Bertucci,+morais p102 115

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 14

InterteXto / ISSN: 1981-0601

DOSSIÊ TEMÁTICO: OS LIMITES DA POESIA


v. 11, n. 02 (2018)

O PASSAPORTE DIPLOEMÁTICO DE RICARDO ALEIXO

THE DIPLOEMATIC PASSPORT OF RICARDO ALEIXO

Carlos Francisco de Morais1

Resumo: O objetivo deste artigo é examinar como a multiplicidade de temas e formas na


obra poética de Ricardo Aleixo é indicativa do caráter heterodoxo da poesia brasileira
contemporânea. Para tanto, serão examinados textos em que se afirma o trânsito da voz
lírica por entre diferentes linguagens, espaços, tempos e culturas, do que resulta a imagem
de um poeta andarilho, livre de quaisquer compromissos com programas artísticos
baseados na obediência a regras e normas.
Palavras-chave: Poesia brasileira; poesia contemporânea; Ricardo Aleixo; Antiboi; Pesado
demais para a ventania.
Abstract: This paper aims to investigate how the multiplicity of themes and forms in the
poetic work of Ricardo Aleixo indicates the heterodox nature of Brazilian contemporary
poetry. Here will be studied texts in which is affirmed the transit of the lyrical voice through
different languages, spaces, times and cultures, resulting in the image of a poet as a kind of
drifter, free from the constraints of any artistic program based on the obedience to rules and
regulations.
Keywords: Brazilian poetry; contemporary poetry; Ricardo Aleixo; Antiboi; Pesado demais
para a ventania.

Em sua recente antologia, Pesado demais para a ventania, Ricardo Aleixo reúne
poemas de todos os seus livros anteriores e eles são de todas as formas, inclusive as fixas.
Há só um soneto e não há baladas ou rondós tais como foram legados pela tradição lírica
ocidental ao longo dos séculos, mas não é raro encontrar poemas metrificados, embora
predomine o verso livre, nem está ausente de todo a rima. O dístico, usado repetidas vezes,
lembra que já fez a fama, lá nos séculos XVII e XVIII, de poetas como John Dryden e
Alexander Pope.
Não, aqui não se está querendo atribuir a Ricardo Aleixo2 uma filiação neoclássica ou
saudosista, que não faria sentido diante da profusão de formas livres de que se faz sua

1
Professor Associado do Departamento de Estudos Literários (DEL) da Universidade Federal do Triângulo
Mineiro. E-mail: [email protected]
2
Doravante, identificado como RA.

102
InterteXto / ISSN: 1981-0601
DOSSIÊ TEMÁTICO: OS LIMITES DA POESIA
v. 11, n. 02 (2018)

poesia. Antes, a intenção é marcar sua liberdade em relação a qualquer teia. O fato é que
este poeta se coloca na posição do artista contemporâneo letrado em sua arte,
consequentemente, onívoro, isto é, um poeta que leu todos os poetas e, num hipotético
almoço à americana na casa das Musas, se serviria de tudo, experimentaria de tudo. A
imagem que aqui se esboça, a de um artista elegendo a variedade como princípio para
fazer seu prato no banquete, traz um aspecto essencial para a compreensão da poética de
RA: o movimento. Diferentemente da musa de Luís de Camões, o olhar do poeta belo-
horizontino nem sempre é brando ou piedoso, porém, se encontra com o dela ao se mostrar
igualmente “sem ver de quê”, pois não discrimina formas ou temas.
Nem mesmo a página impressa constrange a poesia deste autor: muito de seu lirismo
só se realiza oralmente, em voz alta. Para comprovar, que se peça a um grupo de amigos
que cada um leia a seu modo este poema, pontuando-o conforme seu senso e
sensibilidade; pode-se apostar que, sonoramente, se produzirão tantos poemas — e
sentidos — diferentes quantos forem os leitores:

eles que são brancos e os que não são eles


que são machos e os que não são eles que
são adultos e os que não são eles que são
cristãos e os que não são eles que são ricos
e os que não são eles que são sãos e os que
não são todos os que são mas não acham
que são como os outros que se entendam
que se expliquem que se cuidem que se (ALEIXO, 2018, p. 189)

Esse trânsito do signo visual para o oral é intrínseco para a força que move o fazer
poético de RA, ou seja, a prática de expandir os horizontes de sua escrita, seja em termos
formais, temáticos ou de sua performance. É o que indica Telma Scherer ao descrever
como essa poesia circula, por iniciativa e necessidade de seu autor, muito além da página:

A poesia de Aleixo acontece tanto nos seus oito livros publicados quanto em
participações sonoras em trabalhos de dança contemporânea, exposições
que circularam no meio das artes visuais, trabalhos de design sonoro e de
vídeo e também performances que circulam pelo Brasil e em festivais de
poesia da América Latina e da Europa. (SCHERER, 2016, p. 2)

Como se pode concluir a partir dessas observações, há algo de trovador medieval na


atuação poética de RA, pois, autêntico andarilho, manifesta seu lirismo de viva voz, de
corpo presente, não aceitando que o livro cumpra integralmente, solitariamente, o papel de

103
InterteXto / ISSN: 1981-0601
DOSSIÊ TEMÁTICO: OS LIMITES DA POESIA
v. 11, n. 02 (2018)

seu intermediário com o público. Para quem já viu suas apresentações ao vivo ou em
vídeos, o lirismo é indissociável de seu corpo, se realiza plenamente nele e por ele,
ensinando potencialmente ao leitor que é possível (ou preciso) aprender esta lição e
corporificar a leitura dos textos também. Esse convite tácito a que o leitor se integre a uma
leitura gestual e sonora dos textos reafirma o que foi dito acima, quer dizer, a essencialidade
do movimento na lírica de RA, que, em todos os sentidos, anseia por não ficar quieta nem
deixar ninguém quieto, pois sabe que o estado natural do corpo vivo é o movimento;
estático, um corpo está morto, ou chamando a morte.
A leitura da obra de RA pressupõe, então, uma parceria com o leitor, cuja atenção a
cada detalhe sinaliza um complexo de corpo e mente ativos, como numa dança em que
não se quer pisar nos calos do par. Por falar em dança, é justamente usando esta arte como
metáfora que Telma Scherer entende a obra dele:

Ricardo Aleixo propõe a poesia assim: como dança. Corpografia de um


corpo que se desdobra em textos. Exercício de alteridade. Sua criação é
uma prática de sair de si, um despudor de não se manter no controle. Um
outrar-se que é correr conscientemente o risco. Que risco? O de
compartilhar com o poema a instabilidade da vida. O de não propor o
controle sobre os elementos do poema. Nem pressupor os resultados. O de
experimentar. Jogar com os elementos, dar o impulso inicial no ambiente da
linguagem e depois observar o seu próprio processo, o seu próprio giro pelo
espaço. O de não julgar, não valorar as reações entre os materiais. E deixar
o próprio poema desdobrar-se. (SCHERER, 2015, p. 32)

Quem dança não pode ficar parado, é óbvio. Querendo ser dança, como um dia a dos
simbolistas quis ser música, a poesia de RA se compromete com o descompromisso:
desconhece formas e temas e espaços e dicções obrigatórias. O poema se torna, então,
exercício, experimentação de outras realidades. Isso é visível na pluralidade de lugares
nomeados em seus versos, como Nova Lima, o bairro Cabula, em Salvador, Paris, Berlim,
Rio de Janeiro, Nova Iorque, Providence, Maceió, Brasília e Belo Horizonte (e catorze de
seus bairros nomeados num só poema, “Antiode: Belorizonte”), que espelham a pluralidade
dos lugares aos quais o poeta já foi levar suas performances: Europa, França e Bahia.
De Belo Horizonte para o mundo não foi apenas o caminho de vida de RA, mas o de
sua arte, como explica Gustavo Silveira Ribeiro, que localiza o gérmen da escritura do autor
em sua situação de artista self-made man deslocado em seu próprio espaço de origem e,
por isso, condenado a ganhar o mundo:

104
InterteXto / ISSN: 1981-0601
DOSSIÊ TEMÁTICO: OS LIMITES DA POESIA
v. 11, n. 02 (2018)

O passeio pelo espaço incontrolável da rua e pela memória arcaica da


diáspora africana que sua obra faz de mistura ao estudo demorado da
poesia visual, dos jogos sonoros e imagéticos de extração concreta, da
busca expansiva por modos de criação que passem pelo corpo em
performance e pelos torneios vocais, talvez possam ser explicados por aqui,
uma vez que o artista, deslocado e algo desarraigado na periferia de BH,
sem o impulso e também sem os limites da vivência criativa que um grupo
organizado colocam, pôde entregar-se à exploração sistemática e estudada
das múltiplas tradições que lhe chegavam e a que sentia pertencer.
(RIBEIRO, 2017, p. 12)

Aos olhos do crítico, portanto, a poesia de RA não é constrangida por delimitações de


espaço ou tempo, nem mesmo de linguagem. Ponto de encontro da palavra, do som, da
imagem e do corpo em movimento, confere, assim, a seu autor, uma espécie de passaporte
diploemático ao revelar a principal característica estrutural de sua obra: a liquidificação de
todo tipo de fronteira. Como um diplomata acreditado em todas as nações, o poeta passa,
sem pedir licença, de uma forma a outra, de uma dicção a outra, de uma tradição a outra,
de um estado a outro.
É o que se vê, por exemplo, em “Loa para um dia a mais”, poema espelhado em duas
faces, em que tudo que é pode ser outra coisa, mesmo o seu contrário:

1.
sem poder
quebrar a pedra

a água esculpe
na pedra

o que há de pedra
esquecido

no seu quem
próprio

de
água

2.

105
InterteXto / ISSN: 1981-0601
DOSSIÊ TEMÁTICO: OS LIMITES DA POESIA
v. 11, n. 02 (2018)

sem poder
deter a água

a pedra enfim
reconhece

no gesto
lento

e constante
da água
seu quem
de pedra (ALEIXO, 2018, p. 99-100)

Tudo nesse poema é, mas é também, ou seja, nada é unívoco. Duas partes, ambas
compostas por estrofes de dois versos; dois elementos naturais, não por acaso os exemplos
mais fáceis e visíveis de dois dos estados da matéria, a pedra sólida e a água fluida. Mas,
até aqui, cada coisa está em seu lugar — e não é isso o que move e interessa à poesia de
RA. Por isso, nas duas folhas do espelho que o poema forma na página do livro, água e
pedra se veem um no outro, reconhecem as próprias limitações e se moldam a uma nova
realidade, em que, para serem de forma renovada, assumem um pouco do ser do outro: a
água, com a consciência das muitas pedras que lambeu em seu caminho, a pedra, com a
lentidão e a constância fluência que, na água, reconhece como sua.
A simbologia, aqui, é profusamente rica, mas seu tema recorrente é o mesmo da
mitologia ocidental à africana à oriental: a união de opostos, a convivência em um único ser
da natureza ambígua da vida. A água que passa à pedra, a pedra que flui como água: eis
aqui atualizado o tema imortal da metamorfose. Nas imagens do poema de RA, a água se
vê pedra que se vê água, ou seja, Tirésias, o profeta cego, mas dotado de clarividência,
vira novamente uma mulher, por sete anos; Olokun, que é homem no Benim, com suas
dezoito esposas que representam os cursos naturais de água, passa a ser mulher na
Nigéria e chega ao Brasil como a mãe de Iemanjá — mas, lá como cá, é sempre a divindade
dos oceanos. Aqui, naturalmente, se está vendo pedra é água em seus potenciais
metafóricos de símbolos do masculino e do feminino.

106
InterteXto / ISSN: 1981-0601
DOSSIÊ TEMÁTICO: OS LIMITES DA POESIA
v. 11, n. 02 (2018)

Por sua natural imobilidade, a pedra tem assumido em múltiplas culturas o papel de
simbolizar a constância, a sabedoria e o poder, o que levou Chevalier e Gheerbrant (p. 699)
a registrar a ubiquidade de mitos em que a pedra está associada à potência sexual
masculina:

Jean-Paul Roux, estudando as crenças dos povos altaicos3 (...) opõe a


significação simbólica da pedra à da árvore. Semelhante a si mesma, depois
que os ancestrais mais remotos a ergueram ou sobre ela gravaram suas
mensagens, ela é eterna, ela é o símbolo da vida estática, enquanto que a
árvore, submetida aos ciclos de vida e morte, mas que possui o dom inaudito
da perpétua regeneração, é o símbolo da vida dinâmica.
Essa pedra-princípio é representada por pedras erguidas que às vezes
encarnam a alma de ancestrais, especialmente na África negra e a respeito
das quis se conhece, por outro lado, a associação com o falo: coisa que
explica o contexto orgiástico que as cercou em certas regiões,
marcadamente na Bretanha. (...)
A pedra erguida, quer seja o linga hindu ou o menir bretão, é um símbolo
universal. É segundo ritos análogos que os hindus ou os bretões vêm buscar
junto a ela a cura para a sua esterilidade. Essa acepção da pedra é em
próxima daquela das grandes árvores sagradas, também elas fálicas.
(CHEVALIER & GHEERBRANT, 1992, p. 698-699, grifos originais)

O caráter simbólico da água como elemento feminino já foi cantado em prosa e verso,
como, por exemplo, em Novalis, lembrado por Jean Chevalier e Alain Gheerbrant quando
exploram as representações do elemento líquido nas culturas ao longo do tempo e do
espaço da Terra:
A valorização feminina, sensual e maternal, da água foi magnificamente
cantada pelos poetas românticos alemães. É a água do lago, noturna, leitosa
e lunar, onde a libido desperta. A água, essa filha primeira, nascida da fusão
aérea, não pode renegar sua origem voluptuosa e, na terra, ela se mostra
com uma celeste onipotência como o elemento do amor e da união... Não é
em vão que os sábios antigos procuram nela a origem de todas as coisas...
E as nossas sensações, agradáveis ou não, não são mais, afinal, que as
diversas maneiras do escoar em nós dessa água original que existe em
nosso ser. O próprio sono não passa do fluxo desse mar invisível, universal,
e o despertar é o começo do seu refluxo (Novalis, NOVD, 77). E o poeta
conclui: só os poetas deveriam ocupar-se dos líquidos. (CHEVALIER &
GHEERBRANT, 1992, p. 21, grifos originais)

O poeta de que falamos vai além do programa prescrito por Novalis, pois se ocupa
dos líquidos e dos sólidos, sem se deixar intimidar pelas possíveis barreiras que, na

33
Habitantes das montanhas Altai, cordilheira da Ásia Central que ocupa territórios da Rússia, China,
Mongólia e Cazaquistão.

107
InterteXto / ISSN: 1981-0601
DOSSIÊ TEMÁTICO: OS LIMITES DA POESIA
v. 11, n. 02 (2018)

natureza, se erguem entre eles: seu campo é o da simbologia, da cultura, no qual, assim
como um diplomata munido de seu passaporte privilegiado, desconhece as fronteiras
imaginárias que os homens comuns aceitam respeitar. Seu campo é o da poesia e, nestes
tristes tempos e trópicos contemporâneos, ou ela é livre ou não é nada.
A liberdade de movimentos da lírica de RA expõe seu princípio organizacional,
magistralmente, em um poema como “Giro”, do livro Antiboi, lançado neste ano de 2018.

Giro

Dias em que a beleza do mundo seja


o não haver um ponto de origem
para onde retornar
quando a música termina
e a gente

pura tontura

continua a girar

cai não
cai. (ALEIXO, 2017, p. 26)

A irregularidade estrófica e métrica deste poema não se deve nem ao acaso, nem à
incúria da ignorância ou da rebeldia. Ela é absolutamente necessária para que haja a total
integração entre forma e conteúdo, que é a aspiração superior de toda forma de arte que
se respeite. Ao diminuir, gradativamente, a extensão de seus versos e, também, ao variar
o número deles em cada estrofe, de modo a espalhá-las pela página, o poeta escreveu um
poema, mas, também, desenhou um pião. Ou seja, demonstrou, c. q. d., o princípio da
incerteza com que se aproxima do mundo e da produção estética.
“Giro” é um poema em forma de pião: roda na página, diante dos olhos do leitor, para
que ele veja (mais do que leia) que, na poética de RA, não há um ponto fixo que sustente
todo o edifício, em todos os momentos, quer dizer, em todos os poemas. O mundo gira, a
Lusitana roda e o caminho desta dança é feito de tal forma que nunca se volta a uma
posição original. É, pois, a rejeição metafórica de todos os dogmas: os clássicos, os

108
InterteXto / ISSN: 1981-0601
DOSSIÊ TEMÁTICO: OS LIMITES DA POESIA
v. 11, n. 02 (2018)

românticos, os modernos, mesmo os que se digam contemporâneos. De certos, apenas o


girar, portanto, a atividade, no seu caso artística, e a falha, que, lógico, nunca falha. O pião,
que só fica em pé enquanto gira, uma hora vai cair; a bailarina, depois dos 32 “fouettés” no
Lago dos cisnes, terá de pisar no chão; o poema, que só fica em pé se o leitor o lê, uma
hora chega ao último verso. Enquanto isso, os três, em RA, são puro movimento, causando
pura tontura em quem não se mexer, mesmo que seja só pelo olhar, para acompanhá-los.
Outro poema que afirma o trânsito livre como aspiração da poesia de RA é “Homens”,
também de Antiboi:
Homens

Leonílson
pintava
e
bordava;

Bispo do Rosário
colecionava
delírios
e
bordava.

Lampião
Tocava o terror
No sertão
E bordava.

João Cândido
punha a República
no curé
e bordava. (ALEIXO, 2017, p. 19)

Neste poema de forma aparentemente tão simples, que usa a mesma estrutura de
orações coordenadas e anáforas para organizar as quatro estrofes, RA manipula dados
históricos para negar uma interpretação nada inocente da história que ainda está ossificada

109
InterteXto / ISSN: 1981-0601
DOSSIÊ TEMÁTICO: OS LIMITES DA POESIA
v. 11, n. 02 (2018)

na nossa cultura: homem que é homem não chora, homem não cozinha, homem não dança,
homem não borda.
O livro Bordando Sonhos, de Neusa Maria Roveda Stimamiglio, lançado em 2010,
conta parte dessa história. Concebido pela autora como um esforço para entender a
construção das identidades de mulheres descendentes da imigração italiana para a região
de Caxias do Sul, a obra mostra como o bordado se converteu numa das principais
atividades do cotidiano delas, desempenhando um papel importante na definição de seu
lugar na sociedade: o lugar subalterno reservado para o feminino.
Segundo o livro, as mulheres aprendiam a bordar no colégio, ainda na infância, e ele
se tornava um hábito para a vida toda. Mesmo assim, era um ofício pouco valorizado, pois
era visto apenas com uma serventia: a formação dos enxovais das próprias meninas —
sendo o casamento e a constituição da família a principal aspiração feminina na
época. Com os olhos do século XXI, entretanto, a autora interpreta o bordado também como
uma maneira de aquelas mulheres expressarem suas crenças, sonhos, angústias, alegrias,
temores e histórias, construindo, assim, suas identidades femininas.
Do outro lado do Brasil, uma pesquisa também realizada em 2010 registrou a
persistência da visão do bordado como atividade feminina. Etienne Amorim A. da Silva e
Alexsandra Maria Alves de Lacerda, da Universidade Federal Rural de Pernambuco,
conduziram uma pesquisa de campo na cidade de Passira, centro conhecido no estado
nordestino como a terra do bordado. O objetivo específico do estudo era verificar o processo
de integração dos homens na cidade na economia do bordado, fenômeno recente, mas já
tomando aspectos de significado relevante para o sustento das famílias. Entretanto, ao
visitar o local, as autoras puderam ver como ainda entre esses homens que bordam a
atividade é identificada com as mulheres, não com eles:

Ao chegar à cidade de Passira visualizamos vários grupos de mulheres


sentadas em frente de suas casas com seu material nas mãos e executando
seus bordados. Momento este de trabalho, lazer e terapia grupal. Porém,
como nosso objeto de estudo são os homens no bordado, verificamos a
ausência deles nestes grupos. Verificamos que o local preferido para o
homem realizar seu trabalho artesanal é dentro do quarto, pois eles têm
vergonha e timidez de fazê-lo em público. Percebe-se que a identidade do
homem em ser bordadeiro é oculta perante a sociedade (...) (SILVA &
LACERDA, 2010, p. 6)

110
InterteXto / ISSN: 1981-0601
DOSSIÊ TEMÁTICO: OS LIMITES DA POESIA
v. 11, n. 02 (2018)

Nem o Microsoft Word nem o senhor Google reconhecem a palavra bordadeiro; o


primeiro, com sua estridente sublinha vermelha; o segundo, retornando apenas resultados
que falam das bordadeiras, no feminino. Ricardo Aleixo não quer nem saber dessa rigidez.
Em seu poema exibe, numa sequência de frases declarativas, sua certeza de que não há
um intrínseco pertencimento do bordado como atividade a apenas a metade mais bela da
humanidade. Munido de constatações factuais, que não admitem réplica ou tergiversação,
simplesmente compõe uma lista de homens, sujeitos históricos brasileiros, que bordavam
sim, senhor: dois artistas, (um louco e outro “muito louco”), um marinheiro revolucionário e
um cangaceiro.
Nomeados isoladamente no primeiro verso de cada estrofe, cada um desses homens
tem a sua identidade e individualidade resguardadas diante do leitor que os reconhece das
aulas de história ou de história da arte, mas, ao olhar do sujeito poético, se igualam pela
prática do bordado.
Leonílson, de nome de cidadão cearense José Leonilson Bezerra Dias, viveu apenas
trinta e seis anos (entre 1957 e 1993), mas os preencheu abundantemente com pinturas,
desenhos e aquarelas, expostos no Brasil, nos EUA e toda a Europa, nas bienais de São
Paulo e de Paris. Cerca de quatro anos antes de sua morte, a partir da exposição Anotações
de Viagem, na Galeria Luisa Strina, em São Paulo, começou a incorporar, de modo
recorrente, o bordado em sua obra. Dada a sua manifesta admiração por Arthur Bispo do
Rosário, a crítica especializada tem visto uma correspondência de seus bordados com os
do artista sergipano.
Bispo do Rosário, ou Arthur Bispo do Rosário Paes (1911-1989), marinheiro,
boxeador, empregado doméstico e biscateiro, depois de experimentar alucinações, foi
internado, em 1938, como “esquizofrênico-paranoico” na Colônia Juliano Moreira, onde
viveria por 50 anos e começou a criar, estandartes, roupas, miniaturas e bordados,
manipulando materiais e objetos descartados como sucata ou lixo. Descoberto pela crítica
na década de 1980, se converteu em nome de referência da arte de vanguarda brasileira.
Em 1995, sua obra representou o Brasil na Bienal de Veneza e obteve reconhecimento
internacional. Agora em 2018, Bispo do Rosário foi homenageado no desfile da escola de
samba Acadêmicos do Cubango, de Niterói, do segundo grupo do estado do Rio de Janeiro,
com o enredo “O rei que bordou o mundo”. Sua obra-prima é o Manto da Apresentação,
com o qual pretendia se vestir no Dia do Juízo Final e que é, obviamente fonte de inspiração
para o “Poemanto”, por sua vez, a obra-prima de RA.

111
InterteXto / ISSN: 1981-0601
DOSSIÊ TEMÁTICO: OS LIMITES DA POESIA
v. 11, n. 02 (2018)

Virgulino Ferreira da Silva (1898-1938), vulgo Lampião, foi, durante décadas, a


perfeita manifestação do cabra-macho nos sertões brasileiros. Cangaceiro, assaltante,
assassino, ladrão de gado, foi chefe de Corisco e marido de Maria Bonita. Ao mesmo tempo,
sabia costurar, cerzir e bordar. Sua destreza nas delicadas artes da agulha foi talento de
sua vida inteira, a ponto de ser característica definidora de sua personalidade como
personagem da peça Auto de Angicos, de Marcos Barbosa, que narra os últimos momentos
de sua vida e da de Maria Bonita. Do mesmo modo, os livros Estrelas de Couro – A Estética
do Cangaço, de Frederico Pernambucano de Mello, e Os Cangaceiros: Ensaio de
Interpretação Histórica, de Luiz Bernardo Pericás, abordam a importância de um vestuário
de estilo próprio, criado por ele mesmo, marcado pelo uso abundante de flores, estrelas e
símbolos místicos bordados, como meio de projetar a identidade específica dos bandos de
cangaceiros chefiados por Lampião, o matador que era estilista ou vice-versa.
João Cândido Felisberto (1880-1969), o “Almirante Negro” cantado na composição de
João Bosco e Aldir Blanc, foi o líder da Revolta da Chibata, motim naval que, em 1910,
conseguiu abolir os castigos físicos impostos como meio de punição por oficiais brancos a
marinheiros negros. Sobre seus bordados, José Murilo de Carvalho conta a história do
sargento Antônio Guerra, carcereiro de João Cândido em 1910 por causa de outra revolta,
e pessoa a quem o marinheiro prometeu presentear com peças de sua lavra:

O que mais chamou a atenção do jovem sargento interiorano, no entanto,


foi o fato de o temido João Cândido, que com seus marujos assustara a
cidade e forçara o governo a buscar ajuda de tropas mineiras, passar o
tempo todo bordando. O sargento jamais vira homem bordando e o primeiro
fora João Cândido. Ficou particularmente interessado em um grande
bordado do Minas Gerais e propôs compra-lo. João Cândido respondeu que
daria o bordado de presente, que, na verdade, o estava fazendo para ele.
(CARVALHO, 1995, p. 71)

Com as bagatelas dessas quatro vidas tão díspares, mas todas vividas à margem das
definições pré-fabricadas do masculino, RA faz a miniatura gigantesca de seu “Homens”,
em cujo imaginário não há fronteiras entre o que supõe tipicamente como “coisa de macho”
e “coisa de fêmea”. De maneira eloquente, essa superação dos limites convencionais é
expressa pelo uso reiterado da conjunção aditiva “e” que, no corpo do texto, une, não
separa, as faces dos sujeitos de seu interesse, os quais, assim, se mostram ao leitor
maiores do que simplesmente as suas partes.

112
InterteXto / ISSN: 1981-0601
DOSSIÊ TEMÁTICO: OS LIMITES DA POESIA
v. 11, n. 02 (2018)

Neste mundo e tempo em que governos e desgovernos erguem muros e rejeitam os


refugiados por eles mesmos criados, como se as fronteiras entre as nações fossem
realidades inexpugnáveis e não frutos do imaginário, como as concebe Benedict Anderson,
a prática poética de RA afirma sua contemporaneidade ao se opor frontalmente a esses
ventos de retrocesso e ilusão interessada apenas nos cifrões. O circular de seus versos de
um tema a outro, de uma forma a outra, de uma arte a outra o inscreve num percurso em
que sua voz lírica se descola de tudo o que é sólido demais; em outras palavras, o seu
transitar constante é a sua própria contemporaneidade, no sentido que lhe dá Nietzsche,
nas palavras de Giorgio Agamben:

Nietzsche situa a sua exigência de “atualidade”, a sua “contemporaneidade”


em relação ao presente, numa desconexão e numa dissociação. Pertence
verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele
que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas
pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso,
exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz,
mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo.
(...)
A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio
tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais
precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de
uma dissociação e um anacronismo. (AGAMBEN, 2009 p. 58-59, grifos
originais)

A vida como um exercício poético de centrifugação, imprevisibilidade e desregramento


é, por fim, sintetizada magistralmente por RA em “Antiboi”, o tão curto quanto,
inversamente, potente poema que dá nome ao livro mais recente:

Antiboi

a vida como, p. ex, um anti-


boi de Parintins: (porque)
nada é caprichoso,
nada é

garantido. (ALEIXO, 2017, p. 57)

113
InterteXto / ISSN: 1981-0601
DOSSIÊ TEMÁTICO: OS LIMITES DA POESIA
v. 11, n. 02 (2018)

Ao jogar com as letras maiúsculas e minúsculas, preservando como exemplo das


primeiras apenas o nome do município amazonense, no qual que se realiza anualmente o
Festival Folclórico cujo maior destaque é a competição entre as agremiações carnavalescas
conhecidas como Boi Caprichoso e Boi Garantido, RA desloca o significado dos nomes do
âmbito particular para o geral, de modo a extrair desse malabarismo uma lição universal,
aquela que passeia por toda a sua arte: nada é fixo, enquanto está vivo, tudo gira. Nem o
capricho dos poetas que se esmeram em seguir à risca as regras de seu clubinho, pondo
as maiúsculas onde mandam as normas, escrevendo, por obediência ao dever de clareza,
as palavras inteiras em seus versos, por exemplo. Nem as certezas internalizadas pelo
hábito – ou pela política – que ensinam que há lugares e verdades e pessoas e destinos
garantidos. A vida, em Ricardo Aleixo, é pião que roda e ninguém sabe onde vai cair. Por
isso, o último verso se desgarra dos demais, porque não é obrigado, de verdade, a ser
como eles. Como seu autor pelo mundo e pelas artes, é andarilho livre pela página.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução de Vinícius


Nicastro Honesko. Chapecó (S. C.): Argos, 2009.

ALEIXO, Ricardo. Antiboi. Belo Horizonte: Crisálida/Lira, 2017.

CARVALHO, J. M. de. Os bordados de João Candido. In: História, Ciências, Saúde –


Manguinhos, II (2), p. 68-84, jul-out. de 1995. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v2n2/a05v2n2.pdf. Acesso em 02.12.2018.

CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 6ª ed. Rio de


Janeiro: José Olympio, 1992.

RIBEIRO, Gustavo S. Uma obra pesada demais para a ventania. In: Pernambuco. Recife:
CEPE Editora, Nº 141, novembro de 2017. Disponível em:
http://www.suplementopernambuco.com.br/images/pdf/PE_141_web.pdf. Acesso em
13.10.2018.

SCHERER, Telma. Ricardo Aleixo, o poeta em trânsito. In: Organon. Revista do Instituto de
Letras da UFRGS. Porto Alegre: UFRGS, v. 31, n. 61, 2016. Disponível em:
https://seer.ufrgs.br/organon/article/view/65517. Acesso em 1º.12.2018.

114
InterteXto / ISSN: 1981-0601
DOSSIÊ TEMÁTICO: OS LIMITES DA POESIA
v. 11, n. 02 (2018)

SILVA, Etienne Amorim A. da & LACERDA, Alexsandra Maria Alves de. O homem no
bordado: uma troca de papéis? In: Fazendo Gênero 9. Diásporas, Diversidades,
Deslocamentos. Anais. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2010.
Disponível em
http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1278350383_ARQUIVO_ARTIGOOH
OMEMNOBORDADOFinal.pdf. Acesso em 1º.12.2018.

Recebido em: 02 Dezembro de 2018


Aceito em: 29 Dezembro de 2018

115

Você também pode gostar