Texto Ana Fernandes - Reforma Urbana

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REFORMA URBANA NO

BRASIL: inquietações e
explorações acerca de sua
construção enquanto campo
e enquanto política

Ana Fernandes
REFORMA URBANA NO BRASIL: Inquietações e explorações acerca de sua construção enquanto campo e enquanto política • 39

Introdução

Buscando compreender a conjuntura polarizada por reformas que caracteriza a


virada do século XIX para o XX na França, a obra seminal dirigida por Topalov
(1999), reunindo vários autores, traz à tona uma perspectiva analítica complexa
da reforma social na França, problematizando configurações e ações de uma rede
de entidades, associações, instituições e congressos1. Fazendo confluir diferentes
perspectivas sociais e políticas, essa rede constitui, para o autor, os chamados
“laboratórios do novo século”, seja em termos políticos e institucionais, seja em
termos profissionais ou científicos. Conforma-se então um campo reformador2,
caracterizado, a partir de sua morfologia, por sua autonomia e propriedades
intrínsecas e, nessa condição, com duração precisa, entre 1880 e 1914. Mesmo
se o autor reconhece que reformadores continuarão a existir, sua existência, no
entanto, será de outra natureza, heterônoma e imbricada com a burocracia pública.

Inspirador como princípio analítico, o campo reformador é aqui entendido como


possível de tensionar e fertilizar a compreensão de outras conjunturas, explorando
inclusive homologias assincrônicas do processo3. Ou seja, cinquenta anos depois,
como entender – embora sem pretensão de exaurir a questão no âmbito do pre-
sente artigo, ainda de caráter exploratório – a conjugação de sujeitos e ações em
torno da reforma urbana no Brasil reformista nos anos 1960?

Para circunscrever essa problemática, utilizamo-nos ainda da construção braude-


liana dos tempos históricos, mais especificamente o tempo conjuntural e o tempo
breve. Este, familiar à história política tradicional, referente ao indivíduo e ao
acontecimento, “habituou-nos, há muito, a seu relato precipitado, dramático, de
fôlego curto” (BRAUDEL, 1965, p. 263). Mas, sobretudo com a história econômi-
ca, “uma nova forma de relato histórico aparece, chamemo-lo o ‘recitativo’ da
conjuntura, do ciclo, até mesmo do ‘interciclo’, que propõe à nossa escolha uma
dezena de anos, um quarto de século e, no extremo limite, o meio século do ciclo
clássico de Kondratieff” (BRAUDEL, 1965, p. 266).
1
São assim estudados o Museu Social, a Sociedade de Economia Social, a Revista de Economia Política,
a rede Albert Thomas, a Sociedade Geral das Prisões, os Congressos de Assistência, a Sociedade dos
“Visiteurs”, a Sociedade Francesa de Habitação a Preços Módicos, a Associação Geral dos Higienistas
e Técnicos Municipais, as redes de Previdência Social e de Proteção do Trabalho, assim como a rede
da Secretaria do Trabalho.
2
Segundo o autor, ele retoma Bourdieu de forma livre, definindo o campo reformador como “um
sistema autônomo de posições, atores e instituições, organizado por embates e relações internas espe-
cíficas” (TOPALOV, 1999, p. 461-462, tradução livre).
3
“... a noção de reforma remete a categorias historiográficas britânicas e norte-americanas. Uma
elaboração local [francesa] do modelo pode contribuir para um modelo comparativo mais vasto,
trazendo à luz traços do campo do qual se poderiam procurar os homólogos em contextos políticos,
administrativos e culturais contemporâneos muito diferentes”. (TOPALOV, 1999, p. 463, grifo nosso,
tradução livre)
40 • Urbanismo e politica no Brasil dos anos 60

Isso significa dizer que o caminho a ser aqui percorrido combina recitativo da
conjuntura e relato dramático, motivo pelo qual três serão os itens em que se es-
trutura o presente texto: a elaboração e difusão da ideia de reformas como política
e seus embates com a ideia de revolução; a conjuntura buliçosa dos anos 1950 e
1960 no Brasil; e a aliança formada entre diversos campos políticos, profissionais
e de conhecimento, insinuando o que poderíamos chamar de construção de um
campo da reforma urbana no contexto brasileiro.

Embates revolução/reforma e campos sociais e políticos em movimento

A construção das reformas como pauta política reconhecida e atuada por


diversos setores e segmentos sociais e a elaboração de alternativas efetivas para
sua implementação, especificando conteúdos, em contextos políticos que possam
favorecê-las em maior ou menor intensidade, já parecem indicar, per se, a comple-
xidade das dimensões temporais envolvidas, sobretudo quando temos em pers-
pectiva a existência de formações econômico-sociais interconectadas, mas radi-
calmente distintas em sua história, seus sujeitos e suas racionalidades e ideários.

Um grande embate entre as ideias de reforma e de revolução marca o cenário de


países da Europa Ocidental, sobretudo na virada do século XIX para o XX, a par-
tir da crescente e enfática construção, problematização e difusão de horizontes de
transformação social e política e da organização dos trabalhadores em partidos
e associações internacionais4. Na mesma medida, as reformas são vistas como
elementos centrais da afirmação burguesa em curso, que também já operava de
forma intensamente internacionalizada, tendo como contraponto novas relações
de força e a ameaça da revolução social.

Já em 1875, em sua Crítica ao Programa de Gotha, Marx analisa severamente a


proposta de programa do Partido Operário Alemão, encabeçada por Lassalle, no
qual aponta diretrizes limitadas para a reforma do Estado. Segundo o autor, elas
estariam inseridas numa panaceia universal de compreensão de ajuda aos traba-
lhadores. Por um lado, criticava a acanhada pauta de reivindicações do Partido,
relativas ao modo como se concebia educação popular, limitação do trabalho de
mulheres e crianças, jornada de trabalho, supervisão estatal da indústria fabril,
oficinal e doméstica, regulamentação do trabalho em reclusão, lei de responsabili-
dade civil, inclusive reconhecendo que muitas das propostas já eram parte da rea-
lidade em outros países, como Suíça, EUA, Alemanha. Por outro lado, denunciava
o fato de elas virem descoladas de uma das tarefas democráticas da classe operária:
4
Desde a Associação Internacional de Trabalhadores, ou Primeira Internacional (1864-1876).
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a de reivindicar um estado plenamente democrático, “última forma de estado da


sociedade burguesa” (MARX, 1890-1891/1982)5, em direção à revolução proletária.

Mas a possibilidade de uma transição mais pacífica para o socialismo era tam-
bém explorada, com a construção política de alternativas, sobretudo pelos so-
cialdemocratas. Uma série de artigos sobre problemas do socialismo, publicados
entre 1896 e 1898 por Eduard Bernstein, bem como seu livro Os pré-requisitos para
o socialismo e as tarefas da social democracia, de 1899, ao buscarem formular teorica-
mente essa alternativa, reacendem o debate em torno da questão. Tendo anterior-
mente estado muito próximo do marxismo, tratava-se agora para ele de explorar
e implementar as instituições democráticas – emergindo em vários países, em-
bora timidamente – que limitavam os privilégios burgueses, graças à vitalidade
dos movimentos trabalhistas. (BERNSTEIN, 1899/1993). Além disso, concordava
com a teoria da expropriação progressiva de Conrad Schmidt, segundo a qual
as transformações legais restringiriam cada vez mais os direitos dos capitalistas,
tornando-os meros administradores (LUXEMBURGO, 1900/1986). Opondo-se
portanto à ideia de se estar no limiar de um colapso iminente da sociedade bur-
guesa, Bernstein defendia que o processo de tomada do poder pelos trabalha-
dores poderia então ser pensado por meio de reformas sucessivas e ampliadas,
ancoradas nos sindicatos e na democratização política do Estado, evitando-se
as catástrofes políticas6 – ou as revoluções – consideradas no Manifesto de 1848
(BERNSTEIN, 1899/1993).

Essa formulação de estratégias para superação gradual do capitalismo será


entendida pelos adeptos do marxismo como revisionismo, oportunismo, reformis-
mo ou possibilismo. Esses termos vão permear as discussões e disputas políticas
em torno das teorias de emancipação social e dos métodos para alcançá-la, em
grande medida inseridas nas atividades desenvolvidas pela Segunda Internacio-
nal, particularmente em seu quinto congresso, em 1900, em Paris7.
5
O texto original foi escrito em abril-maio de 1875 e publicado (com omissões) na revista Die Neue
Zeit, Bd. 1, n. 18, 1890-1891. O texto citado foi publicado segundo o texto do manuscrito, confrontado
com o da revista e traduzido do alemão.
6
“Quanto mais as instituições políticas das nações modernas forem democratizadas, mais a necessi-
dade e a oportunidade de grandes catástrofes políticas serão reduzidas. Qualquer um que defenda
a teoria da catástrofe deve aproveitar todas as oportunidades para resistir e restringir o desenvol-
vimento que delineei, apoiantes desta teoria já o fizeram. Mas o proletariado deve tomar o poder
apenas por meio de uma catástrofe política? E isso significa a apropriação e o uso do poder do Estado
exclusivamente pelo proletariado contra todo o mundo não proletário?” (BERNSTEIN, 1993, p. 3,
tradução livre). Na publicação, em 1909, do livro Evolutionary Socialism: a Criticism and Affirmation,
o autor reforça e desenvolve essa perspectiva.
7
A Segunda Internacional (1889-1916) ou Internacional Socialista buscou reorganizar e orientar a ação
internacional dos trabalhadores, tendo reunido, em seu quinto Congresso, em 1900, 922 delegados
de 22 países, essencialmente europeus (nos quais se destacam, com as cinco maiores participações, a
França, com 600 delegados, a Grã-Bretanha, com 95, a Alemanha, com 57, a Bélgica com 37 e a Rússia
com 24). Fora do continente europeu, compareceram apenas os Estados Unidos, com seis delegados
e a Argentina, com um (INTERNATIONAL SOCIALIST CONGRESS, 2018).
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Rosa Luxemburgo, estabelecendo um diálogo direto com Bernstein, inicia seu


livro Reforma ou Revolução (1900/1986) colocando as seguintes questões:

À primeira vista, o título deste livro pode parecer surpreendente.


Reforma social ou revolução? Pode, portanto, a socialdemocracia
opor-se às reformas sociais? Ou pode impor a revolução social, a
subversão da ordem estabelecida, que é o seu objetivo social último?
Evidentemente que não. Para a socialdemocracia, lutar dia a dia, no
interior do próprio sistema existente, pelas reformas, pela melhoria
da situação dos trabalhadores, pelas instituições democráticas, é a
única maneira de engajar a luta da classe proletária e de se orientar
para o seu objetivo final, quer dizer: trabalhar para conquistar o poder
político e abolir o sistema salarial. Entre a reforma social e a revolu-
ção, a socialdemocracia vê um elo indissolúvel: a luta pela reforma
social é o meio, a revolução social o fim. (LUXEMBURGO, 1900/1986)

Ao longo do texto, ela se contrapõe obstinadamente à compreensão da superação


progressiva do capitalismo em direção ao socialismo, como o fazem Bernstein e
Schmidt. Critica ainda a confusão que ambos fazem entre legislação social, con-
trole social e socialismo, uma vez entende que controle social não tem relação
com participação no direito de propriedade.

Ironicamente, considera que “a melhor das leis de proteção operária tem mais ou
menos tanto socialismo como as disposições municipais de limpeza das ruas e o
acendimento dos bicos de gás – que também revelam o ‘controle social’” (LUXEM-
BURGO, 1900/1986). Ou ainda, compara Bernstein a Fourier – este, para ela, teria
a intenção de transformar, pelos falanstérios, a água do mundo em limonada: “a
ideia de Bernstein de transformar, despejando progressivamente no mundo garra-
fas da limonada reformista, o mar da amargura capitalista em água doce socialista,
é talvez menos original mas não menos fantástica” (LUXEMBURGO, 1900/1986).

Em sentido contrário da argumentação por eles defendida, Luxemburgo reco-


nhece a acentuação brutal da exploração capitalista do trabalho e o controle do
Estado que se faz cada vez mais em função dos interesses de classe. Ou seja, “a
organização política e as relações de propriedade” ou “a organização jurídica do
capitalismo, se tornam cada vez mais capitalistas, e não cada vez mais socialistas”
(LUXEMBURGO, 1900/1986).

Dessa forma, permanece e deve permanecer a luta pela tomada do poder, uma
vez que “as reformas sociais são e continuarão a ser, em regime capitalista,
nozes ocas”, produzindo desilusão (LUXEMBURGO, 1900/1986). Embora se
entenda que esse revisionismo se diferencia dos economistas burgueses uma vez
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que reconhece as contradições próprias do capitalismo, a questão está em que ele


não buscaria suprimi-las, buscando que fossem apenas atenuadas, pela melhoria
das condições de vida do proletariado, por um controle social crescente e pelo
progresso da democracia. O revisionismo, portanto, transformaria o movimento
operário “numa simples associação corporativa reformista, conduzindo-o auto-
maticamente a abandonar a perspectiva de classe” (LUXEMBURGO, 1900/1986).

Para a autora, é equivocado compreender que o quadro legal das reformas tenha
força motriz própria, sem relação com a revolução: elas se interalimentam.

A reforma legal e a revolução não são métodos diferentes do progres-


so histórico que se possam escolher à vontade como se se escolhes-
sem salsichas ou carnes frias para almoçar, mas fatores diferentes da
evolução da sociedade classista, que se condicionam e completam
reciprocamente (LUXEMBURGO, 1900/1986).

No mesmo sentido, Lenin, em texto publicado em 1913, reconhece que a luta por
reformas é parte da ação dos marxistas8, buscando melhorias para os trabalha-
dores no quadro da sociedade burguesa. Mas, por entender que o reformismo
significa optar por uma política social burguesa, “ao mesmo tempo, os marxistas
travam a luta mais enérgica contra os reformistas, que direta ou indiretamente
limitam as aspirações e a atividade da classe operária às reformas” (LENIN,
1913/1986).

Mas, também no campo da afirmação burguesa, iniciativas reformistas foram


tomadas em sentido contrário à possibilidade de confronto, colocando como
perspectiva a reconciliação entre capital e trabalho. Ideia desenvolvida no belo
trabalho de Elwitt (1980) sobre o Museu Social9, no qual o autor aponta e analisa
diversos de seus aspectos no que tange à busca de reformas e mecanismos de
gestão social que possibilitassem associação e cooperação entre capital e traba-
lho. Reforma e gestão social dos conflitos consistiam em faces de um mesmo
processo. Assim, produzir paz social e combater o socialismo eram resultado

8
Diferentemente dos anarquistas, como ele faz questão de sublinhar. (LENIN, 1986 [1913]) A Segun-
da Internacional tendeu a excluí-los, levantando um debate sobre socialismo libertário e socialismo
autoritário. (SECOND INTERNATIONAL, 2018)
9
O Museu Social, criado em 1894, em Paris, derivou da seção de economia social da Exposição Uni-
versal de 1889 e estava dividido em sete seções: saúde pública urbana e rural; agricultura; associações
(sindicatos e cooperativas); mutualismo; instituições paternais; lei; pesquisas e inquéritos, nacionais
e estrangeiros (ELWITT, 1980). Herdeiro intelectual de Le Play, árduo defensor da paz social, Emile
Cheysson, que foi um dos protagonistas do Museu, considerava que se “deveria estar de acordo com
o espírito democrático que domina nosso país, exibindo o que chamamos de ‘maquinaria social’ da
oficina, ou seja, medidas tomadas para melhorar as condições dos trabalhadores e para assegurar sua
cooperação com o patrão” (CHEYSSON, 1889 apud ELWITT, 1980, p. 5, tradução livre).
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da compreensão de que “o espectro do socialismo e sindicalismo, de greves in-


controláveis, produziu um esforço determinado para promover alternativas ao
coletivismo e à intervenção do Estado”. Por exemplo, na questão da habitação:
“queremos combater ambos, miséria e socialismo, queremos erigir fortalezas de
ordem, moralidade, moderação política e social? Então, vamos construir vilas
operárias!” (SIEGFRIED, [s/d] apud ELWITT, 1980, p. 439-440, tradução livre).

Assim, tanto o conceito de economia social, que abordava a questão do trabalho a


partir dos interesses proprietários (ELWITT, 1980), quanto a busca de separação
entre “reformas sensíveis e melhorias realizáveis” e “utopias vãs e ilusões perigo-
sas” (LA RÉFORME, 1894, apud ELWITT, 1980, p. 445) confluíam na ênfase dada
à associação, mutualismo, cooperação e solidariedade. A propósito, esta última se
tornou, no final do século XIX, um “slogan para os reformadores antissocialistas
e defensores da ordem” (ELWITT, 1980, p. 442). Dessa forma, no Museu foram
discutidos e praticados princípios que pudessem traduzir essa orientação, dispu-
tando o espaço político e traduzindo-o em alternativas de associação entre capital
e trabalho, numa espécie de capitalismo esclarecido. Iniciativas e ações relativas a
patrocínio e filantropia, educação e habitação, círculos e conferências populares,
cooperativas, bancos populares e crédito popular floresciam como elementos im-
portante da disputa estabelecida particularmente com as opções oferecidas pela
Segunda Internacional e partidos socialistas (ELWITT, 1980).

Esse conjunto de proposições, disputas e dilemas sobre possíveis horizontes so-


ciais e políticos continuará a pautar princípios e ações durante o século XX10.
Diversas serão as repercussões, debates e realizações que daí derivam, interro-
gando diretamente a questão urbana e o urbanismo.

Reformismo, cidade e urbanismo

A questão das reformas integrou de forma crescente as transformações societais


presentes no século XIX, tendo a complexa conjuntura de 1848 marcado uma
virada em termos de compreensão sobre seu alcance possível ou sobre os limites ne-
cessários a serem colocados à cidade meramente liberal (BENÉVOLO, 1975/1983).
A ação do Estado, ancorada em compromissos estabelecidos com e entre proprie-
tários e empresários e sempre tensionada pelos movimentos dos trabalhadores e
pobres urbanos, passa a incorporar, diretamente ou via ações legislativas, reformas
10
Sem dúvida, a Revolução Russa de 1917 e as diversas iniciativas que a ela se seguem, inclusive
no que se refere às políticas dedicadas às cidades, alteram substantivamente o quadro de referência
conceitual e político da transformação social. Infelizmente, o recorte do presente artigo é incapaz de
dar conta dessa importante discussão, apenas retomando-a em aspectos específicos, como no caso da
Revolução Cubana.
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que abarcam diferentes dimensões da vida em sociedade e pautam tanto socialistas


de diversos feitios quanto liberais. Reformas políticas, trabalhistas, civis, educacio-
nais, legais, tributárias, sanitárias se constituíram em bandeiras de movimentos po-
líticos e sociais diversos. Particularmente na Inglaterra, mas também em diversos
outros países, como França, Alemanha, Estados Unidos, uma série de mudanças
– ou reformas – é implementada, combinando novas racionalidades de acumula-
ção do capital, ampliação da participação política em alguns processos decisórios
e embates ferrenhos por alargamento de direitos por parte dos trabalhadores e
oprimidos de forma geral. No Brasil, em contexto ainda escravista, diversas pers-
pectivas de transformação social são também apontadas, inclusive a abolicionista11.

Portanto, para além dos debates entre reforma (de diferentes perfis) e revolução e
das estratégias para transformação social em direção ao socialismo ou ao capita-
lismo esclarecido, mas compondo a mesma conjuntura de redefinição de lógicas
sociais e políticas e de relações de forças e de direitos, as reformas entranharam
diversas iniciativas de governos distintos, em vários níveis, intensificadas na
virada para o século XX.

Assim, a cidade como objeto de reforma integra a pauta de ação política, legislativa
e administrativa, tendo por base uma ação forte do Estado, em vários níveis, mais
ou menos progressista. Importa ressaltar três elementos de base para essa ação.

Primeiro, várias das pautas que incidem diretamente sobre a questão urbana,
como a reforma social e a reforma fundiária, entre outras, estão sendo interna-
cionalmente discutidas – congregando majoritariamente os países europeus, é
bem verdade –, criando inspirações, sintonias ou disputas nos vários congressos
da Segunda Internacional que se sucedem na virada do século XIX para o XX12.
Trata-se de um lugar de internacionalização de ideias.

Emerge, portanto, em segundo lugar, a ênfase dada à questão dos limites a serem
impostos à ação da iniciativa privada, visando garantir, de forma ambígua, como
programa liberal e como programa socialista, a plenitude de funcionamento das
novas racionalidades exigidas pela economia e pela política. Função da submissão
11
Analisando as ideias socialistas em circulação na cidade do Rio de Janeiro de meados do XIX, entre
os anos 1820 e 1870, nas quais menciona aquelas dos reformadores sociais, FRIDMAN (2017) aponta
algumas de suas problematizações. “Levando em conta as demandas da população, os homens de
“boa vontade” - os socialistas, incluindo os reformadores sociais e os humanistas cristãos - recomen-
davam a “higiene para o povo”, o progresso, a racionalidade aliada à estética e à “utilidade”, a aboli-
ção da escravatura, a emancipação dos pobres, a monarquia constitucional (ou mesmo a república), a
colonização, a homeopatia, os direitos das mulheres, a demarcação das terras indígenas, o descanso
aos domingos e a transformação social.” (FRIDMAN, 2017, 15)
12
Paris (1889), Bruxelas (1891), Zurich (1893), Londres (1896), Paris (1900), Amsterdã (1904), Sttutgard
(1907), Copenhague (1910), Basileia (1912). Carone (1991), apesar de fazer referência a todos eles, se
debruça especificamente sobre os dois primeiros.
46 • Urbanismo e politica no Brasil dos anos 60

dos interesses vinculados à propriedade ou posse da terra às formas de acumula-


ção dominantes – ou seja, uma nova correlação de forças entre rentistas fundiários
e capitalistas burgueses –, acompanha esse processo a incorporação crescente da
chamada reforma fundiária (GUNN, 2009, p. 27), reunindo socialistas e liberais,
na qual os princípios que regem a propriedade fundiária deveriam ser revistos e,
a depender do entendimento adotado, variava entre tributação limitada até a sua
completa socialização13.

Por fim, teorizações e experiências de socialismo municipal – amplamente comba-


tidas pelos militantes revolucionários por sua limitação à esfera local e, portanto,
anti-internacionalistas – trazem fôlego às possibilidades de reforma urbana como
perspectiva de transformação social. Sucintamente, trata-se de doutrina germina-
da no fim do século XIX, ancorada em ideias de coletivismo, socialização gradual
da propriedade14 e serviços públicos municipalizados, além de ser “uma corrente
de pensamento que tende a fazer da Comuna [municipalidade] o laboratório da
vida econômica e da vida política descentralizada” (DROIN, 2015, p. 167).

Confluindo várias dessas proposições e não por acaso, a primeira edição do clás-
sico livro de Howard, publicada em 1898, traz como título To-morrow: a peace-
ful path to urban reform (ou Amanhã: um caminho pacífico para a reforma urba-
na), explicitando a água doce socialista à qual se referia Rosa Luxemburgo. No
contexto inglês de ebulição de ideias reformistas e defendendo os princípios do
socialismo municipal, Howard, vinculado à Sociedade Fabiana15 reafirma, com
13
É interessante ver, por exemplo, em termos de tributação limitada, a iniciativa de Lloyd George, do
Partido Liberal Inglês e membro da Câmara dos Comuns – que viria posteriormente a ser primeiro-
-ministro –, propondo, em 1909, uma lei intitulada Orçamento do Povo. Aprovada em 1910, ela é por
ele justificada como um orçamento de guerra, em luta implacável contra a pobreza, a miséria e a de-
gradação humana. (GEORGE, 1909 apud PEOPLE’S BUDGET, 2018) Ele estava baseado no aumento
de tributação em vários setores, dentre os quais se destacavam alíquotas crescentes sobre o imposto
de renda e, sobretudo, um imposto de 20% sobre a valorização da terra quando de sua venda ou
transmissão. Já o estadunidense Henry George acreditava que a terra deveria ser socializada, sendo o
seu valor dividido igualmente na sociedade. A taxação fundiária seria um dos limites a serem coloca-
dos a esse tipo de propriedade. Para ele, “desta forma, o Estado pode tornar-se o senhorio universal
sem se considerar como tal e sem assumir nenhuma função nova. Na forma, a propriedade da terra
permaneceria como agora. Nenhum proprietário de terra precisa ser desapropriado, e nenhuma res-
trição precisa ser feita sobre a quantidade de terra que qualquer um poderia ter. Pois, sendo a renda
tomada pelo Estado em impostos, a terra, não importa em que nome se encontrava, ou em que parce-
las ela era ocupada, seria propriedade comum e todos os membros da comunidade participariam das
vantagens de sua propriedade.” (GEORGE, 1935)
14
Essa concepção é amplamente discutida nos quadros da Primeira Internacional ou Associação
Internacional de Trabalhadores, em seus congressos de 1868 e 1869, proposta, entre outros, pelo
filósofo, médico e militante belga Cesar de Paepe (1841-1890). Droin (2015) acredita que ele “seja o
primeiro a ter verdadeiramente teorizado o socialismo municipal, sem, no entanto, ter utilizado a
expressão” (DROIN, 2015, p. 169-170).
15
Sobre a relação entre o Movimento da Cidade Jardim, seus princípios, suas relações com a Socie-
dade Fabiana e o contexto social e político no qual se desenvolveu, ver o estimulante e referencial
trabalho de Gunn (2009).
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aquele título, sua vinculação ao ideário bernsteiniano16 e georgiano17, pugnando


por reformas do capitalismo e por caminho pacífico para a transição societária.
Na França, Benoit-Lévy – após visita a Londres em 1903, em missão do Museu
Social, para conhecer a experiência das cidades-jardins inglesas – publica La
Cité-Jardin. O livro, para Choay (1979, p. 171), expressa “o aspecto paternalista
das propostas francesas, ligadas a uma concepção estreitamente capitalista da
produção industrial” e está distante do “espírito culturalista e da visão comuni-
tária que caracterizam a cidade de Ebenezer Howard”, construindo “uma espécie
de cidade de criação, verde e higiênica, destinada a obter dos operários que ali
moram o melhor rendimento possível”.

Por sua vez, diversas experiências de gestão municipal, muitas vezes em


governos que, a depender da conjuntura e do programa, associavam liberais e
socialistas, adotavam elementos reformistas em seu programa. Assim, clamores
e demandas de controle público total ou parcial do solo urbano, produção pú-
blica de habitação, controle público de serviços urbanos essenciais (água, gás,
telefone, transporte coletivo), planos de expansão para guiar o desenvolvimento
das cidades, criação de cooperativas, crédito popular, privilégio da experiência
municipal e controle social se combinam de diversas maneiras nas bandeiras
reformistas para fazer frente aos desafios colocados pela cidade e pelas novas
forças sociais e políticas em ação.

A expansão desse programa, no período entreguerras, para o governo de di-


versas cidades, sobretudo europeias, possivelmente acelerada pelo processo da
revolução soviética, associava reformas sociais e urbanas e estava ancorada na
ideia de promoção do bem-estar social, ainda que de forma limitada e com dife-
rentes nuances políticas18 (COHEN, 2013).

Na medida em que grande parte das questões e problemas gerados pela cidade
capitalista permanece como pauta não resolvida – inclusive aprofundando-os
–, esse conjunto de ideias, reflexões, reivindicações, experiências, estruturas,
estratégias, agentes19, embates, polarizados pelos princípios do reformismo e
16
Após ser forçado a sair da Suíça, Bernstein vai para Londres, onde “sua relação com Engels rapi-
damente evolui para amizade. Ele também manteve contato com diversas organizações socialistas
inglesas, em particular a Sociedade Fabiana e a Federação Social Democrata de Henry Hyndman”
(EDUARD BERNSTEIN, 2016).
17
Henry George visitou a Inglaterra entre 1881 e 1882 e “suas atividades despertaram grande interes-
se público sobre a reforma fundiária” (GUNN, 2009).
18
Uma exposição dedicada à Cidade do Bem-Estar foi realizada em Stuttgart, em 1927 (COHEN,
2013).
19
A notar ainda que esse contexto propicia o surgimento de novas profissões, dentre as quais a de
urbanista. O próprio urbanismo – ou planejamento de cidades –, seu ensino profissional e medidas
reguladoras específicas sobre o campo emergem concomitantemente enquanto nomeação de uma
prática que se expande na virada da primeira década do século XX. Compõe esse processo a constitui-
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da revolução, continuam aflorando, nem sempre num projeto progressista. É a


essa tradição política e intelectual que diversos movimentos do pós-guerra farão
apelo, conjuntamente com as novas formulações que a ela se seguem.

A reforma urbana cubana como tripla transição

A experiência cubana da reforma urbana pode ser considerada como a mais re-
veladora e a mais próxima da realidade latino-americana e brasileira. Primei-
ro, porque ela integra o que Fidel Castro chama de passagem do período de re-
formas para o período propriamente revolucionário, reafirmando princípios e
estratégias delineados desde a virada do século XX. Segundo porque, ao nomear
essa reforma como urbana, inaugura-se uma nova modalidade de designação do
processo reformista. Por fim, ela se torna lugar de referência para os processos
em curso em diversas cidades latino-americanas. Essa tripla transição pode ser
encontrada num processo que se desenvolve ao longo de ao menos uma década.

Sem pretensão de aprofundamento, importa mencionar que a aprovação da Ley


de Reforma Urbana e da Ley de los Solares y Fincas de Recreo, em 14 de outu-
bro de 1960 em Havana, é considerada como o último elemento do programa
reformista em Cuba, marcando a passagem para um novo programa da luta da
Revolução.

Já em 1953, o Programa de Moncada, estabelecido paralelamente ao assalto


malsucedido à Fortaleza de mesmo nome e entendido como estratégia para a
expansão do programa revolucionário, elegeu seis pontos sobre os quais era
necessário intervir de imediato: “o problema da terra, o problema da indus-
trialização, o problema da habitação20, o problema do desemprego, o problema
ção de um campo de reflexão, regulação e proposição sobre a cidade e suas questões mais urgentes,
progressivamente compondo uma formação profissional específica, processo que vai se expandir
internacionalmente a partir de então.
20
Em sua defesa frente ao Tribunal, publicada como “La História me Absolvera”, Castro argumenta
com relação à moradia: “Tan grave o peor es la tragedia de la vivienda. Hay en Cuba doscientos mil
bohíos y chozas; cuatrocientas mil familias del campo y de la ciudad viven hacinadas en barracones,
cuarterías y solares sin las más elementales condiciones de higiene y salud, dos millones doscientas
mil personas de nuestra población urbana pagan alquileres que absorben entre un quinto y un tercio
de sus ingresos, y dos millones de nuestra población rural y suburbana carecen de luz eléctrica. Aquí
ocurre lo mismo si el Estado se propone rebajar los alquileres: los propietarios amenazan con para-
lizar todas las construcciones; si el Estado se abstiene, construyen mientras pueden percibir un tipo
elevado de renta, después no colocan una piedra más aunque el resto de la población viva a la intem-
perie. Otro tanto hace el monopolio eléctrico: extiende las líneas hasta el punto donde pueda percibir
una utilidad satisfactoria; a partir de allí no le importa que las personas vivan en las tinieblas por el
resto de sus días. El Estado cruza sus brazos y el pueblo sigue sin casas y sin luz. [...] Un gobierno
revolucionario resolvería el problema de la vivienda rebajando resueltamente el cincuenta por ciento
de los alquileres, eximiendo de toda contribución a las casas habitadas por sus propios dueños, tripli-
REFORMA URBANA NO BRASIL: Inquietações e explorações acerca de sua construção enquanto campo e enquanto política • 49

da educação e o problema da saúde do povo” (SUÁREZ PÉREZ; CANER RO-


MÁN, 2015). Com a vitória do movimento revolucionário em 1959, buscou-se
equacionar esse conjunto de questões por meio de leis, instituições e políticas,
processo finalizado em outubro de 1960 com a regulação do uso e produção da
habitação e da terra.

Partindo do princípio, em seu artigo 1º, de que “toda família tem direito a uma
moradia digna” e outorgando à lei, em seu dispositivo final, “força e hierarquia
constitucional”, a Ley de Reforma Urbana (CUBA, 1960) propõe, em seus 45 arti-
gos, várias medidas para buscar equacionar o problema, enfrentando a especulação
e exploração imobiliária e fundiária, transformando locatários em proprietários21,
bem como estabelecendo caminhos para a produção de habitações. Figuram, entre
eles, expropriação dos imóveis utilizados para locação e renda (com e sem indeni-
zação, a depender da situação22); proibição de locação e arrendamento23; temporali-
dades para a conquista do direito à moradia (etapas atual, futura imediata e futura
mediata, nas quais o Estado age, respectivamente, para gerir o estoque existente
e para produzir massivamente unidades, seja com os recursos gerados pela pró-
pria Lei, seja com recursos próprios, segundo o artigo 1º); proibição de venda, ces-
são, permuta da unidade domiciliar obtida sem autorização expressa do conselho
(artigo 29); emissão de bônus da reforma urbana para garantir hipotecas (artigo
35 e 36); indenização escalonada aos afetados por mínimo de ingressos através de
renda mensal vitalícia (artigo 37); utilização de imóveis desocupados (artigo 23);
solução definitiva aos chamados bairros de indigentes, a ser dada pelo Estado,
no mais breve espaço de tempo (artigo 27). Para a gestão de todo o processo são
instituídos Conselhos de Reforma Urbana, de caráter estatal, com funcionários
designados pelo presidente da república, sendo um nacional de caráter perma-
nente (Conselho Superior) e sete provinciais de caráter temporário, um para cada
uma das províncias, à exceção de Havana, que contará com dois (artigo 7).

cando los impuestos sobre las casas alquiladas, demoliendo las infernales cuarterías para levantar en
su lugar edificios modernos de muchas plantas y financiando la construcción de viviendas en toda la
isla en escala nunca vista bajo el criterio de que si lo ideal en el campo es que cada familia posea su
propia parcela, lo ideal en la ciudad es que cada familia viva en su propia casa o apartamento. Hay
piedra suficiente y brazos de sobra para hacerle a cada familia cubana una vivienda decorosa. Pero
si seguimos esperando por los milagros del becerro de oro, pasaran mil años y el problema estará
igual.” (CASTRO, 1953 apud TREFFTZ, 2011).
21
Sobre esse encaminhamento, se pergunta Trefftz (2011): “Em que medida esta categórica reco-
mendação da pequena propriedade, que se encontrava em total harmonia com a tradição do herói
nacional cubano José Martí, era um desvio consciente dos dogmas marxistas?” Fidel se manifestou
posteriormente a respeito, reforçando a concepção reformista do processo: “não é uma obra por si
marxista. É a expressão de um pensamento em desenvolvimento, de uma série de ideias que forma-
ram parte do que fazer revolucionário”. (CASTRO apud TREFFTZ, 2011).
22
A Lei estabelece uma forma de cálculo para as indenizações, considerando a idade dos imóveis e
a o preço do aluguel (arts. 15-17). Para as “cuarterías, ciudadelas, casas de vecindad y solares” não
haverá indenização aos proprietários, salvo casos particulares (arts. 25 e 26).
23
Exceções são estabelecidas para situações de casas de veraneio e balneários (art. 4).
50 • Urbanismo e politica no Brasil dos anos 60

A Ley de los Solares y Fincas de Recreo reforma a de 1959 (Compraventa de So-


lares Yermos Urbanos) e, segundo Moya (1972), também se direciona a combater
os processos especulativos do solo urbano. Assim, busca, por um lado, regular
os preços de imóveis improdutivos por meio do estabelecimento de um preço
máximo para os imóveis urbanos vagos. Por outro, institui a venda forçada de
imóveis, a partir da compreensão de que imóveis ociosos contradizem o interesse
social. “Assim, além da pressão exercida sobre o proprietário através dos impos-
tos, se outra pessoa tem necessidade do terreno vago, pode exigir legalmente que
o mesmo seja vendido ao preço oficial, isto é, mediante venda forçada”. (MOYA,
1972). O Estado pode ainda, segundo a Lei, se apropriar da diferença entre preço
de compra e preço de venda de imóveis vazios ou ociosos.

Com esses encaminhamentos, segundo Castro (1960, apud SUÁREZ PÉREZ,


CANER ROMÁN, 2015), “entramos em uma nova etapa; os métodos são dis-
tintos”. É possível então considerar a aprovação da Ley de Reforma Urbana e
da Ley de los Solares y Fincas de Recreo, em 14 de outubro de 1960 como a con-
clusão do processo reformista em Cuba. Ou seja, “a etapa democrático-popular,
agrária e anti-imperialista da Revolução, [e] a partir do 15 de outubro de 1960, a
Declaración de la Habana, aprovada pelo povo cubano, umas semanas antes, em
2 de setembro de 1960, passou a ser o programa de luta da Revolução Cubana”24
(SUÁREZ PÉREZ, CANER ROMÁN, 2015). O caráter socialista da revolução,
tomando como base a Declaración de la Habana, seria proclamada em 16 de abril
de 1961 (SUÁREZ PÉREZ, 2010).

Não só essa experiência é próxima e reveladora, como expressa de forma clara os


embates mundiais que então se travavam, em plena guerra fria, e a turbulência
social e política que a caracterizava.

Por outro lado, ao nomear a reforma como urbana, inaugura-se uma nova moda-
lidade de designação do processo reformista, onde a cidade tem papel protago-
nista, sem abandonar, no entanto, seus vínculos com o campo. Assim, a reforma
urbana passa a congregar diversas das problemáticas anteriores – nomeadas, por
exemplo, como reforma social, reforma fundiária, reforma da habitação, mesmo
que fortemente tensionada por esta última –, além de reafirmar e renovar mui-
24
Importa observar que esta Declaração, aprovada em praça pública, com milhares de pessoas pre-
sentes, foi feita como resposta à Declaración de San José de Costa Rica, aprovada durante a VII Con-
ferência de Chanceleres da OEA, realizada entre 22 e 29 de agosto de 1960 e que, alinhada com a
política estadunidense, atentava contra a soberania de Cuba, entendendo-a como um perigo para os
outros países latino-americanos. (SUÁREZ PÉREZ, 2010) Por outro lado, os direitos por ela explici-
tamente defendidos diziam respeito à autodeterminação, soberania e dignidade de sujeitos sociais
diversos (camponeses, operários, crianças, jovens, estudantes, anciãos, negros, índios, mulheres, inte-
lectuais, artistas, cientistas) e a diversas formas de sua organização (estados, países, nações e povos).
(ECURED, 2010) A questão urbana não aparece ali especificada, talvez seu caráter geral.
REFORMA URBANA NO BRASIL: Inquietações e explorações acerca de sua construção enquanto campo e enquanto política • 51

tas de suas pautas. Também Jamir Almansur Haddad (apud FRIDMAN, 2014) a
entende como uma inovação própria da revolução cubana25.

Por fim, a expansão de seu uso para outras cidades latino-americanas se fará com
intensidades e temporalidades distintas, sendo que o Brasil parece estar entre os
primeiros, se não o primeiro, a adotar o nome na sequência de Cuba26.

O Brasil dos anos 1960 e a Reforma Urbana

No Brasil, a chegada aos anos 1960 se faz acompanhar, de um lado, pela ebulição de
uma sociedade recém-redemocratizada – a ditadura de Getúlio chegara ao fim em
1945 – e, de outro, por um processo de crescimento que carregava transformações
estruturais27 nas relações políticas, sociais, econômicas, culturais, demográficas.

A conjuntura, por sua vez, entre tantos outros elementos, era marcada pelos con-
flitos da questão agrária, velha de ao menos um século, e pelo agravamento da
questão urbana, num país que se urbanizava a taxas surpreendentes28. A questão
das reformas estava colocada.

A renúncia do presidente eleito Jânio Quadros em 1961, menos de sete meses


depois de ter tomado posse, e o alto grau de desconfiança que setores conser-
vadores, inclusive militares, tinham em relação ao vice-presidente João Goulart,
em função de sua proximidade com setores da esquerda, aumentou a instabilida

25
Mesmo que sendo necessária uma pesquisa mais atenta, isso indicaria que o uso do termo reforma
urbana para descrever processos que antecedem a revolução cubana poderia ser entendido como
anacronismo.
26
Também aqui pesquisas mais aprofundadas se fazem necessárias. Hardoy e Moreno (1972) se re-
ferem a processos de reforma urbana em curso na Bolívia e na Colômbia, mas eles problematizam
muito mais o conteúdo de algumas legislações (o que é mais que pertinente) que propriamente a
denominação do processo, o que aqui nos interessa especificamente. Assim, na Bolívia (não encontra-
mos ainda algo similar para a Colômbia, a não ser bem depois), o Decreto n. 3819 de1954, inclusive
por sua anterioridade, não menciona o termo reforma urbana, embora explicite, em seu escopo, uma
das principais bandeiras do movimento reformista, qual seja, a expropriação de terras urbanas nas
capitais de departamento com tamanho superior a 10.000 m2, visando o combate à especulação com
lotes vazios e à apropriação da mais-valia urbana daí decorrente (BOLIVIA, 1954).
27
Segundo o IPEA (2010, p. 9-10), “o Plano de Metas, implementado durante o governo de Jusce-
lino Kubitschek (1956-1961), procurou realizar de um golpe a instalação de um conjunto amplo e
diversificado de setores industriais, modificando radicalmente a estrutura produtiva do país. Isso foi
realizado por meio da expansão dos investimentos das empresas estatais (energia elétrica, petróleo,
rodovias, portos etc.), das companhias de capital privado nacional (autopeças, têxteis, alimentícias
etc.) e das corporações multinacionais (setor automobilístico, farmacêutico, metal-mecânico)”.
28
Segundo Brito; Horta; Amaral (2001), cerca de 4% ao ano era a taxa de crescimento da população
urbana brasileira na década de 1940 e por volta de 5% ao ano na década de 1950.
52 • Urbanismo e politica no Brasil dos anos 60

de, instaurando-se o parlamentarismo29. A volta ao presidencialismo se faz cerca


de um ano e meio depois, em janeiro de 1963, após plebiscito e revogação da
Emenda Constitucional n. 4 pelo Congresso Nacional, retornando ao que previa
a Constituição de 1946.

Ora, a principal bandeira então defendida eram as reformas de base30. Na men-


sagem que apresenta ao Congresso em março de 1963, João Goulart define que
“uma política de desenvolvimento, na fase atual de nossa formação histórica,
deve ser uma política de reformas” (GOULART, 1963, p. 9). E segue:

O meu governo pretende enviar ao Congresso Nacional, em futuro


próximo, um conjunto de mensagens orientadas no sentido de en-
caminhar as reformas mais urgentes reclamadas pelas necessidades
do país. Sob as denominações genéricas de reformas agrária, urbana,
tributária, bancária e administrativa, submeterei todo um conjunto
de sugestões a Vossas Excelências, visando a adaptar o nosso quadro
institucional aos reclamos de um desenvolvimento econômico orien-
tado por critérios de justiça social. [...] Os problemas relacionados
com a moradia popular, em particular nos grandes centros urbanos,
serão objeto de mensagem especial ao Congresso Nacional, na qual
se dará o primeiro passo para a formulação de uma política habita-
cional capaz de disciplinar o vertiginoso e desordenado crescimento
urbano. Não desconhecemos que somente o desenvolvimento do
País, aumentando a riqueza nacional, poderá elevar o nível de vida
do povo, proporcionando-lhes adequadas condições de residência.
Mas também não ignoramos que a falta de uma legislação regula-
dora tem permitido que a indústria da construção se transforme em
presa favorita de especuladores, impedindo o acesso à residência
própria das camadas mais pobres de nossa população (GOULART,
1963, p. 10-11).

Na especificação das propostas então apresentadas, educação, ciência e cultura,


saúde, trabalho, previdência social e habitação e planejamento urbano são todos
enfeixados pela Política de Desenvolvimento Social. Após uma leitura acerca da
gravidade da situação habitacional no Brasil, agravada por uma voraz explo-
ração imobiliária, o texto revela especial preocupação com a moradia popular,
embora ressalte que a questão não se restrinja a ela. Descartando a possibilidade
29
Período no qual se revezaram três primeiros-ministros de dois partidos: Tancredo Neves e
Francisco Brochado da Rocha, do Partido Social Democrático, e Hermes Lima, do Partido Trabalhista
Brasileiro.
30
Segundo Fridman (2014), as reformas de base se referem inicialmente às reformas administrativa,
bancária, fiscal e agrária e, num segundo momento, são integradas as reformas urbana, educacional
e eleitoral.
REFORMA URBANA NO BRASIL: Inquietações e explorações acerca de sua construção enquanto campo e enquanto política • 53

de soluções a curto prazo, visto que países como os Estados Unidos e a União
Soviética ainda vivem sérios problemas nesse campo, trata-se então de planejar e
coordenar atividades para uso de recursos, elaboração de programas integrados,
disciplinamento e incremento da ação da iniciativa privada, racionalização da
produção industrial, além da elaboração de estudos e pesquisas. Nesse sentido,
o Conselho Federal de Habitação, criado em 1962, ainda no período parlamen-
tarista, deverá desempenhar um papel fundamental, tendo em vista que grande
parte das medidas indicadas já constam de suas atribuições31. Busca-se também
construir normas básicas para a elaboração de planos regionais e urbanos que
pudessem “corrigir muitas das distorções no crescimento das comunidades”
(GOULART, 1963, p. 136). Aliás, o lugar do plano é central naquela conjuntu-
ra, devendo constituir-se em sistema nacional, permanentemente atualizado,
revisto e ampliado e em estreita articulação com a dimensão política: “o plane-
jamento constitui-se, ele próprio, em uma reforma de base, não obstante ser ele
instrumental. Os objetivos políticos e sociais da Nação é que ditam o conteúdo do
planejamento” (GOULART, 1963, p. 16).

Embora grande parte das indicações e medidas carregassem ainda caráter bas-
tante genérico, estava dada a senha para se ampliar a mobilização em torno da
reforma urbana no país. O trabalho, as reflexões e as experiências acumuladas por
mais de duas décadas nas cidades brasileiras pareciam, enfim, poder ser enfeixa-
das em uma perspectiva mais democrática e transformadora de política urbana.

De fato, a construção de elementos de uma pauta reformista de regulação da cidade


no Brasil remonta aos anos 1920, a qual, no entanto, não carrega essa designação,
em geral encaminhada sob o nome de “reformas” e encabeçada por um espectro
político de feitio mais técnico e integrado ao Estado32. Várias são as iniciativas que
visam frear processos especulativos, limitação do direito de propriedade e maior
controle público sobre os processos de crescimento e extensão urbana, processo
que se transforma, se intensifica e se expande nas décadas de 1930 e 1940.

Assim, constituem momentos particularmente importantes de transformação e


de modernização do Estado e da sociedade brasileira a República Nova (governo
provisório entre 1930-1934 e governo constitucional entre 1934-1937) e a ditadura
do Estado Novo (1937-1945). Os dois períodos foram marcados por mobilização,
ascensão e disputa de novas camadas sociais ao poder, mesmo se as estrutu-
ras oligárquicas que dominavam o poder político e econômico do país tenham
sobrevivido e se rearticulado, naquilo que será caracterizado como uma revolu-
31
A Comissão Nacional de Habitação, instituída pelo Decreto n. 209, de 23 de novembro de 1961,
passa a denominar-se Conselho Federal de Habitação, conforme Decreto n 1.281 do Conselho de
Ministros, de 25 de junho de 1962.
32
Fugindo totalmente, nesse sentido, à autonomia do campo reformador anteriormente caracterizado.
54 • Urbanismo e politica no Brasil dos anos 60

ção burguesa incompleta (FERNANDES, 1981). Com essa base e com o privilégio
da técnica como instrumento de racionalização, estava colocada na ordem do dia
a construção de uma nação moderna, ancorada em novas formas de organização
social e econômica, novas formas políticas e nova ordem jurídica33.

Entre as incontáveis empirias que vão dando realidade a esse processo, pode-
mos destacar institucionalidades, ações e quadro legal que serão basilares para
a construção de uma política nacional para as cidades, ainda que de forma frag-
mentada. São assim construídas formas de atuação no período que contemplam
um programa variado e complexo que vai desde a esfera da habitação – uma das
mais agudas e prementes no período –, à criação de novas cidades, ao desenvol-
vimento de planos diretores e à estruturação de um sistema técnico de adminis-
tração, entre outros.

No campo propriamente jurídico, já a Constituição Federal de 1934 previa que


o direito de propriedade, apesar de garantido, não poderia “ser exercido con-
tra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar” (BRASIL, 1934,
capítulo II, art. 113, §17)34. Essa mesma constituição reconhece ao Estado o di-
reito de tributar a propriedade urbana em função da valorização advinda de
obras públicas, indicando a busca por uma equação mais justa entre investimen-
tos públicos e captação da valorização fundiária e imobiliária. (BRASIL, 1934,
capítulo II, art. 124). Além disso, legislação específica sobre loteamentos, extensão
aos municípios do direito de desapropriação, Lei do Inquilinato, regulamenta-
ção profissional são elementos importantes do processo, ao qual se soma, já no
âmbito institucional, a produção de dados e informações necessários para uma
ação planejadora crescente.

Não por acaso, realiza-se, em janeiro de 1941, no Rio de Janeiro, o I Congres-


so Brasileiro de Urbanismo35, organizado pelo Departamento de Urbanismo do
Centro Carioca e que agrupava, na secretaria geral do evento, além do próprio
Centro Carioca, o Clube de Engenharia, a Associação Brasileira de Imprensa,
o Touring Club, os Conselhos Federal e Regional de Engenharia e o Sindicato
Nacional dos Engenheiros. Congregando profissionais de todo o Brasil, cerca de
33
Período trabalhado com maior profundidade em Fernandes (2012).
34
Princípio abandonado na Constituição de 1937, ele volta na de 1946. Ali, ele aparece configurado
de duas formas: uma, que limita o direito de propriedade em função do interesse público ou so-
cial, garantindo aos proprietários indenização imediata: “É garantido o direito de propriedade, salvo
o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante
prévia e justa indenização em dinheiro.” (BRASIL, 1946, art. 141, § 16). A outra, de ordem geral, assu-
me o princípio de que “o uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. [...] [podendo]
promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos”. (BRASIL, 1946,
art. 147) Mas seus incisos detalham apenas a desapropriação da propriedade territorial rural, que
deverá, por sua vez, ser paga em títulos públicos.
35
O panorama que se segue do I Congresso foi por mim trabalhado inicialmente em Fernandes (2014).
REFORMA URBANA NO BRASIL: Inquietações e explorações acerca de sua construção enquanto campo e enquanto política • 55

250 pessoas participaram do Congresso, entre membros titulares (aqueles que


vinham com representação) e membros aderentes. Presentes estavam os nomes
de maior expressão no campo do urbanismo no Brasil naquele momento. As
discussões então travadas36, ricas de diversos conteúdos, apontavam claramen-
te para a necessidade de uma política nacional para as cidades, generalizando
experiências, mas também expectativas.

Assim, entre as conclusões do evento, figuram a indicação de criação de diver-


sos órgãos e instâncias que deveriam ser capazes de ampliar e aprofundar, de
forma estruturada, a utilização do urbanismo em território nacional. São assim
aprovadas, durante as sessões do Congresso, as necessidades de criação de um
Departamento Nacional de Urbanismo, de um Código Urbanístico Brasileiro e de
um Instituto Brasileiro de Urbanismo, que, em conjunto, estruturariam o quadro
operativo, legal e de formação, base para a plena consecução do urbanismo como
campo profissional e acadêmico no Brasil. É também apontada a necessidade de
planos diretores para as cidades com mais de 10 mil habitantes, bem como para
aquelas que apresentassem dinâmica demográfica intensa, tivessem sido destruí-
das por calamidades ou ainda as de caráter histórico, pitoresco ou termal. Planos
regionais, também previstos, possibilitariam a articulação entre as cidades e um
plano nacional coordenaria os planos regionais. Foi também aprovada a reco-
mendação de uma equipe mínima de técnicos para os departamentos de muni-
cipalidades nos diversos estados – com protagonismo absoluto de engenheiros,
a equipe deveria ser composta, no mínimo, por um engenheiro agrônomo, um
engenheiro industrial ou eletricista, um engenheiro arquiteto, um engenheiro
civil e um técnico especializado em urbanismo – a ser desdobrada para o conjun-
to de municípios brasileiros.

O Congresso de Urbanismo, cuja segunda edição estava prevista para acontecer


em Recife no ano seguinte, ensejava uma organização contínua e abrangente.
É nesse sentido que um Comitê Permanente de Urbanismo, com subcomitês
nas diferentes capitais dos estados brasileiros, é então proposto e aprovado no
Primeiro Congresso. (FERNANDES, 2014).

Essa rede então esboçada, articulada pelo interesse em “melhorar as condições


de vida das cidades do Brasil” (CENTRO CARIOCA apud FERNANDES, 2014,
p. 48), voltará a se reunir apenas vinte anos depois, em Recife. Nesse ínterim, no
entanto, outras iniciativas continuam a pontuar essa construção37, como, entre

36
Os temas trabalhados durante o congresso foram: história e divulgação; legislação, administração e
organização; aplicação e execução; urbanismo e habitação; saneamento e higiene; tráfego e comunica-
ções; exposição de urbanismo; turismo e coordenação (CENTRO CARIOCA, 1948).
37
Uma boa análise política e de construção institucional do período pode ser encontrada em Fridman
(2014).
56 • Urbanismo e politica no Brasil dos anos 60

outras, a fundação da Associação Brasileira de Planejamento, em 1948, a realiza-


ção do Primeiro Congresso Nacional dos Municípios Brasileiros, em 1950, ou a
promoção, pelo Instituto Brasileiro de Administração Municipal, do Seminário
sobre Metodologia do Urbanismo, em 1959 (FRIDMAN, 2014). Também é impor-
tante assinalar que o Plano de Metas (1956-1961), embora não pautasse a questão
das cidades nas trinta metas inicialmente definidas, acaba por incluir na última
hora “mais uma meta, a 31a, chamada de meta-síntese: a construção de Brasília
e a transferência da capital federal, o grande desafio de JK” (SILVA, 2017), com
repercussões expressivas no campo do urbanismo.

Habitação e Reforma Urbana: O Seminário de 1963

Sobre esse acúmulo de processos, iniciativas e projetos e numa conjuntura


política já propriamente reformista, inquieta e bastante favorável, será realizado
o Seminário de Habitação e Reforma Urbana. Embora tenha ficado conhecido
como Seminário do Quitandinha, ele é na verdade constituído por duas etapas:
uma primeira, no Rio de Janeiro (entre 23 e 26 de julho de 1963)38 e uma segunda
em São Paulo (de 29 a 31 de julho de 1963).

Seu processo de organização e convocação se amolda temática e cronologicamen-


te à adoção do programa de reformas pelo Governo Federal. É assim que, expres-
sando a polarização da questão pelos arquitetos, os departamentos do Instituto
de Arquitetos do Brasil em São Paulo e na Guanabara propõem, na reunião do
Conselho Superior do Instituto em Porto Alegre, em maio de 1963, “com o apoio
já assegurado de órgãos governamentais, reuniões para debate da questão e
estabelecimento de uma política urbana e da habitação” (ARQUITETURA, 1963,
p. 23). O IAB-SP39 propunha a realização de um seminário sobre Reforma Urbana
que “fundamentada nos termos da mensagem presidencial ao Congresso Nacio-
nal, tinha o apoio do ministro Almino Afonso e visava obter, através do seminá-
rio, uma definição clara da reforma urbana brasileira.” (ARQUITETURA, 1963,
p. 24). O IAB-GB, por sua vez, propunha a realização de um simpósio que pudes-
se estabelecer as bases “de uma política nacional de habitação e planejamento
urbano”, a qual contava com o firme apoio do “presidente do Ipase, interessado
em obter para a instituição que dirige, uma linha habitacional sadia e capaz de
dar maior rendimento social aos capitais investidos, neste setor, pelo Ipase”.
(ARQUITETURA, 1963, p. 24) Além disso, o IAB-GB propunha, por um lado, que

38
Existe ainda uma outra iniciativa implementada no Rio, a chamada “reforma urbana” de Carlos
Lacerda, trabalhada por Vera Rezende neste livro.
39
Em junho de 1962, o IAB-SP havia organizado a Primeira Jornada Nacional de Habitação
(FRIDMAN, 2014)
REFORMA URBANA NO BRASIL: Inquietações e explorações acerca de sua construção enquanto campo e enquanto política • 57

fossem mobilizados para o evento a previdência social e órgãos governamen-


tais afins e, de outro, uma gama de entidades e de profissionais ligados ao
tema, como sociólogos e engenheiros, além claro, dos próprios arquitetos. Es-
perava-se contar ainda com organismos internacionais, como a ONU e a OEA,
esta através do Centro Interamericano de Vivienda y Planeamiento Urbano
(CINVA).

A solução de compromisso para a realização do seminário integrou os dois


departamentos, seja em termos de lugar, devendo acontecer nas duas capitais,
seja em termos de título, que confluiu para Habitação e Reforma Urbana, o
s.HRu40. Previa-se, inicialmente, que a etapa do Rio teria no máximo quarenta
participantes, trabalhando em tempo integral sobre os quatro temas definidos
e previamente preparados41: a situação habitacional no Brasil; a habitação e o
aglomerado humano; reforma urbana: medidas para o estabelecimento de uma
política de planejamento urbano e de habitação; e execução dos programas tra-
çados pela política de planejamento urbano e de habitação. Já em São Paulo,
os resultados alcançados pela discussão e a política proposta serão trazidos
para um público ampliado, “procurando abranger todas as camadas sociais”
(ARQUITETURA, 1963, p. 24). De certa forma, um seria de cunho mais técnico;
outro, mais político.

A reforma urbana, no documento final do Seminário42, foi definida como “o con-


junto de medidas estatais, visando à justa utilização do solo urbano, à ordenação
e ao equipamento das aglomerações urbanas e ao fornecimento de habitação
condigna a todas as famílias” (ARQUITETURA, 1963a, p. 19). E parece ter sido
o resultado de ampla discussão, considerando que o balanço da participação
é amplamente positivo pois “arquitetos, sociólogos, engenheiros, economistas,
advogados, assistentes sociais, médicos, líderes estudantis e sindicais, vindos
de todos os pontos do país, congregaram-se durante uma semana para estu-
dar e debater os mais dramáticos aspectos da crise brasileira de habitação”
(ARQUITETURA, 1963a, p. 17).

Concordando com Topalov (1991, p. 34) em que “não existe possibilidade de


construção de vocabulário comum sem aliança social” nem, acrescentaríamos,
de seu desdobramento em política, parece importante explorar a diversidade de
agentes sociais que se investem na pauta da reforma urbana, bem como as teias
40
Embora o artigo mencione que o título do seminário seria “Habitação e Reforma Urbana: o Homem,
sua Casa, sua Cidade”, não encontramos referências a esse complemento nos demais documentos
consultados. (ARQUITETURA, 12, 1963, p. 24)
41
Os grupos de trabalho preparatórios ao seminário eram coordenados, no Rio, pelo arquiteto
Maurício Nogueira Batista e, em São Paulo, pelo arquiteto Jorge Wilheim.
42
Para uma análise dos conteúdos e princípios analisados, discutidos e propostos no seminário, ver
Ribeiro; Pontual (2009) e Bonduki; Koury (2010).
58 • Urbanismo e politica no Brasil dos anos 60

de relações por eles entretidas. Apesar de inicial, essa é uma abordagem que
possibilitaria descortinar um horizonte de construção mais abrangente para essa
conjuntura crítica43 que então se delineou no Brasil.

Mesmo reconhecendo o papel central desempenhado pelos arquitetos no processo,


parece-nos que, para a conformação e operação da bandeira da reforma urbana,
tal como ela se apresenta nos anos 1960, faz-se fundamental compreender tam-
bém a presença de outras profissões ou agentes sociais participantes desse campo
de forças e de lutas44. Assim é que, de forma breve, despretensiosa e, de certa for-
ma, aleatória45, alguns participantes do s.HRu serão focalizados, com seus perfis
e pertencimentos sócio-políticos próprios, esboçando, embora desigual e ainda
insuficientemente, concretude do processo e arco de alianças sociais em operação.
Passamos assim a considerar, em conjunto, pois que operam simultaneamente,
a temporalidade conjuntural e o tempo breve da política e do indivíduo, social-
mente situado, na construção da reforma urbana como campo político.

Das 194 pessoas listadas como participantes do seminário, a maioria absoluta era
composta por arquitetos, categoria seguida de longe pelos engenheiros ali pre-
sentes e mais dezesseis categorias profissionais46. Apenas 0,5% dos participantes
eram mulheres. A maioria absoluta dos presentes provinha de São Paulo, seguida
da Guanabara, sendo que mais doze estados se tinham feito representar47.

Um dos participantes era general: Valério Braga, engenheiro militar de formação,


morador do Rio de Janeiro, esteve muito ativo na cena carioca dos anos 1950. De
perfil bastante nacionalista, em 1952, participou ativamente da defesa do mo-
nopólio estatal da exploração do petróleo e da crítica ao projeto então propos-
43
Para Kingdon (2002), a criação de uma política pública – ou a integração de uma questão na agen-
da de governo – se ancora em três movimentos, que operam independentemente: a constituição de
um problema considerado importante pela opinião pública; a construção de alternativas e a questão
política propriamente dita. Ainda segundo ele, existem conjunturas críticas, em que esses três movi-
mentos aparecem funcionando em conjunto.
44
Não há como deixar de sublinhar a importância que tiveram nessa construção os processos de
elaboração de ideias, pesquisas e experiências desenvolvidas em Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio
Grande do Sul e São Paulo, particularmente em suas capitais.
45
A escolha foi feita associando profissão a um nome aleatório, desconhecido para a autora. Este só
era substituído em caso de não encontrar qualquer referência que pudesse localizar o participante no
cenário do período. Além disso, alguns outros participantes, pelas conexões ou lugares-chave que
possuíam no Seminário, também foram particularizados. Pelos limites de um artigo e seu caráter
exploratório, nem todas as profissões presentes foram pesquisadas.
46
Na lista publicada pela Revista Arquitetura (1963a), temos 7 advogados, 119 arquitetos, 7 assistentes
sociais, 1 atuário, 9 deputados, 7 economistas, 18 engenheiros, 6 estudantes, 1 funcionário público,
1 general, 1 industriário, 2 líderes sindicais, 5 médicos, 1 pesquisadora, 3 professores, 1 químico,
4 sociólogos e 1 urbanista.
47
Provinham de São Paulo 111 participantes, 40 da Guanabara, 12 do Distrito Federal, 9 do Rio
Grande do Sul, 4 de Pernambuco, 3 de Minas Gerais, 3 do Rio de Janeiro, 2 do Paraná, 1 da Bahia,
1do Espírito Santo, 1 do Ceará, 1 do Piauí, 1 de Goiás e 1 de Santa Catarina; 4 participantes não
tiveram seus estados de origem identificados.
REFORMA URBANA NO BRASIL: Inquietações e explorações acerca de sua construção enquanto campo e enquanto política • 59

to por Vargas, classificando-o de “inqualificável” e feito com “impatriotismo e


má fé”, “pois facilita a entrega do nosso ouro negro aos trustes estrangeiros”.
“Não podemos vender o destino de uma nação em uma sociedade por ações”.
“Ser patriota [...] é ser comunista, é estar cometendo o crime de reagir contra um
estado de coisas que maus brasileiros querem que fique perpetuado: sermos
eternamente colônia!” (IMPRENSA POPULAR, 1952). Ainda em 1952, foi favorá-
vel à rejeição do acordo militar Brasil-Estados Unidos, assinado entre Truman e
Getúlio. Profere, em 1954, conferência sobre liberdades constitucionais na sede
do Centro Recreativo dos Industriários, promovida pela Associação Brasil de
Defesa dos Direitos do Homem (IMPRENSA POPULAR, 1954). Assina, em 1955,
“um apelo contra a preparação da guerra atômica”, ao lado de expoentes como
Josué de Castro, Jorge Amado e Cacilda Becker, entre muitos outros. (IMPRENSA
POPULAR, 1955) Mais próximo da pauta propriamente urbana, Braga tomou a
palavra na assembleia realizada no Sindicato dos Motoristas Autônomos, tendo
então se manifestado contra a Operação Copacabana48, além de estar presente na
organização da passeata dos mil carros. (IMPRENSA POPULAR, 1957) Ainda
em 1957, em iniciativa que parece colocá-lo progressivamente no campo con-
servador, promoveu sessão na Associação Brasileira de Imprensa sobre a Lei do
Inquilinato, reunião bastante polêmica que os inquilinos denunciavam ter sido
preparada para os tubarões dos aluguéis. De fato, dela participou o presidente
do Sindicato de Proprietários de Imóveis e outros que defendiam a derrubada da
lei. O general, figura de proa do Partido Socialista (O SEMANÁRIO, 1958), justi-
ficou sua ação por “defender viúvas e indefesos”. (IMPRENSA POPULAR, 1957)
Em 1961, o jornal O Semanário, órgão oficial da Frente Parlamentar Nacionalista,
critica severamente o general, que teria sido expulso do referido Partido por atos
“que atentam contra os legítimos interesses nacionais” (O SEMANÁRIO, 1961).

Outro participante, Luís Tenório de Lima, era sindicalista. Pernambucano de ori-


gem, migrou para São Paulo e teve vida sindical precoce. Logo se destaca como
liderança no processo de construção da possibilidade de negociações coletivas
para os trabalhadores, iniciado com o Pacto de Unidade Intersindical, em 1954,
que buscava “dirigir as ações políticas e sindicais da classe operária no estado de
São Paulo”, dissolvida em 1958 (KORNIS, 2009). No processo de discussão dos
índices de reajuste com os patrões e do jogo pesado que se fazia em cima dos
percentuais, “uma guerra de números e índices”, “surgiu a ideia da gente criar o
nosso próprio organismo de levantamento de custo de vida” (TENÓRIO, 2018)
Surgia o Dieese, em 1959, após intenso trabalho que reunia o sindicato dos ban-
cários, dos metalúrgicos e o dos laticínios e derivados, este representado por Luis
Tenório Lima, também representante do Pacto. Sempre em busca da construção
da unidade dos trabalhadores, ele esteve presente na criação do Comando Geral
48
Tratava-se de definir novas áreas de transportes e terminais para a operação das lotações.
(IMPRENSA POPULAR, 1957)
60 • Urbanismo e politica no Brasil dos anos 60

dos Trabalhadores, decisão tomada no Quarto Congresso Sindical Nacional dos


Trabalhadores, realizado em 1962, em São Paulo.

O CGT teve um papel relevante em vários momentos do gover-


no Goulart. Um dos mais importantes deu-se durante a luta pela
antecipação do plebiscito que decidiria pelo retorno ou não ao regime
presidencialista. Em setembro de 1962, contando com o apoio de
alguns militares nacionalistas, foi decretada greve geral que só
foi suspensa após a aprovação da antecipação do plebiscito, pelo
Congresso. (KORNIS; MONTEIRO, 2017; CORRÊA, 2008)

Considerado elite do Partido Comunista, ao qual aderiu ainda bastante jovem,


se tornou posteriormente membro do Comando Municipal do Partido em São
Paulo e, em 1962, membro do seu Comitê Central, condição à qual ainda perten-
cia quando participou do Seminário de Habitação e Reforma Urbana.

Ora, a questão das reformas era uma das principais questões discutidas no âmbito
do Partido Comunista: ao menos desde 1954, ele já trazia em seu programa no
Brasil a necessidade de reformas: do sistema tributário, do sistema monetário e,
com grande centralidade, da estrutura agrária. Num processo que vinha alteran-
do substantivamente sua orientação a partir do vigésimo Congresso do Partido
Comunista da União Soviética, em 1956, o seu quinto Congresso, realizado em
setembro de 1960, passa a definir o caráter anti-imperialista e antifeudal da revo-
lução brasileira naquele momento, o que colocava as tarefas a serem desenvolvidas
dentro dos limites democrático-burgueses49. Ou seja:

Trata-se de soluções de caráter positivo e de reformas de estrutura


que impliquem na ampliação dos direitos democráticos do povo e na
aplicação de uma política interna e externa adequada ao desenvolvi-
mento independente e progressista do País.
A conquista de reformas econômicas e políticas de caráter anti-impe-
rialista e popular é possível desde já, nos quadros do atual regime,
dependendo, essencialmente, do crescimento das lutas de massas,
do poderio da frente nacionalista e democrática e do papel que nela
desempenharem as forças revolucionárias mais consequentes, sobre-
tudo a classe operária, os camponeses e outras camadas populares
(RESOLUÇÃO, 1960)

49
É essa posição – que leva o Partido a alterar seu nome para Partido Comunista Brasileiro –, entre
outras mudanças, que levará uma ala dissidente do partido ao rompimento, em 1961, ala que organi-
za o Partido Comunista do Brasil no ano seguinte.
REFORMA URBANA NO BRASIL: Inquietações e explorações acerca de sua construção enquanto campo e enquanto política • 61

O redirecionamento político do partido, portanto – que julga haver no Brasil


um processo revolucionário em curso, ao lado da afirmação do caráter revolucio-
nário da burguesia nacional e da superação do caráter genérico da luta anti-im-
perialista, focalizando-a na dominação norte-americana – reafirma a questão
reformista como estratégia de ação50. A destacar ainda a referência explícita à
Revolução Cubana, que “criou um novo poder revolucionário, põe em prática
uma reforma agrária que beneficia a milhões de camponeses e toma medidas
consequentes para se libertar da dependência econômica para com o imperia-
lismo norte-americano”. Portanto, a Revolução e a decorrente política progres-
sista ali implementada “não podem deixar de ser motivo de forte inspiração
para todos os povos da América Latina” (BALANÇO, 1960). Essa mudança de
linha programática do Partido Comunista, assumidamente reformista, levou a
um crescimento de seus militantes, bem como a um aumento de sua influência
em diversos setores da sociedade brasileira, inclusive naqueles participantes do
Seminário de Habitação e Reforma Urbana51. Luis Tenório de Lima teve seus
direitos políticos cassados pelo AI-1 de 1964, além de ser destituído de seus
cargos sindicais.

Já Íris Soares de Azevedo era uma das poucas mulheres presentes ao evento.
Tinha cursado a Faculdade de Filosofia da USP, com especialização em Sociolo-
gia, profissão pela qual ela é identificada na lista de participantes do Seminário.
No entanto, sua vinculação societária e profissional se redefiniria em momento
subsequente, quando ela se torna ativa no movimento psicodramático paulistano
(CEPEDA; MARTIN, 2010).

Antonio Maria de Rezende Corrêa, por sua vez, era médico e tinha sido presi-
dente da Associação Piauiense de Medicina e membro da Associação Piauiense
de Imprensa. Eleito deputado federal constituinte pela UDN, em 1945, durante
seu mandato fez propostas sobre isenção de imposto de propriedade nas aqui-
sições de imóveis urbanos ou rurais pelos oficiais e praças da FEB; buscou abrir
linha de crédito para socorrer as vítimas das inundações do rio Parnaíba; e,
quando da denúncia de deputados comunistas sobre a depredação da sede do
Partido pela polícia política, ele foi um dos que se dispuseram a ir apurar os
fatos (BRAGA, 1998).

50
Somada à alteração do seu nome – de Partido Comunista do Brasil para Partido Comunista Brasilei-
ro – e à retirada de referências ao marxismo-leninismo em seu programa, essa ênfase no reformismo
levará, em 1961, a uma cisão, quando os signatários do Manifesto dos Cem foram expulsos do partido,
dando origem ao que hoje conhecemos como PC do B.
51
Essa é uma história ainda por fazer. Mas impossível deixar de ressaltar, entre outras presenças
relevantes no Seminário, a de Fernando Santana, comunista histórico e então deputado federal da
Bahia eleito pelo PSD, integrante da Aliança Democrática Trabalhista Cristã, cassado em 1964 pelo
AI-1 (FERNANDO SANTANA, 2009).
62 • Urbanismo e politica no Brasil dos anos 60

Natexilpatri Guitton, advogado gaúcho, presente ao s.HRu era técnico do Iapi


e estudioso da questão da habitação, tendo escrito o prefácio do livro Diretrizes
para uma Política Nacional de Habitação, de autoria de Simão Goldman em colabo-
ração com Seno Cornely, publicado em 1963.

Pioneira na profissão de serviço social, Helena Iracy Junqueira também participou


do Seminário de Habitação e Reforma Urbana. Ela era vinculada à Ação Católica
paulistana, que congregava organizações de juventude (universitária – JUC, estu-
dantes secundaristas – JEC, independentes – JIC e operária – JOC) e que atuava
também no Partido Democrata Cristão. Vereadora de São Paulo já em 1936, ela
chefia a Divisão de Serviço Social (DSS) de São Paulo, criada em 1955, por orien-
tação da democracia cristã e mantida com recursos do Centro de Estudos Sociais
Católicos. A DSS se compromete com “os processos de educação de base, influen-
ciados pela metodologia de Paulo Freire e pelos trabalhos de desenvolvimento e
organização das comunidades, orientadas pelas experiências desenvolvimentis-
tas da ONU” (SPOSATI, 2001, p.74). A propósito, o campo da assistência social
conhece um avanço significativo nos anos 1960. Aí se destacam, segundo MEN-
DES (2011), a XI Conferência de Bem-Estar Social, em 1962 e o Congresso Nacional
de Profissionais de Desenvolvimento e Organização da Comunidade, promovido
pela Associação Brasileira de Ensino de Serviço Social em 1963. A propósito, Seno
Cornely, coautor do livro que acaba de ser mencionado, é considerado pioneiro
nesse campo52, tendo encabeçado o movimento que lutava pela ampliação dos ho-
rizontes do trabalho em assistência social, que deveria ter caráter universal, além
de desenvolver reflexões sobre os processos de participação comunitária.

Floriceno Paixão, jornalista e concursado do Iapi em 1941, participava do Semi-


nário na condição de deputado federal pelo PTB do Rio Grande do Sul, tendo
sido eleito em 1958 e aderido à Frente Parlamentar Nacionalista (FLORICENO
PAIXÃO, 2009). Já tinha desempenhado, anteriormente à realização do Seminá-
rio, papel relevante em relação à estruturação de uma política nacional de habi-
tação. É assim que, em 6 de abril de 1960, três anos antes do s.HRu, o deputado
apresenta à Câmara o Projeto de Lei n. 1.911 de 1960, que estabelece o Plano
Nacional de Habitação, cria a Superintendência Nacional da Habitação e institui
o Fundo Nacional de Habitação. Na justificativa apresentada, o deputado Paixão
recorre a dados de Natexilpatri Guitton, acima mencionado. Para o “técnico do
Iapi e estudioso do problema” existe uma situação de amplo déficit de mora-
dias no país: deveriam ser construídas anualmente, a partir de 1951, cerca de
560 mil casas, considerando crescimento da demanda, necessidade de reposição
e congestionamento de moradores. No entanto, em sentido inverso, ele também
52
Segundo Mendes (2011), ele teve também papel fundamental na criação da ALAETS (Asociación
Latinoamericana de Escuelas de Trabajo Social), em 1965, e foi protagonista no processo de elabora-
ção do Plano de Desenvolvimento e Organização de Comunidade.
REFORMA URBANA NO BRASIL: Inquietações e explorações acerca de sua construção enquanto campo e enquanto política • 63

observa que decresce o número de unidades de habitações construídas por ano:


o índice para mil habitantes, que era de 3,837 em 1952, passa a 3,136 em 1956.
Indicando a mesma dificuldade, também o índice de construções diminui no
Brasil: tomando-se por referência um índice de 100 para 1953, ele cai para 87 em
1956 (BRASIL, 1960). Conceitos como habitação de interesse social, urbanização
de áreas, assistência técnica, construção por esforço próprio e ajuda mútua já
estavam presentes na proposta encaminhada.

O corpo do projeto, no que se refere ao Plano Nacional de Habitação (artigos 1º


a 3º), define a habitação de relevante interesse social como aquela destinada aos
“residentes que obtenham seus recursos, exclusiva ou principalmente, da remu-
neração de trabalho prestado na qualidade de empregados” (artigo 2º, inciso I).
Essa será a habitação que deverá receber atenção exclusiva dos poderes públicos,
até que se tenha alcançado no país a produção de 2/3 das habitações de interesse
social necessárias. Define ainda o valor de 150 salários mínimos como teto para
essa produção, além de prever obras de urbanização (entendidas como instalação
de serviços públicos), terrenos a serem urbanizados, bem como o financiamento
de indústrias de material de construção. A assistência técnica também aparece
formulada através do ensino de técnicas econômicas de construção, da obtenção
de materiais a custos mais reduzidos, bem como do favorecimento da construção
por esforço próprio ou ajuda mútua53.

Para executar o plano, propõe-se a criação da Superintendência Nacional da


Habitação (artigos 4º a 9º), diretamente subordinada à presidência da repúbli-
ca e com estrutura administrativa que contemplasse a administração central,
órgãos regionais e órgãos locais. Ela teria autonomia técnica e financeira e seria
dirigida por um conselho diretor, acompanhada por uma junta de controle, com
participação especificada de membros dos Institutos de Previdência, das Caixas
Econômicas e de pessoas vinculadas à questão da habitação. Para viabilizar a
política, institui-se o Fundo Nacional da Habitação (artigos 10º a 12º), especifi-
cando suas fontes de recursos. Os artigos seguintes (13º a 19º) estão dedicados a
definições de patrimônio, pessoal e autonomia dos planos e projetos elaborados
ou aprovados pela SNH com relação às posturas municipais e estaduais. Em 180
dias depois de sua aprovação, 90 dos quais dedicados à regulamentação da lei, a
estrutura começaria a viger.
53
“Obteve sucesso o exemplo de Pôrto Rico onde se realiza um bem organizado programa de incenti-
vo, através do estímulo da construção por esforço próprio ou por ajuda mútua dirigida, com o ensino
de técnicas singelas e práticas, e produção doméstica de materiais encontrados nos próprios locais de
construção, o que faz prever igual êxito em nosso país, se essa assistência técnica for levada às várias
regiões do país, ministrando-se ensinamentos não só aos diretamente interessados na construção,
como àqueles que queiram obter, em prazo curto, licenças regionais de construtores de habitações
econômicas, emitidas pelo organismo encarregado do Plano, mediante convênios estabelecidos com
os Crea” (BRASIL, 1960).
64 • Urbanismo e politica no Brasil dos anos 60

Mas, não tendo sido o projeto “sequer apreciado pela primeira Comissão Técnica
a que foi submetido”, o deputado Floriceno Paixão volta a apresentá-lo à Câmara,
com modificações e atualizações, em 23 de março de 1963, uma semana após o
discurso das reformas feito por João Goulart e quatro meses antes do Seminário
de Habitação e Reforma Urbana. A proposta, que passa a ser designada de Pro-
jeto de Lei n. 87, de 3 de abril de 1963, cria o Conselho Nacional de Habitação
e institui o Fundo Nacional de Habitação54. No texto, são atualizados os dados
relativos ao déficit habitacional brasileiro – cujo cálculo estabelecia a necessidade
de construção de 1.246.000 unidades ao ano – e, entre outras alterações e detalha-
mentos, passam a fazer parte da assistência técnica e financeira aos municípios
a elaboração de planos diretores para cidades com população superior a 10 mil
habitantes (artigo 3º0, inciso XI). Vale ressaltar, em sua proposta, a passagem da
Superintendência Nacional de Habitação para o Conselho Nacional de Habitação,
responsável por formular a política nacional de habitação, bem como executar
e coordenar os planos dela decorrentes. O órgão seria composto de forma mais
abrangente, incluindo um representante de cada uma das seguintes instituições:
Confederação de Empregados, Confederação de Empregadores, Superintendên-
cia da Reforma Agrária, Caixas Econômicas Federais e Instituições de Previdência
Social (artigo 8º)55. Floriceno Paixão seria cassado pelo AI-5 em 1968.

O estudante Carlos Henrique Heck, presente no Seminário, formou-se pela FAU-


-USP no ano seguinte, em 1964, tendo sido posteriormente indiciado, junto com
Sergio Ferro, Sergio Souza Lima e Rodrigo Lefèvre, por envolvimento em ativi-
dades relacionadas à Aliança Libertadora Nacional. (COMISSÃO, 2015)

Clidenor Freitas ocupava posição de destaque no s.HRu, sendo um de seus


presidentes56. Assumindo em 1963 a presidência do Ipase, segundo o Dicionário
histórico-biográfico brasileiro (2009), ele era médico e integrou a Associação
Piauiense de Medicina. Foi deputado federal em 1958 na legenda das oposições
coligadas, reunindo PTB e UDN, tendo ainda integrado a Frente Parlamentar
54
Interessante observar que esse é um período com grande intensidade legislativa na produção de
normas e regulamentos. Em novembro de 1961, por decreto do Conselho de Ministros, já havia sido
criada, no âmbito do Ministério do Trabalho e Previdência Social, a Comissão Nacional de Habita-
ção. Sete meses depois, em junho de 1962, ela será transformada em Conselho Federal de Habitação,
através do Decreto n. 1.281, também do Conselho de Ministros, a ser diretamente subordinada a seu
presidente.
55
Esse projeto é arquivado em 14 de julho de 1964. Segundo o parecer de seu relator, o deputado
Nelson Carneiro, “a matéria foi recentemente examinada pelo Congresso Nacional, através de pro-
jeto de iniciativa do Poder Executivo. Meu voto é, por isso, para considerar prejudicado o Projeto
n. 87 de 1963, mas não posso deixar de louvar a valiosa colaboração que seu autor, o nobre deputa-
do Floriceno Paixão, traz a um problema de tal complexidade”. O deputado se referia à Mensagem
n. 126 de 1964 do Poder Executivo, transformada no Projeto de Lei n. 2.006 de 1964, que institui siste-
ma para promover a construção de habitações de interesse social, de onde surge o BNH (Lei n. 4.380,
de 21 de agosto de 64)
56
Posição que ele dividia com o arquiteto Ícaro de Castro Melo, ex-presidente do IAB-SP.
REFORMA URBANA NO BRASIL: Inquietações e explorações acerca de sua construção enquanto campo e enquanto política • 65

Nacionalista. Era partidário da reforma agrária cooperativista, em que os cam-


poneses recebiam as terras do Estado em comodato e era contrário ao latifúndio
improdutivo. Apoiou os camponeses quando da Comissão Parlamentar de In-
quérito que investigava as Ligas Camponesas, em 1962, não tendo conseguido
se reeleger nas eleições do mesmo ano. Em seu discurso na sessão solene de
abertura do Seminário, ressalta sua crença na ciência e no século da planificação
científica, embora também entenda que o problema da habitação é resultante do
complexo social e econômico, não se resumindo sua solução, portanto, à melhor
técnica. Como dificuldade para se implementar a reforma urbana, menciona a
estrutura agrária atrasada (e feudal), a exploração econômica e a presença de
forças estranhas que subjugam a nação (FREITAS, 1963). Com o golpe militar,
exilou-se no Uruguai, voltando ao Brasil em 196757. (ASSIS DUTRA, 2013)

Por fim, parece importante dar destaque ao único participante identificado como
representante de governo estadual. Gildo Mário Pôrto Guerra, arquiteto, com
atuação próxima do Partido Comunista (SOUZA, 2008), participou do seminário
em nome do estado de Pernambuco, onde presidia a Liga Social contra o Mocam-
bo. Na oportunidade, buscava-se renomear a instituição, que deveria passar a se
chamar Serviço Social do Mocambo, positivando seu caráter (GUERRA, 1963)
e de construção de alternativas para a produção de habitação popular. Nesse
sentido, a experiência referencial de Cajueiro Seco, então em curso no Estado,
era trazida como matéria de discussão (BORSOI, 1963) e inspiração para a pauta
discutida no seminário. A política então apresentada visava

a possibilitar um mínimo de atendimento aos grandes grupos mar-


ginais das nossas populações, através de uma nova política social
do mocambo, autêntica, e ajustada aos objetivos populares do atual
Governo do Estado de Pernambuco. Isto, pelo menos, até que novas
reformas estruturais da economia brasileira venham permitir a trans-
formação da paisagem humana do Nordeste (GUERRA, 1963, p. 7).

Gildo Guerra exilou-se no Chile após o golpe de 1964 (SOUZA, 2008).

A partir dessa exploração – ainda restrita – de alguns dos participantes do Se-


minário de Habitação e Reforma Urbana, é possível perceber como o evento foi
resultado e lugar de articulação de diversas redes políticas e profissionais que
buscavam construir no Brasil a reforma urbana como campo político próprio.

57
Embora haja referências de que ele teria cassado pelo AI-1 seu nome não consta da lista do Ato
n. 1, de 10 de abril de 1964 (ATO, 1964).
66 • Urbanismo e politica no Brasil dos anos 60

À guisa de conclusão

A construção da pauta da reforma urbana no Brasil mobiliza processos e conceitos


de diferentes temporalidades e intensidades. De forma geral, a agenda reformis-
ta abarca movimentos que, emergindo no século XIX, são problematizados de
forma concentrada em países europeus na virada do século XX e marcarão o seu
decorrer, reformulados ou reconfigurados, uma vez que permanecem as ques-
tões sociais que os geram. Por sua vez, sua tradução em política vai oscilar, via
de regra, entre perspectivas mais conservadoras (reformas para potencializar as
lógicas econômicas e sociais e evitar a revolução), perspectivas propriamente
reformistas (reformas como caminho pacífico para o socialismo) e perspectivas
revolucionárias (reformas como meio, revolução como fim), podendo haver
diversos tipos de combinação entre elas. Já seus desdobramentos em política
pública vão progressivamente organizando uma pauta reformista que congrega
princípios e modos de gestão. No que se refere à cidade, impõem-se a função
social da propriedade, o combate à especulação fundiária e imobiliária e o
controle social, com conselhos e outras formas de participação.

Para o Brasil, como visto até aqui, pode-se sugerir que alguns desses elementos se
incorporam precocemente a uma agenda estatal, desde os anos 1920, com grande
intensificação nos anos 1930 e, sob outras condições de possibilidades, já com re-
gistro importante da ação da sociedade civil, nos anos 1960. Ainda nesse sentido,
a experiência da revolução cubana, que explicita a dimensão urbana dos processos
reformistas, através da formulação do conceito de reforma urbana, e a ação interna-
cionalizada dos partidos comunista e socialista, em diversos registros, parecem as-
segurar a permanência, atualização e reconfiguração dessa pauta, particularmente
nos países da América Latina e no Brasil, em especial, mas não apenas nestes.

Tomando o s.HRu como uma das empirias do processo, é possível (ainda que
preliminarmente) delinear uma trama da reforma urbana, constituída por uma
problematização coletiva e confluente da cidade como espaço de vida a ser equa-
cionado na perspectiva da “democracia e da justiça social” (ARQUITETURA,
1963a, p. 19), por meio da atuação de lideranças, profissionais e instituições de
diferentes tipos, históricos e horizontes. Ao lado dos arquitetos, propositores do
seminário, comparecem, entre outros, lideranças sindicais, políticos de diferen-
tes partidos, assistentes sociais, urbanistas, sociólogos, economistas, indicando a
polarização que a questão urbana assumiria a partir de então seja na perspectiva
técnica, seja na perspectiva política. Assim, tendo a cidade como epicentro, esta-
va em curso todo um movimento imantado por possibilidades de transformação
social e política que buscassem superar as profundas injustiças e desigualdades a
que estava submetida grande parte da população.
REFORMA URBANA NO BRASIL: Inquietações e explorações acerca de sua construção enquanto campo e enquanto política • 67

A interrupção violenta do processo, trazida pelo golpe militar de 1964, vai


desarticular e fazer submergir essas experimentações sociais, interrompendo
drasticamente um processo de construção ainda frágil da democracia, da repú-
blica e da justiça, das quais a cidade brasileira buscava ser parte e expressão.

Mas a liberdade é a doçura da vida, como dizia um dos boletins sediciosos da


Conspiração dos Alfaiates: a busca dessa cidade permanece e reflorescerá.

Referências

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