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Em sua recente antologia, Pesado demais para a ventania, Ricardo Aleixo reúne
poemas de todos os seus livros anteriores e eles são de todas as formas, inclusive as fixas.
Há só um soneto e não há baladas ou rondós tais como foram legados pela tradição lírica
ocidental ao longo dos séculos, mas não é raro encontrar poemas metrificados, embora
predomine o verso livre, nem está ausente de todo a rima. O dístico, usado repetidas vezes,
lembra que já fez a fama, lá nos séculos XVII e XVIII, de poetas como John Dryden e
Alexander Pope.
Não, aqui não se está querendo atribuir a Ricardo Aleixo2 uma filiação neoclássica ou
saudosista, que não faria sentido diante da profusão de formas livres de que se faz sua
1
Professor Associado do Departamento de Estudos Literários (DEL) da Universidade Federal do Triângulo
Mineiro. E-mail: [email protected]
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Doravante, identificado como RA.
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poesia. Antes, a intenção é marcar sua liberdade em relação a qualquer teia. O fato é que
este poeta se coloca na posição do artista contemporâneo letrado em sua arte,
consequentemente, onívoro, isto é, um poeta que leu todos os poetas e, num hipotético
almoço à americana na casa das Musas, se serviria de tudo, experimentaria de tudo. A
imagem que aqui se esboça, a de um artista elegendo a variedade como princípio para
fazer seu prato no banquete, traz um aspecto essencial para a compreensão da poética de
RA: o movimento. Diferentemente da musa de Luís de Camões, o olhar do poeta belo-
horizontino nem sempre é brando ou piedoso, porém, se encontra com o dela ao se mostrar
igualmente “sem ver de quê”, pois não discrimina formas ou temas.
Nem mesmo a página impressa constrange a poesia deste autor: muito de seu lirismo
só se realiza oralmente, em voz alta. Para comprovar, que se peça a um grupo de amigos
que cada um leia a seu modo este poema, pontuando-o conforme seu senso e
sensibilidade; pode-se apostar que, sonoramente, se produzirão tantos poemas — e
sentidos — diferentes quantos forem os leitores:
Esse trânsito do signo visual para o oral é intrínseco para a força que move o fazer
poético de RA, ou seja, a prática de expandir os horizontes de sua escrita, seja em termos
formais, temáticos ou de sua performance. É o que indica Telma Scherer ao descrever
como essa poesia circula, por iniciativa e necessidade de seu autor, muito além da página:
A poesia de Aleixo acontece tanto nos seus oito livros publicados quanto em
participações sonoras em trabalhos de dança contemporânea, exposições
que circularam no meio das artes visuais, trabalhos de design sonoro e de
vídeo e também performances que circulam pelo Brasil e em festivais de
poesia da América Latina e da Europa. (SCHERER, 2016, p. 2)
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seu intermediário com o público. Para quem já viu suas apresentações ao vivo ou em
vídeos, o lirismo é indissociável de seu corpo, se realiza plenamente nele e por ele,
ensinando potencialmente ao leitor que é possível (ou preciso) aprender esta lição e
corporificar a leitura dos textos também. Esse convite tácito a que o leitor se integre a uma
leitura gestual e sonora dos textos reafirma o que foi dito acima, quer dizer, a essencialidade
do movimento na lírica de RA, que, em todos os sentidos, anseia por não ficar quieta nem
deixar ninguém quieto, pois sabe que o estado natural do corpo vivo é o movimento;
estático, um corpo está morto, ou chamando a morte.
A leitura da obra de RA pressupõe, então, uma parceria com o leitor, cuja atenção a
cada detalhe sinaliza um complexo de corpo e mente ativos, como numa dança em que
não se quer pisar nos calos do par. Por falar em dança, é justamente usando esta arte como
metáfora que Telma Scherer entende a obra dele:
Quem dança não pode ficar parado, é óbvio. Querendo ser dança, como um dia a dos
simbolistas quis ser música, a poesia de RA se compromete com o descompromisso:
desconhece formas e temas e espaços e dicções obrigatórias. O poema se torna, então,
exercício, experimentação de outras realidades. Isso é visível na pluralidade de lugares
nomeados em seus versos, como Nova Lima, o bairro Cabula, em Salvador, Paris, Berlim,
Rio de Janeiro, Nova Iorque, Providence, Maceió, Brasília e Belo Horizonte (e catorze de
seus bairros nomeados num só poema, “Antiode: Belorizonte”), que espelham a pluralidade
dos lugares aos quais o poeta já foi levar suas performances: Europa, França e Bahia.
De Belo Horizonte para o mundo não foi apenas o caminho de vida de RA, mas o de
sua arte, como explica Gustavo Silveira Ribeiro, que localiza o gérmen da escritura do autor
em sua situação de artista self-made man deslocado em seu próprio espaço de origem e,
por isso, condenado a ganhar o mundo:
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1.
sem poder
quebrar a pedra
a água esculpe
na pedra
o que há de pedra
esquecido
no seu quem
próprio
de
água
2.
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sem poder
deter a água
a pedra enfim
reconhece
no gesto
lento
e constante
da água
seu quem
de pedra (ALEIXO, 2018, p. 99-100)
Tudo nesse poema é, mas é também, ou seja, nada é unívoco. Duas partes, ambas
compostas por estrofes de dois versos; dois elementos naturais, não por acaso os exemplos
mais fáceis e visíveis de dois dos estados da matéria, a pedra sólida e a água fluida. Mas,
até aqui, cada coisa está em seu lugar — e não é isso o que move e interessa à poesia de
RA. Por isso, nas duas folhas do espelho que o poema forma na página do livro, água e
pedra se veem um no outro, reconhecem as próprias limitações e se moldam a uma nova
realidade, em que, para serem de forma renovada, assumem um pouco do ser do outro: a
água, com a consciência das muitas pedras que lambeu em seu caminho, a pedra, com a
lentidão e a constância fluência que, na água, reconhece como sua.
A simbologia, aqui, é profusamente rica, mas seu tema recorrente é o mesmo da
mitologia ocidental à africana à oriental: a união de opostos, a convivência em um único ser
da natureza ambígua da vida. A água que passa à pedra, a pedra que flui como água: eis
aqui atualizado o tema imortal da metamorfose. Nas imagens do poema de RA, a água se
vê pedra que se vê água, ou seja, Tirésias, o profeta cego, mas dotado de clarividência,
vira novamente uma mulher, por sete anos; Olokun, que é homem no Benim, com suas
dezoito esposas que representam os cursos naturais de água, passa a ser mulher na
Nigéria e chega ao Brasil como a mãe de Iemanjá — mas, lá como cá, é sempre a divindade
dos oceanos. Aqui, naturalmente, se está vendo pedra é água em seus potenciais
metafóricos de símbolos do masculino e do feminino.
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Por sua natural imobilidade, a pedra tem assumido em múltiplas culturas o papel de
simbolizar a constância, a sabedoria e o poder, o que levou Chevalier e Gheerbrant (p. 699)
a registrar a ubiquidade de mitos em que a pedra está associada à potência sexual
masculina:
O caráter simbólico da água como elemento feminino já foi cantado em prosa e verso,
como, por exemplo, em Novalis, lembrado por Jean Chevalier e Alain Gheerbrant quando
exploram as representações do elemento líquido nas culturas ao longo do tempo e do
espaço da Terra:
A valorização feminina, sensual e maternal, da água foi magnificamente
cantada pelos poetas românticos alemães. É a água do lago, noturna, leitosa
e lunar, onde a libido desperta. A água, essa filha primeira, nascida da fusão
aérea, não pode renegar sua origem voluptuosa e, na terra, ela se mostra
com uma celeste onipotência como o elemento do amor e da união... Não é
em vão que os sábios antigos procuram nela a origem de todas as coisas...
E as nossas sensações, agradáveis ou não, não são mais, afinal, que as
diversas maneiras do escoar em nós dessa água original que existe em
nosso ser. O próprio sono não passa do fluxo desse mar invisível, universal,
e o despertar é o começo do seu refluxo (Novalis, NOVD, 77). E o poeta
conclui: só os poetas deveriam ocupar-se dos líquidos. (CHEVALIER &
GHEERBRANT, 1992, p. 21, grifos originais)
O poeta de que falamos vai além do programa prescrito por Novalis, pois se ocupa
dos líquidos e dos sólidos, sem se deixar intimidar pelas possíveis barreiras que, na
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Habitantes das montanhas Altai, cordilheira da Ásia Central que ocupa territórios da Rússia, China,
Mongólia e Cazaquistão.
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natureza, se erguem entre eles: seu campo é o da simbologia, da cultura, no qual, assim
como um diplomata munido de seu passaporte privilegiado, desconhece as fronteiras
imaginárias que os homens comuns aceitam respeitar. Seu campo é o da poesia e, nestes
tristes tempos e trópicos contemporâneos, ou ela é livre ou não é nada.
A liberdade de movimentos da lírica de RA expõe seu princípio organizacional,
magistralmente, em um poema como “Giro”, do livro Antiboi, lançado neste ano de 2018.
Giro
pura tontura
continua a girar
cai não
cai. (ALEIXO, 2017, p. 26)
A irregularidade estrófica e métrica deste poema não se deve nem ao acaso, nem à
incúria da ignorância ou da rebeldia. Ela é absolutamente necessária para que haja a total
integração entre forma e conteúdo, que é a aspiração superior de toda forma de arte que
se respeite. Ao diminuir, gradativamente, a extensão de seus versos e, também, ao variar
o número deles em cada estrofe, de modo a espalhá-las pela página, o poeta escreveu um
poema, mas, também, desenhou um pião. Ou seja, demonstrou, c. q. d., o princípio da
incerteza com que se aproxima do mundo e da produção estética.
“Giro” é um poema em forma de pião: roda na página, diante dos olhos do leitor, para
que ele veja (mais do que leia) que, na poética de RA, não há um ponto fixo que sustente
todo o edifício, em todos os momentos, quer dizer, em todos os poemas. O mundo gira, a
Lusitana roda e o caminho desta dança é feito de tal forma que nunca se volta a uma
posição original. É, pois, a rejeição metafórica de todos os dogmas: os clássicos, os
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Leonílson
pintava
e
bordava;
Bispo do Rosário
colecionava
delírios
e
bordava.
Lampião
Tocava o terror
No sertão
E bordava.
João Cândido
punha a República
no curé
e bordava. (ALEIXO, 2017, p. 19)
Neste poema de forma aparentemente tão simples, que usa a mesma estrutura de
orações coordenadas e anáforas para organizar as quatro estrofes, RA manipula dados
históricos para negar uma interpretação nada inocente da história que ainda está ossificada
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na nossa cultura: homem que é homem não chora, homem não cozinha, homem não dança,
homem não borda.
O livro Bordando Sonhos, de Neusa Maria Roveda Stimamiglio, lançado em 2010,
conta parte dessa história. Concebido pela autora como um esforço para entender a
construção das identidades de mulheres descendentes da imigração italiana para a região
de Caxias do Sul, a obra mostra como o bordado se converteu numa das principais
atividades do cotidiano delas, desempenhando um papel importante na definição de seu
lugar na sociedade: o lugar subalterno reservado para o feminino.
Segundo o livro, as mulheres aprendiam a bordar no colégio, ainda na infância, e ele
se tornava um hábito para a vida toda. Mesmo assim, era um ofício pouco valorizado, pois
era visto apenas com uma serventia: a formação dos enxovais das próprias meninas —
sendo o casamento e a constituição da família a principal aspiração feminina na
época. Com os olhos do século XXI, entretanto, a autora interpreta o bordado também como
uma maneira de aquelas mulheres expressarem suas crenças, sonhos, angústias, alegrias,
temores e histórias, construindo, assim, suas identidades femininas.
Do outro lado do Brasil, uma pesquisa também realizada em 2010 registrou a
persistência da visão do bordado como atividade feminina. Etienne Amorim A. da Silva e
Alexsandra Maria Alves de Lacerda, da Universidade Federal Rural de Pernambuco,
conduziram uma pesquisa de campo na cidade de Passira, centro conhecido no estado
nordestino como a terra do bordado. O objetivo específico do estudo era verificar o processo
de integração dos homens na cidade na economia do bordado, fenômeno recente, mas já
tomando aspectos de significado relevante para o sustento das famílias. Entretanto, ao
visitar o local, as autoras puderam ver como ainda entre esses homens que bordam a
atividade é identificada com as mulheres, não com eles:
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Com as bagatelas dessas quatro vidas tão díspares, mas todas vividas à margem das
definições pré-fabricadas do masculino, RA faz a miniatura gigantesca de seu “Homens”,
em cujo imaginário não há fronteiras entre o que supõe tipicamente como “coisa de macho”
e “coisa de fêmea”. De maneira eloquente, essa superação dos limites convencionais é
expressa pelo uso reiterado da conjunção aditiva “e” que, no corpo do texto, une, não
separa, as faces dos sujeitos de seu interesse, os quais, assim, se mostram ao leitor
maiores do que simplesmente as suas partes.
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Antiboi
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REFERÊNCIAS
RIBEIRO, Gustavo S. Uma obra pesada demais para a ventania. In: Pernambuco. Recife:
CEPE Editora, Nº 141, novembro de 2017. Disponível em:
http://www.suplementopernambuco.com.br/images/pdf/PE_141_web.pdf. Acesso em
13.10.2018.
SCHERER, Telma. Ricardo Aleixo, o poeta em trânsito. In: Organon. Revista do Instituto de
Letras da UFRGS. Porto Alegre: UFRGS, v. 31, n. 61, 2016. Disponível em:
https://seer.ufrgs.br/organon/article/view/65517. Acesso em 1º.12.2018.
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SILVA, Etienne Amorim A. da & LACERDA, Alexsandra Maria Alves de. O homem no
bordado: uma troca de papéis? In: Fazendo Gênero 9. Diásporas, Diversidades,
Deslocamentos. Anais. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2010.
Disponível em
http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1278350383_ARQUIVO_ARTIGOOH
OMEMNOBORDADOFinal.pdf. Acesso em 1º.12.2018.
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