento do indicador relacionado à configuração
subjetiva da autoexigência. Pode-se observar nesse último trecho um exemplo de manifestação
129
Virginia: Alguma vez tu te questionou: “Eu não vou dar conta disso”?
Sofia: Geralmente eu faço isso, eu faço isso direto! [ênfase] “Eu acho que eu não vou dar conta!”
[junta uma mão na outra e aperta, expressa tensão] Final de ano, então, é de praxe: “Eu não vou
dar conta das coisas que esse grupo tem que fazer...”, “Eu tenho que fazer... Eu não vou dar conta
dos conteúdos, das aprendizagens...” Sim, muitas e muitas vezes! Também na minha vida
acadêmica né... Eu sempre acho que não vou dar conta...
Virginia: Mas sempre dá conta, né!?
Sofia: Eu dou! Eu acho que eu idealizo demais... Eu acho que eu ponho um ponto longe demais... E
esses dias eu estava pensando assim: “Eu tenho que me cuidar porque eu posso fazer isso com os
alunos, né! Botar longe demais as coisas para eles!”. Eu geralmente não cobro assim eles, mas
talvez o meu jeito de ser possa botar eles, botar muitas exigências neles... Porque esses dias o
<nome de seu aluno> disse para mim: “Prof., eu não acreditei quando tu escreveu”... Não sei o
que eu escrevi ali, não era aquela palavra, era outra... “Prof. tu não erra! [enfatizou o espanto]
Como é que tu [errou], como é que aconteceu?” E eu disse: “<nome do aluno>, não! Se eu passei
essa imagem para ti, tira ela [da cabeça] porque eu erro muito!” [Risada, humor e leveza] Aí
ele disse: “Não, prof. Tu tá sempre certinha!”. E eu disse: “Não, não faz isso comigo!”. Aquilo
mexeu comigo, porque eu não quero estar sempre certinha... Eu tenho um monte de coisa que
eu erro e eu disse: “Não, <nome do aluno>, se eu passei essa ideia para ti eu não sou certinha...
Eu faço várias coisas erradas, todos nós erramos muito!”. Eu fiquei com medo de passar para
eles uma imagem de... dessa perfeição que, primeiro, não existe, né!? E, segundo, é muita coisa
para mim também, é muita responsabilidade de ser muito certinha... E eu não quero que ele veja
nisso o que ele não consegue... Que ele não tem como atingir uma coisa dessas... Eu fiquei muito
preocupada com isso, porque isso acaba gerando até problemas de aprendizagem, né!? Da
relação da criança com aprendizagem... Eu fiquei preocupadíssima com isso, eu confesso para
ti... E vários dias aquilo ficou na minha cabeça, assim... E aí eu tenho insistido: “Vamos lá, eu
errei mesmo!”. Aí eu vou lá e apago, digo que acontece... Aí o <nome de outro aluno> disse
assim: “A professora não é uma máquina!”. Aí eu digo: “Não! A professora não é uma
máquina, é um ser humano, os seres humanos erram!”. Eu tô tentando fazer com que eu traga
uma leveza para eles tirarem essa imagem que eu não gostaria que eles tivessem de mim.
tal nível de exigência em seus alunos. É justamente a empatia que atua nesse caso, tornando
uma conduta inconsciente algo que pode ser refletido, pensado e ponderado, produzindo, assim,
a reconfiguração dos processos subjetivos que resulta na construção de novas possibilidades de
manifestação no mundo. No caso narrado, Sofia busca reconstruir sua imagem perante os seus
alunos de maneira a ensinar na suas práticas o quão imperfeito e incompleto é o ser humano.
Outro aspecto da história de vida de Sofia a ser considerado é sua relação com o mundo
letrado. Ela refere que sempre teve facilidade para aprender e que desde cedo tinha contato com
os livros: “[...] eu tinha facilidade para aprender tudo, [...]eu não lia, mas eu recitava todas as
coisas que eu tinha que recitar [...] letramento, já estava na minha vida” (Sofia). Esse trecho
reforça o indicador relacionado ao valor atribuído à oportunidade de estudar e ao acesso aos
bens culturais. Sofia manifesta indiretamente que compartilhar esse valor com sua família é
significado como uma expressão de vinculação em função de um propósito comum. Os trechos
que seguem corroboram essa compreensão:
“[...] eu me lembro, hã, que o meu pai era sócio do círculo do livro, eu nem sei se isso existe mais isso! [riso]
Então, eu amava! Chegavam aqueles catálogos e a gente... eu já sabia ler, ele comprou alguns livros e a gente
tinha livros ´As Maravilhas do Mundo´, livro sobre Jerusalém, esse eu não li, só vi as figuras, porque era muito
densa a leitura [...]” (Sofia)
“Acho também que o incentivo da minha família. Assim, a gente não pode deixar de mencionar isso! A leitura dos
livros, eu pude até não ter vestidos maravilhosos e sapatos maravilhosos, mas eu tinha livros, eu tive
enciclopédias, eu tive dicionários... inclusive alguns eu encontrei agora na minha limpeza, bem velhinhos! Eu
guardei três livros que o meu pai comprava com muita dificuldade. Então, isso também me incentivou, aquilo
era importante para eles e aquilo se tornou também muito importante para mim. O que significava para eles,
acabou passando para mim.” (Sofia)
Nesses dois trechos, tirados de momento distintos das narrativas de Sofia, ela refere o
quanto sua família, em especial seu pai, valorizava a sua educação. Várias foram as vezes que
Sofia afirma que sua infância foi humilde, por vezes, a família chegou a passar por necessidades
financeiras, mas nunca lhe foi negado o acesso à cultura e à educação. Sofia inclusive refere
diretamente que esse é um valor que lhe foi transmitido por sua família e muito reforçado
pelo vínculo estabelecido com seu pai, construindo, assim, um processo de implicação com tal
valor. Nas palavras da participante, “aquilo era importante para eles e aquilo se tornou também
muito importante para mim”. Ao longo dos momentos compartilhados na escola, percebeu-se
que Sofia vive esse valor na sua prática profissional: seu planejamento, as adaptações
concebidas e as intervenções realizadas por ela em sala de aula expressam a sua preocupação
em criar oportunidades de aprendizagem, desenvolvimento e acesso à cultura para cada um dos
seus alunos e para o grupo como um todo. Isso leva a crer que esse valor se manifesta também
como uma expressão da configuração subjetiva de docência de Sofia.
131
Sobre suas memórias afetivas com o pai, além da relação com os livros, ela narra em
diversas passagens o vínculo de qualidade que foi estabelecido a partir de brincar junto e do
compartilhar momentos singelos do cotidiano. Esses momentos foram narrados sempre com
muito afeto e saudade.
“E eu junto com o meu pai cultivando lá, eu não sei fazer nada de terra, mas eu vivia perto do meu pai e ele
limpando o sitiozinho para deixar as coisas em ordem. Então a gente tinha muitas frutas naquele sítio e plantava
aipim, então eu me lembro eu com o meu pai [...] e eu lá naquele terreno, no meio daquele verde, uma horta
enorme, que nem essa aqui [aponta a horta do colégio], e eu ajudando ele.” (Sofia)
No trecho, Sofia narra como era diferente a relação que tinha com o seu pai da relação
que estabeleceu com sua mãe. Como já mencionado, Sofia sentia-se sempre muito exigida,
pressionada por sua mãe. Já com seu pai, as memórias narradas remetem mais a experiências
cotidianas compartilhadas, como assistir futebol, andar de bicicleta, ler livros, cultivar a horta,
jogar e brincar. Nessas narrativas foi possível identificar muita emocionalidade relacionada a
carinho, afeto e saudade, tal como exposto no trecho que segue.
“Eu amava ir para a escola, gostava muito de brincar ainda, eu gostava muito, eu tive boneca até 12, 13, 14 anos,
eu adorava boneca, gostava muito de brincar, de jogar, jogo de memória... [...] E eu tinha jogo de memória e eu
me lembro que ele [seu pai] comprou um quebra-cabeças de 1500 peças de uma paisagem, provavelmente
europeia, porque eu me lembro que era um castelo belíssimo e a gente se sentava para fazer junto, me lembro
muito dessa coisa! Eu ainda tenho algumas peças, porque a maioria delas se perdeu, e eu enterrei elas, porque
eu não tinha porque guardar elas, peças de... mas [...] aquele quebra-cabeças foi tão significativo, foram tantos
momentos que a gente ficou junto para tentar fazer... e quando eu achei aquelas últimas peças que sobraram e
peguei para fazer, lá no meu quintal, eu fiz um tipo de uma sepultura e enterrei [risos], porque eu não vou ficar
guardando, porque eu não tenho espaço, mas eu também não queria botar fora, então eu botei lá! Então eu me
lembro de brincar muito e aí vem uma parte da minha vida que eu gosto, mas tem umas coisas assim... que aquilo
me definiu, não é que me definiu, mas me ajudou a fazer algumas escolhas.” (Sofia)
Sofia tinha no pai uma referência humana, alguém com quem se aprende a partir do
vínculo, alguém que é doce, mas também é firme e cuidadoso. Nesse trecho é possível perceber
o quanto a relação constituída com seu pai por meio dos momentos compartilhados foi
significativa para Sofia, de tal forma a quase humanizar um objeto que lhe era afetivo: o quebra-
cabeças que montava com ele. Percebe-se aqui a emergência de sentidos subjetivos,
constituídos no passado, projetados em um objeto que lhe provocava uma memória afetiva
evidenciando o valor dado por Sofia a essa relação com o pai e as aprendizagens com ele
constituídas. Isso indica, por sua vez, que, a partir da relação afetuosa constituída entre pai e
filha, Sofia foi produzindo subjetivamente a noção de vínculo de qualidade. Esse processo
passa a atribuir significado a fatos simples e cotidianos que são compartilhados, gerando
nela espaço para que aprendizagens possam ser constituídas. Esse fluxo se projeta na relação
estabelecida com seus alunos, com as famílias e com os colegas de trabalho, além de influenciar
132
a forma como vive a sua docência, ou como já dito anteriormente pela professora residente
Lúcia, Sofia tem a capacidade de “transformar uma situação [qualquer] em aprendizado”.
Outro episódio narrado por Sofia e que colabora com essa ideia se refere à experiência
dela junto à irmã. A participante relata que sua irmã mantinha um vínculo muito frágil com a
família nuclear e que a relação, às vezes, era difícil. A escolha de sua irmã por sair de casa
precocemente foi algo que marcou muito Sofia e sua família, lhe remetendo a sentimentos de
tensão.
“[...] nesse tempo a minha irmã já está vivendo a vida dela, afastada de nós, o marido dela... o companheiro dela
não gostava de nós e coisa e tal, porque a gente tentou... meu pai e minha mãe tentaram impedir que ela ficasse,
que ela casasse muito cedo [com 16 anos], enfim, foi muito dolorido aquilo e o meu pai dizia para mim: “Tu vai
ver uma coisa! Contigo não vai acontecer isso! Tu vai estudar primeiro [ênfase]! Tu não vai casar assim, de
qualquer jeito!”, porque o meu pai não gostou de como as coisas foram encaminhadas, né, mas a relação dela
com o meu pai era muito difícil! [ênfase] Muuuuito difícil! E aí tinha uma série de intervenções que, bom, que
eu não posso nem falar... e eu era muito criança para poder ver, né, toda a dimensão da coisa.” (Sofia)
“Aí a minha mãe começou a ter filhos. Com 9 anos nasce um irmão... depois eu tenho outro irmão... e depois eu
tenho outro irmão... e depois eu tenho outro irmão. De repente eu tenho quatro irmãos! [...] Então, ficou muita
coisa por cima de mim. Aí eu sou de repente a irmã mais velha. Da caçula, da que é mimada, daquela que vive
o seu mundo, fazendo tudo o que gosta, sem muita intervenção de outra pessoa, de repente eu tenho um irmão.
E aí tudo vai para aquele irmão, tudo! O sonho da minha mãe se realizou: ela teve o menino dela! E aí tudo vai
133
para ele. E ele é super mimado... ele é super... enfim, aí ele quebra os meus brinquedos, ele invade o meu quarto,
né [demonstra incômodo ao falar sobre isso], e aí ele invade a minha vida, é muito triste, eu não gostei de viver
isso, sabe!” (Sofia)
Sofia relata o quanto foi doloroso e intenso para ela aquele momento, o quanto se sentiu
sobrecarregada tentando enfrentar os desafios vividos naquele período da vida, até o nascimento
dos irmãos. Além disso, depois da chegada do primeiro irmão, Sofia tem que lidar novamente
com sua ferida inicial, o fato de não ter nascido um menino, visto que, nas palavras dela, o
desejo da sua mãe se cumpriu. Acredita-se que esse fato também contribuiu para o sentimento
de tristeza e desagrado suscitado ao rever tais memórias.
Também, é possível dizer que o nascimento de seus irmãos constituiu uma espécie
de rito de passagem na vida de Sofia. Nas palavras dela, da filha caçula, aquela que era
“mimada”, para uma menina cujo nível de exigência e responsabilidades apenas foi crescendo,
uma menina compelida a amadurecer em um curto período. Essa marca, para Sofia, representa
o fim da sua infância, da passagem de um mundo imaginativo, marcado pelo lúdico, pela
liberdade e pelo brincar, para um momento em que lhe foi depositada uma nova expectativa: o
desejo familiar de maior autonomia e a necessidade de ela assumir outras responsabilidades
para com a casa, os cuidados pessoais e os irmãos. Essa imposição ao amadurecimento
também colaborou para a produção de sentimentos relacionados a sofrimento e contrariedade.
Sofia relata que essa experiência foi tão marcante em sua vida que quando teve sua própria filha
essa memória lhe aflorou e, juntamente, a emocionalidade vivida no passado. Isso, por sua vez,
lhe ajudou na decisão de não ter mais filhos:
“Hoje eu tenho esse sentimento... claro, eu gosto de mais dos meus irmãos [suspiro]... e isso me ajudou a tomar
uma decisão, quando eu queria ter o segundo filho [...] eu disse: “Eu não quero! Não quero! Não vou!”. Eu
tenho certeza de que eu tenho condições de não fazer o que a minha mãe fez, mas eu posso, eu corro um sério
risco de fazer isso! [riso] De repetir esse erro e aí eu não quis. “Não quero! Não quero isso para ela.” Eu não
quis isso para mim, porque a minha mãe começou a me dar tarefas. Eu tinha a tarefa de limpar a casa, claro [...]
porque a minha mãe não dava conta! [ênfase]” (Sofia)
dificuldades financeiras e no casamento, situação que não desejava para si. Além disso, é
possível perceber que o colocar-se no lugar do outro de forma empática desempenha um forte
papel nesse processo, isso se expressa no trecho supracitado por meio da sentença lógica “Eu
não quis isso para mim”, logo “Não quero isso para ela”, constituindo uma decisão refletida,
mas não totalmente consciente.
Na sequência, Sofia associa o nascimento dos irmãos ao caos que virou a rotina familiar,
visto que eram quatro crianças com menos de 4 anos de idade (todos meninos).
“E era fralda de pano! [ênfase] Minha filha! Meu irmão tem trinta e poucos anos, era fralda de pano, não era
assim... então aquela casa era roupa, roupa, roupa, roupa, roupa para lavar, passar todo o dia, porque a minha
mãe passava todo dia roupa, faxina, era tudo engomado, era tudo limpo... a minha casa era hiperlimpa quando
eu era criança, tu entendeu? [expressão de contrariedade] Era humilde, mas era hiperlimpa! A minha mãe tinha
uma coisa de limpeza assim... hiper, hiper, hiper, hiper, hiper, hiper, hiper... daí ela vai tendo filho, filho, filho,
filho e não consegue mais manter. E aí nem as empregadas não ficam, porque ninguém vai ficar com uma pessoa
que tem uma hiperexigência de limpeza, sabe, coisas de crochê super engomadas, não tem... e aí o serviço vai
ficando, quando não tem empregada era eu e ela! Porque eles não conseguem, ela não consegue se manter com
ninguém... [suspiro] E aí fica muito serviço, e muito irmão, e muita coisa! E aí foi um momento difícil da minha
vida! [expressão de tristeza e angústia]” (Sofia)
É notório o fluxo de emocionalidade que emerge quando Sofia relata tais memórias,
evidentemente relacionam-se a sentimentos de angústia, sofrimento, insegurança e muita
exigência, o que corrobora o indicador relacionado à constituição de sua autoexigência. Porém,
o contexto foi importante na constituição do papel da escola na vida da participante. Levando-
se em conta a historicidade de Sofia, a escola entrou na vida dela pouco antes de ganhar seu
primeiro irmão, um momento em que sua família vivia as tristezas e o luto pelos bebês perdidos.
Já após o nascimento do primeiro menino, quando Sofia tinha por volta de 9 anos, em
contraposição ao caos da rotina familiar vivida e a necessidade de agir com maturidade, mesmo
ainda sendo uma criança, Sofia tinha na escola a oportunidade de apenas viver a infância, o
que indica que, na vida dela, a escolarização inicial é configurada de maneira a associá-la à
oportunidade de a criança viver a infância, um local no qual ser apenas uma criança e gozar
de momento felizes era algo permitido.
Indicador A configuração subjetiva da escolarização inicial para Sofia está muito atrelada à
oportunidade de a criança viver a infância a partir da perspectiva lúdica e da promoção
Escolarização inicial de espaços nos quais aprender e se desenvolver são possíveis. Remete à contraposição
entre o que era vivido na escola (significado como lugar de brincar com outras
crianças, espaço em que se poderia ser feliz) e a vida familiar (marcada pelo luto e pela
austeridade).
Isso relaciona-se, na experiência de vida de Sofia, ao fato de poder viver essa etapa
escolar tendo a oportunidade de brincar e fazer amigos da sua idade, contribuindo com a
redução do sentimento de solidão, de ser uma “ilha” entre seus irmãos. Essa perspectiva é
135
corroborada no trecho a seguir, no qual evidencia-se fortes fluxos de sentidos subjetivos quando
Sofia narra a sua experiência escolar:
“Eu curti entrar na escola, porque eu ainda era sozinha, eu tinha 7 anos, eu curti muuuiiiito entrar na escola!
Eu curtia muito a escola, os meus colegas e todas as atividades da escola! Eu amava! [sobre a infância lembra
de] sair, passear, ir para a escola e sair com os meus amigos da escola... Eu não tinha muito amigo na rua
também, porque os meus vizinhos eram todos homens [...] Hááááá [sorriso]... Eu sinto uma coisa assim... uma
coisa assim... uma coisa gostosa assim... uma coisa reconfortante, alegria, né.... e saudade ao mesmo tempo, né!
[...] Então, assim, é uma coisa gostosa! Dá uma nostalgia, dá uma saudade! Mas é uma coisa gostosa! Não sei
nem explicar o que que é! É bom! É bom, sabe! É bom! É gostoso sentir, é bom reviver, sentir essas lembranças
[da infância]!” (Sofia)
“Mas, às vezes, eu tinha vergonha de contar que eu tinha cinco irmãos! [ênfase, como algo que lhe provoca
contrariedade] Eu não podia fazer as coisas com eles [seus colegas], ou eu não podia ir em um projeto, ou em
uma saída de campo, eu tinha que ver se eu tinha condições [financeiras] de ir, porque eu dependia destas
questões de família que até então não fazia parte da minha vida e de repente, bom, agora fazem parte da minha
vida! Acho que não foi uma condição legal que a minha família teve, mas conseguiram fazer, do jeito que eles
conseguiram.” (Sofia)
Indicador Algo que segrega, que exclui a pessoa simplesmente por ela ser quem é, algo que a
aparta pela sua condição biopsicossocial ou em razão de alguma singularidade,
Discriminação provocando em Sofia fluxos de sentidos subjetivos que remetem a emoções dolorosas
vividas e ao sentimento de injustiça. Essa configuração subjetiva se expressa pela
maneira atenta de Sofia se relacionar com o outro e combater práticas de exclusão.
3
Artigo 205 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), define a educação como um direito da criança e um dever
do Estado e da família.
137
Outro elemento que fala a respeito da configuração subjetiva que Sofia elaborou a
respeito da infância é o seu relato sobre o crescer. Quando perguntada sobre quando a
participante percebeu que cresceu, ela faz o seguinte relato:
“Acho que foi quando eu menstruei... [riso] E aí aconteceu uma coisa muito estranha, eu tinha 13 anos, 14... e eu
não queria crescer! Porque eu imaginei assim: “Puxa, eu acho que meus pais...”, eu tinha isso comigo, eu nunca
contava para eles, eu tinha a impressão de que, se eu crescesse, meus pais não iriam gostar mais de mim,
mesmo! Não sei por que, eu achava que que eles não iram mais gostar de mim! Eu ainda não consegui entender
por que eu pensava isso, mas eu pensava fortemente nisso, né... [postura reflexiva] E eu não queria crescer de
jeito nenhum! Eu queria ficar ainda mais tempo criança, mas eu não tinha como segurar! E foi outro momento
difícil para mim, porque o meu pai começa a tomar outros cuidados comigo, entendeu! Eu já sou uma moça!
Então o meu short teve que aumentar [risos]! Eu não podia viver andando de bicicleta com os meus primos! E aí
a minha vida começou a ser um pouquinho... é chato tu descobrir que tu é uma menina, uma moça, e daí tu não
vai poder... naquela época, naquela leitura do meu pai, que hoje, claro, a gente contesta isso... eu tinha que viver
uma vida diferente [ênfase]... sentar diferente [ênfase]... ter uma moral diferente [ênfase]... um cuidado comigo
diferente [ênfase]... e aí parece que as coisas perderam um pouquinho a graça, assim... entendeu! Da liberdade
de ser criança! E por isso eu não queria crescer! Mas eu tive que crescer, né! [pesar no tom de voz e expressão]”
(Sofia)
Por esse relato, pode-se compreender que ela, a menina que era “o machinho” de seu
pai, quando convocada biologicamente a crescer (tornar-se púbere), evidenciado pelos traços
de seu corpo, efetivamente não era um menino. Emergem sentimentos que, segundo o relato
dela, estariam atrelados ao medo de não ser aceita, acolhida ou amada por seus pais, visto que
não corresponderia mais à expectativa irreal de ser um menino. Em contrapartida, evidencia-se
nesse discurso crenças familiares, as quais reforçam as distinções dos papéis sociais de homens
e de mulheres, expressas delicadamente por Sofia como “outros cuidados” que a família tinha
para consigo. Esse fluxo reforça em Sofia o sentimento de ser discriminada em seu seio familiar,
corroborando, assim, a construção da configuração subjetiva da discriminação.
Esse contexto que Sofia viveu fala de crenças nas quais as meninas precisavam ser mais
delicadas, recatadas e preservadas do convívio social para o futuro casamento e a submissão ao
marido. Foram inúmeras as vezes que a participante mencionou, direta ou indiretamente,
expressões como “de onde eu vim, mulher era criada para casar” e que se esperava um
comportamento submisso das meninas, primeiro aos seus genitores, depois ao seu marido. Essa
experiência lhe provocou significar o crescer como cerceamento da liberdade e da
expressividade, em contraposição a sua compreensão de infância, período fortemente associado
à liberdade, à expressividade e à diversão. Desses conflitos internos suscitam o sentimento de
não querer crescer, de querer que essa liberdade de ser criança perdure, além do medo de que
acontecesse consigo o mesmo que aconteceu com sua irmã, ou seja, o afastamento da sua
família nuclear.
Outra explicação possível para o período de crescimento ter sido uma etapa difícil na
vida de Sofia está no contexto familiar que estava vivendo. Nos conflitos familiares pertinentes
138
à relação entre seus pais e sua irmã, acrescentando-se a isso o nascimento de seus irmãos em
uma sequência de poucos anos, período que coincide também com sua entrada na puberdade.
Assim, foram diferentes fatos que a afetaram emocionalmente, gerando esse sentimento de
angústia, de insuficiência, de grande autoexigência e de fragilidade.
Outro exemplo desse processo de conflito interno em Sofia se expõe no excerto abaixo:
“Mas assim, era meio disfuncional [sua família]. Era eu grande e aquele monte de criança pequena, tu entende?
[ênfase] E o meu pai, meio que me controlando, meio que eu não podia fazer quase nada! Eu tinha muita
obrigação... eu tinha muito compromisso com meus irmãos... eu tinha que ser... eu tinha que ter... Eu tinha que
ser muito certinha! Em um momento que tu não dá para ser certinha, é exatamente para fazer tudo erradinho
[risos]! Que é a fase da adolescência... Eu acho que para mim foi uma fase, uma fase dura. Eu tive vários atritos
com o meu pai nessa época... eu me lembro que acontecia uma coisa assim: ele falava e aí eu dizia para ele como
é que eu pensava, e aí ele falava de novo e eu dizia: “Bom, então a gente pensa diferente sobre isso” e ele não
aceitava. Ele não chegava a me agredir, mas ele não aceitava! [tom de mágoa]” (Sofia)
Sofia fala sobre a grande mudança pela qual passou quando se viu inevitavelmente uma
adolescente. Da opressão sentida por sentir-se cobrada por sua família em ser muito “certinha”
quando na realidade sentia que precisava ser “erradinha”, que precisava constituir sua própria
subjetividade e fazer suas próprias escolhas de vida. Esse conflito tem origem na necessidade
que a participante sentia de atender às expectativas que lhe foram depositadas por seus pais,
mesmo que se sentisse muito exigida ou pressionada, o que corrobora a construção do indicador
relacionado à produção subjetiva da autoexigência.
Esse trecho exprime bem como a produção subjetiva se manifesta em Sofia. Ou seja,
diante das imposições familiares quanto a comportamento e conduta esperados para uma
menina, segundo as crenças familiares, emergiram fluxos emocionais relacionados à
inconformidade, o que é bastante típico nessa etapa da vida, gerando, assim, conflitos internos
e com seus genitores. Por sua vez, a participante considerava o contexto familiar, as
expectativas que lhe eram depositadas, e percebia que sua família não era tão “certinha” como
impunham que ela fosse, expondo, dessa maneira, as contradições inerentes às instituições
humanas. Essa percepção chamava a atenção de seu senso crítico lhe provocando a contestar
a situação vivida. Porém, a empatia para com sua família e, especialmente, o forte vínculo
afetivo constituído com seu pai, a fazia entrar em um conflito interno entre atender às
expectativas depositadas ou atender ao seu senso crítico. Esse processo, por sua vez, a
impulsiona a refletir e buscar caminhos alternativos que conciliassem os dois aspectos, mas
explorando brechas que lhe possibilitavam flexibilizar as normas de conduta exigidas por sua
família. Trata-se de um fluxo que se expressava nas tentativas de estabelecer diálogo com seu
pai, indicando a configuração de um traço da subjetividade de Sofia que a leva propor uma
espécie de conciliação dialógica frente aos conflitos cotidianos.
139
Indicador Trata-se de uma característica de Sofia que provoca nela um movimento de busca por
constituir um espaço de conciliação frente a um dado conflito, utilizando para isso a
Conciliação provocação dialógica entre os envolvidos. Na constituição do espaço de conciliação
dialógica dialógica se fazem presentes o respeito (que envolve vínculo de qualidade e empatia),
o senso crítico (que estabelece relações entre o discurso e o vivido) e a reflexão. Por
sua vez, provoca mobilidade de pensamento e abertura para que o desenvolvimento e
a aprendizagem aconteçam. Remete à adolescência, por meio do conflito interno
provocado entre atender às expectativas familiares que lhe eram depositadas e a
constituição de sua subjetividade.
“E aí vem os meninos [seus irmãos], e vão crescendo, e aí ele [seu pai] leva os meus irmãos para tudo que é
lugar! Meus irmãos podem ir para praia com os amigos, ou com a minhas tias, ou com os meus primos... eu não
posso, tá! [ênfase com ressentimento] Hãããã... o porquê eu não sei! Porque eu tinha que ajudar a minha mãe...
ou porque ‘eu não vou mandar essa guria para lá, tem um monte de, de primo lá... no meio de menino... como é
que ela vai para lá?’. [faz a voz como se fosse seu pai falando] Então, era muito selecionado aonde eu ia e com
140
quem eu ia. Nessa infância, quando eu estava me dando conta que eu cresci... pré-adolescente e início da fase
adulta, essa fase foi bem difícil, assim, para mim... De ver a vida acontecer mais para os outros do que para
mim... [sentimento de tristeza] Mas aí eu dava as minhas escapulidas... porque eu estava no grupo da igreja, e
eu viajava com o grupo da igreja, já que com a igreja era a possibilidade, né! Então, eu fui para muitos lugares...
era a minha alternativa! Era a minha válvula de escape! Então eu viajei para vários lugares, eu cantava, eu
conheci muita gente diferente... [pensativa e alegre]” (Sofia)
Aqui é possível perceber, tanto pelo discurso de Sofia quanto pela emocionalidade
suscitada, o quanto se sentir discriminada a mobiliza, corroborando a produção da
configuração subjetiva da discriminação. Porém, novamente, não assume uma postura passiva,
que simplesmente acata de forma submissa. Bem pelo contrário, Sofia age de forma a produzir
caminhos subjetivos alternativos, um processo pelo qual elabora a realidade, considera seus
limites sociais e busca ativamente estratégias de ação diante da realidade imposta,
ressignificando e explorando possibilidades até então impensadas, o que corrobora a
compreensão do indicador relacionado à produção de caminhos subjetivos alternativos.
No processo aqui descrito, também é possível perceber a ação do mecanismo de
produção subjetiva de Sofia exposto anteriormente. Porém, se comparado ao que Sofia fazia
durante a infância, percebemos uma modificação na forma como ela age no mundo:
inicialmente se fechava em sua imaginação e significava o vivido a partir do brincar de faz de
conta, agora, já adolescente, Sofia se abre para o mundo, a fim de enfrentar a realidade, as
situações adversas, com as ferramentas que possui, explorando as fronteiras do viável. Como
suas possibilidades de ação eram “muito selecionadas’, Sofia encontrou na igreja que
frequentava, instituição com forte vínculo de confiança com sua família, um espaço no qual era
permitido desfrutar de alguma liberdade, conhecer lugares e pessoas diferentes, ampliar sua
visão de mundo de alguma maneira. Sofia refere que a maneira como sua família configurava
a religiosidade se expressava em normas de conduta bastante rígidas:
“Eu sempre tinha muito conflito comigo, assim... hããã... porque aí também tem a questão da religiosidade da
minha família, né... que aí também influencia como tu vai conduzir o teu corpo [ênfase]... como é que tu vai
conduzir os teus sentimentos, né [ênfase]... teve coisas que eu já abandonei, teve coisa que eu mantive, acho que
isso é importante, mas isso me causou muitos conflitos, assim, entendeu?! Entre eu comigo, entre eu com os meus
amigos, eu com a minha vida escolar também... com as minhas escolhas... foi um momento de muitos conflitos.
Eu acredito hoje que era porque eu estava crescendo, dos meus conflitos de crescer com a minha vida do jeito
que ela se configurava, né! Mas hoje eu faço essa leitura, mas naquela época eu achava difícil crescer! Essa era
a leitura que eu fazia. [...] Eu fiquei... [...] eu tive muito problema com isso, de aceitar que eu cresci!” (Sofia)
que se sentia oprimida pelas expectativas religiosas/familiares que lhe eram depositadas e as
quais tentava cumprir, mesmo não concordando, o que produzia nela intensos conflitos internos.
Esse sentimento de conflito pode ser compreendido levando em conta o processo de produção
subjetiva de Sofia, isso porque, no processo de elaboração da realidade, as crenças familiares
entram em conflito com o seu senso crítico – um conflito entre uma visão de mundo
conservadora e outra mais progressista. Essa divergência é expressa primeiro como conflito
interno e, depois, como provocação ao processo dialógico. Dessa forma, pode-se dizer que o
conflito suscita em Sofia desacomodação, levando-a a mobilizar processo de produção
subjetiva cada vez mais elaborados. Esse fluxo configura o conflito como possibilidade, como
oportunidade de abertura ao processo dialógico.
Nos relatos de Sofia é possível perceber que esse processo começa a se intensificar
durante sua adolescência. Ela relata de diferentes formas o seu desacordo com algumas crenças
familiares, especialmente a que sugere que as mulheres deveriam ter uma postura recatada e
submissa aos homens, os quais gozariam de maior liberdade. Sofia lê tal distinção de papéis
como um ato discriminatório e limitador, com o qual não tem acordo, o que corrobora a
configuração subjetiva da discriminação, como pontuado anteriormente. Também, por meio de
suas expressões e dos fluxos de emoções emergentes, Sofia fala o quanto foi duro enfrentar essa
crença familiar. Quando lhe foi solicitado falar de sua adolescência, ela refere:
“Ai, minha adolescência... [passa um pouco de angústia] Foi mais ou menos isso que eu já falei, e daí... teve um
momento em que eu bem que... fui mesmo! Eu vivia mais, eu estudava, eu trabalhava de babá, eu comecei a
trabalhar de babá, lá no final do ensino médio, no início do ensino médio... para ter alguma coisa, né! Ter o meu
próprio dinheiro... era bem do lado da minha casa, então, era permitido... eram amigos do meu pai, então, era
permitido... então era assim, né... conhecido, coisa e tal... E eu mantive o contato com o grupo da igreja, né... eu
mantinha e continuava a fazer essas minhas saídas, conhecendo muitas pessoas, viajando muito...” (Sofia)
assumir-se como uma mulher capaz e ativa no mundo, com sua constituição subjetiva
própria, sua singularidade complexa, uma mulher que poderia tornar-se aquilo que desejava
ser, uma mulher independente, uma mulher autônoma. Uma mulher que poderia fazer
escolhas de vida, mas uma mulher com seus valores e princípios, os quais representam a sua
constituição subjetiva.
Indicador Ser uma mulher na sociedade passa a ser configurado subjetivamente por Sofia pela
perspectiva da potencialidade a partir do momento em que ela consegue desvencilhar-
Ser mulher se, em algum grau, das expectativas que lhe foram depositadas e passa a assumir sua
própria subjetividade. Assim, Sofia configura-se como uma mulher capaz, uma pessoa
que pode fazer suas próprias escolhas de vida, que pode pensar diferente do que
esperam dela, que pode agir de forma diferente. Uma pessoa que não é passiva ou
submissa, bem pelo contrário, o ser mulher na vida de Sofia é significado pela
perspectiva do poder e da possibilidade.
Dessa maneira, esse momento de produção subjetiva do ser mulher é percebido por
Sofia como uma fase difícil de sua vida, um período de muitos conflitos e questionamentos.
Considerando a história de vida de Sofia, percebe-se que ela acolhe as crenças familiares como
ponto de partida: primeiramente busca acatá-las sem contestação, depois percebe que pode
explorar as brechas existentes nas barreiras institucionais que vivia, a fim de agir segundo sua
compreensão do mundo e objetivos de vida. Assim, percebe-se potente e capaz de fazer escolhas
e traçar seu próprio caminho com autonomia. Pode-se dizer, também, que Sofia buscou, dentro
do que lhe era viável, oportunidades de ação, sendo a observação atenta, empática, reflexiva
e, posteriormente, crítica a respeito do contexto vivido um traço bastante proeminente em sua
história de vida, expressões de sua subjetividade que foram se desenvolvendo com o passar do
tempo, refletindo-se na forma como vive sua vida privada e profissional. Expressão essa que
pode ser observada no relato de sua filha Camila:
“A mãe, para mim, ela... a mãe para mim sempre foi uma super-heroína. Sempre! Eu sempre me inspirei muito
nela. [...] E ela sempre foi uma mulher muito incrível! Ela sempre foi independente, guerreira, a vida inteira,
desde que era adolescente, assim... começou a estudar e tal. Ela sempre foi muito independente, mesmo... [...] os
meus parentes, da minha família, assim... não dando todo o incentivo para ela fazer faculdade, por exemplo, ela
foi, fez, se formou, deu aula e fez mestrado. [...] Ela sempre me incentivou muito a estudar. Eu percebo que todo
o incentivo que ela não teve, todo o apoio que ela não teve, ela me deu. [...] Eu vejo a importância disso hoje no
mundo em que a gente vive que, até, por exemplo, a minha classe social... Eu sou privilegiada em muitas coisas,
mas eu percebo que eu não vou poder ficar a vida inteira dependendo dos meus pais, então, eu preciso estudar,
eu preciso correr atrás de certas coisas e a mãe me ensinou a fazer isso. [...] No geral, essa é a Sofi. Sempre
correndo atrás, guerreira, forte, maravilhosa e me ensinou a ser ‘girl power’ literalmente! Literalmente... assim,
ela me ensinou a ser uma mulher independente, sempre de cabeça erguida, correndo atrás... porque eu vejo muito
isso nela e ela me ensinou, assim, na minha vida inteira. A ser bondosa, dividir, não ser cabeça quente, né!?”
(Camila)
“[...] as pessoas falavam ‘daqui a pouquinho já arranja um, já namora...’ Eu tinha r-a-i-v-a quando as pessoas
diziam isso, sabe! [ênfase e forte emocionalidade] Eu tinha raiva quando as pessoas me comparavam com a
minha irmã (que casou com 16 anos)... ‘Vai fazer a mesma coisa que ela! Daqui a pouquinho já arranja alguém!’
[voz diferente indicando comentários ouvidos, fluxos de emocionalidade] [pausa] E o meu pai dizia: ‘Tu nem
pensa! Tu vai estudar até não sei quando! Tu vai ser alguém nessa vida! Porque depois eu não tenho nada para
te deixar! A única coisa que eu posso te deixar é o estudo!’. E ele fazia isso, ele comprava tudo novo para mim,
os livros ele pegava... eu nunca tive livro usado! [ênfase] Mesmo que as condições financeiras sejam mais
difíceis eu não tinha... então ele fazia isso.” (Sofia)
É visível que a comparação entre Sofia e sua irmã gera nela um sentimento de não
reconhecimento da unicidade da vida humana como trajetória única e singular,
provocando-lhe a emergência de uma emocionalidade bastante forte, ou nas palavras de Sofia:
“raiva”. Infere-se que a raiva surge porque Sofia, até então, buscava construir um percurso de
vida diferente do da irmã – ambas tinham expectativas de vida e características subjetivas
bastante diferentes, além de desenvolverem uma vinculação distinta com a família nuclear.
Desse modo, o não reconhecimento da unicidade da trajetória de vida de cada uma das
irmãs era entendido por Sofia como uma desvalorização do ser humano, algo que o
despersonifica, apartando-o das suas singularidades, da sua essência subjetiva. Por sua vez, os
comentários que desconsideravam a unicidade de Sofia eram significados por ela como uma
tentativa de alijá-la do poder de fazer suas próprias escolhas, tal como preconizado nas
145
Sofia então segue seu fluxo de pensamento e elaboração sobre os caminhos divergentes
que ela e sua irmã tomaram: ela buscou acolher a expectativa familiar de aproveitar as
oportunidades de estudo e acesso à cultura possíveis, vislumbrava ter uma profissão e ter
independência financeira. Já a sua irmã acatou a expectativa familiar de casar-se e ser uma
esposa submissa, dedicada ao lar. A participante sinaliza que mesmo as duas sendo depositárias
de expectativas similares e vivendo um contexto social compartilhado, fizeram escolhas de vida
diferentes. Em dado momento, Sofia refere o quanto observar as escolhas de vida dos membros
de sua família e as consequências delas, especialmente as de sua mãe e as de sua irmã, a
influenciou a pensar sobre caminhos alternativos. Um processo ao mesmo tempo empático,
crítico e reflexivo, que sente junto com o outro, mas age (de forma mais ou menos consciente)
de modo a construir caminhos subjetivos alternativos. Isso pode ser observado no trecho que
segue:
“[...] Eu tinha que ir lá na casa [da sua irmã], levar comida para ela, sim, eu fiz muito disso, tá! [expressão de
pesar] Para ajudar a minha irmã, mesmo que o marido dela não gostasse de nós. Ele não gostava de nós, mas ele
gostava do que a gente dava para eles, tá! [riso, humor ácido] Certo! Então eu me lembro que eu comecei a
aprender, assim: ‘Puxa vida! Que vida que pode ser difícil essa!” [ênfase] E eu pensei comigo: ‘Eu não vou
fazer essa escolha! Eu vou casar bem tarde, se casar! Eu vou ter filhos bem tarde! Eu não vou me encher de
filhos!’. Porque eu não queria viver como a minha mãe com esse monte de filhos. [...] Então eu fui traçando...
eu acho que essa aprendizagem eu fiz lá! [risos] Foi lá! Eu fui traçando a minha vida ali! Eu não queria fazer
algumas coisas que a minha irmã fez, eu não queria passar aquele trabalho financeiro que a minha mãe passou...
eu não queria viver uma vida afastada da minha mãe e do meu pai, por mais difíceis, por mais imperfeitos que
eles fossem.” (Sofia)
Ela refere que foi por meio desse processo empático que se vinculou com o outro, aliado
ao senso crítico e ao processo reflexivo que aprendeu a constituir a si mesma, a desenvolver a
sua subjetividade e a encontrar formas de construir sua trajetória de vida. Um fluxo contínuo
de produção subjetiva que se amplia e se complexifica com o passar do tempo, o qual Sofia
associa ao aprender e à sua contínua busca pelo conhecimento, pela sabedoria. Despertada
pelo afeto compartilhado, atenta ao contexto familiar que vivia, percebia o esforço que seu pai
fazia para lhe dar acesso à cultura e à educação e o quanto uma vida que não valorizava essas
oportunidades poderia ser dura. Evidencia-se, de forma mais clara no trecho, que proporcionar
acesso à cultura e à educação era uma prioridade na família, que requeria tanto esforço que
Sofia percebeu sua importância desde muito pequena, o que corrobora a compreensão do valor
dado pela família à educação, o qual Sofia compartilha com sua filha Camila. As expectativas
depositadas pelo pai de Sofia agem nela como um mandato, no qual o pai confere à filha um
legado, de honrar a oportunidade de estudo, reforçando-o como um valor compartilhado
por meio do forte vínculo afetivo, que se sobrepunha a outros aspectos da cultura familiar,
como a aquisição de bens materiais.
147
“Então, eu tinha muita vergonha, às vezes, eu tinha, naquela época, eu tinha até vergonha da minha família!
Aquela família maluca! Aquela organização em casa, a minha mãe... um monte de irmão... aí eu tinha. Mas nunca
tive vergonha do meu irmão que tinha síndrome de Down, isso eu nunca tive... isso eu não tive mesmo! [ênfase
e forte emocionalidade] [...] Nessa fase da minha adolescência que meu irmão faleceu, e a minha mãe ficou
maaaisss amargurada ainda. [ênfase] Eu acho a minha mãe um pouco amargurada... vinha essa questão do luto
da mãe dela... dos irmãos que já estavam falecendo naquela época... os irmãos mais velhos dela... teve aqueles
vários bebês... dois, eu sei que um deles nasceu morto e teve que enterrar, outro quase, tipo assim, seis, sete meses,
fora aqueles que foram bem antes [silêncio reflexivo pesaroso] [...] Aí nesse meio-tempo eu perco o meu irmão e
a minha mãe... a minha família meio que entra em colapso, um colapso emocional [...] Eu me lembro muito... a
coisa que mais marcou a minha vida foi a perda do meu irmão com síndrome de Down... ele se chamava
Eduardo, era o nome dele. Ele já estava aprendendo, ele estava na pré-escola, ele estava no ‘CADEP’ também,
que era uma instituição da APAE, era um centro de estimulação precoce, alguma coisa mais ou menos desse tipo,
e ele estava aqui na escolinha da Intercap, que era uma escolinha para crianças com necessidades especiais. Meu
irmão participava muito disso e a gente se envolveu muito nesse mundo, assim, de repente a gente estava em
eventos de entidades que trabalhavam com crianças com necessidades especiais, de repente a gente já estava em
uma Olimpíada ali no SESC com as crianças. Então, a nossa família se envolveu muito com isso. E quando ele
morre... eu tinha 18 anos quando ele morre... é um baque para nós, assim... foi bem difícil... é disso que eu mais
me lembro assim...” (Sofia)
“Eu aprendi muito... porque eles (profissionais que atendiam seu irmão) disseram que ele (seu irmão Eduardo)
não iria aprender nada, que ele não iria fazer nada, que ele não iria caminhar, que ele não iria falar... havia a
possibilidade disso e daquilo e... ele c-o-n-s-e-g-u-i-u! [forte emocionalidade] Ele caminhava, ele entendia, ele
já estava na escola, ele conhecia sons, ele relacionava sons e imagens, tipo assim, a vaca, o cachorro... reconhecia
coisas... ele reconhecia imagens também, é isso, e ele ia lá e localizava... tudo muito comigo... e eu me lembro da
psicóloga dele me chamar e um dia que eu fui com a minha mãe ela me disse: ‘Nós precisamos muito de ti,
porque a tua mãe trata ele como se ele fosse uma criança deficiente, e ele tem que ser tratado como uma criança
normal, dentro das limitações dele, do que ele pode’. Foi mais ou menos assim.... foi uma fala mais ou menos
nesse sentido... e ela me disse algumas coisas que eu poderia fazer e eu comecei fazer... foi quando eu me decidi
que eu queria trabalhar com criança.” (Sofia)
148
Esse trecho indica o quão profundas são as marcas emocionais que ligam a
historicidade de Sofia, a de seu irmão Eduardo e os processos de aprender e ensinar.
Aprender e ensinar são configurados nessa história como possibilidade de viver, de construir
recursos de vida e de superar expectativas, ampliando e complexificando, assim, tais
configurações subjetivas. Além disso, a experiência com o seu irmão vai criando em Sofia
significados a respeito do que é incluir alguém com deficiência na sociedade, das marcas
subjetivas produzidas por um diagnóstico limitador, sobre como desenvolver o potencial em
cada pessoa, conciliando possibilidades e limitações de forma a promover aprendizado e
desenvolvimento. Também levanta pistas para pensar sobre o quanto Sofia, percebendo a
evolução de seu irmão mediante suas intervenções, contrariando as expectativas do prognóstico
que lhe foi atribuído, percebe-se capaz de ensinar e de promover espaços de
desenvolvimento e aprendizagem.
“Eu sempre quis ser professora! Desde pequena... porque eu brincava muito de escola [ênfase], dentro daquele
meu mundo imaginário eu brincava de escola. [lembranças agradáveis] Eu tinha alunos, eu tinha cadernos, tinha
caderno de chamada, tudo... e eu já estava decidida a ser professora e disse assim: ‘Olha, vou ser professora de
crianças que...’ [têm deficiência – não conseguiu completar a frase, sua voz embargou] Porque eu conseguia
construir material para ele (seu irmão) também, entendeu? [ênfase] Para ele aprender as coisas, rotinas eu
ensinava para ele e dizia: ‘Mãe, ele consegue! Mãe, ele consegue comer com a mão dele! Mãe, ele consegue se
sentar! Ele consegue fazer isso!” [alegria e sorrisos] Junto com a psicóloga, a psicóloga me ajudava e eu
ajudava a minha família.” (Sofia)
Nesse trecho é possível perceber o quanto Sofia passa a constituir uma significação a
respeito do que é ser professor na experiência com o irmão com deficiência, bem como o
quanto essa marca emocional, relacional e vincular é profunda a ponto de embargar-lhe a voz
ao mesmo tempo que lhe provoca uma alegria intensa quando fala sobre as conquistas do irmão.
Uma forma de encontro de potências latentes, de Sofia e de Eduardo, que se expressava por
meio da relação entre o ensinar, o aprender e o se desenvolver. Essa relação produz em Sofia o
sentimento de que é capaz de ensinar e, mais do que isso, lhe confere elementos para pensar a
promoção de aprendizagens e desenvolvimento em uma perspectiva inclusiva alicerçada
149
Indicador Sofia, na relação com Eduardo, configura subjetivamente o ser professor, significando-
a a partir da perspectiva da potência e da possibilidade. Ela, no encontro da sua
Ser professor própria capacidade de ensinar, produz-se dialeticamente capaz de aprender com o
outro. Produzindo subjetivamente a docência como promoção de caminhos subjetivos
alternativos que viabilizam a construção de aprendizagem, recursos de vida e
desenvolvimento, independentemente das condições biopsicossociais da pessoa.
Ao longo dos encontros, Sofia enfatiza suas aprendizagens, é notório como ela fala de
suas experiências de vida como aprendizagens repletas de significados, sejam elas
constituídas na relação com o pai, com sua irmã, sua mãe, irmãos ou em espaços sociais. Sofia
fala que aprende com suas próprias experiências e com a experiência de vida daqueles com
quem convive. Inclusive, quando relata episódios que lhe provocam sofrimento, refere que
aprendeu alguma coisa com eles, tal como no seguinte trecho:
“[...] independentemente da religião que tu tem! A gente segue os princípios que tem na tua família né!? Às vezes,
até obrigado também, né!? Mas, enfim, são as formas que a tua família se organiza. Mas quando os meus colegas
tentavam impor alguma coisa eu ficava muito incomodada com aquilo. E eu nunca fui de fazer as coisas, nesse
sentido... para agradar os outros. Eu até gostava de agradar as pessoas, mas não, não a ponto de ferir os meus
princípios. Quando eu chegava perto disso, eu já botava um pé para trás, eu dizia: ‘Não, eu não preciso disso’.
Então, eu me lembro que uma vez umas colegas disseram assim... eu cheguei e elas estavam falando e não me
viram... e elas disseram que tinham ‘vontade de drogar ela [a Sofia] e mudar todo o jeito dela’, ‘cortar o cabelo
dela’, ‘colocar uma roupa que ela não use’, sabe, ‘fazer alguma coisa que ela, assim, não faz’ [fala com tom de
desapreço e certa agressividade]. Tamanha era a vontade que elas tinham que eu fizesse as coisas do jeito delas
e eu dizia: ‘Não!’ [ênfase] Eu me sentia muito discriminada! [frisou a palavra] Eu dei graças a Deus quando eu
terminei o Ensino Médio. [...] eu não gostaria que um aluno tivesse essa experiência [ser discriminado], não que
essa experiência seja de todo ruim, porque ela também te ensina uma porção de coisas, mas enfim, vai como cada
um leva isso.” (Sofia)
No trecho, Sofia fala sobre como se sentia ao longo da sua escolarização, narrando,
outras tantas situações como essa, o quanto se sentia discriminada de alguma maneira ou, até
mesmo, agredida na sua singularidade. Porém, ela relata que sempre aprendia algo com o
vivido, tal como fazer juízos de valor levando em conta seus princípios e valores fundamentais,
distinguir as pessoas em quem poderia confiar ou perceber que condições eram favoráveis ao
diálogo ou não. Sobre esse assunto, Sofia narra as experiências compartilhadas com o pai, que
lhe ensinaram lições valiosas sobre a constituição de um vínculo de qualidade a partir do
compartilhamento de experiências muito simples do cotidiano, como cuidar de uma horta,
montar um quebra-cabeças ou dar um abraço acolhedor em um momento difícil. Ela também
fala sobre o quanto observar as consequências das escolhas de vida da sua irmã e de sua mãe
constituiu-se em recurso para que ela fizesse suas próprias escolhas. Sobretudo, Sofia sempre
150
frisa o quanto a experiência vivida por ela e a experiência de vida do outro lhe ajudam a
desenvolver a empatia, a compreender que por trás de uma pessoa há uma história, um
contexto, que como o dela, não é perfeito. Esse fluxo corrobora a compreensão a respeito da
configuração subjetiva do aprender e do ensinar na vida de Sofia. Relaciona-se à construção
de recurso de ser e viver em diferentes instâncias da sociedade, sugerindo um fluxo de
permanente abertura a aprender com o outro, do outro e com o mundo, aludindo à ideia da
incompletude do conhecimento humano.
Por sua vez, a inquietude manifesta-se como uma expressão da subjetividade de Sofia,
a qual é provocada pela busca por sabedoria e alimentada pela sensação de incompletude,
gerando, assim, um movimento recursivo de reelaboração do vivido, produzindo novas e mais
complexas compreensões e significações do mundo. Dessa maneira, Sofia, progressivamente,
apura seu senso crítico e percebe (de forma mais ou menos consciente) inconsistências e
incoerências existentes nas estruturas sociais, direcionando sua atenção. Quanto a isso Sofia
refere:
“Eu queria estudar e eu queria aprender muito! Porque eu achava que assim... que... eu tinha uma visão bem
dicotômica da vida, assim, era o bem e o mal! Até porque a minha religião, porque eu vivia muuuuito ela [ênfase],
e foi bom para mim, porque foi ela que me deu uma válvula de escape lá. Eu vivia muito essa coisa dicotômica, e
essa coisa dicotômica não estava mais cabendo no meu mundo, porque eu corria muito atrás de conhecimento,
e o conhecimento te faz assim... [movimento com as mãos de apertar-se, expressão de desconforto] aquilo não
veste mais, aquela roupa não v-e-s-t-e mais, né!? [ênfase] A roupa começou a ficar apertada... Então, eu comecei
a entender que eu podia ter muitos amigos, que eu podia decidir as coisas por mim mesma, né... eu podia decidir
por mim mesma... Eu ainda sou muito insegura, eu ainda preciso muito do outro para me dizer que eu estou
fazendo as coisas certas, porque isso são resquícios da minha vida. [postura reflexiva] Mas eu poderia fazer as
minhas escolha, eu poderia, hã... me envolver com outras pessoas, não é errado ler outros livros, não é errado
eu ver outras coisas, não é errado eu ter outras sensações, eu ter outras emoções, entendeu!? Então, o
conhecimento foi fazendo assim, ó [gesto de estar se expandindo]! Então, deu! [ênfase] E aí começaram, né!?
Comecei a sair de dentro daquela armadura. Que também não foi só da minha religião, mas da minha família,
da forma como eles conduziam as coisas[...]” (Sofia)
O trecho indica que Sofia, nesse fluxo de produção subjetiva, constitui recursos mais
apurados e consistentes para questionar as crenças familiares e religiosas que lhe eram impostas,
assumindo efetivamente a autoria de seu percurso de vida. Também, é possível perceber que
isso ocorre seguindo um fluxo de emoções que acaba por promover desacomodações na
participante, que, diante da vida dicotômica que levava, dos cerceamentos que enfrentava, das
imposições de crenças sociais, percebe que aquilo não era mais suficiente, sentia isso a partir
dos sentidos subjetivos que lhe emergiam, do senso crítico. Sofia refere que esse contexto lhe
provocava sensações de opressão, de não caber mais, de se sentir desconfortável na
“armadura” enrijecida que lhe era ditada.
Sofia passa por um processo de (re)configuração subjetiva, ponderando, assim, que o
mundo poderia ser muito maior do que o que lhe era oferecido até então, o que é significado
151
“E aí eu comecei a traçar planos, assim... a estudar. Eu fiz o meu Ensino Médio e aí eu não consegui... [embarga
a voz e faz uma pequena pausa] Nisso que eu terminei o Ensino Médio eu não conseguia... [nova pausa] Eu perdi
o meu irmão e eu saí do plano inicial que era ser, que era trabalhar com crianças da Educação Especial. Eu
saí porque eu disse para minha mãe: ‘Eu não vou conseguir lidar com o luto de perder crianças, de perder
alunos!’. [forte emocionalidade] E ali, onde eu estava, onde eu conheci, pelo menos, a perda era uma coisa muito
fácil... acontecia, entendeu!? [forte emocionalidade, tristeza] Não é como uma sala de aula que é muito raro!
Nunca me aconteceu de perder um aluno, por exemplo. Na área da Educação Especial, que tinha crianças como
o meu irmão, eles tinham muitas questões [...], muitas, muitas questões de saúde, então a perda era uma coisa
que acontecia frequentemente. Então, eu disse para a minha mãe: ‘Não quero isso! [...] É isso aí que eu quero!
Eu vou ir para essa área, administrativa, escritório... eu não quero nada com educação mais’, e fui. E fui fazer
vestibular para direito, naquele ano que eu me formei. E eu não consegui fazer vestibular porque o meu irmão
morreu bem pertinho, foi em 3 de dezembro e o vestibular era em janeiro... foi assim... foi formatura minha... a
família estava esfacelada, eu não consegui fazer. [forte emocionalidade]” (Sofia)
O luto, novamente, é significado como uma marca de etapas importantes de sua vida:
seu nascimento, sua infância, sua adolescência, sua escolha profissional. Diante dessa dor
emergem sentimentos tão profundos que fazem Sofia, uma pessoa que na maioria das vezes
busca produzir caminhos subjetivos alternativos, que não se deixar esmorecer frente aos
152
desafios, renunciar a um desejo intenso que remonta à sua infância, que era ser professora de
crianças. Enfaticamente afirma: “Eu não vou conseguir lidar com o luto de perder crianças,
de perder alunos!”, contradizendo traços marcantes de sua constituição subjetiva.
Ser professora torna-se um desejo latente que se pronuncia sob a forma de desconforto
e infelicidade. Sofia refere que tentou outras carreiras, trabalhou em serviços administrativos,
aprendeu muitas coisas, mas não se sentia confortável com esse caminho, não conseguia
imaginar-se fazendo aquilo por toda a vida. Em seu íntimo, sabia que queria estudar, que queria
cursar uma universidade. Tentou vestibular para outras carreiras também, mas sempre
aconteciam “imprevistos” que a faziam perder a prova ou escolhia cursos muito concorridos,
os quais sabia de antemão que não seria aprovada: “e não passei, claro!”. No momento do
relato, Sofia elabora que talvez estivesse sabotando inconscientemente suas chances de
ingressar em outra carreira, pois sabia que não era aquilo que desejava:
“Só que aí eu tô trabalhando tá, e i-n-f-e-l-i-z [ênfase]. Infeliz assim... de ter que estar ali t-o-d-o o dia! [ênfase
demonstra contrariedade] Fazendo aquele trabalho de rotina de escritório. [chega a contorcer a face] E aí eu
pensei: ‘Eu tenho que fazer vestibular, mas eu vou ter que fazer uma reavaliação, isso não tá certo!’. E aí eu
vou lá e faço para sociologia, perco a última prova, porque eu não consigo chegar na PUC [local de prova]! Eu
tô fazendo para sociologia, daí eu fui para área das humanas, né! Eu entendi que eu era da área das humanas
e aí eu perco a prova. Eu penso assim: ‘Que droga!’. Sentei no meio fio ali [na PUC] e fiquei pensando ‘o que
aconteceu? Como é que eu consegui perder? Eu moro logo ali, bem pertinho da PUC, como é que eu consegui
perder? Perdi a prova!’. Eu perdi uma das últimas provas, a terceira prova, eu acho.” (Sofia)
Esse trecho expressa um fluxo de reflexão no qual Sofia pondera sua historicidade, seus
desejos, suas expectativas e conclui que queria realmente ser professora, denunciando o valor
dado à essa profissão. Porém, ainda não conseguia retomar a ideia inicial de ser professora de
crianças, pois o luto do irmão ainda era algo que a tocava profundamente e a paralisava,
evidenciando-se um conflito interno que lhe provocava angústia e lhe convocava a produzir
caminhos subjetivos alternativos. Nesse fluxo de produção subjetiva se fazem presentes a
configuração do conflito, o qual a convoca a abrir-se para o diálogo, no caso, consigo mesma,
e uma perspectiva de conciliação dialógica entre atender ao forte desejo de ser professora e o
medo de sofrer com o luto novamente. Assim, tentou vestibular para sociologia e, mais uma
vez, se sabotou “perdendo” a prova, o que dispara nela um novo fluxo de produção subjetiva
carregado de autocrítica e reflexão sobre o vivido, suscitando em um “Agora vai ser para
valer!”.
“Então no outro ano eu pensei assim: ‘Agora vai ser para valer!’. E aí eu pensei assim: ‘O que tu quer fazer
Sofia?’. E eu pensei: ‘Eu quero aprender como as pessoas aprendem. Eu quero saber como as pessoas
aprendem’. Isso sempre foi a minha vontade de aprender. E eu fui para a Pedagogia, fiz, p-a-s-s-e-i! [ênfase
contentamento] E entrei em primeira chamada, eu era uma das primeiras, não a primeira, mas uma das primeiras,
entrei no primeiro semestre e me a-p-a-i-x-o-n-e-i [ênfase, forte emocionalidade e sorrisos] pela faculdade, me
apaixonei!” (Sofia)
153
“E, aí, eu estou trabalhando em projetos dentro da igreja que também me ajudam a ampliar o meu olhar...
porque eu vi muita coisa errada e eu tinha que ter muito cuidado para falar, porque tinha coisa que era muito
arraigada, alguns princípios... e eu via coisas que aconteciam comigo. Por exemplo, eu via uma menina que tinha
5 irmãos, não, 6 irmãos e a menina também vivendo uma vida um pouquinho mais difícil que a minha, porque a
minha eu ainda tinha algumas beiras, algumas... para fugir. E ela muito sufocada por aquela coisa da mãe ter
filhos e dar para ela cuidar, né... e então eu promovia saídas, em vez de ficar na igreja ensaiando [riso], eu
ensaiava, mas eu ensaiava tipo: ‘Vamos para o parque Marinha! Ah, vamos para tal lugar!’. E então eu comecei
a providenciar que as meninas tivessem uma saída, tivessem um pouquinho de vida, assim, entendeu? Fora
daquela realidade, porque algumas moravam... tinham uma situação financeira muito delicada, muitas dessas
pessoas, né, e às vezes eram pessoas que não saíam muito e eu queria proporcionar para elas outras coisas. E,
de repente, eu já tenho alguma resistência também dentro daquele grupo, porque eu faço algumas coisas que
são diferentes, eu já estou na universidade, aí vai tudo junto assim... e aí eu já estou pensando muito diferente,
154
né! E eu acabo saindo daquela igreja que eu estava... sinto muito carinho por todos eles, mas também não consigo
mais ficar ali... A roupa que não veste mais! [ênfase e sorrisos]” (Sofia)
Nota-se que Sofia compreende o quão opressoras podem ser as instituições sociais.
Movida pela empatia e identificação com as condições de vida de suas colegas, ela tenta
proporcionar a elas acesso a outras perspectivas de mundo que já vislumbrava – quase como
um convite à conciliação dialógica com a comunidade religiosa, o que a coloca em uma posição
de liderança naquele espaço, mas também de transgressora. Suas atitudes libertárias entram em
conflito com a subjetividade social dominante conservadora naquele espaço social. Observa-se
em sua fala frustração por propor diálogo e encontrar resistência, levando-a a perceber que já
não compartilhava mais das mesmas crenças, que não se sentia mais identificada com a
configuração subjetiva social daquela instituição.
A exemplo disso, Sofia fala da relação com seu marido e sua filha. Relata que se casou
com 25 anos, enquanto cursava a universidade e teve sua filha com 28 anos, etapa que coincidiu
com seu estágio final.
“[...]eu me casei com 25 anos... eu não era nova... eu fui seguindo alguns planos e eu não planejo a Camila [sua
filha]. A Camila vem e eu também cometo o erro de também querer um menino, né! E quando eu percebo que ela
é uma menina eu pensei: ‘Eu não vou fazer com ela o que fizeram comigo!’. [risos altos] E ela é bem-vinda, e
ela é amada demais. [...] Eu tenho essa mudança comigo... eu acabo indo para a universidade... eu volto para o
meu plano inicial de trabalhar com a educação... eu começo a mudar dentro da minha instituição religiosa onde
eu estou... e aí eu caso, também, nesse meio-tempo e... muitas confusões no início de casamento, para mim é o
pior momento que tem! [risos altos] Essa coisa de juntar escova de dente é completamente... [ênfase, fica sem
palavras e só ri alto] porque o que que tu tem: no mundo ideal, o Nelson [seu marido] também tinha que ser
ideal, né? E ele não é. Ele é um ser humano que nem eu, que vem de uma família, de uma mãe de quatro filhos,
onde ele ganha tudo na mão, onde... supermachista, a gente se encontrou na igreja, a gente já tinha várias
diferenças, né?! A gente vai juntando e vai tentando fazer disso uma melhora. [...] ele mudou e eu fui mudando
também.” (Sofia)
Aqui se percebe um processo de produção subjetiva no qual Sofia e seu marido, movidos
pelo conflito de visões de mundo e por serem pessoas únicas em uma nova relação, buscam
movimentar-se dialeticamente por meio de um processo conciliatório dialógico, com vistas a
construir um ponto de equilíbrio no qual conviver torna-se possível. Ambos se dispõem a se
movimentarem subjetivamente a ponto de se constituírem como uma nova família, uma nova
instituição social, fundamentada nos princípios de mobilidade, de flexibilidade e de
convivência respeitosa com as diferenças, de forma a compor um quadro ao mesmo tempo
plural e singular. Uma conciliação na qual cada um compõe o todo e o todo compõe cada um
continuamente. Nesse jogo complexo descrito por Sofia, percebe-se o abandono dos
estereótipos de perfeição, baseados na visão dicotômica de mundo, para a abertura a uma
realidade complexa, na qual não há um “mundo ideal” (Sofia), mas seres humanos em constante
produção de si e do social.
Indicador O diálogo autêntico é constituído quando duas ou mais pessoas, na sua imperfeição, se
conectam subjetivamente de forma a um construir o outro e o espaço social
Diálogo compartilhado. Supõe renunciar a estereótipos preconcebidos, acolhendo o ser humano
real que ali se coloca, na sua complexidade. Constitui-se em função do princípio da
flexibilidade mútua, do valor do respeito à unicidade da vida humana e do investimento
relacional para constituição de um vínculo de qualidade. Sofia o configura
subjetivamente como uma estratégia de convívio respeitoso e desenvolvimento da
subjetividade.
Percebe-se que o diálogo, no caso de Sofia, foi configurado subjetivamente como uma
estratégia de promoção da convivência respeitosa, desencadeando um contínuo processo de
movimento nas subjetividades, que provocam desenvolvimento e produzem, dessa maneira,
novas elaborações de caminhos subjetivos alternativos.
“[...] eu fazia o meu caminho ser mais feliz... com o meu marido, mesmo com as dificuldades, mesmo a gente
tendo os nossos problemas a gente conseguia... com a vinda da minha filha, com o meu emprego, com a faculdade,
conquistar o bom salário, que eles achavam que eu iria passar fome sendo professora, que eu consigo um salário
melhor, até que da minha família [...]. Mas eu ganho muito bem, eu tenho uma boa de uma casa... que eu estou
terminando de construir [risos], tenho uma filha [sorrisos]... então, assim... eu rompi com algumas coisas, eu
não quero infelicidade para mim!” (Sofia)
Nesse excerto, Sofia elabora seu momento atual como um processo constitutivo
recursivo, como um percurso de escolhas no qual precisou romper com algumas crenças que
lhe eram impostas e aceitar que nem sempre iria atender as expectativas que lhe eram
depositadas. Um fluxo contínuo de (re)descobrir-se e (re)conhecer-se, produzindo-se
subjetivamente na relação dialógica com o mundo real, reconhecido como complexo e plural.
Sofia afirma que esse não é um caminho suave, muito pelo contrário, ela acredita que é na
imperfeição de um ser humano em encontro com a imperfeição do outro que se promove o
desenvolvimento de ambos e que isso se dá ao longo de toda a vida por meio de um processo
de conciliação dialógica, o qual visa a buscar pontos de possibilidade de ação comuns, sem ferir
valores e princípios estruturais dos envolvidos. Esse processo de ser, viver e se desenvolver ao
longo da experiência de vida relacional humana é nomeado por Sofia, incontáveis vezes, como
aprendizagem.
Sofia também elabora o quanto o luto é um elemento muito forte na sua família de
origem, marcando incisivamente os momentos compartilhados. Relata que o sentir-se feliz não
era algo bem-visto, especialmente por sua mãe, mas que era algo com o qual precisa lidar e
deseja romper.
157
“[...] mãe foi muito difícil comigo na minha vida... eu acho que quando ela viu que eu tinha condições de viver
uma vida adulta e feliz [...] tudo que era para ser muito feliz na minha vida ela me deixava triste [...], por
exemplo, eu ia fazer uma viagem para São Paulo para comemorar os meus 15 anos viajando, coisa que eu
adorava, eu amo viajar... amo! [ênfase] [...] a minha mãe me deixou muito infeliz quando eu estava indo, ela
[aumenta o tom de voz e fica mais enfática] falava de coisas h-o-r-r-í-v-e-i-s que poderiam acontecer! E do quanto
ela iria sentir a minha falta. E eu me sentindo culpada o tempo todo que eu estava lá em São Paulo [...] [ênfase,
tom de mágoa] Minha formatura de Ensino Fundamental também! Parece que eu não posso ser uma pessoa feliz...
e a minha formatura de Ensino Médio foi um horror, porque eu tinha perdido o meu irmão... na minha
formatura da graduação eu era uma pessoa infeliz lá... eu não posso me lembrar da minha formatura, meu pai
recém tinha falecido [silêncio] E o meu pai foi a pessoa que mais se orgulhava de mim... por estudar em uma
universidade pública, embora ele tenha feito faixa para o meu irmão, que passou em uma universidade privada,
engenharia elétrica, e não para mim [ênfase, mágoa] Mas ele [seu pai] achava que eu não deveria ser
professora, mas ele se orgulhava que eu estava em uma universidade pública! [ênfase] [...] parece que eu não
posso estar naquele momento feliz, entende? Curtir aquele momento... a conquista [pausa] [...] eu não quero essa
amargura, eu não quero esse caminho! [...] eu não quero, eu quero romper com isso!” (Sofia)
“Foi c-r-u-c-i-a-l para a minha vida ir para [nome da universidade que frequentou]. [pausa] Não a [nome da
universidade que frequentou] em si, estudar! Foi crucial! [ênfase] Eu rompi com o velho mundo! [risos] O velho
mundo da Sofia com o novo mundo da Sofia! [risos] Foi crucial aprender. Porque, assim, eu aprendia muito, eu
tinha muito, eu viajava bastante, eu conhecia bastantes pessoas, [...] como vou dizer... eu devorava, eu lia! Mas
eu estava muito na minha bolha! [...] Quando eu entro na [nome da universidade que frequentou] a bolha
estoura! Bum! Eu aprendia muito, eu conhecia muita gente, eu já estava ampliando, já tinha roupa que não
servia mais, entende? Mas, quando eu entrei na [nome da universidade que frequentou] foi assim... o
conhecimento que eu tive lá, a possibilidade de viver diferentes culturas, entende, de conhecer diferentes
culturas, de ver diferentes pessoas... ‘ah, mas tu via diferentes pessoas!’, eu via, mas não tão diferentes de mim.
Muito relacionadas ou ao meu grupo social, ou ao meu grupo religioso. Na [nome da universidade que
frequentou] isso se rompe muito! Porque tu vê gente de todos os tipos de perspectivas! Eu conheci uma moça do
Líbano que estudava comigo, eu conheci pessoas que eram, hããã... da igreja Luterana, eu conheci pessoas que
eram ateias! Que botavam tudo que eu acreditava por terra! Eu comecei a ler autores que hora estavam com
uma visão muito parecida com a minha, daqui a pouquinho eu leio Nietzsche [gargalhadas], que manda tudo às
favas, entendeu! [risadas altas e sorrisos]” (Sofia)
“E outra coisa! Aí tu começa a ler história, né! Minha filha! A história é uma coisa f-e-n-o-m-e-n-a-l, Virginia!
Como tu já deve saber... e aí tu começa a ver que algumas coisas são muito construídas, aquilo que tu acredita...
que [...] as instituições são construções sociais, e como elas podem aprisionar pessoas, né?! E ali deu um romper
que... sabe... não teve mais volta! Não teve mais volta! [ênfase] E aí eu acabo me descobrindo uma pessoa
perdida! Que legal, né! Eu me descobri perdida! [risos] Por que, para onde que eu vou? Estava tudo certo, eu
era muito exigida, mas eu sabia onde eu tinha que chegar! E essa minha exigência de ser tudo certinho: família
certinha, tudo certinho... embora a minha família nunca tenha sido certinha. Aí tu leva a culpa! E aí tu vive com
culpa! Vive com culpa! Vive com culpa! Vive com culpa! Vive com culpa! Vive com uma culpa que não tem! Que
não é tua isso! Sei lá eu de quem é isso! [ênfase] Não é teu! Aí isso não serve mais. [...] Então isso embolou o
meio de campo, entendeu? E eu tive que, no meio de uma família que não estudou... depois o meu irmão foi fazer
engenharia, o outro foi fazer administração, mas nenhum deles terminou. De uma mulher, de estudar e de me
159
colocar frente ao machismo dessa família, enfrentar até a própria religião que te escraviza, as pessoas se sentem
donas de ti, e tu diz que não vai ser submissa, que ninguém vai ser teu dono... então, assim... Meu Deus, Virginia,
como eu mudei! [ênfase, misto de perplexidade e felicidade] Eu sou uma pessoa de dizer: ‘Não, eu vou fazer essa
escolha para mim! Não, esse é o caminho que eu vou fazer!’.” (Sofia)
Aqui, Sofia retoma um pouco da sua vida, do quanto se sentia oprimida pelo que era
ditado pelas crenças sociais das instituições das quais fazia parte, especialmente sua família e
sua religião. Do quanto essa pressão por ser “certinha” (Sofia), por estar do lado “correto” do
mundo, por ser cobrada por uma perfeição irreal, produzia nela o sentimento de culpa que
alimentava sua autoexigência, o que lhe gerava grande conflito interno entre o que ela
acreditava efetivamente e o que depositavam nela. Em contrapartida, Sofia retoma que sua
perspectiva crítica da realidade vivida foi aos poucos lhe provocando o questionamento dessas
crenças, culminando em um momento que, embasada pelos conhecimentos histórico, social e
filosófico, tudo se rompeu de maneira a provocar sentimentos confusos, a sensação de se sentir
“perdida” (Sofia) diante do vislumbre do quão complexo é o mundo. Um conflito interno que
rompe com o conhecido e abre novos caminhos de construção subjetiva, outros modos e
recursos de ser e estar no mundo, sob outros fundamentos subjetivamente reconfigurados pela
abertura às diferenças. Sofia subjetiva esses sentimentos confusos como uma expansão de
mundo, uma forma de se libertar das amarras institucionais e de assumir a autoria da sua vida,
tal como a lagarta, que passa pela crisálida para se tornar uma borboleta, mostrando com sua
maneira de viver a beleza da existência.
Enfim, as narrativas de Sofia falam de uma mulher em construção. Uma pessoa
imperfeita, tal como as outras, que se (re)descobre recursivamente e que tem coragem de fazer
as suas escolhas, de enfrentar as instituições e as crenças que lhe “escravizam”. Uma mulher de
coragem valorosa, que luta primeiro consigo mesma, depois com as instituições sociais para se
libertar da opressão sentida. Mas, acima de tudo, uma mulher que provoca o diálogo, utilizando-
o como estratégia de libertação, de movimentação subjetiva, de ação social. Sobre isso, Sofia
observa sua linha do tempo (desencadeador utilizado: imagens sobre fases da vida) e reflete:
“[...] até hoje eles dizem que eu mudei muito! E eu sou muito... Graças a Deus que teve uma coisa na minha vida
que virou a chave, né! Porque senão, talvez eu até fosse uma pessoa feliz hoje, né? Não estou dizendo que eu não
iria ser feliz, mas eu iria ser... [pausa reflexiva] [...] Eu não iria ser. Eu não iria ter essa compreensão da vida.
[...] Imagina se eu não tivesse acordado, se não tivesse despertado... rompido com algumas coisas... eu não ia...
eu ia estar estagnada naquele tempo lá! Achando que eu tinha que ser... que tinha que dar tudo certo... viver uma
vida praticamente determinada, o que que eu iria fazer... sem muitas perspectivas de colocação... que tu era criada
para casar, né! De onde eu vim eu era criada para casar! Mesmo assim... mesmo não sabendo... o meu pai e a
minha mãe acabaram criando esse monstrinho dentro de mim, porque a minha mãe foi uma mulher que
trabalhou e comprou a própria casa, quando ela casou com o meu pai ela já tinha a própria casa, e sem querer
ela dizia para mim: ‘Vai e seja independente de homem financeiramente!’. E o meu pai já dizia para mim: ‘Tu
não vai parar de estudar não! Tu vai estudar sim! Tu tem que ter conhecimento! Tu não pode ser alguém que
os outros vão mandar em ti!’. Sem querer, eles estavam me criando dentro de uma visão para me criar uma
160
esposa submissa, mas eles me deram ferramentas para não ser! [risos] Para não ser isso, entende. [risos altos]
E eu estou feliz que em algum momento eu consegui fazer isso e sim, eu acho que entrar na universidade foi
fundamental para isso! Para eu fazer isso. [...] Então, aquilo que eu achava que talvez eu fosse ficar perdida, eu
me encontro tranquila hoje.” (Sofia)
“Eu gostaria de poder, hãããã... aprender mais, obviamente, sempre me guiou o aprender, aprender, aprender,
aprender, aprender, aprender.... [empolgação com essa constatação] [...] Sempre me guiou... e o aprender está
aqui, né! [aponta para dentro de si] Eu quero aprender a viver esse resto de vida, que sei lá quanto tempo de vida
eu tenho ainda, aprendendo, né! [...] Eu quero me conhecer mais, sabe, eu quero me conhecer mais... E sim,
escrever, fazer um doutorado, viajar! Eu quero viajar bastante ainda. Quero ir para lugares que eu ainda não fui,
quero conhecer outras pessoas... [...] aprender, conhecimento, é isso que me instiga. E profissionalmente, eu
quero... eu quero dar muita aula ainda! Quero estar com os meus alunos por muito tempo ainda... [...] eu vou
demorar a me aposentar ainda, né.... nesse Brasil que a gente está vivendo... [risos altos]” (Sofia)
Como o nome escolhido pela participante, Sofia significa sabedoria, isso é o que a
instiga: a busca pela sabedoria. Um caminho marcado pelo fluxo contínuo, no qual não se tem
a perspectiva concreta de se chegar a uma sabedoria global de tudo e do todo, mas que considera
o ser humano partícipe desse universo complexo, no qual o conhecimento se movimenta e
se (re)elabora continuamente, em que cada pessoa, dialeticamente, produz a si, produz ao outro
e à sociedade. Sob essa perspectiva, Sofia segue seu caminho recursivo de expansão.
Finalizando os encontros, como uma adaptação ao complemento de frases, pediu-se a
Sofia para refletir sobre sua história de vida a partir da provocação “quem é Sofia?”:
Sofia: [risos] Talvez... hããã... eu não sei se eu não vou ser muito dramática... Eu fui o bebê que não foi
planejado... [risos] e com o sexo errado para minha família, que queria um menino, né! Que
tenta agradar essa família, mas descobre que tem que agradar a si mesma, né?! E que pode ser
feliz... mesmo não agradando as pessoas... e encontra esse caminho... encontra esse caminho no
conhecimento. Então quando as pessoas dizem ‘conhecerei a verdade e a verdade vos libertará’,
eu acho que isso existe mesmo... [...] conhecimento liberta, amplia, te dá novos horizontes, te
ajuda a suportar as tuas dores, te ajuda a carregar as tuas fraquezas, os teus limites... [postura
reflexiva com lágrimas] Eu acho que seria mais ou menos isso, Virginia. E tu sabe que, mesmo
assim, tu é tão pequeno frente a outras coisas! E que tu tem ainda muita coisa para aprender!
Não importa o tempo que te resta, acho que é isso! [Sofia riu, se emocionou e foi mostrando as
imagens ao longo desse último processo de elaboração]
Virginia: É uma história bonita!
Sofia: [emocionada, derramando algumas lágrimas] Me sinto... obrigada por essa oportunidade,
Virginia! [voz embargada, choro e riso na sequência]
Virginia: Espero, de coração, que tu tenha gostado!
Sofia: Eu adorei! Posso tirar uma foto disso [imagens]? [...] Aqui estou eu... [apontando para as
imagens] que interessante! Adorei!
Virginia: Como tu está? O que está sentindo agora?
Sofia: Estou bem! Leve, tranquila... Sei que às vezes parece que a gente tira a roupa quando fala da
gente... mas é tão bom... [voz suave e tranquila, combinando com o semblante]
161
Essa é Sofia, um ser humano na relação com outros seres humanos, que se constitui
recursivamente em um movimento constante em busca do conhecimento, movimento esse que
ao mesmo tempo constitui a si e àqueles com quem compartilha experiências da sua vida. Uma
pessoa que inspira esta pesquisa, suas colegas de trabalho, sua filha, seus alunos. Uma mulher,
uma mãe, uma esposa, uma filha, uma aluna, uma cidadã, uma liderança, uma professora.
fazendo alguma coisa, dividindo tarefas e tal, e eu vejo que ela assume muito a posição que
ela tem no colégio. E eu digo: ‘Calma, a gente não é o pessoal do colégio! Aqui tu é mãe e aqui
tu é esposa!’”.
Além disso, é notável que o ser professora vem se configurando subjetivamente desde
antes de Sofia entrar efetivamente na escola. A participante viveu uma infância na qual se
estabeleceram vínculos de qualidade carregados de emocionalidade, especialmente com o pai,
teve a oportunidade de brincar e de imaginar mundos nos quais o impossível se tornava
factível, experimentou escolhas, significou momentos de alegria e tristeza com os recursos
que tinha construído até aquele momento. Tudo isso produziu sentidos e configurações
subjetivas que emergem no tempo presente da sua prática profissional.
Também, é possível perceber que a relação e o diálogo exercem um papel fundamental
nesse sistema de produção subjetiva, um movimento no qual os indivíduos se constituem
dialeticamente e produzem o espaço social compartilhado, em um convite recursivo ao
desenvolvimento de todos, algo de muita potência. Tal perspectiva convoca o pesquisador a
reestruturar o seu olhar a respeito da realidade: de algo concreto que está dado, para algo muito
mais sutil e fluído, mas que se faz presente continuamente de forma quase etérea no viver, algo
que une passado, presente e possibilidades de futuro em um contínuo significar significando-
se. Assim como a parte oculta do iceberg, a subjetividade está lá, mas não se percebe com
um olhar apressado – requer tempo, investimento relacional, confiança, dedicação, coragem,
paciência, persistência e sustentação para que sua emergência seja possível. No trabalho de
imersão na subjetividade de Sofia, naquilo que era permitido por ela ser mostrado, foi-se
percebendo indicadores de sua subjetividade que entrelaçam seu ser e viver no mundo social
como um todo, o que inclui sua vida profissional.
Neste subcapítulo da construção da informação, objetiva-se abordar uma das facetas da
subjetividade de Sofia, a da docência, buscando-se analisar os seus elementos constitutivos
integrando-os à sua história de vida, a fim de produzir inteligibilidade a respeito dos propósitos
desta pesquisa sob a forma de hipóteses explicativas. Desse modo, didaticamente, o texto aqui
exposto foi organizado em quatro núcleos, os quais buscam apresentar um mapeamento sobre
configurações subjetivas da docência de Sofia. O primeiro, nomeado “Vínculo com a
profissão”, refere-se a aspectos que primeiramente levaram Sofia a cogitar a profissão de
professora, mesmo a contragosto de sua família, e, em um segundo momento, o que leva Sofia
a se sustentar na profissão, mantendo o desejo e o engajamento. O segundo núcleo, nomeado
“Flexibilidade”, refere-se a aspectos relacionados a como Sofia vive a profissão, destacando-
se aqui a disponibilidade contínua ao movimento de produção subjetiva, promovida pela busca
163
anunciou ter sido aprovado no vestibular: “embora ele [seu pai] tenha feito faixa para o meu
irmão, que passou em uma universidade privada, engenharia elétrica, e não para mim!
[ênfase, mágoa] Mas ele (seu pai) achava que eu não deveria ser professora” (Sofia).
Porém, nos encontros com a participante, Sofia não referiu em momento algum que seus
pais se opusessem abertamente à sua decisão de se tornar professora a ponto de proibi-la, apenas
manifestavam contrariedade. Assim, mesmo a contragosto de sua família e da crença social de
desvalorização da profissão, Sofia, por meio de um processo de conciliação dialógica, explora
as bordas do socialmente aceito, daquilo que era permitido no seu contexto social e segue
suas emoções, buscando uma carreira profissional que lhe desse satisfação, que lhe instigasse e
com a qual se identificasse, uma carreira que a tirasse da infelicidade e da monotonia de
trabalhar em um escritório.
Afinal, o que a levou a persistir na ideia de ser professora, uma carreira socialmente
desvalorizada no contexto em que vivia? Que vivências foram importantes para que ela
desejasse ser professora e se mantivesse na profissão? O que a vincula à sua profissão? Essas
foram algumas das questões que pautaram as especulações junto à participante a respeito dessa
temática. Durante o percurso dialógico, compreendeu-se porque essas questões não podem ser
respondidas diretamente em um esquema de pergunta e resposta: elas tratam de elementos que
compõem a subjetividade de Sofia, a qual não se tem acesso diretamente, apenas por um
processo dialógico reflexivo que a envolvesse ativamente na evocação de memórias relativas a
diferentes situações vividas que são significadas a partir da emergência da emocionalidade.
Conforme citado anteriormente, existe um valor compartilhado no seio da família de
Sofia relativo à valorização das oportunidades de acesso à educação e à cultura. Sofia
nasceu em uma família que, embora tivesse crenças muito conservadoras quanto ao papel social
da mulher, de esposa submissa e de mãe, valorizava fortemente a educação de seus filhos. Sobre
isso, Sofia refere que sua família, mesmo sendo humilde, expressava essa preocupação quando
priorizava o acesso a livros e materiais culturais em detrimento de outros bens:
“Acho também que o incentivo da minha família. Assim, a gente não pode deixar de mencionar isso! A leitura dos
livros, eu pude até não ter vestidos maravilhosos e sapatos maravilhosos, mas eu tinha livros, eu tive
enciclopédias, eu tive dicionários... inclusive alguns eu encontrei agora na minha limpeza, bem velhinhos! Eu
guardei três livros que o meu pai comprava com muita dificuldade. Então isso também me incentivou, aquilo era
importante para eles e aquilo se tornou também muito importante para mim. O que significava para eles acabou
passando para mim.” (Sofia)
emocionalidade o esforço que seu pai fazia para lhe oportunizar o acesso à cultura, para que
tivesse livros novos para estudar e do quanto compartilhava com ela a exploração desses
recursos. Pode-se dizer, com base em sua história de vida, que o vínculo de qualidade
estabelecido com o pai agiu de forma a configurar subjetivamente a educação como um valor
compartilhado, de forma a levá-la a constituir-se subjetivamente de maneira divergente da
subjetividade social dominante naquele espaço. Essa compreensão é reforçada em outra ocasião
quando Sofia relembra como foram os primeiros contatos com o mundo letrado.
“Eu sempre tive muito contato com livro, com revista, com enciclopédias. Minha família é uma família de poucas
condições financeiras, mas uma família sempre muito interessada na educação dos filhos. Então, nós não
tínhamos aquelas coisas que os outros têm, mas nós tínhamos o básico e muito incentivo para estudar [forte
emocionalidade]. Então, eu lia tudo que caía na minha frente desde muito pequena e quando eu não lia eu
decorava porque a gente pertencia à igreja e eu decorava Salmos, decorava... eu não sabia ler, mas só de ouvido
eu já sabia o que eu tinha que fazer. Então as práticas de leitura e escrita e o letramento eram presentes na
minha vida [...] então estudar era uma coisa importante na minha família.” (Sofia)
Nesse trecho, Sofia aponta que, atualmente, como professora, percebe que desde muito
cedo já tinha contato com o mundo letrado. Também reconhece que seus pais, mesmo tendo
pouco estudo, sempre incentivaram os filhos a estudar e os ensinaram a valorizar a educação
por meio das prioridades da família e das práticas de letramento compartilhadas, criando
um terreno fértil para que Sofia comungasse tal valor. Em outra oportunidade, Sofia afirma
novamente: “Eu podia não ter muita roupa cara, muito calçado caro, muito brinquedo caro,
mas eu tinha muito livro. Então meu pai comprava, assim, quando vem aqueles livrinhos
bonitinhos, disquinho de história, eu tinha muito dessas coisas”. Essa recorrência no discurso
de Sofia reafirma a profundidade desse valor familiar compartilhado.
muito contato com livro, com revista, com a própria Bíblia”, o que alimentava recursivamente
o mundo da fantasia e a imaginação dessa criança adoentada e que se sentia solitária.
“Certo, inclusive eu estava limpando algumas caixas lá na minha casa, interessante que algumas coisas
acontecem em alguns momentos... eu encontrei alguns livros em que eu rabiscava e que eu brincava que era
professora, eu tinha tipo 9 ou 10 anos, 11 talvez, e eu sempre brincava de ser professora e eu sempre brincava
de muitas coisas também, mas eu sempre brincava de ser professora, e eu tinha alunos imaginários eu tinha...
eu encontrei nomes, por exemplo, a Cris. A Cris era o nome de um dos meus alunos imaginários e aquela
brincadeira era muito... não sei explicar... eu tinha lista de chamada eu fazia to-das [ênfase] aquelas rotinas que
têm na escola e eu brincava disso em casa [...] desde muito cedo eu disse que queria ser professora.” (Sofia)
Esse trecho expressa a história da criança que queria ser professora, que elaborava e
significava esse forte desejo no brincar de faz de conta. Percebe-se nessa narrativa forte
emocionalidade e carinho, além da convicção de que já percebia, durante sua infância, que
queria se tornar uma professora.
“Eu sempre quis ser professora, desde pequena, porque eu brincava muito de escola [ênfase], dentro daquele
meu mundo imaginário eu brincava de escola, eu tinha alunos, eu tinha cadernos, tinha caderno de chamada,
tudo... e eu já estava decidida a ser professora [emocionalidade e convicção].” (Sofia)
Nesse trecho é possível perceber, novamente, a convicção de Sofia pelo seu desejo de
se tornar professora desde a infância. O que indica que, se levarmos em conta sua trajetória de
vida, o surgimento do vínculo com a profissão se inicia na infância por meio de uma
produção subjetiva, associando a experiência compartilhada com o seu pai de aprender com o
cotidiano, estabelecendo um vínculo de qualidade, o valor familiar de estima à educação, o
contato com o mundo letrado desde muito cedo, suas primeiras experiências escolares que
romperam com o sentimento de solidão e a oportunidade de viver uma infância na qual o brincar
de faz de conta estava constantemente presente.
Indicador O vínculo com a profissão, no caso de Sofia, é uma produção subjetiva bastante
complexa, a qual se inicia na infância e segue se reconfigurando ao longo do tempo.
Vínculo inicial com Trata-se de um fluxo carregado de sentidos subjetivos que recursivamente emergem,
a profissão consolidando o ser professor como uma escolha de vida.
“E eu, também, era muito sozinha. Então, eu gostava da escola. E eu gostava da escola porque eu brincava,
porque eu tinha amigos, porque eu aprendia lá jogos que eram diferentes, que eu não brincava em casa. Então,
a escola para mim era um lugar muito bom. Essa coisa de não gostar de ir para a escola nunca aconteceu
comigo! Eu sempre gostei. Eu não faltava! Febre... a minha mãe tinha que me forçar a ficar em casa! Uma vez,
eu me lembro que eu tive que fazer um procedimento dentário, porque eu estava com dente para cair e o outro
estava nascendo, e eu queria ir do mesmo jeito! E a minha mãe dizia: ‘E se começar a sangrar?’. E eu dizia:
‘Alguém avisa, não tem problema! O colégio é perto, alguém avisa!’. O colégio era bem perto da minha casa, era
168
a meia quadra da minha casa. Então, assim, eu não faltava aula. Eu era uma pessoa muito feliz na escola!
[sorriso]” (Sofia)
Fica evidente que a escola também assume o significado de dirimir a solidão e criar
oportunidades de viver outras experiências, expandindo os caminhos alternativos de ação no
mundo, abrindo espaço para a interação com pessoas diferentes e outras formas de viver. A
escola torna-se um espaço em que era permitido brincar com outras crianças, fazer amigos e
conhecer coisas que não tinha acesso em casa. Escola era pluralidade, era possibilidade. Por
essa razão, a escola passou a ocupar na vida de Sofia um lugar tão importante, um lugar em
que ser uma criança feliz era possível, contrapondo-se diretamente à vida familiar que vivia,
muito marcada pela dor do luto e pela austeridade. Levando em conta o contexto de vida da
participante, pode-se dizer que a experiência na escola e a expectativa de ser professora, que
se ensaia no brincar, geraram em Sofia uma nova forma de ser e viver no mundo, abrindo espaço
para que ela pudesse expandir suas possibilidades de ação, o que produz marcas subjetivas
importantes, vinculando Sofia à sua profissão, as quais estão associadas à oferta de
oportunidades de viver e ser quem se é, na qual a criança poderia viver a infância em um
local cujo mandato familiar assim o autorizava, um local onde a criança poderia explorar
relações entre pares, brincar e ampliar seu repertório de aprendizagem, um lugar de
experiência e vida.
Indicador Sofia configura o vínculo com a sua profissão como um compromisso com a oferta de
oportunidade de ser e viver a infância na sua singularidade e pluralidade, garantindo a
Significado do expressão da criança por sua via natural, o lúdico. Significa zelar por um espaço em
vínculo com a que a infância possa ser vivida a partir da experiência compartilhada, provocando
profissão assim a emergência de novos caminhos subjetivos alternativos.
“[...] eu me lembro muito, assim, da minha primeira... da minha primeira professora de 1º ano, a M. L. Eu adorava
a minha professora de 1º ano, e eu queria muito ser uma professora como ela! [sorriso e forte emocionalidade]
[...] a imagem, assim, da minha primeira professora, foi muito marcada. O que ela ensinava, as músicas que ela
ensinava, as brincadeiras que ela ensinava, as letras, os contos que ela contava, as histórias na biblioteca...
Aquilo ficou muito mais forte em mim do que as más lembranças, digamos assim, com outros professores.” (Sofia)
Aqui é possível perceber que as memórias de Sofia remontam a uma forma de viver a
profissão de maneira a oportunizar espaços em que a ludicidade se manifeste, como o uso
de jogos, brincadeiras, música e contação de histórias. Isso, por sua vez, gera identificação entre
Sofia e sua primeira professora, fazendo-a constituir um ideal a ser perseguido ou, nas palavras
dela, “eu queria muito ser uma professora como ela!”.
169
“E aí, a minha vida foi seguindo, seguindo... né!? E aí eu tive um irmão, eu tive um irmão com síndrome de Down.
E quando esse irmão nasceu, eu praticamente decidi ao longo da... [pausa, respira fundo] nós tivemos ele por 4
anos e meio conosco... [nova pausa, semblante de tristeza] e ao longo da passagem dele pela nossa família eu
decidi, decidi que eu queria ser professora. Porque... porque os médicos diziam que ele não ia ler, não ia escrever,
não ia fazer nada! [expressão de perplexidade] E aí os meus pais procuraram desde muito cedo formas de atender
ele, tá! E um dia eu fui com a minha mãe no atendimento dele. E aí a psicóloga me chamou e disse: ‘Nós
precisamos de ti. A gente acha que tu pode ser uma grande ajuda!’. Porque a minha mãe não conseguia dizer não
para o meu irmão, ela não... não conseguia, assim... ensinar o meu irmão como ela ensinava... como ela educava
os outros filhos. Ela ‘passava a mão por cima’, digamos. Ela achava que por ele ser uma criança com síndrome
de Down ela deveria tratar ele diferente. E ela [a psicóloga] disse assim: ‘Eu acho que tu pode nos ajudar!’.
Então, assim, eu fui trabalhando com ele as questões de sentar na mesa para comer, pegar o garfo, palavras que
ele tinha que me dizer, ele tinha que dizer o que ele queria, senão eu não dava, sabe?! Assim, eu ajudava na
higiene dele... eu tinha 16 anos, 16 anos. E aí, eu fui ajudando ele e aí quando ele foi para a escolinha, ele entrou
para o Jardim, tudo, e ele começou a se desenvolver bastante! [emocionalidade, sorriso e satisfação] Não foi só
por causa de mim, mas todo o processo, né!? E, aí, eu decidi que eu queria ser professora de inclusão, professora
de Educação Especial” (Sofia)
Na experiência conversacional com Sofia, quando ela falava da marca do seu irmão em
sua vida surgiam fluxos de emocionalidade muito fortes, os quais expressavam sentimentos
contraditórios, como: alegria, tristeza, assombro, perplexidade, entusiasmo, pesar, angústia e
amorosidade. O que leva a crer que o convívio entre Sofia e Eduardo foi muito intenso e
significativo na vida dela, além de ser uma forte evidência da relação dessa vivência como
forma como vive sua profissão. Assim, pode-se dizer que essas emoções vividas no passado,
de alguma maneira, se projetam no presente sempre que Sofia se depara com o aprender e com
o ensinar, e, por consequência, fazem parte da maneira como ela vive a docência.
170
Em outra ocasião, questionada sobre a escolha de sua profissão, Sofia retoma a história
da relação com o irmão:
“Eu já estava decidida a ser professora e disse assim: ‘Olha, vou ser professora de crianças que...’ [têm
deficiência – não conseguiu completar a frase, sua voz embargou]. Porque eu conseguia construir material para
ele (seu irmão) também, entendeu?[ênfase] Para ele aprender as coisas, rotinas, eu ensinava para ele e dizia:
‘Mãe, ele consegue! Mãe, ele consegue comer com a mãe dele! Mãe, ele consegue sentar! Ele consegue fazer
isso!’. [alegria e sorrisos] Junto com a psicóloga, a psicóloga me ajudava e eu ajudava a minha família.” (Sofia)
Este trecho corrobora a compreensão do anterior no que diz respeito à associação do ato
de ensinar à capacidade de abrir caminhos subjetivos alternativos para que a aprendizagem
e o desenvolvimento da criança aconteçam, contradizendo, muitas vezes, aquilo que
socialmente se deposita na criança. Isso fez Sofia passar a imprimir em seu irmão a convicção
em sua capacidade de ser, de viver e de evoluir como um ser humano único. Nota-se que o
verbo “conseguir” aparece repetidas vezes no trecho, sempre associado à forte emocionalidade,
atribuindo ao ato de ensinar e ao ato de aprender o valor da conquista de ambos, o que lhe
171
gera sentimentos de felicidade e realização, tornando o vivido significado por tais sentimentos,
que vinculam os irmãos de forma a um constituir o outro.
Sofia expressa diretamente a relação existente entre o seu desejo de se tornar
professora (significado no vínculo com seu pai e nascido durante a infância, no brincar e nas
primeiras experiências escolares) e a experiência compartilhada com seu irmão Eduardo,
elaborando essa relação a partir das conquistas alcançadas significadas pela perspectiva da
capacidade. O que indica desenvolvimento do fluxo de produção subjetiva que sustenta o
vínculo que Sofia mantém com sua profissão.
Indicador A sustentação do vínculo de Sofia com a sua profissão passa pelo legado deixado pela
experiência com seu irmão Eduardo. Nessa vivência, a participante descobre-se capaz
Sustentação do de ensinar significando a relação estabelecida pela impressão de capacidade um no
vínculo com a outro. Assim, Sofia vive sua profissão como um legado da aprendizagem constituída
profissão com seu irmão, configurando sua profissão como capaz de promover oportunidade
de aprendizagem, desenvolvimento e caminhos subjetivos alternativos de vida.
Pode-se dizer que, considerando a experiência de vida de Sofia, a vivência com Eduardo
foi de suma importância para sua escolha profissional, mas também para ela se tornar a
professora que é hoje. Durante o período em que a pesquisadora acompanhou Sofia na escola,
foram inúmeras vezes em que se observou ela planejando junto à Lúcia, professora residente
que trabalhava com a participante como docentes de 5º ano do Ensino Fundamental, em 2019.
Sofia sempre provocava Lúcia a refletir e a entrar em diálogo com ela sobre o que cada aluno
já conseguia realizar naquele momento com autonomia e o que a criança conseguia realizar
com apoio, para, então, criar estratégias que provocassem o avanço nas aprendizagens escolares
(conceituais, procedimentais ou atitudinais). Eram momentos que demonstravam o quanto
Sofia se empenhava em conhecer cada criança, cada história, cada trajetória escolar, cada
potência. Além de evidenciar o quanto se comprometia com o seu desenvolvimento
profissional e o de sua colega – mesmo Lúcia sendo menos experiente como professora,
valorizava suas ideias, refletiam conjuntamente sobre o que cada criança evidenciava como
aprendizagem, levantavam possibilidades de ação dentro da realidade vivida com vistas à
promoção de novas conquistas. Havia diálogo. Eram momentos em que superavam
planejamentos didáticos convencionais, avançavam de modo a realmente se conectar com as
necessidades e as potencialidades da criança. Eram espaços de leveza e aprendizagem para
ambas, cheios de sorrisos e entonações que falavam de uma nova elaboração construída
conjuntamente. Momentos nos quais o verbo “conseguir” sempre estava presente. Percebia-se
a emergência de fluxos de sentidos subjetivos que remetiam ao legado de seu irmão: o
investimento na capacidade que todas as pessoas têm de aprender, sejam elas crianças ou
172
adultos. Lúcia frequentemente se surpreendia com a forma como Sofia analisava cada situação
pela perspectiva da possibilidade e transformava ocasiões corriqueiras, como desentendimentos
entre as crianças, em oportunidades para aprender algo: escutar o outro, colocar-se no lugar do
outro, aprender com o outro, expressar seus sentimentos sem magoar ninguém, entrar em
efetivo diálogo, observar o mundo ao redor e o que ele tem de especial em cada pequena coisa.
Um processo que convoca a atenção à realidade do momento vivido e, ao mesmo tempo,
conecta a subjetividade individual de cada um com a subjetividade social do espaço coletivo.
Quando foi pedido à Lúcia para falar sobre a experiência compartilhada com Sofia, ela inicia
com um suspiro: “Falar da Sofi é... é um mistério, né!?”. Percebe-se que Lúcia busca elaborar
seus pensamentos para expressar em palavras o que é trabalhar com Sofia e o quanto essa
vivência vai muito além daquilo que tinha aprendido até então, vai muito além de métodos e
estratégias didáticas, trata-se de abrir-se, de conectar-se, de se deixar afetar, mas sem se
deixar imobilizar pelas adversidades inerentes à profissão.
Outro fato que fala do vínculo de Sofia com sua profissão refere-se ao falecimento de
seu irmão Eduardo. Ela conta que essa foi a experiência mais dolorosa da sua vida e que a fez
questionar o forte desejo por se tornar uma professora. Sofia perdeu seu irmão justamente na
época em que estava terminando o Ensino Médio, sua família ficou muito abalada e ela não
conseguiu dar prosseguimento aos seus planos profissionais naquele momento. Acabou
aceitando um trabalho administrativo que seu pai lhe conseguiu; Sofia relata que sua família
estava satisfeita com suas escolhas, mas que ela se sentia infeliz com a rotina de um escritório.
Percebia que não queria aquilo para sua vida e se propôs a fazer uma reavaliação. Ela narra
que refletiu sobre o que a mobilizava e se deu conta de que sua questão de vida era entender
como as pessoas aprendem, o que a levou a buscar o curso de Pedagogia.
Indicador Sofia configura subjetivamente sua profissão na sua vida como uma escolha de vida
que lhe traz felicidade e satisfação. Significa também uma maneira de honrar o legado
Escolha de vida de Eduardo, as aprendizagens constituídas com ele, uma forma de torná-lo vivo em
cada criança na qual Sofia imprime potência, possibilidade, em cada criança na qual
ela inverte-se subjetivamente.
Essa escolha de vida, por sua vez, ganhou raízes cada vez mais fortes na relação de Sofia
com o seu local de trabalho. Ela narra que sempre percebeu aquele espaço como uma escola
com imenso potencial e, por isso, renunciou ao trabalho em uma escola de educação infantil
para dedicar-se a realizar seu estágio de um ano lá. Relata o quão desafiadora e construtiva foi
essa etapa de sua vida. Porém, o fim do estágio e o encaminhamento da sua formatura como
pedagoga é marcado novamente pelo luto da perda do pai:
“E eu estava aqui fazendo estágio e ele [seu pai] faleceu, e eu me lembro que a <nome da professora>, que era
a professora titular da turma, ela disse assim para mim: ‘Tu volta quando tu conseguir’ [suspiro, pausa] [...]
passaram os três dias, aí eu voltei para cá [escola]. E esse lugar foi um lugar muito acolhedor para mim, talvez
por isso que eu tenho muito carinho pela escola, sabe... [suspiro longo] Esse lugar foi um lugar muito acolhedor
para mim! [forte emoção] A <professora titular da turma> disse para mim: ‘Fica aqui, Sofia’. Porque eu cheguei
e ela disse ‘Fica aqui’, eu não consegui ir para a sala de aula quando eu retornei. E ela disse ‘Fica aqui [na
sala dos professores], vai para a sala de aula quando tu conseguir, quando tu se sentir bem... vai fazendo alguma
coisa por aqui’, para efeitos de estágio, para contar carga horária. E então eu fiquei aqui [sala dos professores
em que conversávamos]. Eu fiquei metade da manhã, fui ajudando uma colega, fui atender um telefone, né...
Daqui a pouquinho, uma criança veio buscar alguma coisa ou alguém pediu alguma coisa e eu fui... E quando
eu fui levar alguma coisa na sala, eles [os alunos dela] vieram e eles não falaram nada só me deram um abraço...
[forte emocionalidade] foi me dando um abraço... Nada corrido, aquela coisa muito bonitinha assim... E eu
voltei para a sala de aula. Eu consegui voltar para a sala de aula naquele dia mesmo. Naquele dia mesmo eu
consegui voltar para sala de aula. Ali eu já estava dando aula de novo [suspiro]. [...] E aí eu me lembro que eu
terminava aula, assim... E aí eu arrumava... [a sala de aula] Eu ficava um pouco sozinha... E aí eu chorava.
[...] Eu tinha que me cuidar em casa. Eu não podia muito fazer o meu luto né... E aí eu me lembro que eu sentava
lá na sala do 1º ano e aí a <professora titular> ia me ajudar, assim: ‘Ah, Sofia! Vai passar, tu vai ver. A vida vai
te chamar para vida!’ [chora muito emocionada com a lembrança]. Muito bonito lembrar disso, quando eu lembro
eu me emociono [forte emoção, pesquisadora já estava chorando junto com a participante]. E eu passei isso aqui
dentro... Com os alunos e com os colegas... Então eu tenho o maior carinho por eles... Eu tenho maior carinho
por esse espaço também [suspiro, enxuga lágrimas que caiam]! [...] Eu acho que eu trago várias marcas dentro
de mim assim... Mas eu aprendi muito, muito, muito!” (Sofia)
Percebe-se que Sofia consolida essa escolha de vida, que é ser uma professora de
crianças, como uma possibilidade de trabalhar o luto. A dor da perda novamente se faz presente
como um marco em sua vida. Porém, Sofia encontra justamente na escola a acolhida e o amparo
de que precisava naquele momento. A escola em que trabalha lhe sustentou em um momento
174
de dificuldades, configurando subjetivamente aquele espaço como algo a ser valorizado, algo
que faz parte de sua essência, algo que a motiva a se dedicar tanto: “Eu também gosto muito de
trabalhar aqui nesse lugar. Talvez se eu trabalhasse em outro lugar não teria tanto... talvez...
toda essa motivação”.
4.2.2 Flexibilidade
Neste núcleo foram mapeadas duas vertentes, interligadas, que expressam a produção
subjetiva da participante, denominadas “Ampliação de perspectivas” e “Características da
docência”, que serão apresentadas na sequência.
Aprender e aprendizagem foram tópicos que surgiram em inúmeros diálogos com Sofia,
sendo a expressão “eu aprendi” a mais recorrente ao longo das interações conversacionais.
Ainda durante a sondagem das possíveis participantes, foi solicitado no questionário que
elas respondessem à pergunta: “O que você entende por aprendizagem?”. Essa questão foi
inserida naquela ocasião para levantamento de possíveis desencadeadores de diálogo. Nesse
momento, Sofia perguntou, respondendo ao e-mail no qual foi enviado o questionário, se a
pesquisadora esperava uma resposta fundamentada teoricamente. Foi esclarecido que o objetivo
176
“Essa questão sempre nos remete às teorias que nos baseamos. Como não temos como escapar disso, tentarei
responder parafraseando algumas delas. Aprendizagem é uma mudança que ocorre em nós em nível cognitivo
por meio das experiências vividas, sejam elas intencionais (aprendizagens escolares) ou da própria vivência do
sujeito. Para que esses processos de apropriação e ressignificação das aprendizagens possam ocorrer, alguns
fatores são indispensáveis, tais como as estruturas mentais e as questões emocionais, as vivências e experiências
as quais o sujeito é submetido e, no caso da escola, a atuação dos professores e o envolvimento da família.”
(Sofia)
Levando em conta que uma elaboração por escrito é, na realidade, fruto de uma reflexão
consciente, a expressão da participante via questionário levou a elencar alguns pontos de partida
a serem abordados direta ou indiretamente durante as dinâmicas conversacionais:
a) Como Sofia vive esse conceito de aprendizagem?
b) No caso, a participante afirma que pensar a respeito da temática “remete às teorias que
nos baseamos [...] não temos como escapar disso”, o que se refere a conhecimentos
construídos (teorias), os quais ganham significado em sua vida. Que conhecimentos
seriam esses?
c) A participante entende aprendizagem como mudança, mobilidade e ressignificação,
promovida na relação das pessoas entre si e com o mundo. Como essa ideia se produziu?
d) Para ela, no processo de aprendizagem estão envolvidos diferentes fatores, como
estruturas mentais, organização emocional, qualidade das relações sociais e das
experiências vividas. Como essa elaboração se produziu?
É interessante salientar que se observou a atuação docente da participante junto aos seus
alunos e colegas por um semestre letivo. Nessas ocasiões foi possível perceber que Sofia
efetivamente buscava conciliar o currículo escolar com as necessidades de seus alunos. Para
isso, realizava atividades de sondagem contínuas visando a identificar que hipótese cada criança
estava elaborando a respeito do que estava sendo trabalhado no momento. A partir disso,
promovia experiências concretas para mobilizar o fluxo reflexivo das crianças, levando-as à
elaboração de novas e recursivamente mais complexas aprendizagens escolares, sejam elas
conceituais, procedimentais ou atitudinais.
Por exemplo, o trabalho com frações. Sofia provocava a reflexão das crianças a respeito
das parcelas de um inteiro utilizando para isso materiais concretos, os quais faziam parte do
cotidiano das crianças, como folhas de papel, caixas de ovos e até mesmo um bolo. Destaca-se
que o diálogo era seu maior instrumento de sondagem de conhecimentos, saberes constituídos
177
que estava ocorrendo na escola. As crianças, alunos de Sofia, estavam em conflito por terem
compreensões divergentes a respeito do que seria uma convivência adequada no espaço escolar,
isso porque as noções socialmente construídas na família, no bairro, em outros círculos de
convívio fora da escola, eram diferentes entre elas e muitas vezes destoantes – o que para um
era uma conduta naturalizada, para o outro era ofensiva. Entre os 20 alunos, havia dois que se
sobressaiam, pois divergiam bastante dos demais no que se referia à interação social. Eles
tinham como normalizadas, no círculo social fora da escola, condutas como xingamentos
preconceituosos e misóginos, além de atitudes maliciosas de dupla compreensão como formas
socialmente aceitas de relação com o outro, o que provocava forte desconforto entre os demais
(e em suas famílias), gerando um processo de exclusão dos dois meninos em algumas situações
escolares, como a hora do recreio e as atividades em grupo com livre escolha. Esse quadro
observado foi um dos disparadores conversacionais utilizados nos encontros formais. Nesse
caso, Sofia foi provocada a pensar sobre como planejava suas intervenções junto às crianças
com vistas a promover alguma aprendizagem necessária naquele momento, sem deslegitimar o
meio social das crianças e, ao mesmo tempo, promover a compreensão de que diferentes
espaços sociais supõem condutas distintas. Sofia expõe da seguinte forma o seu fluxo de
pensamento:
“A primeira coisa que eu vou pensando é assim: ‘Como que eu vou... como é que eu posso provocar situações,
ou utilizar situações que acontecem em sala de aula para fazer a criança se deslocar?’.” (Sofia)
4
Metodologia relacionada à Justiça Restaurativa.
181
5
Nessa escola existe um projeto em que as crianças do 5º ano do Ensino Fundamental apadrinham as crianças do
1º ano, provocando nos maiores o sentimento de responsabilidade pela orientação de seus afilhados em
momentos livres, como o recreio, no que diz respeito a interação respeitosa e condução de conflitos e frustrações.
As professoras relatam um duplo benefício do projeto: nos menores gera sentimento de pertencimento à escola,
criando a sensação de acolhimento; já nos maiores, provoca a responsabilização por ensinar os menores pelo
exemplo e o colocar-se no lugar do outro, especialmente dos professores, melhorando o convívio escolar.
182
Virgínia: E o que é aprender para ti? Tu falou muito, assim, sobre esse compromisso do professor com o
aluno... Seria o compromisso com a aprendizagem?
Sofia: Com aprendizagem! [concordância e empolgação reflexiva]
Virgínia: Com o desenvolvimento integral da criança?
Sofia: Com certeza! [mantém fluxo de emoção e expressa contentamento]
Virgínia: O que é aprender para ti? Na tua cabeça sim... Gostaria de explicar ou dar um exemplo... O que
é aprender?
Sofia: Eu vou falar bem assim... Eu não vou puxar muita coisa teórica... [um pouco de angústia e
preocupação]
Virgínia: Não, eu não quero coisa teórica. Eu quero Sofia por Sofia!
Sofia: [Suspiro, expressão de “Ufa, ainda bem!” e relaxamento] Eu acho que é mudança...
Aprendizagem também é mudança! Mudança... De uma forma que eu compreendo agora, de
como eu lido com as coisas agora e como eu... a possibilidade que eu tenho de mudar, de fazer
diferente em outras situações depois de passar por aquele processo... Eu me defronto diante de
um conflito, que eu não sei talvez como resolver, e aquilo me angustia... O que diz respeito a
questões mais emocionais... E a partir daquela vivência, né... Com a intervenção de outro ou
não... às vezes sem intervenção a gente também consegue, né! Eu aprendo certas as coisas, né?
Eu adquiro um conhecimento sobre aquilo e, da próxima vez, quando eu me defrontar com aquilo,
aquilo já é diferente para mim! Dando um exemplo de uma questão emocional, é algo que não
me deixa mais tão ansiosa... Ou não me deixa mais tão mobilizada, eu tenho mais maturidade
para enfrentar aquilo... Eu já tenho um conhecimento... Eu já tenho condições de fazer uma
leitura diferente daquilo, né?! Naquele momento... Mas não que eu não tenha o que aprender
ainda com aquela situação, eu aprendo mais um pouco... Quando eu me defrontar com aquilo
eu já estou mais preparada para enfrentar aquilo... [constante expressão reflexiva]
Virgínia: Já tem alguns recursos...
Sofia: Alguns recursos... E ali eu já estou aprendendo de novo! É algo que para mim não tem fim,
assim... Parece que é um processo que não tem fim... Aprender para mim é uma mudança, é
uma situação de se... De lidar com conflito, seja ele de conhecimento teórico ou emocional, de
qualquer ordem, tá... Lidar com aquele desconforto, com aquele desequilíbrio, aprender dali
algumas coisas e poder aplicá-las em alguma outra situação em que eu vou viver ela também,
né!? Ou em situações semelhantes. Eu acho que a aprendizagem é mais ou menos isso, assim,
falando sem puxar recursos de teóricos.
183
Nesse trecho é possível observar vários elementos que contribuem para compreender a
forma como Sofia elabora a ideia de aprender na escola. Percebe-se que surge novamente a
preocupação com as questões teóricas e um pouco de insegurança – infere-se que tal apreensão
se relaciona com o contexto da escola na qual Sofia trabalha, pois a maioria dos professores
tem título de mestrado e doutorado, e existem frequentes discussões que envolvem a evocação
teórica como forma de legitimar o pensamento, daí a preocupação levantada por Sofia. O que,
por sua vez, denuncia a prevalência naquele espaço da crença de que o conhecimento acadêmico
se sobrepõe às elaborações da pessoa.
Outro aspecto, novamente apontado, é o entendimento de aprendizagem como
mudança de estado, como movimento, um fluxo de constituir-se continuamente na relação
com o outro ou com o mundo. Isso pressupõe que a abertura ao diálogo potencializaria tal
movimento. Além disso, Sofia expõe aqui a compreensão de que a aprendizagem escolar supera
o aprender conceitos, procedimentos e atitudes, trata-se de um aprender para a vida, para criar
recursos de vida, o que se assemelha mais a um fluxo de produção subjetiva, ou seja, uma
educação que passa pela subjetividade de todos que compartilham a experiência educativa.
Coloca em consonância a experiência escolar com a experiência de vida, corroborando a
compreensão da aprendizagem escolar como um complexo processo de constituição de
recursos de vida para ser e viver em sociedade, em um mundo compartilhado, que exige do
ser humano um constante mover-se, um constante reinventar-se na processualidade da vida,
traduzido na expressão de Sofia: “podemos juntar a formação cidadã com os conteúdos básicos
sem problemas”.
Novamente, levando em conta a compreensão do processo de produção subjetiva de
Sofia, pode-se entender o fluxo do seu pensamento por meio do esquema simplificado a seguir,
o qual busca expressar o entendimento da participante sobre o que é aprender, ou, como se
processa o aprender:
que sua primeira professora lhe inspirou a, também, tornar-se uma professora e que desejava
ser como ela, uma profissional que atuava de forma a conectar-se com seus alunos a partir da
linguagem que fazia sentido para eles naquela etapa da vida: a ludicidade.
Acompanhando o cotidiano de Sofia na escola, percebe-se que ela ainda cultiva tais
significações de forma a imprimir essas marcas da sua subjetividade em seu espaço de trabalho.
Nota-se nos depoimentos de suas colegas que Sofia as envolve dialogicamente, de forma a
provocá-las a, também, produzirem-se subjetivamente como professoras naquele espaço, como
autoras, despertando no grupo a construção dialética de uma subjetividade social na qual
todos se reconhecem. Por essa perspectiva, também é possível compreender que quando a
professora Olívia, colega de Sofia há aproximadamente dez anos, refere que “ela [Sofia] é a
‘cara da equipe’”, está falando da construção dessa subjetividade social, que é compartilhada
pelo coletivo de professores, mas reflete fortemente as marcas subjetivas impressas por Sofia.
Cabe ressaltar que em nenhum momento é relatado ou observado que Sofia impôs
alguma conduta a seus colegas, mesmo estando na posição de coordenação, muito pelo
contrário, tudo indica que Sofia age efetivamente de forma a construir o espaço compartilhado
pela via do diálogo e da conciliação. Nada é absolutamente perfeito, mas com certeza Sofia é
respeitada naquele espaço apenas por ser a pessoa que ela é, não por sua posição.
Efetivamente se percebe a construção e a sustentação de uma relação de horizontalidade
naquele espaço, uma relação que supõe reconhecimento e pertencimento de cada um para
com o coletivo e do coletivo para com cada um.
Aqui, é importante retomar a história de Sofia na instituição. Primeiro ela foi estagiária
na escola, depois professora temporária e, por fim, professora efetiva. Quando retomamos como
foi a sua trajetória profissional naquele espaço, evidenciaram-se muitas diferenças quando se
compara com a forma como se vive os Anos Iniciais hoje. Isso leva a crer que ocorreram, nesse
meio-tempo, mudanças significativas na configuração subjetiva equipe de Anos Iniciais.
Sobre a sua primeira experiência na escola Sofia expressa o seguinte:
“Eu me lembro que as pessoas passavam por mim e diziam: ‘Coitaaada! [Friso] Ela é a estagiária daquela turma
do 1º ano!’. E eles diziam assim: ‘Essa é uma turma que é muito atípica! E tu sabe que quando chega uma turma
assim, a gente diz que aquela turma é muito diferente!’. Eles diziam que aquela turma era muito diferente, que
eles não estavam acostumados com essa turma, com uma turma dessas. Aí, naquela época, é que surge aquela
questão assim, eu ouvi aquilo assim: ‘O colégio deveria sortear [quis dizer selecionar] de novo os alunos, porque
senão a gente fica perdendo muito tempo com esses alunos, e não consegue pesquisar!’. Eu ouvi essa frase e
isso ficou marcado em mim, tá! [friso] E eu me lembro que eu disse assim... Desculpe! Selecionar! ‘Os alunos
não podem mais ser sorteados, os alunos têm que ser selecionados. Quando os alunos eram selecionados a gente
tinha muito mais tempo para pesquisar!’. Foi essa frase que eu ouvi, tá! [friso, indignação] E aí diziam assim:
‘Esses alunos demandam muito tempo! Com as coisas todas que eles fazem e a gente não tem mais tempo para
pesquisar!’. Tá!? E, aí, eu me lembro que eu digo isso, nessa mesa aqui [...], dessas grandonas de reunião
[mostrando o local]: ‘Mas não seria um motivo para pesquisa? Um mote para pesquisa?’. Aí eu fico me
186
perguntando assim: ‘É esses aí que a gente tem que pesquisaaar!’. [Friso – forte emocionalidade, como um grito
que ecoa solitário, depois abre um sorriso] Eu fiquei pensando assim...” (Sofia)
Nesse trecho é possível verificar, a partir da expressão de Sofia, o quanto ela ficava
incomodada com as crenças sociais compartilhadas (naquele local, naquele tempo) a respeito
dos alunos que eram considerados diferentes ou atípicos. Percebe-se que havia uma crença
baseada no princípio da homogeneidade das turmas e na ideia de aluno ideal, ou seja, na
concepção de que haveria alunos aptos e alunos inaptos à escola, sendo estes considerados como
entraves a tarefas socialmente mais valorizadas naquele espaço, como a pesquisa. Isso, por sua
vez, fala de uma concepção de escola socialmente constituída ao longo de século (como já
exposto anteriormente), especialmente no que se refere à docência de crianças. Daí, também, a
perspectiva de que a pesquisa seria uma tarefa mais nobre do que a docência de crianças.
Entretanto, cabe lembrar que se trata de um espaço urbano, embora periférico, de uma capital,
no início do século XXI. Crença essa que, embora inconsciente, produzia o ser e o viver naquele
espaço, legitimando práticas de exclusão que não passavam por um processo de reflexão,
apenas eram reproduzidas, inclusive entre as crianças, tal como segue abaixo, ocorrida durante
seu estágio:
“Essa criança tinha uma situação socioeconômica muito boa, a que me agrediu... E quando vinha para cá ele
dizia: ‘Eu detesto vir para cá! Quando eu venho para cá eu só vejo maloca!’ [tom de voz diferente, expressão
pejorativa, referindo-se a colegas que eram mais pobres]. Então, a gente [ela e seus alunos] fez um trabalho a
partir da palavra que ele disse: maloca. “O que era uma maloca? De onde vem essa palavra? E por que ele
estava chamando essas outras casas de malocas?” [fala como se estivesse falando com as crianças, de forma a
provocar reflexão] Porque, inclusive, era a casa de colegas dele, né! Que ele passava e chamava de maloca, né!
[humor, risos] Então, a gente fez um trabalho nesse sentido, né! E a gente usou, inclusive, a palavra na pesquisa.
Alguns pais até pensaram assim: ‘Eles estão até pesquisando na 1ª série?’. Mas não era só pesquisar uma palavra,
entendeu? Pesquisar uma coisa muito pequena assim, era perguntar para as pessoas o que isso significava [a
palavra maloca] para a gente fazer a discussão em sala de aula. Pronto! E esse menino que me agrediu, que
tinha essa situação com a palavra, de ofender os outros, de dizer que os outros moravam numa maloca... [silêncio
reflexivo] Porque essa palavra era utilizada de forma pejorativa, mas não é pejorativa! Era como se designava
algumas habitações, né!” (Sofia)
a seus princípios e valores essenciais. Assim, diante do impasse, mesmo sendo uma professora
iniciante, utiliza seus recursos de vida, especialmente as configurações subjetivas produzidas a
respeito do conflito e da conciliação dialógica, agindo, de maneira mais ou menos consciente,
de forma a mobilizar a reflexão a respeito de práticas discriminatórias que eram apenas
reproduzidas. Em outra ocasião, Sofia refere que depois de algum tempo percebeu que as
crianças tidas como “inaptas” ou “atípicas” eram, na sua maioria, negras e/ou pobres. Percebeu
que a escola, que em um primeiro momento lhe encantou pela proposta, na realidade legitimava
práticas de exclusão, o que lhe causou muito desconforto e uma necessidade intrínseca de fazer
algo para mudar aquela situação.
Em um dos encontros, Sofia cita que existem situações que lhe desagradam muito, um
desconforto intenso a ponto de não conseguir suportar, sendo discriminação de qualquer
natureza um desses desencadeadores.
Sofia: Talvez eu precise trabalhar em mim algumas coisas, mas algumas coisas eu simplesmente não
consigo conviver e eu cheguei a uma conclusão que está bom, que tem algumas atitudes, assim,
de tratar o outro, de discriminar o outro, gente dissimulada, com atitudes dissimuladas, me
incomoda muito, de tentar fazer a coisa para o outro cair assim, propositalmente. Isso me
incomoda muito. Eu vivi isso. Na escola eu tive isso aí.
Virginia: Me conta uma situação que aconteceu contigo.
Sofia: Ai... de pessoas assim que... Por exemplo, de pessoas assim quererem que se fazer de teus amigos,
mas eles não são na verdade. Tem uns amigos, entendeu... aí usavam teu material, fazer um
trabalho para ter...
Virginia: Algum benefício?
Sofia: Benefício... [pensa e balança a cabeça afirmativamente] Mas quando era para ir na casa dela
[fala de si mesma pensativa], quando era para se divertir, ou quando era para dividir, assim, o
lanche, aí não era contigo, né? Chegavam só quando tinha algum benefício. Eu morava perto da
escola e poderiam ir lá na minha casa tomar água, alguma coisa, descansar... né!? Terminou a
aula mais cedo aí diziam: “Ah vamos lá na casa da Sofia tomar...”. Quando era alguma coisa
para se beneficiar a pessoa estava pronta, mas quando era para dividir comigo as pessoas não
estavam.
Sofia afirma que se sente convocada a intervir perante um ato que lhe toca na intimidade,
uma “cutucada lá dentro”. Sente necessidade de provocar a reflexão a respeito de expressões
da subjetividade social de cunho discriminatório, que são replicadas de forma naturalizada, tal
como no exemplo do menino chamando o outro de burro na sala de aula. Abrindo espaço na
escola para se pensar a respeito daquilo que não é pensado, daquilo que simplesmente é
reproduzido, gerando novos fluxos de elaborações sobre o ser e viver em sociedade, ou, nas
palavras de Sofia, “aprendizagem cidadã”. A participante indica tratar essa questão como uma
função social da escola, uma postura provocativa à emergência da empatia, do senso crítico
sobre as razões e significados das palavras ditas e sobre os sentimentos produzidos por elas.
189
Esse exemplo leva a refletir a respeito de como a provocação dialógica, sustentada pelo
vínculo de qualidade professor-aluno-grupo, tem o potencial de tocar cada um de forma a
implicá-lo na construção de possibilidades de ação alternativas ao que preconiza o senso
comum, provocando paulatinamente a elaboração de senso crítico e responsabilidade cidadã
nas crianças. Projeta-se para fora dos muros da escola uma verdadeira aprendizagem para a
vida em sociedade. Acredita-se que quando Sofia afirma que é possível “juntar a formação
cidadã com os conteúdos básicos” é sobre isso que se refere.
Indicador A escola, além de cultivar o acesso aos bens culturais da humanidade a todos os alunos,
tem como função social promover espaços de reflexão que visam à construção de
Função social da uma consciência cidadã, utilizando, para isso, as próprias situações de conflito que
escola surgem no cotidiano escolar, mediadas por um processo dialógico reflexivo,
sustentado pelo vínculo de qualidade professor-aluno-grupo. O que, por sua vez,
provoca a abertura de novos caminhos alternativos de ação e a implicação de cada
pessoa com a produção do espaço coletivo social, seja ele a escola ou a sociedade.
nem todos se implicam da mesma maneira, mas, em longo prazo, como é percebido no caso de
Sofia, potencialmente mobiliza a subjetividade social do espaço institucional. A exemplo dessas
mudanças, Sofia refere em diferentes momentos o quanto a construção de um projeto
pedagógico de Anos Iniciais na escola em que trabalha era um objetivo profissional que
almejava – algo ao qual se dedicou por quase uma década, sempre referindo que se tratava de
uma construção coletiva que expressava princípios e valores compartilhados, tal como no trecho
abaixo:
“Fiquei feliz que a gente conseguiu fazer o projeto da área, tô feliz que a gente conseguiu fazer o projeto da
equipe, vou ficar feliz se a gente conseguir fazer uma sequência didática, mínimas que for, se a gente conseguir
organizar a ERER (Educação para as Relações Étnico-Raciais) do jeito que tem que organizar, entendeu? E
pensar nesses alunos que dão... assim... que nos dão mais... que desafiam mais as questões de aprendizagem e
comportamento. Se a gente fizer isso minimamente, se a gente conseguir, já vou estar bem feliz!” (Sofia)
Quando Sofia fala desse documento, dá a entender que não se trata de algo para ser
arquivado ou consultado eventualmente, mas algo para ser vivido, praticado no cotidiano da
escola. Por essa razão, buscou-se o documento para ter uma compreensão mais aprofundada do
que Sofia estava tentando expressar. O projeto da Equipe de Anos Iniciais6, hoje oficializado
pela escola, aponta os seguintes princípios organizadores:
1) O direito à aprendizagem: o qual expressa diretamente que “A equipe de professores
tem como princípio que toda criança aprende. Cabe ao professor ser corresponsável
por essa aprendizagem em conjunto com a família, a própria criança e demais segmentos
da comunidade escolar. Nessa perspectiva todos os alunos são respeitados em seus
tempos e formas de aprender. Cada criança é olhada em sua singularidade e ao professor
cabe promover estratégias didáticas de ensino que potencializem o processo de
aprendizagem de cada aluno e o avanço dentro do currículo escolar”.
2) Igualdade de condições de permanência, cabendo à equipe construir estratégias para
que esse princípio se efetive, o que “significa considerar as características cognitivas,
culturais e sociais dos alunos, buscando construir métodos, estratégias e conteúdos que
melhor possibilitem promover as aprendizagens e a permanência escolar”.
3) O direito à diferença, que expressa a valorização da individualidade de cada pessoa,
sua historicidade, cultura e constituição biopsicossocial.
6
Os trechos aqui apresentados referem-se a anotações de trechos do documento registradas no diário de campo
em momentos informais na escola, nos quais a pesquisadora teve acesso ao projeto da equipe de Anos Iniciais.
A referência do documento não foi inserida para não expor dados que identifiquem a participante.
191
e viver o espaço educativo o catalisador da aprendizagem cidadã, rompendo de uma vez por
todas com a crença na eficácia das classes homogêneas historicamente produzida.
Indicador Ser professor de crianças é uma tarefa exigente e muito complexa. Implica
compromisso e responsabilidade para com a formação integral do ser humano. Essa
Ser professor de tarefa requer coragem e persistência para enfrentar desafios e resistências. Supõe o
crianças reconhecimento do outro como ser humano capaz de ensinar e de aprender,
independentemente de suas condições biopsicossociais, o que exige abertura ao
diálogo. Ser professor é zelar pela equidade de oportunidades de aprendizagem, de
desenvolvimento e de participação no espaço educativo. É, também, assumir a
incompletude do saber, colocando-se em um movimento recursivo de aprendizagem e
elaboração do vivido.
Ser professor de crianças foi uma das temáticas abordadas no questionário enviado à
participante. Na ocasião, Sofia relatou tratar-se de “uma tarefa de muita responsabilidade, pois
participamos das primeiras experiências dos alunos/as na educação formal. Por vezes, essas
experiências podem ser fundamentais para a relação que essa criança estabelecerá com o
conhecimento e a aprendizagem”. A fim de desenvolver essa elaboração, Sofia foi instigada a
193
pensar em situações marcantes na sua carreira e, entre tantas, narra o episódio ocorrido em
2018:
“Outra dia, outra experiência que eu vou levar para minha vida foi quando termina a olimpíada do colégio do
ano passado e o <nome do aluno> [aluno com questões disciplinares e psiquiátricas importantes]... fazia umas
duas olimpíadas que ele não vinha, que ele não conseguia vir, que ele ia para casa... [não conseguia participar
em razão da grande reatividade frente a frustrações relacionadas ao ganhar e perder que o fazia não conseguir
participar dos jogos] [...] e no ano passado ele conseguiu ficar, eu acho que ele nunca conseguiu ganhar a
medalha [todos que participam ganham], né!? E no final do ano passado ele conseguiu ficar até o final. Sabe,
ele teve momentos difíceis, mas a gente chegava perto dele e dizia “tá, respira...” [fala calmamente e baixinho,
respirando profundamente, indicando como fazia com o garoto] Foi um outro momento, várias crianças se
desorganizavam e ele conseguiu ficar. E no final ele ganha a medalha. Um tinha que colocar no outro, sabe!?
E a <nome da aluna> tinha que colocar nele a medalha, cada um ganhava a sua medalha, mas não era para si,
tinha que dar para o outro, e ele era sempre o último a ser escolhido, e ele achou que ele não ia ser escolhido,
ele começa a chorar, chorar... Mas a <nome da mesma aluna> vai lá e bota a medalha nele... essa criança chora
compulsivamente! [forte emocionalidade, mareja os olhos] Nós temos uma filmagem, sabe!? [suspiro] Ele chora
desesperadamente e a gente faz uma abraço ali, um abraço coletivo da turma, de toda a turma abraçando ele,
assim... e ele chorando compulsivamente porque ele conseguiu chegar no final da olimpíada e que ele conseguiu
a medalha que ele tanto queria. Eu me emocionei muito, para variar! [risadas] Eu sou muito chorona! E eu disse:
‘Viu que tu conseguiu a tua medalha?’, e ele chorava muito. Então, foi um momento de conquista não só dele
né, foi da turma... Porque a situação que a gente viveu com aquela criança, com aquela turma toda né, justamente
uma criança que a mãe [da colega que deu a medalha] tinha toda uma questão com ele né!? [a mãe havia feito
um movimento pedindo a expulsão desse menino da escola] É ela que vai lá e bota a medalha nele, entende!
[sorriso] E ela [a colega] conseguiu desenvolver assim.... ela conseguiu desenvolver... ela saiu do lugar de uma
criança que tinha umas atitudes bem... atitudes de cunho discriminatório, para uma criança que conseguiu fazer
movimentos bem significativos de empatia, sabe!? [forte emoção] Ao final do 5º ano, assim... Então, quando eu
via aquela cena... [suspiro] Eu disse: ‘Eu levo para minha vida agora!’ [indica satisfação] Essa cena desse
menino recebendo a medalha e ficando até o final... esse é um deles né, eu teria muitos outros!” (Sofia)
A participante relata que foi professora dessa turma por dois anos consecutivos (2017 e
2018), que era um grupo com importantes questões relacionais a serem tratadas para além do
que era proposto no currículo de 4º e 5º anos do Ensino Fundamental, tais como: não havia
implicação entre as crianças, o grupo era constituído por várias crianças que buscavam fazer
valer sua vontade a qualquer preço (o que incluía disputas, brigas e a organização de alianças
que tinham por fim prejudicar ou fragilizar o outro, sejam colegas ou professores), atos
discriminatórios eram frequentes, o que incluía depreciações sociais, xingamentos racistas e
misóginos. Essas frequentes situações eram tratadas na sala de aula e com as famílias das
crianças envolvidas, mas não surtiam mudanças significativas. Por sua vez, a alfabetização
acabava não recebendo o investimento devido, o que acabou por prejudicar o aproveitamento
geral da turma, contribuindo para a criação de lacunas nas aprendizagens estabelecidas pelo
currículo escolar.
Sofia coloca que, nesse contexto, assumiu a turma em docência compartilhada com a
professora Helena, objetivando conciliar as demandas curriculares com as necessidades
relacionais apresentadas. Ela fala sobre as situações vividas junto a esse grupo de forma
humorada, com a expressão “qualquer perna de mosquito virava uma sopa”. Sofia relata que
foi necessário muito investimento para que aquelas crianças conseguissem entrar em diálogo,
194
para que conseguissem reconhecer o outro como um ser humano na sua unicidade e para que
conseguissem se perceber como um grupo. Conta que a turma constantemente exigia do grupo
de professores muita firmeza, atenção aos detalhes e às diferentes formas de expressão, além
de muita sustentação emocional para que cada criança se sentisse autorizada a se expressar
sem medo de ser hostilizada. Ela enfatiza que “tiveram momentos difíceis”.
O episódio narrado por Sofia expressa uma situação ocorrida quando a turma já estava
no final do 5º ano, momento no qual já havia se constituído um grupo, com sua pluralidade e
singularidade. O momento provocou em Sofia grande satisfação – foi singelo, mas
extremamente representativo, que evidenciou a construção de aprendizagens muito importantes
para aquelas crianças, aprendizagens para a vida, para ser e viver em sociedade tais como: não
desistir facilmente de seus objetivos, encontrar estratégias para evitar agir impulsivamente,
aprender a lidar com as frustrações e reconhecerem-se como grupo apesar de suas diferenças.
O que corrobora a compreensão de sua configuração subjetiva do ser professor de crianças.
“[...] eu entro aqui e conheço aquela turma maravilhosa, aquelas crianças tudo lindinha, limpinha, maravilhosa,
né? Aí eu começo a dar aula e tem uns seis, assim, ‘Ai, que crianças que destoam dessa turma!’ [faz uma expressão
facial que remete à reflexão]. Os outros aprendiam quase que sozinhos, né, tudo organizado seu material, e tinha
uns seis, assim, muuuuito difíceis! [...] E eu me lembro um dia que eu disse assim: ‘Se não fossem esses seis
alunos essa turma era perfeita’. Pois tu sabe que alguém ouviu! Assim... do mundo espiritual, e disse assim: ‘Ah,
é? Então tu vai aprender!’. [humor] Aquelas seis crianças me viraram do lado avesso! [risos] E, até hoje, eu
lembro deles, assim... eu tenho um carinho por eles, porque eles, assim... me tornaram muito do que eu sou hoje.
Eu aprendi com eles! [Sorriso] Primeiro, a maioria deles era alunos negros. E que não permaneceram aqui na
escola. Então, assim, eu aprendi a conhecer eles... Que essas crianças têm histórias de vida muito difíceis, muito
distintas do que eu queria. Eu queria uma sala de aula tranquila e harmoniosa, em que eu pudesse fazer as minhas
propostas maravilhosas que eu vinha planejando. E eu chegava aqui e aquelas crianças botavam tudo no chão!
[sorriso] O que eu estava planejando, né!? [riso] E eu tinha que refazer as coisas [estágio], e era como se... claro,
essa era minha leitura, tá, era como se eles fizessem assim: ‘tu-vai-olhar-para-nós!’ [friso, move as mãos como
a chacoalhar]. E aí um dia eu paro, assim... eu fico pensando: o que eu vou fazer? [feição de desespero]” (Sofia)
195
Sofia refere que hoje percebe que ao longo do tempo foi construindo expectativas a
respeito do que seria ser uma professora de 1º ano, uma turma perfeita, a qual correspondia às
memórias afetivas de sua primeira experiência escolar, a forma como foi uma aluna implicada
e a maneira como sua primeira professora trabalhava. Conheceu a escola e se encantou com a
proposta dos Anos Iniciais: “Eu fiquei encantada com a proposta da escola! A pessoa que eu
observei era uma professora temporária [...] E foi muito interessante ver, na prática, aquilo
que eu via muito em teoria”. Ela ainda refere que “achava que [...] ia ensinar a ler, a escrever
e a calcular”.
Porém, a realidade vivida no estágio não correspondia à idealizada, e seu planejamento,
que era projetado levando em conta uma realidade que não existia, consequentemente, não
funcionava. Ou, nas palavras de Sofia, as “crianças botavam tudo no chão!”. Sofia segue o
relato referindo que renunciar às idealizações e permitir-se a aprender do outro e com o
outro foi um passo muito importante para tornar-se a profissional que é hoje, levando-a a
entender que na situação escolar a criança se coloca tal como ela é, em sua integralidade e
complexidade. Pela expressão de Sofia, esta não foi uma aprendizagem tranquila, o que pode
ser observado no trecho que segue: “Eu apanhei de aluno... [riso nervoso]. Eu tive uns a-lu-
nos [pausa, angústia], foi uma coisa que... assim... gente!... Foi... Uhf! [expressão de sufoco]”.
Sofia, assumindo sua incompletude, busca auxílio com sua orientadora de estágio, a qual
lhe indica: “Tu tem que olhar, vai olhando o que acontece nesse grupo”. Sofia, então, segue
elaborando seu processo de reflexão afirmando que quando se dispôs a entrar em relação com
aquelas crianças reais, a olhá-las, percebeu detalhes para os quais não havia atentado, detalhes
que estavam para além do que era dito diretamente:
“E, aí, eu começo a olhar para eeesse grupo [friso], entendeu?! E, aí, eu percebo que ele é todo dividido! Assim:
que alguém ia sentar e assim: [mexe na cadeira] ‘aqui já tem gente’, mesmo que não tivesse ninguém [...] eram
grupos formados, fechados [...] Aí eu me defronto ali com fato de que as crianças discriminam, sim! [ênfase] Que
as crianças já vêm... que elas não são... que as crianças não estavam dentro de uma redoma de vidro! [...] Elas
não eram tão inocentes! Essas crianças estavam no mundo desde que nasceram, e elas estavam sendo formados
a partir das coisas que viveram, dos discursos, das narrativas, enfim, dos princípios das suas famílias, dos
valores... e eles trazem tudo isso para a escola com 6 anos de idade, sim! [...] E, então, eu vou vendo: ‘quem são
esses aí que nunca têm grupo?’. São os seis que incomodam também [conclusão a partir do observar reflexivo].
‘E esses seis que incomodam são quem?’ Geralmente são as crianças que têm menor poder aquisitivo naquela
turma [...] E assim que eu fui vendo aquilo... acontecendo na minha frente, eu comecei a reviver as minhas
histórias também! [...] e eu estava pensando assim: ‘como é que eles estão se sentindo?’. Aí vem a empatia!
[friso, inclusive com a mão gesticulando] Então, né, começou a surgir... né!? E aí então eu comecei a pensar:
‘Como é que eles estão se sentindo? Pô!’. E aí eu comecei a pensar assim: ‘Como eu me sentiria sem ter grupo?’.
E aí eu pensei: ‘Eu já senti isso! O que é não ter grupo!’.” (Sofia)
Aqui, são salientados outros dois pontos importantes: o primeiro refere-se ao fato de
Sofia ter percebido que na turma em que atuava como estagiária não havia a constituição de um
grupo, não havia conexão entre as crianças, elas não se reconheciam como parte de um todo
196
único, tal como a turma com a qual trabalhou em 2018 e 2019; o segundo ponto refere-se ao
fato de Sofia elaborar que mesmo crianças pequenas reproduzem discursos que expressam a
subjetividade das instituições das quais fazem parte. Esses dois aspectos a tocam no íntimo,
pois em dado ponto Sofia percebe que muitas outras crianças viviam o mesmo que ela viveu ao
longo da escolarização – eram excluídas veladamente apenas por ser quem eram, por viver nas
condições que viviam. O movimento empático a convoca, de forma mais ou menos consciente,
a criar estratégias para romper com o fluxo de reprodução de discursos sociais discriminatórios
naturalizados. Sofia afirma que isso a levou a estudar mais e a buscar ajuda na escola e na
universidade que frequentava, a fim de entender melhor a situação e criar estratégias de ação
que conciliassem a necessidade curricular de se trabalhar o processo de alfabetização ao mesmo
tempo que trabalhava questões sociais latentes.
“A primeira coisa que a gente identificou foi a questão do racismo, porque eram justamente os alunos negros.
Então eu trago uma história bem conhecida [...] e essas crianças dizem: ‘Ela não é bonita coisa nenhuma! Ela é
horrorosa! Ela é feia!’. E, aí, bom... e, aí, eu me encontro na minha turma com essa série de situações. E aí eu
pensei assim: ‘Bom, caiu as minhas ilusões sobre uma turma de 1º ano!’ [friso, riso nervoso]. Essa coisa de ‘Que
pena que tem estes seis alunos...’. Foram justamente esses seis alunos que foram me ensinar muito [...] E eu me
lembro que eles traziam de tudo para mim. Além dessas questões étnico-raciais, eles me traziam as questões de
aprendizagem, que alguns não conseguiam... e as questões de manejo, entendeu?! [...] Precisavam de material
adaptado! [...] Eu fazia e não sabia o que que era, né! Ele precisava de material adaptado, ele precisava que as
atividades dele fossem diferenciadas. Aí daqui a pouquinho tiveram alguns que avançaram na questão de leitura
e escrita e na aprendizagem da alfabetização e outros que não. E eu tinha que adaptar também. [...] Foi um
aprendizado atrás do outro.” (Sofia)
Para Sofia, este foi o grupo que a tornou professora efetivamente: “Parece que para me
experimentar na hora do meu estágio, sabe”, confirmando as suas intenções de ser uma
professora, embora já trabalhasse com Educação Infantil há alguns anos. O movimento de
tornar-se professora é sucessivamente associado por Sofia ao processo no qual foi convocada
por seus alunos, mais especificamente os seis alunos citados, a abdicar de suas ideias prévias,
suas imagens ideais, e a buscar se conectar com as crianças reais em sua complexidade,
necessidades e potências manifestadas de maneira direta ou não, configurando na sua
subjetividade mais um aspecto a respeito de sua profissão.
Virgínia: Tem alguma situação que tu acha que foi meio emblemática na tua vida [profissional]?
Sofia: Tem várias, mas em qual relação, em relação ao aprender? Muitas, tantas, tantas, tantas, assim...
Desde coisas muito simples, assim, como organizar materiais, por exemplo, como na vida
profissional, tá! Como lidar com certas questões de crianças... Como ter mais paciência com
alguns retornos que as crianças não nos dão de imediato... são tantas... eu tô pensando assim...
De crianças em que tu acaba até ensinando a como utilizar o papel higiênico por exemplo... [...]
De uma criança, assim, que tu tinha que ensinar a colocar o papel higiênico, de como é que puxa
o papel higiênico, de coisas básicas! Entende?! De como limpar o nariz... “Como é que eu vou
ensinar essa criança a ler e escrever se não consegue nem mexer com as mãos para cuidar do
próprio corpo?” O básico, entende? Então, essa é uma situação bem... Que me lembra muito,
assim...
Por meio dos exemplos citados e ressaltado no trecho, percebe-se que ser professor de
crianças envolve muito mais do que ensinar conteúdos didaticamente organizados em um
planejamento que considera o aluno médio e um currículo estático. A partir de sua história de
vida como professora, Sofia denuncia que, mais do que ter conhecimentos a respeito de
métodos, de didáticas e do currículo, faz-se necessário investimento dialógico com a criança.
Entende-se, a partir do diálogo e do encontro entre necessidades da criança com as do
currículo, que se constitui e se legitima a figura do professor, bem como elabora-se a função
social da escola na vida da criança, significando as aprendizagens constituídas por ela nesse
espaço.
Compreende-se, também, que o movimento desencadeado pelo processo dialógico
potencializa a constituição recursiva de novas produções subjetivas cada vez mais complexas,
as quais atribuem significado e valor ao vivido, ao compartilhado, provocando, dessa maneira,
implicação e autoria. Constitui-se, assim, um espaço no qual professores, alunos, escola e
comunidade se reconhecem como atores que ensinam e que aprendem, tendo, cada um, o seu
valor para a constituição do espaço social compartilhado. Trata-se de um legítimo processo de
aprender para a vida e para a cidadania que supõe relação, parceria e constituição de vínculo
de qualidade, os quais atribuem significado à experiência escolar sob a perspectiva da
possibilidade, da equidade, da oportunidade, do reconhecimento e do respeito às diferenças, da
potência de cada pessoa para constituição do coletivo. Um espaço efetivamente inclusivo, o
qual contempla as necessidade e potencialidades de todos, um espaço que é ao mesmo tempo
singular e plural, um espaço complexo e relacional.
As características aqui apontadas se referem à forma como Sofia vive a sua profissão,
processo que se dá recursivamente por meio da mobilização de fluxo de produção subjetiva,
199
4.2.2.2.1 Dinamicidade
Solicitada a pensar sobre sua carreira e sua escolha profissional, Sofia refere que
o que sente na condição de professora é muito diferente do que sentia quando trabalhava
na área administrativa. Ela narra que, quando passou no vestibular para Pedagogia, desligou-
se do seu trabalho (administrativo), se encantou pelo curso e pela profissão de professor. Já por
volta do segundo semestre, conseguiu um estágio em uma escola de Educação Infantil e logo
em seguida foi efetivada, permanecendo lá até o seu período de estágio obrigatório, o qual foi
realizado na escola em que hoje trabalha. Relata com orgulho e forte emocionalidade seu
encantamento pela profissão e que não se imagina fazendo outra coisa, ressaltando o seguinte:
“[...] Se eu fiquei dois anos fora de sala de aula foi muito! Me en-can-tei! [forte emocionalidade] Assim, a sala
de aula para mim é um dos lugares mais dinâmicos e incríveis de possibilidades! [sorrisos, emocionalidade -
satisfação] Ela [sua profissão] é algo que tu planeja, planejamento é fundamental, mas ele é um planejamento
que nunca ocorre como tu pensa que vai ocorrer. [...] Mas o que me move estar aqui é isso... essa coisa que
nunca vai ser o mesmo. Eu nunca vou cair no tédio! [risos] Com certeza, eu nunca vou cair no tédio! Porque
sempre tem alguma coisa para descobrir.” (Sofia)
Sofia por buscar entender como as pessoas aprendem, questão surgida ainda na relação com seu
irmão Eduardo e assumida pela participante como um objetivo de vida que se renova no dia a
dia, provocando-a a um dinâmico movimento.
Por sua vez, a busca por entender como as pessoas aprendem é produzida
subjetivamente por Sofia como uma forma de viver a docência, o que implica um fluxo
recursivo, que ocorre a partir do encontro com o outro real e, consequentemente, do
enfrentamento dos desafios cotidianos. Nesse movimento, a dialogicidade exerce
fundamental papel, visto que se trata de uma questão que nunca terá uma resposta definitiva e
que supõe mobilidade, abertura a desacomodar-se e aprender com o outro e do outro. Dessa
maneira, ser professora de crianças é configurado subjetivamente por Sofia como
oportunidade de construção de caminhos subjetivos alternativos aos determinismos sociais,
de constituição de novos e mais complexos saberes a respeito do ser e do viver no espaço
escolar e na sociedade.
Em outra ocasião, Sofia relata que logo que concluiu o curso de Pedagogia, ingressou
como professora temporária na mesma escola em que realizou seu estágio. Aos poucos foi
percebendo que muitas crianças saíam da escola em razão de sucessivas reprovações,
denunciando a existência de formas de exclusão veladas, mas socialmente aceitas, baseadas na
crença dos aptos e inaptos à escola, que segregava aqueles que não se encaixavam em um perfil
ideal de aluno almejado pela instituição – situação daquelas seis crianças que provocaram Sofia
a se tornar efetivamente uma professora ao longo de sua experiência de estágio.
“E aí eu vou percebendo que fulano não está mais, que beltrano não está mais... E, aí, como eu conhecia as
outras turmas, porque as minhas colegas fizeram estágio, e eu conhecia os alunos [que também ‘destoavam’]
porque elas [suas colegas] levavam os casos nas reuniões, eu já não enxergo mais aqueles alunos. E aí eu começo
assim: ‘Mas cadê essas crianças?’ [...] Esse negócio de ficar se livrando de aluno para não ter trabalho, na
minha opinião, é um princípio meu, é inadmissível! [Frisa muito essa parte] É simplesmente inadmissível, tá!
[...] Para mim ela acaba acomodando os professores nas suas práticas. [...] Isso não é correto! Na minha opinião.
Este é um princípio meu. Os alunos são para fazer isso, né, para deslocar a gente, mesmo até esses alunos que
acabam nos ofendendo. Em algum momento, não é que a gente vai naturalizar isso, mas a gente não pode usar
isso para se livrar desses alunos. A gente precisa... [...] ver o que a gente pode fazer por eles! Que alunos são
esses que estão chegando para nós?” (Sofia)
uma via de conciliação dialógica que convida à reflexão sobre o vivido. Esse processo resultou,
anos depois, na produção de uma subjetividade social da equipe de Anos Iniciais com caráter
mais inclusivo, o qual reflete valores e princípios compartilhados. Resultado de um processo
reflexivo profundo, que conciliava expectativas e realidade, muito estudo, muitas discussões e
algumas brigas (tal como dito pela professora Olívia em seu relato).
“[...] Eu acho que o meu maior desafio... [suspiro, pausa] foi me reinventar... mantendo alguns princípios que
eu acho importantes. [...] da honestidade... do respeito... de empatia... e do afeto, mas do afeto... não do amor
religioso, entende, mas o afeto... ter afeição pelas pessoas, né... ou pelo menos te dar esse espaço para acreditar
no outro [...] é uma relação afetiva, é um respeito ao outro, é respeitar o espaço do outro. É esse tentar viver
uma construção, construir uma convivência mais harmoniosa, mais tranquila, mais respeitosa [...]. Às vezes tu
vem de uma mentalidade muito ‘isso é certo e isso é errado’. E eu tive que aprender que a vida tem nuances... e
eu tive que aprender duramente [ênfase] que a vida tem nuances [riso]! Quando eu tenho coisas que na minha
vida começaram a não dar certo e disse: ‘Opa, mas para aí um pouquinho! Tem alguma coisa estranha aí!’.
Então eu acho que esse foi o maior desafio da minha vida: fazer isso e não me perder naquilo que eu acreditava.
Porque às vezes as pessoas vão para outros extremos, né!?” (Sofia)
203
Muitas vezes, Sofia se refere a esse processo de sensibilizar-se com o outro utilizando
palavras como afeto, respeito ou empatia. Porém, a questão que fica é: como Sofia configurou
subjetivamente a sensibilidade como uma característica da sua docência?
Levando em conta sua história, entende-se que tal processo passa pelo reconhecimento
do outro em sua unicidade, sendo o nascimento de seus irmãos um momento muito marcante.
A participante relata que viveu muito tempo praticamente como filha única, que tinha todas as
atenções voltadas para si, mas por volta de seus 9 anos começam a nascer seus quatro irmãos e
a dinâmica familiar modifica-se drasticamente, como pode ser observado no trecho:
“E, de repente, eu não tenho mais essas regalias, se eu não quisesse comer eu ficava com fome porque tinham
duas crianças pequenas para dar comida, né! [risos] Entendeu!? Tipo assim... Claro, dinheiro também né! Para
quem tinha, assim, naquela época em que eu estudava, vinha muita gente vender coisas na escola, não sei se tu
passou por isso: enciclopédia, vender livrinho, vender disquinho, história... então eu tinha muito disso também.
[...] E, de repente, isso também não tinha mais! Então eu tive que dividir, e a minha vida passou por uma
transformação. Eu tive que aprender a dividir os meus pais, a dividir o afeto, a dividir o espaço, a dividir o meu
quarto, né! [risos] A dividir de tudo! Foi difícil, acho que não foi uma coisa muito fácil, mas eu passei por isso
né! E isso me ajudou a fazer esse deslocamento de mim mesma e desenvolver o sentimento de empatia pelo
outro, entender que existe o outro.” (Sofia)
Aqui, é possível observar que o nascimento dos irmãos inicialmente provoca em Sofia
fluxos de emoções relacionados à sensação de incômodo, o que pode ser observado na
205
expressão “Foi difícil”. Esse incômodo é provocado pela quebra da zona de conforto na qual
Sofia se encontrava. Ela refere em outra ocasião que até então era uma criança bastante mimada
e que com o nascimento dos seus irmãos teve de aprender muito rápido a ser mais autônoma, o
que pode ser observado no seguinte trecho:
“Meu mundo caiu completamente! [ênfase] Eu tive que cuidar das minhas coisas com mais responsabilidade,
eu não tinha mais a minha mãe... porque a minha mãe se preocupava comigo né, era minha roupa, era o meu
cabelo que ela arrumava, eu, eu e eu! De repente, ela não é mais minha, ela nem consegue me olhar mais! [...]
Aí tipo a minha casa virou uma coisa que eu não conhecia mais! [...] O meu cabelo embaraçava! [risos] Tipo
assim, eu nunca tinha o cabelo embaraçado, entende? Eu brinquei esses dias, eu contei para alguém: ‘Meu cabelo
embaraçava, tinha nó no meu cabelo!’. Eu peguei piolho no colégio, entendeu? Então foi muito engraçado!
[humor] [...] E, por isso, que quando algumas crianças passam por isso... [pausa, suspiro] teve uma criança o
ano passado que passou por isso... foi do 5º ano do ano passado, que ganhou o irmão depois de muito tempo... eu
olhei para o <nome da criança> e vi que ele não estava bem. Ele contou ‘Eu não tô me sentindo bem!’, e eu disse
‘eu super te entendo!’ [risos], aí eu contei para ele da minha experiência [risos]... Porque a tua vida muda da
água para o vinho! [ênfase]” (Sofia)
Ambos os excertos demonstram como a realidade foi impactante na maneira como Sofia
vivia, lhe convocando a, de forma abrupta, assumir responsabilidades, a desenvolver empatia e
a amadurecer. Primeiro nota-se a emergência de um sentimento de angústia, expresso de forma
bem-humorada como “Meu mundo caiu completamente!”. Na sequência, ocorre o
reconhecimento de que a situação mudou, de que a realidade não correspondia mais ao até
então estabelecido. Ela, assim, acolhe a realidade como algo que precisa ser considerado,
assumindo que, a partir daquele instante, precisaria dividir o universo familiar com seus irmãos.
Esse fluxo desencadeia, por sua vez, o processo de descentrar-se de uma situação
exclusivamente focada no “eu, eu e eu” para outra que exige levar em conta o nós, o que, por
sua vez, implica “entender que o outro existe” e reconhecer que as necessidades do outro são
tão importantes quanto as suas. Em contrapartida, percebe-se que Sofia é levada a desenvolver
a autonomia e a responsabilidade por si muito rapidamente, assumindo uma função mais ativa
na dinâmica familiar: do lugar de ser atendida para aquele no qual é necessário agir de maneira
colaborativa para conseguir o que deseja.
Essa sensibilidade, no entanto, não é acionada por Sofia apenas quando uma criança
vive situação similar as que ela viveu. Essa compreensão sensível a respeito da situação do
outro manifesta-se no cotidiano da docência como uma forma de olhar a criança
considerando-a na sua integralidade, naquilo que é sabido e naquilo que é só manifestado
pelo olhar ou por um “eu não tô me sentindo bem!”. Sofia refere que no exercício da docência
sempre terá algo a ser observado na criança a partir desse olhar sensível: “O jeito que aquela
criança vai aprender, como eu vou fazer a leitura do olhar daquela criança, como eu vou
acessar ela [...]”. A respeito dessa sensibilidade para perceber situações para além das
explícitas, Sofia traz inúmeros exemplos:
“E eu me lembro de uma aluna... [...] Ela não aprendia... Ela era muito quietinha... Ela não falava, ela era,
assim, uma criança ansiosa demais [ênfase]. Mas ela não faz... ela não interage.... E aí tu vai ver a história de
vida dela [...] e aí a gente vai ver ela.... Ela tinha que ficar bem quietinha porque tinha uma questão de violência
familiar... [...] Ela não podia se abrir, entende? Então, quando acontecia, ela tinha que ficar quietinha no quarto
dela enquanto a violência ocorria em outra parte da casa...” (Sofia)
“Eu me lembro do caso do <nome do aluno> [...] Ele tinha um silêncio absurdo na família! Tipo assim, um
silêncio absurdo! [...] Eu tinha sido professora dele no 1º ano, depois eu fui professora dele aqui no 4º ano, e ele
reprovou comigo e aí eu fiquei mais meio ano e ele ficou comigo no 4º ano repetindo... E como eu já conhecia um
pouco dele, da trajetória dele, assim, bem pouquinho... A gente foi construindo muitas coisas com ele, muitas
coisas com ele [ênfase]! E quando eu estou saindo daqui, porque o meu contrato está terminando [...] a gente vai
para uma reunião e eu descubro o segredo da família... E aí eu penso: ‘Como é que a gente ficou quatro anos
com essa criança aqui e não descobriu isso? Quatro anos e meio!’ [ênfase, indignação]. [...] O pai dele não era
o pai biológico... Só que, para ele, ele era o pai biológico. Ele não sabia... A mãe casou já grávida e ficou com
esse companheiro... O companheiro assumiu... E eles nunca disseram que ele era filho de outra pessoa... E ele
teve um sofrimento na hora do parto... Faltou oxigênio para ele [...] e ele precisava tomar um remédio, mas o
pai dizia que ele não ia tomar o remédio... [silêncio] e aquela criança ficou quatro anos e meio sofrendo nesse
colégio, tá! E nós sofrendo com ele... [forte emocionalidade] Essa é uma situação muito emblemática que eu
também levo comigo...” (Sofia)
Nesses dois casos, é nítida a angústia que ela sentia diante da situação que ocorria na
sua sala de aula, Sofia percebia (no sentido de sentir, inconscientemente) que algo não estava
bem. A sua sensibilidade para com o outro a levava a buscar compreender a realidade vivida
por aquelas crianças a fim de encontrar formas alternativas mais assertivas para lhes
proporcionar acesso às aprendizagens instituídas no currículo escolar. Compreender a criança
através desse olhar sensível não é apenas acolher ou se compadecer, trata-se de um movimento
de encontro no qual Sofia se constitui professora daquelas crianças ao mesmo tempo em que as
crianças se tornam alunas de Sofia, processo que sugere alternância de papéis de quem ensina
e de quem aprende, promovendo, assim, um espaço no qual as aprendizagens, como recursos
de vida, e o desenvolvimento humano podem acontecer. Trata-se de um movimento
colaborativo e relacional que imprime valor ao currículo e aos papéis sociais que cada pessoa
ocupa naquela dinâmica. Percebe-se aqui o legado de Eduardo e do pai de Sofia, configurando
o aprender e o ensinar dela de forma a relacionar esses processos dinâmicos à convicção íntima
207
Indicador É uma expressão da configuração subjetiva da docência de Sofia que se refere a sua
forma de agir perante os desafios do exercício da docência e a inclusão. Considera o
Adaptabilidade aluno como uma criança real na sua complexidade biopsicossocial e o professor como
uma pessoa cuja responsabilidade é conciliar de forma equânime objetivos curriculares
com às necessidades específicas de cada criança. Supõe a constituição de redes de
amparo à aprendizagem e à escolarização, o que implica provocar oportunidades de
construção de caminhos subjetivos alternativos também em outras instituições sociais
na qual a criança está inserida.
Contudo, Sofia admite que nem sempre atingirá todos os seus objetivos. Questionada a
refletir sobre o que aprendeu ao longo da sua trajetória como docente, ela afirma:
“[...] eu aprendi também que eu não vou conseguir ensinar todas as crianças, não é que elas não vão aprender
nada comigo, mas as minhas metas, as minhas expectativas nem sempre vão ser atingidas. Porque é o momento
daquela criança, entende?! O processo daquela família, né! É um processo muito específico daquelas pessoas, do
conjunto familiar, às vezes... e que eu vou ter que lidar com isso, né?! [...] antes me doía mais, mas agora eu já
percebi que a gente vai podendo fazer outros ajustes... em outros momentos, né!? Que é uma coisa que tu pode
‘pegar’ depois e, bom, a gente pode botar um pouquinho disso, a gente pode tirar um pouco disso, né!? No que
diz respeito ao currículo, no que diz respeito às práticas mesmo... as posturas de estudante, sobre o que a gente
quer trabalhar com essas crianças... [...] Então, foi mais ou menos isso que eu fui aprendendo, assim... Não foi
fácil! Não foi fácil! [frisa com a repetição] Teve momentos, assim, que eu queria sair daqui. E eu parava e
pensava: ‘Isso nunca vai acontecer?’ [fala como se estivesse revivendo uma situação que lhe provocava angústia].
Depois ajeitava, melhorava...” (Sofia)
Tendo como ponto de partida os dois casos narrados por Sofia e a provocação reflexiva
supracitada, percebe-se que essa produção subjetiva a respeito da maneira como ela vive a
docência se organizou ao longo de sua trajetória como professora. Porém, faz-se presente na
sua ação docente toda a sua historicidade pregressa, assim como a historicidade de seus alunos
se faz presente no contexto da sala de aula.
A história de Sofia provoca a reflexão a respeito do que é ser um professor de
crianças, da sua responsabilidade social, da complexidade da sua tarefa profissional. Ela
mostra um ser professor de escola pública muito diferente daquele que habita o imaginário
popular. Um profissional comprometido, constituído no diálogo autêntico com o ser humano
real, dinâmico, em constante (re)elaboração, sensível às demandas de seus alunos e da sua
comunidade, que busca se adaptar, se (re)estruturar frente aos desafios, que busca conhecer o
outro sob uma perspectiva que imprime nele capacidade, potência. No entanto, Sofia não deixa
de lado os objetivos curriculares, bem pelo contrário, ela é uma professora que entende que esse
também é seu compromisso, mas não é o único.
Sofia é um ser humano que busca o estabelecimento de vínculo de qualidade com as
pessoas, independentemente de quem sejam; legado que seu pai lhe deixou e que se faz presente
na essência dela. É uma pessoa que busca abrir espaços para que a produção subjetiva aconteça,
seja na sala de aula, junto a seus colegas ou à comunidade educativa. Produção subjetiva essa
que reflete pertencimento, que busca incluir, por um lado, cada um no todo compartilhado, e,
209
por outro lado, imprime essa construção coletiva na subjetividade de cada pessoa que a partilha.
Um exemplo disso é a sensação de suas colegas a terem como uma referência nos Anos Iniciais
da escola e a construção do projeto da equipe, o qual manifesta de diferentes formas os
princípios básicos de Sofia: honestidade, respeito, empatia e afeto. Essa é a essência do ensinar
e do aprender de Sofia, não deixar ninguém para trás, legado que seu irmão lhe deixou e que
ela honra todos os dias.
Dessa maneira, é possível afirmar que, no caso de Sofia, a flexibilidade compõe um
núcleo organizativo de sua docência, articulado na perspectiva do movimento da
provisoriedade, considerando, assim, o ser humano e o social em constante (re)construção.
Supõe uma postura disposta a entrar em relação com o outro e com as instituições por meio do
processo dialógico, o que por sua vez desencadeia fluxos recursivos de produção subjetiva que
se (re)configuram ao longo da vida. Assim, Sofia se constitui como docente de crianças em um
contínuo rever-se, ao mesmo tempo que as crianças se constituem como alunos, os familiares
como comunidade educativa e as colegas como equipe, evidenciando a potência da ação
educativa marcadamente relacional.
“Tu faz alguns nortes... tu traz alguns nortes para ele acontecer, mas o que acontece lá é algo muito especial!
Assim, algo muito específico que vai depender de como tu estás naquele dia, como os alunos estão naquele dia,
né!? Que vai como está até a questão do tempo, entendeu?! Enfim, precisa de uma conjunção ali de fatores e a
gente tem que ficar muito atento! Ah! Isso a gente aprende... a ficar atento a isso com o tempo! Porque no início
a gente acha que planejou e fez o material... preparou o material, o que tem que fazer... O tempo está todo
organizado. Ok! A gente aprende que isso é importante, é importante o professor ter a sua organização, ter esse
preparo de tudo isso, essas leituras. Mas ele também precisa estar muito aberto para aquilo que vai acontecer.
E assim foi que iniciou a minha vida! [...] É muito complexo dizer o que me forma como professora, né?! É o dia
a dia, os desafios do dia a dia, essa minha busca ainda por entender como as pessoas aprendem. Eu descobri
que eu não vou chegar nunca numa resposta, né! Depois de um tempo de vida, né, tu sabe disso. Porque essa
resposta nunca se esgota.” (Sofia)
Observa-se no trecho que Sofia anuncia que aprendeu a ser uma professora na
dinâmica da sala de aula, o que supõe uma aprendizagem recursiva. Em outra ocasião já
citada, a participante afirma que sua turma de estágio foi uma experiência que a marcou de
forma muito significativa, pois a provocou a descentrar-se de suas elaborações prévias e
abraçar a realidade que a li estava posta, movimentando-a a aprender com e dos seus alunos, a
reconhecer a importância de cada um naquela dinâmica, muitas vezes tensa. Acredita-se que é
sobre essa abertura à criança real, em sua singularidade e complexidade, que Sofia refere-se
quando afirma que o que irá acontecer na sala de aula é “algo muito específico” e que irá
depender de uma série de fatores, muitas vezes imprevisíveis, como sentimentos ou até mesmo
o clima. Obviamente, não existe uma formação específica que contemple toda a diversidade
humana, que possa preparar o professor para qualquer situação que aconteça na escola – o que
212
Indicador Maneira pela qual a pessoa constitui-se como docente na processualidade recursiva e
dialética da dinâmica do exercício da sua profissão. Supõe consciência de que o
Aprendizagem professor também é uma pessoa em contínuo processo de aprendizagem e de que
contínua na relação educativa todos têm o que ensinar e todos podem aprender. Exige abertura
para o ser humano real e uma postura dialógica, constituindo, assim, uma relação de
horizontalidade em que alunos, professores e comunidade educativa constituem-se
mutuamente e recursivamente em suas funções sociais.
“Deixa eu ver o que mais que eu aprendi... são tantas coisas que eu aprendi, bah! [...] Eu acho que eu também
aprendi a ter mais paciência também, né!? Foi bom para mim como ser humano. Porque aí quando eu via que eu
não conseguia as coisas eu ia atrás de alguma coisa, de informação, de formação continuada... e isso foi me
ajudando a ser a profissional que eu sou hoje. Das releituras e das minhas leituras da graduação, né!? E, também,
[...] essas coisas foram me possibilitando a fazer leituras da minha vida, da minha família, dos meus sentimentos,
como lidar com as minhas coisas primeiro, entende?! Com as minhas frustrações... E, aí, quando eu atendo uma
criança, quando uma criança me mobiliza, eu vou... eu já entendi que eu tenho que olhar para dentro de mim:
‘O que essa criança está mobilizando dentro de mim? Que coisa que me irrita, isso!?’[questionando-se]. Entender
que eu vou me irritar, que eu sou um ser humano. [...] Não é uma escolha fácil, não é uma tarefa fácil ser
professora, é trabalho... trabalho bem trabalhoso! Tem que buscar formação constante.” (Sofia)
conscientizando-se sobre o que é fato e o que é emoção suscitada pelas próprias experiências
de vida reconhecidas no outro. Isso, por sua vez, compreende ter entendimento e íntima
convicção de que a criança real se coloca por inteiro na situação escolar, sendo suas
manifestações construções sociais que falam a respeito de sua constituição singular e complexa.
É justamente a apuração dessa consciência, que se aprimora com o tempo, que impulsiona o
professor a reconhecer-se como uma pessoa em construção. Cabe aqui destacar que a
aprendizagem contínua não está necessariamente vinculada a nível de instrução formal do
professor, mas refere-se a uma postura aberta a entrar em diálogo com o outro e a reconhecer
o que lhe falta. No caso, Sofia é mestre em Educação e, mesmo assim, afirma ter muito a
aprender. Diz que seu desejo de entender como as pessoas aprendem não se esgota, pois cada
pessoa é um universo a ser descoberto e o professor, como profissional da educação, deve estar
aberto a buscar compreendê-lo, além de proporcionar oportunidades de construção de
aprendizagens escolares e acesso à cultura.
Com o objetivo de compreender como se opera essa aprendizagem contínua, Sofia é
solicitada a narrar experiências profissionais emblemáticas. A seguir, apresenta-se um recorte
de diálogo contendo duas dessas experiências:
Sofia: Ou do aluno que eu tento alfabetizar, que também é da mesma turma, e das condições dele na
família assim, de linguagem, de pessoas que leem, que dominam... Ele diz “suvraco”.
Virginia: Eu me lembro do “suvraco”!
Sofia: Sim, “suvraco”! Então, assim...
Virginia: E estava superadequado, né? Tu estavas trabalhando com VR... Com encontros consonantais
naquela vez, né?
Sofia: Perfeito! “Suvraco, suvrvaco...”
Virginia: Tu pediu um exemplo, né? E ele disse: “suVRaco, professora!”.
Sofia: Sim, “suvraco”!
Outra coisa que eu acho que é emblemática, foi eu tentar fazer a intervenção com a família e o
aluno vem para mim e diz assim: “Minha mãe não entende nada o que tu escreve”. E eu descubro
ali que a mãe não lê. Entende? Para mim isso foi um aprendizado muito grande... “Mas como é
que eu faço uma coisa dessas... como é que eu não me dou conta? Que pode existir pais...”
[analfabetos] Na hora foi um aprendizado muito grande para mim assim... “Como é que eu vou
dar conta? Como é que eu não me dou conta de que podem existir famílias que não entendem
mesmo o que eu estou pedindo, né? Que talvez eu tenha que ter uma outra abordagem... [...]
Então essas coisas foram... Essas coisas eu não consigo esquecer, sabe? Cada vez que eu estou
diante de uma situação, aquilo parece que vem! “Lembra daquilo? Tu lembra daquela
experiência? Vamos ficar atentas com essa criança que tu tem! Pode estar acontecendo tantas
coisas com essa criança! Essa criança tão silenciosa... Por que que essa família não responde do
jeito que tu está pedindo?” Eu acho que, eu não sei se eu entendi a tua pergunta, essas questões...
Teriam outras... Muitas! Eu teria outras muitas situações emblemáticas que foram, assim, me
ensinando... Às vezes, de uma forma bem pontual, assim... Às vezes, assim, elas foram me
ensinando bem homeopaticamente... porque eu também precisava de um tempo, talvez... para
digerir.
214
Aqui Sofia apresenta duas situações nas quais foi convocada a revisitar-se. Percebe-se
que ambas a fizeram rever suas ideias prévias de criança, de família e de cultura, favorecendo
o diálogo com as crianças que ali estavam. A situação do “suvraco” já havia sido contada à
pesquisadora quando Sofia faz a narrativa anterior, nesse caso, o que poderia ser interpretado
como um erro ortográfico é lido por Sofia como um processo conciliatório vivido pela criança
a qual buscava associar palavras do seu cotidiano, como “suvraco”, à regra ortográfica que
estavam trabalhando (encontros consonantais com VR). Desse encontro entre a escola e a
família, dois contextos importantes para a criança, mas bastante distintos, resultou a aplicação
correta da regra estudada, o que foi considerado pela professora. Sofia, aberta às hipóteses da
criança, valoriza a situação e a utiliza como indicador de um novo assunto a ser trabalhado: as
diferenças existentes entre a linguagem oral e a linguagem escrita. No outro caso, Sofia sente
uma espécie de choque de realidade que a faz perceber que nem todas as pessoas fazem parte
de um mundo letrado, movimentando-a a construir outras formas de comunicação entre a escola
e a família da criança, as quais fossem mais efetivas e que contemplassem a diversidade social
que se fazia presente na sala de aula.
da seguinte maneira: “não consigo esquecer, sabe? Cada vez que eu estou diante de uma
situação [similar], aquilo parece que vem!”.
“[...] como eu vou acessar ela... [a criança] se é eu que vou conseguir fazer isso. Talvez não... talvez seja outro
colega. Talvez seja outro... outro colega que trabalha com outra área de conhecimento que vai conseguir. E, a
partir da ajuda dele, eu também vou conseguir melhorar a minha prática. Outra coisa que me constitui aqui é
que eu aprendi que ser professor não é uma coisa isolada. Eu não consigo trabalhar sem grupo, sem os colegas,
sem grupo... sem a orientação, sem os meus colegas das áreas [...] Então, isso eu aprendi. Ser professor sozinho
talvez até tenha que acontecer em alguns contextos que não tem com quem... [fazer parcerias] mas nós, nós somos
muito melhores juntos, compartilhando. Quase uma frase motivacional! [risos] Mas eu... eu acho que nós somos
muito melhores juntos. Nós temos muito mais possibilidades de ensinar essas crianças e, também, de estar mais
apto a aprender. Porque aquilo que eu não consigo enxergar o meu colega diz: ‘Mas olha eu acho que isso...’.
E eu penso: ‘É mesmo! O colega fez uma leitura ótima dessa situação, das atitudes dessa criança... como essa
criança que se comporta frente aos desafios, ao desafio cognitivo...’. Me dizendo ‘olha, ele faz assim’, aí eu vou
por aí, entende?! Então, essa é uma coisa que eu aprendi, o grupo, é uma coisa que também me constitui... que
faz parte da minha formação aqui.” (Sofia)
Nesse momento, Sofia expressa seu pensamento quanto ao valor do grupo para a
promoção de oportunidades reais e equânimes de aprendizagem para as crianças. Aqui
apresenta-se mais um indicador do núcleo humildade pedagógica: a constituição de redes.
Trata-se de uma ideia bastante próxima da compreensão de aprendizagem contínua, enquanto
essa refere-se a uma postura do professor, a constituição de redes é uma estratégia que visa a
angariar esforços para construir oportunidades cada vez mais equânimes de acesso à cultura,
construção de aprendizagens escolares e desenvolvimento das crianças. Também leva em conta
a incompletude da formação do professor e a impossibilidade de se prever todas as situações
que se colocarão em jogo na sala de aula.
No caso de Sofia, passa por reconhecer que mesmo sendo uma professora experiente,
nem sempre conseguirá acessar a criança ou estabelecer um vínculo de qualidade com ela.
Também, assume que nem sempre irá pensar na melhor forma de provocar a construção de
determinado conhecimento. Daí, do reconhecimento dessa falta, dessa incompletude, é que
surge a necessidade de compartilhar dúvidas, inquietações e percepções com seus colegas. Isso
porque a criança, um ser humano que se manifesta em sua complexidade, pode estabelecer um
vínculo maior com um professor de outra área de conhecimento com o qual se identifique mais,
talvez em função do canal de expressão provocado pelas características da disciplina (como em
aulas de música, de teatro ou de dança), ou simplesmente por uma afinidade entre as pessoas.
Sofia refere que essa é uma grande lição que seu trabalho lhe proporcionou, algo que é
217
configurado subjetivamente por ela como uma forma de viver a docência com mais leveza,
algo que a constitui ao mesmo tempo que constitui o grupo como mais potente, mais capaz.
de fato. O caso foi tema de muitas discussões na equipe e investimento junto à mãe para buscar
estabelecer vínculo com a escola. Aos poucos perceberam que conseguiram abrir algum canal
de expressão com a criança – o menino se interessava por ciência e apresentava na oralidade
elaborações muito refinadas para a idade, mas recusava-se a fazer qualquer forma de registro,
o que impactou seu processo de alfabetização. Aos poucos, também, a mãe começou a se
vincular com a escola, oferecendo mais informações sobre a história de vida da criança e sobre
as condições de falecimento do pai. Paulatinamente foi acolhendo orientações da escola e
buscou construir formas menos conflituosas de relacionamento com o filho, além de se dispor
a buscar atendimento emocional para elaborar uma série de questões que estavam para além
das condições de intervenção da instituição. Esses movimentos passaram a surtir efeitos na sala
de aula, as contribuições orais dele passaram a ser consideradas pelas demais crianças e ele, por
sua vez, avançava na expressão do pensamento em diferentes áreas à medida que o espaço de
expressão era desenvolvido e validado naquele grupo. Situações mais violentas e provocativas
nas quais a criança se envolvia também foram reduzindo e ele passou a recorrer mais aos adultos
para resolver algum impasse ou lidar com alguma frustração. Sofia refere que quando o menino
estava no 5º ano ela estava afastada para conclusão do mestrado e que, quando retornou, se
surpreendeu positivamente com os avanços dele:
“Por fim, quando ele já estava lá em outros níveis até, etapas... eu comecei a notar que... que ele tinha algum
afeto sim! Mesmo que embrionário, eu pensei assim: ‘ele tem sim... algum por nós! Algum carinho... algum afeto
por nós ele tem!’. [expressa sentimento de satisfação] Ele aparecia, né, ele procurava a gente. Ele vinha contar
as coisas que ele estava fazendo, as conquistas dele, assim... eu disse: ‘Olha, que bom, né!’.” (Sofia)
“E, depois, tem que trabalhar em rede, né!? Porque tu não vai dar conta de tudo isso! Identificando as coisas
que tu acha que precisarão ser avaliadas por um profissional, e fazer alguns encaminhamentos. Também a gente
precisa ter o nosso cuidado [delicadeza no tratamento], porque às vezes a família precisa ter aquela caminhada,
[...] enfim, tem múltiplas possibilidades. Aí é preciso mapear isso aí e fazer uma rede, porque senão não consegue
trabalhar com essa criança. Eu não acredito que um professor possa trabalhar sozinho. Um professor sozinho
faz muitas coisas, mas não faz, às vezes, o que é necessário para aquela criança. Ela [a criança] precisa de uma
rede de profissionais para ajudar ela e o professor. Também precisa conversar com essas pessoas [da rede], seja
terapeuta ou então com os seus pares. Com seus pares [colegas professores] sempre, né!? Para aliviar, para
trocar, para ver.... Às vezes, pode ser que comigo a criança não faça tanto os vínculos, e está tudo certo também,
né?! Tá tudo certo.” (Sofia)
“A gente (Sofia e sua filha) senta e discute tudo que é assunto agora... todas as fases são lindas! A fase do
pequenininho, eu sei... é mais difícil, porque chora, precisa mais da gente, depois tem as fases deles pequenininhos
na creche... depois a fase deles na escola, depois eles já estão pré-adolescentes... aquela coisa do medo, do que
vai acontecer! [um pouco de angústia no jeito de falar] ‘Ai se fizerem alguma coisa para ela!’ O banheiro da
escola! Droga! Bebida! Os primeiros aniversários fora de casa... as festas do pijama... amores não
correspondidos... essas coisas todas enlouqueceram a minha cabeça, mas eu passei por todas essas fases
mantendo a confiança nela... e eu aprendi uma coisa, assim ó, eu acho que eu aprendi aqui com vocês... [com
os colegas da escola] de ser muito sincera com ela... eu disse para ela: ‘Eu não estou conseguindo lidar com
isso agora! Isso para mim é difícil, né! Essa tua fala me mostra que eu não tô ainda... eu não sei o que te dizer
sobre isso, mas quais são os meus princípios que me norteariam em uma escolha dessas’, eu dizia para ela, ‘o
meu princípio é esse, o meu princípio é esse, eu olharia para isso, eu olharia para aquilo...’. Às vezes eu era dura
222
com ela e dizia: ‘Camila! É assim que eu sei ser mãe!’, e ela aponta hoje para mim que quando eu fazia isso eu
já dava a resposta para ela, mesmo que eu não desse a resposta pronta ali.” (Sofia)
Essa forma de ser e de agir de Sofia, de não dar respostas prontas, mas convocar ao
resgate daquilo que é essencial, à reflexão e ao diálogo, ao considerar o outro como capaz de
fazer suas próprias escolhas e o ser humano como um projeto em contínua construção,
demonstra grande potencial para provocar movimento não apenas a si própria, mas também aos
outros. Um movimento no qual um constitui o outro na relação – Sofia constitui-se mãe na
relação com sua filha, e vice-versa.
“E ela sempre tentando acalmar, tentando conciliar todo o ambiente mesmo, às vezes, com toda a família, assim...
brigando... e todo mundo louco, assim... querendo se matar, ela tá ali no meio toda bonitinha, comportada, falando
no mesmo tom, assim... delicado dela tentando acalmar todo mundo e ela consegue acalmar tudo.” (Camila)
Exemplos dessa forma de ser e viver manifestada por Sofia podem ser observados nos
depoimentos de suas colegas de trabalho. Cita-se um trecho do depoimento da professora
Olívia: “Uma característica importante é que a Sofi valoriza a opinião de todos. Nunca toma
uma decisão sozinha, sem ter certeza de que ao menos tem a avaliação de todos e concordância
da maioria”. Olívia lembra que esse senso de coletividade não é um processo de fácil
organização, ele exige desacomodação e descentração dos próprios desejos em função de um
objetivo maior que representa o coletivo. Ela afirma que: “Já brigamos, já choramos e já nos
apoiamos muito. Sempre para oferecer o melhor que podemos para nossos alunos”.
“Por exemplo [...] é ver um horário que é adequado para o aluno e não para a reunião de professores, pela
manhã [horário da aula], [...] tinha grupos de professores aqui que queriam que as reuniões fossem de manhã
para facilitar as tardes, claro, né! [expressa com sarcasmo] E aí o que acontecia: ‘Vamos organizar o horário
dessa forma dos Anos Iniciais’, ‘Ah, não dá, porque tem reunião de área da Educação Física, tem reunião de área
das Artes, tem reunião de área das Línguas!’ [fala com vozes diferentes simulando um diálogo] Enfim... E daí tu
tinha um horário todo picado, um absurdo, né! [indignação] E isso mudou. ‘Não. O horário tem que ser pe-da-
gó-gi-co!’ [enfatiza como se fosse uma decisão convicta] [...] Depois disso nós tivemos essa renovação [de
professores], também isso [...] possibilitou questionamentos para a escola. Porque aqui era uma escola tão...
hã... tão perfeita que não podia se questionar. [sarcasmo] ‘Questionar o laboratório? Não!’ [fala como se fosse
um diálogo] Aí, os questionamentos começaram a ser, talvez, mais frequentes, talvez... Aquelas coisas que eram
inquestionáveis...” (Sofia)
Esse trecho fala de uma subjetividade social institucional que foi se modificando à
medida que novas pessoas ingressavam naquele espaço e passavam a questionar esse modus
operandi que não se indagava, que não possibilitava a reflexão. Sofia relata que esse fluxo de
renovação do quadro de professores possibilitou se pensar uma escola pautada por um senso de
coletividade, que a levava a se configurar subjetivamente visando ao aluno e às suas
224
necessidades em cada etapa de ensino. Além do horário, esse movimento passou a questionar
outros aspectos institucionais impensados até então, tal como o objetivo das reprovações e a
ideia de inclusão. Esses dois aspectos, que antes excluíam, agora eram considerados
oportunidade de revisão de crenças institucionais, como apontado abaixo:
“Também de outra situação que eu levo... que ele não pegava o lanche para comer [que trazia de casa]. Aí, Sofia
né, manda um bilhetinho para a mãe [sarcástica]: ‘A senhora tal, se possível, providencie um lanche para o
Fulano’, né!? Olha que bobaginha da minha cabeça [refere a ingenuidade]. Bem bobinha, né, assim! [enfatiza]
Aí a mãe diz assim: ‘Prof., ele leva todo dia pão com margarina, mas ele não pega porque ele tem vergonha,
porque os alunos levam lanches industrializados’. Olha que aprendizado! Depois daquilo eu disse: ‘Aí, é
verdade!’ [frisa batendo com a mão na testa como estivesse se dando conta de algo óbvio]. Aí eu fui conversar
com ele aos pouquinhos... O bilhete que eu mandei para mãe foi bem tranquilo, assim, entendeu?! Mas olha que
falta de vivência a minha, né? O menino não queria puxar o lanche porque os outros... claro! Tudo aquilo
maravilhoso, aqueles bolinhos, aqueles suquinhos, aqueles achocolatados, né!? E aí vai... E por quê? Porque não
tinha lanche! Então o problema não era dessa família que mandava o pãozinho com margarina, o problema era
que não tinha lanche em uma escola pública, que tem que providenciar o lanche, né! [enfatiza a indignação] E
isso vai sendo questionado muito aos poucos... [enfatiza falando lentamente] A própria questão da reprovação...
Porque sairiam muito mais crianças... Reprovavam muito mais crianças aqui... [...] Só que aos poucos isso vai
ruindo... [configuração subjetiva dominante naquele espaço social] E eu acho que isso foi superpositivo para o
colégio, né... Porque o colégio vai se encontrando, vai ruindo aquela roupa da gente... [roupa] velha que não
dá mais! Na minha opinião, começar a pensar esse colégio na contemporaneidade, nesse mundo de agora que
a gente tá, em uma escola para todos, entendeu?! Em uma escola com essas discussões étnico-raciais, uma escola
com discussões de práticas inclusivas, questões de alunos com algumas deficiências intelectuais, né... Essa é a
escola para essas crianças também! Porque se tu quer manter uma escola padrão dentro desta normalidade que
também é algo arbitrário também, não é?! Onde está o normal, né? Isso é bem arbitrário, é questionável
inclusive... Tu vai ter que selecionar os teus alunos. Porque tu não vai conseguir chegar nos patamares que eles
queriam, por exemplo, fictícios, se tu manter, se tu for viver neste mundo, da contemporaneidade. A escola pública
é para todos né!? [enfatiza] O colégio passou por isso. E alguns sofreram mais, outros sofreram menos...” (Sofia)
isso!’, ‘Mas isso é contra o ECA, inclusive!’”. Em outra situação, enfatizou que a autonomia
do professor é importante, mas existem limites, de forma que o “professor pode ter autonomia,
mas esse tipo de decisão [excluir um aluno] não cabe a ele, tem uma questão legal, entendeu?!
[...] Autonomia com ética, com comprometimento né!?”.
Ao mesmo tempo, buscava expor, por meio da pesquisa a respeito de seu ambiente de
trabalho, as práticas excludentes configuradas subjetivamente na instituição. Dedicou-se a
estudar as condições de permanência dos alunos na escola, de maneira a entender e a expor o
porquê de muitas crianças não ficarem naquela escola. Ela fala sobre essa trajetória:
Virginia: Se era para produzir conhecimento para o mundo, né... Esses são os alunos do mundo [refere-se à
sua turma de estágio] e são eles que a gente tem que pesquisar, né?
Sofia: “Vamos pesquisar eles, né!? Isso é pesquisa, entendeu!?” E eu falei isso, assim, bobinha assim...
E aí, tá, ouviram? Não ouviram, uns ouviram, outros não ouviram... A maioria dos professores
que concordava com aquilo não está mais aqui... Eles já estão aposentados, está tudo bem. Cada
um tem o seu tempo, né!? Dentro das suas compreensões de vida... ok. E aquilo ali é que vai me
dar o meu norte para o meu trabalho de conclusão e depois vai dar as minhas inquietações.
Quando eu volto como professora temporária eu procuro os alunos de novo, daí já tem um monte,
então... [de alunos que não estão mais na escola]
Virginia: [...] os alunos que tinham esse perfil diferente do que os professores esperavam?
Sofia: Exatamente! Não só os meus.
Virginia: Os delas [suas colegas de estágio] também?
Sofia: Os delas também! “Mas o fulano que ela falou? Mas o beltrano que eu não vejo mais?” E aí eu
fui dando uma olhada, e aí eu voltei, eu voltei no concurso, eu fiz, eu passei, e vim... E, aí, assim,
eu fiz um mapeamento de algumas turmas, não todas, e eu notei que muitos alunos saiam daqui.
E eu notei que da minha turma também estavam saindo. Daí eu terminei o meu... [tempo como
professora temporária] Voltei como professora temporária [quis dizer efetiva – teria que
desenvolver um projeto de pesquisa para concluir o estágio probatório], e o meu projeto de
pesquisa era esse. Era estudar a permanência dos alunos nessa escola. [...] Tinha outro nome,
mas era isso que eu queria saber. Os alunos que permaneciam, as condições de permanência...
Depois é que eu vou aprimorar para condições de permanência... e aí eu vou para o mestrado
em... 2012 eu vou para o mestrado. E, aí, eu levo a ideia também. E, aí, eu vou assim... sempre
me preocupando com as condições de permanência. Não acho que vamos dar conta de todos os
alunos, não é nesse sentido, mas eu acho que a gente tem um compromisso ético, histórico,
entendeu?! Nós somos uma escola pública! [...] Talvez, eu acho que sim, que existam situações,
muito peculiares [friso] em que essa criança fosse mais feliz em outro lugar. Mas é, assim, ó, não
vi nenhuma ainda que eu possa dizer que seria bom para ele ir embora daqui. Ainda não vi
nenhuma! Dos alunos que eu trabalhei, pode ser que exista, mas, assim, essa coisa de tentar se
livrar de aluno eu acho muito perverso da nossa parte! [forte emocionalidade – indignação] [...]
alguns professores se sentem acomodadas. Eu já vi relatos e eu já ouvi isso: ‘Ai, vamos nos livrar
de uma vez!’. Eu ouvi, ninguém me contou isso, tá! [indignação, friso] Então, eu acho isso
perverso, tá!
226
“E, aí, a gente foi construindo uma proposta. Porque eu entendo, também, que essa escola tem um compromisso
com a sociedade e que isso poderia contribuir muito na formação não só desses professores que passam por nós,
desses alunos que passam por nós [...]. Então, isso era algo que eu batalhava, assim, não sozinha, né!? Aí, tu
aprende que tu não pode fazer as coisas sozinha, tu precisa de um grupo que se volte para aquilo. A gente
conseguiu! [forte emoção] A gente teve um grupo que se voltou para isso e tá aí [...]” (Sofia)
“Existem situações em que turmas chegam diferentes no 1º ano, por toda uma questão de história desses
indivíduos que formam esse grupo, entende?! Tem turmas que vão avançar nas questões mais... assim, em crescer
mais, ter mais atividades, produzir e desenvolver melhor, que precisam avançar em questões de relacionamento.
Que precisam resolver isso primeiro para depois ir para as questões de conteúdo. [...] Nós vamos fazer um
trabalho de compromisso, de responsabilidade, mas visando quem? Esses sujeitos que estão ali! É a partir deles
que a gente vai ter que escrever, ou pensar o trabalho com aquela turma, né? [...] Por que isso é inclusão, né?
Tem criança que depende da sua situação não vai... Vai fazer de outra forma talvez... Mas não daquele jeito...
[idealizado]” (Sofia)
“Tive muitas alegrias de ver, assim, as aprendizagens acontecendo, né! Teve uma que eu acho que vale [...] essa
é de quando eu fui fazer um trabalho para [...] uma disciplina que a gente tem na faculdade e tu fica
acompanhando por dois semestres [...] Eu fui em uma escola estadual perto da minha casa e eu fui em uma turma
de progressão [...] eu tinha que acompanhar uma criança com questões de aprendizagem, então eu fiquei com
uma menina [...] ela tinha reprovado várias e várias vezes na 1ª série. [...] Eu trabalhei com ela. Então eu fiz
várias intervenções a partir da psicopedagogia... fomos fazendo atividades, fomos trabalhando, podia conversar
com a família, mas a família não veio, conversamos com a orientadora da escola, enfim, fomos seguindo as
228
orientações do que a professora foi dando do trabalho. Aí um dia eu estou caminhando lá onde eu moro e eu só
ouço aquilo assim: ‘Prof. Sofi, prof. Sofi!’ [voz diferente], e aí eu olho e era ela. E ela disse assim: ‘Eu nunca
mais reprovei!’. Porque ela estava longe de mim e ela queria me contar entendeu! [sorriso] E eu fiquei tão feliz
com aquilo! [forte emocionalidade] E as pessoas pararam e eu disse assim: ‘Que bom, <nome da menina>!’.
[...] A gente estava assim... não tinha como uma se aproximar da outra... ou eu estava em um pátio e ela estava...
não me lembro! E ela estava muito feliz e ela passou, estava de bicicleta e foi embora... e eu fiquei pensando ‘era
só um olhar, né!?’. Às vezes é só um olhar que essas crianças precisam, porque foi depois de um tempo que eu
encontrei ela e ela disse ‘eu nunca mais reprovei!’, eu também levo isso para a minha vida...” (Sofia)
Esse excerto contribui com a compreensão do que Sofia entende por responsabilidade
profissional. Mais do que “dar aula” ou “tirar dúvidas”, Sofia entende como parte de seu
trabalho acolher a criança real, investigar suas necessidades e construir caminhos
subjetivos alternativos para que ela consiga explorar seu potencial, construindo um
espaço no qual efetivamente possa aprender, possa se reconhecer capaz de construir o seu
percurso de escolarização.
Indicador Compromisso intrínseco com a criança real, na sua complexidade, a qual está na
condição de aluno. Visa à construção de condições equânimes de acesso à cultura, à
Responsabilidade aprendizagem escolar e ao desenvolvimento. O que sugere investimento na criança
profissional como um todo, de forma a lhe imprimir potência.
Tal como uma colega sua falou de maneira singela tomando seu café na sala dos
professores: “O professor é como a pessoa que planta uma tamareira”. Querendo entender a
que se referia, seguiu-se a explicação: “as tamareiras demoram em média 100 anos para
começar a dar frutos, o agricultor as planta ciente de que provavelmente não comerá os seus
frutos, mas, mesmo assim, segue cuidando das tamareiras para que um dia alguém os coma”.
Da mesma forma, o professor, imbuído de sua responsabilidade profissional, investe na criança
de maneira a significar a educação na vida dela, sem expectativa de receber algo em troca, mas
ciente de que um dia a sociedade poderá colher os frutos do seu trabalho.
“Teve uma coisa que eu jamais vou esquecer foi quando a <nome da criança> [aluna com atraso de linguagem
severo e déficit cognitivo] aprendeu a ler, não é que a <nome da criança> aprendeu a ler naquele momento [4º
ano], a <nome da criança> fez todo o processo com vários colegas aqui, né!? Foi um processo, mas no dia em
que eu consegui ver a <nome da criança> juntando mais letras sem ficar perguntando que letra era aquela,
entendeu?! Que dentro daquele repertório ela estava lendo, estava juntando letras e lendo, e eu perguntava para
ela ‘mas o que que é isso aqui?’ e ela demonstrava compreensão daquela leitura, foi uma pequena história em
quadrinhos que ela estava lendo [suspiro], foi um dos dias que eu vou levar para a minha vida, assim, sabe, como
um dos dias mais felizes dentro da sala de aula... e foi com ela, né!?” (Sofia)
Sofia destaca esse episódio como um dos momentos mais felizes da sua carreira,
remetendo-lhe a sentimentos de dever cumprido, de conquista, de satisfação e de superação.
Sofia conta que a menina apresentava grande dificuldade para aprender a ler dado ao grande
atraso de linguagem apresentado e ao déficit cognitivo. A garota se retraia e não se sentia capaz
de ler, manifestando essa insegurança com os sucessivos questionamentos sobre o nome das
letras. Ela estava no 4º ano do Ensino Fundamental quando aprendeu a ler – não havia sido
retida nos anos anteriores, pois a equipe de professores acreditou que seguir com seus colegas,
com os quais havia estabelecido algum vínculo, era melhor do que ser reprovada e buscar se
fazer entender em um novo grupo. O que indica a produção de uma configuração subjetiva de
inclusão escolar relacionada ao fato de a criança ser reconhecida como um ser humano único
em um processo de escolarização. Dessa forma, as decisões pedagógicas foram tomadas
levando em conta os avanços que ela apresentou ao longo dos anos, medida que a comparava
com ela mesma no seu percurso único de escolarização, não a um padrão de aluno
preconcebido ou a um currículo estático.
230
Por sua vez, a escolarização dessa menina, especialmente nas questões de alfabetização
e letramento, demandou da grupo docente a constituição de uma rede bastante consistente
de suporte à aprendizagem, o que envolveu a equipe de Anos Iniciais como um todo (ela era
considerada aluna da escola e não de uma turma específica), a família, a qual precisou de
suporte para acreditar na capacidade de aprendizagem dela e a reconhecê-la como uma criança
em desenvolvimento (pois a tratavam como um bebê), e as profissionais que passaram a atendê-
la – fonoaudióloga e psicóloga. Sofia enfatiza que essa rede, com o tempo, proporcionou o
estabelecimento de confiança e a manutenção de um diálogo contínuo com a família, de forma
a culminar em um trabalho articulado, no qual um oferecia suporte ao outro, acolhendo
angústias, pensando em estratégias e retomando continuamente as conquistas da criança a fim
de evidenciar potenciais, o que, por sua vez, corrobora a compreensão da constituição de redes
para efetiva inclusão da criança no espaço escolar.
Porém, percebe-se nos relatos que a menina em questão passou por um processo de
produção de autoria na escola, o que implica ela reconhecer-se capaz de aprender na escola
e na vida, capaz de construir recursos para viver em sociedade de maneira a, cada vez mais,
qualificá-los, além conseguir ensinar, de forma mais ou menos evidente, às pessoas com quem
convivia as estratégias que lhe eram mais favoráveis a promoção de suas elaborações e as que
lhe prejudicavam. Isso, por sua vez, indica o valor da autoria na configuração subjetiva da
inclusão expressa por Sofia.
Indicador A autoria é uma manifestação da subjetividade da pessoa que ocorre quando ela se
reconhece intimamente capaz de aprender e capaz de ensinar. Esse encontro
Autoria potencialmente mobiliza os processos de aprendizagem humana, logo, provoca
movimentação nas estruturas subjetivas da pessoa também, configurando
subjetivamente a autoria na vida da pessoa como capacidade de tornar possível a
construção de caminhos subjetivos alternativos de ação no mundo.
Destaca-se nesse caso que o processo de se reconhecer como autora da sua vida foi
desencadeado de maneira mais intensa quando ela se reconheceu capaz nas práticas esportivas
e isso só foi possível pois havia diálogo entre os membros da equipe.
231
O segundo caso refere-se à uma menina com deficiência intelectual, que apresentava
questões disciplinares importantes na escola, especialmente na infância, e que foi aluna de Sofia
em sua turma de estágio – a turma que a convocou a assumir-se professora de crianças,
reconhecendo-as tal como eram. Ela refere que também foi professora da mesma criança no 4º
ano de sua escolarização, época na qual era professora temporária. Mais tarde, essa menina
participou de sua pesquisa de mestrado, quando ela já havia concluído o Ensino Médio na escola
em que Sofia trabalha.
“[...] eu vivi vá-ri-os momento com a <nome da criança>! [destaca frisando com as feições – risos nervosos
indicando que se tratava de desafios vividos]. Ela era maior que eu já no 1º ano, ela era muito alta [risos, humor
– Sofia tem algo como 1,50m de altura] [...] aí eu faço a minha pesquisa de mestrado, né!? E eu vou entrevistar
ela e eu vejo na fala dela coisas belíssimas que mostram ali as marcas dessa passagem dela pela escola, e teve
várias coisas que ela me disse, teve uma coisa que ela me disse assim: ‘eu consigo entender o que eu consigo
fazer e o que eu não consigo’, foram mais ou menos essas as palavras, ‘mas o professor não sabe, ele pede para
mim a mesma coisa que ele pede para os outros’[expressa tristeza] Sabe... e naquela entrevista assim aquela
menina vai colocando todo o sofrimento dela, tudo que ela passou quando ela reprovava aqui, que cada vez que
ela reprovava ela tinha que recomeçar tudo de novo, os amigos, os laços afetivos, então, as preocupações
completamente distantes das nossas, por exemplo, a preocupação dela era ‘com quem eu vou sentar agora?’,
entendeu? ‘Com quem eu vou fazer trabalho?’, né, ‘se eu precisar de ajuda para quem eu vou pedir ajuda agora
na sala de aula?’, entende?! Como é que ela iria reconstituir as redes de amizade, ela tinha dificuldade, as pessoas
[...] viam ela diferente [...] ela destoava dos interesses do grupo, né. Então, assim, ela contando o que para nós
parece assim que... talvez um professor mais atento tenha visto isso, por exemplo, ela tinha conseguido uma
amizade, daí essa amiga começou a namorar e aí deixa ela, entende.... ela contando e tu fica pensando assim:
‘Quanto detalhe, quanta coisa que tinha na volta que a gente não percebia!’ [postura reflexiva, pausa] [...] E
ela fala assim: ‘Aí, lá no 3º ano eu reprovei, quando eu não conseguia ter um caderno igual ao dos outros,
quando eu não consegui aprender... e aí eu ficava agitada....’ e eu pensava assim: ‘Como a gente tá longe de
entender o que estas crianças estão sentindo, né?!’. Quando elas não aprendem, quando elas não acompanham
o grupo, quando elas reprovam” [demonstra desconforto]” (Sofia)
Nesse trecho, evidencia-se que a menina, embora tenha conseguido concluir o Ensino
Médio na escola, de certa forma avançou em sua escolarização com flexibilizações curriculares,
mas não foi efetivamente incluída nesse processo. Era legalmente acolhida, mas não era
efetivamente reconhecida na sua unicidade. O que é demonstrado na distância entre as
necessidades dela e o que a escola lhe demandava, indicando que a relação pedagógica não se
232
Sofia destaca nas suas elaborações sobre o caso a distância que havia entre as
preocupações da menina e as da escola, denunciando o quanto não se considerou nesse processo
de escolarização o que era o melhor para aquela criança em específico, naquele determinado
momento. Percebe-se um fluxo no qual a criança em questão era considerada naquela
configuração subjetiva institucional dominante como inapta, uma vez que não se enquadrava
nas expectativas da escola, entretanto, as normativas legais determinavam que ela tinha o direito
de estar lá. Consequentemente, as possibilidades efetivas de construção de caminhos subjetivos
alternativos se reduzem sobremaneira, contribuindo para a exclusão velada da criança naquele
espaço. Por sua vez, Sofia manifesta indiretamente que o caso a levou a refletir sobre a maneira
como desenvolve a docência, de forma a buscar ser mais atenta, destacando o quanto aprende
com esse processo reflexivo de escutar o outro, além de manifestar o desejo de compartilhar
essas experiências com outros professores para inspirá-los, fala que “às vezes eu penso em
pegar a entrevista dela e fazer um artigo sabe! Valia a pena né!? [...] E aí eu tenho todo esse
233
feedback com ela, né!? Sobre toda essa trajetória escolar dela... [pausa, suspiro] também é
uma coisa que eu levo para minha vida”.
O terceiro caso narrado por Sofia, refere-se a uma criança com quem trabalhou na
Educação Infantil, fala da maneira como sentidos e configurações subjetivas da criança podem
se expressar em uma atividade escolar, de maneira inesperada.
“Da escolinha em que eu trabalhei... eu fui trabalhar sobre cartas, enfim, sobre alguma coisa que surgiu do
interesse deles e aí a gente escreveu cartas para os pais, ou a gente fez cartões [...] e aí tinha uma aluna que o
pai estava no Rio de Janeiro, então a gente fez para ela uma carta, que ela fizesse chegar até ao pai dela via
carta. Então, a gente, como era aqui perto [o correio], a gente atravessou e foi ali no correio e entregou a carta...
e quando a gente volta essa menina teve um surto, foi a primeira vez na minha vida que eu vi uma criança ter um
surto! [suspiro] E ela pega as cadeiras, as mesinhas aquelas de creche, de escolinha, e joga longe e eu tenho que
botar toda a turma de 20, 20 e poucos alunos em um cantinho [...] eu não conseguia controlar tamanha era a
força que ela tinha! E eu não tinha imaginado que uma atividade podia mexer tanto com um aluno! [...] o pai
estava no Rio há muito tempo e não via ela. Então toda a raiva dela contida... [foi exposta naquele momento –
suspiro] Ela conseguiu, ela fez [a carta], entregou a carta, postou. [...] mas eu não me dei conta, naquela época
eu estava recém iniciando, que eu poderia tocar em coisas tão profundas das crianças ao ponto dessa criança
descarregar uma raiva tão profunda” (Sofia)
Nessa etapa de sua vida ainda estava cursando Pedagogia, dava aulas para uma turma
de crianças que tinham por volta de 4 anos, em uma escola de Educação Infantil próxima da
sua casa. Relata que não imaginava o quanto uma atividade escolar poderia produzir uma reação
tão forte em uma criança, de maneira a torná-la violenta.
Sofia relata que após o ocorrido buscou a psicóloga da escola e ela lhe contou a história
de vida daquela criança, complementando que pai e filha “tinham uma relação em que o pai
não vinha ver ela, o pai não dava atenção para ela”. Essa informação levou Sofia a entender
que o envio da carta proposto na tarefa escolar foi o elemento que deu voz a sentimentos que
estavam reprimidos até aquele momento. A violência da criança foi uma maneira de ela se
expressar. Sofia refere que acredita ser importante, além da atenção à criança real, a constituição
de diálogo contínuo com colegas e famílias a fim de entender a criança e lhe proporcionar um
espaço seguro no qual possa se expressar, um espaço que a sustente, a acolha e lhe
234
proporcione alternativas para conviver da melhor maneira possível com sua história de vida,
corroborando a elaboração da função social da escola. Sofia então reforça que:
“Afinal, existem crianças em que a escola pode ser o único lugar de escape naquele momento, para
determinadas situações que ela pode estar vivendo, que ela está sinalizando através da aprendizagem. Então, a
leitura tem que ser calma. A gente tem que fazer essa leitura calma, sem julgamentos, e tentar rever a história
desta criança. Porque tem gente que passa às vezes pela mesma história e não tem... não sinaliza daquela forma.
Então é preciso pensar por que aquela criança está fazendo aquilo. Este é um primeiro momento.” (Sofia)
“Respeito aos outros, acho que isso é fundamental [muito calma e introspectiva – pausa, suspiro] [...] A gente
julga muito facilmente, eu acho que essa coisa do não julgar [...] é um exercício evitar fazer esse julgamento. E
tentar exercer, assim, o respeito. [...] E aí vem a questão da empatia eu acho, tu vai tratando essa questão de não
julgar, exercer o respeito [...] Claro existem limites, por exemplo, eu converso com as crianças sobre isso, existem
direitos que são fundamentais, como o direito à vida. [...] uma questão que a gente estava conversando agora a
pouco com a colega ali, de discriminação. Não tem isso aí, não é uma escolha discriminar, não, isso não pode.
Não tem que fazer opinião sobre isso aí. [...] No resto não agredindo essas questões fundamentais, a gente precisa
fazer esse exercício de empatia. Se colocar no lugar do outro, como eu me sentiria sendo julgada por aquilo que
eu acredito né?! Que me forma, que me faz o que eu sou, que me torna o que eu sou. Isso é importantíssimo
para a minha vida, e para a minha profissão. Eu acho isso fundamental” (Sofia)
Indicador O respeito é uma expressão da subjetividade de Sofia que foi configurada a partir da
empatia e do reconhecimento da unicidade da vida humana. O respeito passa a
Respeito constituir um valor que se manifesta em sua conduta em diferentes esferas. Surge
como um contraponto às experiências de exclusão sofridas por ela, provocando a
emergência de sentidos e configurações subjetivas relacionadas sempre que se depara
com algum ato desrespeitoso, violento ou discriminatório. Tomada pelo
reconhecimento e pela empatia, Sofia se sente impelida a agir de maneira conciliatória
no conflito, mediação essa que transcorre pela ponderação da situação vivida a fim de
gerar inteligibilidade e desenvolvimento de caminhos subjetivos alternativos.
Virginia: Tu tem alguma memória sobre momentos em que isso aconteceu? [...]
Sofia: Eu me lembro que eu tive uma [...] uma ótima professora de 1º ano, mas eu tive uma experiência
de 2ª série muito difícil [frisando o difícil]. Eu não sei o que aconteceu [...] eu e ela não nos
fechávamos... E ela era brava comigo, assim, ela não... Eu percebia que ela deixava os outros
fazerem algumas coisas e eu não, comigo ela era mais dura do que com os outros, talvez ela fosse
dura com outros alunos também, mas eu não percebia isso, mas eu percebi que com alguns ela
deixava algumas coisas acontecer. Hoje, claro, eu observo que talvez não fosse tudo aquilo, era
a minha visão de criança. Só que um dia eu era uma das únicas que tinha uniforme e tinha que
escolher alguns alunos para representar a escola em alguma situação, os menores, todas as
pessoas... Aconteceu uma situação tipo assim: ela mandou todos, todos os que tinham uniforme
menos eu, e eu fiquei muito triste [frisou o triste].
Virginia: Tu te sentiu discriminada?
Sofia: Muuuuiiiito [alongou e frisou o muito]! Eu ficava com as crianças e eu vi que ela me discriminava,
assim, naquele dia eu notei que ela não gostava de mim. [...] E, aí, eu me lembro que eu coloquei
alguma coisa para ela, e ela disse que eu era uma mal-educada, e que os meus pais não me
davam, não me davam educação! Eu não sei por que ela falou aquilo, porque eu sempre fui muito
quieta, eu sempre fui muito, muito, como sou até hoje, assim... eu tenho até medo de ser grosseira
com as pessoas! Eu tomo todo o cuidado para dizer alguma coisa para as pessoas e eu já era
assim desde criança. Mas eu era uma espoleta, né! Eu era uma espoleta, eu adorava brincar, eu
conversava, conversava o tempo todo! [risos] Então, eu devia incomodar ela mesmo... [pausa,
expressa humor] E eu me lembro que eu fiquei muito mal. Mas eu sabia escrever muito bem e
eu escrevi uma carta para ela. E eu coloquei na carta, do meu jeito de criança, assim... como
eu me sentia e que ela estava errada. Com as minhas palavras de criança eu disse assim: que
meus pais me educaram muito bem. E eu coloquei várias coisas naquela carta. E eu entreguei a
carta para ela. E eu não sei o que, eu não sei de onde eu tirei tanta coragem! E depois daquilo
ela mudou comigo. [...] essa é uma coisa que eu levo comigo assim, que se sentir muito
humilhada, me sentir muito discriminada, entendeu, assim, foi muito forte! [frisou]
Percebe-se nessa narrativa que Sofia busca explicar a elaboração de seus princípios e
valores orientadores com base na experiência vivida, o que corrobora a compreensão de que se
aprende a partir da experiência compartilhada. Por sua vez, entende-se que o direito ao respeito
é configurado subjetivamente a partir de uma experiência na qual sentiu ter esse direito
violado. No trecho destacado, é notável que Sofia se sentiu julgada apressadamente por sua
professora, não sendo reconhecida em sua unicidade, provocando o desencadear de um processo
excludente velado, mas sentido, o qual a fez se sentir discriminada e humilhada perante a turma.
Porém, Sofia manifesta desde pequena uma tendência a elaborar caminhos subjetivos
alternativos a fim de expressar-se com os recursos que dispunha naquele momento da sua vida.
No caso, ela escreve uma carta propondo um encontro dialógico com a professora. Movimenta
237
a elaboração subjetiva da relação, manifestada na maneira como passou a ser tratada pela
professora. Isso indica que é no reconhecimento da sua unicidade que Sofia se sente
respeitada, movimento que sugere a presença dos valores de honestidade, de empatia e de
afeto, provocando, assim, a constituição de vínculo.
“Uma das coisas que eu levo assim... muito triste... é quando a gente se esforça, a gente investe, e bum, ‘Fulano
saiu daqui!’. Ahhhh! [balança as mãos no ar indicando indignação] Eu fico assim muito triste! [frisa, forte
emocionalidade] E teve aqui, né! Teve vários! [...] tem uma senhora que está limpando agora aqui [profissional
da higienização da escola] que eu olhei para ela e pensei assim... ‘Eu conheço ela não sei de onde’ [feições
reflexivas] ‘De onde eu conheço ela?’ Aí ontem ela fez eu me lembrar: ‘Ai, meu filho estudou aqui!’. E aí eu olhei
e para ela e disse ‘o fulano!’ [suspiro] e ela disse ‘Sim!’. Daí eu me lembrei, ‘Foi meu aluno, na 4ª série!’ [sorriso
genuíno]. Esse menino, um menino negro, daqui de Viamão, da periferia, de um lugar bem pobre daqui de
Viamão. Eu sei porque eu conheço, né [mora em Viamão também]!? Ele vinha com umas roupas... [muito
simples] e tinham uns alunos que gozavam dele o tempo todo! [indignação] ‘Olha só o calçãozinho dele!’ [muda
a voz], o calção dele era de uma qualidade inferior. [...] eu fazia a intervenção, mas esse menino... [o que
discriminava] não adiantou, ele continuou caçoando do outro, continuou humilhando o outro. Ele ria da roupa
dele, ele ria sabe... [forte emocionalidade – indignação] Ai.... aquilo me incomodava de uma certa forma!
[suspiro] Eu não tinha mais paciência para lidar com aquele menino... um menino! [suspiro irritação] E esses
tempos eu encontrei ele aqui, ele voltou para ser até monitor. E aí ele me encontrou aqui nessa, mesa [...]e ele
disse: ‘Ah, professora, eu incomodava, né!?’. O menino, esse que zombava do outro, que criticava, que
discriminava o outro. E eu disse: ‘É, faz parte, né!?’. Às vezes, as crianças demoram para fazer determinadas
aprendizagens, para ter respeito pelo outro... às vezes demora!. Não foi bem desse jeito, assim, mas eu falei que
às vezes... demorava... E o <filho da senhora da higienização> foi para o Fundamental II e saiu daqui. Entendeu!?
[suspiro] Eu fiquei pensando assim: ‘Por que aconteceu isso?!’. O menino precisava.... de uma escola [que lhe
desse oportunidades], sabe!? Que ele precisava ficar nessa escola! Alunos que tu investiu, que tu fez, que tu
tentou.... que tu tentou inclusive a aprender com eles né... ‘Por que a agente não tá conseguindo alcançar esses
alunos?’ Então, eles saíram daqui.... e então tem várias tristezas nesse caminho... tem vários lutos que eu tive
que fazer ao longo dessa caminhada... [...] E eu chorava naquele canto e dizia assim: ‘De onde eu vou tirar
força!’, por que eu tinha raiva, né!? Eu tinha e eu tenho, eu sou um ser humano! Eu fico brava! Eu fico... as
238
pessoas acham que eu não sou, mas eu fico brava sim! [suspiro] Eu tinha uma raiva quando eu via o outro
discriminando, gozando da roupa do outro, gozando do tênis que o outro tinha... que ele vinha com aquele tênis
melhor que a mãe dele podia comprar para ele... [suspiro impaciência] aquilo me mobilizava de tal forma e eu
ficava pensando ‘o que que esse menino tem?!’” (Sofia)
Nesse trecho, no qual Sofia retoma no presente uma experiência vivida em seu estágio,
é possível observar em que profundidade a violação do direito de ser respeitado lhe afeta,
provocando a emergência de fortes fluxos de emoções que a levam a chorar de raiva, a
questionar-se se teria forças para enfrentar cotidianamente tal desafio, o que sugere sentimentos
de frustração e de impotência. Porém, anos depois, quando o menino que desdenhava de seu
colega reconhece que sua conduta era inadequada, ainda tocada por algum ressentimento, Sofia
o acolhe com um afeto transmutado em respeito, reconhecendo sua unicidade, o seu caminho
singular de ser e viver vida, expressando-se nas singelas palavras “é, faz parte, né!? Às vezes,
as crianças demoram para fazer determinadas aprendizagens, para ter respeito pelo outro...
às vezes demora!”. Esse fluxo expressa que mesmo que as intervenções realizadas, as reflexões
propostas, não terem surtido efeito naquele momento do passado, elas tocaram subjetivamente
de alguma maneira aquela criança. Como disse Sofia a respeito desse fato, a escola era para ele
também, talvez fosse o único lugar no qual ele poderia constituir aprendizagens como essa.
Em contrapartida, é possível reconhecer que houve alguma mobilização subjetiva
também na criança que era discriminada, reverberando em sua família, o que foi percebido na
forma afetuosa como se deu o encontro de Sofia com a mãe de seu aluno, quase 20 anos depois.
Um encontro que sugere reconhecimento das duas com aquela história sofrida, que sugere que
algum vínculo foi estabelecido, que o trabalho realizado por Sofia, de buscar incluir aquela
criança naquela escola (que tinha seus mecanismos velados de exclusão), naquelas condições,
não foi em vão como ela imaginava. O menino seguiu sua vida e ela se tornou uma professora
que batalha ativamente pela efetiva inclusão de todas as crianças que passam por ela, em um
processo de escolarização digno e respeitoso.
“Mas aquela sala era uma sala, assim, de crianças grandes, pequenos infratores, né... crianças com questões de
audição, crianças com questões.... tinha todos naquela sala de todas as idades, né! E a professora olhou para
mim e disse assim: ‘Aqui é um zoológico!’ [muda a voz, indica desconforto nas feições]. Talvez ela não tenha
feito aquilo por mal [...] [suspiro] Mas me chocou a fala dela, né! Claro, me chocou, mas eu fui fazer o meu
trabalho, [...]e eu fiquei pensando ‘era só um olhar né!’, às vezes é só um olhar que essas crianças precisam.
[...] Talvez seja isso que eu tenha tanto receio com reprovação, quando vai falar em reprovar aluno eu já começo
a ficar toda... assim.... toda... incomodada, assim! Talvez isso seja algo que eu traga comigo dessas experiências
que eu tive né! Nessas escolas onde tu encontra essas crianças com multi-reprovações e sem, às vezes, um
acompanhamento... e de novo, não porque eu não ache que os profissionais não... não queiram né, às vezes as
condições são difíceis né! Para atender essas crianças.” (Sofia)
Dessa maneira, compreende-se que a reprovação é configurada por Sofia como a não
efetivação do direito à aprendizagem. A experiência de vivenciar uma classe de progressão,
na qual todas as crianças (que eram consideradas implicitamente inaptas à escola eram
depositadas em uma sala, segregadas e sem perspectivas mínimas de mudanças naquelas
condição) eram alijadas não apenas de sua unicidade, mas também da sua condição humana
(visto a comparação a um zoológico), o que remete Sofia à uma situação de morte.
Indicador A reprovação é configurada subjetivamente por Sofia como a não efetivação do direito
à aprendizagem. Inconscientemente, a participante associa a reprovação à ideia do luto.
Reprovação Dessa maneira, Sofia, movida pela dor e pela angústia do luto, luta obstinadamente por
criar caminhos subjetivos alternativos à configuração social dominante, visando à
efetivação do direito à aprendizagem para qualquer criança, independentemente de sua
condição biopsicossocial.
Toda essa produção subjetiva manifesta-se em Sofia como um incômodo que a provoca
a se atentar e a (se) questionar se efetivamente foi garantido o direito à aprendizagem para
cada criança que se cogita ser reprovada. Também se manifesta em sua obstinação por
efetivamente incluir cada criança em seu processo de escolarização, levando-a a implicar todos
em prol de uma causa. Sofia é conhecida entre seus colegas como uma professora que trabalha
muito bem com casos difíceis, tal como foi dito no depoimento da professora Ana, a qual refere
que desde que iniciou sua carreira ela já tinha essa implicação, o que indica que o direito à
aprendizagem foi configurado subjetivamente antes mesmo de ela se tornar professora. Dessa
maneira, é possível compreender que reprovar uma criança sem lhe garantir o efetivo
direito à aprendizagem é, inconscientemente, associado por Sofia à sua experiência com a
classe de progressão, ou seja, desprover a criança da sua condição humana, daí sua associação
a “perder um aluno” e à configuração subjetiva do luto na sua vida. Elaboração que é retomada
de forma recorrente ao longo dos relatos. A seguir, seguem dois trechos nos quais Sofia sugere
tais associações:
“Para mim, reprovação é o mais dolorido que existe. Eu tenho problemas com reprovação. Mas eu sei que, por
vezes, a criança precisa de um tempo maior para aprender, dentro da organização escolar que a gente tem,
infelizmente, é isso que acontece, a reprovação. Talvez, um dia, a gente encontre outras formas de organização
escolar, mas a gente não tem no momento.” (Sofia)
241
“Não adiantou todos os esforços, ele reprova naquele final de ano e sai [...] uma das professoras que trabalhava
aqui, me liga e diz: ‘Sofia, Fulano já tá reprovado!’. Em setembro ela me liga! [...] E sabe o que acontece? Eu
convido ele para vir... no meu mestrado [entrevistá-lo] e ele vem, e ele é assim sim, muito... Tem um jeito muito
peculiar né... De um jeito muito peculiar... Ele não mudou muito depois de todos aqueles anos... E ele senta aí
diz: ‘Bah, prof., eu não consegui ficar no colégio, eu sai daqui!’. Resumindo: ele foi para outras escolas, ele foi
expulso, tá! [indignação] Ele teve que fazer um supletivo de Ensino Fundamental porque ele não conseguiu se
manter na escola... Ele estava tentando voltar para fazer um Ensino Médio, mas ele não conseguia também... Ele
não conseguia ficar na escola, né... [...] ele fazia bicos, ele não conseguia se manter em um emprego [...] Ele
continuava com aquela coisa, assim... Tu via que a linguagem dele tinha aqueles comprometimentos, que a
organização do pensamento dele continuava com aquelas questões... Que o raciocínio dele... Entendeu? Assim,
para aprofundar as perguntas tu tinha que ser muito... Tu tinha que ser muito paciente para dizer para ele, para
que ele conseguisse compreender as perguntas... Então, quero te dizer que ele era uma criança... que era de
inclusão desde sempre, tu entende!? [exaltada, forte emocionalidade] E a gente não conseguiu dar conta dessa
criança aqui, a gente se livrou... Ele foi literalmente um caso emblemático para mim porque ‘vamos se livrar
dele...’. Foi com ele que eu ouvi a frase ‘vamos se livrar dele’. E as pessoas se livraram dele mesmo, entende?
[forte emocionalidade e indignação] [...] Mas, mesmo assim, como a gente pode fazer para ter uma intervenção
mais adequada possível com essas crianças? Ainda acho que é mantê-las aqui! Sabe!? Porque, pelo menos, a
gente vai tentando entender e dando espaço para essa criança” (Sofia)
“Cada pessoa aprende de uma forma diferente a partir de dinâmicas diferentes, de leituras, diferentes ritmos
diferentes. [...] Por mais que a convivência entre os grupos, os pares, seja difícil, [...] a gente consegue ser
profissional apesar das nossas diferenças. Nós passamos por isso e vamos lá! E olhamos para o trabalho... e
olhamos para as crianças... e nós fazemos um trabalho que eu julgo qualificado com elas, né!” (Sofia)
242
Para Sofia, garantir o direito à aprendizagem para todas as crianças não é algo fácil, “é
trabalho... trabalho bem trabalhoso!”. Se considerarmos a caminhada de Sofia como um todo,
entende-se a dimensão da ideia de senso de coletividade para a construção de caminhos
subjetivos alternativos à configuração subjetiva social, configurando-a como uma professora
que dialeticamente mobiliza não apenas os processos de aprendizagem das crianças que são
suas alunas, mas também todas as instituições sociais nas quais estão inseridas. Indicando que
a efetivação do direito à aprendizagem é configurada subjetivamente por ela por meio do
processo dialógico, uma espécie de conciliação dialógica que agrega as singularidades e as
pluralidades em prol de cada criança, projetando-se para além dos muros da escola. O que pode
ser observado nos dois trechos que seguem:
“Um [aluno] que eu fico muito feliz de ver que está bem [...] uma criança que desde o 1º ano ele deu indícios para
nós que ele precisava muito da nossa atenção e da nossa acolhida... Eu me lembro da mãe todo o dia [ênfase]
dizendo para nós que ele tinha um problema e ele era maravilhoso no 1º ano... [suspiro] Ela vinha religiosamente
todo o dia e dizia que se ele não tinha tido um problema ele iria ter então! Ela dizia: ‘Ah, eu dou até o remédio
do coração para ver se ele baixa a pressão e para de incomodar!’. E a gente ficava com os olhos desse tamanho
[arregalados]! E eu dizia assim: ‘Mas tu não pode dar esse remédio para ele sem prescrição médica!’. Depois de
um tempo a gente até brincava [falando em tom de brincadeira] com ela e ela dizia: ‘Eu vou dar [remédio] para
ele não incomodar vocês’, e a gente dizia ‘Deixa ele, fica tranquila...’. A gente tentava fazer uma conversa... a
gente não sabe até hoje se ela dizia brincando ou se ela dizia a verdade... ela tinha várias questões. Aí um dia ele
começa a mostrar... aí ele bllooouuuu [som de botar para fora]! Aí ele começa, né.... aí ele vai, ao longo do 4º,
5º ano [...]. E eu e lembro que a gente tinha que dar uma sustentação para ele. E ele só conseguiu deslanchar
em algumas áreas de aprendizagem quando a mãe, infelizmente, foi internada. [...] e a gente sempre dizia
assim... esse é um ambiente em que o <nome do menino> pode ter melhores referências que na família... nesse
momento [...] Nós tivemos que enfrentar muitas coisas dela, assim, bater na mesa em reuniões, de ela nos ameaçar,
né... e eu lembro de pensar e dentro de mim eu estava apavorada, apavorada mesmo! Mas, assim, tentando dizer
para ela ‘mas tu entendeu como é que vai ser o combinado a partir de hoje, né!?’. E ela estava muito brava! [...]
Então foi uma caminhada dura com ela, sofrida também, né... mas hoje eu olho... que o investimento foi positivo,
né! Ele conseguiu se manter, essa mãe conseguiu receber o atendimento [...] a gente resgatou né... a gente fez
aquele... não sei o nome daquele processo.... a gente deu aula para ele [...] ele quase evadiu e a gente sabia que
tudo isso tinha uma relação com ela [mãe]... eu e o <nome do colega professor> pegamos ele no 5º ano [...] mas
pelo quadro que ele tinha eu acho que ele conseguiu fazer da escola um espaço de superação” (Sofia)
“[...] eu pensava assim... eu pensava num sentido assim ó... [a escola] como um ambiente de saúde mental, sabe!
[...] como um espaço onde eles poderiam ter uma outra referência [...] não precisa se negar, não precisa negar
as origens dela, mas ter outras referências né!? E nessas crianças é mais do que questões financeiras... são
questões culturais, questões de agressividade... a violência que elas vivem, onde elas estão, a violência até
simbólica, a violência emocional, né!? [...]
equipe se mobilizou para buscar outros membros do núcleo familiar, como o pai e a avó, de
modo a configurar a escola como uma referência de saúde mental não apenas para a criança,
mas para toda a família, de modo que o pai, inclusive, tornou-se aluno da instituição na EJA,
muito implicado com o espaço educativo como um todo.
Esses trechos corroboram a compreensão da inclusão escolar que Sofia tenta expressar,
ampliando a perspectiva legalmente imposta de inclusão de pessoas com deficiência,
superdotação e autismo, trata-se simplesmente de incluir pessoas, seres humanos na sua
integralidade, na sua complexidade, na sua unicidade. Efetivamente ela refere que a escola
pública precisa estar, não só aberta a todas as pessoas, mas também ser um local no qual se
efetive o direito à aprendizagem. Por isso, tal como as experiências vividas a ensinaram, não
basta uma professora isolada buscar incluir todos os seus alunos, é necessário um movimento
em toda a aldeia.
“Mesmo que a gente tenha um problema aqui e outro acolá, ideias que não se fecham, né!? Crianças muito
difíceis, desencontros institucionais [...] Como o grupo a gente consegue dar a volta por cima. A gente consegue
com trabalho, sempre com trabalho! Essas coisas... a gente não encontra soluções mágicas, a gente senta e
estuda. A gente planeja, a gente discute, às vezes briga um pouco... e, aí, a gente constrói alguma coisa. E então
isso me motiva. Essa possibilidade de... Também... de mudança, de construção coletiva. [...] Depois, tu percebe
que as crianças [...] aprendem apesar de nós. Assim, [...] tem algumas coisas que eu não vou precisar insistir,
ficar insistindo... essas crianças vão conseguir ao longo de suas trajetórias nessa escola a ter um contato com
aquilo que que eu acho que é importante para ela [objetivos curriculares]. E por outro, essas crianças vão passar
por outros professores diferentes, em diferentes etapas, né!? Que mais ou menos completa aquilo que eu disse
anteriormente. Então, a gente pode ir fazendo ajustes ao longo desse caminho para que isso [aprendizagens
necessárias para a criança] possa acontecer [...] Eu sei que a ideia de uma turma homogênea, que todo mundo
aprende tudo ao mesmo tempo existe, né!? A mesma coisa... ao mesmo tempo... é uma ideia que perdurou por
muito tempo na educação ao longo de séculos. Mas cada vez mais a gente sabe que isso não acontece. As turmas
são heterogêneas, os ritmos são, as aprendizagens são... Como aquela criança significa aquilo para ela, como
ela ressignifica aquilo para ela... na vida dela... é totalmente único e específico. Então a gente tem que estar
sempre pensando formas de entendê-las.” (Sofia)
Nesse trecho, Sofia reflete o quão complexo é ser uma professora de crianças
comprometida com a efetivação do direito à aprendizagem de cada aluno. Expressa diretamente
que não existe uma única maneira de proceder, “soluções mágicas”. Bem pelo contrário,
reafirma que o compromisso com a efetivação do direito a aprendizagem supõe a contínua
construção de estratégias pedagógicas e isso só se concretiza com muito trabalho, estudo e
atenção aos detalhes. Ainda inclui em suas reflexões a importância da empatia, o se colocar
no lugar do outro, a fim de qualificar o olhar e a acolhida, possibilitando, dessa forma,
compreender quais as necessidade da criança naquele momento da sua vida.
Aqui, o legado de Eduardo se manifesta pela maneira como Sofia implicitamente
imprime capacidade de superação em todos, na maneira como inspira seus colegas a se
implicarem com cada aluno. Uma pessoa que provoca reações em seus colegas como “Eu olho
para ela e penso ‘Bah! Eu quero, como docente, ser como a Sofi! Do fundo do meu coração!’”
244
Tomo a liberdade de escrever este último capítulo na primeira pessoa a fim de evidenciar
o processo de autoria que emergiu em mim nesse encontro dialógico com Sofia. Eu, Virginia,
a profissional da educação, conheci Sofia, uma professora dedicada e admirada por seus
colegas, alunos, gestores e comunidade escolar, há aproximadamente 10 anos. Tive a grata
experiência de trabalhar com Sofia, uma vivência que, de forma quase etérea, foi me
constituindo uma docente mais atenta às manifestações sutis das crianças no espaço social da
escola.
Como já citado, preocupa-me há muitos anos a questão da aprendizagem escolar.
Inicialmente, na minha jornada profissional, preocupava-me com a didática e os métodos
utilizados. No entanto, minha dissertação (BAUM, 2015) apontou que havia outros fatores
implicados no aproveitamento escolar das crianças, os quais lembravam muito o excerto
retirado da obra de Alicia Fernández (2012). Foi assim que passei a me questionar o que seria
esse modo de olhar e de escutar citado pela autora que eu vi acontecer diversas vezes ao longo
da minha carreira. Tendo como referência a minha pesquisa de mestrado (BAUM, 2015), foi
possível compreender que essas questões extrapolavam as didáticas ou metodologias. Percebia-
se que havia algo muito mais sutil envolvido, que potencializava a construção do conhecimento
naquelas crianças, algo que passava por imprimir nelas, implicitamente, potência e
246
possibilidade. Percebia-se que esse processo produzia engajamento e implicação, não apenas
com a tarefa, mas entre as pessoas como seres humanos reais, provocando um espaço seguro
no qual aquelas crianças podiam se colocar integralmente nas suas produções, de maneira a
expressar no seu conteúdo as suas historicidades, suas angústias e seus medos. Eu não sabia
como nomear isso, só sabia que existia e que precisava ser divulgado. A isso somam-se minhas
inquietações quanto a entender o porquê de alguns professores potencializarem mais a
construção de aprendizagens escolares do que outros. Inquietação essa que surgiu ainda na
minha infância, no meu processo de ser e viver uma escola que muitas vezes não fazia sentido
para mim.
Foi então que, como no texto narrado anteriormente, lembrei-me de Sofia, quase dez
anos depois. Memórias afetivas a respeito da maneira como ela vive a docência me levaram a
estudar a constituição subjetiva desses docentes que, assim como ela, imprimem em seus alunos
capacidade, potência e possibilidade. E, assim, surgiu esta pesquisa. Foi dessa maneira que eu,
Virginia, a pesquisadora, conheci Sofia, o ser humano, que na sua grandeza humilde e generosa
me acolheu e compartilhou um pouco da sua essência, da sua historicidade.
No diálogo com ela, mediado pela Teoria da Subjetividade, aos poucos fui percebendo
nuances que até então não eram pensadas ou nomeadas por mim. Tal como alguém que passa a
enxergar aos poucos, primeiro alguns borrões e brilhos, depois imagens um pouco mais nítidas,
mas ainda bastante imperfeitas, fui tateando caminhos para compreender a maneira como ela
se constitui. Portanto, apresento aqui uma breve síntese conclusiva a respeito dos achados desta
pesquisa e algumas considerações quanto à aprendizagem e à docência, produzidas a partir do
diálogo com Sofia.
Cabe aqui retomar que, conforme González Rey e Mitjáns Martínez (2017a, p. 15), as
pesquisas apoiadas na Epistemologia Qualitativa
son un proceso dialógico que favorece la emergencia de lo singular que, a su vez, gana
relevancia para la producción del saber a partir de los modelos teóricos que, generados
en estudios de casos, permiten organizar nuevos saberes que se profundizan y
desarrollan con nuevos estudios de casos o grupos de investigación. La legitimidad de
los resultados, de acuerdo con la Epistemología Cualitativa, no está en la
generalización inductiva, sino en construcciones teóricas que se desarrollan por vías
indirectas a través de la interpretación y las producciones teóricas del investigador. La
única diferencia entre práctica e investigación científica está en la intención del
profesional que las desarrolla; la práctica está orientada al cambio de personas, grupos
e instituciones concretas, y la investigación pretende producir un saber con una
capacidad de generalización que trascienda a los participantes de su momento actual.
247
Considerando tais aspectos apontados pelos autores, convém esclarecer que as reflexões
aqui expostas são relacionadas ao caso de Sofia, uma manifestação daquela singularidade.
Porém, pretende-se inspirar outros professores a atentarem para detalhes, muitas vezes
negligenciados, na dinâmica escolar.
Desse mergulho em profundidade na história de vida de Sofia, compõe-se a tese de que
professores como ela, que vivem a docência de modo a configurá-la subjetivamente como
potência, como possibilidade de construção de caminhos subjetivos alternativos pela via
dialógica, atribuem valor e significado tanto à sua atuação pedagógica quanto aos
processos de aprendizagem escolar e escolarização, influenciando, assim, novas produções
subjetivas, seja no âmbito individual quanto no social. No fluxo de construção da informação,
constatou-se que os indicadores levantados a partir da narrativa da história de vida da
participante organizam-se sob a forma de hipóteses que constituem modelos explicativos a
respeito do caso estudado. As principais hipóteses elaboradas a partir do estudo correspondem
aos núcleos organizativos da configuração subjetiva da docência explanados na construção da
informação, os quais estão apresentados de maneira resumida na sequência.
emocionais inconscientes que lhe tocam intimamente, direcionando, assim, sua atenção à
situação vivida. Essas situações geralmente estão relacionadas aos desafios enfrentados ao
longo de sua vida pessoal ou profissional. Na sequência, ela passa a elaborar a experiência, de
forma mais ou menos consciente, a partir da articulação das seguintes dimensões: o sentir –
fluxo inconsciente que inclui nessa elaboração o estabelecimento de um processo empático-
afetivo, que a provoca a colocar-se no lugar do outro, e a emergência de memórias correlatas,
o sentir une pensamento e emoção, passado e presente; o refletir – fluxo mais ou menos
inconsciente que supõe a observação contextual, leva a considerar os indivíduos envolvidos, a
situação em si e as circunstâncias, incluindo o valor honestidade que acolhe o senso de
realidade; e, por último, o ponderar – fluxo não totalmente consciente de elaboração de
caminhos subjetivos alternativos de ação, os quais consideram as possibilidades viáveis naquela
determinada realidade, as aprendizagens já constituídas, as experiências prévias e os recursos
de vida produzidos por todos e por cada indivíduo, objetivando agir da melhor maneira possível
nas condições do momento presente, o que supõe a emergência do valor do respeito para com
a unicidade da pessoa. Dessa maneira, fluxos de sentidos subjetivos emergentes perante a
experiência vivida produzem recursivas (re)configurações subjetivas, um processo de contínua
produção da subjetividade de Sofia, imprimindo, assim, significado ao vivido (re)configurado
subjetivamente na sua historicidade, processo inconsciente que supõe um movimento dialético
e recursivo, de expansão, de qualificação e de complexificação de possibilidades de ação no
mundo e de compreensão da dinâmica da vida, de modo que, desafiada pelas situações que se
impõe, consegue criar caminhos subjetivos alternativos. Por fim, esse fluxo se manifesta sob a
forma de ação perante a situação desencadeadora, a qual pode estar ou não em conformidade
com a configuração subjetiva social dominante (Figura 5).
249
Percebe-se que a ação de Sofia no mundo, o que inclui a maneira como ela exerce sua
profissão, expressa, intimamente, a articulação de sentimentos, de valores, de princípios, de
convicções, de aprendizagens e de saberes que foram se (re)estruturando ao longo de toda a sua
vida, ou seja, suas práticas pedagógicas são uma expressão da sua subjetividade. Entende-se
que essa maneira de viver a docência, de modo a configurá-la subjetivamente imprimindo-
lhe valor e significado, tende a ampliar e qualificar as reais possibilidades de atuação do
professor perante os desafios da profissão. Esse processo se expressa em práticas pedagógicas
progressivamente mais fluídas, dinâmicas e assertivas.
Evidencia, também, que o tornar-se professor é um processo contínuo, que ocorre ao
longo de toda a vida da pessoa. Nesse fluxo, há um ponto marcante na carreira do professor que
o convoca a assumir-se docente – no caso de Sofia foi o seu estágio –, mas não existe um ponto
em que ele se encerra. Cabe aqui destacar que a participante já atuava como professora de
Educação Infantil antes mesmo de seu estágio, que já havia enfrentado situações complexas,
mas, mesmo assim, afirma que se tornou professora efetivamente no estágio, momento no qual
enfrentou diversas dificuldades e foi instigada a refletir para além de suas concepções prévias
e a acolher as crianças reais que ali se encontravam, valorizando sua unicidade, atentando
para aquilo que demandavam naquele momento de sua vida, naquele contexto, sem o uso direto
da linguagem oral, de maneira a vincular-se a elas, deixar-se afetar por elas. Por essa razão,
entende-se que o se tornar professor ocorre no encontro entre o docente, ser humano com uma
função determinada naquele contexto, e a criança real. Aqui cabe uma reflexão a respeito de
250
por que algumas crianças aprendem com alguns professores e com outros não: para acessar
muitas delas,1 faz-se necessário superar barreiras constituídas ao longo de suas vidas e deixar-
se vincular a elas criando uma zona de potencial aprendizagem, a partir da constituição de
espaços nos quais o desenvolvimento subjetivo pode acontecer, um espaço entre o sabido e o
sentido, no qual a criança possa se expressar, sentindo-se segura a mostrar-se na sua
integralidade sem ser alvo de pré-julgamentos, produzindo, assim, configurações subjetivas
alternativas que viabilizem o conhecer, o saber e o aprender, tanto na escola quanto na vida em
sociedade.
Por tais razões, infere-se que a abertura do docente à aprendizagem contínua é um
fator essencial no processo de aprimoramento e qualificação de práticas pedagógicas. Contudo,
não basta uma qualificação conceitual instrumental, é necessário que o professor se reconheça
como parte de uma estrutura muito maior e mais complexa que é a vida em sociedade, daí a
importância de rever-se, revisar-se recursivamente em um diálogo íntimo e honesto com vistas
a conhecer a si mesmo para, então, (re)conhecer o outro. Nesse fluxo, a ideia de conflito se
(re)configura sob a perspectiva de possibilidade, uma espécie de motivação desencadeada,
efetivamente, pelos desafios cotidianos da docência frente a uma prática pedagógica que
objetiva a conciliação dialógica entre objetivos curriculares e a aprendizagem cidadã, uma
prática que considera a criança real na situação de aluno como um membro da sociedade, como
dotado de uma historicidade que pode ser ressignificada no percurso da vida.
Considerando o estudo aqui apresentado, entende-se que a maneira como Sofia exerce
a docência, ou seja, suas práticas, é uma expressão da sua subjetividade, a qual se (re)estrutura
dinamicamente na processualidade da vida, como sistemas de configurações subjetivas que se
organizam em núcleos complexos, que se articulam recursivamente, sendo alimentados ao
longo da historicidade da pessoa por diversos sentidos subjetivos emergentes (GONZÁLEZ
REY; MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017c).
No caso de Sofia, observou-se a organização de quatro núcleos essenciais que
representam os princípios da sua docência, são eles: o vínculo com a profissão, a flexibilidade,
a humildade pedagógica e a ética docente. Por sua vez, cada um desses núcleos expressa, de
maneira mais ou menos evidente, os valores essenciais de Sofia: afeto, empatia, honestidade
1
Tais como as que foram participantes da minha pesquisa de mestrado (BAUM, 2015).
251
e respeito. Porém, em cada um dos núcleos citados, um desses valores se evidencia de maneira
mais intensa (Figura 6).
Este núcleo constitui um princípio da docência de Sofia que se articula intimamente com
o valor afeto. Sofia refere em diferentes situações que ser uma professora de crianças é uma
escolha acertada de vida, uma forma de ser e viver na qual ser feliz é possível. Em
contrapartida, a participante manifesta de forma recorrente, por vias indiretas, o quanto as
conquistas de seus (ex)alunos lhe deixam feliz, evidenciando o valor do vínculo afetivo
252
constituído com eles em sua vida. Por tal razão, pode-se dizer que o que vincula Sofia à sua
profissão são as suas memórias afetivas. Elas são compreendidas como expressões de
produções subjetivas constituídas no passado e que se fazem presentes no agora, articulando
pensamento e emoções de maneira a consolidar o ser professora como algo inseparável do
simplesmente ser Sofia. Porém, essas memórias não se referem apenas a fatos relacionados ao
exercício da docência. Bem pelo contrário, são produzidas desde sua infância, primeiro na
relação com os seus cuidadores mais significativos, seus genitores, depois, a partir da
experiência compartilhada com outros atores sociais. Esses afetos são o que significam as
relações na vida da participante, atribuindo-lhe valor perante a sua unicidade.
As experiências destacadas a seguir são vivências muito marcantes na configuração
desse núcleo organizativo:
a) A relação com seu pai: na qual Sofia configurou a oportunidade de promover acesso à
cultura e à escolarização como um valor compartilhado e como uma prioridade na sua
vida. Também, na relação com o pai, ela configurou o valor do vínculo de qualidade
como meio de atribuir valor, significado e implicação para com a experiência cotidiana
compartilhada.
b) A relação com seu irmão Eduardo: na qual a participante configurou a docência como
uma possibilidade de promover superação e construção de caminhos subjetivos
alternativos àqueles veladamente impostos pela subjetividade social dominante,
influenciando diretamente a sua concepção de aprendizagem e inclusão escolar.
c) O luto: a dor da perda do seu irmão e do seu pai, em momentos muito marcantes da sua
vida, é transmutada por Sofia como memórias afetivas que se projetam no exercício da
docência. Ela converte o luto em um legado daquilo que aprendeu com seu pai e com
seu irmão, e a dor da perda em compromisso íntimo com sua profissão, de maneira a
viver a docência como uma escolha acertada de vida e uma oportunidade de manter
vivo, na relação pedagógica, a memória deles.
Essas três experiências articulam-se intensamente de forma a criar um laço muito forte
da participante com a sua profissão, configurando a docência em sua vida como um legado
afetivo que lhe foi conferido e o qual ela busca honrar a cada dia. Legado esse que lhe sustenta
frente aos desafios da profissão, que a leva a buscar alternativas, a não desistir.
No entanto, esse legado, vivido como um princípio da docência e qualificado pelo afeto,
é aquilo que vincula Sofia ao outro (seja aluno, colega ou membro da comunidade) de maneira
qualitativa, imprimindo nessa relação, inconscientemente, possibilidade, potência, capacidade,
253
sustentação e superação. Fernández (2012)2, autora do texto que abre este capítulo, nomeia essa
característica verificada na configuração subjetiva da docência da participante como
capacidade subjetivante, referendo que se trata de:
Um simples e profundo modo de olhar que não se pode forjar. Que nenhuma
capacitação técnica pode outorgar. Um modo de atender acreditando no desejo e nas
possibilidades [...]. Um modo simples e profundo de olhar e de escutar que não requer
tempo adicional e que transfere seu poder subjetivante para além do breve espaço-
tempo compartilhado. Um modo de atender que outorga vida, que não pode ser
avaliado com parâmetros de eficiência, pois sua eficácia simbólica penetra pelos
tecidos inconscientes. (FERNÁNDEZ, 2012, p. 216).
Sugerindo considerar que Sofia emerge como sujeito da sua trajetória de vida,
desenvolvendo-se subjetivamente de maneira a configurar situações dolorosas em caminhos
subjetivos alternativos da ação. Um recursivo fluxo de produção subjetiva que ela, de maneira
inconsciente, busca convidar o outro, por meio do afeto, a também fazer parte, influenciando o
desenvolvimento das subjetividades social e individual.
Além das experiências já citadas, a entrada na escola e a vivência com sua primeira
professora passam a configurar subjetivamente, por meio do afeto, as primeiras elaborações de
Sofia a respeito do valor da escola na vida de uma criança e do que é ser professora de crianças:
a) O valor da escola na vida de uma criança: significado por ela como um local no qual era
permitido viver uma infância feliz, brincar com outras crianças e superar a dor do luto
e da solidão.
b) Ser um professor de crianças: significado por Sofia como a pessoa que torna possível
o acesso a um novo mundo, com seus encantamentos, descobertas e possibilidades.
2
Cabe aqui destacar que a autora considera a subjetividade a partir de outra perspectiva teórica, sendo colocada
aqui de forma ilustrativa, tal como no texto de abertura deste capítulo.
254
Dessa forma, compreende-se que o vínculo que Sofia estabeleceu com sua profissão
passa a ser configurado desde a sua infância por meio de um fluxo recursivo de produções
subjetivas que provocam desenvolvimento de sua subjetividade. Nesse fluxo, as memórias
afetivas inconscientes produzem uma vinculação de qualidade de Sofia com a sua profissão e
com o outro, atribuindo valor e significado a experiência vivida compartilhada, provocando
assim movimentos subjetivos tanto nas esferas individuais quanto sociais. Evidencia-se, dessa
forma, a importância de o professor investir na sua saúde emocional, no autoconhecimento,
no (re)visitar sua trajetória de vida de maneira a, se necessário, (re)configurar-se subjetivamente
diante de suas memórias afetivas com o auxílio de um profissional.
II) Flexibilidade
Este núcleo constitui um princípio da docência de Sofia que se articula intimamente com
o valor empatia. Expressa-se como disponibilidade constante de abertura ao novo, cujo
movimento se fundamenta na busca por compreender como as pessoas aprendem e prosseguir
a sabedoria. Sofia afirma diretamente que essas duas questões são existenciais para ela, uma
vez que não há uma resposta que dê conta delas ou um parâmetro concreto que as defina, o que
sugere que se trata de um percurso qualitativo, não um ponto de chegada. Dessa maneira,
entende-se que nesse percurso são gerados fluxos recursivos de produção subjetiva, que
provocam a ampliação e a complexificação de perspectivas de compreensão dos fenômenos
humanos, criando, assim, caminhos subjetivos alternativos de ação progressivamente mais
dinâmicos, fluídos, assertivos e, até mesmo, provocadores de desenvolvimento subjetivo (seja
na esfera individual como na social).
Supõe admitir intimamente a provisoriedade dos conhecimentos produzidos pela
humanidade e a processualidade dialética na qual a subjetividade social e a subjetividade
individual se (re)configuram. O que sugere, por sua vez, que viver é um contínuo tornar-se, em
um fluxo constante de aprendizado, configurado subjetivamente como recursos de vida, os
quais ocorrem na relação da pessoa com o outro em um determinado contexto social. Uma
relação dialógica pautada pela empatia, a qual implica atribuir, intrinsecamente, valor a todos
e a cada um diante da unicidade da existência humana e daquele encontro em especial.
Entende-se que o aprender é percurso, não uma mera soma de etapas ou resultados.
Assim, é possível afirmar que o aprender como constituição de recursos de vida é inclusivo em
sua essência, já que considera que cada pessoa tem o que ensinar e o que aprender,
independentemente da idade ou da condição biopsicossocial. Do reconhecimento íntimo dessas
255
acolhimento da sua historicidade singular, gerando sustentação e tornando viável sua expressão
e a progressiva elaboração do que é aprender naquele contexto – produzindo, por sua vez, a
constituição de um vínculo de qualidade com a professora, com a escola e com sua própria
trajetória escolar. Desse modo, por meio da provocação dialógica reflexiva intencional e
compartilhada, constituem-se recursivas elaborações, de maneira a fluir progressivamente de
uma compreensão mais simples para uma mais complexa. Constitui-se, assim, novos e/ou mais
elaborados recursos, saberes e conhecimentos nos quais as crianças se reconhecem como
autoras a partir dessa implicação relacional.
Esse fluxo evidencia que a prática pedagógica de Sofia expressa uma configuração
subjetiva da docência cuja dialogicidade e a promoção de aprendizagens ocupam a
centralidade do processo. Também, indica uma docência configurada a partir de uma relação
de horizontalidade, estabelecida entre as pessoas que compartilham a experiência vivida, de
maneira a, por meio da empatia mútua e do reconhecimento recíproco da unicidade da vida, se
estabelecer um fluxo no qual todos podem ensinar e todos podem aprender, produzindo
identificação, pertencimento e autoria, que, por sua vez, atribuem valor e significado à
escolarização.
Dessa maneira, o núcleo flexibilidade expõe a complexidade do trabalho docente, visto
que envolve considerar questões para além das já tratadas tradicionalmente nos cursos de
formação, como aspectos cognitivos, conceituais, procedimentais, didáticos e legais. Sugere a
importância de se considerar em cursos de formação docente a questão do desenvolvimento
subjetivo do futuro professor, do encontro com sua própria autoria. Além disso, entende-se que
é relevante promover oportunidades concretas, como estágios e programas de inserção em
espaços educativos, que possibilitem ao acadêmico efetivamente compreender a criança em sua
integralidade, por meio de uma mediação dialógica, reflexiva e intencional a respeito do vivido,
não apenas como uma sequência de etapas a serem atingidas, um por vir puramente teórico e
previsível, que não corresponde à criança real, mas um efetivo encontro com o ser humano real,
na sua unicidade, na sua complexidade.
Este núcleo constitui um princípio da docência de Sofia que se articula intimamente com
o valor honestidade. Refere-se ao reconhecimento íntimo da incompletude da formação do
professor, e, por consequência, configura a docência como um fluxo contínuo de (re)formar-
se, (re)ver-se e informar-se, ou seja, como um processo de aprendizagem contínua.
257
Este núcleo constitui um princípio da docência de Sofia que se articula intimamente com
o valor respeito. Por esse viés, os valores estruturais de Sofia se engendram sob a forma de
princípios, que se manifestam como condutas que refletem o compromisso ético do professor,
orientando, de maneira não totalmente consciente, suas decisões pedagógicas. Trata-se de um
núcleo bastante estável, evidenciado como responsabilidade profissional e como
reconhecimento de direitos do estudante.
Nessa perspectiva, a compreensão de docência se expressa como responsabilidade
profissional, sendo elaborada por Sofia como: a) uma escolha de vida que reflete o legado de
seu pai e de seu irmão; b) uma profissão complexa, que exige do docente muita dedicação,
busca contínua por qualificação e constituição de redes de suporte à aprendizagem e ao
desenvolvimento; c) um compromisso ético intrínseco com a criança real, nas suas condições
biopsicossociais complexas, na sua unicidade, o que pressupõe a construção de oportunidade
equânimes de acesso à cultura, à aprendizagem escolar e ao desenvolvimento para todos os
alunos, bem como a construção de decisões pedagógicas intencionais e refletidas, que objetivem
258
o que é o melhor possível para a criança naquele momento e nas condições disponíveis. Dada
a sua complexidade e a implicação na vida de crianças, é um trabalho que exige muito
comprometimento, senso de coletividade, humildade, flexibilidade e sensibilidade.
Partindo dessa perspectiva de docência elaborada por Sofia, o papel do professor é configurado
subjetivamente de maneira a zelar pela efetivação dos direitos do estudante, compreendendo
o direito a ser reconhecido na sua unicidade, o direito ao respeito e o direito à aprendizagem.
Além disso, Sofia destaca a necessidade de cumprir e zelar por aquilo que é estabelecido na lei.
A dimensão ética da docência aqui apontada fundamenta-se no compromisso da escola
com a aprendizagem do estudante real, o que compreende declinar consciente e
intencionalmente da crença das classes homogêneas e dos aptos e inaptos para a escola, o que
implica (re)visar constantemente práticas, concepções, preconceitos. Abre-se, assim, um
espaço no qual a inclusão de todos possa efetivamente acontecer, não apenas como uma
exigência legal, mas como um reconhecimento efetivo e intrínseco das singularidades e da
unicidade de cada pessoa como possibilidade, como potência e como capacidade.
y recursos subjetivos”. Ainda, manifestam que tal processo sempre está relacionado a pessoas
e grupos que emergem como agentes ou sujeitos frente às situações vividas, o que “implica la
emergencia de configuraciones capaces de generar nuevas funciones y procesos subjetivos en
varias áreas de la vida de un individuo o grupo” (GONZÁLEZ REY; MITJÁNS MARTÍNEZ,
2017a, p. 12-13).
Sofia consegue, de forma mais ou menos consciente, articular as pessoas que compõem
o espaço educativo de maneira a possibilitar-lhes assumir uma postura ativa e construtiva
perante o papel social que ali desempenham, sejam estudantes, colegas docentes ou membros
da comunidade. Tais papéis se articulam a partir do diálogo, com vistas a promover condições
equânimes de acesso à cultura, à aprendizagem escolar e ao desenvolvimento integral da criança
real. Nesse fluxo, a criança se configura como um estudante, os profissionais como docentes,
os familiares como comunidade educativa, e a experiência escolar compartilhada como uma
escolarização significada pelo afeto, pelo respeito, pela honestidade e pela empatia, um
percurso de construção de recursos de vida que possibilitam reflexões progressivamente mais
qualificadas a respeito do ser e viver em sociedade e a elaboração de caminhos subjetivos
alternativos aos determinismos impostos pela configuração social dominante. É justamente a
experiência cotidiana dialogicamente compartilhada, com seus desafios, tensionamento e
contradições, que provoca a emergência de novas produções subjetivas, as quais configuram
subjetivamente a experiência vivida, atribuindo valor e significado tanto para Sofia quanto para
aqueles que com ela compartilham tal vivência. Evidencia-se, assim, a potência da educação
dialógica como promotora de oportunidades e de mobilidade da dinâmica social, o que ainda
é pouco explorado e, muitas vezes, até combatido.
Conhecer a história de vida de Sofia convida por si só à reflexão. Sua história e suas
conquistas potencialmente nos levam a refletir sobre uma escola que desejamos, uma escola
que promove saúde, aprendizagem e desenvolvimento das crianças. Uma escola pública que
efetivamente promova oportunidades para que cada criança possa trilhar seu percurso de vida
da melhor maneira possível. Para isso, faz-se necessário pensar como podemos qualificar a
formação (inicial e continuada) dos professores para além do que já se construiu até então. Sofia
mostra que não é a partir de rupturas bruscas, com grandes movimentos populares ou apenas
com políticas de Estado que o ser e o viver o espaço escolar se (re)configuram. Ela mostra, na
sua generosa humildade, que é possível fazer diferente.
260
Sofia age como a nuvem em forma de bruma, que envolve tudo e todos, que toca bem
de leve, deixando, de maneira muito sutil, um pouco de si mesma por onde passa. Ela constitui
seu caminho de vida com fluidez, ao mesmo tempo delicada e marcante em seus valores e
princípios. Uma vida marcada por dores e alegrias, uma vida simplesmente humana. Uma
pessoa em construção de si e do contexto social no qual está inserida, um ser humano
imperfeito, tal como todos o são. Porém, Sofia é inquieta, não se conforma facilmente com as
injustiças que surgem no percurso da vida, as quais lhe tocam no íntimo, provocando a
emergência de intensos fluxos de sentidos subjetivos que podem ser percebidos no seu olhar,
que imprime ao mesmo tempo acolhida e limite, abertura ao diálogo e exigência de
compromisso, um olhar que convida à conexão, ao desenvolvimento subjetivo, à deixar-se
afetar e à construir um vínculo de qualidade.
A história de Sofia evidencia que é possível romper com o paradigma mecanicista (que
considera o aluno como um depositário de conteúdos) quando se assume intimamente que a
criança é capaz de construir aprendizagens, que é capaz de desenvolver-se e que é capaz de
assumir a autoria da sua vida e da sua escolarização. Tacca e González Rey (2008, p. 141)
afirmam que o grande desafio da escola é “transitar entre a igualdade e a diferença, entre aquilo
que precisa e deve ser igual para todos e entre aquilo que só pode ser visto sob o prisma da
diversidade”. Quanto a isso, Sofia me inspirou e espero que inspire outros tantos docentes que
possam estar se sentindo, nesse momento, solitários e impotentes. A eles podemos afirmar que
ser docente, como diz Sofia, “Não é uma escolha fácil, não é uma tarefa fácil ser professora, é
trabalho... trabalho bem trabalhoso!”, mas que tem seu encantamento e é cheio de
possibilidades; Um trabalho que não se resume a um ponto final, mas se trata de uma rota, um
percurso de formação técnica, teórica, mas, acima de tudo, de formação humana cidadã.
261
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis nºs 6.019, de 3
de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de
adequar a legislação às novas relações de trabalho. Brasília, DF: Senado Federal, 2017b.
Disponível em: https://legis.senado.leg.br/legislacao/DetalhaSigen.action?id=17728053.
Acesso em: 29 jun. 2021.
GONZÁLEZ REY, Fernando Luis et al. The relevance of concept of subjective configuration
in discussing human development. In: FLEER, Marilyn; GONZÁLEZ REY, Fernando;
VERESOV, Nikolai (Eds.). Perezhivanie, Emotions and Subjectivity: Advancing
Vygotsky´s Legacy. Singapore: Springer, 2017. p. 301-343.
TACCA, Maria Carmen; GONZÁLEZ REY, Fernando Luís. Produção de sentido subjetivo:
as singularidades dos alunos no processo de aprender. Psicologia, ciência e profissão,
Brasília, v. 28, n. 1, p. 138-161, 2008.
SAVIANI, Dermeval. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas, SP: Autores
Associados, 2013.
265
SCOZ, Beatriz Judith Lima; TACCA, Maria Carmen Villela Rosa; CASTANHO, Marisa
Irene Siqueira. Subjetividade, ensino e aprendizagem: contribuições de pesquisas acadêmicas.
In: MITJÁNS MARTÍNEZ, Albertina; SCOZ, Beatriz Judith Lima; CASTANHO, Marisa
Irene Siqueira (Orgs.). Ensino e aprendizagem: a subjetividade em foco. Brasília: Liber
Livros, 2012. p. 131-155.
STAMATTO, Maria Inês Sucupita. Um olhar na história: a mulher na escola (Brasil: 1549 –
1910). In: CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 2., 2002, Natal.
Anais [...]. Curitiba: SBHE, 2002. p. 1-11.
VAZ, Luana. A sala de aula como espaço relacional: o olhar do professor para as
singularidades dos alunos. 2017. 162 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade
de Brasília, Brasília, DF, 2017.
VICENTINI, Paula Perin; LUGLI, Rosario Genta. História da profissão docente no Brasil:
representações em disputa. São Paulo: Cortez: 2009.
266