O Pobre de Direita A Vingança Dos Bastardos Jessé

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Copyright © Jessé Souza, 2024

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Todos os direitos reservados. É proibido reproduzir, armazenar ou transmitir partes deste livro,
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
S715p
Souza, Jessé
O pobre de direita [recurso eletrônico] : a vingança dos bastardos / Jessé Souza. - 1. ed. -
Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2024.
recurso digital
Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5802-157-5 (recurso eletrônico)
1. Direita e esquerda (Ciência política) - Brasil. 2. Polarização (Ciências sociais) - Aspectos
políticos. 3. Conservadorismo - Brasil. 4. Brasil - Política e governo - Opinião pública. 5.
Livros eletrônicos. I. Título.
24-93430
CDD: 320.50981
CDU: 32.019.5:329.11(81)
Meri Gleice Rodrigues de Souza – Bibliotecária – CRB-7/6439

Produzido no Brasil
2024
AGRADECIMENTOS

Agradeço a Júlia Vilhena pela crítica certeira e a Bruno Reikdal pela ajuda nas
entrevistas dos negros evangélicos.
SUMÁRIO

PREFÁCIO – Nunca foi a economia, tolinho!


INTRODUÇÃO – A síndrome do Coringa
1 – Os Estados Unidos como espelho do mundo
I. A singularidade americana
II. A produção do consentimento
III. Da produção do consentimento à construção da extrema direita

2 – As raízes históricas da extrema direita no Brasil


I. A construção do pacto antipopular e o falso moralismo da corrupção
II. A guerra moral entre as classes
III. O pobre remediado e a manipulação de sua fragilidade social

3 – O branco pobre do Sul do país e de São Paulo e o preconceito regional no Brasil


I. A substituição do racismo “racial” pelo racismo “regional”
II. Entrevistas: o branco pobre do Sul e de São Paulo

III. Análise das entrevistas com os brancos pobres ou empobrecidos


4 – O negro evangélico
I. A contrarrevolução evangélica e seu sentido social e político
II. Deus e o Diabo na Terra do Sol
III. Entrevistas: O negro evangélico
IV. Análise das entrevistas dos negros evangélicos

CONCLUSÃO – O vingador dos bastardos


ENCARTE
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Prefácio
Nunca foi a economia, tolinho!

O problema sobre o qual este livro se debruça se resume nesta pergunta: por
que uma parcela significativa dos pobres – conhecidos hoje como os “pobres de
direita” –, os quais teriam muito a perder com Bolsonaro, representante das
piores elites nacionais, votaram nele duas vezes de forma maciça? Lembremos
que o contexto imediatamente anterior era o da polarização do “nós contra
eles”: quando os pobres votaram, em peso, pela primeira vez, durante quatro
eleições seguidas, em um partido de esquerda, o PT; e a classe média e a elite,
como sempre, no PSDB.
Como a pregação da austeridade elitista – eufemismo para o saque da
população – não tinha nenhum poder de convencimento, como se nota na
popularidade inexistente de Michel Temer, Bolsonaro surge como o azarão
capaz de conduzir, pelo voto, depois de duas décadas, o ideário da elite das
privatizações e dos saques financeiros impopulares de volta ao poder. Uma
proeza e tanto! A questão passa a ser como e por que isso aconteceu? Temos,
então, dois pontos: quais foram as novas formas de manipulação da população
inventadas, e quais foram as ansiedades das classes populares às quais elas se
dirigiram? Em geral, as análises existentes se debruçam sobre esse primeiro
ponto. Mas o decisivo é o segundo.
Por que a pregação da extrema direita encontra terreno fértil nos
empobrecidos? Vamos deixar algo claro desde o início, cara leitora e caro leitor:
a elite real é ínfima e se conta nos dedos no nosso país, e a classe média “real” –
definida pelo estilo de vida em comparação internacional – não chega a 20%
da população em lugar nenhum do Brasil.1 Que essas duas classes sociais, que
constituem o núcleo do bloco antipopular de classes no poder, votem nos
candidatos elitistas é compreensível. As razões para isso serão esclarecidas em
detalhe mais adiante. Mas essas classes não elegem ninguém pelo voto em
eleição majoritária – por conta de seu reduzido tamanho – embora sejam as
classes material e simbolicamente hegemônicas.
Portanto, a questão que realmente importa saber no Brasil de hoje é, em
outras palavras, por que parcelas significativas das classes populares, as quais
não têm nada a ganhar com Bolsonaro, só a perder, especialmente sob o ponto
de vista econômico objetivo – que é como definimos hegemonicamente a ação
racional em relação à irracional –, votaram duas vezes em alguém que os
prejudica sistematicamente? As respostas para essa questão – a mais importante
para o presente e o futuro do país – variam da presunção de “irracionalidade”
do público de “bolsominions” até a causalidade religiosa e de visão de mundo
conservadora de parcelas desse eleitorado.
A presunção de irracionalidade está baseada na ideia de que a ação econômica
– que calcula as perdas e ganhos sopesando sua desejabilidade e utilidade para o
indivíduo a partir desse cálculo – é o critério de racionalidade mais importante.
Ora, a decantada “racionalidade econômica”, como móvel do comportamento
humano em sociedade, pode ser percebida como uma balela de fácil
comprovação.
As pessoas têm como razão última de sua ação social a dimensão moral, ou
seja, a luta por reconhecimento social que garante autoestima e autoconfiança
para cada um de nós. Sem isso, ninguém se levanta da cama para fazer
qualquer outra coisa. Somos todos seres frágeis e vulneráveis e somos, portanto,
construídos pela visão positiva ou negativa que a sociedade possui de cada um
de nós. Como essa necessidade é mais primária e importante do que qualquer
outra, é a partir dela que devemos nos inquirir quando, muito especialmente,
as pessoas “aparentemente” agem, sob a ética da utilidade econômica, contra os
seus melhores interesses.
Isso significa, também, que não existe “a economia” enquanto tal, fora de um
horizonte moral e ético que define seus limites e possibilidades. Afinal, não
existe a “neutralidade valorativa da economia”, ou seja, todo modelo
econômico possui, no seu núcleo, uma concepção de justiça muito singular. A
economia moderna inventou as equações e os números precisamente para criar
a impressão de ser um conhecimento exotérico que pudesse reivindicar a
neutralidade “técnica” dos números e das ciências exatas. Tudo foi montado
para que esquecêssemos de que toda forma de produção e de circulação de bens
e mercadorias já é prenhe de determinada definição de justiça que diz que
alguns vão ter tudo, e outros nada ou muito pouco. E o que importa é
exatamente saber quem ganha e quem perde com essa definição de justiça
recalcada pela formalização da economia.
Nesse sentido, a economia jamais foi, em nenhum caso histórico, o móvel do
comportamento humano, simplesmente porque não existe nenhuma forma de
dividir e produzir bens que não esteja ancorada em uma visão de justiça que é
sempre contingente e particular. O que passa por questão econômica é, na
verdade, um esquema de produção e distribuição de mercadorias segundo um
princípio moral singular. O núcleo de qualquer produção e distribuição
econômica é, portanto, uma questão e uma escolha moral.
O que imaginamos ser econômico de modo moralmente neutro é a
presunção de que uma forma muito específica de produzir e distribuir bens se
torne algo “natural”, aparentemente, sem alternativa possível. Trata-se aqui da
imposição do que é objetivamente já dado, como se fosse a única forma
possível, exatamente para evitar sua crítica e o pensamento em outras opções. A
economia moderna se esforça, por conta disso, em ser percebida como se fosse
a imposição de uma “razão técnica” neutra e distanciada. Tudo foi feito para
que não se pense mais a economia como “economia política”, ou seja, como
uma realidade política e, portanto, moral, como era pensada no século XIX.
Isso significa que o móvel último de nosso comportamento social, como
Hegel já havia intuído, é sempre “moral”, quer saibamos disso ou não. A
reconstrução da hierarquia moral subjacente à sociedade moderna já foi
realizada em outros trabalhos, e não vou repeti-la aqui.2 O problema é que essa
hierarquia moral é implícita e precisa ser expressa e articulada para se tornar
compreensível. Desse modo, a confusão e a desorientação no mundo social
complexo, que é o destino dos desadaptados, abrem um espaço considerável
para a manipulação das necessidades dos indivíduos. Isso implica que as
pessoas pobres votaram em Bolsonaro causas morais, e não econômicas.
E essas causas morais não são as que imaginamos que sejam, como o
conservadorismo moral e a pauta de costumes. Ao contrário: o apego à pauta
de costumes e ao moralismo convencional são decorrentes de outras feridas
morais mais importantes, como a experiência da humilhação cotidiana – a qual
não é compreendida em seus efeitos reais. Quais são essas causas morais? Por
que elas ganharam os corações e mentes de tantos oprimidos? Essas são as
questões mais importantes para entendermos o Brasil atual.
As explicações existentes, que não estão implicitamente baseadas no cálculo
econômico, interpretam, por outro lado, a moralidade de modo superficial. As
outras explicações que dizem que os pobres votaram em Bolsonaro por serem
religiosos ou conservadores, na verdade, se limitaram a “descrever” um
fenômeno – menos ainda, se limitaram a circunscrever seu público –, ou seja,
não o explicam. A explicação precisa ir mais profundamente e considerar: por
que tantos pobres escolheram essa orientação religiosa e não nenhuma outra
dentre tantas possíveis? Por que a maioria dos pobres, inclusive, adere a uma
moralidade convencional e conservadora que foi construída especialmente para
oprimi-la? Sem responder a isso, não iremos “compreender” nada, mas apenas
fingir que compreendemos. A causalidade social tem que ser reconstruída em
todos os seus elos de sentido para que cheguemos às causas reais e operantes em
cada caso.
Este é o objetivo deste livro: explicar, e não apenas descrever, as razões
últimas que fizeram uma parcela significativa de um povo sofrido votar em um
candidato que é, objetivamente, medido pela regra da utilidade econômica,
votar em seu maior inimigo. Tal questão exige que penetremos nos mistérios e
segredos de nossa história peculiar, que foi, inclusive, muito mal interpretada
por pensadores elitistas que se passavam por críticos sociais.3
Uma dessas omissões da nossa inteligência hegemônica foi um fato que irá
desempenhar um papel central neste livro: ninguém presta muita atenção a
isso, mas o Brasil é dividido entre uma porção que é majoritariamente branca –
como os 72% da população do Sul do Brasil e 58% de São Paulo – e outra,
75% majoritariamente negra e mestiça – de São Paulo “para cima” no mapa.
Não conheço ninguém que tenha transformado essa “linha divisória” tão
importante em um problema fundamental de pesquisa para o comportamento
político no nosso país. E isso em um país com uma escravidão de 350 anos e
um racismo que, embora “cordial”, é dos mais insidiosos de que temos notícia.
Explicar Bolsonaro é, portanto, como veremos adiante, compreender como o
racismo brasileiro – mesmo depois do seu interdito na esfera pública que o
transformou em “cordial”, tentando negar a si mesmo – encontrou novas
máscaras para exercer suas manifestações mais arcaicas. E veremos em detalhe
como essa linha divisória entre o Sul e São Paulo, do branco europeu
imigrante, vai se opor ao resto do país, majoritariamente mestiço e negro –
mascarando o racismo “racial” em racismo “regional”. Isso não significa chamar
tudo de racismo, mas simplesmente entender como ele vai assumindo, sempre,
novas vestes e máscaras para continuar vivo, fingindo que morreu ou que
nunca existiu.
A partir desta questão, poderemos compreender o problema decisivo: por que
Bolsonaro é o representante orgânico mais fiel do “branco pobre” do Sul e de
São Paulo? Sendo eles, como efetivamente o foram, os grandes responsáveis por
suas votações expressivas em todos esses “estados brancos” da federação em
duas eleições.4 Embora tenham existido outros públicos importantes –
inclusive o “negro evangélico”, também a ser discutido neste livro –, nenhum
se transformou no segmento social “suporte”5 de Bolsonaro como os seus
coirmãos de origem europeia – mas empobrecidos e, portanto, ressentidos
como são o próprio Bolsonaro e sua família.6

1. Jessé Souza, A classe média no espelho, 2018.


2. Ver Jessé Souza, A construção social da subcidadania, 2023; Axel Honneth, Der Kampf um
Annerkenung, 1992; e Charles Taylor, The Sources of the Self, 1995.
3. Jessé Souza, Brasil dos humilhados, 2022c.
4. Para a eleição de 2018, ver “Presidente por estado”, UOL, 9 out. 2018. Para a eleição de 2022,
ver “Presidente por estado”, UOL, 30 out. 2022.
5. A ideia de segmento social “suporte” de um líder, religioso ou político é de Max Weber, como
forma de identificar o segmento alinhado de modo verdadeiramente orgânico ao líder, embora
outros pontos de apoio possam existir.
6. Eu me refiro aqui, obviamente, à família onde Bolsonaro nasceu e sua origem pobre, e não à sua
família atual enriquecida pelos negócios escusos. Ver Ilze Scanparini, “No século XIX, família de
Bolsonaro saiu da Itália para trabalhar em SP”, Fantástico, 28 out. 2018.
Introdução
A síndrome do Coringa

Temos de deixar claro, logo de início, que as causas mais amplas e gerais para o
advento da extrema direita – que se baseia no cidadão empobrecido e que não
conhece as causas de seu sofrimento – não são nacionais nem especificamente
brasileiras. O seu pano de fundo é o capitalismo financeiro mundial que
enriquece uma meia dúzia às custas dos bilhões de empobrecidos no mundo
todo. O funcionamento do capitalismo financeiro é opaco, baseado na
existência de “paraísos fiscais”, para a evasão de impostos dos mais ricos, e nas
dívidas públicas galopantes e nunca auditadas. Ou seja, tudo aponta para a
fraude e corrupção organizadas de dívidas privadas transformadas em públicas,
que só são toleradas por conta de uma imprensa também privada e conivente
que cria uma realidade virtual e invertida para a população.
O filme Coringa (2019), de Todd Phillips, estrelado pelo grande Joaquin
Phoenix, toca em um ponto nevrálgico de nosso tempo ao reconstruir o
cidadão empobrecido, que se torna consciente de sua raiva e reage de modo
pré-político fazendo justiça com as próprias mãos. O personagem principal, ao
contrário do que poderíamos supor, é uma figura social típica do nosso
mundo, e não um ponto fora da curva. O quadro patológico do Coringa é
apenas a exacerbação de uma característica “normal” e generalizada no mundo
neoliberal do capitalismo financeiro.
O nosso anti-herói é pobre, cuida de uma mãe doente e é humilhado
constantemente em casa, no trabalho e na rua. É humilhado pela mãe, pelos
colegas, pelo governo, pelas instituições de assistência social, pelos outros, no
trem. E é humilhado, finalmente, pela solidão atroz que o faz viver uma vida
de imaginação e fantasia. Este é o ponto central: a experiência da humilhação é
de 24h, sem sossego e até mesmo durante o sono, pois quem é humilhado e
invisibilizado acaba sonhando com sua vexação diária – já que o cotidiano
perfaz o material dos sonhos.
Isso é algo que alguém das classes do privilégio – como a classe média “real”,7
que monopoliza o conhecimento legítimo – não sente e, portanto, não sabe o
que significa. A elite e a classe média não têm a experiência da humilhação
diária e recorrente. E para se entender o novo sujeito criado pelo
neoliberalismo é preciso compreender a experiência da humilhação constante
como sua marca mais profunda e existencial: ser humilhado é sua vida de fio a
pavio.
Também é necessário assimilar que a experiência da humilhação é a mais
fundamental para a dor e miséria de um ser humano. Afinal, como sabia Hegel
melhor do que ninguém, o nosso comportamento não é determinado por
necessidades econômicas, como acreditam tanto o liberalismo quanto versões
do marxismo. Ele é determinado pela nossa necessidade mais básica de todas: o
reconhecimento social de nossa dignidade e singularidade. Sem isso, não temos
autoestima. E, sem autoestima, propiciada por uma ideia positiva sobre si a
qual é sempre mediada pela percepção dos outros sobre nós, já entramos
derrotados na competição social. Não à toa, as doenças da época são a
depressão e o alcoolismo – causadas, quase sempre, pela falta de autoestima e
autoconfiança.
Os sinais dos novos tempos estão no cotidiano: emprego mal pago, trabalho
precário, culto aos ricos e ódio aos pobres, corte dos gastos sociais (remédios
deixam de ser custeados pelo Estado), desorientação e falta crônica de
esperança. Um dos principais sinais do quadro desolador de ser humilhado o
tempo todo é, precisamente, a fuga na fantasia e na imaginação, que é o
destino dos que se sentem abandonados. Quando a realidade se torna
insuportável, a fuga na fantasia é inevitável para tornar a vida minimamente
palatável.
O Coringa, nosso anti-herói, fantasia um namoro com sua vizinha a partir de
um breve encontro fortuito no elevador, assim como fantasia seus sonhos de
sucesso e de fama como comediante. A sua solidão e isolamento são extremos,
e esse talvez seja o aspecto principal aqui. O novo oprimido se encontra
sozinho e sem defesa. Não tem mais os sindicatos ou associações sociais que o
apoiam. Esse talvez seja o subproduto mais importante da guerra aos sindicatos
promovidas pelo capital financeiro dominante desde os anos 1980. A pobreza e
a humilhação passam a ser vividas como dores pessoais e intransferíveis. Pior,
passam a serem vividas como merecimento individual pelo fracasso social.
O isolamento marca, inclusive, o tipo de rebelião que esse tipo social está
condenado a fazer. Os seguidores do Coringa, no final do filme, se identificam
com sua luta contra os poderosos e contra o “sistema” e passam a agir como ele
em atos de violência, sem controle ou limites. É o mundo da anarquia, da
rebelião imediata, cega e sem estratégia ou propósitos definidos, outro reflexo
da guerra travada nas últimas décadas contra todos os baluartes de proteção da
classe trabalhadora. Sem sindicato, sem partido confiável e sem compreender o
contexto social maior no qual está inserido, porque também a toda a grande
imprensa foi comprada, é a violência bestial e sem direção que passa a ser a
crítica possível a um mundo com poucos vencedores e muitos perdedores.
Nesse sentido, o Coringa é a figura social mais típica de um mundo no qual a
pobreza é vivida como culpa pessoal das próprias vítimas. Por conta disso, ele é
uma boa introdução deste livro: como entender que pessoas pobres, brancas e
negras, votem e apoiem os candidatos da extrema direita que representam, na
realidade, as piores elites e seus maiores inimigos? A resposta mais comum é
supor falta de inteligência, como se a raiz do comportamento contrário aos
melhores interesses do sujeito oprimido fosse “racional”, fruto de uma escolha
consciente e refletida. É isso que se imagina quando se fala em “bolsominion”,
por exemplo. Essa é a perspectiva dominante no senso comum.
A resposta “científica” dominante parece ir em outra direção. Aqui, a índole
conservadora passa a ter causas políticas ou religiosas. Diz-se, então, que é o
perfil conservador do indivíduo ou influência de sua igreja ou religião. Ainda
que essa explicação seja um pouco melhor e vá um passo adiante da que atribui
o comportamento irracional à “burrice”, ela ainda é visivelmente incompleta e
superficial. Afinal, o que importa saber é o “porquê” da pessoa em questão ter
“escolhido” aquela religião e não qualquer outra? Ou ainda, o “porquê” de ela
recorrer a uma moralidade restritiva e até violenta que, em última análise,
limita a si e os outros? O que importa saber é o que está por trás de todas essas
aparentes “escolhas”. É isto o que a verdadeira ciência precisa fazer: elucidar o
que o senso comum não vê e aprofundar a análise superficialmente científica
que fica no meio do caminho. Esse será o nosso desafio neste livro.
O Coringa nos dá o mote do comportamento que importa esclarecer. A
legião de esquecidos e humilhados – que aumenta a cada dia em todo lugar,
muito especialmente em países onde a ideologia neoliberal domina sozinha o
imaginário social, como os Estados Unidos e o ­Brasil – possui uma raiva e um
ressentimento contra o mundo que eles não conseguem explicar nem
direcionar, mas apenas experenciar e vivenciar como culpa individual. Cerca de
metade da população brasileira tem uma vida muito semelhante à do Coringa,
por vezes, inclusive, bem pior.8 Nos Estados Unidos, um país de antiga
afluência e riqueza do capitalismo industrial, os ganhos do trabalhador estão
estagnados há cinquenta anos. Mesmo lá, muitos são pobres ou muito pobres.9
O problema é que os pobres e despossuídos são também aqueles que menos
compreendem como o mundo social funciona, os que são as maiores vítimas
de todos os preconceitos sociais criados pelos poderosos para oprimi-los. Quem
mais acredita na meritocracia – a crença no mérito individual do sucesso social
– é o mais pobre, ou seja, justamente a sua maior vítima.10 Se assim não fosse,
leitor e leitora, não existiria opressão social duradoura. A violência pode ser
importante de forma momentânea, mas sem convencimento do oprimido de
sua própria inferioridade não se tem dominação estável. Por conta disso, faz-se
necessária a construção de instituições de defesa da classe trabalhadora, como
os sindicatos e associações profissionais. Daí que seja necessário imprensa livre
e mídia plural baseadas no contraditório. Daí que seja necessário uma educação
pública e crítica. Ou seja, tudo o que já perdemos ou estamos em vias de
perder.
É essa situação de precariedade tanto material quanto cultural e simbólica
que ajuda a esclarecer o que parece inexplicável. Essa é, também, a onda que a
extrema direita surfa com desenvoltura. Os Coringas do mundo atual e seu
sofrimento são a matéria-prima essencial para a falsa rebelião da extrema direita
no mundo todo. É importante compreender o contexto histórico que
propiciou tamanha mudança de comportamento. Legitimar a opressão injusta
é o trabalho principal de qualquer classe social dominante. Não há domínio
duradouro sem o convencimento do oprimido de sua inferioridade inata, ou de
que a pobreza é culpa de si mesmo. Como foram construídos os “Coringas
modernos”, ou seja, os trabalhadores superexplorados, humilhados e
precarizados? Como essa nova classe se tornou a matéria-prima mais
importante da extrema direita mundial e brasileira?

7. Conforme será melhor detalhado adiante, a noção de classe média “real” existe para combater a
ideia nociva de que a classe C, que ganha a média da renda nacional, seria uma “nova classe
média”, ideia hoje bastante aceita. Ora, quem ganha a renda média num país pobre e desigual é
pobre, mesmo que remediadamente pobre. Classe média é uma classe de privilegiados que
reproduzem nos seus filhos os mesmos privilégios.
8. Ver Jessé Souza, A ralé brasileira, 2022b.
9. “Mais de 140 milhões de pessoas são pobres nos EUA, denuncia ONG”, Exame, 26 set. 2018.
10. Ver Jessé Souza, op. cit., 2022b.
1. OS ESTADOS UNIDOS COMO ESPELHO DO MUNDO

I. A SINGULARIDADE AMERICANA

Qualquer análise do capitalismo moderno deve partir do desenvolvimento do


capitalismo americano. Desde o último quarto do século XIX, são os Estados
Unidos que passam a comandar o poderio industrial em escala mundial. E,
depois da Segunda Guerra Mundial, passam a comandar também a legitimação
simbólica do imperialismo “soft”11 americano. Eles irão exportar não apenas
produtos manufaturados, mas, também, as ideias que justificam o novo arranjo
do capitalismo imperialista em escala mundial. Já no final do século XIX,
tornam-se o país mais rico e afluente do mundo, tendo atraído cerca de 35
milhões de imigrantes de todo o mundo, especialmente da Europa. A partir
desse momento, todas as mudanças importantes que ocorrem no mundo, com
a possível exceção do fascismo europeu dos anos 1920 e 1930, tiveram início
nos Estados Unidos antes de se espalharem pelo mundo. Isso vale também para
a “nova extrema direita mundial” – que guarda certa semelhança com o
fascismo anterior, mas que tem singularidades importantes – que se cria a
partir dos anos 1970.
Daí que é fundamental analisar as transformações da dominação simbólica
capitalista partindo do caso americano. Nota-se que foram de lá que vieram
todas as estratégias de dominação política dos últimos 120 anos – como a
transformação do cidadão em consumidor, a criação do Estado social, a
legitimação para a nova extrema direita mundial e, finalmente, o ideário
identitário neoliberal abraçado pelo Partido Democrata desde os anos 1990.
Tudo isso foi primeiro criado nos Estados Unidos antes de ganhar o mundo
inteiro.
O imperialismo “informal” americano, que prescinde da dominação política
e militar explícita em favor de uma influência econômica e cultural, só é
criado, com todos os seus pressupostos e consequên­cias, depois da Segunda
Guerra Mundial. Primeiramente, o país desenvolve durante séculos uma
espécie de “imperialismo para dentro” – povoando e, em seguida, comprando
ou conquistando, do vizinho México ou de antigas potências coloniais,
territórios contíguos no próprio continente.
Essa rota de desenvolvimento abre imensos territórios livres para a ocupação
econômica, que criam o que se chamaria mais tarde de “fronteira americana”. A
existência de uma fronteira aberta, com terras férteis e cultiváveis, vai marcar o
desenvolvimento do capitalismo americano de modo indelével em todas as
dimensões. As imensidões territoriais de terras a serem povoadas criam, ao
mesmo tempo, um atrativo permanente para as massas de imigrantes europeus
– que chegam aos milhões ao país – e uma classe trabalhadora de altos salários
relativos, já que a fronteira é uma opção sempre aberta ao trabalhador.
Isso vai implicar, também, que o tipo de desenvolvimento industrial
americano será de capital intensivo, o que aumenta sua produtividade e
dinamismo ao mesmo tempo que permite a criação de um mercado interno
crescente e pulsante, composto pela capacidade de consumo da própria classe
trabalhadora. Por outro lado, também permite a expansão de uma classe de
pequenos e médios proprietários rurais, que mantém considerável poder
político e simbólico até pelo menos o começo do século XX. Paralelamente, se
cria uma classe de capitalistas e de financistas que aproveitam as chances
abertas pela construção de um amplo e dinâmico mercado interno.
A construção da gigantesca malha ferroviária americana, que liga todo o país
e desbrava áreas remotas, foi um desses empreendimentos que demandaram
extraordinária capacidade logística e concentração de recursos. A mesma
capacidade de concentração de recursos e de altos investimentos foi decisiva no
desenvolvimento de indústrias fundamentais, como a de petróleo e aço.
Tamanho dinamismo econômico não poderia deixar de ser acompanhado de
conflitos distributivos de toda ordem entre as diversas classes sociais.
Em primeiro lugar, pequenos e médios proprietários de terra, que
incorporavam o lugar simbólico do self-made man americano, o pioneiro que
faz fortuna com o suor do próprio trabalho como nenhuma outra classe social
e que, por isso, dispõe de considerável peso político local e regional. É a força
política dos farmers que evita, por exemplo, uma concentração financeira
precoce nos Estados Unidos, e que retarda a criação de um banco central
verdadeiramente operante até o começo do século XX. Os proprietários de terra
desconfiavam, com razão, de que a concentração e a força de um setor
financeiro autônomo e centralizado seriam utilizadas contra eles.
Nos centros urbanos, os conflitos de classe são ainda mais explosivos. Até o
final do século XIX, os Estados Unidos possuem o maior e mais organizado e
atuante proletariado do mundo, com greves constantes e grande atividade
sindical, ainda que essa seja considerada ilegal. Por outro lado, forjada no
embate com os trabalhadores, se cria uma divisão de capitalistas com inaudito
grau de coesão e de consciência de classe, que age em conjunto contra
sindicatos e grevistas. Essa é a grande e verdadeira luta decisiva da sociedade
americana. Muitas das greves terminam em banho de sangue, com a polícia
atuando como tropa armada do capital.
As lutas dos trabalhadores americanos alcançam o seu pico nos anos 1890,
quando as reivindicações da legalização de sindicatos na indústria do aço, das
minas e das ferrovias quase conseguem a adesão dos pequenos e médios
proprietários rurais radicalizados. A radicalização da luta de classes faz com que
os capitalistas, por sua vez, ajam em conjunto e de modo concertado para
influenciar o poder político a seu favor. São criadas inúmeras organizações em
níveis local, regional e nacional para representar os capitalistas, como a
influente National Association of Manufacturers [Associação Nacional de
Fabricantes – NAM], com o objetivo de combater a crescente ação sindical. Por
volta dessa época, consolida-se entre os empresários a necessidade de uma
consciência de classe da liderança capitalista, a ser construída em aliança com o
Estado americano.12
O reagrupamento das forças das classes em disputa leva a uma nova aliança
dos capitalistas com o Partido Republicano, forjada no contexto da decisiva
eleição de 1896, com a vitória da coalizão capitalista sobre as forças populares.
A vitória republicana leva a mudanças fundamentais no sistema político
americano e na função do Estado. Em primeiro lugar, mudanças das regras
eleitorais têm o intuito de reduzir drasticamente a força dos sindicatos e das
organizações dos trabalhadores. Também o poder judiciário passa a atuar em
uníssono como força conservadora contra as reivindicações dos trabalhadores.
A crise de 1929, todavia, muda esse quadro drasticamente, enfraquecendo a
elite financeira e industrial que havia levado o país à sua maior debacle
econômica. O New Deal – que se tornaria mais tarde uma expressão tão forte a
ponto de ser usada para identificar a social-democracia – de Franklin Delano
Roosevelt, entre 1932 e 1944, é a resposta a essa crise de morte do capitalismo.
A partir de agora, o Estado deve não apenas servir ao enriquecimento da
pequena elite de proprietários, mas, também, garantir o bem-estar geral das
classes trabalhadoras. A manutenção da luta de classes dentro dos limites de
um contexto regulado politicamente é a grande novidade do New Deal.
Roosevelt realizou o maior esforço americano de construção de um Estado
social e de liberdades trabalhistas pensadas, no entanto, como uma aplicação de
conceitos keynesianos para possibilitar o desenvolvimento capitalista de modo
organizado e aplicado por uma burocracia técnica, profissional e, agora, estatal.
O fundamento do New Deal como política de Estado era precisamente evitar
que os interesses capitalistas privados controlassem enquanto tal toda a
atividade do Estado, impedindo sua autonomia relativa em relação à economia
e, portanto, sua capacidade de corrigir as consequências não intencionais do
mercado em situações de crise.
Na dimensão econômica, o Federal Reserve, o banco central americano,
adquire funções que vão muito além da de servir como último recurso para
evitar a insolvência de bancos, e passa a administrar toda a performance da
economia. A separação entre bancos de investimento e bancos comerciais
permitiu que a especulação com títulos e atividades de risco na arena
internacional ficasse com os primeiros, enquanto os segundos financiavam o
esforço de reconstrução industrial interna com juros baixos.13
O Departamento do Tesouro assume a preponderância em relação ao banco
central e ao Departamento de Estado, e funciona como defensor da economia
enquanto um todo, insulando as influências de capitalistas individuais antes
decisivas. O Estado passa a funcionar como instância racionalizadora do capital
sob a supervisão de agências reguladoras, e adquire uma burocracia baseada em
mérito e capacidades técnicas. Além disso, o esforço de guerra viabiliza
rapidamente forças armadas permanentes sem rival no planeta.
No final da Segunda Guerra Mundial, ao contrário do que havia acontecido
na Primeira, o Estado americano já havia desenvolvido capacidades
fundamentais para assumir o comando do processo de reorganização do
capitalismo em escala mundial. Com a ameaça soviética às portas, o New Deal
doméstico americano também será exportado sob a forma do “compromisso
social-democrata” para todos os países-chave da Europa Ocidental. O
compromisso de classes rooseveltiano passa a caracterizar o Partido Democrata
americano, que exporta o mesmo modelo aos países aliados europeus de modo
a conseguir o consentimento das classes trabalhadoras locais.

II. A PRODUÇÃO DO CONSENTIMENTO

A democracia americana do tempo dos pioneiros, e decantada por Tocqueville,


se transforma, ao longo da última metade do século XIX, numa plutocracia dos
super-ricos, que opera com mãos de ferro e usa todos os meios para se
perpetuar no poder. Desde então, a plutocracia dos negócios rege a política
americana. Os doze anos de New Deal rooseveltiano, entre 1932 e 1944 – e
sua continuidade no ambiente internacional até o final dos anos 1970 –, foram
as únicas exceções. Ainda assim, apenas parciais.
Como acontecerá no Brasil e no resto do mundo, o grande inimigo do
domínio irrestrito das plutocracias econômicas americanas será o sufrágio
universal e a democracia como formas aceitas no âmbito internacional de
justificação de todo tipo de poder político. São precisamente elas que permitem
a participação popular num sentido contrário aos interesses elitistas. Como não
existe, depois da decadência na crença do direito divino dos reis, outra forma
de legitimar a dominação política que não pelo sufrágio universal, a saída da
elite americana foi desenvolver maneiras de manipular a população de modo a
fazê-la se comportar e votar contra os seus melhores interesses. Isso tudo
mantendo, formalmente, o processo democrático. Assim, ao contrário da elite
brasileira, sempre disposta a recorrer a golpes de Estado, a estratégia da elite
americana sempre foi a de enganar e manipular sua população, ou, como diz
sua própria elite funcional encarregada desse trabalho: “fabricar consenso”.
A “fabricação de consenso” – eufemismo para a consciente manipulação das
massas contra seus melhores interesses – vai exigir uma divisão de trabalho e
uma segmentação estrutural e institucional nova no campo da dominação
simbólica do capitalismo. Seus operadores vão agir numa dimensão menos
abstrata do que o nível científico, ainda que em estreita relação de influência e
cooperação recíprocas com a ciência hegemônica. Eles irão atuar como
conselheiros diretos de endinheirados e poderosos nas agências de propaganda
e de governo, que serão criadas tanto no mercado quanto no aparelho de
Estado.
Esse nível intermediário é típico da elite funcional do mercado e do Estado,
que lida com conhecimento prático e imediatamente aplicável para a resolução
de problemas concretos advindos da dominação social e política. Ele está tão
ligado à imprensa que perceber as fronteiras entre essas atividades é difícil.
Tanto que, como veremos, suas figuras centrais são, muitas vezes, também
jornalistas e articulistas de renome, de forma que a relação com a imprensa é
percebida como componente indissociável de sua atividade.
A arquitetura institucional do que estamos chamando de “campo de
dominação simbólica” se reproduz numa estrutura tripartite. Sua dimensão de
maior grau de abstração e, ao menos aparentemente, de maior autonomia
relativa, é a produção da ciência hegemônica em universidades, think tanks e
centros de pesquisa. Em seguida, temos o pessoal com a “mão na massa”, os
operadores da “fabricação do consentimento” nas trincheiras do mercado e do
Estado. A seguir, em íntima relação com os operadores, a imprensa comercial e
o estabelecimento da opinião pública respeitável dominante em países como
Brasil e Estados Unidos. Esse é o desenho estrutural e institucional da indústria
de produção de violência simbólica e consentimento. Essa estrutura
institucional começa a ser produzida no começo do século XX como resposta à
questão premente do controle das massas pela elite capitalista.
No mundo inteiro, a partir da segunda metade do século XIX, ganha força a
interpretação da crescente reação política das classes populares contra a ordem
estabelecida como uma oposição do “caos” à “ordem”. Essa ideia havia se
tornado um tema central do pensamento conservador e elitista como reação à
entrada dos trabalhadores organizados na esfera pública e na cena política.
Predecessores da psicologia social, como os franceses Gustave Le Bon e Gabriel
Tarde, defendiam o caráter ilógico e irracional do pensamento humano, muito
especialmente das multidões e dos grandes grupos. O pensamento elitista dos
italianos Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto trabalhava com pressupostos
semelhantes.
Nos Estados Unidos, a figura central nesse contexto foi também um
intelectual – nesse caso, um “intelectual prático”, escritor e jornalista poderoso
e eminente –, conhecido conselheiro de presidentes e da elite funcional
americana do início do século XX: Walter Lippmann. Vemos nele a vinculação,
a partir daí indissociável, entre “elite funcional” e imprensa comercial.
Lippmann, antes um socialista, passou a defender a ideia de que uma
verdadeira democracia baseada na soberania popular era impossível. Por conta
disso, era necessário que uma casta de pessoas “educadas e responsáveis”
assumisse o controle da sociedade.
Mas Lippmann não ficou apenas na exortação da necessidade de o povo ser
guiado pelos mais “aptos e inteligentes”. Ele escreveu um dos livros mais
influentes do século XX no campo da psicologia social e da arte de “fabricar
consentimento”: The Public Opinion14 [Opinião pública], publicado em 1922.
Nessa obra, Lippmann analisa as razões da carência cognitiva da maioria das
pessoas e, portanto, a necessidade de serem conduzidas por uma elite
“esclarecida”. Ele defende que a maior parte da população é, por carência de
educação e raciocínio, guiada por “pseudoambientes” [pseudo-environments] e
por estereótipos, que são construções coladas à sua experiência prática e
cotidiana, ou seja, percepções fixas e imagéticas que guiam as ações das pessoas,
que as carregam ao longo da vida. O não acesso à educação e à crítica
consciente implica, portanto, a reprodução inconsciente dessas falsas
percepções do mundo, as quais, por seu conteúdo afetivo, provocam sempre
forte reação quando contestadas.
A obra de Lippmann vai ter extraordinário impacto sobre a ciência e a
filosofia americana e, por isso, também na dimensão mundial. São ideias muito
próximas às de Lippmann que permitiram Joseph Schumpeter, nos anos 1940,
desenvolver a ciência política pragmática ou “rea­lista” que se tornaria
hegemônica desde então.15 Como contraponto a ele, representando a ainda
então vigorosa tradição democrática radical americana, temos a obra de John
Dewey – considerado por muitos o grande filósofo americano do século XX –
que publica, em debate direto com Lipmmann, The Public and Its Problems16
[O público e seus problemas], advogando que o esclarecimento do público
depende de uma esfera pública plural e livre. Uma senda que, mais tarde, seria
trilhada por Jürgen Habermas.
Mas foi como “política prática” – como roteiro para a dominação elitista –
que suas ideias tiveram maior influência. Para Lippmann, o desenvolvimento
da nova psicologia e a descoberta das regras de funcionamento do inconsciente
e da mente humana abriam oportunidades inauditas para a condução do
“rebanho popular”, sobretudo por meio da manipulação de seus estereótipos
pela classe “esclarecida e responsável”. Quando o presidente americano
Woodrow Wilson se defronta com o desafio de convencer o povo americano –
até então profundamente pacifista – a entrar na Primeira Guerra Mundial,
contradizendo sua promessa de campanha, é Walter Lippmann quem o
aconselha a construir uma agência de propaganda para alcançar esse objetivo.
O extraordinário sucesso do Creel Committee (Committee on Public
Information [Comitê de Informação Pública]) – agência de propaganda do
governo Wilson, que em seis meses consegue transformar uma nação de
pacifistas em fanáticos belicistas – encanta a elite americana. Na base da
campanha, estava a manipulação do medo da população, alcançada por meio
de relatos mentirosos em filmes montados pela propaganda inglesa para
inspirar ódio aos alemães, retratados como assassinos de crianças e torturadores
impiedosos. Além disso, as grandes personalidades e os atores mais populares
da nascente Hollywood foram chamados para exortar o apoio do grande
público. A campanha teve tanto sucesso que as orquestras deixaram de tocar
Beethoven por medo de represálias. Pela primeira vez, o uso consciente da
propaganda como arma política havia mostrado que o povo poderia ser
manipulado a partir de cima, como marionetes.
Esse fato marca um histórico divisor de águas na forma como a dominação
social e política passará a ser exercida nos Estados Unidos e no mundo. A elite
econômica e política americana havia acabado de descobrir uma arma letal
contra seu principal inimigo doméstico: o próprio povo trabalhador. A partir
daí, o trabalho de dominação social utilizará cada vez menos a violência física e
policial – que geram revolta e descontentamento abertos – e cada vez mais a
violência simbólica da manipulação consciente dos medos e ansiedades do
público. Podemos testemunhar essa transformação fundamental, inclusive com
seu uso contra a população dos países colonizados pelo imperialismo informal
americano, na produção intelectual de apenas um indivíduo.
No Creel Committee de Wilson, trabalhava um jovem, na época com apenas
26 anos, que viria a desenvolver – como nenhum outro – o alcance prático das
ideias de Walter Lippmann. Edward Bernays, sobrinho de Sigmund Freud,
havia se acostumado desde a infância a ouvir histórias sobre a importância e o
poder da vida inconsciente – com suas ilusões, regressões e recalques. Ao
contrário do tio, preocupado em compreender a vida inconsciente para ampliar
o controle consciente do indivíduo sobre si mesmo, o sobrinho se encantava
com as possibilidades de manipulação dos inconscientes individual e coletivo
para a fundação de um novo ramo de negócios: o de conselheiro de relações
públicas de empresas e partidos políticos. Nascia a publicidade e a propaganda
modernas. Seu serviço prestado aos poderosos e endinheirados seria o que
Lippmann havia chamado de “fabricação do consentimento”.
Em seu primeiro livro de grande sucesso, intitulado Crystallizing Public
Opinion17 [Cristalização da opinião pública] e publicado apenas um ano
depois do livro clássico de Walter Lippmann, Bernays lança as bases de sua
nova ciência para a fabricação de consentimento entre as grandes massas. A
partir de sua experiência no Creel Committee, Bernays adapta os novos
métodos ao mundo dos negócios em geral. Para gerar respeitabilidade para a
nova “ciência”, o autor evoca conceitos das ciências naturais – como o da
“cristalização”, retirado da química, que faz parte do título do livro –, assim
como haviam feito vários outros pioneiros das ciências sociais antes dele.
Os trabalhos clássicos de psicologia social de Gustave Le Bon e Gabriel Tarde
são referências óbvias, e permitem antever a união do trabalho de relações
públicas de Bernays com o trabalho da imprensa como principal instância de
distribuição e divulgação do consentimento fabricado. Le Bon, que havia
conseguido extraordinário sucesso junto às elites ocidentais com seu livro The
Crowd: A Study of the Popular Mind18 [Psicologia das multidões], temia o efeito
deletério das multidões – ou seja, das massas populares – sobre as hierarquias
consagradas da “ordem social”. Para ele, como para Lippmann e todos os
fabricantes de consentimento, o pensamento das massas é ilógico, primitivo e
eivado de ilusões.
São essas ilusões que ele vê como instrumento no controle do “perigo
popular”. É preciso conhecê-las para guiá-las na direção certa e conveniente. É
ele o pioneiro da ideia que aponta a necessidade de uma “aristocracia
intelectual” para manipular as ilusões das massas num sentido adequado.
Gabriel Tarde, seu amigo, evoca a importância da imprensa e das agências de
informação como os canais adequados para a produção de um pensamento
homogêneo a ser imposto ao público. Essas são ideias seminais para Bernays e
para todas as relações públicas e os fabricantes de consentimento. Uma estreita
relação com a imprensa e com os canais de comunicação passa a ser um
pressuposto do sucesso na produção do consentimento. Mas nenhuma
influência é mais forte do que a de Walter Lippmann. Bernays chega a definir o
seu próprio trabalho como a “produção de novos estereótipos”, no sentido
definido por Lippmann.
A partir daí, Bernays coleciona um sucesso atrás do outro. Seus conselhos
agora se dirigem à nata da classe capitalista americana, que compreende
rapidamente sua eficácia. Afinal, as consequências de seu “desprezo” pelo
público e pelos trabalhadores – que era o sentimento de classe mais espontâneo
e nativo da elite, e implicava violenta repressão policial – havia sido a origem
do ódio público aberto contra os plutocratas. A elite endinheirada americana
aprende que é mais vantajoso atrair a simpatia das massas, antes odiadas e
desprezadas. O produto do desprezo era a luta de classes como uma ferida
aberta, greves e ódio do povo aos plutocratas, percebidos como inimigos. Assim
como haviam mudado de opinião sobre a guerra em tão pouco tempo, os
americanos também poderiam, pela manipulação de sua capacidade de reflexão
no contexto de uma esfera pública supostamente livre – que é o pressuposto
estrutural da produção do consentimento –, passar a amar os ricos que antes
odiavam.
Duas estratégias são construídas para esse fim. Primeiro, surge a ideia de que
a extrema riqueza de alguns poucos é uma coisa boa para todo mundo. Assim,
figuras odiadas como John D. Rockefeller se transformam da noite para o dia
em filantropos amados. Uma pequena parte das grandes fortunas passa a ser
utilizada para criação de fundações com nomes de bilionários e para
investimento em causas humanitárias. Na outra ponta, e com sucesso inaudito,
o cidadão é transformado em consumidor. Dessa forma, dadas certas
precondições, pode-se esvaziar todo o potencial emancipador e crítico de uma
população direcionando sistematicamente seus desejos de modo a fazê-los
coincidir com a oferta de bens materiais. A precondição principal é de que toda
a imprensa, toda a indústria cultural e de entretenimento, além das figuras mais
carismáticas e desejadas do público, ajam de modo unificado e concertado com
um único objetivo, sob a batuta do conselheiro de relações públicas.
Edward Bernays vai prefigurar, na sua pessoa individual, todo um ramo da
indústria da propaganda e das relações públicas que iria lograr posicionar o
capitalismo e sua produção de mercadorias na instância do desejo e das
aspirações inconscientes da população, primeiro nos Estados Unidos, e, depois,
no mundo. O objetivo aqui é o de transformar mercadorias materiais em
desejo, sonho, estilo de vida e esperança. Existe apenas um “caminho da
salvação” para o sucesso e para a boa vida – e o capital, o consumo, o luxo e o
dinheiro são a única “salvação real”. A ideia é fazer com que o sistema se
transforme: de mera forma específica de produção material, em uma verdadeira
religião civil, colonizando no nascedouro todos os sonhos e toda a pluralidade
da vida em favor da ortodoxia do consumo.
Edward Bernays vai mostrar o caminho como ninguém. Quando a maior
empresa americana da época do ramo alimentício, a Beech-Nut, contrata-o
para anunciar seu bacon, Bernays não vende apenas a marca. Ele quer
aumentar exponencialmente o mercado de bacon em geral. Percebendo o
poder e o prestígio da ciência antes de todo mundo, ele recobre o produto a ser
vendido com a aura do conhecimento científico. Bernays consegue que mais de
4 mil médicos em todo o país confirmem a necessidade de um café da manhã
vigoroso com ovos e bacon para iniciar bem o dia. Esse acontecimento cria, de
uma hora para outra, o mais típico café da manhã americano, e aumenta o
consumo de bacon não apenas para seu anunciante, mas para todos os
produtores.
Entrevistado sobre o sucesso de sua campanha, Bernays responde: “Mesmo
que você não goste de bacon, se o seu médico o aconselhar, você irá comer,
gostando ou não.” A partir daí, a classe médica se torna um suporte essencial
de campanhas publicitárias para os mais variados produtos, tenham ou não
relação verdadeira com a saúde dos pacientes. Outro grande sucesso de Bernays
mostra como o consumo é capaz de colonizar pautas libertárias e políticas. As
grandes companhias americanas de cigarro tinham um acesso muito limitado a
50% do seu potencial público consumidor: as mulheres.
O cigarro era visto como um hábito masculino, e as mulheres que fumavam
não eram bem-vistas socialmente. No espaço público, vigorava uma proibição
prática ao fumo feminino. A Tobacco Company, que produzia os cigarros
Lucky Strike, contrata Bernays para resolver o problema. Bernays se informa
com seguidores de seu tio, Freud, acerca do significado do cigarro para as
mulheres. Eles lhe dizem: “O cigarro é como um pênis, e toda mulher deseja
um pênis. Se você puder lhes dar um, mesmo que apenas simbólico, será um
grande sucesso.”19 Bernays tem a ideia então de associar o fumo feminino às
lutas das mulheres pelo sufrágio universal – em 1919, as mulheres americanas
passaram a se empenhar nessa luta. No dia do tradicional desfile de Páscoa de
Nova York, em 1929, Bernays decide convidar mulheres importantes e lhes
propor que participassem do evento usando os cigarros como meio de
propaganda para a causa sufragista, sem revelar que seu verdadeiro objetivo era
vender cigarros.
No dia do desfile, as mulheres mais importantes dos Estados Unidos
carregam os cigarros acesos que Bernays havia chamado de “tochas da
liberdade”, associando o uso do cigarro à luta pela liberdade feminina.20 Para
garantir o sucesso da iniciativa, Bernays convida todos os grandes fotógrafos
dos maiores jornais mundiais para testemunharem o evento. No dia seguinte,
todas as manchetes tratam do assunto – o prestigioso The New York Times lhe
dedica a primeira página, como se o caso se tratasse de uma questão política
real. Em poucas semanas, as salas de cinema de todo o país abrem salas de
fumo também para as mulheres, e a campanha se torna um sucesso estrondoso.
A relação com a imprensa se torna vital para a propaganda e para as relações
públicas corporativas ou partidárias. Bernays aluga uma suíte num grande hotel
de Nova York, onde recebe, praticamente todas as noites, as maiores figuras do
empresariado, do show business e da imprensa. Mas ele não “compra” a
imprensa simplesmente. Ele aprende que é mais eficaz “criar” a notícia, como
no caso das “tochas da liberdade”: uma única “ação” muda todo um
comportamento social antes rígido e tido como tabu. Um dos lemas de
Bernays é que as ações são mais importantes do que as palavras.
A atuação de Bernays mostra a todos que a propaganda pode conduzir a
opinião pública por meio de símbolos e ideias, do mesmo modo que um
comandante militar lidera seus soldados por meio de ordens. Como Walter
Lippmann havia imaginado, a propaganda bem construí­da pode criar
“estereótipos de comportamento” que guiam, de forma inconsciente e pré-
reflexiva – ou seja, sem defesa consciente possível –, o comportamento do
grande público. Pode-se tanto dizer o que se deve comer de manhã quanto
possibilitar que as aspirações políticas podem ser representadas e rebaixadas a
hábitos de consumo. Aqui, se prenuncia a capacidade antropofágica do
capitalismo de engolir e mastigar a crítica – originalmente direcionada contra
ele mesmo –, e digeri-la para depois cuspi-la sob a forma de novos hábitos de
consumo.
O capitalismo, muito especialmente o capitalismo americano, aprende que a
ciência, as ideias, a arte e a imaginação – as matérias-primas da esfera simbólica
– podem ser os aspectos principais para sua perpetuação e sua capacidade de
“convencimento” do público, até e principalmente dos que são
economicamente explorados por essa mesma ordem. Desde que atuando em
conjunto e de modo coordenado, a esfera simbólica das sociedades modernas
pode se tornar, ao mesmo tempo, uma fábrica de novos negócios e uma fábrica
de consentimento. Para esse fim, as etapas na cadeia produtiva de bens
simbólicos devem atuar em uníssono: 1) acima de tudo, pelo seu prestígio
herdado das antigas religiões, de decidir o que é verdade ou mentira e de
separar o justo do injusto, temos a “ciência” formando todas as elites mundiais
de acordo
com um paradigma veladamente racista – como veremos em detalhe – e
planetário; 2) logo abaixo, a indústria cultural e de entretenimento, Hollywood
e congêneres, criando os “estereótipos” do que devemos amar ou odiar, forjados
para serem assimilados de forma emocional, subliminar e acrítica; e, last but not
least, 3) a esfera da propaganda e da imprensa comercial colonizando os sonhos
e ansiedades do público, de modo a transformá-los em consumidores dóceis e
manipulados.
A ideia-força, que serve como fundamento implícito de toda essa estrutura
simbólica, era a velha ideia de Walter Lippmann de que as massas são inaptas a
pensar por si mesmas. Essa era uma ideia que ele professava com certa
melancolia e dor, como quem lamentasse que assim fosse. Bernays, nesse
sentido, não é apenas o pioneiro de uma nova espécie de capitalismo baseado
na produção do consentimento por meio da manipulação consciente, mas
também um novo tipo humano da “elite funcional” do capital. Ao contrário de
Lippmann, ele possui o cinismo típico de quem sabe exatamente o que faz, e
tem a vaidade perversa do trabalho de manipulação bem perpetrado.
Exatamente como o tipo social que passaremos encontrar, a partir de então,
tanto no mundo financeiro quanto no mundo político e no complexo
propaganda/imprensa: o “cínico blasé”.21
Também nesse aspecto Bernays é um pioneiro. Ele antecipa um habitus no
sentido de Pierre Bourdieu – ou seja, uma forma de ser, sentir e ver o mundo
de maneira peculiar e compartilhada –, que se tornaria o modo de ser
específico da nova elite funcional do capitalismo em todo o mundo. A “elite do
cinismo”, que irá comandar a política e os negócios americanos, encontra nesse
habitus compartilhado o segredo do perfeito entendimento que nem sequer
precisa ser mediado por palavras.
Isso fica claro no episódio que nos conta Stuart Ewen, estudioso da obra de
Bernays, na ocasião de uma entrevista pessoal com o já quase centenário
Bernays.22 A propósito de uma conversa banal sobre quão caro custavam os
táxis nos Estados Unidos, Bernays se vangloria do fato de haver explorado, por
anos a fio, um chofer a quem ele chamava de Dumb Jack (algo como João
Bobo em tradução livre), que começava a trabalhar às cinco da manhã e só
parava às nove da noite, com apenas meio dia de folga às quintas-feiras de
quinze em quinze dias. Bernays dizia, em tom de piada, que sempre via Dumb
Jack tirar uma soneca rápida, na cozinha, sentado na cadeira apoiando a cabeça
sobre a mão espalmada na mesa, depois do dia estafante levando o casal
Bernays para compromissos de trabalho e as filhas à escola. E isso tudo por
apenas 35 dólares por semana, muito mais barato do que se utilizasse táxis para
o serviço. Por conta disso, Bernays não havia nem sequer aprendido a dirigir.
Mas, como os fascistas de hoje, Bernays sempre falava de democracia em seus
discursos e entrevistas. Dizia, inclusive, que a fala que sempre inspirou seu
trabalho era a afirmação de Thomas Jefferson de que, na democracia, tudo
dependia do “consentimento do povo”. O problema era que Bernays via o
“povo” do mesmo jeito que via Dumb Jack: uma gentinha sem noção de coisa
alguma, destinada a consumir o mundo de “estereótipos”, aparência e
dissimulação que gente como Bernays lhe vendia, ou seja, o público do
“consentimento fabricado”. Bernays jogava com a ambiguidade da palavra
“consentimento” quando se referia a Jefferson, já que ele poderia significar
tanto o consenso produzido racionalmente, a partir de um esclarecimento
público baseado em argumentos, quanto o consenso produzido de modo
falacioso e manipulado. O processo para Bernays não era importante. Apenas o
resultado, a conformidade e a aceitação do consenso fabricado.
O que está por trás do consenso fabricado é a crença na desigualdade visceral
da humanidade, como se fosse inevitável uma hierarquia entre os espertos
manipuladores que mandam e os Dumb Jack que obedecem. Porém, o próprio
pressuposto de Bernays e de Walter Lippmann, da inevitabilidade da tolice das
massas, esconde uma falácia. É certo que um povo que não é estimulado a
pensar e a refletir com autonomia será presa fácil da manipulação de suas
próprias ilusões. Nem todo mundo nasce, como Bernays, num contexto
familiar em que se discute ciência psicanalítica de vanguarda na mesa do café
da manhã – na qual existe, portanto, desde o berço, estímulo ao pensamento
abstrato, à imaginação –, em que se forjam, de “modo natural”, mentes
especulativas. A naturalização de privilégios sociais desde a infância, que são
depois travestidos de “mérito pessoal”, é a base desse desprezo aos Dumb Jack.
Em sua longa vida, Bernays ainda teve tempo de prefigurar o modus operandi
dos golpes de Estado patrocinados pela CIA e pelo governo americano na
América Latina (e depois no mundo todo) a partir de então. Em 1951, o
presidente democraticamente eleito da Guatemala, Jacobo Arbenz, decide fazer
uma reforma agrária – ainda que prevendo o pagamento pelas terras
desapropriadas em benefício dos camponeses pobres e sem terras – e esbarra
em férrea oposição. A United Fruits, multinacional americana de frutas
tropicais, era dona de 75% das terras da Guatemala e contratou Edward
Bernays para construir uma campanha publicitária contra o Governo
Guatemalteco. Bernays se superou nesse trabalho. Usando uma lista de
jornalistas influentes ao redor de todo o país, construída nos quarenta anos
anteriores, ele montou um clima de guerra psicológica por meio do que ele
chamava de “mídia blitz”. A “mídia blitz” – uma citação explícita da
“Blitzkrieg” nazista – significava a construção de uma agência de notícias,
secretamente financiada pela United Fruits, com notícias para toda a imprensa
americana (de todos os lugares) sobre a suposta e falsa ameaça comunista na
Guatemala.
A guerra psicológica visava a associar, erroneamente, a reforma agrária de
Jacobo ao comunismo, se aproveitando do clima de “caça às bruxas” que havia
se instalado no país a partir do fim da Segunda Guerra Mundial. Vários dos
jornalistas municiados por Bernays se sentiram, depois, enganados por notícias
falsas e manipuladas. Era tarde demais para os guatemaltecos. Como resultado
da campanha difamatória, o governo americano decidiu intervir na Guatemala
e apoiar um golpe de Estado, com apoio da CIA, contra o governo eleito
democraticamente. Como resultado, Castilho Armas, uma marionete
americana, assume o poder e joga o antes pacífico país centro-americano numa
guerra civil que duraria 40 anos e custaria mais de 100 mil mortos. Depois
disso, não houve golpe de Estado na América Latina que não tenha contado
com o apoio efetivo ou tácito do governo americano.

III. DA PRODUÇÃO DO CONSENTIMENTO À CONSTRUÇÃO DA EXTREMA


DIREITA

A grande mudança social que leva ao esgotamento da estratégia de transformar


o cidadão em consumidor acontecerá a partir dos anos 1970. Essa década
marcou os anos de ouro da contracultura nos Estados Unidos que, no período,
desfrutava da melhor distribuição de renda de sua história. A situação se devia
a uma extraordinária conjunção de fatores, como a hegemonia do Partido
Democrata, o partido histórico do New Deal, e a uma atividade sindical ainda
muito significativa. Isso tudo aliado a uma série de novos movimentos sociais
que surgem com grande força, como a defesa do consumidor, a luta das
mulheres, a proteção do meio ambiente, a luta pelos direitos civis e a
mobilização contra a Guerra do Vietnã.
No entanto, nem todo mundo estava contente com essas transformações, em
especial o grande negócio corporativo americano, que se via acuado por
legislações crescentemente regulatórias e protetoras em relação tanto ao meio
ambiente quanto às condições de trabalho. Por último, mas não menos
importante, houve ainda um aumento na carga tributária sobre lucros e
herança. É nesse contexto que em 1971, Lewis Powell – advogado da grande
empresa de cigarros americana Phillip Morris e que mais tarde se tornaria juiz
da Suprema Corte pelas mãos de Richard Nixon – lança um memorando, hoje
famoso, dirigido à Câmara de Comércio americana. O documento de poucas
páginas causaria furor entre os grandes bilionários conservadores americanos.
É importante, primeiro, reconstruir o contexto do memorando de Powell. Na
época em que ele era diretor da Phillip Morris, entre 1964 e 1971, antes de ser
nomeado para a Suprema Corte, a relação entre o uso do fumo e o câncer se
tornou conhecida. Um amplo debate nacional se seguiu, com posições contra e
a favor do uso de cigarros. Powell, obviamente um ferrenho defensor da “causa”
de sua companhia, lamentava que os supostos “efeitos positivos” dos cigarros à
saúde não tivessem o mesmo espaço na esfera pública que o movimento
antitabagista estava começando a conquistar. Quando suas demandas legais não
são atendidas nos tribunais, ele passa a alegar a existência de uma ameaça
cultural difusa e total contra o capitalismo americano.
Powell conclama todo o mundo empresarial americano a nada mais nada
menos que uma “guerra” pela própria sobrevivência. O mais significativo ponto
do argumento de Powell é que ele não acusa a esquerda ou grupos radicais, mas
aquilo que havia se tornado a “opinião respeitável” americana. Ele afirma que a
cultura mainstream e hegemônica americana – aquela que se localiza nos campi
universitários, nos púlpitos das igrejas, na mídia dominante, na ciência, na
política e nas cortes jurídicas – está impregnada de um veneno progressista que
ameaça de morte o capitalismo americano. Como se trata de uma influência
difusa e generalizada, ela tem que ser combatida com a tenacidade militar e a
inteligência de uma “guerra de guerrilha”.
Como costuma acontecer com as ideias que chegam no momento certo para
interpretar interesses comuns ainda inarticulados, o memorando de Powell
eletrizou toda uma geração de bilionários reacionários – já filhos de pais
reacionários – a empreenderem uma guerra, primeiro de guerrilha e depois
aberta, contra o país igualitário e combativo de então. Sua mensagem chega aos
ouvidos especialmente receptivos dos herdeiros de indústrias sujas e poluentes,
como fabricantes de armas, produtos químicos, mineração e petróleo. Esses
setores, que terão lucros crescentes a partir de então devido a cortes de
impostos e à suspensão das pesadas multas por agressão ao meio ambiente,
serão os principais financiadores da “revolução reacionária” que passou a se
chamar, como sempre de forma cínica, de “libertarianismo”. Esse é o berço e o
nascedouro da atual extrema direita americana e mundial. Aqui se encontra a
origem de tudo, e, como se sabe desde Tocqueville a Freud, a origem permeia,
de modo indelével, o futuro.
Se Powell foi o autor do “manifesto comunista”, sendo, portanto, o Karl
Marx dos libertários reacionários americanos, ele logo encontrou os seus
“Lenins” para implementar sua revolução. Um deles foi Michel Joyce, que
havia estudado Antonio Gramsci para aprender estratégias de produção de
hegemonia cultural. A Joyce, tido por quem conhece seu trabalho como “uma
das pessoas obscuras mais importantes do século”,23 coube desenvolver a
estratégia principal da direita reacionária: converter a filantropia em arma
ideológica. De algum modo, isso já existia desde John D. Rockefeller, que
havia conseguido polir a própria imagem com doações importantes. Mas o que
temos agora, com Joyce, é um jogo de outro tipo.
Com o dinheiro da família Olin – fabricante de armas e munições que
enriqueceu a partir de encomendas estatais, e que havia sido obrigada a pagar
pesadas multas por contaminar com mercúrio o rio Niágara, em Nova York –,
Joyce vai construir uma ampla estratégia de luta ideo­lógica disfarçada, depois
copiada por outros herdeiros reacionários. Conhecendo o poder das ideias
quando elas se revestem de um verniz de “respeitabilidade” e “prestígio”, a ideia
de Joyce era conquistar terreno nas principais universidades americanas – as
universidades da assim chamada Ivy League, que são as de melhor reputação,
como Harvard, Yale, Cornell e Columbia. Essa abordagem foi chamada de
“estratégia ponta de praia” [beachhead], em alusão à tática militar de conquistar
um pedaço de terra inicial que possa servir de suporte para uma invasão maciça
mais tarde.24
Como se imaginava que as universidades fossem a fonte do “conhecimento
de esquerda” ou “liberal” – no sentido americano, essa palavra, ao contrário do
Brasil, identifica alguém de posição social-democrata e de esquerda –, a ideia
era inicialmente cooptar professores já conhecidos como conservadores e
reacionários, e municiá-los com muito dinheiro para a propaganda reacionária
dentro das próprias universidades. Isso daria a impressão de uma atividade
acadêmica “espontânea”, não comandada de fora.
Com o tempo, a partir da “ponta de praia” conquistada, ia-se avançando até
o controle de departamentos e campos de pesquisa inteiros. Com o apoio das
universidades e de seu prestígio, abria-se o caminho para a “criação de think
tanks” e “institutos de políticas públicas” que, então, influenciavam
diretamente o governo e a opinião pública. Joyce prenuncia, como estamos
vendo, toda a estratégia de intervenção cultural da extrema direita de hoje no
mundo inteiro.
A estratégia da “ponta de praia” significa que, para que possam ter sucesso na
“guerra das ideias”, os interesses reacionários não podem se mostrar enquanto
tais, ou seja, defensores do atraso e da tirania. De maneira oposta, precisam
parecer “ideias neutras”, que devem ser assimiladas pelo princípio da
pluralidade universitária e do debate público. Alguns exemplos ilustram bem o
sucesso e o modus operandi dessa estratégia.
Um programa inteiro de estudos jurídicos foi idealizado para desviar o estudo
do Direito da sua relação com a justiça social e aproximá-lo, ao contrário, das
relações custo/benefício do mercado. Esse modelo foi chamado de Law and
Economics [Análise Econômica do Direito – AED], e ainda ganhou
credibilidade adicional com a ideia positiva da interdisciplinaridade. Foram
investidos, só através da Fundação Olin, 68 milhões de dólares em
universidades como Harvard, Yale, Columbia e Cornell. Só Harvard recebeu
18 milhões. A partir do sucesso da operação em seus campi, outras
universidades seguiram o modelo.25
Porém, Law and Economics não se tornou apenas um novo campo de
estudos, com dinheiro jorrando sem parar nas universidades mais tradicionais
dos Estados Unidos. Ele passou também a ser debatido pelos juízes americanos
em seminários de vários dias ou semanas, seguidos por grandes jantares,
normalmente em praias aprazíveis como Key Largo, na Flórida. Com o tempo,
os debates sobre Law and Economics se tornaram férias não pagas de, pelo
menos, 660 juízes americanos – ou o equivalente a 40% do poder judiciário
daquele país. A forma de enxergar a prática da justiça e do Direito começava a
ser atualizada a partir de dentro, isto é, de acordo com o interesse das
corporações e custeada por elas. Mas dando a todos a impressão, no entanto,
de que se estava lidando com uma “reflexão espontânea da academia”. Juízes
que se tornariam ministros da Suprema Corte, como Ruth Bader e Clarence
Thomas, eram figurinhas carimbadas desses encontros.26
Os exemplos de casos de sucesso de mudança de paradigma, primeiro na
ciência e depois na esfera das políticas públicas, são inúmeros. Utilizando-se do
mesmo procedimento e das mesmas fontes de financiamento, o livro Losing
Ground: American Social Policy, 1950–198027 [Perdendo terreno: a política
social americana, 1950–1980], de Charles Murray, considerado um dos livros
mais influentes do século XX, reportava, como se fosse um lamento sincero, o
fracasso da política social americana entre 1950 e 1980. Murray lamentava que
os esforços do Estado de bem-estar americano houvessem criado tão somente
uma “cultura da dependência do pobre” dos favores estatais – o mesmo tipo de
argumento que seria usado no Brasil anos depois, combatendo o Bolsa Família.
Reagan não chegou a se comover com a leitura. Clinton, ao contrário,
considerou o livro “essencialmente correto”, assim como vários políticos da
esquerda brasileira consideraram à época, “essencialmente correto” o trabalho
sujo do juiz Moro.
Samuel Huntington, um dos mais conhecidos cientistas políticos americanos
do século XX, também foi beneficiado pelo mesmo dinheiro. Ele recebeu 8,4
milhões de dólares apenas da Fundação Olin, a cargo de Joyce, para defender
uma versão especialmente militarizada e agressiva da política externa
americana. O seu best-seller O choque de civilizações, já citado, é um exemplo
desse ponto de vista, influenciando globalmente o debate das relações
internacionais. Entre os 88 pupilos que trabalhavam com ele no programa
financiado pela Fundação Olin, cerca de 56 passaram a ensinar, em seguida,
em importantes universidades e grandes centros de pesquisa.28
Mas, provavelmente, entre os que atenderam ao chamado de Lewis Powell,
ninguém foi mais longe que os irmãos Koch. Também filhos de um pai
conservador – que apoiou os esforços de Hitler, por quem nutria admiração, na
construção de sua infraestrutura petrolífera –, os Koch herdaram um complexo
petrolífero e químico que se tornou rapidamente o maior poluidor individual
dos Estados Unidos. Nenhuma empresa produzia tanto lixo tóxico quanto suas
companhias. Pesadas multas foram o preço inicial de seus desmandos. Os Koch
também foram pegos roubando petróleo de terras indígenas. Eles viam leis e
regulamentos unicamente como empecilhos à “livre iniciativa”, e decidiram
investir pesado para defender essa visão.
Charles Koch era engenheiro de formação, e imaginou uma “linha de
produção” para propagar as ideias “libertárias” de Hayek, as quais respeitava
desde jovem, e outras ideologias em seu benefício. Primeiro, era necessário ter a
“matéria-prima”: as ideias dos intelectuais que se mostrassem úteis. Em
segundo lugar, vinham os investimentos em think tanks, que transformavam
essas ideias em políticas públicas concretas e em projetos de leis. Em terceiro
lugar, finalmente, vinham os “movimentos sociais” e associações de cidadãos,
na verdade pagos por ele, para pressionar a mudança de leis e a condução da
política. Foi criada toda uma linha de montagem supostamente “libertária”,
mas, na realidade, a mais reacionária de todas. Para os Koch, o planejamento
era fundamental. E a linguagem a ser usada era a dos “direitos”, dos direitos
corporativos, evidentemente. Primeiro, vinha, portanto, a ideologia, e só
depois as eleições e a compra direta da política.
A negação do aquecimento global será uma de suas bandeiras principais,
tema essencial para o grupo Koch Industries, que se tornaria o segundo maior
produtor americano de carvão, petróleo, Lycra, carpetes e produtos químicos.
Think tanks e associações de cidadãos financiadas por esse conglomerado
ganham nomes de fachada que lembram a tradição comunitária americana, a
mesma tradição de todos os institutos e organizações reacionários que possuem
nomes como Americans for Prosperity [Americanos pela Prosperidade – AFP]
ou Citizens United [Cidadãos Unidos], a real inspiração para falsos
movimentos populares como o MBL no Brasil – aliás, também diretamente
financiado pelos Koch – anos mais tarde.
Os pontos de vista que não podiam ser transmitidos democraticamente
precisavam ser embalados no seu contrário para que se pudesse promover uma
“mudança de visão”. Os Koch passaram a financiar regiamente qualquer
esforço com possibilidade de sucesso em desmantelar a legislação protetora do
meio ambiente nos Estados Unidos. Combinado a esses esforços, seguia o
financiamento de grupos de pressão de “cidadãos” e do mais bem aparelhado
escritório de lobby de Washington. Por fim, eles passaram a ser um dos maiores
doadores para as campanhas republicanas no país, tendo logrado mudar as
bandeiras partidárias clássicas de acordo com seu interesse. Mais de uma
centena de deputados que deviam sua eleição ao apoio maciço dos Koch se
comprometeram com ele a lutar contra as políticas de proteção ao meio
ambiente. Uma bancada como a que tinha Eduardo Cunha, na época das
pautas bombas contra Dilma Rousseff.
O sucesso dos Koch em acabar com a regulação do meio ambiente e com
impostos sobre a indústria petrolífera foi tal que seu conglomerado é tido como
o mais lucrativo da economia americana. Somada, a fortuna dos irmãos
ultrapassa os 100 bilhões de dólares – e a curva é ascendente. Os Koch são o
melhor exemplo de como bilionários inescrupulosos podem comprar a política
e impor a defesa de seus interesses privados. Em um raciocínio cínico, não
existe melhor negócio do que “comprar a política”, e os lucros estratosféricos
dos Koch são a melhor prova disso. Talvez ninguém tenha feito tanto para
mudar o Partido Republicano por dentro – trocando a agenda conservadora
clássica pelo “libertarianismo reacionário” – quanto os irmãos Koch. Os Koch
chegam à disputa de 2016 pela Presidência americana com o dobro do
dinheiro que haviam investido na eleição de 2012. A soma chegava a mais de
800 milhões de dólares do bolso deles e de mais de 500 investidores que agora
apostavam também nas delícias do “libertarianismo”.
Quando chega a eleição de 2016, todos os candidatos republicanos à
Presidência, com exceção de Trump, estavam no bolso dos Koch. Segundo
Steve Bannon – chefe e principal articulador da campanha de Trump, e depois
um de seus auxiliares mais próximos, até perder visibilidade –, ninguém teria
sido mais importante para o sucesso da “revolução trumpiana” do que Robert
Mercer, inclusive, mais do que os Koch. Veremos mais tarde que, ainda assim,
os Koch parecem ter ficado com as melhores cartas no governo de Trump. De
fato, depois do envolvimento de Paul Manafort, seu chefe de campanha
anterior, com os oligarcas russos e ucranianos que estariam supostamente
alimentando a campanha com dinheiro, Trump foi obrigado a demiti-lo sem
ter um plano B.
Foi aí que Rebekah Mercer – filha do coCEO de um grande hedge fund [fundo
de cobertura] e multimilionário Robert Mercer – entrou em cena. Ela
contactou Trump e disse que queria apoiar sua campanha. Ela e o pai podiam,
inclusive, montar toda uma nova equipe de campanha encabeçada por Steve
Bannon. A partir daí, a equipe dos Mercer irá comandar a campanha de
Trump. Esse ponto é fundamental, posto que aqui temos a semente, também,
da campanha brasileira de Bolsonaro. Com Bannon, os Mercer geriam a
máquina política mais à extrema direita de todo o espectro da direita
conservadora e reacionária americana. Eles haviam se encantado anos antes
com um amigo de Bannon: Andrew Breitbart, um ultraconservador que tinha
a intenção de atacar o solo da mídia tradicional – baseada em reportagens
fáticas e comprovadas – e de fundar uma fonte alternativa de informação à
extrema direita, baseada no uso volitivo e consciente de fake news e
desinformação como forma de difundir sua visão de sociedade. O modelo
típico de gente como Allan dos Santos, mais tarde.
Os Mercer injetaram dinheiro no site Breitbart News, mas Andrew morreu
logo depois. Foi aí que Steve Bannon, antes um operador de hedge funds,
assumiu o controle da empreitada e tornou o Breitbart News um mecanismo
difusor de racismo e nacionalismo econômico, transformando e radicalizando o
cenário da direita americana tradicional e da sua versão libertária mais
extremista. É com Steve Bannon que os Mercer encontraram formas de
influenciar decisiva e concretamente a política americana. A aliança aqui é
entre o dinheiro de Robert Mercer – cerca de 1 bilhão de dólares de
patrimônio e lucro líquido de 150 milhões de dólares anuais – e as ideias de
Steve Bannon. Eles não apenas odiavam o Estado e sua tarefa de proteger a
sociedade, sobretudo quando interferiam nos lucros das suas empresas, como
no caso dos irmãos Koch. Os Mercer e Bannon odiavam também os pobres e
os que viviam da ajuda do Estado, além de serem abertamente racistas. O site
Breitbart News tinha um quadro permanente chamado “Black Crime” [Crime
negro], destinado a angariar o apoio das hostes racistas e supremacistas
americanas.
Os Mercer aparelharam os mecanismos de intervenção política a partir do
comando de Steve Bannon. É com ele que as visões radicais dos Mercer passam
a ganhar efetividade. Sob a direção de Bannon, os Mercer haviam criado
também o Government Accountability Institute [Instituto de Prestação de
Contas do Governo], seguindo esse esquema clássico de forjar nomes que
evocam as virtudes morais que, no entanto, são exatamente as que se quer
destruir. Esse instituto basicamente serviu para reunir todas as alegações contra
os Clinton e depois expô-las sob a forma de livro, artigos de jornal e até filmes
lançados em Cannes. Foi um extraordinário sucesso no jogo sujo de Bannon,
que comprometeu a eleição de Hillary e permitiu pintá-la como a “crooked
Hillary” [Hillary corrupta]. O outro mecanismo institucional à disposição de
Bannon foi a famigerada Cambridge Analytica, acusada de, em trabalho
conjunto com o Facebook, ter acessado, para fins eleitorais, os dados pessoais
de 87 milhões de pessoas – sem o seu consentimento – para mobilizá-las com
mentiras e desinformação em favor do Brexit.
Coube a Bannon, portanto, radicalizar o discurso de ódio ao Estado
interventor com o componente racista para criar uma outra forma de
populismo. Para esse fim, ele se utilizou do potencial mobilizador do discurso
racista, mascarando-o como defesa nacional e luta contra as elites. O ponto
distintivo da influência de Steve Bannon foi articular todo o pacote de ideias
conservadoras, que vinham ganhando ímpeto desde os anos 1970, sob a forma
de um verdadeiro “populismo de direita” – uma suposta revolta popular contra
a corrupção das elites do “neoliberalismo progressista” e do caos que ele
provoca. Bannon quer ganhar o coração do povo americano! Daí que vem sua
ligação posterior com o bolsonarismo, e a construção de um populismo de
extrema direita também no Brasil.
Para esse propósito, ele conseguiu articular dois elementos, aparentemente
sem relação necessária: a insatisfação popular, causada por décadas de
empobrecimento de dois terços da população americana – cuja renda passa a
ser drenada por mecanismos financeiros opacos para a elite –, e o profundo,
secular e apenas superficialmente reprimido racismo de grandes parcelas do
povo americano. O trabalho anterior de “guerra de ideias” e de destruição da
maior pluralidade da mídia, acoplado à destruição de sindicatos e associações
populares, havia deixado a maioria da população órfã de uma explicação acerca
das causas de sua pobreza e de seu desespero crescentes.
Essa revolução reacionária a partir de cima se aproveitou do grande boom de
privatização das televisões públicas e engajadas em jornalismo investigativo que
se instaura a partir dos anos 1990. Rupert Murdoch é o melhor símbolo dessa
estratégia de dominar a mídia mundial em um nível que apenas as ideias que
interessam às elites dominem, a partir de agora, a assim chamada grande
imprensa. No Brasil, a Rede Globo – e seu braço jornalístico GloboNews –
evidencia o funcionamento dessa estratégia. Ainda que o discurso editorial
tenha se distanciado do bolsonarismo e da extrema direita, sua pregação é
monotemática e sem contraponto crítico: a exemplo da defesa de uma dívida
pública não auditada – fraudulenta, uma vez que, se não o fosse, se auditaria –
e da venda de juros estratosféricos como se fosse um escudo do cidadão contra
a inflação.
O mesmo movimento ocorreu nos Estados Unidos, em países europeus de
modo parcial e, pode-se dizer, no mundo todo. Essa “feudalizacão da esfera
pública”, como diria Habermas,29 foi um pressuposto fundamental para a
ascensão da extrema direita. Como toda informação é necessariamente
mediatizada, o domínio da mídia e a difusão de informações seletivas são o
pressuposto principal para impedir a reflexão e a inteligência da sociedade
como um todo. Sem pluralidade de opiniões, os cidadãos podem ser
manipulados com facilidade.
Nesse contexto de desinformação e enfraquecimento do espírito crítico,
Bannon passou a usar as antigas – e apenas reprimidas – clivagens raciais para
atacar o próprio discurso multicultural e as defesas das minorias sob a bandeira
do “neoliberalismo progressista”, insinuando que essas eram as causas da
decadência econômica popular. Como o capitalismo financeiro e improdutivo
vive dos monopólios estatais para fabricar dívida pública e mecanismos
financeiros fraudulentos – o que implica empobrecimento geral da população
trabalhadora e crise fiscal no Estado –, a legitimação política desse arranjo se
divide em duas opções: neoliberalismo identitário,30 defendido primeiro pelo
Partido Democrata americano e depois ganhando o mundo; e a extrema direita
dominando o Partido Republicano e, depois, também ganhando o mundo. A
tese deste livro – de que tudo começa nos Estados Unidos – se comprova mais
uma vez.
Ao identificar a imprensa tradicional como veículo dessas elites, o capitalismo
financeiro pavimenta também o caminho para o desaparecimento da própria
separação entre verdade e mentira no espaço público, preparando o terreno
para a difusão massiva de fake news a um público que não sabe mais o que é
factual ou não. Verdadeira será a “notícia” que alcançar o maior número de
compartilhamentos no WhatsApp e curtidas no Facebook, permitindo que as
questões centrais do debate público sejam resolvidas por quem tem mais
dinheiro para disseminar seu discurso.
Transformar os republicanos – conhecidos anteriormente pela defesa tenaz do
livre comércio – em nacionalistas econômicos foi outra parte fundamental da
estratégia populista. Podia-se manipular à vontade os bodes expiatórios, por
definição intercambiáveis – negros, muçulmanos ou mexicanos –, permitindo a
rearticulação e a revivescência das clivagens racistas como um todo e, ao
mesmo tempo, usá-las para explicar a pobreza crescente, atribuindo-a a causas
externas. Na dimensão pragmática, o governo Trump pôde se utilizar de uma
política externa agressiva, em benefício dos conglomerados industriais da base
do apoio republicano, como se isso fosse uma prestação de contas ao “povo
americano” – para “tornar a América grande de novo”.
Nesse sentido, a influência dos Koch e de seus amigos no governo Trump
parece muito maior do que a dos Mercer, que o ajudaram a vencer. Trump
nutre óbvia antipatia pessoal por Robert Mercer, a quem considera um tipo
“maluco”, conhecido por mal falar uma palavra durante todo um jantar ou
uma reunião, e gostar mais de gatos do que de gente. Apesar de os Koch terem
divergências em relação a Trump, como na questão do fechamento de
fronteiras – uma vez que que eles gostam da mão de obra barata que a
imigração possibilita –, boa parte das políticas interna e externa de Trump
parece feita com precisão de alfaiate para atender aos interesses de Koch e de
seus amigos.
A versão de extrema direita de Bannon e Trump significa, portanto, a
revivescência do racismo arcaico, possibilitando seu uso como arma política e
combustível de arregimentação popular. A “maioria silenciosa”, oprimida sem
ter consciência das causas de sua opressão, pode ser manipulada a partir de
cima, como marionetes. Foi essa coincidência de fatores que fez a campanha de
Bolsonaro, articulada por esse mesmo pessoal, tão eficaz. Na sua feição clássica,
o debate público das questões políticas envolve o embate de posições
conflitantes que se assumem como perspectivas distintas acerca de um contexto
valorativo e simbólico compartilhado. A mentira deliberada corrói por dentro
os pressupostos do debate público racional.
Todavia, é bom lembrar que a mentira é uma arma de guerra utilizada não só
contra o inimigo de ocasião, mas com o fim de adoecer a sociedade como um
todo, levando-a a um estado de guerra latente e a quebrar todos os acordos
morais implícitos sobre os quais se apoia a vida social. A disputa política passa
a ser pensada como um jogo de tudo ou nada, no qual só o que interessa é
vencer a qualquer custo. Essa terra de ninguém reinstitui a barbárie como
modelo, bem ao modo da inspiração nazista e fascista de toda extrema direita
moderna. Ao fim e ao cabo, Hitler continua bem vivo. O interesse da extrema
direita é destruir todos os consensos civilizatórios que demoraram milênios
para serem construídos – como a defesa da preservação da vida, a separação
entre verdade e mentira, a distinção entre o justo e o injusto, a defesa dos
vulneráveis, a noção de direitos individuais, a possibilidade de se escolher a
vida que se quer levar etc. A confusão total da sociedade é benéfica para o lucro
desmedido e sem controle, uma vez que impede qualquer defesa articulada.
A condução abusiva das redes sociais contra os próprios usuários indefesos
nos permite compreender como as “crenças privadas” da população, a partir de
suas trocas com amigos e familiares, poderiam ser usadas para manipular e
influenciar seu comportamento político, fabricando um conteúdo ajustado
com precisão aos seus medos e ódios. Tanto na campanha de Trump quanto no
Brexit e na campanha de Bolsonaro, a intenção era manipular o ódio e o
ressentimento dos perdedores do neoliberalismo, mascarando suas causas
objetivas e se atendo à satisfação primária das ansiedades e dos medos que o
empobrecimento e o desemprego geravam. Trump utilizava um expediente que
seria depois adotado por Bolsonaro em muitas ocasiões: o ataque ao opositor
assumia a forma de um ataque abstrato e genérico à “elite” no poder, como se o
próprio Trump não fizesse parte dela.
Sua trajetória fora da política foi um trunfo nesse sentido. Ele, um
empresário de sucesso, teria entrado na política apenas para “limpá-la” da
corrupção sistêmica. Como não lembrar da bravata bolsonarista do dia 26 de
maio de 2019, em que ele pediu “ajuda” ao seu público e às milícias para sair às
ruas para “lutar contra o sistema”? Bolsonaro, apesar de ser político do baixo
clero há mais de 20 anos, usou sua própria obscuridade para posar como
“alguém fora do sistema”. Vemos aqui o clássico viés antielitista dos
movimentos dos trabalhadores, utilizado agora contra os próprios
trabalhadores para lhes dar a impressão de que encontraram um líder e um
defensor poderoso de suas causas.
Obviamente, ninguém define quem é parte desse “sistema” nem quem faz
parte dessa “elite sistêmica”, que passa a ser associada apenas ao opositor
político de ocasião – como o ministro Alexandre de Moraes ou qualquer outro.
Em seguida, passa a ser decisivo o uso das bandeiras “progressistas” no campo
do reconhecimento das minorias sociais, típico do neoliberalismo progressista,
contra ele mesmo. Tudo como se tivessem sido essas políticas compensatórias a
causa última e indiscutível da pobreza e do desemprego crescentes. Sendo que,
como hoje sabemos, o neoliberalismo identitário é apenas uma outra farsa que
se utiliza da linguagem emancipatória – tradição do antigo Partido Democrata
do New Deal – para defender a ascensão individual dos indivíduos mais
“capazes” das minorias, ou seja, o 1% dos oprimidos do qual fala Nancy
Fraser,31 justificando e legitimando a meritocracia e, portanto, o sistema
espoliador financeiro como um todo. Sem nunca nomear a verdadeira razão do
empobrecimento geral e do ressentimento que ele provoca, todos os
preconceitos adormecidos são utilizados para disseminar uma guerra de todos
contra todos. Com base nisso, algumas tosses eventuais de Hillary Clinton em
público foram transformadas na prova de sua saúde precária e de sua
“fragilidade” feminina, despertando o sexismo e a misoginia que haviam sido
cuidadosamente abafados em amplos setores sociais.
O racismo de triste memória nos Estados Unidos também foi reacendido por
Trump, por exemplo, ao acusar Obama de não ter nascido no país – algo
jamais trazido à baila com nenhum dos outros presidentes brancos no poder.
Obama foi obrigado à humilhação pública de apresentar sua certidão de
nascimento. Também, por conta do nome, foi acusado de ser muçulmano. O
ódio racial contra o negro, o mexicano, o muçulmano passa a ser a causa visível
do infortúnio do trabalhador branco americano empobrecido e desempregado.
A estratégia agora é preservar, no campo da distribuição, a expropriação
neoliberal, mas dessa vez culpando o próprio “progressismo” pela inclusão –
mesmo que seletiva e superficial, das minorias e do multiculturalismo –, como
se ela fosse a responsável pela pobreza e desemprego.
O racismo, que canaliza um ódio sem direção a pessoas e grupos já
estigmatizados, permite a constelação sadomasoquista de todo regime
autoritário. De um lado, a idealização e a identificação com o opressor fazem
com que as pessoas que, na realidade, se sentem desprotegidas e fracas, se vejam
como fortes e temíveis. Por outro lado, a possibilidade de atacar os mais frágeis
sem medo de retorno lhes permite “compensar” a sensação real de impotência
em relação ao mundo. Daí o uso e a revivescência da tradição racista secular
que havia sido reprimida e mascarada. O estigma tem que ser aceito e
compartilhado socialmente para gerar seus subprodutos políticos.
Como no caso da eleição brasileira mais tarde, as questões públicas que
concernem a todos foram cuidadosamente substituídas por agressões pessoais
que pudessem se transformar num canal de expressão e dar vazão a ódios e
ressentimentos privados. A busca por bodes expiatórios, substituindo a
discussão racional das questões públicas, é um dos componentes que mais
aproximam a nova política de mentira institucionalizada dos casos clássicos de
fascismo. O meio de acesso à psique individual mudou. Ele agora se localiza na
internet, e cria bolhas anônimas que passam a definir a política sem qualquer
controle.
Ninguém controla o mau uso da internet para fins de manipulação política.
São empresas privadas “americanas” – não nos esqueçamos nunca – de um
novo tipo, que se associam com o fito de lucro para enganar e manipular seus
usuários. Alguns conteúdos são mostrados, enquanto outros são escondidos do
leitor com o uso de algoritmos contra os quais não existe qualquer controle
eficiente.32 As redes sociais representam um perigo imediato à democracia: são
todas empresas privadas que se associam ao governo americano e às
universidades americanas para testar seu uso e sua influência como recurso
manipulativo. Como diz Edward Snowden, que sabia do que estava falando –
no papel de insider –, todas equivalem à CIA com outro nome. Seu uso se
impõe a cada um de nós e, ao mesmo tempo, nos tornamos reféns delas. As
redes sociais representam o segundo grande ataque orquestrado à esfera pública
política desde os anos 1960. O primeiro momento foi o enfraquecimento das
organizações dos trabalhadores, capazes de oferecer uma leitura distinta dos
acontecimentos sociais, e a privatização planetária da grande imprensa
tradicional.
Agora temos a “privatização da política” em dois sentidos: primeiro, o uso
dos dados privados dos usuários depende do dinheiro de quem quer comprá-
los com fins políticos; em segundo lugar, é a vida privada, profanada e vendida
ilegalmente o que permite a manipulação de propaganda política da “guerra
privada” entre as pessoas. A vida pública como espaço de interação cede lugar à
performance virtual dos fantasmas psíquicos e psicossociais de cada um. Toda a
concepção de política que conhecemos se transforma e perde valor. Ao
contrário de um espaço de interação, encontro e troca de experiências do
mundo vivido nas ruas, nos protestos de rua, temos agora o solipsismo virtual,
que não gera aprendizados e nos aprisiona nas bolhas de ódio. As ruas, agora,
pertencem à extrema direita.
É como se os dois acontecimentos tivessem sido coordenados. Primeiro, se
empobrece a esfera pública como espaço de debate e confronto de opiniões
contrárias – à medida que se ataca e se desapossa a maioria da população do
acesso ao aprendizado público e a informações isentas. Em seguida, o mundo
assim privatizado dos indivíduos é exposto a uma segunda e definitiva
desapropriação: ele é reduzido à mercadoria vendável para fins de manipulação.
As angústias do indivíduo isolado são direcionadas contra seus melhores
interesses. Afinal, é a sua própria compreensão fragmentada do mundo que
permite a espoliação permanente de suas carências e necessidades.

11. Leo Panitch e Sam Gindin, The Making of Global Capitalism, 2013.
12. Ibidem.
13. Ibidem.
14. Walter Lipmann, The Public Opinion, 2015.
15. Joseph Schumpeter, Capitalism, Socialism, Democracy, 2018.
16. John Dewey, The Public and Its Problems, 2016.
17. Edward Bernays, Crystallizing Public Opinion, 2018.
18. Gustave Le Bon, The Crowd, 2009.
19. Stuart Ewen apud Edward Bernays, op. cit., 2018.
20. Ibidem.
21. Ver Georg Simmel, “O dinheiro na cultura moderna”, 2005.
22. Ibidem.
23. Jane Mayer, Dark Money, 2016.
24. Ibidem.
25. Ibidem.
26. Ibidem.
27. Charles Murray, Losing Ground, 1984.
28. Ibidem.
29. Jürgen Habermas, Der Strukturwandel der Öffentlichkeit, 1975.
30. Nancy Fraser, The Old Is Dying and the New Cannot Be Born, 2019.
31. Ibidem.
32. Eu mesmo, como autor, não pude mostrar a capa da segunda edição de meu livro A elite do
atraso no Facebook. Ao clicar em “publicar”, o conteúdo era imediatamente rejeitado e nunca
chegava a ser publicado. O episódio foi fartamente documentado e discutido entre os meus amigos
do portal. Esse é, por óbvio, apenas um pequeno exemplo de algo que ocorreu na minha esfera
pessoal.
2. AS RAÍZES HISTÓRICAS DA EXTREMA DIREITA NO BRASIL

I. A CONSTRUÇÃO DO PACTO ANTIPOPULAR E O FALSO MORALISMO DA


CORRUPÇÃO

Vimos acima que a “nova extrema direita” – de extração agora americana e não
mais europeia – serviu como uma luva para funcionalizar a raiva da classe
trabalhadora contra a pobreza relativa e a decadência social, às quais se tornou
submetida pela expropriação neoliberal e financeira. Na verdade, como a
expropriação econômica foi acompanhada da privatização da mídia – e,
portanto, da esfera pública que deveria servir para garantir a produção de
consensos democráticos – para tornar invisíveis as verdadeiras causas do
empobrecimento geral, inventou-se uma guerra entre os pobres. Tanto nos
Estados Unidos quanto no Brasil, uma guerra do branco pobre (ou do negro
que quer “embranquecer”) contra os negros, os imigrantes, os marginalizados
etc., contra o “sistema” – definidos de modo abstrato, de modo a identificá-los
como os próprios inimigos da extrema direita.
A extrema direita cria a falsa impressão de expressar a rebeldia popular. Por
conta disso, no Brasil, desde 2013, temos as demonstrações de rua como um
espaço da direita e não mais da esquerda como havia sido, quase sempre, o
caso. A vitória do capital desregulado se torna completa quando sua visão de
mundo passa a expressar a revolta dos oprimidos que desconhecem os motivos
reais de sua opressão. Com isso, você cria um eleitorado cativo que, apesar de
não conseguir nenhuma mudança real, vive a violência da extrema direita
como expressão de suas angústias e ressentimentos diários. Para quem não tem
nada, isso é muito. Gera sentimento de pertencimento ligado a algo
importante e decisivo, fazendo brilhar uma vida empobrecida e sem
perspectivas em todas as dimensões. Mais ainda que os Estados Unidos, o
Brasil oferece um terreno fértil para esse tipo de política do ódio. O decisivo
aqui é manter a crença na virtude inata dos mais ricos e na meritocracia, e
estigmatizar e culpar os marginalizados e excluídos.
É interessante observar que a novidade de Bolsonaro foi abrir uma caixa de
Pandora que já existia, em silêncio, entre nós. Daí o sucesso retumbante que o
levou à Presidência. Por conta disso, é decisivo compreender os sentimentos e
ansiedades que preexistiam a ele e vão continuar a existir mesmo sem ele.
Bolsonaro não agiu no vazio. Ele acordou ideias e sentimentos adormecidos
que vieram para ficar. Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, essas ideias e
sentimentos seculares são todos derivados do racismo primordial contra os
negros escravizados e seus descendentes. Tem gente que se incomoda quando
dizemos que todos os nossos males se devem, ao fim e ao cabo, ao racismo.
Afinal, pensam muitos, nem tudo é racismo. Essa crença tem a ver com uma
percepção superficial do racismo “racial” que não leva em conta suas máscaras
culturais inventadas para continuar vivo fingindo que morreu.
Para isso, o caminho brasileiro para a permanência do racismo é ainda mais
insidioso que o americano. Como os americanos optaram por um racismo
explícito, condenando os negros a guetos, a resistência ao racismo foi
construída pela luta diária vivida e experienciada por todos os oprimidos. No
Brasil, como já discuti em detalhe em outro livro,33 foi construído um
“racismo cordial”, que finge não ser racista. Não é à toa que a construção do
racismo cordial tenha se dado exatamente nas décadas de 1930 e 1940, sob o
impacto da “revolução cultural” do varguismo. Foi Getúlio Vargas, inspirado
especialmente pelas ideias do “bom mestiço”, de Gilberto Freyre, quem ousou
combater o racismo explícito então dominante tanto na sociedade quanto no
mundo intelectual, e construiu uma autoimagem distinta do Brasil celebrando
as origens africanas, ao invés de estigmatizá-las.34 É com Vargas que o Brasil
passa a ser pensado como o país do samba e do futebol praticado pelos negros.
Esse tipo de afirmação popular é fundamental. A mensagem ao povo pobre e
negro é mais ou menos a seguinte: você não é o lixo da história que sempre
contaram que você era, ao contrário, você tem virtudes e pode desenvolver
todo o seu potencial.
Um país não joga a maioria de seu povo na lata de lixo impunemente. E era
assim que negros e mestiços eram tratados de 1532 até 1930. Isso implica em
estigmatizar e humilhar a maioria da população como indigna – indigna de
voto, de trabalho decente e bem-pago, de moradia e, enfim, de respeito social.
Quando se humilha e se estigmatiza parte tão grande da população, se
normaliza também a perseguição policial e social contra todos os oprimidos,
negros e mestiços. Apesar do racismo ter continuado depois de Vargas – afinal,
a superação de todo racismo teria exigido gerações comprometidas com essa
luta – ele vai demandar um contorcionismo de quem quiser – consciente ou
inconscientemente – expressar sentimentos racistas a partir dessa época. Daí
que seja tão importante compreender o racismo como um dispositivo de poder
que pode, inclusive, dispensar o uso da palavra raça e de qualquer referência
racista explícita. Há que se compreender, também, o racismo “racial” como um
fenômeno multidimensional que pode, por exemplo, se mascarar de racismo
“cultural” – dando a impressão de leitura coerente da realidade e de ter
abandonado qualquer preconceito de origem racial.
Ninguém conseguiu isso com mais sucesso do que Sérgio Buarque, em 1936,
no seu clássico Raízes do Brasil.35 O livro foi pensado como um manifesto
liberal contra o varguismo então no poder. É isso, antes de tudo, que o faz ser o
mais importante manifesto elitista do Brasil moderno. Mas o golpe de mestre
de Buarque foi ter feito isso dando a impressão de estar propondo uma crítica
social, ou seja, de estar identificando o real causador das mazelas brasileiras. Por
conta disso, utiliza-se de uma interpretação mambembe e sem contextualização
histórica de Max Weber e de seu conceito de patrimonialismo36 para
criminalizar o Estado – onde Vargas estava – e a política, tornando invisível a
expropriação dos poderosos e dos proprietários a partir do mercado. A partir
daí, corruptos passam a ser os ocupantes do Estado, e nunca os donos do
mercado.
Como a imprensa pertence a essa mesma elite, então se constrói a pedra de
toque da cultura de golpes de Estado brasileira. É sempre preciso ter a
construção de uma ideia antes da ação. Essa foi a verdadeira contribuição de
Buarque. Assim, toda vez que um líder popular determinado a distribuir renda,
como Vargas e Lula, assume o poder, a elite e sua imprensa já possuem na
manga a carta decisiva e mortal: a acusação pronta de corrupção – que não
precisa ser verdadeira, desde que se force o povo a acreditar nela – que é, de
fato, a criminalização e a estigmatização do voto popular e de toda participação
política do povo. Isso tudo foi vendido e comprado por quase toda a elite
intelectual brasileira como “crítica social”.37 Pior: ainda é.
Mas Buarque não parou na criminalização do Estado e da política. Ele
também transformou o racismo “racial” brasileiro, que agora não poderia mais
ser explicitado, em racismo “cultural” ao perceber o povo brasileiro, mais uma
vez – como nos tempos do racismo explícito, antes de 1930 – no papel de “lata
de lixo” do mundo: corrupto, inconfiável e, finalmente, mas não menos
importante, eleitor de corruptos. O “homem cordial”, definido como o
produto mais acabado da tradição cultural brasileira, seria personalista e,
portanto, corrupto, por não separar o público do privado. Tudo como se a
privatização do que é público não fosse o modus operandi e o verdadeiro núcleo
do capitalismo desde seus inícios, em todo lugar deste planeta. Essas bobagens
da “confusão do público com o privado”, como se fosse uma jabuticaba
brasileira, são repetidas até hoje por praticamente todo intelectual brasileiro
como se fosse a descoberta do Santo Graal.
O pior é que o homem cordial nem sequer se refere ao povo como um todo.
Não nos esqueçamos de que a elite paulista estava empenhada em criar uma
linhagem virtuosa, desde o final do século XIX, que legitimasse seu domínio
sobre a nação. Conforme maior detalhamento adiante, esse mito foi criado a
partir da figura do bandeirante, estilizado como um “equivalente funcional” do
protestante ascético, o protótipo do pioneiro americano. Dos bandeirantes,
viria o espírito desbravador e empreendedor que caracterizaria os paulistas. De
certo modo, a elite de São Paulo se via, portanto, como uma reedição nos
trópicos das virtudes que haviam construído a autorrepresentação dos
formadores dos Estados Unidos. Voltaremos a este ponto fundamental mais
abaixo.
Não podemos nos esquecer também de que os anos 1930 fecham o ciclo de
chegada dos milhões dos brancos do sul da Europa que passaram a povoar a
região Sul e São Paulo entre 1870 e 1930. São cerca de 5 milhões de europeus
de todas as origens que começam a desembarcar em um país que, em 1872,
tinha menos de 10 milhões de pessoas.38 Como não podia deixar de ser, a
imigração maciça de brancos europeus para um país de maioria mestiça e negra
vai ter consequências decisivas não só demográficas, mas também nas
dimensões econômica, política, social e cultural.
Por sua origem europeia recente, a maioria desse pessoal nunca se considerou
parte do “povinho” mestiço e negro do país – até hoje, não se consideram. Se a
elite se via como “americana” (pela transfiguração do bandeirante na espécie de
“equivalente funcional” do pioneiro ascético), os brancos europeus – que vão se
tornar a maioria da classe média brasileira – se viam, pela origem recente,
como “europeus” nos trópicos. Desse modo, o cordial, personalista e corrupto
– como ­Buarque havia definido o brasileiro em geral – passa a ser apenas o
povo pobre, mestiço e negro.
Se antes o ataque era ao “estoque racial” considerado inferior, agora o mesmo
ataque contra o mesmo tipo de gente se traveste de “estoque cultural”,
recobrindo o racismo “racial” com as cores mais aceitáveis do racismo
“cultural” supostamente científico. Buarque, nesse sentido, e certamente sem
nenhuma intenção, repagina e mascara – moralizando e mascarando o racismo
como luta contra a corrupção – com sucesso o racismo brasileiro. Se a elite se
imagina americana, e os brancos e a classe média são europeus, então a “lata de
lixo” da brasilidade – percebida como inconfiável e corrupta – vai ser apenas o
povo mestiço, negro e pobre.
É esse contexto que construiu a “aliança antipopular” da elite de proprietários
e da classe média como seu representante incumbido da administração do
mercado, do Estado e da esfera pública em nome dos interesses da elite. Nesse
acordo de classes, o dinheiro fácil fica com a elite improdutiva, e o capital
cultural passa a ser monopolizado pela classe média branca de origem europeia.
A condenação moral de povo corrupto e inconfiável – a perfeita continuação
do antigo racismo de raça aberto e explícito que vigorou até 1930 – passa a se
dirigir contra as mesmas pessoas que, antes, eram estigmatizadas pelo “estoque
racial” supostamente inferior. Isso mostra sua real “função latente” de
reproduzir o racismo, agora por conta de um suposto “estoque cultural”
dirigido, no entanto, às mesmas classes de pessoas: mestiços, negros e, agora,
também uma porção significativa de brancos pobres. A perfeita substituição,
portanto, do racismo “racial” pelo racismo “cultural”.
A substituição do racismo “racial” pelo racismo “cultural” vai estigmatizar o
voto e a participação popular dos 80% da população que não são nem elite,
nem classe média branca. Por essas pessoas e seus representantes serem
percebidos como “inconfiáveis”, permitiu-se forjar uma tradição de golpes de
Estado para desbancar o representante popular toda vez que o sufrágio
universal, eventualmente, elegesse um líder identificado com as causas
populares. Por outro lado, a desvalorização moral das classes populares serve
também para “enobrecer” o próprio ódio devotado a elas pelas classes do
privilégio.
Desse modo, a justificação da dominação passa a ser compartilhada por todos
– tanto pelos algozes quanto pelas vítimas. O tema falso moralista da
corrupção vai permitir que, agora, o branquinho da elite ou da classe média
possa esconder seu racismo real sob a conveniente máscara de representante da
moralidade pública. A nova “identidade nacional” do brasileiro “vira-lata” e
corrupto – criada por Buarque e até hoje hegemônica, e que veio substituir a
identidade nacional positiva de Freire encampada por Vargas – permitiu
criminalizar a participação popular na política, tornando a posse do Estado um
privilégio das elites mesmo em um contexto de sufrágio universal. Basta que a
imprensa privada da mesma elite escandalize casos inexistentes de corrupção de
representantes populares. Mas não apenas isso. Ela permite legitimar a opressão
do povo justificando-a como dever e necessidade moral.
Uma leitura atenta pode chegar à pergunta: por que a elite – que capilarizou
a tese do povo corrupto convencendo toda a população por meio de sua
imprensa privada e da indústria cultural sob seu controle – tem tanto interesse
em desprezar e estigmatizar o próprio povo? Ora, do mesmo modo como
acontecia na República Velha, a intenção é amordaçar e enfraquecer o inimigo
mortal de toda elite do saque: a soberania popular consumada no voto
universal. Os líderes populares de nossa história – Vargas, Jango, Lula e Dilma
– tentaram usar o orçamento público em benefício da maioria da população. É
isso que a elite não quer. O Estado, suas riquezas, suas empresas e o orçamento
público devem ser exclusivamente para a elite do saque. Daí a necessidade de
humilhar e desprezar o próprio povo. Daí a construção de uma cultura de
golpes de Estado.
Na República Velha, o voto censitário permitia que, no máximo, apenas 5%
da população participasse da vida política. Mesmo assim, essa vontade de uma
ínfima minoria era fraudada “a bico de pena” pelos poderosos locais em todo o
país. Como o sufrágio universal e o combate ao racismo que havia levado ao
holocausto vêm ambos como ideias irresistíveis depois da Segunda Guerra
Mundial, a transformação do racismo “racial” em racismo “cultural” permite
que a elite mantenha o acesso exclusivo ao Estado – fonte de todos os
privilégios e “mamatas” – como se isso fosse decorrente, agora, de um
imperativo ético positivo contra o qual ninguém pode ser contra: o combate à
corrupção sempre dos líderes populares. É assim que a elite e a classe média
branca lograram legitimar a quase centenária tradição de golpes de Estado da
sociedade brasileira.

II. A GUERRA MORAL ENTRE AS CLASSES

A luta de classes existe, sim, mas ela não é econômica nem comandada pela
economia, como acreditam tanto liberais quanto muitos marxistas. É sempre
repetida em todos os jornais a suposta frase do assessor de Clinton, que teria
dito: “É a economia, tolinho”, como se a opinião política das pessoas fosse um
cálculo econômico de perda e ganhos. Na verdade, tolinho é quem pensa que
algum dia foi apenas a “economia em si” a causa de qualquer mudança de
comportamento social. E esse dado fundamental é relativamente fácil de se
explicar.
Afinal, a “economia”, como já discutido no prefácio deste livro, enquanto
esfera da vida social encarregada da produção e distribuição de bens materiais e
simbólicos, é sempre, na verdade, expressão de um contexto moral que lhe é
anterior e lhe determina. Pensemos juntos: a ideia na qual o capitalismo nos
quis fazer crer é a de que existe uma esfera social independente de avaliações
morais, que deve ser “neutra” em relação a valores. É por conta disso que a
economia moderna se formalizou em equações e números, para fingir que é
uma esfera que deve ser julgada por critérios de eficiência instrumental, como
se fosse infensa a valores e avaliações vinculadas a noções elementares de justiça
que todos nós – de forma consciente ou não – compartilhamos.
No entanto, a economia sempre foi política, ou seja, sempre foi perpassada
por escolhas morais em última instância. Basta refletir um pouco: qualquer
padrão social e econômico de produção e distribuição de bens materiais e
simbólicos envolve obrigatoriamente – de forma explicita ou implícita – uma
ideia acerca de quem será privilegiado e de quem será oprimido e explorado.
Quem deverá ter acesso aos bens pelos quais todos nós competimos para
possuir? Essa questão, que no fundo é o núcleo de qualquer forma econômica,
é uma questão moral e não econômica. Ela se refere a critérios compartilhados
de justiça.
Imaginar a economia neutra com relação a valores morais é um dispositivo de
poder, de quem monopoliza os privilégios econômicos, de modo a apresentar o
arranjo econômico existente como o único possível. É retirar a contingência e a
contextualização moral de qualquer ação humana para fazer crer que o arranjo
atual é o único razoável e existente. Por conta disso é que se separou a
economia da política e da moralidade: facilita a desvinculação da apropriação
econômica diferencial a critérios de justiça, de modo a percebê-los como uma
necessidade técnica e pragmática incontornável.
No entanto, são as necessidades morais que perfazem o vetor mais
importante do nosso comportamento prático em todas as esferas da vida, e não
apenas na economia. Desse modo, para se entender como se dá a luta de
classes, que decide o acesso de cada um de nós a todas as oportunidades de
vida, devemos nos concentrar nas “justificações morais” que legitimam uma
determinada ordem socioeconômica contingente e arbitrária.
E como se dá a luta moral entre as classes sociais – que possibilita e legitima a
apropriação econômica diferencial entre indivíduos e classes – em nosso país?
Ora, vimos acima que a elite que se imagina americana e a classe média branca
de origem europeia construíram ideias e mecanismos para rebaixar e
desvalorizar as classes populares abaixo delas. Primeiro, o meio era o racismo
“racial” aberto e, depois dos anos 1930, o racismo “racial” repaginado como
racismo “cultural”. Se antes as classes populares de maioria mestiça e negra
eram humilhadas por um suposto “estoque racial”, agora elas o são por conta
de um suposto “estoque cultural” que as teria tornado um povo de corruptos e
eleitores de corruptos. Essa é a legitimação do arranjo desigual no Brasil nos
últimos 90 anos.
A manipulação do tema da corrupção também é a arma da qual o Norte
global, comandado pelos Estados Unidos, se utiliza para estigmatizar e
criminalizar o Sul global de modo a saquear suas riquezas. Os países da
América Latina, África e Ásia são percebidos como sociedades endemicamente
corruptas – assim como, por extensão, seus membros –, enquanto a corrupção
é vista como mero deslize pessoal no Norte. Tudo funciona como se o Norte
fosse honesto e o Sul corrupto. Como se o capitalismo, em especial o
capitalismo financeiro americano, não fosse o tempo todo, e em todo lugar,
apropriação privada do público – via evasão planetária de impostos – e lavagem
de dinheiro sujo em paraísos fiscais. Isso sem contar as guerras feitas para três
empresas privadas de petróleo, como no Iraque. Existe maior confusão entre o
público e o privado no mundo? Cadê a jabuticaba brasileira da suposta
confusão – que só ocorreria aqui – entre o público e o privado?
É que a acusação moral, aquela que se dirige ao que há de mais valorizado
para cada pessoa, atinge o nosso âmago de tal modo que nos desumaniza. Se a
dimensão moral é a mais importante e decisiva dentre todas as dimensões do
espírito – inteligência, moralidade e capacidade estética – e se é o espírito o que
nos afasta da animalidade do corpo e seus afetos, então negar a moralidade de
alguém é animalizá-lo, é retirar sua humanidade. Quem quiser eternizar sua
dominação social, política e econômica tem que se perceber como
manifestação do espírito, enquanto o polo dominado tem que ser percebido
como reduzido ao corpo e à animalidade. Seja na esfera global, seja na
dimensão local e em todas as múltiplas formas de opressão existentes, não
existe exceção a essa regra. É por conta disso que os palestinos, vinculados aos
povos do Sul, valem pouco; e os judeus, vinculados aos povos do Norte, valem
muito e podem massacrar e chacinar livremente.
É também por conta disso que a elite e seus intelectuais, à procura de um
substituto para o racismo “racial”, inventaram a “tradição de corrupção do
povo brasileiro”, como vimos, apenas daqueles que não possuíam origem
europeia. Dessa forma, supostamente por razões de “moralidade pública”, se
garante a posse do Estado apenas para a elite, e uma cultura de golpes de
Estado toda vez que um líder popular assume o poder. É a continuação da
escravidão, uma vez que se mantém o que é essencial para a continuidade do
sistema social anterior – com a roupagem vistosa da modernidade e da
democracia representativa. Porém, na verdade, a base da população composta
de negros e mestiços continua sem direito efetivo à participação política, já
que, no limite, seu voto não vale nem nunca valeu por muito tempo.
Não basta “dizer” que a escravidão foi importante. Apenas “dizer” não
esclarece coisa alguma. É preciso que se compreenda a diferença fundamental
entre o nome e o conceito, algo que poucos percebem. Saber o nome e
simplesmente “nomear algo” não significa compreender. Ao contrário do
conceito – que reconstrói de modo coerente a realidade confusa em
pensamento –, o nome não é unívoco. Cada cabeça vai ter uma ideia subjetiva
só sua, mas vai imaginar que essa opinião, apenas por se referir ao mesmo
nome, é uma explicação da realidade. Cada um vai ter uma ideia própria e
muito particular acerca dessa “importância”: para um, vai ser a feijoada; para
outro, o quarto de empregada; para outro ainda, a capoeira e assim por diante.
O engano se torna completo quando cada um imagina algo diferente supondo
que estão falando da mesma coisa. Não é, afinal, nem um pouco evidente
como a escravidão continua com outras máscaras, tanto que este é um trabalho
que ainda não havia sido feito no âmbito da sociologia brasileira, embora os
trabalhos históricos sobre o assunto tenham existido desde sempre.
Reconstruir o mundo de modo diverso à confusão reinante no senso comum
exige o trabalho do conceito, ou seja, uma elaboração abstrata e ideacional que
reconstrói o mundo em pensamento enquanto uma realidade compreensível.
Isso é o que a ciência deve fazer, embora na maioria das vezes simplesmente
repita o senso comum. O conceito, para esclarecer as pessoas de coisas que elas
não percebem, necessita que a hierarquia social seja, antes de tudo,
compreendida. As coisas não são igualmente importantes. Existe o que é
essencial e o que é secundário. E o aspecto mais importante de toda sociedade é
como ela legitima a dominação injusta. Deveria ser óbvio e ululante, mas não
é. Ao se perceber a forma específica de legitimação de uma sociedade,
saberemos todos os seus segredos, já que a legitimação tem que invisibilizar o
privilégio injusto e animalizar e estigmatizar o oprimido. Tudo o que se segue a
isso na vida social é secundário e construído pela própria necessidade de
legitimação que garante a reprodução social desigual.
Por esse motivo, meu conceito de continuidade da escravidão no tempo é
distinto de quem apenas “fala” ou simplesmente “diz” sobre a importância da
escravidão. O trabalho do conceito, nesse caso, é perceber sua continuidade sob
a máscara do novo. É preciso mostrar como se dá essa continuidade: apesar de
todas as máscaras, por baixo de todas as mentiras. E ela se dá de duas maneiras
fundamentais:
1) pela construção de uma dominação simbólica “vira-lata” para estigmatizar
o próprio povo mestiço e negro, e lhe tirar a legitimidade de sua participação
política e de seu voto;
2) pela construção de uma classe de abandonados e humilhados reduzidos à
sua força muscular e ao trabalho desqualificado, exatamente como acontecia
com os antigos escravos.
É a demonstração dessa tese que “explica” e não apenas “diz” que a escravidão
é o núcleo do Brasil moderno e contemporâneo. Os dois aspectos decisivos
para se compreender como uma sociedade funciona são a forma como ela é
legitimada e a forma como ocorre – a partir da reprodução da dominação
propiciada pela legitimação – a constituição das diferentes classes sociais e de
suas inter-relações. A legitimação é fundamental, visto que sem ela não existe
dominação social estável no tempo. A violência aberta se impõe num primeiro
momento, mas, sem legitimação, ela nunca se mantém no tempo. É necessário,
em todos os casos, “convencer” os oprimidos de que a dominação é boa para
eles também, ou que o sofrimento se dá por culpa própria. Por outro lado,
também é necessário compreender como se estabelece a construção
sociocultural por meio da família e da escola das diversas classes sociais de
modo a assimilar o arranjo de conflitos e alianças entre elas. A partir desses dois
aspectos, podemos compreender o núcleo de qualquer sociedade. Todo o resto
é derivado da dinâmica dessas duas questões.
Por essa razão, o fundamento mais importante e decisivo de nossa sociedade
se apresenta da seguinte forma: nossa “identidade nacional” degradada – com a
imagem de povo corrupto, modernizando a humilhação do antigo escravo –
disseminada nas escolas, universidades e em toda a imprensa e indústria
cultural, somada à produção de uma classe de pessoas feitas para serem
exploradas e humilhadas. Esses são os dois aspectos, intimamente relacionados,
mais importantes de qualquer sociedade: como ela é legitimada e como as
classes sociais são construídas.
Em livros como A elite do atraso e Brasil dos humilhados, avancei na primeira
questão. Em A ralé brasileira, Classe média no espelho e nos outros trabalhos
sobre as classes sociais procurei compreender as razões da segunda questão.
Meu primeiro trabalho empírico de longo prazo, não por acaso, foi a realização
de A ralé brasileira. Eu tinha, desde algum tempo, a intuição de que o que
explica o Brasil é a constituição intencional – como projeto político do bloco
antipopular, composto por classe média branca e elite de proprietários – de
uma classe de pessoas destinadas a serem abandonadas, criminalizadas,
perseguidas, exploradas e humilhadas. A “ralé”, como nomeei
provocativamente essa classe de marginalizados e excluídos de praticamente
tudo, não pode nem deve ser redimida em nosso país.
Afinal, toda vez que algum governo criou um projeto de reerguimento
popular, como melhores salários e acesso à educação de qualidade, aconteceu
um golpe de Estado apoiado pela classe média branca e pela elite de
proprietários. Isso não é acaso nem coincidência. Existe um acordo silencioso
que ninguém debate e explicita – o que ajuda sua continuidade – para manter
os humilhados onde estão. E esse acordo é mantido pelas classes do privilégio
que não querem, por exemplo, que pobre e preto cheguem à universidade
pública ou que compartilhem espaços sociais com elas. Essa é a razão última de
toda perseguição policial, exclusão planejada e indiferença em relação ao
destino dessas pessoas.
A classe de humilhados e perseguidos, que perfaz cerca de 40% de nossa
sociedade, é a pedra de toque para que saibamos como toda a sociedade
funciona.39 Ela tem um efeito semelhante à casta dos intocáveis da Índia, os
Dalit,40 que executam os serviços sujos e mal pagos que ninguém mais quer
fazer. A longevidade milenar do sistema de castas está ligada, precisamente, ao
fato de que se permite uma distinção social positiva a todas as castas situadas
acima dos intocáveis, inclusive os segmentos intermediários. Aqui vale a regra
de ouro: toda vez que inexistir a universalização das condições de igualdade – o
que exige o reconhecimento social do valor e da dignidade alheia –, a distinção
social positiva tem que ser conquistada “às custas dos outros”, isto é, pela
humilhação e pelo rebaixamento da vida do outro.
É preciso compreender que a escravidão não é apenas exploração do trabalho
alheio. Esse é o corpo, a dimensão material que é evidente a todos na
escravidão. Mas a alma da escravidão é a humilhação, ou melhor, o gozo e o
prazer na humilhação. Tornar o outro tão vulnerável e frágil a ponto dele se
tornar incapaz de se defender é o objetivo real aqui. Como a gritaria contra a
carteira de trabalho das empregadas domésticas no governo Dilma
demonstrou: se o escravo passa a possuir direitos, ele deixa de ser escravo e de
se comportar de modo servil e subordinado.41 Para a patroa típica de classe
média, a empregada é uma escrava doméstica que deve aturar todos os seus
humores e humilhações. Não existe nada mais escravocrata do que o prazer de
humilhar.
Nós somos uma sociedade desse tipo. Aliás, os Estados Unidos também, pela
mesma continuidade do passado escravista e suas máscaras lá e cá, assim como
a Índia e seu sistema de castas. Para nosso contexto neste livro, é importante
perceber o fato de que não apenas as classes do privilégio se “beneficiam” desse
esquema, mas também os setores intermediários – no caso brasileiro, os 40%
que são pobres remediados, ou seja, uma espécie de classe trabalhadora precária
do capitalismo financeiro, são, em sua maioria, pessoas que ganham entre dois
e cinco salários mínimos. E eles votaram, massivamente, em Bolsonaro.42
Em quem a classe média e a elite votam não tem muita importância, afinal,
constituem menos que 20% da população – não se ganha eleição majoritária
apenas com o apoio da classe média e da elite, embora essas classes comandem
a sociedade. Assim, é necessária a contribuição do pobre dito de direita – em
muitos casos, o branco pobre do Sul do país e de São Paulo, e o negro
evangélico no resto do Brasil. Isso nos faz voltar ao questionamento que
buscamos elucidar neste livro: por que alguém pobre votou, e ainda votaria, em
Bolsonaro?
Desde Marx, sobretudo após sua morte, a grande questão da “esquerda” e da
luta por igualdade e democracia foi compreender o pobre “sem consciência de
classe” que apoia quem o oprime. Dizer que o pobre de direita é burro,
“bolsominion”, ou que a raiz do problema é a filiação religiosa ou o caráter
intrinsecamente conservador da pessoa, como muitos fazem, não ajuda muito.
Afinal, como já dito, o que importa é saber o que motivou a escolha por
determinada filiação religiosa, e aprofundar “o que” a inclinação “conservadora”
lhe proporciona.
Para mim, são as necessidades de reconhecimento social desse segmento,
também oprimido pela falta de oportunidades educacionais – ao contrário da
classe média “real” –, que o faz tão suscetível à pregação bolsonarista. Como a
luta por capital econômico – ou seja, os títulos de propriedade das fazendas do
agronegócio, das redes de comunicação, das grandes empresas e dos títulos
bancários – estão concentrados no 1% mais rico, então a luta real dos 99% que
estão abaixo é, antes de tudo, por capital cultural legítimo. No Brasil, o capital
cultural considerado legítimo é monopolizado, porém, pela classe média
branca e “real”.43 O fato de alguém da classe média ter uma casa própria, um
carro importado e uma casa de veraneio não torna essa pessoa membro da elite
de proprietários, já que a reprodução de suas condições de vida depende de seu
estudo e de seu capital cultural – e não de seus títulos de propriedade.
Para os 80% que não são nem elite nem classe média “real”, a competição
social por capital cultural legítimo já está perdida: é a classe média “real” que
vai comandar toda a sociedade em nome dos proprietários – na economia, na
política e na esfera pública. Isso significa que 80% do nosso povo é explorado e
oprimido pela ausência de acesso a capital econômico e cultural qualificado.
Não há como competir com quem recebe, desde o berço, todos os estímulos
para o bom desempenho escolar e para o trabalho intelectual.
Uma criança de classe média recebe, sem esforço – pela simples internalização
e incorporação de exemplos de comportamento de pais e familiares em geral,
como o hábito de leitura –, o estímulo ao pensamento abstrato, à disciplina, ao
pensamento prospectivo e à capacidade de concentração. Ao contrário do que
se pensa, ninguém “nasce” com essas aptidões. Em um país como o nosso, elas
representam o maior e mais importante “privilégio de classe” – pois, acima de
tudo, esse privilégio é invisível ao olho não treinado. Como não se percebe a
incorporação dos exemplos familiares, imagina-se que essas disposições – que
anteveem o sucesso ou fracasso escolar – são mérito individual e não familiar e,
portanto, de uma classe social específica, transmitido de uma geração para a
outra. Daí a meritocracia e a falácia do mérito individual ser a principal
ideologia de nossa época: ela permite esconder e legitimar a produção
diferencial de indivíduos mais ou menos capacitados por sua herança de classe.
É assim, afinal, que as classes sociais se reproduzem: pelo efeito da
socialização familiar e escolar. É o tipo de família e o tipo de escola que vai
dizer, por exemplo, a renda diferencial que o indivíduo adulto irá auferir. Isso
demonstra como a percepção da classe social como renda diferencial é falaciosa.
As famílias abaixo da classe média, os 80% explorados e humilhados em graus
variáveis, se subdividem em classe trabalhadora precária e em uma “ralé” de
marginalizados e excluídos. A diferença entre as classes populares está também
ligada à socialização familiar e escolar diferencial.
As famílias da classe trabalhadora precarizadas pelo capital financeiro
apresentam, geralmente, contextos familiares mais estáveis – a exemplo da
família com os pais e mães presentes, embora lutem pela sobrevivência no dia a
dia. Os estímulos para a escola tendem a ser comparativamente maiores do que
no caso dos marginalizados. Isso produz aptidão social e profissional para o
exercício dos empregos “uberizados”, dos cargos intermediários do serviço
público (policial, membro das forças armadas), da atividade de pequeno
empreendedor etc. Em termos de renda, essa fração das classes populares se
situa entre dois e cinco salários mínimos mensais, possibilitando a existência do
que chamamos de “pobre remediado”: carente de tudo um pouco, mas sem
fome e com apoio familiar básico. Esse é o segmento chave para os propósitos
deste livro.
Os 40% de marginalizados na base da pirâmide social já apresentam um
outro quadro de vida. As famílias são, em sua maioria, monoparentais: quase
sempre só com a mãe, sendo o pai ausente. Muitas delas apresentam lares
desestruturados, com abuso físico e sexual frequente, e com pouco estímulo ao
sucesso escolar (pela falta de exemplos bem-sucedidos). Embora existam
exceções, a vida é levada com a ênfase no aqui e no agora, na comida de hoje,
para o almoço de hoje – o que condena essa classe a uma absoluta ausência de
futuro e de planejamento de vida. Sem pensamento prospectivo, isto é, a ideia
de que o futuro é mais importante do que o presente, não há condução
racional da vida possível.
É uma classe literalmente “sem futuro”, construída para os empregos pesados
como os que os antigos escravos faziam: as mulheres são as escravas domésticas,
e os homens os “escravos de ganho” em trabalho muscular e não qualificado.
Como a escola produz os “analfabetos funcionais” – daqueles que fazem de
tudo um pouco porque nunca aprenderam a fazer nada direito –, essa classe se
caracteriza pela falta e pela vulnerabilidade extremas. Tendo em vista que o
acesso ao capital cultural condiciona toda a participação social e todo emprego
competitivo, essa classe é desumanizada e animalizada.
Esse estilo de vida não é, obviamente, “culpa” das vítimas. Os 40%
marginalizados foram produzidos intencionalmente pelas classes do privilégio:
para explorá-los e humilhá-los. O gozo na exploração e na humilhação é o que
marca a relação das classes do privilégio com os pobres e marginalizados, e
mostra a continuidade da sociabilidade escravocrata. Todo governo popular
que procurou ajudar os marginalizados for apeado do poder por um golpe de
Estado apoiado pela elite e pela classe média. Claro que a desculpa foi sempre a
lorota da corrupção, de modo a moralizar o preconceito dos privilegiados e
justificar o abuso.
Essa é uma classe perseguida. Se fosse só indiferença e descaso, seria muito
melhor. Mas não é. É ódio e desprezo cultivados e cevados todos os dias. A
polícia foi criada para perseguir, matar e humilhar essa classe – sob aplauso das
classes do privilégio. É por conta disso que matar pobre e preto provoca
comoção em tão poucos. É um arranjo social irracional ao extremo, baseado no
ódio e na própria insegurança dos privilegiados. Ninguém pode viver bem em
uma sociedade na qual predomina a desigualdade e a opressão social. A vida
dos marginalizados é um verdadeiro inferno social. Essa é a vida da maioria das
pessoas que ganha entre zero e dois salários mínimos em termos de renda
comparativa.
A grande questão que se impõe aqui é: a quem serve a existência secular de
pessoas fragilizadas e vulnerabilizadas em todos os sentidos? É irracional evitar
que certa classe de pessoas possa ter condições de vida mínimas com alguma
dignidade. Insegurança pública de todos e pobreza da maioria são as
consequências. Além do prazer na exploração e na humilhação dessa classe,
quase toda preta e mestiça, existem outras razões: como a necessidade da elite e
da classe média em criarem o criminoso para melhor estigmatizá-lo. Se for
preto e pobre, é bandido – simples assim. Em uma sociedade tão desigual,
pode-se, a partir disso, justificar todo o esquema injusto ao conferir a culpa à
própria vítima e legitimar o acesso diferencial das classes do privilégio aos
capitais econômico, cultural e social. Quando se culpa a vítima, a real causa da
opressão social e econômica – o saque promovido pela elite contra a população
– se torna invisível, e se legitima o arranjo injusto e elitista. De quebra, como
vimos acima, ainda se criminaliza a participação popular dos pobres e
marginalizados, tornando a política e o acesso ao Estado monopólios da elite.

III. O POBRE REMEDIADO E A MANIPULAÇÃO DE SUA FRAGILIDADE SOCIAL

Não são apenas as classes do privilégio que se reproduzem enquanto tais a


partir da opressão dos marginalizados. Também o setor intermediário dos
“pobres remediados”, entre a classe média “real” e os marginalizados, passa a
marcar sua posição social mediante a oposição ao pobre e ao preto. É isso o que
explica a manutenção secular de uma classe de “desarmados” para a luta social
em todas as dimensões. Todas as classes acima dela vão retirar ganhos materiais
ou simbólicos por conta da oposição aos marginalizados. Como a necessidade
última e mais profunda do ser humano em sociedade é precisamente auferir
autoestima e reconhecimento social – e não dinheiro, como os tolos imaginam
– existem duas maneiras fundamentais das sociedades resolverem esse
problema. Ou bem se generaliza o respeito individual a todos, ou quase todos,
os membros da sociedade – como em algumas sociedades europeias mais
igualitárias –, ou reconhecimento e autoestima irão ser conquistados à custa da
humilhação do outro. Em sociedades com passado escravocrata, como Estados
Unidos e Brasil, o segundo caso impera. Nesses casos, a autoestima e o respeito
são obtidos “contra” os outros e não “com” os outros, como acontece, em geral,
nas sociedades mais igualitárias.
No Brasil, marginalizados e humilhados passam a ser o contraponto negativo
a partir do qual todas as outras classes sociais poderão resgatar algo de positivo
para si, inclusive a classe trabalhadora precária logo acima dessa classe de
“desarmados”. Esta é a base para se compreender toda a vida social brasileira: a
criminalização do pobre e do preto permite o enobrecimento moral relativo de
todas as classes sociais acima da “ralé” de perseguidos e abandonados. E vimos
acima que são as necessidades morais que representam o vetor mais importante
do nosso comportamento prático em todas as esferas da vida. Sobretudo para
quem tem pouco, como a classe trabalhadora precária: nesse caso, a suposta
superioridade moral sobre os marginalizados é decisiva. ­Devemos nos
concentrar sempre, para compreender uma sociedade na sua lógica de
funcionamento mais totalizante, nas “justificativas morais” que legitimam uma
determinada ordem socioeconômica contingente e arbitrária.
As principais justificativas morais da classe trabalhadora precária para
angariar o efeito de distinção social – e, portanto, reconhecimento social – à
custa dos marginalizados são duas: 1) o preconceito regional que mascara o
racismo “racial” de fundo contra os mestiços e negros do “Norte”; e 2) a
oposição que divide todas as classes populares em duas classes inimigas: a
oposição entre o pobre honesto e o pobre delinquente, também uma outra
máscara do racismo “racial” pelo estigma do negro como bandido. Isso
comprova nossa tese de que são as máscaras do racismo “racial” que continuam
operantes na sociedade avaliando e classificando as pessoas como dignas ou
indignas de respeito.44 Com relação ao segundo ponto – o primeiro será
discutido adiante –, devemos deixar claro a artificialidade dessa distinção que,
no entanto, está hoje na cabeça de todo pobre, remediado ou não. Como nos
ensina Foucault, é necessário “construir o crime e o criminoso”. Isso significa
que a própria ideia de crime é artificialmente construída para legitimar uma
ordem construída de maneira arbitrária.45
Desse modo, crime não é, por definição, o que a elite faz: saquear e roubar a
vida presente e o futuro de todo mundo, de múltiplas formas. As vendas de
estatais para os amigos – a preço de banana, como Paulo Guedes fez – não são
consideradas crime. São, inclusive, comemoradas por toda a imprensa elitista.
O rombo de 40 bilhões de reais que Paulo Lehman e seus cúmplices deram nas
Americanas não trouxe qualquer consequência para ele, que continua a ser um
farol para a imprensa e para a elite brasileira. No final, se o velho enredo se
repetir, esse rombo será pago pelo tesouro nacional, ou seja, por todos nós.
Casos semelhantes são inúmeros, sem contar o esquema de juros exorbitantes e
de dívida pública nunca auditada.
Ainda pior é o que se pode observar na elite rural: uma classe historicamente
construída por assassinos de posseiros e ladrões de terras.46 A elite pode tudo –
e faz, efetivamente, tudo. O crime compensa, desde que não seja chamado de
“crime” por nenhum jornal, mas sim de negócio e de empreendedorismo –
para torná-lo “pop” como o agro reacionário que temos. A forma de tornar os
crimes da elite invisíveis é construir um criminoso “ad hoc”, ou seja, feito com
precisão de alfaiate para desviar a atenção dos crimes da elite de modo a
mostrar apenas o crime do pobre e do preto. De resto, o controle da imprensa e
da indústria cultural garante o sucesso da mentira fabricada.
É para que todos esses crimes da elite se tornem invisíveis que se cria,
artificialmente, o crime como monopólio do pobre e do preto. Crime passa a
ser, antes de tudo, tudo aquilo que o preto faz: sua religião, sua música, seu
lazer e suas manifestações culturais. Nesse sentido, um crime terrível passa a ser
a venda de uma trouxinha de maconha na esquina – crime pelo qual um preto
pode pegar 15 anos de cadeia e ainda apanhar muito (isso se não for
sumariamente executado). Com a pregação moralista evangélica, essa
moralização do pobre “honesto” se torna mais multifacetada. Passa a
compreender também a ética familiar criminalizando a homossexualidade e
reforçando a subordinação feminina. O “pobre delinquente” vai ser o ladrão de
ocasião, o gay, a lésbica, a mulher independente, ou simplesmente um negro,
que nem sequer precisa fazer algo para ser criminalizado e assassinado. Aqui
vale a máxima: para quem tem pouco, como o pobre “honesto” e “homem de
bem”, a moralidade – falsa e fabricada contra ele próprio – passa a ser tudo.
No caso, como a maior vulnerabilidade é a necessidade de autoestima e
reconhecimento social de importância e dignidade, qualquer boia de salvação
moralista, lançada a uma pessoa vulnerável e carente da classe trabalhadora
precária, que “sente”, mas não “compreende” a causa do desdém do qual
também é vítima, chega em solo fértil. Essa é a razão mais importante do
sucesso da pregação moralista e conservadora dos evangélicos. Ela vai dar a
essas pessoas carentes de respeito social, sem as oportunidades que as classes do
privilégio tiveram, um fundamento alternativo para que possam se orgulhar de
si mesmas – como “homem de bem” ou “pai de família”, sempre de acordo
com o código construído pelos ricos para estigmatizarem os pobres.
Para as classes sociais que ocupam as posições polares da hierarquia social – a
elite de proprietários e a “ralé” de marginalizados –, a incorporação da
moralidade dominante tende a ser menos determinante. Para a elite, porque
sabe intuitivamente que as regras morais dominantes foram feitas para justificar
seus próprios privilégios. É isso que explica a “desfaçatez de classe” dessa elite
que a tudo se permite. De certo modo, estão “acima” da moralidade dominante
– o que caracteriza o cinismo blasé típico dos membros dessa classe. Os muito
pobres, por outro lado, embora não tenham defesas cognitivas contra os
preconceitos elitistas criados contra eles, são tão humilhados que estão
excluídos do próprio jogo da moralidade, uma vez que não possuem fichas para
jogar o jogo.
Já as classes intermediárias – a classe média “real” acima, e os pobres
remediados logo abaixo da classe média – são as classes que, por conta de sua
posição na hierarquia social, são as mais sensíveis às classificações e avaliações
sociais dominantes. Por um lado, a aderência aos valores elitistas dominantes –
muito típico, por exemplo, da classe média “real” que se comporta como um
“agregado” da elite, se identificando, inclusive, enquanto parte dessa mesma
elite. Por outro lado, o desdém e o desprezo comum em relação aos
marginalizados e excluídos de onde retiram sua autoestima e sua autoconfiança.
A classe média “real” não é o tema deste livro. Que a imensa maioria da elite
e da classe média “real” odeiam os pobres, é fato. Qualquer tentativa de redimir
a pobreza entre nós enfrenta ferrenha oposição desses setores, e sempre que
tentado, terminou em golpe de Estado. Mas essas duas classes sociais juntas
não chegam a compor 20% da população brasileira. Ou seja, elas não decidem
eleições majoritárias por si mesmas sem a conivência de porções significativa
das classes populares. Daí que tenhamos escolhido, aqui, no contexto do
presente livro, estudar e examinar os “pobres remediados”.47 O objetivo aqui é
compreender as razões da aderência dessa classe a um projeto que, dentro da
racionalidade econômica de maximização de benefícios – que a maioria de
leigos e intelectuais imagina ser o determinante de nosso comportamento –
seria um “tiro no próprio pé”. O que impede, na consciência do indivíduo, o
simples cálculo de custo e benefício? Se não existem vantagens econômicas, o
que essa classe ganha?
Como não houve ganho econômico palpável para ela, sua sedução se deu por
outra fonte. E essa fonte é sempre de natureza “moral”, ou seja, redefine a
situação do valor relativo – tanto sua autoestima quanto o respeito social –
desse indivíduo e dessa classe social na sociedade. Mesmo a racionalidade
econômica é, como vimos, na sua dimensão mais profunda, uma ideia moral.
Se as necessidades de utilidade econômica fossem o motivo da ação das pessoas,
um bilionário que possuísse 1 bilhão de dólares – quantia que o permitiria
acesso imediato a todos os bens de consumo existentes – não teria qualquer
interesse em passar a vida aumentando seu patrimônio. No entanto, quem tem
um bilhão quer dois, quem tem dois quer três, e assim por diante.
É assim que acontece na vida real. Obviamente, o motivo não é carência
econômica ou dificuldade de acesso a bens. Os bilionários competem
mundialmente para ver quem tem mais zeros na sua conta, embora seja
dinheiro que ele jamais terão condições de consumir. A ­aparente
irracionalidade da busca incansável por riqueza é explicada por razões “morais”
e não econômicas, porque a riqueza em si é uma marca de “distinção social”,
que cria a sensação de que o bilionário é especial e que merece todo o nosso
respeito. A corrida para o dinheiro – como fim em si – é uma corrida que só
pode ser explicada pelas necessidades, de todos, de distinção e reconhecimento
social. É apenas o aumento da autoestima e do reconhecimento social que a
riqueza provoca que pode explicar a busca incessante e sem limites por
dinheiro.

33. Jessé Souza, Como o racismo construiu o Brasil, 2021.


34. Para as relações entre o varguismo e as ideias de Freyre, ver Jessé Souza, Brasil dos humilhados,
2022c.
35. Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 2001.
36. Jessé Souza, op. cit., 2022c.
37. Ibidem.
38. O Censo de 1872 encontrou no país quase 10 milhões de “almas” (mais
precisamente, 9.930.478 habitantes).
39. Jessé Souza, A ralé brasileira, 2022b.
40. Idem, op. cit., 2022c.
41. Ver o filme de Anna Muylaert, Que horas ela volta?, sobre uma empregada doméstica e sua filha
nos anos Dilma Rousseff.
42. “Datafolha: Bolsonaro lidera entre quem ganha de 2 a 5 salários mínimos, com 43%”, Isto É
Dinheiro, 22 set. 2022.
43. Jessé Souza, A classe média no espelho, 2018.
44. Ver Jessé Souza, op. cit., 2022b.
45. Michel Foucault, Vigiar e punir, 1995.
46. Ninguém captou a lógica do mundo rural brasileiro tão bem como Graciliano Ramos em São
Bernardo.
47. Normalmente, por critério de renda, aqueles que ganham entre dois e cinco salários mínimos.
3. O BRANCO POBRE DO SUL DO PAÍS E DE SÃO PAULO E O
PRECONCEITO REGIONAL NO BRASIL

I. A SUBSTITUIÇÃO DO RACISMO “RACIAL” PELO RACISMO “REGIONAL”

O motivo de analisarmos o assim chamado preconceito regional no Brasil se


baseia no fato de que ocorre uma nítida inversão no padrão racial entre São
Paulo e a região Sul e o resto do país. Se, no resto do Brasil, entre 70% e 80%
são negros ou mestiços, no Sul e São Paulo, entre 60% e 70% são brancos.
Esse fato não chamou a atenção de quase ninguém em uma sociedade racista
como a nossa. Lamentável engano de nossa inteligência crítica. Ainda que
pouquíssimo notados, esses números possuem uma importância decisiva –
afinal, não é porque até hoje não se prestou a devida atenção a eles que o
fenômeno não seja fundamental. Muito pelo contrário, deixá-lo às sombras já
reflete um projeto de poder. Não nos esqueçamos jamais de que o principal
dispositivo de poder, em todo lugar, é o de se tornar invisível enquanto tal.
Desses 70% de brancos do Sul e São Paulo, a maioria com tradição de
imigrante e sobrenome italiano ou alemão, cerca de 50% são pobres. A classe
média “real” – medida em termos de acesso às benesses do mundo moderno
em comparação aos casos europeu e norte-americano (com exceção do México)
– é muito pequena, não chegando a 20% da população em nenhum lugar no
Brasil,48 o que significa que pelo menos 50% dos 70% que são brancos nessa
região são pobres, ainda que a maioria “pobres remediados”. Abaixo da classe
média “real”, essa classe não teve acesso aos mesmos privilégios educacionais
que reproduzem a classe média “real” enquanto classe privilegiada. Grande
parte dela está contida na definição errônea que ganhou o país de “nova classe
média”, para designar os setores medianos em termos de renda.
A ideia de classe social como sendo construída pela renda que se tem no
bolso é indigente e equivocada em teoria, e só produz confusão na vida prática.
Se alguém possui renda média em um país pobre, esse alguém é pobre, ainda
que remediadamente pobre nesse contexto específico. São, portanto, pobres e
injustiçados, visto que estão onde estão por falta de chances. Chances essas
que, por outro lado, foram transmitidas de modo invisível, mas concreto nos
seus resultados palpáveis – pela reprodução do ambiente de estímulo familiar
para o sucesso escolar típico dos brancos da classe média “real”.
Estatisticamente, Bolsonaro teve sua votação mais expressiva nos estados do
Sul e São Paulo, sobretudo entre o público que tem de dois a cinco salários
mínimos49 – como já dito, segmento chamado, anos atrás, erroneamente, de
“nova classe média”. Como a elite e a classe média “real” são tão pequenas a
ponto de não elegerem mais ninguém em uma eleição majoritária, foi a
participação desse segmento popular que permitiu o fenômeno grotesco do
bolsonarismo. E o fator decisivo para a cooptação desse segmento significativo
de nossa população foi o racismo “racial” disfarçado de racismo “regional” – eis
nossa hipótese central de trabalho nesse contexto.
Todos vimos, por exemplo, a fúria contra o Nordeste e os nordestinos
provocada pela derrota de Bolsonaro nas últimas eleições de 2022 –
disseminada por conservadores nas suas redes sociais. Ora, o preconceito
regional é um absurdo em si, já que ninguém odeia ninguém pelo acaso de
nascer geograficamente em outro lugar. A simples geografia não produz ódio.
Assim, o preconceito regional está sempre no lugar de outra coisa – da qual não
se pode dizer o nome. Pensemos juntos: o que está em jogo no ódio real aos
nordestinos, que não seja mera inveja do lugar que possui, indiscutivelmente,
as praias mais bonitas deste país? É difícil sustentar que se trata da geografia.
Será que o fato do Nordeste possuir o maior número relativo de pessoas
negras e mestiças não teria algo a ver com esse ódio de outro modo
incompreensível? Pelo menos cerca de 80% da população nordestina é, além de
pobre, negra ou mestiça (embora exista muito mestiço que ainda se imagine
branco). Será que o preconceito racial não está aqui encoberto e expresso de
modo alternativo sob a forma de preconceito regional?
Para que isso seja possível, é importante reconstruir a história do preconceito
regional no nosso país, principalmente no estado de São Paulo, onde ele
assume sua forma mais bem elaborada e eficaz. É um assunto em que as pessoas
não gostam que se toque (inclusive muitos intelectuais). Quando toquei nesse
assunto em entrevistas e artigos de jornais e revistas, fui atacado com violência
nos comentários, como alguém que estivesse estimulando a cizânia entre os
brasileiros de modo artificial e enganoso. Ora, o ponto aqui é que a cizânia já
existe e já provoca os resultados que vimos acontecer recentemente. Eu a estou
tornando explícita para denunciá-la.
O que eu faço é a denúncia de algo muito concreto, como veremos, que
muitos querem continuar a deixar embaixo do tapete. Eu não estou, portanto,
criando artificialmente um conflito, mas sim denunciando a sua existência
silenciosa que compromete a solidariedade entre os brasileiros das diversas
regiões. Por outro lado, o incômodo provocado pela crítica é o que comprova,
como já dizia Nietzsche, a importância fundamental dela. O incômodo, quase
sempre, ocorre por tornar manifesta uma verdade apenas latente, dado que
gostamos das máscaras mentirosas que nós mesmos construímos para nos
sentirmos melhores do que somos.
Por que São Paulo é tão importante nesse contexto? Ora, porque toda elite
ascendente, que pretende comandar os destinos de uma nação inteira, necessita
construir uma legitimação simbólica – uma mistura de ideias e valores – para
esse domínio. Afinal, não há poder sem legitimação simbólica convincente: a
violência nua e crua como arma é sempre temporária. E a elite de São Paulo
construiu uma legitimação tão eficaz, e se naturalizou a tal ponto, que
meramente tocar no assunto desperta ódio e revolta. Antes de tudo, é
importante ressaltar que a elite cafeeira ascendente de São Paulo sempre viveu
do Estado e do controle do orçamento público. O financiamento das safras, a
garantia de preços, dentre outras medidas, era bancada pelo erário público. O
controle do Estado e, portanto, da política, sempre fez parte do seu “negócio”.
Por conta disso, seu processo de legitimação sempre visou e ainda visa garantir
acesso privilegiado ou exclusivo ao Estado e seu orçamento. Como isso tudo foi
construído?
Como vimos, até 1930, a legitimação principal, construída no primeiro
quartel do século XX, foi a transfiguração do bandeirante em uma espécie de
“equivalente funcional” do pioneiro protestante ascético americano. Poucos,
como Vianna Moog, perceberam o que estava em jogo:
A julgar pela atoarda da literatura nacional em torno dos bandeirantes, dir-se-ia que o São Paulo
moderno, o São Paulo das indústrias, o São Paulo do café, o São Paulo que constrói e monta o mais
soberbo parque industrial da América do Sul, é obra exclusiva do bandeirante e do espírito da
bandeira. Porque nisto de emprestar ao bandeirante atributo que ele nunca teve, o paulista de
quatrocentos anos é um perfeito ianque. Se, para valorizar o símbolo que lhe é caro, for preciso
atribuir ao bandeirante atributos orgânicos, ele o atribuirá; se para magnificá-lo for preciso torcer a
história ele a torcerá.50

Inicialmente, a influência intelectual maior nesse contexto não foi de Max


Weber – como seria mais tarde, a partir de 1930 –, mas sim o clássico de
Tocqueville e seu elogio à democracia americana.51 Passou-se a acreditar que a
pujança econômica americana era resultado de um suposto espírito ascético
com as atribuições de disciplina, iniciativa, autocontrole e controle da realidade
externa; e desenvolveu-se uma teoria para dizer que, também nós, tínhamos os
nossos pioneiros.
Existem três fases históricas para a construção do mito bandeirante. A
primeira fase se dá ainda no século XVIII. Não havia, até os trabalhos de Madre
de Deus e Paes Lemes na segunda metade do século XVIII, nenhuma
consciência sobre o papel do bandeirante e de seu sentido histórico.52 Paes
Leme cria uma narrativa heroica do paulista e do bandeirante como líder
militar, e Madre de Deus valoriza a origem mameluca e a expansão geográfica
bandeirante.53 O contexto de surgimento dessas obras não deixa de ser
esclarecedor. A partir do século XVIII, os potentados locais do altiplano paulista
passam a sofrer a concorrência de comerciantes reinóis. A perda de poder
relativo estimulou os dois autores, descendentes dos pioneiros da capitania de
São Vicente, a tomarem para si o desafio de construir uma história positiva dos
bandeirantes – e própria a São Paulo.
A segunda fase de revivescência desse mito se dá a partir dos anos 1870,
quando o café paulista passa a ser a mola econômica propulsora do país,
convivendo, no entanto, com o que era percebido como uma subalternidade
política dos paulistas. Essa é a razão última da crítica ao centralismo político
imperial, assim como da valorização do sistema federativo nos moldes
republicanos, como aconteceria mais tarde na ­República Velha. A partir do
final do século XIX, quando a necessidade de legitimação política da primazia
econômica paulista se torna urgente, o bandeirante ressurge como o candidato
ideal para embasar esse esforço.
O mito bandeirante irá servir como uma luva para a legitimação da pretensão
de superioridade paulista. A consolidação da hegemonia paulista no período
republicano passa a se legitimar pela necessidade de se atribuir ao bandeirante a
responsabilidade pela construção da unidade nacional – não só São Paulo, mas
também o Paraná e Minas Gerais teriam sido colonizados pelos bandeirantes –
pavimentando, por sua vez, o caminho para a formulação de um projeto
nacional formulado a partir de São Paulo.
Para o sucesso desse projeto, era necessário criar uma oposição entre o
“caráter paulista” e o do resto do Brasil. O “povo paulista” seria uma exceção de
progresso em meio ao atraso nacional, tido como causado por um povo apático
e dependente, muito especialmente os “nortistas”.54 Essa oposição vai passar a
ser construída a partir da identificação do bandeirante paulista com o povo
americano, percebido como o pioneiro ascético protestante detentor das
supostas virtudes da iniciativa, liberdade e espírito empreendedor. A partir de
1870, passa a existir diversas menções ao espírito americano de São Paulo.
Esse ponto é decisivo. A afirmação de uma história e de uma tradição comum
aos paulistas – e distinta do resto do Brasil – possibilita um espaço livre para a
construção da exceção nacional (o excepcionalismo paulista). Américo
Brasiliense, já em 1878, defendia o Partido Republicano Paulista, o PRP, como
baluarte da liberdade, independência e espírito de iniciativa e expressão dos
princípios do liberalismo americano. Esse espírito seria a expressão tropical da
“township” americana elogiada por Tocqueville.
Em paralelo, ocorria um redimensionamento da figura dos bandeirantes,
vistos até então como assassinos egoístas de índios. A redenção do bandeirante
exigiria um think tank específico – precursor da USP como usina de ideias
elitistas, bancado pela elite paulista: o IHGSP, Instituto Histórico e Geográfico
de São Paulo, criado em 1894. Expressando uma política cultural dirigida pela
elite paulista, o IHGSP transformou o mito colonial paulista em história oficial.
A atividade do IHGSP era toda voltada à elaboração de uma ideologia
justificadora da primazia cultural paulista,55 demonstrando como a USP, mais
tarde, faria exatamente o mesmo ideário.
O núcleo do argumento desses intelectuais orgânicos da elite paulista era a
identificação com o americanismo, percebido como espírito de iniciativa e
empreendedorismo. Para todos os efeitos, São Paulo passa a ser visto como uma
espécie de “Massachusetts tropical” – o estado americano onde os protestantes
ascéticos perseguidos, vindos da Inglaterra, chegaram primeiro; e de onde se
originou a colonização de todo o país. Do mesmo modo, São Paulo devia
irradiar o seu espírito para todo o resto do país visto como atrasado e
dependente. Em 1913, Basílio de Magalhaes afirma que, devido ao seu espírito
de inciativa, eram os paulistas os “ianques da América do Sul”.56 A bandeira de
13 listras também é uma óbvia identificação com o americanismo.
O presidente Washington Luís – que era fluminense, mas que se transformou
no mais ardoroso defensor do passado paulista – também ajudou a financiar a
publicação de histórias regionais que criaram o verdadeiro boom de
publicações sobre o bandeirante estilizado dos anos 1920. As obras de Alfredo
Ellis, Alcântara Machado, Paulo Prado e Afonso de Taunay, acerca das supostas
vantagens da tradição paulista, são todas dessa época. Washington Luís ainda
transforma o museu paulista em uma verdadeira “catedral bandeirante”,57 além
de construir, quando era governador, monumentos em todo o Estado.
O objetivo do mito bandeirante era duplo: tanto justificar o comando nacional
da elite paulista sobre o resto do país quanto separar o paulista de quatrocentos
anos dos novos forasteiros vindos da Europa aos milhões, a partir de 1880. A
guerra civil de 1932 veio modificar essa situação, intentando que os
imperativos de solidariedade interna dos irmanados na luta comum pudessem
preponderar. É a partir daqui que começa a terceira fase do mito bandeirante,
passando a significar todos os paulistas independentemente de origem e classe
social.58
O componente discriminatório do mito – o narcisismo da pequena diferença
– passa a se dirigir, então, à comunidade nacional como um todo. É
interessante notar uma peculiaridade desse contexto histórico, à qual poucos
atentam: em 1930, estava terminando o maciço fluxo de cinquenta anos da
vinda de 5 milhões de brancos europeus, cuja maioria se fixou em São Paulo.
Apenas muito mais tarde, viriam, em massa, os nordestinos. Ora, a
solidariedade interna de um Estado tão dominante e populoso como São Paulo
vai ser realizada pela elite, que se diz “americana”, e pelos milhões e milhões de
brancos imigrantes – que se pensam europeus, até hoje, pela origem recente.
Em um país tão marcado pela escravidão e pelo racismo, não é um fato pueril
que o estado mais importante do país, em todas as áreas da vida, veja-se como
culturalmente e “racialmente” – raça e cultura são intercambiáveis na prática
social, como veremos em detalhe – “superior” ao restante do país. Com a
unificação do mito bandeirante “para dentro” do estado, abriu-se a
possibilidade da construção de um bloco antipopular – no sentido da oposição
contra a maioria mestiça e negra da população – formado pelas elites
quatrocentonas e pela ascendente classe média e classe trabalhadora branca de
recente imigração. São Paulo passa a ser percebido, para todos os efeitos, como
o lugar do encontro entre americanos e europeus, campeões da “civilização”,
em contraposição ao resto do país, ou seja, de São Paulo para baixo, percebido
como uma África mestiça e preta que precisava ser colonizada, pelos superiores,
racial e culturalmente.
A partir de 1930, no entanto, a revolução cultural varguista implica
reconhecimento da cultura negra como um pilar cultural fundamental, que já
discutimos acima, e se constitui, a partir disso, na primeira afirmação positiva
do povo mestiço e negro na nossa história. Foi essa afirmação positiva que
ajudou a interditar o racismo explícito que vigorava antes de 1930. A
influência de Gilberto Freyre como criador do mito do “bom mestiço”, com as
virtudes ambíguas da afetividade e do calor humano, de modo a se contrapor
ao racismo explícito anterior que via o negro e o mestiço como a simples “lata
de lixo” da história, é evidente. Pela primeira vez, afirmava-se e celebrava-se a
cultura popular preta e mestiça.
Por óbvio, esse impulso democratizante e antirracista não criou uma
“democracia racial”, mas interditou, a partir dos anos 1930, o racismo explícito
na esfera pública. A partir de Getúlio Vargas, o racista passa a continuar a
sentir o afeto racista, mas não pode expressá-lo enquanto tal, de modo
legítimo, em público. É claro que essa situação para as classes populares é
muito melhor do que o contexto de violência explícita anterior – só os tolos
acham que a violência explícita é melhor. Estava criado o “racismo cordial”
brasileiro: o que mantém o racismo, mas interdita sua expressão enquanto tal.
Qual o efeito do “racismo cordial” sobre a vida social brasileira? Ora, se o
racista branco das classes do privilégio não pode mais utilizar a linguagem
racial explicitamente, mas continua a carregar o afeto racista no peito, o que se
faz necessário é encontrar “equivalentes funcionais” para o racismo de classe e
de raça que são profundamente amalgamados entre nós. Assim, produz-se o
efeito de justificar a opressão e a humilhação dos mais frágeis, mas, agora, sem
tocar na palavra “raça”. A necessidade de oprimir mestiços, pobres e negros
advém do fato de que, como o acesso ao poder de Estado é a pedra de toque
para o domínio da elite de proprietários no mercado, sendo o seu “verdadeiro
negócio”, é imperioso criminalizar e mitigar ao máximo a soberania e o voto
popular. Afinal, qualquer governo popular implica um esforço de usar o
orçamento público para a maioria da população, justamente o que a elite não
quer, já que percebe o orçamento público como exclusivamente seu. A aliança
da elite com a então recente classe média branca, que se formava no país, vai
acarretar, por outro lado, a manutenção dos privilégios educacionais típicos da
reprodução social dessa classe de brancos.
Em resumo, a base dessa aliança é um acordo: a elite fica com a grana e toda
propriedade relevante, e a classe média fica com as boas escolas, boas
universidades e o acesso às línguas estrangeiras que conduzem aos bons
empregos. Assim, esse bloco de poder concentra apenas para si os dois capitais
mais importantes do mundo moderno: o capital econômico e o capital
cultural. E é por conta dessa busca de exclusividade que a classe média branca –
como tropa de choque da elite nas ruas – e a elite protagonizam golpes de
Estado toda vez que um líder popular assume o poder de Estado.
Mas como foi produzido o milagre de fabricar uma ideia que oprime e
desqualifica o próprio povo, do mesmíssimo modo como antes o racismo
“racial” explícito fazia, fingindo que se tratar de uma descontinuidade do
racismo anterior e que é tida, inclusive, como “crítica social”? Difícil conseguir
isso tudo com uma ideia só. Quem foi o gênio que conseguiu tudo isso? O
nome do gênio é Sérgio Buarque de Holanda. Coube a Buarque construir a
mais perfeita continuação do racismo “racial” anterior, transformando-o em
racismo “cultural” e fingindo que se é antirracista e crítico.
Buarque constrói o brasileiro em geral – como se a construção do indivíduo
não fosse produto da socialização familiar específica de cada classe social – e
afirma que somos todos “homens cordiais”, comandados pela emoção ao invés
da razão. Um povo literalmente “sem espírito”, comandado, portanto, pelas
paixões irracionais do corpo, com uma tendência incontrolável para a
corrupção e para o favorecimento pessoal. Se antes o povo mestiço e negro era
oprimido pela ideia da inferioridade racial, agora retira-se a ideia de “estoque
racial” e a substitui pela de “estoque cultural”, ou seja, substituiu-se o racismo
“racial” explícito pelo racismo “cultural” – de uma suposta herança de
corrupção que seria portuguesa e ibérica.
Essa ideia da corrupção portuguesa – desde a Idade Média, que teria sido
transmitida até nós – é uma fraude completa, já que não havia qualquer
diferença entre o patrimonialismo medieval português em relação ao
patrimonialismo todos os outros países europeus. Mais importante ainda é a
fraude científica e histórica evidente: não se pode falar de corrupção, no
sentido moderno, antes da revolução francesa e da invenção da ideia de
soberania popular. Antes disso, era impensável que existissem bens públicos,
que seriam de todos, e que pudessem ser roubados por particulares privados.
Essa fraude histórica, facilmente criticável, no entanto, está na cabeça de todo
brasileiro de hoje. Daí a importância de Sérgio Buarque como construtor de
uma nova identidade nacional “vira-lata” – auxiliado, nesse caso particular, por
Raymundo Faoro –, que repõe o povo brasileiro na “lata de lixo” da história. A
outra ideia seminal de Buarque, a que também ainda está na cabeça de todo
mundo hoje, é a de que essa tendência irresistível do brasileiro pela corrupção
se manifestaria, antes de tudo, no Estado e na política.
Não existe ideia mais importante para a elite do saque brasileira. Ela
criminaliza o voto e a participação popular – como antes o racismo “racial”
fazia – e garante para a elite o acesso exclusivo ao poder de Estado. Para isso,
basta criminalizar, com apoio da mídia (propriedade privada dessa mesma
elite), o líder popular com denúncias de corrupção, que, como vimos, não
precisam ser verdadeiras para produzir seus efeitos. Afinal, a população é
definida como corrupta e eleitora de corruptos. Assim, cabe enfatizar: todas as
vezes que algum líder popular, por definição corrupto e supostamente eleito
por um povo corrupto, teve acesso ao poder de Estado, tivemos um golpe de
Estado – perpetrado, na realidade, para evitar qualquer forma de inclusão
popular.
Desse modo, a própria elite, desde o século XIX localizada, antes de tudo, em
São Paulo, ganha a batalha simbólica de criticar a noção de identidade nacional
mais inclusiva de Gilberto Freyre e de Vargas em seu próprio benefício. Se a
elite paulista havia perdido a guerra militar em 1932 contra Getúlio, ela
aprendeu, por outro lado, a usar a dominação simbólica sob seu controle
privado: todos os jornais, televisão e indústria cultural passam a bombardear a
população 24 horas por dia, com uma única mensagem. A elite brasileira, antes
de tudo a paulista, descobre – da mesma maneira que a elite americana em
guerra contra os sindicatos, como vimos anteriormente – que são as ideias
envenenadas recobertas pelo prestígio científico que podem funcionar como a
mais perfeita criminalização do voto e da participação popular. Como toda
exploração do trabalho alheio precisa, antes de tudo, humilhar o oprimido e
retirar sua autoconfiança e sua autoestima, então Buarque deu à elite seu maior
presente. Eu não estou falando dos longínquos anos 1930. Essa concepção é,
ainda hoje, uma espécie de “segunda pele” de todo brasileiro – inclusive dos
intelectuais – e naturalizada e aceita como óbvia por quase todos, apesar de sua
fraude evidente.
Apesar de ter definido a corrupção como traço de todo o povo, vimos mais
acima que isso foi transmutado em acusação apenas contra a maioria do povo
mestiço, preto e pobre. Isso se explica pelo que já discutimos neste livro. A
denúncia midiática da corrupção passa a ser a arma mais importante utilizada
pela elite e pela classe média branca toda vez que se tente amenizar igualdades e
diminuir a distância dos pobres em relação às classes do privilégio. Foi isso o
que ocorreu com o próprio Getúlio, em 1954, e depois com Jango, Lula e
Dilma. A hipocrisia da elite e da classe média branca é patente. Nenhuma delas
tem, na verdade, nada contra a corrupção. Ao contrário, são seus principais
agentes.
Comparem o caso da “Lava Jato” com o caso “Dilma”, que reuniu, nas
principais cidades brasileiras, milhões de branquinhos, bem-vestidos e
indignados com a corrupção filmada e explicita de Aécio e Temer. Nenhum
branquinho bem-vestido e histérico saiu as ruas no segundo caso, enquanto no
primeiro foram milhões às ruas. O crime real de Lula e Dilma era, como
sempre foi, a tentativa de inclusão popular. Como vimos, o rombo de 40
bilhões de reais de Lehmann nas Americanas também não provocou alvoroço e
mal foi discutido na mídia. Simples: isso não é corrupção para a classe média
branca, mas sim negócio e esperteza empreendedora. Corruptas são a elite e a
classe média, uma vez que coniventes, mas a pecha recai apenas sobre o
povinho mestiço e negro – que não é nem elite nem classe média e seus
eventuais líderes. O tema da corrupção é a forma mais perfeita, portanto, de
criminalizar somente o povo sofrido, mestiço, negro e pobre. Ou seja, aquilo
que o racismo “racial” anterior fazia, comprovando seu papel social de
“equivalente funcional” do racismo.
O tema da corrupção como traço fundante da identidade nacional “vira-lata”
brasileira só serve para “moralizar” o racismo prático e a opressão social. Qual
branquinho histérico não iria gostar de ver seu racismo contra o povo ser
redefinido como defesa da moralidade pública? É apenas para isso que a farsa
da corrupção serve: para garantir a exclusividade da elite e da classe média
branca aos privilégios que as reproduzem como classes. O tema da corrupção
só do povo pobre e negro é a perfeita reedição e continuidade do racismo
“racial” anterior, apenas se vestindo, agora, com as cores reluzentes da
moralidade.
Toda essa epopeia é paulista. Foi urdida em São Paulo, primeiro com o think
tank da elite de então no IHGSP, produzindo a suposta excepcionalidade
paulista. E, logo depois, na USP,59 construída pela própria elite paulista para
disseminar as novas ideias elitistas disfarçadas de crítica social. Até hoje, essas
ideias envenenadas são dominantes em todas as universidades brasileiras – que
se criaram todas sob o modelo da USP. Com sua disseminação pela mídia e pela
indústria cultural, forma-se, desde cedo, a “cabeça” de todo brasileiro com essas
ideias envenenadas.
Muitos não percebem a importância das ideias na vida social, inclusive, entre
os intelectuais. As pessoas imaginam que as ideias ficam nas universidades e nos
livros, enquanto a sociedade se rege por suas próprias regras. Nada mais
superficial e enganoso. É apenas a ciência – ou, no caso, suposta ciência – que
possui prestígio para definir o que é verdade e mentira, e, a partir daí, separar o
justo do injusto. Foi a construção da identidade nacional proposta por Buarque
que deu e dá material para todos os jornalistas, cineastas, dramaturgos e
escritores para se pensar o Brasil. Cada um desses profissionais não produz as
ideias que utilizam em suas criações, mas as retiram – como todo mundo – do
tesouro de ideias produzidas pelos grandes intelectuais. Afinal, as ideias
dominantes são sociais e determinam a percepção individual.
Aos poucos, a excepcionalidade paulista vai se tornando uma espécie de
excepcionalidade da elite e da classe média branca, em todo o país. Esse
movimento acompanha a predominância paulista em todas as áreas, com
alcance agora nacional. Desse modo, não é apenas a elite de São Paulo que se
julga “americana” e empreendedora, mas toda a elite nacional. Do mesmo
modo, a classe média branca, de origem majoritariamente europeia, se expande
de São Paulo para todo o Sul do Brasil tirando onda de europeia em um país
cuja maioria é de mestiços e negros. Daí a expansão do orgulho europeu não
apenas para as classes médias desses Estados, mas também para os pobres
remediados e brancos do Sul e de São Paulo. Se 70% a 80% da população
desses Estados, como vimos, possui ascendência europeia, então os pobres e
brancos, muitas vezes com sobrenome alemão ou italiano, são, em suma,
pobres. A classe média “real” não é maior do que 20% da população em
nenhum lugar do Brasil. Assim, temos de 50% a 60% de pobres brancos na
população dessa região.
E são pobres, visto que não tiveram os privilégios de herança e de capital
cultural que a elite e a classe média “real” possuem. Ou seja, foram oprimidos
como todas as classes populares. No entanto, eles se identificam com a elite e a
classe média, seus algozes, de modo a auferirem uma distinção social positiva,
supostamente racial e cultural, contra os humilhados e excluídos. Quem não
compreende as razões de sua própria humilhação não pode se rebelar contra
ela. Mas a humilhação cria a necessidade de sentir-se superior aos outros, de
modo a garantir, não pela crítica, mas pela imitação dos “superiores”, algum
alívio da humilhação sentida de modo objetivo cotidianamente. Bolsonaro
soube, como ninguém, fazer uso dessa carência – canalizando-a contra os mais
vulneráveis: os pobres, os pretos, as mulheres e os gays. Vamos investigar, a
seguir, as entrevistas que podem nos mostrar como isso acontece na cabeça do
branco pobre, para depois analisarmos suas visões de mundo.

II. ENTREVISTAS: O BRANCO POBRE DO SUL E DE SÃO PAULO

F. Rössler
F. Rössler é da linhagem dos primeiros descendentes de alemães, vindos do
Norte do Rio Grande do Sul, que colonizaram o oeste catarinense. Essa região
viveu a Guerra do Contestado – que envolvia a eliminação dos antigos
habitantes, indígenas e “bugres”, das terras às margens da Estrada de Ferro São
Paulo-Rio Grande, doadas pelo governo ao milionário americano Percival
Farquhar, como compensação pela construção da ferrovia. Essas terras, que
possuíam ocupação desde o século XVIII, tinham milhares de posseiros que
cultivavam erva-mate e gado em cultura extensiva, os quais foram
violentamente alijados de suas terras. Ao classificar as terras como devolutas,
como se não fossem habitadas por ninguém, o próprio governo federal criou as
precondições para o conflito.
A família de F. Rössler chegou ao local pouco depois da companhia
colonizadora formada para desocupar a região – e que, inclusive, já havia
“limpado a área” (na própria expressão de F. Rössler sobre o assassinato e
expulsão dos indígenas e bugres que habitavam o local). F. Rössler conhece
bem a história da colonização, e me diz que o massacre dos indígenas e bugres
foi uma necessidade para limpar a terra e dá-la aos novos donos. Assim como
os governo federal e estadual, a empresa de colonização comandada por
brasileiros de origem italiana considerava os antigos habitantes animais, e,
como dizia o avô de F. Rössler nas rodas de família: “O bugre é um bicho, e
bicho a gente mata”.
F. Rössler é brasileiro de três gerações, mas se declara “alemão”. Na realidade,
seu sobrenome alemão é da mãe, e não do pai descendente de poloneses. Uma
nítida escolha racial e de pureza étnica. Ele e todo o ramo da família da mãe
ainda se veem como alemães, apesar de estarem no país há mais de um século.
Seu avô, citado acima, foi um fervoroso simpatizante do nazismo no Brasil, e F.
Rössler guarda várias fotos dessa época. Essa é uma história contada, ainda
hoje, com orgulho.
F. Rössler é subgerente de uma loja de materiais de construção em
Concórdia, uma cidade marcada pelo domínio da empresa Sadia. Ele ganha 5
mil reais como subgerente da loja, mas assume posturas de quem pertence às
classes do privilégio econômico ou cultural. A loja de materiais de construção
pertence a dois tios, e todos moram nos três andares de cima da loja, que fica
no andar térreo. F. Rössler mora em um quarto e sala no primeiro andar junto
com primos solteiros, cada um ocupando uma unidade. Os dois andares de
cima são ocupados pela família de cada um dos tios donos da loja.
Os primos solteiros são jovens e fazem faculdade – coisa que F. Rössler não
fez. Com 18 anos, tentou universidades públicas de cidades vizinhas, mas não
conseguiu passar. As universidades privadas eram muito caras para ele. F.
Rössler “racionaliza” sua posição de desvantagem objetiva pela falta de estudos
dizendo que a “vida prática” no trabalho ajuda muito mais do que os estudos
na universidade. Ele queria ser administrador de empresas, mas tinha péssimas
notas em matemática e isso condicionou seu insucesso nas provas de admissão.
Tendo entrevistado F. Rössler duas vezes no seu ambiente de trabalho, pude
testemunhar coisas interessantes. A caixa da loja era chamada por ele de
“bugra”, como os descendentes de indígena são conhecidos no Sul do Brasil –
embora dito sem agressividade explícita, quase como se fosse carinhoso, na
verdade passava um tom de desprezo evidente. Tive oportunidade de perguntar
à caixa, que se chamava Clarice, se o apelido lhe incomodava, ao que ela me
respondeu: “Nem me incomodo mais com isso. É como todo mundo me
chama por aqui”.
No dia da primeira entrevista, soube, por intermédio de Clarice, que F.
Rössler havia tido problemas também com um faxineiro haitiano (uma espécie
de encarregado geral de limpeza da loja). Segundo ela, F. Rössler dava broncas e
gritava com o rapaz todos os dias. Até que o rapaz apareceu acompanhado de
amigos, que cercaram F. Rössler e quase bateram nele. O faxineiro terminou
despedido por justa causa. Clarice explica que os episódios constantes de
racismo contra os haitianos em Concórdia – que vieram para cobrir a falta de
mão de obra na cidade – fizeram com que criassem grupos de homens para se
defender.
Quando perguntei a F. Rössler sobre o fato, ele me respondeu do seguinte
modo: “Eu não sou racista, tenho amigos e empregados negros. Agora, que os
caras são lentos e sem disciplina, isso é inegável. A nossa tradição60 é a do
trabalho e da disciplina. O cara não é pior porque é negro, ele simplesmente
teve outra cultura e assimilou isso.”
“Como assim ‘cultura’”, perguntei. “Cultura é o que se aprende em casa, e eu
aprendi a ser trabalhador e disciplinado. A cultura negra é a da festa, da dança,
da preguiça e do barulho, não do trabalho”, F. Rössler define. Eu aproveito e
pergunto quais são os valores principais dessa tradição cultural a que ele se
refere. Ele me diz que são os valores da honestidade, do trabalho e da família. E
acrescenta: “Onde quer que se tenha essas três coisas juntas, o lugar pode ser
um país ou uma cidade,� ele vai se desenvolver”, e cita o caso da própria
cidade de Concórdia como comprovação empírica do que afirma: “A cidade é
pequena, mas é limpa e bem-cuidada, e a economia vai de vento em popa.”
Em seguida, perguntei por que as condições de vida dos negros e dos
nordestinos são tão precárias e desiguais. O “culturalismo” de F. Rössler se
reafirma: “A cultura do negro, basta ver o carioca e o baiano, é mais de se
divertir e não do trabalho. Isso é bom para o carnaval, mas não para a vida do
dia a dia. Depois começa a fazer filho e aumentar a schwarzelei [‘negrada’, em
alemão da região] para conseguir uma ‘bolsa preguiça’ do governo.” No
entanto, curiosamente, F. Rössler acha que o negro pode ser ensinado a
trabalhar, coisa que ele não acredita ser possível para aqueles sobre os quais
deixa recair seu julgamento mais severo: os nordestinos e os “bugres”.
Para F. Rössler, os nordestinos e os “bugres” – odiado há séculos na região do
oeste catarinense – são a “praga” do Brasil.
Não me entenda mal, eu já fui ao Nordeste de férias e sempre fui bem tratado. O
problema não é esse. O que me dá raiva é o hábito das pessoas de lá de viver à custa
dos outros. O Sul e o Sudeste produzem as riquezas – isso todo mundo sabe – e os
nordestinos se aproveitam de uma riqueza que eles não contribuíram. Tudo para
viver à custa do esforço do trabalho dos outros. Os “nordestino” só fazem filho para
poder receber do governo, não tem o sentido de família, me entende?
“Você fala do ‘Bolsa Família’”?, perguntei.
Sim, claro, mas não é só isso. Por que alguns têm tanto privilégio e outros não?
Cadê a recompensa para quem trabalha duro e não tem a ajuda de ninguém? Não
me entenda mal. Não tenho nada contra o povo de lá. Como disse, acho bom ir lá
de férias, o povo é simpático, sabe receber o forasteiro. Mas eu queria poder entrar
um dia no Nordeste de passaporte, entende?
“Como qualquer europeu?”, perguntei. “Sim, como qualquer europeu ou
estrangeiro”, F. Rössler responde, de pronto.
Você acha que as escolhas políticas dos nordestinos prejudicam o resto do
Brasil?
É que lá tem a coisa de obedecer ao político, entende? Se a pessoa te dá uma cesta
básica e uma prótese dentária, você vota nela seja lá quem for. Quando digo que
quero passaporte para ir ao Nordeste, é que quero aproveitar as coisas boas de lá,
como as comidas e as praias, sem que seja o nordestino quem diga quem vai
comandar o país, entende?
Você está se referindo ao voto dos nordestinos nas últimas eleições que
elegeram o Lula?
Não só nas últimas, mas em todas as eleições que me lembro. É só dar alguma
vantagem para eles que eles passam a te seguir como um cãozinho. Foi isso que o
Lula fez. Como nordestino, ele sabia como levar o povo no bico. Mas eles não
pensam no país, só pensam neles próprios. É como esses “bugre” aqui da região, de
vez em quando você vê um bugre de camionete nova, comprada com financiamento
que deveria ir para a criação de porco e frango. É por conta disso que o país não vai
para frente como os outros. Tem sempre o camarada do almoço grátis para
atrapalhar.
Você já teve problemas com os “bugres”?
Sim, já tive. Já quiseram me obrigar a botar meus filhos na escola junto com “os
filho de bugre”, e nos organizamos contra isso. Não é o tipo de influência que quero
para meus filhos, e um pai tem o direito e o dever de proteger sua família. O PT
governou Concórdia de 2001 a 2016 e só fez ruindade, como a escola misturada
por pura demagogia. Para mim, o maior problema é o PT e a demagogia que eles
fazem. Aqui na minha casa ninguém usa camisa vermelha. Nem na loja também,
funcionário meu não usa vermelho. Se usar, eu demito.
F. Rössler, você votou no Bolsonaro?
Sim, nas duas eleições. Eu não digo que ele é perfeito. Ele errou na pandemia, por
exemplo. Eu mesmo perdi amigos e familiares quando ficou todo mundo sem
vacina. Tive covid e passei três dias muito mal, quase fui entubado. Quando pude,
me vacinei, ao contrário do povo mais jovem daqui, que não se vacinou. Então não
acho que tenha sido tudo bom. Mas ele é diferente dos outros políticos. Pode errar, é
verdade, mas é sincero e diz tudo o que pensa, e não tem medo de apontar o que
está errado. Agora, que tem uma campanha da mídia contra ele,�isso tem. E isso é
porque ele toca nas coisas que ninguém quer falar por medo. Ele é político diferente
dos outros, e é isso que gosto nele. Ele fala como a gente aqui. Acho ele parecido com
a gente. É um dos nossos. E tem a defesa da família, que é o principal. E não sou só
eu que me identifico com ele, 90% da comunidade daqui é Bolsonaro.
Você é religioso?
Eu sou da Igreja Batista. Meus avós são luteranos, mas hoje em dia ninguém mais
jovem aqui é luterano. Aqui é tudo pentecostal, batista ou Universal. Os luteranos
que restaram têm todos mais de 70 anos. O que me importa em uma igreja é a
proteção da família e a certeza de que vamos passar nossos valores para os nossos
filhos.
Uma última pergunta, F. Rössler. Quando entrei em Concórdia, vi uma grande
placa na entrada da cidade que dizia: “Bolsonaro não rouba nem deixa roubar.”
Você acredita nessa frase?
Olha, acredito, sim. Ninguém pode negar a roubalheira do PT no governo. Todo
mundo viu e muitos parecem ter esquecido, mas eu não esqueci. Agora, para criar
confusão, a mídia quer fazer todo mundo acreditar que Bolsonaro também é
corrupto. Mas nada ficou provado contra ele como ficou provado com o Lula e o PT.
É sempre assim, quem tenta mudar o país para melhor vai receber campanha da
imprensa contra, vai ter juiz contra para que tudo continue como sempre foi. Eu
acho que tem uma armação da imprensa e do STF para desmoralizar o Bolsonaro.
Marcelo
Marcelo é gaúcho e morador de Porto Alegre. Marcelo é branco, forte e
musculoso, alto e com rosto de traços finos. Marcelo, ao contrário da maioria
das pessoas analisadas aqui, nasceu na classe média estabelecida, ou seja, na
classe média “real” – e não no faz de conta da “nova classe média” –, tendo a
sua mãe um bom salário como oficial de justiça do Rio Grande do Sul.
Embora nosso tema seja em especial os brancos pobres, as trajetórias de
decadência social, como a de Marcelo, que implicam a impossibilidade de
reproduzir a trajetória dos pais e da geração anterior, também nos interessam.
Elas também provocam ressentimentos, raivas e desorientações que são
importantes para nosso tema neste livro. Afinal, apesar da origem distinta, essas
pessoas agora ocupam um lugar muito próximo no espaço social em relação aos
pobres remediados que estamos estudando.
Marcelo cresceu sob os cuidados da mãe, que se separou do pai muito cedo.
Ainda que, hoje em dia, Marcelo se encontre com o pai de vez em quando, ele
foi ausente na educação do filho. Como filho único, Marcelo teve todos os
cuidados de sua mãe, inclusive com acesso a boas escolas particulares de Porto
Alegre. Nunca foi um bom aluno, mas se destacava nos esportes, sobretudo no
futebol, tendo jogado no time juvenil do Grêmio. Seu desejo juvenil de ser
jogador de futebol não se concretizou, já que foi reprovado no funil do Grêmio
para a profissionalização. Sua opção seriam os times menores do interior – de
quem teve convites que, no entanto, não o animaram.
Depois de reprovado nos vestibulares para direito nas universidades públicas
de Porto Alegre, Marcelo foi aceito em uma universidade privada, a PUC de
Porto Alegre. Marcelo levou a universidade do mesmo modo como levou toda
sua vida escolar anterior: estudava apenas o suficiente para passar. Ainda assim,
teve que repetir matérias, o que fez seu curso demorar mais do que o esperado.
Aos 23 anos, quando termina a faculdade, Marcelo se dedica a um mestrado
em economia, agora já trabalhando para ajudar a pagar a universidade. É nessa
época que surge a ideia de montar um bar junto com outro amigo. A coisa não
vai para a frente, e depois de dois anos de muita dificuldade, os sócios decidem
fechar o negócio.
Aos 25, com mestrado concluído, mas sem inserção no mercado, Marcelo
tenta realizar seu antigo sonho de entrar para a Polícia Federal por meio de
concurso público. Importante ressaltar que a sua mãe lhe garantia o privilégio
máximo para qualquer jovem de classe média no Brasil: Marcelo podia apenas
estudar sem se preocupar com a subsistência. Depois de várias tentativas sem
sucesso, Marcelo decide fazer concurso para agente penitenciário, e é aprovado.
Não era o seu sonho, mas pelo menos tinha um emprego. Isso o permitiu
alugar um pequeno apartamento com sua noiva, Donatella Gimenez, que faz
pós-graduação em direito e é estagiária em um grande escritório, ganhando
1.500 reais por mês.
Marcelo me confidenciou que, somando todas as horas extras que faz, ganha
cerca de 4 mil reais mensais como agente penitenciário, o que faz dele um
pobre remediado no sentido que estamos desenvolvendo neste livro. Seu capital
econômico e cultural o exclui da classe média branca estabelecida, à qual a sua
mãe pertencia. Ou seja, sua realidade o insere em uma trajetória social de
decadência – destino de muitos brancos pobres no Sul do país. O caso de
Marcelo não é isolado. Ele me disse que a maioria de seus amigos não
conseguiu, assim como ele, reproduzir as trajetórias sociais mais bem-sucedidas
da geração anterior.
Marcelo se envergonha do seu emprego atual e não desiste de seu sonho de se
tornar policial federal. No entanto, as reprovações se repetem já há vários anos.
Ele começa a se acostumar com seu destino. Ele me disse, em tom não muito
convincente, que se o emprego atual é o emprego de sua vida, então “que seja”.
Mas a mãe, segundo ele, não o deixa “desistir de seus sonhos”. A mãe é a
grande figura de inspiração para o filho. Aposentada aos 50 anos, possui um
bom rendimento que a permite “viajar o mundo” e pôr suas histórias e suas
fotos em um grupo no Instagram voltado a dicas de viagem. Esse grupo é o
interesse principal da mãe.
Quando minha conversa com Marcelo – depois da confiança gerada no
diálogo introdutório sobre as generalidades da vida familiar e escolar – passa ao
tema da política e dos preconceitos sociais, ele não esconde suas opiniões sobre
nenhum assunto. Ao tocar no tema do racismo, sua resposta foi muito
interessante. Marcelo me disse que ele, ao contrário da mãe, que é abertamente
racista – tendo dissolvido a relação com uma amiga querida de muito tempo
depois que ela se casou com um homem negro –, não se considera racista.
Ainda que ele concorde com a mãe quando ela afirma que: “A polícia tem que
subir o morro matando todo mundo, mesmo”, Marcelo não percebe o racismo
de raça e de classe que esse tipo de fala envolve. Para ele, se não houver
referência explícita à negritude das pessoas atingidas, não significa racismo.
Vemos aqui a eficácia das máscaras que o racismo “racial” assume para
continuar vivo. O bordão “bandido bom é bandido morto” é o substituto do
“negro bom é negro morto”.
Para Marcelo, o Brasil não é um país racista (mesmo reconhecendo o racismo
da mãe). Como prova, ele me relata que, em uma estadia no Rio de Janeiro
visitando um familiar, foi correr no parque Guinle – um conhecido parque em
Laranjeiras – e viu um homem negro “cagando”, e se surpreendeu por ninguém
ter dado uma surra no sujeito. Ele explica que, em Porto Alegre, o homem
negro teria apanhado muito. Para ele, isso demonstrou a ausência de racismo
no país.
Na verdade, para Marcelo, o racismo é científico. Os brancos têm uma curva
de inteligência maior do que a dos negros, assim como os amarelos a teriam
maior do que a dos brancos, mas os negros são melhores no esporte e em tudo
o que se refere a atletismo. É como se cada “raça” tivesse pontos positivos e
negativos, sem que isso signifique racismo contra uma raça específica. Marcelo
esquece, obviamente, que as características do branco – e do amarelo, para ele
– são virtudes do “espírito”, conforme definido por Immanuel Kant:
inteligência, moralidade e capacidade estética que nos aproxima do divino na
natureza humana. Ao negro, sobraria excelência nos atributos corporais –
mostrando sua animalização, já que o corpo, e suas emoções e virtudes
ambíguas, nos aproximam do reino animal por oposição ao “divino”. E, como
já exposto neste livro, destituir alguém de sua humanidade é a operação
fundamental de todo tipo de racismo.
Esse tipo de esquema de explicação perpassa toda a visão de mundo de
Marcelo. Ele é, por exemplo, contra o voto universal, por considerar que as
pessoas sem estudo não entendem de política – elas ou não deveriam votar, ou
seus votos deveriam valer menos. Ele me pergunta: “Você deixaria que alguém
que não fosse médico te operasse? É a mesma coisa no caso do voto de quem
não tem formação.” Em seguida, olha para mim com cara de vitória, como se
acabasse de formular um argumento definitivo e acima de qualquer dúvida.
Sua concepção de sociedade é meritocrática e assume que o mundo atual é o
melhor dos mundos possíveis. Para ele, o capitalismo é a repetição mais perfeita
da ordem das coisas. “É assim que as pessoas são”, diz, referindo-se ao egoísmo,
que seria o dado mais importante do progresso social na medida em que
“impulsiona as pessoas para frente”. E completa: “Quem mora na rua é porque
quer.” Afinal, para ele, quem quiser – de verdade – melhorar de vida, consegue.
Como exemplo, cita o caso de uma faxineira conhecida que, segundo ele, é
quem alimenta os filhos e compra, inclusive, móveis novos para a casinha
modesta.
Quando perguntei se tinha raiva de pobre, ele me respondeu que respeita o
pobre que se esforça a ponto de subir na vida: “Quem continua pobre é porque
é preguiçoso e não gosta de trabalho.” E logo lança sua crítica às cotas em
universidade. Para Marcelo, as cotas não são inclusivas, uma vez que discrimina
o branco pobre. Quando fiz referência às cotas sociais por escola pública, que
abrangeria todas as “raças”, ele me retrucou dizendo que fora do Rio Grande
do Sul existem poucos brancos nas escolas públicas – a maioria é negra ou
mestiça, o que, em sua visão, corrobora seu argumento de que cotas são sempre
raciais e injustas.
Apesar de já ter recorrido ao SUS várias vezes, Marcelo é também defensor do
Estado mínimo. Como estudou economia, afirma: “O mercado é melhor
regulador da vida social porque sempre privilegia quem merece.” Para ele, o
Estado entra sempre para atrapalhar e evitar a livre competição de todos contra
todos, prometendo “almoço de graça” para alguns escolhidos, em especial os
pobres, sempre com fins eleitoreiros e políticos.
Como a sua mãe, Marcelo primeiro tendeu a votar, em 2018, em Amoedo –
o político até hoje mais admirado por ela. Os dois se encantaram com a “nova
política” e com as teses hiperliberais. No entanto, logo depois da “facada”,
decidiu apoiar Bolsonaro e se manteve fiel até hoje, sem jamais titubear. Não
acredita na imprensa “elitista” que fala mal de Bolsonaro e, como pude
observar no dia da entrevista, a TV de casa está sempre ligada na Jovem Pan.
A conversão ao bolsonarismo se deu a partir da percepção de que Bolsonaro
encarnaria duas coisas importantes para ele: o liberalismo sem peias,
simbolizado na escolha por Paulo Guedes e o discurso do armamento da
população. De início, como me falou, tinha desconfiança de Bolsonaro por esse
ser “estatista”, já tendo, no passado, votado contra a privatização da Petrobrás.
Mas o quadro de guerra política de 2018 o fez reconsiderar tudo a ponto de se
tornar um apoiador acrítico, racionalizando contrabando de joias e
“rachadinhas”. Para Marcelo, existe um plano articulado pela imprensa para
manchar a imagem da família Bolsonaro.
Embora não seja evangélico, admira a bandeira moralista, como, por
exemplo, no caso do aborto. Esse ponto é interessantíssimo, já que o próprio
Marcelo me confessa que já havia feito, ele próprio, aborto em três mulheres
que haviam engravidado dele. Segundo ele, basta dar dois comprimidos: um
pela boca e o outro pelo ânus. Sua explicação da óbvia contradição não deixa
de ser reveladora: para Marcelo, o que se deve evitar é a existência de uma lei
permitindo o aborto, pois isso apenas aumentaria a sua prática. Afinal, quem
precisar pode fazer em casa “com segurança”.
Mas o ponto alto da admiração por Bolsonaro – que se tornou incondicional
– é mesmo o discurso “bandido bom é bandido morto”. Marcelo só anda
armado fora de casa. Em casa, guarda a arma em cima da mesa de TV: um
revólver prateado, de grosso calibre, que nos observava atento durante toda a
nossa conversa. Apesar de gentil e educado comigo, a figura de Marcelo é
assustadora de tão forte e musculosa. E ele não hesita em usar da violência
quando acha necessário. No dia da segunda entrevista, realizada no final do dia,
ele me contou que tinha dado um “tapão” na cara de um estuprador algemado,
que teria rido para ele. A pancada nos presos é parte da vida diária, Marcelo diz
que é a única maneira de se lidar com esse tipo de gente e ser respeitado.
Ainda que não goste do serviço e reclame do salário, ele tem parceiros no
trabalho. Toda semana, no seu dia de plantão, faz um churrasco com os amigos
agentes penitenciários na cadeia. Eles levam a carne, o equipamento e fazem
uma churrascada a noite toda. Ele me conta aos risos, como se fosse muito
engraçado, que, quando o cheiro da carne sobe para as galerias onde estão os
presos – muitos com fome e sem comer carne há dias ou semanas –, a cadeia
toda é tomada por gritos, protestos e revolta geral. É uma tortura explícita que
o grupo de amigos faz de bom grado.
Quando o barulho da indignação fica muito alto e dura muito tempo, os
agentes jogam mangueira de água gelada nos presos, mesmo no frio inverno
porto alegrense. Apesar de tudo, o churrasco semanal noturno é uma grande
alegria e motivo de comemoração. Em meio a gritos lancinantes, o churrasco e
as risadas entre os amigos duravam horas e, às vezes, a noite toda. Como não
acredita na regeneração dos presos – para ele, todos saem piores –, Marcelo
considera que esse tipo de punição, como agressões violentas a presos indefesos
ou a tortura da carne sendo assada lentamente, seria o único meio de fazê-los
pagar pelo mal que fizeram. Ele me deu a impressão de que, se morasse no Rio
de Janeiro, seria um miliciano assassino sem sentimento de culpa.
R. Kühn
R. Kühn é filha mestiça de pai alemão e de mãe brasileira, negra e baiana de
família pobre. A família do pai era altamente preconceituosa. A avó dizia
sempre: “Ainda bem que os filhos do pai descendente de alemães nasceram
brancos, apesar da mãe negra.” A exceção foi R. Kühn, que seria percebida
como uma “mulata clara” fora do Sul do país.
Como R. Kühn me confirma, ela é percebida como branca em todo o Brasil,
exceto no Sul, afinal possui cabelos longos e lisos, que é o dado mais
importante para a percepção da branquitude no país. Ela sentiu preconceito na
escola o tempo todo. Como era tudo em tom de brincadeira, ficava difícil se
defender, e a única saída possível era fazer de conta que não era sério. Ela
procurava aprender a “levar na brincadeira”.
Quando ela se aproximava, os amiguinhos diziam coisas como: “Lá vem a
escuridão.” Como havia muitos descendentes de italianos na escola, os meninos
cantavam uma música em italiano que, em tradução para o português, dizia:
“Cão, corvo, sapo e negro é tudo a mesma coisa.” Se havia uma pequena
disputa ou discussão, então a coisa ficava mais séria e agressiva. Era comum
ouvir falas do gênero: “Volta para a senzala, negra do diabo.”
A avó paterna, figura proeminente na família, não a tratava mal, mas a
tratava de modo diferente dos netos brancos “puro sangue”. Tudo isso fez com
que R. Kühn se sentisse “um estranho no ninho” durante toda a vida. Parecia
que a vida não havia sido feita para ela. O fato de ser negra, mulher e ainda
namorar mulheres em uma cidade pequena, fez com que ela adotasse uma
posição defensiva e reativa a vida inteira. R. Kühn via no estudo uma maneira
de ficar livre disso tudo. Sempre foi boa aluna, conseguiu se formar em
Jornalismo e seguir a profissão. Ela me diz: “Sou uma das únicas mulheres
negras a trabalhar em um jornal importante de Chapecó.” Ela reflete sobre a
forte onda de preconceito que existe na cidade e no Estado.
Não é só contra o negro, o pessoal do Nordeste também é visto como preguiçoso e
aproveitador. Com os negros é pior. Como jornalista, eu tive que cobrir uma
reportagem sobre os haitianos que haviam sido convidados a trabalhar aqui –
existem milhares de vagas abertas em toda a região, que tem pleno emprego, daí a
necessidade de importar trabalhadores. E eles, no começo, me disseram que
simplesmente não entendiam os maus-tratos da população e da polícia contra eles.
Era uma realidade que eles não tinham no Haiti.
Mas o preconceito “regional” contra os nordestinos também é muito forte. É como
se a culpa de tudo fosse do nordestino que não trabalha e é sustentado pelo trabalho
do Sul. Vamos separar o Sul do resto do Brasil, porque é o Sul quem mantém o país
dos preguiçosos – Chapecó, ao contrário, assim como Santa Catarina, é a capital do
trabalho!
Mas o pior, para R. Kühn, é o preconceito arraigado contra ela na própria
família: “Por conta da minha opção de fumar um baseadinho, meus tios já
invadiram a minha casa e me bateram. Mas veja só: todo mundo sabia que
meus tios haviam sido viciados em cocaína por muito tempo. Por que a
perseguição comigo?”
Ela não tem dúvida de que a razão profunda é ela ser “mestiça” e lésbica.
Existem dois tios, em especial, que quando se embebedam – o que é comum –
agridem R. Kühn verbalmente e, em duas ocasiões, agrediram fisicamente.
Uma das vezes ela foi empurrada de uma escada e caiu, se machucando de
forma séria. Já levou tapas e até uma tentativa de estrangulamento de um dos
tios. Ela me conta que enquanto um tio estava apertando seu pescoço na
tentativa de estrangulamento, ela pedia, em desespero, ajuda ao outro tio – que
nada fazia, apenas assistia e aprovava. Foi necessário que viessem as irmãs e tias,
que ouviram a briga e os gritos, para tirarem o tio de cima dela. O motivo foi o
cheiro de um baseado que ela acendeu em casa para relaxar.
Receber tapas na cara dos tios era comum a cada briga. Como todos
moravam em um único prédio em cima da casa de ferragens da família, o
convívio era íntimo. A família inteira morava num prédio de quatro andares
com a loja do avô no térreo. Um esquema muito semelhante ao de Felipe em
Concórdia, que já examinamos algumas páginas antes. A empresa familiar no
térreo era uma loja de secos e molhados, e depois virou uma casa que vende
ferramentas. Todos trabalhavam com o avô. Com o tempo, só a mãe de R.
Kühn permaneceu, e os tios abririam lojas próprias.
Para que as agressões ocorressem, bastava que R. Kühn pegasse o carro do avô
– que ninguém mais usava, de tão velho – para resolver alguma pendência.
Então os tios a xingavam de “aproveitadora de idoso”, embora o próprio avô
permitisse que a neta usasse o carro. R. Kühn me conta que, no contexto da
família, ela se sentia de direita porque não queria ser excluída. A pressão
familiar era enorme nesse sentido. Mas a partir do impeachment de Dilma, que
R. Kühn achou vergonhoso, começou a mudar e a articular uma nova
identidade política. Isso a ajudou também a assumir sua sexualidade, já que
para a agradar a família havia tido namorados na adolescência. Tendo se
tornado de “esquerda”, lésbica e “maconheira”, e já sendo “negra”, morar com a
família ficou insuportável.
R. Kühn deixou sua pequena cidade no oeste catarinense há alguns anos, e
hoje mora em Chapecó, onde divide um pequeno apartamento de três quartos
com duas amigas. As duas cidades, como toda a região, têm um ambiente
social e político muito semelhante. Em Santa Catarina, como no Sul inteiro,
diz-se que eles são imigrantes – ou seja, europeus e não brasileiros. Para R.
Kühn, essa crença é a mais importante fonte de orgulho das pessoas em todo o
Sul do país: “Já andei por vários lugares do Sul, como o norte do Rio Grande
do Sul e o interior do Paraná, na minha atividade de jornalista. E o ambiente é
o mesmo, com poucas mudanças. Aqui é difícil achar uma pessoa que pense
diferente”. Mas elas existem, a exemplo do seu atual chefe no jornal. Ele não é
de esquerda, mas não admite qualquer comentário racista ou sexista no
ambiente de trabalho. E foi a possibilidade de trabalhar com ele o principal
motivo dela ter ido morar em Chapecó.
A bisavó “alemã” de R. Kühn, uma senhora ainda lúcida e rija de 94 anos, foi
visitá-la um dia, e saiu dizendo que a casa de R. Kühn “parecia casa de negro”,
porque o espaço estava desarrumado e com roupas jogadas em muitos lugares.
R. Kühn, no entanto, percebe claramente o que está por trás do racismo: “O
discurso racista empodera as pessoas, faz elas sentirem que são melhores do que
outras.”
Um dos seus tios é agora vereador pelo PL em Concórdia, o partido que, com
o PSDB, controla a cidade. O discurso do tio tem como objetivo criar o que R.
Kühn chama de “pânico moral”. Ele cria pânico moral para culpar nordestinos,
por exemplo, por badernas à noite no final do turno do frigorífico da BRF às 3h
da manhã. Como alguns vão tomar uma cerveja com os colegas antes de irem
dormir, o tio apregoa que a cidade está à mercê de “baderneiros”. As outras
vítimas são os haitianos, que foram chamados para trabalhar numa cidade com
pleno emprego e falta de mão de obra. As terceiras vítimas são os moradores de
rua, um fenômeno recente na cidade. Para o tio, não pode ter morador de rua
nem pessoas pedindo no sinal. É preciso “limpar” a cidade. Segundo R. Kühn,
a articulação PL e PSDB, atendendo a essa forma de apelo, destruiu o que havia
sido feito pelo PT até 2016 – como escolas, postos de saúde e parques nas
regiões carentes. A parte europeia da cidade aprovou todo esse desmonte.
Matheus
Matheus é advogado e tem trinta anos. Quando no começo da entrevista eu
contei a ele que também estudei direito, mas que nunca advoguei, ele replicou:
“É, tem advogado que foge da raia!”, como se fosse uma questão de honra e
não de escolha. Matheus nasceu em Santa Cruz, no Rio Grande do Sul, filho
de uma pedagoga e de um veterinário tardio, que se formou mais tarde. A vida
da família foi de muito trabalho e pouco dinheiro. Mas, ainda que com
sacrifícios, os pais fizeram de tudo para Matheus estudar em escola particular e
ter uma boa formação.
A história familiar é marcada pela carreira do pai como funcionário de
escritório da BRF. Matheus morou em Santa Catarina, Goiás e Mato Grosso.
Ele me conta que esse contato próximo com o agronegócio durante seus anos
de formação forjou muito de suas convicções políticas atuais – Matheus afirma
que o agronegócio é todo de extrema direita: “Isso me influenciou, mas não fui
tanto por esse lado mais extremado. Eu sou de centro direita hoje, e liberal.
Meu pai já é mais de acordo com o ambiente de trabalho dele.”
Como o pai pagava com esforço sua escola particular, ele era muito exigente
com Matheus e não queria que ele se divertisse quando adolescente. Esse
sempre foi um ponto de discordância com o pai. Mas o maior problema foi o
fato de Matheus ter descoberto, no final da adolescência, sua
homossexualidade. O pai não se conformou por um bom tempo com a
situação, e ponderava com o filho como isso podia pôr todos seus planos de
uma carreira a perder. A mãe, de início, reagiu como o pai, mas logo ficou ao
lado do filho, tentando fazer o meio-campo com o marido para aceitar o filho.
Ele sempre foi mais próximo da mãe do que do pai. Hoje, no entanto, ele se
hospeda com o namorado na casa do pai, sem problema algum.
Como sempre quis fazer direito, Matheus tentou e conseguiu um lugar na
Universidade Federal de Pelotas, no Rio Grande do Sul. Matheus achou a
universidade pública muito desorganizada e com uma turma heterogênea que
vinha não apenas do interior do estado e da região Sul, mas também de todo
Brasil. Já era o tempo do Enem e das cotas sociais e raciais. Ao contrário das
escolas particulares em que estudou, Matheus reclama da falta de material para
os estudantes e dos períodos longos de greve que marcaram o período no qual
ele estudou lá. Isso vai reforçar suas ideias e concepções sobre a ineficiência,
para ele inerente, de qualquer serviço público.
Um outro ponto que o incomodava era a discrepância de suas posições
políticas com a dos colegas vindos de outros lugares do Brasil. Eram os agitados
anos pré-impeachment – estudou na universidade de 2012 a 2016 –, e ele se
torna um ferrenho opositor do PT e um apoiador de primeira hora da Lava
Jato. A maior parte de seus colegas, no entanto, estavam no outro espectro
político, e essa também foi uma experiência formadora para Matheus.
A principal frustração de Matheus foi a impossibilidade de cursar uma
universidade privada, por falta de dinheiro. Seu desejo era sair de Pelotas para
estudar direito empresarial na PUC-RS, que tinha bons professores na área. Seu
objetivo era ser advogado de empresas em processos trabalhistas contra
empregados. Teve que continuar em meio a “bagunça”, como ele diz, da
universidade pública em Pelotas.
Matheus estagiou em vários escritórios e se dedicou mais ao trabalho do que
no estudo na universidade. Para ele, isso o ajudou a ter uma visão prática da
advocacia. O estágio cobria a maior parte de suas despesas em Pelotas e o
permitiu chegar ao final do curso em 2016. A dedicação de Matheus ao
trabalho de estagiário se devia também ao fato dele procurar um escritório que
pudesse contratá-lo depois de formado. Apesar das boas experiências e de sua
dedicação, isso não aconteceu. Ele me explica o motivo: “Nos escritórios
grandes, conta muito mais as relações familiares e com gente importante do
que o trabalho que você faz.” Ele trabalhava em um dos poucos escritórios
grandes de Pelotas e, na hora que se formou, foi preterido por um filho de
desembargador que caiu de “paraquedas”, como ele me disse, no escritório
onde nunca tinha pisado o pé.
Foi aí que decidiu fazer o concurso para técnico judiciário em Curitiba, onde
mora hoje. Matheus ganha cerca de 7 mil reais líquidos na vara em que
trabalha. Continua sonhando em trabalhar como advogado de empresas, mas
ele reconhece que, com o tempo, isso se torna cada vez mais difícil. A falta de
relações sociais importantes – uma rede de contatos, crucial no campo da
advocacia – é percebida por Matheus como o principal entrave para a não
realização, até agora, de seu sonho de trabalhar num grande escritório de
advocacia empresarial.
A paixão de Matheus pelo direito empresarial tem uma causa política.
Matheus se define como liberal e acredita que a empresa é o modelo ideal para
qualquer associação humana. Ele me diz que um país é tanto mais adiantado
quanto mais se pareça com uma empresa – como ele acredita ser o caso dos
Estados unidos. Isso parece condicionar o seu antipetismo na política, já que o
Estado inchado seria o maior problema que enfrentamos.
Para ele, em qualquer área da vida social, a iniciativa privada é mais eficiente.
Por conta disso, quanto menos Estado melhor. Estado significa, para Matheus,
ineficiência e corrupção. Daí seu apoio à Lava Jato e ao impeachment de
Dilma, em 2016. Pergunto se ele acha a corrupção o maior problema do Brasil,
e ele me responde que sim, que foi algo que sempre existiu no país desde o
começo da colonização, como se estivesse no nosso DNA, e acrescenta: “Hoje
em dia, nós temos um sistema político que é muito sujo.”
Como a maioria do povo brasileiro até hoje, Matheus acha que a corrupção é
algo inerente apenas à política, e nunca aos negócios do mercado. Quando
pergunto sobre as malas de dinheiro da JBS para Aécio e Temer, isso não o faz
mudar de opinião.
O problema é sempre do político, porque se ele for honesto não vai ter a falcatrua.
Todo mundo tem que ser honesto, mas especialmente o político, porque responde
pelos muitos que votaram nele e mexe com o dinheiro público. O empresário,
mesmo corrupto, faz isso com o próprio dinheiro e não com dinheiro alheio.
Apesar de perceber o Estado como a origem de todos os males, Matheus não
advoga em favor da simples eliminação do Estado. Ele considera que, em países
como o Brasil,61 é preciso haver um pouco de Estado para combater a miséria.
Eu não me importo com a desigualdade, já que ela é inerente a toda sociedade, mas
sim com a miséria, é ela que deve ser combatida. Os Estados Unidos são um país
desigual, mas isso não tem problema, porque os pobres de lá não são miseráveis
como os daqui.
Aproveito a deixa e pergunto o que ele acha do Bolsa Família para combater a
miséria. Matheus acha que o Bolsa Família é algo negativo, já que é um
benefício para garantir o voto do pobre e manipulá-lo.
De início, eu gostava da obrigatoriedade de mandar o filho para escola, mas até isso
se perdeu no programa. Pra mim, o Bolsa Família tinha que ser de, no máximo,
cinco anos – até que as pessoas possam caminhar com as próprias pernas.
Sobre a maior parte das pessoas atendidas pelo programa serem nordestinas,
para Matheus, isso se deve primeiro a diferenças geográficas – como qualidade
da terra e água para cultivo –, que depois se tornam uma “bola de neve”, na
medida em que a falta de educação e de recursos seriam consequência da
determinação natural que se autonomiza. Matheus afirma: “Por conta disso, a
situação do Nordeste é tão difícil.”
Sobre a Lava Jato, Matheus é só elogios. Ele cita uma pesquisa que teria dito
que 64% das pessoas acham que a corrupção aumentou depois do desmonte da
Lava Jato. É radicalmente contra esse desmonte, e acha a Lei da Ficha Limpa
algo fundamental, embora ele acredite que não é aplicada. Por conta de sua
cruzada contra o Estado e o assistencialismo que o PT representaria, Matheus
sempre votou contra o partido: “Se tiver qualquer coisa como alternativa ao PT,
eu vou votar nessa alternativa”.
“Em quem você votou para presidente?”, pergunto. “Eu votei no Amoedo,
em 2018, e em Felipe D´Avila, em 2022. Só no segundo turno, para evitar o
PT, é que votei em Bolsonaro.” Ele me disse ainda que não gosta de Bolsonaro
porque não é uma pessoa que ele “contrataria” para sua empresa, se tivesse
uma. E que, como não contrataria nenhum dos dois (Lula ou Bolsonaro) para
ser o CEO de uma empresa, também não votaria de livre vontade neles. Eles não
seriam, portanto, bons CEOs da Brasil S/A.
Em resumo, ele votou em Bolsonaro pelo perfil ultraliberal de Paulo Guedes,
mas não gosta do estilo agressivo e preconceituoso de Bolsonaro – cita, como
exemplo, as perseguições a gays e indígenas sob seu governo. Ao mesmo tempo,
diz que a posição radical de Bolsonaro nesses temas tem a ver com o discurso
meramente retórico do PT em defesa das minorias. Matheus acredita que não
cabe ao Estado mexer nesse assunto, já que as empresas já fazem inclusão de
minorias – inclusive de gays, negros e mulheres. Ainda que jogue a culpa pelo
preconceito às minorias no colo do PT e de seu discurso retórico, ele ressalta
que não votou em Bolsonaro no primeiro turno das duas últimas eleições por
conta desse ataque às minorias.
Ele me diz também que a polarização já existia antes, e por culpa do PT: “Foi
o PT que inventou aquela história do nós contra eles e, com isso, conflagrou o
país.” Em seguida, me confessa que o antipetismo une toda a sua família no
campo da direita e da extrema direita. A maior parte da família foi do PSDB
para o Partido Novo – que é o partido com o qual ele mais simpatiza –, e
alguns direto para o colo de Bolsonaro. Matheus finaliza, relembrando a única
exceção na família: “Eu tenho uma tia petista, mas dela eu gosto porque o
discurso combina com a prática�no caso dela”.
Tiago
Tiago, 76 anos, me conta que sua vida familiar foi em Ribeirão Preto, em São
Paulo, cidade onde nasceu. Seu pai natural abandonou a família – formada por
ele, um irmão mais velho e a mãe. A mãe, uma mulher bonita, segundo ele,
casou-se de novo com um grande empresário da região. Tiago tinha seis anos
quando isso tudo aconteceu. A mãe teve dois filhos com o novo marido, e o
grande problema de Tiago parece ter sido o fato de se ver preterido pelos
irmãos do novo casamento.
Ele relata que sua infância e adolescência foram um grande esforço para
merecer a atenção da mãe e do padrasto. Segundo ele, a mãe gostava mais do
filho caçula do novo casamento, o qual também era o filho preferido do
padrasto (pai biológico de Nuno, o caçula) – que costumava dizer, à mesa, que
queria que Nuno guiasse os negócios da empresa. O padrasto era dono de
várias fazendas na região onde se criava cavalos de raça para venda. Tiago conta
que os cavalos eram, e ainda são, vendidos a peso de ouro. Também tinha
diversas revendedoras de automóvel e tratores na região, e uma infinidade de
bens imóveis em Ribeirão Preto e entorno. Esse tipo de tratamento era
percebido por Tiago como uma injustiça, já que, por mais que quisesse
angariar o afeto especial de padrasto e da própria mãe, nunca conseguia
competir com os irmãos mais novos. Ele culpa mais a mãe por isso tudo, afinal,
ele compreendia o fato do padrasto gostar mais dos filhos naturais.
Essa experiência parece ter sido definidora da personalidade de Tiago. Ele me
conta que, enquanto os irmãos iam fazer – aos 16 ou 17 anos – cursos de um
ano em Londres para aprender inglês em uma escola cara e com mesada alta,
ele permanecia na cidade natal tendo uma vida comum e sem privilégios. Disse
também que nunca teve as chances que os meios-irmãos tiveram. Era um
sonho do padrasto que Nuno fosse político e empresário – segundo a opinião
do padrasto, uma coisa ajudava a outra –, então Nuno era preparado com
devoção. Quando o menino completa 17 anos, é mandado para Nova York
para estudar administração de empresas e economia na New York University.
Nessa ocasião, o padrasto de Tiago compra um pequeno apartamento para o
filho caçula, bem pertinho da universidade – que fica no Village, no coração da
cidade –, com uma linda vista de Nova York. Ele cita o fato para mostrar o
esmero e a afeição do pai pelos filhos naturais – em especial o caçula –, que
tiveram tudo o que quiseram. Tiago também culpa a revolta de se ver sempre
sendo preterido pelo fato de ter sido um aluno medíocre na escola e na
universidade.
Ao terminar a universidade particular de administração de empresas, ele
almeja algum cargo de direção nas empresas do padrasto. Consegue, no
entanto, apenas o cargo de gerente de uma revendedora de tratores. Tiago tinha
27 anos. O filho mais velho do segundo casamento, Enzo, tinha apenas 21
anos e ainda cursava administração na FGV, em São Paulo, quando o pai o
chamou para ajudá-lo nas empresas da família. Mais um revés para Tiago.
Quando tinha 30 anos, um dos diretores denunciou um desfalque na
empresa de tratores e apontou Tiago como o suposto autor da fraude. Como
esse diretor era também o melhor amigo do padrasto, ou seja, tinha sua total
confiança, Tiago perdeu o cargo de direção e nunca mais recebeu outra chance.
Em vez disso, trabalhou em cargos intermediários nas empresas do padrasto até
sua aposentadoria. Hoje, Tiago recebe cerca de cinco mil reais do INSS, e me diz
que sua sorte foi seu irmão caçula ter deixado um apartamento do espólio do
pai com ele, por decisão própria, já que ele não teria direito a nada quando o
pai morreu: “Ele me livrou do aperto que seria pagar aluguel com o que ganho
hoje.”
Exceto o contato com o caçula Nuno, que o ajuda eventualmente a comprar
remédios e pagar terapias, dado que Tiago foi diagnosticado com Parkinson em
estágio inicial, ele não tem contato com mais ninguém da família, posto que,
no episódio do desfalque, todos acreditaram no relato do diretor. Tiago
adiciona um comentário significativo sobre todo esse caso: “Se eu tivesse feito o
desfalque, teria sido uma reparação pela injustiça que sofri a vida toda.” E
acrescenta, com a ênfase de quem acredita no que diz: “Mas não fui eu que
fiz!”. Por alguma razão, não acreditei em Tiago nem na sua inocência.
Tiago é daquelas pessoas que culpam o mundo pelo próprio fracasso. Sua
decadência não foi, de modo algum, pedagógica para ele. O que comanda sua
ética de mundo é: independentemente do teor daquilo que ele faça, tudo é
bom e justo por ser reparação das injustiças que sofreu. Aos 70 anos, o
ressentimento de Tiago parece ter encontrado um canal de expressão no
fenômeno político Bolsonaro. Quando respondia às minhas mensagens no
WhatsApp para marcarmos as entrevistas, ele sempre me mandava um “joinha”
feito pela figura do Bolsonaro com o polegar para cima e passando através de
uma parede. Tiago mora sozinho desde o divórcio com a mulher, cerca de onze
anos antes. Quase todo seu tempo é dispendido na internet, onde ele participa
de vários grupos extremistas de direita.
O ódio pessoal a Lula é o traço mais evidente: “Esse cara é um atraso para o
país. Imagina no exterior, todas as coisas que esse analfabeto faz? É uma
vergonha para o Brasil inteiro!”. Pergunto a ele o que tanto o desagrada em
Lula. Ele responde, de bate-pronto: “Ele é ladrão, além de burro e analfabeto.
Temos que tirá-lo de onde está – seja por bem, seja por mal”. Em seguida,
perguntei se ele havia se mobilizado para ir a Brasília no Oito de Janeiro, e o
retorno foi: “Convidado eu fui, mas eu tenho quase oitenta anos e decidi me
preservar.” Ele acreditou piamente na versão que diz que foram os militares –
que covardemente arregaram na “hora h” – os responsáveis pela tentativa
fracassada de golpe. Tiago continua: “Ainda bem que não fui. Convite tive
muitos. Muita gente saiu de ônibus daqui com mantimentos para vários dias”
– ou seja, tudo pago por gente ligada ao agronegócio da região. E finaliza o
raciocínio dizendo que prefere fazer a sua parte pela internet mesmo.
Tiago passa a maior parte de seu tempo no computador, conversando e
articulando nas suas redes de extrema direita. Um dos pontos mais
representativos da personalidade de Tiago é ele acreditar que pobres e pessoas
sem escolaridade superior não devem ter o mesmo peso eleitoral de quem tem
boa formação. Ele me diz: “O ideal é que o voto de quem tem estudos valha
pelo menos três vezes mais do que o do pobre preguiçoso que não aproveita as
chances e oportunidades.”
E não é apenas Lula o alvo do ódio. Tiago parece odiar qualquer pessoa das
classes populares que tenha ascendido socialmente. Ele tem um namoro virtual
com uma mulher de 61 anos, moradora de Natal, no Rio Grande do Norte, a
qual conheceu nas redes de extrema direita. Os dois já se viram
presencialmente duas vezes, mas o contato principal é pela internet. Tiago me
mostra as trocas de mensagens com a namorada, e observo que a governadora
do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra, é o ser mais odiado – depois de Lula,
claro – pelos dois. Eles trocam memes o dia inteiro tirando sarro da herança
indígena da governadora, e a acusando constantemente de tráfico de drogas e
corrupção.
Ele diz que a namorada tem mais de 30 mil seguidores no Instagram e outros
tantos no Facebook, e milhares de contatos no Telegram. Tiago se orgulha do
sucesso da namorada e a incentiva a entrar na política. Ela já tentou ser
vereadora por Macaíba, uma pequena cidade perto de Natal, onde nasceu.
Segundo Tiago, ela perdeu por muito pouco, mas nunca mais quis tentar um
novo cargo eletivo. Tiago me confessa que já teve ambições políticas quando
mais jovem, mas que agora se acha velho para esse tipo de batalha: “Eu faço
meu trabalho de casa, mesmo. Quando tem um evento político da direita na
região também procuro ir, se estiver bem de saúde.”
Pelo que pude observar vendo seu computador, o “trabalho” de Tiago é,
exclusivamente, espalhar todo tipo de notícia falsa e dar credibilidade a elas.
Ele participa de, pelo menos, quinze grupos de bolsonaristas de todo o país.
Explica: “O meu trabalho é de formiguinha, mas pouco a pouco vou
conseguindo atingir mais pessoas.”
Muitos dos contatos de Tiago são policiais, bombeiros e caminhoneiros que
ele conheceu em Ribeirão Preto e região. Com os problemas familiares que
teve, Tiago me conta que não é bem-recebido pela família: “Eles acreditaram
piamente nas mentiras que inventaram contra mim.” A única exceção é o
caçula, que já foi deputado federal por São Paulo e que hoje comanda as
empresas que restaram depois da má administração do dinheiro familiar pelo
irmão mais velho do segundo casamento: “Ele é o único que me ajuda quando
preciso. Mas não fico enchendo o saco dele, não. Só peço quando preciso,
mesmo. E sempre por problemas de saúde”.
A referência ao irmão mais velho do segundo casamento, que arruinou boa
parte da fortuna do pai, é a prova, para Tiago, de que foi preterido
injustamente. Ou seja, ele acredita que as atitudes de Biba – apelido do irmão
mais velho do segundo casamento, que se chama Enzo – demonstram que a
perseguição familiar contra ele não tem fundamento.
O Biba deu “tombo” em todo mundo que podia. Vendeu boa parte do patrimônio
imobiliário do pai dele e gastou o dinheiro em fazendas superluxuosas, poker, carros
importados e até em um pequeno jatinho. Fazia também festas de orgia na sua
fazenda preferida, e mandava vir mulheres da capital no jatinho ou voos fretados.
Além de muita, mas muita cocaína. Eram festas que duravam dias, regadas a
centenas de garrafas do champanhe Veuve Clicquot”. Depois de dizer isso Tiago
arremata: “Imagine, o que eu fiz62 foi pinto pequeno perto desse estrago do meu
meio-irmão. Mas o que foi que aconteceu com ele? Nada.
Enzo arruinou 50% da fortuna do pai em poucos anos, e, apesar de ser
afastado de todas as empresas, recebe ainda uma mesada de trinta mil reais do
caçula que assumiu todos os negócios restantes para si. Tiago acrescenta: “O
cara roubou todo mundo e ainda ganhou um prêmio. Enquanto eu�fiquei a
ver navios.” A história de vida de Tiago, ao que pude perceber depois de várias
entrevistas com ele, liga-se ao bolsonarismo pelo seu ressentimento amargo.
Bolsonaro é visto por ele como uma figura de fora do sistema, que assume o
comando pela sua sinceridade e coragem.
Ele teve a coragem de peitar todo mundo, coisa que eu não fiz – e olha onde estou
agora. Só não foi eleito porque o Nordeste, a região mais atrasada do país, vota até
em ladrão condenado desde que ele tenha distribuído umas migalhas por lá.
Tomara que todos passem fome agora! A culpa é deles em não reconhecerem tudo o
que o Bolsonaro fez pela região. Que morram de fome!
Para Tiago, os nordestinos são a praga do Brasil. E ele elenca razões empíricas
que comprovariam sua tese:
Quando foi que começou a ter assaltos na cidade de São Paulo? Quando vieram os
nordestinos. O mesmo aconteceu no Rio. São preguiçosos e perigosos. Só querem
levar vantagem. É sempre a mesma turma que quer algo especial para si, uma lei
especial para levar vantagem à custa dos outros, como os LGBT+, os quilombolas, os
indígenas e até as mulheres. Grande parte de minha admiração pelo Bolsonaro vem
de ele não aceitar isso e de dizer na cara de qualquer um.
Pergunto se ele tem orgulho de sua ascendência italiana.
Óbvio. Foram os italianos que construíram São Paulo, hoje o estado mais rico do
Brasil. Tudo com trabalho duro, sem apoio e ajuda, só pela vontade do trabalho,
mesmo. Seria um sonho que o Brasil todo fosse como São Paulo. Você vê, em algum
lugar do Brasil, coisa parecida com as estradas e as empresas que temos aqui?
Geraldo
Geraldo é um gaúcho que emigrou para Brasília, com os familiares, aos 16
anos. Geraldo tem uma história de vida peculiar. Foi sempre um aluno de altas
notas na escola e excelente desempenho. Entrou na universidade passando em
segundo lugar no vestibular para Engenharia Civil da UnB, em Brasília. Saiu
também com a segunda maior nota do curso entre todos os alunos. Logo
conseguiu uma boa colocação em uma das empreiteiras mais importantes da
cidade, e fez carreira na empresa dos 24 aos 42 anos.
Com 41 anos, foi direcionado para comandar a construção de uma série de
condomínios de luxo que a empresa pretendia construir no litoral da Bahia.
Geraldo assumia, pela primeira vez, uma função de comando e direção. Antes,
desempenhava com zelo a função de assessorar o presidente da empresa na
aprovação de todos os projetos. Uma função importante, mas sem autonomia.
A nova função de comando na Bahia, que deveria durar cerca de três anos,
revelou, com o passar do tempo, uma vulnerabilidade de Geraldo que iria
acompanhá-lo como um fantasma pelo resto da vida: a sua bipolaridade.
Como pude apreender de sua fala, o fato de não estar na sombra do chefe
maior desestruturou a personalidade de Geraldo. Ele me conta que brigou com
praticamente todo mundo da empresa na Bahia, e ainda pôs em risco o projeto
ao confrontar agressivamente membros do Ministério Público e figuras
importantes da política baiana. Sem a proteção e a subordinação a uma
autoridade maior, Geraldo literalmente “louqueou” e passou a imaginar,
inclusive, que poderia se candidatar a cargos políticos no município baiano –
tornando-se uma espécie de caudilho local. Ele era neto de uma figura
importante da política gaúcha, e se acreditava ungido de carisma político — a
sua verdadeira paixão. Esse movimento, detectado de imediato pelos políticos
locais, passou a gerar todo tipo de problema para a empresa e quase
inviabilizou o projeto como um todo.
A demissão às pressas salvou o projeto da empresa, e Geraldo foi substituído
rapidamente. Ele foi demitido pelo mesmo chefe da empresa que antes o
protegia. Logo foi diagnosticado um quadro de mania causado pela
bipolaridade – o que explica o comportamento agressivo e a perda de referência
do próprio comportamento. Geraldo jamais se recuperaria desse baque. Tentou
construir uma empresa própria e não conseguiu. Além disso, toda a
comunidade de engenheiros de Brasília sabia o que tinha acontecido na Bahia,
o que lhe impedia de conseguir novo emprego em qualquer lugar na cidade. O
caso foi rumoroso, sobretudo porque Geraldo atribuía as reações à inveja de
colegas que se sentiam preteridos pelo fato dele ter sido um protegido do dono
da empresa. Geraldo ficou quase um ano sem qualquer emprego.
Finalmente, recebeu o convite de um primo que havia seguido a trajetória do
avô e se tornado deputado federal por Goiás. A influência maior desse primo se
localizava na cidade de Santo Antônio do Descoberto, perto de Brasília. A
partir de contatos pessoais, foi possível conseguir um cargo de confiança para
Geraldo na prefeitura de Santo Antônio. Ele ajudava na detecção de defeitos de
construção de casas e prédios, e concedia alvarás de construção para todo tipo
de edificação. O salário de 5 mil reais era considerado pequeno para ele, mas
numa cidade pequena o custo de vida é também muito mais baixo, a começar
pelo aluguel. Mas jamais desistiu do sonho de entrar na política.
A ocasião surgiu com a subida meteórica de Bolsonaro à presidência. Geraldo
me conta que sempre foi conservador em todas as questões relativas à família e
à sociedade. Teve sérios problemas com a única filha porque a moça fumava
maconha, por exemplo. Geraldo chegou a expulsá-la de casa. Suas fases
maníacas e depressivas, que se alternavam – ele conta que não tomava a
medicação adequada direito – haviam levado Geraldo a perder novamente o
último emprego. Foi nesse contexto que ele passou a ser um seguidor fiel e
apaixonado de Bolsonaro. Ele me conta sobre o ídolo:
Bolsonaro tem a mesma raiva que eu sinto contra tudo aquilo que acho errado.
Pessoas como eu, que suaram a camisa e ralaram na vida para ser alguém, não têm
o reconhecimento que deveriam ter. O que nós vemos é o mesmo pessoalzinho da
mamata se dando bem, como sempre foi. Bolsonaro foi o único que quis dar um
basta nisso. Precisava ser alguém como ele, sem medo de dizer tudo o que pensa.
Geraldo viu a oportunidade de se candidatar – seu eterno sonho – a um cargo
eletivo em Santo Antônio do Descoberto. Suas pautas foram “costumes” e
“segurança pública”. Ficou amigo de uma turma de policiais do Batalhão de
Choque da Polícia Militar do DF (PATAMO). Ofereceu, inicialmente, ajuda a um
policial que queria reformar a casa, e Geraldo passou a fazer o trabalho de
engenheiro de graça para os novos amigos. “Tornei-me um construtor de lajes”,
conta ele, rindo. Quatro desses policiais se tornaram seus cabos eleitorais
fervorosos nas diversas polícias militares do DF e seu entorno. Muito de sua
propaganda eleitoral eram selfies que ele tirava com os policiais em ação. O
mantra da campanha? Por óbvio, “bandido bom é bandido morto”.
Passou a andar armado, e suas redes sociais estão cheias de fotos em clubes de
tiro com os amigos policiais. O outro ponto central da visão política de
Geraldo é o seu ódio às drogas, em especial à maconha, provavelmente em
decorrência do problema com a filha. Para ele, traficante tem que morrer, e o
usuário tem que apanhar para aprender.
Apesar do apoio dos amigos da polícia, Geraldo teve apenas 139 votos e ficou
longe de ser eleito vereador da pequena cidade. Mais um fracasso para sua
longa carreira de tentativas malsucedidas. Por meio dos policiais, Geraldo teve
acesso aos empresários bolsonaristas da região, que financiam a disseminação
de fake news. Como a aposentadoria de Geraldo é pequena, não chegando a
cinco mil reais, sua nova atividade de aposentado é ser “influencer digital” na
periferia de Brasília – o que lhe garante uns trocados a mais, além de poder
participar dos churrascos de fim de semana de sua nova “galera”.
Geraldo me confidencia que existem filmagens falsas, pagas pelos
empresários, registrando um “cracudo”, obviamente um negro, roubando
coisas de um supermercado local e saindo correndo. Em seguida, pode-se ver
nas legendas do vídeo: “É isso o que vocês querem? Então votem no
presidiário!” Ele me diz que pagaram quinhentos reais ao “cracudo” para
participar da farsa. O trabalho de Geraldo é distribuir esse tipo de coisa para o
maior número de pessoas possível. Quando pergunto a Geraldo se ele não se
incomoda com o fato de divulgar mentiras, ele não hesita: “Mas é isso mesmo
o que acontece, isso é verdade todos os dias. Nós apenas mostramos algo que,
de outro modo, não poderíamos filmar. A filmagem representa o que acontece
no país inteiro mas nunca é mostrado. Então, nós mostramos.”
A seara bolsonarista deu um novo senso de importância à vida de Geraldo.
Ele agora acredita que participa, como membro ativo, de um processo de
mudança estrutural do Brasil. A mudança para um Brasil sem feminismo, sem
“privilégio” para as minorias e, principalmente, sem criminosos. Até uma nova
namorada ele conquistou nos frequentes convescotes de bolsonaristas do
entorno de Brasília. Apesar de morar em Goiás, em Santo Antônio do
Descoberto, Geraldo conheceu uma senhora de Brasília – uma bolsonarista
“roxa” que ia levar sopa quentinha para os acampamentos ao redor do setor
militar, com quem namora nos fins de semana.
Pode-se dizer que a militância bolsonarista deu tudo a Geraldo, que antes se
via como um fracassado. Hoje ele tem um propósito na vida, compartilhado
ardorosamente com outros iguais a ele, o que lhe traz o reconhecimento social
que sempre lhe faltou. Passou a contar com uma vida social frequente,
garantindo laços de camaradagem e amizade. Finalmente, mas não menos
importante, essa militância deu a Geraldo uma companheira, algo que ele
sentia falta há muito tempo. A solidão anterior, como ele próprio pontuou
várias vezes nas entrevistas, era algo que o incomodava muito. A militância
bolsonarista deu uma nova vida a Geraldo.

III. ANÁLISE DAS ENTREVISTAS COM OS BRANCOS POBRES OU


EMPOBRECIDOS

O conjunto das trajetórias de vida elencadas pelas entrevistas que fiz na região
Sul do país (na qual incluo São Paulo não só por partilhar o imaginário da
região, mas por tê-lo criado, em grande medida), mostram uma realidade
pouco estudada e muito peculiar. A negação do racismo entre nós é tanta que
quase ninguém fala da oposição – de resto, flagrante – entre o Brasil branco do
Sul e o Brasil mestiço e negro do Norte (São Paulo para cima no mapa,
englobando o Rio de Janeiro). Pior ainda: quando a BBC divulgou uma
entrevista comigo sobre a construção do “excepcionalismo paulista”,63 que
discuti acima, a reação contrária foi violenta. O meu Instagram sofreu uma
avalanche de críticas como nunca havia acontecido antes. Acusavam-me de
estimular a “cizânia nacional”, como se estivesse criando divisões onde,
supostamente, não existiam. Quando isso acontece – tocar em um nervo tão
dolorido que desperta esse tipo de emoção – tenho a prova de que preciso
seguir adiante: nada mais importante do que revelar as verdades reprimidas.
A “cizânia” que atribuem a mim foi criada, de forma intencional, pela elite de
São Paulo – como demonstrei acima – cuja influência se espraia na região Sul e
na fronteira agrícola do Sul de Minas Gerais. A solidariedade orgânica entre os
estados do Sul e de São Paulo – e que fez a maioria votar em uníssono em
Bolsonaro – é cimentada na crença comum da “europeidade” como sinal racial
e cultural de superioridade em relação ao resto do Brasil. Seu intuito foi, como
vimos, primeiro legitimar a superioridade inata da elite, com base em um
suposto culturalismo – que é uma fraude científica, como vimos. Em seguida,
depois de 1932, o objetivo foi ampliar essa superioridade para todo o povo
branco e europeu – que não seria gente-lixo, como são entendidos o resto do
Brasil mestiço e negro. Ou seja, a “cizânia”, criando uma oposição entre os de
dentro e os de fora, foi urdida pela necessidade de legitimar a supremacia
política de uma elite ascendente. Hoje, isso tudo está naturalizado por cem
anos de propaganda da imprensa elitista, e poucos se lembram de como tudo
começou.
A construção de uma identidade nacional da região Sul como identidade
distinta da do resto do país, por conta da “europeidade” é, no entanto, uma
realidade insofismável, apesar de tão reprimida. E é, antes de tudo, a elite de
São Paulo que a constrói – conforme vimos acima. Como o traço racial foi
simplesmente reprimido – pela afirmação popular de Getúlio – mas nunca
devidamente criticado, então o reprimido volta com ainda mais força sob
alguma máscara conveniente. Essa máscara foi a construção da imagem do
povo brasileiro mestiço e negro como corrupto, inconfiável, eleitor de
corruptos e aproveitador egoísta e preguiçoso.
Vimos anteriormente, em detalhe, que o povo cordial, emotivo, passional,
pré-moderno e inconfiável é apenas o mestiço e o negro. A parte “europeia” do
país, São Paulo e região Sul, ganha a legitimação que precisa para criar uma
distinção social positiva em comparação ao resto do país. Até hoje, boa parte
dessa população aufere autoestima pela origem europeia e se vê como distinta
do resto do país. Essa “cizânia” não fui eu que criei de modo artificial, como
alegaram meus críticos – ela já existia desde antes, e foi cimentada como crença
popular e destilada de modo capilar e emocional, ou seja, infensa à crítica e à
reflexão para toda a população branca.
Se existe um traço comum a todas as pessoas entrevistadas acima, é a crença
na supremacia natural do Sul e do branco de origem europeia sobre o resto do
país mestiço. Uma oposição que ficou consolidada quando se logrou substituir
o racismo “racial” anterior por um racismo, em tese, “cultural”. Esse tipo de
máscara do racismo “racial” permite ao racista odiar o mais frágil e vulnerável
fingindo que deixou de ser racista. O nordestino é tão odiado não pelo fato de
ter nascido perto da linha do Equador, mas porque a população nordestina é,
pelo menos, 80%, mestiça e negra.
Isso tudo foi naturalizado com facilidade, já que o racismo é o mapa social
mais ao alcance do leigo – que precisa de uma explicação convincente para a
hierarquia social, mas que não sabe como o mundo social complexo e confuso
funciona. O racismo permite esclarecer todas as dúvidas e passa a presidir a
visão de mundo dessas pessoas cognitivamente carentes de uma explicação
razoável acerca de como o mundo social funciona. Além da “necessidade
teórica” de explicação para o funcionamento complexo da sociedade, temos
aqui também o vínculo emocional, que é o que torna essas distinções
irresistíveis para um público sedento por autoestima e distinção social positiva
à custa de quem for.
A construção do “povo corrupto” como sendo o mestiço nordestino e o negro
eleitor de corruptos é a chave para a dominação social brasileira, que veste o
racismo íntimo de todos nós com um racismo “cultural” pseudocientífico –
sem recorrer à palavra raça e, portanto, podendo pleitear o “prestígio científico”
para corroborar sua validade. É assim, aliás, que são criadas todas as ideias
importantes. Durante a história da humanidade, as ideias que lograram
alcançar grandes massas ou foram ideias religiosas, ou – depois da secularização
– ideias científicas, uma vez que, sem o prestígio da religião ou da ciência,
nenhuma ideia vinga.
Quando se culpa a vítima dessa forma, o poder real se torna invisível, e não
existe nada mais importante para a reprodução de todo tipo de privilégio do
que se tornar invisível. Foi esse feito extraordinário que a elite paulista
alcançou: repaginar o racismo “racial” brasileiro em racismo “cultural” baseado
na ideia de corrupção como mote central. A hipotética superioridade do sulista
e do paulista em relação ao resto do país foi construída e alimentada sob a
forma de um equivalente funcional do racismo “racial” anterior. O novo
racismo “cultural” da pecha de corrupto aproxima e chama para si todos os
pecados morais da preguiça, da falta de confiança – daí a construção do negro
como criminoso – e da apatia.
Isso é visto em quase todos os testemunhos elencados. O gaúcho Marcelo,
por exemplo, é explícito: negro cagando em lugar público merece ser linchado,
do mesmo modo como ele tortura os presos famintos com o cheiro de picanha
sendo assada no churrasco semanal com os colegas agentes penitenciários – e
sabemos que os presos, em todo lugar, são mestiços e negros, em sua
esmagadora maioria. Sadismo em alto grau de requinte.
O caso da catarinense R. Kühn também salta aos olhos. Sendo a única
mestiça da família, ela experimentou uma perseguição doméstica dos próprios
familiares durante toda a vida – sem contar as piadas humilhantes na escola e
no ambiente de trabalho. As suas outras características – como sua orientação
sexual e o uso recreativo da maconha – surgem como confirmação de seu
caráter duvidoso, já prenunciado pelo simples fato de ser negra.
A ira do paulista Tiago ao atribuir o aumento da violência em São Paulo à
imigração nordestina – considerando o povo do Nordeste a origem do crime –,
e ao ridicularizar a origem indígena da governadora do Estado, atestam a
permissividade de um racismo insidioso – explicitado pela permissividade do
discurso de ódio bolsonarista.
O caso do gaúcho e hoje paranaense Matheus é mais matizado, e seu racismo
mais “sofisticado”, ou seja, um racismo que segue as regras do racismo cordial
brasileiro que finge não ser racista. Isso o obriga a procurar subterfúgios para
aquilo em que ele quer acreditar. Assim, a reclamação recai sobre a “bagunça”
das universidades públicas – um ambiente onde já reinam as cotas raciais e
sociais –, e sua ansiedade é para se mudar para uma universidade privada, cara
e cheia de gente branca e rica.
Como sempre, e em todos os casos, o falso discurso da corrupção é a melhor
forma de impedir a ascensão popular. O ataque ao Estado petista tem esse
componente bem-marcado. A pecha de corrupto, bombardeada pela imprensa
elitista, permite defender a exclusão social continuada como se fosse defesa da
moralidade pública. O ataque ao Estado se dirige unicamente ao Estado que se
pretende social e interventor no combate à desigualdade.
Geraldo, o gaúcho da fronteira, confirma praticamente todos os preconceitos
que travestem o ódio de raça e de classe social em defesa da moralidade pública
e privada. Essa dinâmica sustenta a tese do “bandido bom é bandido morto” –
cujo teor real é “negro bom é negro morto” – e o ódio a qualquer forma de
manutenção livre do estilo de vida (em especial, a livre orientação sexual dos
indivíduos). O bolsonarismo oferece o velho racismo repaginado agora como
luta política idealista e rebelde, aglutinando, também, todos os frustrados que
culpam a vida e os outros pela sua decadência e desgraça. Mais ainda: propicia
excitação, participação política simulada e sensação de direção para esse tipo de
gente que havia perdido o trem da vida.
O caso de F. Rössler confirma e aprofunda o que estamos discutindo aqui.
Seu ódio se dirige tanto aos negros haitianos – que ele vê como grave ameaça
civilizatória para sua pequena cidade – quanto aos “nordestino” que, pela
suposta pouca inteligência e apatia, elegem quem não deve. É interessante
perceber que Felipe diz isso tudo centrado em um discurso moral da
supremacia cultural alemã e branca sobre o resto do país. Os valores
“germânicos” seriam, antes de tudo, disciplina e amor ao trabalho e cuidado
com a família. Mais uma vez, o racismo “racial” sendo recoberto por
hipotéticas superioridades culturais.
O que parece ter acontecido é que Bolsonaro “destampou” o fétido bueiro
que antes barrava as formas explícitas de racismo. Racismo tanto de raça
quanto de classe, já que ambos estão amalgamados de modo indelével entre
nós. O contexto de desconfiança política criado pela celeuma da Lava Jato se
mostrou perfeito para a criação desse monstro. Possibilitou conferir uma
dimensão ética à pretensa luta bolsonarista, permitindo a transfiguração do
fracasso de classe do branco pobre ou empobrecido em uma bandeira política
de suposto interesse universal – como os bons costumes e a política “limpa”.
Bolsonaro conseguiu realçar o racismo brasileiro entranhado em todos nós,
ainda hoje, canalizando o ódio e ressentimento de classe do branco pobre
empunhando a bandeira de uma luta política pela violência purificadora.
O ressentimento social é a procura de um culpado externo para a sensação de
fracasso objetivo daqueles que não possuem nem capital econômico nem
capital cultural legítimo. A nossa imprensa dominada – e a serviço do saque
elitista – não permite a compreensão do mecanismo social que reproduz as
classes do privilégio. Desse modo, o fracasso objetivo é subjetivado e vivido
como culpa pessoal pelo branco pobre que se pensa europeu, mas que tem as
mesmas condições de vida dos mestiços e de muitos negros.
Como esse indivíduo precisa encontrar um culpado externo para uma ferida
narcísica desse tamanho e proporção – vivida como incapacidade pessoal e não
como construída socialmente –, todos os fantasmas do racismo explícito
brasileiro, que vigorava antes de 1930, são liberados novamente. Mas, agora,
sua expressão tem que obedecer às vicissitudes de uma cruzada moral do bem
contra o mal – o que confere ao racista empedernido a justificativa falso
moralista da qual precisa para ele ser quem sempre foi.
Seu ódio, no entanto, não se dirige às elites que reproduzem a pobreza da
maioria da população ao se apropriarem de toda riqueza disponível. Elas são
seu verdadeiro inimigo, mas nunca ninguém contou isso para ele. A imprensa
existe para blindar qualquer referência aos ricos e poderosos como causa
verdadeira da pobreza. Quando o caminho da indignação contra a injustiça
está fechado, o caminho que sobra é dirigir a raiva contra os mais frágeis e
vulneráveis – incapazes de defesa, na maior parte dos casos. Daí o
direcionamento do ódio aos nordestinos, negros, mulheres e público LGBT+. É
uma canalização da raiva que garante duas coisas importantes para esse
indivíduo: a compreensão do mundo social de uma forma que lhe é
conveniente; a certeza de sua superioridade moral sobre os outros, de modo a
aplacar e mitigar seu sentimento de fracasso pessoal.

48. Ver Jessé Souza, Como o racismo criou o Brasil, 2021.


49. Fernando Canzian, “Encolhendo e em crise, classe C vira motor do bolsonarismo”. Folha de
S.Paulo, 12 nov. 2022.
50. Vianna Moog, Bandeirantes e pioneiros, s/d, p. 227.
51. Alexis Tocqueville, Democracy in America, 2002.
52. Kátia Maria Abud, O sangue intimorato e as nobilíssimas tradições, 2021.
53. Ana Lúcia Teixeira, “A letra e o mito”, 2014.
54. Danilo Ferreti, “O uso político do passado bandeirante”, 2008.
55. Antônio Celso Ferreira, A epopeia bandeirante, 2002.
56. Ibidem.
57. Danilo Ferreti, op. cit., 2008.
58. Maria Isaura Pereira de Queiroz, “Ufanismo paulista”, Revista da USP, 1992.
59. Jessé Souza, op. cit., 2022c.
60. Ou seja, a tradição alemã, na cabeça dele.
61. Para ele, o Brasil fica a meio caminho entre um país como os Estados Unidos – seu modelo
absoluto de sociedade – e os países africanos pobres.
62. Diz, assumindo pela primeira vez que efetivamente deu o desfalque.
63. Letícia Mori, “Paulista se acha melhor que resto do Brasil por herança europeia e passado
bandeirante, diz sociólogo”, BBC News Brasil, 8 jul. 2024.
4. O NEGRO EVANGÉLICO

O capítulo anterior procurou desvendar os motivos que levaram milhões de


brancos pobres a votarem, contra seus melhores interesses, em Bolsonaro. Mas
não foram apenas os brancos pobres que votaram, em duas ocasiões, em
Bolsonaro. Também muitos negros, sobretudo os evangélicos, votaram e
apoiaram Bolsonaro. A questão aqui é, talvez, ainda mais complexa de se
compreender do que a que examinamos logo acima. Afinal, Bolsonaro é um
racista da velha escola que faz piada com negros, por exemplo, associando-os,
de forma constante, à animalidade. Por que um negro pobre votaria em
Bolsonaro? Essa é a questão que iremos abordar agora, e, logo a seguir, com as
histórias de vida de alguns deles.

I. A CONTRARREVOLUÇÃO EVANGÉLICA E SEU SENTIDO SOCIAL E POLÍTICO

Para Max Weber, o sociólogo das religiões mais influente e importante de todos
os tempos, a religiosidade tem íntima relação com a classe social, ou seja, com a
posição relativa dos fiéis na hierarquia social. As versões mais racionais e éticas
da religiosidade costumam estar relacionadas à vida citadina – em especial aos
comerciantes e artesãos qualificados com seu cotidiano calculável, regular e
previsível. Já os camponeses e as classes populares percebem seu cotidiano
como dominado por forças externas incontroláveis, como a natureza e a
opressão social associada ao trabalho desqualificado, dependente e servil.
O pentecostalismo, desde a sua vertente original nos Estados Unidos, nasce
como oposição ao protestantismo histórico e ao processo de secularização que
lhe foi subsequente. Como se sabe, a tese weberiana para explicar o processo de
secularização parte da contradição interna ao protestantismo ascético, que
constrói um “caminho para salvação” baseado no sucesso mundano. Ao
interpretar o caminho para a salvação eterna como decorrente do sucesso
mundano e visível, ou seja, como riqueza material, o ascetismo protestante
passa a exigir do fiel a “dominação do mundo” social e natural como
precondição para ser salvo.
Para que o mundo seja dominado, ele precisa, porém, ser conhecido. É
necessário que se conheça como o mundo social e natural funciona para que se
tenha sucesso nele. Ora, a ciência é exatamente a dimensão criada para o
conhecimento e controle do mundo externo. Existe uma forte correlação entre
o advento do protestantismo e a ascensão da ciência experimental. A visão
científica do mundo, no entanto, elimina pouco a pouco o “mistério”,
elemento indispensável a qualquer forma de religiosidade. O estabelecimento
da ciência enquanto esfera simbólica detentora de sentido hegemônico implica
o enfraquecimento – não a morte – da visão religiosa. É por conta de suas
contradições internas que o protestantismo é visto como a parteira do mundo
moderno, secular – e, dentre outras consequências, um mundo onde a ciência
substitui a religião como provedora de sentido.
Isso, por óbvio, não ocorreu sem resistências. Especialmente nos Estados
Unidos – a pátria do puritanismo ascético –, foram desenvolvidas, desde o
século XVIII, tendências revivalistas da religiosidade, as quais são o berço
histórico do movimento pentecostal posterior. Esses movimentos eram plurais,
e havia uma quantidade de oferta religiosa significativa comandadas por novos
profetas que pululavam em vários lugares. Um deles foi Charles Parham, figura
emblemática da novidade pentecostal, que se tornou o primeiro pregador a
fazer a ligação entre experiências extáticas – com manifestações de transe e
glossolalias (o falar em “língua estranha”) – e o “batismo com o Espírito
Santo”.64
Um dos seguidores de Parham, William Seymor – que se tornaria conhecido
como o “profeta negro da Rua Azuza” – assistia às suas aulas no corredor e não
na sala de aula, por conta do racismo de Parham, e decidiu fundar sua própria
denominação na Rua Azuza, em Los ­Angeles. Rua Azuza se tornou, a partir
daí, uma espécie de galvanizador e campo de experiência de uma religiosidade
que valorizava a tradição negra: em traços como a oralidade da liturgia,
testemunhos orais, inclusão do êxtase, sonhos e visões, inclinação para o
xamanismo religioso, uso de coreografia e muita música nos cultos.65
Essa ligação com a cultura negra explica, em boa parte, a irresistível
influência desse tipo de religiosidade entre nós. Aqui podemos já visua­lizar que
o ancoramento social desse tipo de manifestação religiosa se dirige aos
desterrados, humilhados e imigrados. São pessoas que não conseguem se sentir
pertencentes à realidade social, visto que essa os humilha e não os reconhece.
São pessoas que estão no mundo social, mas não se sentem parte desse mesmo
mundo. Nascia então uma religiosidade, feita com precisão de alfaiate, para os
abandonados e excluí­dos. Como sempre, a religiosidade mágica é a arma dos
despossuídos, daqueles que não têm futuro. Como diria Pierre Bourdieu, em
uma de suas frases magistrais: “A esperança mágica é a visada de futuro dos que
não têm futuro.”
Criada nos Estados Unidos no começo do século XX, essa forma de
protestantismo popular tem se globalizado com rapidez entre as massas
empobrecidas do Sul global. Descendentes do metodismo Wesleyano e do
Holiness Movement [Movimento da Santidade], os pentecostais, por diferença
em relação ao protestantismo histórico, acreditam que Deus, por meio do
Espírito Santo – responsável pelo componente mágico desse tipo de
religiosidade – continua a agir diretamente no mundo prático. Essa ação se
materializa em curas, exorcismo de demônios e realização de milagres.
A diferença entre religiosidade ética e religiosidade mágica é a mais
importante do universo religioso. A religiosidade ética, produto singular da
cultura ocidental – que nasce no judaísmo antigo e influencia diretamente o
cristianismo e o islamismo – cria uma tensão ética entre o mundo
transcendente e o mundano. O Deus e seus mandamentos morais, na
religiosidade ética, pretendem mudar o mundo profano como ele é. Pretende
criticá-lo e revolucioná-lo. Por exemplo, Jeová exige dos fiéis que eles não
matem, não roubem e não desejem a mulher do próximo porque na
humanidade há quem tenha desejos assassinos, desejos de apropriação das
coisas alheias e desejos libertinos em relação à mulher do próximo. A
religiosidade ética abre a possibilidade de mudança do mundo social e do nosso
comportamento nele. Ela é intrinsecamente revolucionária, ainda que os
compromissos com os poderes mundanos tenham sido, historicamente, a regra.
Com a magia, temos o efeito contrário. Na magia, não há oposição entre a
dimensão religiosa transcendente e a dimensão mundana, mas sim
proximidade e contiguidade. Os entes transcendentes são próximos, e seus
favores devem ser conquistados do mesmo modo como fazemos com os
poderosos deste mundo: com presentes, bajulações, elogios e afagos. Não existe
a tensão ética que possibilite transformar o fiel mágico em outra coisa que ele
ainda não seja. A regra aqui é a dos rituais: vive-se da repetição, da tradição e
do eterno ontem que sacraliza o mundo como ele é.
Além disso, como a moralidade mágica não pressupõe reflexão – uma vez que
é mera compulsão pela repetição – inexiste o drama típico da consciência
moral ética, que é representado pela questão: devo seguir o que Deus manda,
ou seguir aquilo para o qual já me inclino desde sempre? Essa é a primeira
forma de consciência moral individual da história – o drama consciente da
escolha de caminhos alternativos de vida. Na magia, não há alternativa, nem
drama de escolha, nem consciência moral. A magia é, portanto,
intrinsecamente conservadora. Não há crítica social possível a partir dela. E foi
esse tipo de protestantismo mágico, em forte oposição ao protestantismo
histórico, a forma de religiosidade ética mais consequente de que se tem notícia
– que tomou o Brasil de assalto a partir dos fins do século XX.
A novidade americana logo chegou, como sempre acontece, rápido ao Brasil.
Vários missionários inspirados pela Rua Azuza chegaram aqui poucos anos
mais tarde, como Louis Francescon, Daniel Berg e Gunnar Vingren, os
pioneiros do pentecostalismo no Brasil.66 Os estudiosos dividem em três fases a
história do pentecostalismo e neopentecostalismo brasileiro. A primeira onda
acontece a partir de 1910, com a vinda dos missionários estrangeiros para
ensinar os fundamentos da nova religião. A segunda onda se dá nos anos 1940
e 1950, sobretudo em São Paulo. A terceira onda ganha impulso a partir dos
anos 1970 e 1980, em especial com a Igreja Universal do Reino de Deus –
comandada com mão de ferro pelo autointitulado bispo Edir Macedo. O
contexto da terceira onda é carioca.67
O pentecostalismo clássico brasileiro, típico da primeira onda, é representado
pela Congregação Cristã do Brasil e pela Assembleia de Deus, a maior
denominação pentecostal do Brasil. Suas características principais são o
anticatolicismo, o dom de falar em “línguas estranhas”, a crença na volta
iminente de Cristo e na salvação paradisíaca, e o radical sectarismo e ascetismo.
A segunda onda teve início nos anos 1950 principalmente em São Paulo, a
partir de dois missionários americanos que formaram o Evangelho
Quadrangular, trazendo para o Brasil a evangelização em massa baseada na cura
divina.68
Tal ênfase na cura divina foi o grande mecanismo para o crescimento do
pentecostalismo brasileiro, como, aliás, aconteceu no mundo todo.69 O que
separa as duas ondas é a ênfase diferencial nos dons do Espírito Santo. A
primeira onda enfatiza o dom de línguas; enquanto a segunda privilegia a cura
divina. Existe grande influência recíproca entre as diversas denominações, e,
em um processo de tentativa e erro, tudo aquilo que se mostrar bem-sucedido
tende a ser imitado pelas outras denominações.
A terceira onda se inicia nos anos 1970 e ganha força nas duas décadas
seguintes. Seu principal símbolo é a Igreja Universal do Reino de Deus, que é
marcada pelo antiecumenismo – forte oposição aos cultos afro, forte hierarquia
e centralização, uso de meios de comunicação de massas, ênfase na cura e no
exorcismo de demônios. E, como característica mais marcante, as técnicas para
retirar dinheiro dos fiéis em troca de bens simbólicos mediante pagamento
direto em moeda sonante. Combinado a essa guinada mundana e
empreendedora temos a rejeição consequente a toda forma de ascetismo
mundano.
Se as ênfases das igrejas anteriores privilegiavam as “línguas estranhas” e a
cura divina, na terceira onda neopentecostal a centralidade é do exorcismo de
demônios. A singularidade da Universal é baseada na ênfase da luta entre Deus
e o demônio, e cabe ao pastor dizer quem é um e quem é o outro (a divindade
pode ser associada, inclusive, a Bolsonaro, se o pastor assim o desejar, afinal, ele
tem “Messias” no nome). O contexto conservador da magia é levado ao
paroxismo na teodiceia neopentecostal. Como inexiste qualquer separação
entre a esfera mundana e a transcendente, a esfera mundana é percebida como
subordinada à esfera transcendente, perdendo, portanto, qualquer autonomia e
independência.
Isso significa que se alguém está doente e não encontra remédio, não é culpa
do descaso da sociedade desigual nem da falta de adequado financiamento do
sus, mas sim do diabo que invadiu seu corpo. Elimina-se, desde o início,
qualquer possibilidade de crítica social à dimensão mundana. O “sacrifício do
intelecto”, que Weber percebia em toda forma de religiosidade, é aqui levado
ao limite lógico. O mundo social, por mais injusto e perverso que seja, não só
não é criticável como passa a ser, inclusive, sacralizado. Trata-se da mais perfeita
legitimação da meritocracia e do mundo desigual, visto que invisibiliza as
causas da opressão social.
A teodiceia da prosperidade neopentecostal é, em alto grau, uma religiosidade
“afirmativa do mundo” – ao contrário de sua negação, como acontece na
religiosidade ética. Como corolário, temos a liberalização dos costumes e do
apelo ao consumo material. A principal novidade do neopentecostalismo é sua
inversão da “negação do mundo” pentecostal clássica em uma decidida
“afirmação do mundo” por conta do maior peso do componente mágico e
pragmático. O sucesso do neopentecostalismo tem contribuído para influenciar
todo o mercado religioso pentecostal. A própria competição pelo controle de
meios de comunicação de massas, entre as diversas denominações, traz uma
urgência econômica que tende a ser suprida com os dízimos e ofertas em
dinheiro.
O que de fato singulariza a Igreja Universal é a exacerbação de uma luta
cósmica dualista entre Deus e o diabo pelo domínio da humanidade. Uma
guerra, portanto. Pelo menos quatro características principais derivam dessa
luta: 1) o embate não é apenas espiritual, mas prático, envolvendo a dimensão
sociopolítica e a tentativa de dominar o mundo social segundo seus preceitos,
por meio da influência na política partidária e pelo proselitismo nos meios de
comunicação de massa; 2) o rompimento com a salvação extramundana e seu
ascetismo e rejeição do mundo, tendo como substituta a teodiceia de afirmação
e dominação do mundo. Ao contrário da resignação, os neopentecostais são
triunfalistas e intervencionistas; 3) como consequência lógica dessa inversão de
perspectivas, temos a criação da teologia da prosperidade para o gozo do
dinheiro e dos prazeres mundanos; 4) e, como corolário, a ideia de que o
serviço a Deus é mediado pelo pagamento em dinheiro: o dízimo – por óbvio
– mas sobretudo “ofertas” em profusão.

II. DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL

Os grandes sociólogos da religião, como Max Weber e Pierre Bourdieu,


analisam o campo religioso do mesmo modo como analisam outros campos
sociais. Como qualquer empresa no mercado econômico, que utiliza estratégias
para conquistar o maior número de consumidores, a empresa religiosa usa o
que estiver ao seu alcance para angariar o maior número de fiéis. O vertiginoso
sucesso da vertente neopentecostal foi causado por uma conjunção de dois
fatores: o aproveitamento consequente da ideia da batalha transcendental entre
a divindade e o diabo – que já habitava o imaginário popular influenciado pela
religiosidade africana – com o uso superficial do vocabulário judaico-cristão de
modo a parasitar seu prestígio.
Em geral, o pentecostalismo se baseia no episódio bíblico citado em Atos dos
Apóstolos, capítulo 2, em que o Espírito Santo teria se revelado aos cristãos por
meio da língua do fogo. Partindo dessa vertente interpretativa, o
pentecostalismo defende a presença concreta de Deus no mundo por meio do
Espírito Santo, em especial pelo dom da cura e do falar em “línguas estranhas”
(como vimos, glossolalia). A glossolalia, no entanto, foi perdendo prestígio por
comparação com o dom da cura, a libertação dos demônios e a teologia da
prosperidade.
Na segunda onda pentecostal e na terceira onda neopentecostal, ocorre um
deslocamento simbólico da relação com as “línguas de fogo” em favor da força
das palavras proferidas em nome de Deus. Passa-se a acreditar que a palavra
dita em “nome de Jesus”, uma espécie de ordem verbal de Deus, tem o poder
de curar. Também no exorcismo de demônios a palavra oral é fundamental. O
pastor ordena a saída do demônio e é apoiado pela multidão, que grita: “Sai,
sai!” ou “Queima, queima!”. A alusão a “queimar” permite perceber a passagem
das línguas de fogo ao poder da palavra dita com fé. O exemplo da força das
palavras viria do Deus do Livro de Gênesis, que cria o universo por meio do
verbo, ou seja, da palavra.70 Esse fato abre a possibilidade de vincular a bíblia
não mais à escrita e à conversão racional, mas, ao contrário, aproximá-la da
tradição oral como agente mágico transformador da realidade.
É a ênfase na tradição da oralidade que permite ao neopentecostalismo se
aproximar – como o substituto perfeito – das religiões afro-brasileiras, nas
quais a palavra se reveste de poder mágico. No candomblé, a palavra dita é
“emanação de axé”, mecanismo de movimentação de forças sagradas, sendo
Exu percebido como emanação desse poder que pode ser conferido por meio
de oferendas. No neopentecostalismo, o poder da fala reinterpreta e ressignifica
o fogo da língua do Espírito Santo no sentido do poder de intervenção mágica
de Exu. A força da fala, muito além da mera pregação da palavra escrita divina
– típica das versões mais éticas e racionais do cristianismo –, transforma-se, no
neopentecostalismo, na emanação mágica de um poder autorreferente e
autoconstituído.71
O neopentecostalismo, portanto, opera uma “antropofagia” da fé inimiga72
pela centralidade do “transe religioso”, reintroduzindo a proximidade imediata
com o sagrado que havia sido expurgado do campo cristão em nome da
conversão racional. A novidade do movimento pentecostal, radicalizada no
neopentecostalismo, foi introduzir o êxtase religioso e seu fundo mágico para o
centro do cristianismo a partir da figura do Espírito Santo como emanação
material da divindade.
O que está por trás desse movimento é, acima de tudo, uma redefinição da
noção de “eu” e da personalidade do fiel, ou seja, de seu processo singular de
subjetivação. No neopentecostalismo, assim como em várias versões do
protestantismo, o corpo é pensado como morada de Deus na sua dualidade de
corpo e alma. Daí a legitimidade cristã da guerra contra a possessão do corpo
pelo demônio, substituindo-a pela possessão do Espírito Santo.
No candomblé, a pessoa é vista como fragmentada e a ela se agregam várias
entidades sob a forma de um “enredo de santo”. Esse enredo varia de acordo
com o orixá de frente. Os rituais de iniciação visam, por meio do sacrifício de
animais e outros ritos, fixar no Ori da pessoa esse enredo, até que, com o
tempo – normalmente sete anos –, não haja mais necessidades dos rituais,
significando a imanência do seu orixá na própria pessoa, tornando o transe
supérfluo.73
Desse modo, a fragmentariedade inicial é fundida em uma unidade à medida
que vai compondo seu “enredo de santo”. Os ritos sacrificiais de animais
servem, precisamente, para garantir uma continuidade da comunicação entre
as divindades e os homens. A morte do animal permite abrir um canal de
comunicação para que a graça divina possa fluir até os homens. A possessão
indica a eficácia desse canal. Quando a divindade “vem”, como na possessão, o
homem “vai” – ou seja, perde a consciência. Apesar da complementariedade,
um não pode se sobrepor ao outro.74
O neopentecostalismo, nos seus rituais de exorcismo, utiliza-se dessa
linguagem e desse universo simbólico para criar uma nova relação do fiel com o
Deus. Se nas religiões afro-brasileiras a pessoa se completa pela incorporação de
um panteão sagrado, no neopentecostalismo a sacralidade do eu já é
pressuposta – bastando que o indivíduo se liberte das eventuais tentações que
vêm “de fora”. Assim, se nas religiões afro-brasileiras o “eu” se forma por
“adição” das diversas divindades que o regem, no neopentecostalismo o “eu” se
forma pela permanente “subtração”, na expulsão dos demônios que ameaçam a
já existente divindade do “eu”.75
Para Ronaldo de Almeida,76 os ritos de expulsão dos demônios no
neopentecostalismo são mera inversão simbólica dos ritos africanos. Se nas
religiões afro a possessão ocorre como uma festa de sacralidade do ritual, no
neopentecostalismo a possessão é o polo negativo do sagrado por significar a
irrupção do mal. A inversão, como sabe muito bem a psicanálise, mantém o
principal em comum, apenas invertendo os termos da relação. O decisivo,
portanto, que é a crença na possessão e na subordinação da lógica profana pela
transcendental, se mantém. O que a inversão possibilita ao neopentecostalismo
é a criminalização do competidor religioso.
Não por acaso são os Exus e as Pombagiras os representantes do diabo no
contexto do neopentecostalismo e suas sessões de “descarrego”. Essa
aproximação da simbologia cristã e africana já fazia parte da história secular do
sincretismo brasileiro. Nas religiões afro, o sentido dos Exus é dado pelo
contexto. Os Exus podem ser “amarrados” pelo orixá para obedecer, podendo
ser, portanto, tanto demônio quanto orixá. Essa é a confissão que o pastor
neopentecostal exige desses espíritos: não que ele seja o demônio, mas que eles
revelem não serem sujeitos à negociação como se imaginava,77 exigindo a
vitória do pastor sobre eles.
Essa é uma estratégia que visa conquistar os adeptos desse tipo de
religiosidade. A religiosidade africana, portanto, segue intocada no
neopentecostalismo – o que explica o ódio à religiosidade afro exatamente pela
proximidade e competição mais próxima –, mas é “recoberta”, superficialmente
como uma pátina, com o vocabulário de alto prestígio simbólico – em todo o
Ocidente – do cristianismo e do judaísmo.
Em um país racista como o nosso, o neopentecostalismo se alimenta,
vicariamente, também dessa tradição nefasta que ajuda a criminalizar o negro e
todas as suas práticas, inclusive as religiosas. Portanto, o neopentecostalismo é
ideal para quem pretende “embranquecer” – com tudo o que isso significa no
Brasil, e que não se refere apenas à cor da pele – pela aceitação da norma moral
vigente do dominador branco que implica o estigma do negro (seu vizinho ou
irmão) e a sua criminalização.

III. ENTREVISTAS: O NEGRO EVANGÉLICO

Vanderson
Vanderson, 34 anos, negro, pobre e morador da conhecida favela de São Paulo,
Jardim Ângela, é um caso típico do público evangélico que examinamos.
Como quase todos os adolescentes das classes populares, Vanderson teve que
trabalhar muito cedo, e já tinha carteira assinada aos 14 anos. Perguntado sobre
sua vida nessa época, Vanderson responde:
Trabalhei desde cedo. Tive logo o registro em carteira com 14 anos. Entrei no
Grupo Pão de Açúcar, né? Companhia Brasileira de Distribuição. Antes disso, eu
cheguei a trabalhar em feira, também. Aqui no Jardim Ângela, que tem uma feira
de domingo. Também cheguei a trabalhar na feira lá em Moema. Biquinho pra lá,
biquinho pra cá, depois eu consegui esse emprego fixo no Pão de Açúcar, no
mercado. Lá eu cheguei a trabalhar acho que uns 6, 7 anos, mais ou menos. E aí
foi só�entra em empresa, sai de empresa, entra em empresa, sai de empresa.
A carreira do emprego precário, que implica a troca constante de empregos de
pouca qualificação, é uma espécie de destino inevitável para grande parcela da
população brasileira. Com pouco estímulo em casa e tendo frequentado escolas
precárias, adolescentes como Vanderson são desarmados para a competição
social e passam a ser explorados como trabalhadores desqualificados. Vanderson
chegou a cursar alguns anos na universidade, o que ele acha que muito
contribuiu para ampliar seus horizontes de vida. Imaginava que poderia
continuar os estudos, mas aí, como quase sempre acontece nessa classe social,
vieram os filhos – e tudo ficou como mero sonho e utopia:
Aí teve um período que eu ingressei na faculdade, né? Cheguei a fazer na Uninove
tecnologia de comércio exterior. Depois mudei pra tecnologia em logística, aí depois
de seis meses fui pra tecnologia em comércio exterior. Era um curso de duração de
dois anos [refere-se a um curso técnico], porém, quando estava fazendo, chegando
a um ano e meio, fui mandado embora da empresa que eu trabalhava e não tive
como continuar. Mas a minha intenção era dar continuidade e fazer
administração, né? Se eu fizesse mais dois anos, eu pegaria o certificado de
administração. Mas aí não consegui mais. Depois vêm as “cria”, vêm os “filho”, aí
pronto, aí não dá mais.
Como sempre, são as urgências da vida que pegam de surpresa o jovem das
classes populares. Nas famílias de classe média, o jovem se prepara – em geral,
com todo o tempo do mundo – para incorporar conhecimento considerado
legítimo pela sociedade, e apenas depois para formar uma família. Essa é a
trajetória típica de um jovem de classe média. Para o jovem das classes
populares, as urgências se impõem no dia a dia e comprometem o ponto
essencial para qualquer trajetória social de sucesso: o cálculo do futuro e o foco
no que é essencial.
O pertencimento à Assembleia de Deus não veio dos pais, como em muitos
casos que serão examinados aqui. Vanderson já era adulto e, por pressão da sua
noiva na ocasião, passou a frequentar o culto e gostou. Continuou na igreja
mesmo depois que o noivado acabou. Quando perguntei se a igreja o ajuda,
Marcelo respondeu o seguinte:
Eu acredito que sim. Porém, como eu cheguei a frequentar a faculdade, o leque se
abre mais ainda. Mas a igreja ajuda muito. Com certeza. Ajuda principalmente a
saber trilhar os caminhos corretos. Porque há muitos caminhos que você acha que
seria bom, tipo: “Ah, vai pela cabeça de fulano, vai pela cabeça de ciclano!”, só que
aí o final é só dor. A igreja é muito importante pra essa fase de aconselhamento, de
ensino baseado na palavra, mesmo. Em termos de saber onde você anda, com quem
você anda, como você anda. Em termos de companhia, também. Nesse quesito, eu
acho a igreja muito importante.
Mais uma vez, aquilo que é ensinado de modo insensível nos lares de classe
média desde tenra idade – como a importância da disciplina e do foco no
estudo e no trabalho – é conseguido na vida adulta pela tardia socialização
religiosa de muitos membros das classes populares. Com a diferença marcante
do menor respeito à individualidade, dada a rigidez da moral religiosa baseada,
supostamente, na “palavra da Bíblia”. O guia espiritual para iluminar o difícil
caminho da vida é conseguido com o sacrifício do intelecto exigido – em maior
ou menor grau – por toda forma de religiosidade. Por conta disso, uma
individualidade refletida e crítica é tão difícil nesse contexto.
Questionado sobre a recente expansão das igrejas evangélicas, inclusive na
esfera política, Vanderson responde:
Particularmente falando, eu achei bom. Achei muito bom. Porém, ela foi crescendo
e a qualidade foi ficando por último, né? Principalmente essas igrejas
neopentecostais. Aqui no bairro, nos anos 1990, era muito perigoso, tinha muitas
gangues. Hoje são as facções. Antigamente era gangue. Gangue da rua tal, gangue
da rua não sei onde. Então, eu pensava: “Nossa, quanto mais igreja, menos bares,
menos gangue, menos violência e tal.” Antes igreja que boca de fumo.
A rigidez moral se aplica em um contexto de tamanha violência e
vulnerabilidade social que explica sua aceitação de tão bom grado. É uma
forma de garantir para si e para os filhos uma vida “fora do crime” e da
violência que ele envolve. É uma boia de salvação para aqueles que se
encontram ameaçados, por todos os lados, pelos apelos de curto prazo. Além
disso, e ainda mais importante, está o fato de que essa moralidade, apesar de
sua rigidez, “eleva” moralmente aqueles que foram mais humilhados pela vida.
Nesse cenário, podemos compreender o apoio irrestrito de Vanderson, e de
tantos do seu meio social, à politização da igreja no Brasil.
Eu acho que é até bíblico. Tanto é que muitos políticos da época, da classe alta,
foram importantes para a expansão do Evangelho, né? Se não fosse também o
próprio império de Roma, o Evangelho não teria se difundido tanto. É lógico que é
Deus no controle, mas o Império Romano ajudou muito nessa expansão. Eu não
acho pecado. Para mim, quanto mais crente na política, mais próximo do povo a
política ficaria. A igreja tem todo o dever, todo o direito de participar. Aliás, nós,
como brasileiros, participamos muito pouco da política. Mas eu creio nisso: quanto
mais crente o camarada que entre lá no meio da política, melhor. Não concordo
com o que aconteceu naquele começo do ano com aquela manipulação de massa
[refere-se ao Oito de Janeiro e à tentativa de golpe], utilizando os coitados dos
irmãos crentes, inocentes, pra fazer baderna lá. Nem todos eram crentes, ali. Tinha
muito baderneiro. Agora, o que não pode é aquele negócio de igreja ter partido,
como nós vemos no nosso país, infelizmente. Tem certas denominações que já têm
até partido político.
Como muitos, Vanderson considera a partidarização da igreja um mal, mas
tolera e até aplaude a “evangelização” da sociedade e da política. Ele não parece
ser consciente da evidente contradição. Isso vai ser algo que se repetirá em
muitas das entrevistas que iremos discutir aqui mais abaixo. A referência à
politização da igreja abriu a oportunidade para perguntar em qual candidato
Vanderson votou para presidente.
Oxe, claro que Bolsonaro! O “menos pior”. Era o que eu falava: “Ó, eu tô votando
no menos pior.” Pra governador, votei em Tarcísio. Candidatos a deputado, não
lembro. Eu votei em uns “menininho” aqui, que tenta ser político aqui do bairro.
Alguns que eu conheço: “Eu conheço você desde pequeno, então, tem meu voto.”
A ideia de que Bolsonaro é o “mal menor” é uma postura muito frequente no
meio evangélico. Muitos acham difícil defendê-lo, sobretudo por conta da
tentativa de golpe ao seu comando e por seu papel na pandemia – mas o fazem,
assim como Vanderson. A partir daí, podemos ver todo tipo de acrobacia para
justificar o voto. Bolsonaro tende a ser “normalizado” com seus defeitos sendo
percebidos como defeitos de todos os envolvidos na política. Vemos como a
criminalização da política foi, e ainda é, fundamental na sua estratégia e apelo
político. Quando perguntei sobre sua avaliação do governo Bolsonaro,
Vanderson respondeu o seguinte:
Do governo Bolsonaro? Apesar de ele ter falado muita bobagem, como é de praxe,
afinal, se um político não falar tanta bobagem, não é político brasileiro – eu achei
muito honesto e bom em termos de pautas. Embora nisso a pandemia tenha
atrapalhado muito, né? Mas eu votei nele, de boa. Só achei errado esse último lance
dele, de querer militarizar. Isso já não concordei. Porém, sabemos que nossa política
tem muitos barões, né? Então eu não tinha nada o que falar, a não ser essa última
mancha que ele teve, no finalzinho, tentando ficar no poder. A verdade é que outros
partidos também querem sempre isso aí.
O resumo da resposta de Vanderson pode ser elaborado da seguinte maneira:
prestar, Bolsonaro não presta – mas, como ninguém presta, ele está na média
geral. As bobagens que diz, as mortes que causou na pandemia e até a tentativa
de golpe de Estado, tudo fica em segundo plano, já que ele seria “honesto”,
apesar de tudo. A contradição evidente permitiu um aprofundamento que viria
na resposta seguinte, sobre qual valor ou ideia de Bolsonaro Vanderson acharia
interessante.
Então, eu vou ser sincero. Não por eu ser crente, mas porque conheci e conheço
muitas pessoas que vieram do PT. E também não por conta desse negócio de
“direita, esquerda” e tal. Pra mim, pode vir qualquer camarada, qualquer político
que venha disputar voto pelo PT, PSOL, essas “encrenca” aí, que eu voto sempre do
lado branco da coisa – do lado negro, do lado vermelho, enfim! Porque as pautas
deles são muito complicadas. Qualquer cristão, não só evangélico, deveria perceber
mais. Porque eles não tão nem aí. Eles querem destruir a sociedade, liberar
maconha. O negócio deles é só esse, entendeu? Eu votei no Bolsonaro mais por isso.
Porque eu sabia que era o único que ia bater de frente com os “petralhas”, como se
diz por aí.
O antipetismo popular mostra aqui toda a sua força, e ela é evangélica. Se na
classe média o falso moralismo da corrupção seletiva é decisivo, nas classes
populares decisivo é o ganho compensatório do narcisismo da pequena
diferença, que está embutido na rigidez moral e regressiva das igrejas
evangélicas. Vale, como estamos vendo, qualquer malabarismo para conciliar
visões que entreguem ao crente aquilo que ele mais necessita: autoestima em
um mundo que o humilha desde seu nascimento.
Perguntado sobre a pauta LGBT+, Vanderson revela a estratégia típica do
moralismo evangélico de acusar as minorias oprimidas de estarem pedindo
privilégios inadmissíveis.
Eles pedem leis, e mais leis, e mais leis só pra benefício próprio, sendo que todos
somos “todos iguais perante a lei”. A classe política tem um tipo de lei pra eles, que
defende eles. A classe LGBT+ quer uma lei que os defenda também. Aí vem a classe
racial: é o negro, os “branco”. Os negros, os morenos, os pardos querem leis pra eles.
Depois vem o feminismo, né? As mulheres querem ganhar o mesmo salário que os
homens. Imagine, se cada um vai puxando pro seu lado! Haja lei. Não vai poder
nem piscar mais que você vai estar “infringindo a lei do grupo tal”. Entendeu? O
que nós vemos é isso, conflitos de interesses. Essa é a realidade. Eles não pensam em
toda a sociedade. Eles querem uma lei só pra eles. Já pensou se os motoboys quiserem
uma lei só pra eles, os taxistas outra lei? Onde nós iríamos parar? Então, que eu
percebo é isto: pessoas querendo privilégio demais. Principalmente os dessas classes
de LGBT+. Não tenho nada contra, cada um faz o que quer e não é da minha conta,
segue sua vida. Mas não dá pra querer ter um privilégio maior do que o de um pai
de família. A lei tem que ser boa e saudável pra todos.
A estratégia conservadora é acusar a justa compensação às minorias perseguidas
de pretenderem um privilégio indevido e exagerado em uma sociedade
igualitária. Isso é algo que já havia percebido desde nossa primeira pesquisa
empírica com os membros da “ralé”, excluídos e abandonados de tudo. São eles
os mais meritocratas. São eles quem mais apoiam todos os preconceitos
produzidos pela elite e seus prepostos conservadores para oprimir os negros e os
pobres como Vanderson.
O que é óbvio e não deveria causar surpresa, já que são também, pelo seu
abandono e exclusão, os menos aptos cognitiva e emocionalmente para se
defenderem. Desse modo, se tornam presa fácil da oposição entre o pobre
decente (ou “homem de bem”) e o pobre indecente ou criminoso. É a partir
dessa falsa e artificial distinção operada pela orientação sexual que faz com que
Vanderson, e muitos como ele, sintam-se “moralmente” superior aos seus
irmãos de infortúnio.
Esse fato da tentativa desesperada de se dissociar dos desonrados – por
definição, o negro e o pobre na nossa sociedade – faz com que Vanderson
assuma todos os preconceitos contra os de sua cor, como fica explícito na
resposta sobre a necessidade ou não da câmera dos policiais nas suas
abordagens.
A câmera por um lado ajuda, por outro lado não. Ajuda por causa dos excessos.
Muitos policiais cometem excessos. Porém, também inibe muitos policiais de� né?
Todo polícia age na força, porque ninguém tem escrito “bandido” na testa
[passando o indicador na própria testa], mas as caras dos camaradas às vezes já
denunciam. A tua cara já denuncia, né?
A cara que denuncia, sabemos todos, é a cara do negro pobre, assim como a de
Vanderson. Ele, no entanto, é convidado a participar de um contexto moral em
que assume o olhar do seu opressor como se fosse seu. Vanderson
“embranquece” ao ficar do lado do opressor contra seu irmão negro perseguido.
É essa traição que se exige para todo negro que queira ascender entre nós. A
ascensão tem que ser individual – como no identitarismo neoliberal de hoje – e
assumir, como se fossem seus, os ódios dos opressores contra os seus iguais. É
exatamente o que o moralismo evangélico almeja: parasitar a própria
vulnerabilidade social de sua clientela para vender uma fantasia compensatória
de participação na moral elitista dominante.
Ao perguntá-lo se já havia sentido xenofobia – sempre uma forma mascarada
de racismo “racial” –, Vanderson conta o seguinte:
Não. Até porque, aqui no Jardim Ângela o que mais tem é nordestino. Cheguei a
conhecer algumas cidades em Santa Catarina. Cheguei a conhecer o Paraná,
também. Uma cidade chamada Cornélio. Mas, pelo menos aqui em São Paulo, e
também no Nordeste, lógico, você vê o povo também muito humilde. Já nesses
estados, você vê um povo muito mais fechado, tanto em Santa Catarina quanto no
Paraná. Nesses termos aí, de xenofobia, mais nesses estados. Aqui, não. Assim, tem
esse negócio de: “Só podia ser baiano, mesmo”, essas coisas que vem do passado. “Ô,
pernambucano”, “Ô, alagoano”. Mas em termos de ira contra a pessoa só porque ela
mora aqui, na periferia nunca vi isso, não.
Logo a seguir, no entanto, lembra-se de casos que presenciou também em São
Paulo.
Eu trabalhava num escritório de commodities. Aí lá, sim, tinha um camarada, um
sócio de um ex-patrão nosso. Com as coisas dele, as palavras dele, o jeito dele, ele era
xenófobo. Porque também ele filho único, cresceu lá no Paraíso, bairro nobre e tal.
Nunca saiu da região central de São Paulo. O máximo que ele ia era a Vila
Olímpia, então ele era muito de falar algumas frases tipo: “É, esse baiano”, “esse
nordestino”, mas ele não falava conosco. Ele falava com o patrão dele, com umas
outras pessoas e, às vezes, com quem ele falava por telefone.
Por fim, perguntei como Vanderson se vê hoje, tendo um pequeno comércio
que construiu na garagem da casa da mãe. Ele diz: “Tô na fase de construção,
ainda. Consegui botar um ponto comercial na garagem da minha mãe, né, na
realidade. Sou empreendedor� Sonho de um empreendedor.”
Ederson
Ederson é negro, carioca e mora em São Paulo desde os quatro anos. Mora no
Capão Redondo, zona periférica de São Paulo.78 Seu pai se mudou para São
Paulo porque não teria se habituado à malandragem carioca.
No Rio de Janeiro foi sempre muito quente! E meu pai nunca se adaptou ao clima.
E também à diferença de trabalho. Mesmo sendo ainda funilaria e pintura,
parecendo a mesma coisa, a cultura deles de trabalho, de preço, de modelo de
trabalho, mesmo, é totalmente diferente. Muita malandragem, sabe? E aqui o
negócio era mais sério. Sempre foi muito sério. Então meu pai não conseguiu se
adaptar de jeito nenhum. É outra situação.
O novo paulistano, vindo do Rio, já introjeta toda a mística que
desenvolvemos acima – do “excepcionalismo paulista” – na sua versão popular
da oposição trabalho/preguiça. Ederson incorpora uma espécie de tipo ideal do
evangélico da periferia. Como todo pobre, é refém de todos os preconceitos
que a elite construiu para oprimi-lo. A começar pela oposição entre “SP do
trabalho” (o que mostra o que discutimos acima sobre a penetração do
“excepcionalismo paulista” em todas as classes) e “RJ da vagabundagem”.
Questionado sobre sua vida escolar, Ederson responde que sempre
frequentou a escola pública. Sua vida foi de “trampo a trampo” desde os 11
anos, quando começa a ajudar o pai na funilaria improvisada. No entanto, teve
que fazer faculdade “na marra”:
Eu, com 11 anos, trabalhei com meu pai quando fui pra Aracati. Trabalhei com ele
na oficina. Porque como o terreno era grande, ele pegou e montou o salão – fez o
salão na frente, montou a oficina, e eu trabalhei com ele até os meus 18, 19 anos.
Só que quando eu tinha 19 anos, meu pai… Não é que ele era muito rígido, ele era
muito certo. Sabe quando a pessoa é muito certinha? Começou a não dar certo nós
dois juntos. Aí eu falei: “Ó, pai, não tá dando certo. A gente não tá dando certo. Tá
dando muita discussão, muita briga, eu vou tomar meu rumo.” Fui procurar
emprego, e ele falou: “Vai, meu filho, vai lá.” Arrumei um emprego em uma
empresa de office boy. Fiquei acho que 8 meses. Aí eu saí e fui para uma
administradora de condomínios, fiquei uns 3 anos. Em 2001, eu entrei em um
escritório de advocacia e fiquei até 2013. Eu entrei como office boy interno, lá, e fui
crescendo, sendo promovido. Aí chegou num ponto em que mudou a gerência,
mudou a gerente. Uma dessas gerentes era bastante exigente, e perguntou quem era
formado e quem não era. Depois de um tempo, ela avisou: “Quem não tem
faculdade, vai ter que começar a fazer. No próximo ano, tem que estar fazendo
faculdade. Quem não entrar, infelizmente, vou ter que dispensar”. Foi simples
assim, direta e reta. Então eu comecei a estudar e fui atrás da faculdade. Fiz gestão
financeira na Unip. Aquele curso mais rápido, de dois anos, porque eu precisava de
diploma, precisava de faculdade pra poder ficar na empresa. Eu fiz tudo e consegui
ficar lá até 2023. Aí esse foi o curso que eu fiz, que foi a faculdade, né?
Ederson hoje assumiu a antiga funilaria improvisada do pai porque batalhou,
sem sucesso, apesar de formado, por um emprego melhor. Ele se casou e teve
dois filhos. Evangélico desde criança por influência dos pais, também considera
a igreja fundamental na educação dos filhos. Aliás, mudaram de igreja, dentro
da denominação batista, para uma que oferece infraestrutura para as crianças.
Na vida do pobre, a igreja é tudo, inclusive lazer.
Quando perguntei sobre o motivo da igreja ser fundamental na educação dos
filhos, Ederson respondeu o seguinte:
Acho que por conta do ensinamento em si, da Bíblia, mesmo. Com relação ao
respeito aos pais. Começando dentro de casa, como o próprio Jesus ensinou, que a
gente vai ter mais anos de vida na terra se honrarmos nossos pais e mães. Esse
ensinamento, logo de cara, é fundamental, porque é o futuro deles, né?
E para os adultos, você acha que a igreja ajuda a tomar melhores decisões
políticas?
Cara, pensando na minha, por exemplo, o Bolsonaro, tem os problemas que ele
teve, né? Umas condutas que muita gente não concorda, mas se você comparar com
o governo de hoje, ele era um cara que pensava em família, um cara que a esposa
era cristã. Ele tem uma ideologia voltada ao cristianismo, mesmo, né? E meu pastor
sempre apoiou isso.
A influência do pastor era mais direta ou indireta?
É�mais indireta. Ele falava e deixava em aberto. Cada um tem o livre-arbítrio
pra votar em quem quiser, né? Mas, por mais que seja estratégia política do
Bolsonaro de querer conquistar a família pelo lado da igreja, cara, é a melhor
opção! Como os princípios cristãos estão atrelados a ele, então você acaba indo mais
pro lado dele. Meu pastor não era tão explícito, mas ele meio que dava aquelas
indiretas, entendeu? Pra dar uma incentivada no povo.
Para bom entendedor, meia palavra basta, né?
Isso! Exatamente. Mas, assim, eu procuro nem misturar muito igreja com política.
Porque isso já é uma cultura antiga aqui no Brasil, né? Eu, particularmente, não
concordo com o pessoal da política que usa a igreja pra se beneficiar. Mas,
infelizmente, é uma coisa que acontece muito hoje.
Ederson nos permite uma entrada interessante no modus operandi evangélico.
Nenhuma outra questão importa, a não ser os “valores familiares” que estariam
ameaçados por um presidente não cristão (leia-se não evangélico e não ungido
pelos pastores). Sobre o resto da vida social, nenhuma palavra. Até mesmo pelo
foco nessa questão fica claro, para o crente, que ela é o dado essencial. Coisa
que ele havia experenciado consigo próprio e na sua família, com ajuda e apoio
ao invés de abandono. Como sua boia de salvação é o moralismo mais grosseiro
e rígido, ele não tem outra opção a não ser seguir o rebanho. Como toda
religião, o cristianismo emotivo evangélico quer controlar o corpo e a alma do
fiel.
Questionado se o país teria regredido com Lula, a resposta de Ederson é
taxativa:
Ah! Piorando, sem dúvida! Eu não consigo entender até hoje como é que o Lula tá
no poder. Depois de tudo o que ele fez, de tanta corrupção, de todas as provas que
contra ele, das pessoas que estavam em volta dele, de tanta coisa errada, tanta
roubalheira. E quem sofre com isso é o povo. Bolsonaro se queimou por conta da
questão das vacinas na pandemia, e Lula se beneficiou disso. E o que ele faz?
Promete coisa que ele não pode cumprir, porque o objetivo dele é a pobreza, e aí
mira em quem? No pobre. “Vou dar picanha”, muita gente cai. Eu ainda não sei se
essa votação foi real. Muita gente fala que foi estranho, porque foi os números
foram muito próximos. Por mais que o Bolsonaro tenha feito algumas coisas
erradas, principalmente na pandemia, o Brasil tava melhorando, a economia tava
melhorando com o Guedes lá, cara! Aos poucos, mas tava melhorando. E aí entra o
Lula e a primeira coisa que ele faz é trazer o presidente da Venezuela, o Maduro,
cara! Ditador, mano! Pelo amor de Deus! E o tanto de dinheiro que o governo deu,
na época do Lula, pra esses países de fora enquanto o Brasil estava precisando tanto.
Os caras dando dinheiro pra fora, e o povo aqui só se ferrando.
Ederson é vítima de todas as fake news construídas para criar uma realidade
alternativa imaginária e protegida por uma bolha religiosa de pessoas que
experimentam, pela primeira vez, o fato de ter uma opinião e de ter a
impressão de que ela é relevante para alguma coisa. Eles se sentem parte da
política e não mais alijados dela. Não é uma opinião própria, nem
independente, mas “parece” ser dele. Toda as vezes em que foi perguntado
sobre essas questões políticas, a ambiguidade e a confusão eram a marca de
todas as respostas, ainda que o ponto de vista conservador seja dominante.
Vejamos o que ele diz sobre segurança pública e a necessidade de câmeras para
os policiais:
O governo de hoje, assim, ele protege muito o ladrão. Esse negócio de direitos
humanos, assim, ele protege muito o ladrão. Se você tem câmera, você fica inibido
de dar uma correção pro cara que tem que ser. É� mas, também, tem uns caras
que se aproveitam, tem policiais que são corruptos que se aproveitam da situação
e� às vezes matam um inocente também, entendeu? Então, assim, eu acho que a
questão da câmera até que é boa, porque�sei lá, evita os cara de matar inocente.
Porque já teve caso dos cara matar inocente, entendeu? Evita… abuso de poder dos
cara, entendeu?
Apesar de perceber o mal uso da força e o abuso policial, a ética do “bandido
bom é bandido morto” (quase sempre um negro, como Ederson) domina a
visão de mundo de Ederson e de muitos de sua classe. De resto, ele confirma
toda a visão conservadora, a começar pela família e pela “ameaça” LGBT+.
Ah, cara, eu vejo muito a questão da internet. A internet hoje é um veneno para as
crianças. Na escola do meu filho, uma escola cristã, da Adventista79, tem criança
com oito anos que fala coisas que te deixam chocado: “Eu não gosto de gosto de
menina”, “Eu vou, casar com homem”, entendeu? De onde que eles tiram isso?
Como que, com oito anos, a criança já sabe o que é gay, o que é lésbica? Não
poderiam já estar falando um negócio desse. Isso em uma escola evangélica! Imagina
numa escola pública, que já tem o aval de poder usar aquelas apostilas� que, na
época do Bolsonaro, eles tiraram, mas não sei se agora voltou. Agora imagina isso
tudo na cabeça de uma criança que não tem o acompanhamento dos pais, que tá
na mão de um governo desses que não tá nem aí? Pra eles, é abertamente livre, é
tudo normal. Então a tendência de uma criança dessas, Deus me livre!
Ederson parece acreditar piamente no “kit gay” e em uma ameaça à família
tradicional formada por homem e mulher. Para ele, foi Bolsonaro quem os
livrou da ameaça do “kit”, mostrando a realidade virtual em que habita. Como
quase todo pobre de direita, Ederson abomina o Bolsa Família e, por
contiguidade, os nordestinos tidos como únicos beneficiários:
Como lá no Nordeste é tudo mais barato, eles só recebem esse Bolsa Família, pagam
o que tem que pagar e vão pro bar beber, jogar sinuca. Acaba deixando os caras
tudo vagabundo, não querem trabalhar! Você tem um governo que pode te pagar
um salário, uma ajuda de custo, então você não vai correr atrás de emprego, não
vai atrás de nada, entendeu? Eu acho que falta controle.
Todos os preconceitos elitistas contra os pobres são percebidos por Ederson
como se fossem seus. Esse é o processo de branqueamento real em ação no
nosso país – e a forma como ele opera na consciência do oprimido. Um preto
que pensa como branco e odeia seus irmãos. Para que não falte nada da visão
de mundo bolsonarista associada à igreja evangélica, que Ederson passa a
defender como se fosse escolha própria, temos sua última fala bem significativa
de tudo o que estamos discutindo aqui:
Esse Alexandre de Moraes, por exemplo, ele manda em tudo, parece que o cara é
que é o presidente! Ele que manda em tudo. Eu tiro essa medida muito pelos
Estados Unidos, um país que eu admiro demais. Já tive a oportunidade de ir pra
lá. Já passei férias lá com minha esposa. E, cara, é um país sensacional em termos
de organização, de respeito, patriotismo. Em cada casa você vai ver uma bandeira
dos Estados Unidos. A cultura deles é sensacional e eles pensam no povo.
Marluce
Marluce teve a mesma vida de todos que estamos analisando aqui. Afinal, a
maioria da clientela evangélica provém das classes populares. Nasceu em
Parelheiros, região periférica de São Paulo, e, como quase todo mundo da
periferia da grande metrópole, é filha de nordestinos. Frequentou a escola
pública no primeiro e no segundo grau e, também como quase todos de sua
classe social, teve que trabalhar desde muito cedo.
Comecei a trabalhar com 15 anos. Nada registrado. Tinha uma vizinha que
precisava de alguém pra limpar a casa, então eu ficava uns dias limpando a casa
dela, tipo duas vezes na semana. Cada dia que eu ia, ela me pagava 50 reais.
Depois eu ajudei a cuidar de criança. A outra vizinha tinha quatro filhos, eu
ajudava levando pra consulta, essas coisas. Aí eu conseguia meu dinheirinho.
Quando eu fiz 17, na rua onde eu morava, mesmo, teve um vizinho que abriu
uma fábrica de chicotes eletrônicos80 que fazia alguns cabos elétricos de máquina de
bingo, máquina caça-níquel. Precisava de mão de obra barata, sem registro, pra
trabalhar. Aí com ele eu trabalhei mais ou menos uns quatro anos.
Quando se tornou adulta, Marluce trabalhou muitos anos em telemar­keting,
um trabalho do qual não gostou, e agora é auxiliar administrativa em uma
Unidade Básica de Saúde (UBS) na periferia da capital. Marluce se tornou
“bleia” – apelido de quem é fiel da Assembleia de Deus – somente aos 28 anos,
em uma igreja de sua região. Foi lá que conheceu seu atual marido. Os dois
eram ativos na igreja, e acabaram se conhecendo e se apaixonando.
Para ela, a igreja foi fundamental para a incorporação de uma nova ética do
trabalho:
Ah, ajuda, sim. A igreja desenvolve alguns perfis na gente que, por exemplo, eu
mesmo não me via neles. Tipo liderança, né? O perfil de liderar jovens, de ser
modelo para alguém, trazer uma visão pra alguém. Isso aí a gente acaba
desenvolvendo na igreja e vira até algo natural, do seu dia a dia. Esse negócio de
delegar funções, de organizar as coisas. A igreja trabalha muito assim: “Ah, temos
um projeto”, e aí pra realizar o projeto precisamos entender ele, definir tudo
certinho como forma de execução, qual valor precisa ser arrecadado, qual a forma
de arrecadação, horário, roupa, programação. Então, a gente trabalha com tudo isso
na igreja e no serviço isso não é diferente. Como eu comecei a ser organizada para
as coisas da igreja, isso se refletiu no serviço isso refletiu também. Aquele perfil de
liderança. Onde eu tô, praticamente não preciso de uma chefia. É a gerente
tratando comigo. Você vê que eu não preciso mais que alguém fique mandando eu
fazer as coisas. Eu já tenho um olhar mais amplo. Eu acredito que é por conta da
igreja, mesmo. Por conta desse convívio da igreja.
Mas a vida do nordestino não é fácil em lugar nenhum, e Marluce, que nasceu
em São Paulo, mas se considera baiana porque toda a sua família vem da Bahia,
tem muito a relatar sobre preconceito e xenofobia – mero eufemismo para
racismo “racial”, como estamos vendo no decorrer deste livro:
Já ouvi coisas sobre a localidade, né? Porque minha família é toda baiana, então eu
falo também que sou baiana. Sou de São Paulo, mas eu também sou baiana porque
eu tenho sangue de baiano. Uma mistura, porque minha mãe é de Pernambuco.
No Sul, a gente ouve: “Ah, isso é coisa de nordestino”. Umas piadinhas, sabe? Tipo:
“Nossa, que baianada que foi feita aqui”, uns comentários assim, mesmo. E me
incomoda isso de sempre comparar o Nordeste com alguma coisa ruim. Sabe? “Ah, é
coisa de desleixado, é coisa de nordestino.” E não é! Não é! Se você parar pra pensar,
a cidade de São Paulo só tá construída hoje por causa desse povo todo que veio do
Nordeste trabalhar aqui, né? Eles ajudaram no desenvolvimento. Eles não são
menos importantes, não são menos inteligentes por conta disso. É bastante trabalho
braçal? É. Mas não é pra desprezar, muito menos por ter vindo veio do Nordeste. O
Nordeste, se você for visitar, é muito lindo! Eu teria muito orgulho de dizer: “Eu
moro lá na Bahia”, “Eu moro em Pernambuco”. Você já viu as praias de lá?
Limpíssimas! Aí você vem para as praias no litoral sul de São Paulo, tudo largado.
Outro tipo de preconceito que incomoda Marluce é o exercido pela orientação
religiosa. Para ela, o “crente”, como se designa comumente o evangélico, é
vítima de um preconceito virulento e desrespeitoso.
Tipo: “Ah, crente é tudo doido”, “Crente é tudo fanático, só Bíblia”, né?
Principalmente quando você é cristão e se identifica como cristão, seja na faculdade
ou seja no trabalho, qualquer atitude sua é: “Pera aí! Você ficou brava? Mas você
não é cristã?”. A sua referência é o cristão, né? Você tem que agir com uma atitude
que, pra eles, é a coerente, né? Eles esquecem que você é ser humano.
Quanto à pauta de costumes – como a orientação sexual e estilo de vida –, a
posição de Marluce é mais matizada, sobretudo se comparada às falas dos
homens que estamos entrevistando, que exalam homofobia reprimida. Para ela,
cada um pode e deve definir ser quem se quer ser, mas não aceita que as igrejas
sejam obrigadas, por exemplo, a realizarem casamentos homoafetivos:
A ideia de “Eu vou obrigar as religiões a aceitarem e fazerem os casa­mentos dentro
das suas igrejas” fere um princípio cristão. É meio complicado. Quando é por lei,
pelo cartório, meio que tipo, o cartório tem uma diversidade, ele é para todos os
brasileiros. Agora, a religião já é uma outra coisa. É uma outra vertente. Então, é
meio complicado dizer: “Eu vou obrigar os pastores a fazerem o casamento
homoafetivo”. Eu não concordo com essa obrigação porque fere, realmente, os
mandamentos, tudo o que a gente vê na Bíblia. Ah, tudo bem, a Bíblia é antiga,
tem mais de 2 mil anos e tudo o mais. Mas o máximo que a gente pode absorver e
fazer com aquilo que tá escrito, a gente faz. Né?
Também em relação à política – e ao entrelaçamento entre religião e política –,
a opinião de Marluce é mais refletida e crítica. Para ela, as duas coisas não
devem se misturar tanto, e não considera razoável que a igreja leve candidatos
ao púlpito.
Eu não concordo, por exemplo, com ficar chamando candidato e fazendo boca de
urna dentro da igreja. É importante você parar e pesquisar, né? Eu vou votar em
quem? Qual é o projeto de lei dessa pessoa? Quem é essa pessoa? O que ela já
construiu de projeto político no Brasil? Tem a ficha limpa? Condiz com o que eu tô
pensando? É o mínimo. É o mínimo de todo cidadão e de todo cristão também. A
gente não pode se apartar disso.
A escolha por Bolsonaro para a presidência não foi uma escolha fácil nem feita
com entusiasmo por Marluce. A postura de Bolsonaro na ocasião da covid-19
foi um episódio decisivo para essa dificuldade. Mas a necessidade existencial de
uma “boia de salvação moral”, ou seja, alguma dimensão da vida onde alguém
como ela pudesse ser vista – pelos outros e por ela própria – como uma pessoa
“respeitável” foi o aspecto decisivo da escolha, aparentemente irracional:
Foi uma batalha. Eu meio que me senti sem opção, mas acabei votando no
Bolsonaro. Por incrível que pareça. Eu não concordei com todo o modo de política
dele, e a postura dele diante da covid, achei bem decepcionante. Mas eu via que ele
também seguia, não sei se por coação, por uma linha da família, da preocupação
com os lares, com o que estavam apresentando de material escolar e tudo o mais. E
aí eu acabei indo por essa linha. Falei: “Bom, até agora foi o que me pareceu
melhor, vou nesse.”
Se nos aprofundarmos nas razões da escolha de Marluce, logo teremos o rastro
do antipetismo cevado pela grande imprensa durante vários anos. Para muitos
das classes populares, o simples bombardeio midiático generalizado parece ser
um atestado da verdade. O debate sobre as irregularidades da Lava Jato nem
sequer chegou a ser acolhido nesse meio.
Eu fiquei com pé atrás com o PT. Desde quando o Lula foi preso, eu não voto mais
no PT. Até porque eu acho que, na verdade, ele nunca saiu do poder. O Lula saiu,
ele deixou a Dilma, mas, pra mim, ela sempre foi manipulada por ele. Então,
querendo ou não, é meio que um comunismo ali. Eles estão presos naquela cadeira,
num domínio, por muito tempo. Eu não vejo uma grande diferença. E sempre a
saída é dar uma bolsa. É bolsa pra isso, bolsa pra aquilo. Que nem, agora, o carro-
chefe dele foi “dar picanha”. Eu não quero! Eu consigo trabalhar e ter uma
picanha. Eu quero algo mais efetivo. Eu queria uma escola mais bem estruturada,
entendeu? Então, assim, são projetos de leis que não me agradam. Ainda são
candidatos que já tem a ficha suja. Então, eu não vou votar assim. Também não foi
uma escolha muito feliz no Bolsonaro, mas a gente vai tentando.
A penetração do antipetismo popular está umbilicalmente ligada à ampla
aceitação da meritocracia, sobretudo entre os mais pobres. Como sempre, os
mais oprimidos são os que possuem menos condições de se insurgir contra os
valores que os oprimem. A reflexão de Marluce sobre o Bolsa Família e outras
cotas sociais refletem perfeitamente essa aceitação acrítica. Para ela, o Bolsa
Família não deve apenas “dar dinheiro”, mas, também, exigir contrapartidas –
que já existem, mas Marluce e muitos pobres não sabem.
Com essas bolsas, tipo Bolsa Família, eu até concordo, em um certo nível. Pra
família de extrema pobreza, mesmo. Que não teve oportunidade pra nada. Ter uma
forma de tirar essas pessoas da extrema pobreza, beleza. Mas eu acho que não é só
dar o dinheiro, tinha que ter uma cobrança. Por exemplo: “Vou te dar um
dinheiro, mas quero que você matricule na escola tua filha.” Ou: “Vou te dar um
dinheiro, mas você tem que procurar trabalho.” Ou dar um curso pra essa pessoa,
preparatório para um trabalho. Eu sempre aprendi que devemos “correr atrás”.
Vamos fazer acontecer, né? Agora, já tenho uma visão um pouco diferente quando
se trata de estudo. Por exemplo: bolsas de estudo. Acho que tinha que ser que nem
nos países de Primeiro Mundo: todo mundo que estudasse, tinha que ter direito ao
acesso à faculdade. E aí vai concorrer quem consegue o acesso às melhores
faculdades. Entendeu? Quanto melhor nota tiver, a melhor faculdade vai estar mais
ao teu alcance. Mas todos deveriam ter o direito de ir pra faculdade. Infelizmente,
isso não acontece. O ensino público é defasado, vai pra faculdade pública quem tá
na escola particular. Inversão de valores. Eu acho que quem estudou em escola
pública, sim, deveria ter sua oportunidade de bolsa, de cota, seja o que for. Ter, pelo
menos, mais uma oportunidade. Nessa vertente de estudo, acho que quanto mais
oportunidade, melhor.
A opinião mais matizada de Marluce se deve provavelmente ao seu relativo
maior tempo de estudo, inclusive universitário. No entanto, percebemos na
fala de Marluce o quão difícil é o avanço de alguém mais pobre, mesmo que
tenha determinação e vontade de estudar. Em seu caso, o estudo não a levou
mais longe. Parece que o diploma não melhora a sua vida. Isso a fez tomar um
choque de realidade e não esperar tanto do estudo.
Depois que eu terminei o ensino médio, eu fiz o curso de artes visuais. Faculdade.
Mas no último ano, desisti. Não quis mais. Comecei a trabalhar, fui fazer estágio,
me decepcionei muito com a realidade. Aí eu falei que não queria mais esse
caminho escolar. Tranquei a faculdade e não voltei mais. Hoje, eu faço faculdade
de teologia. Estudo todo dia. Estou no terceiro ano. E, assim, eu gostei muito porque
tirou algumas dúvidas minhas dessa parte religiosa, do cristianismo e tudo o mais.
E de outras vertentes também, de outras religiões. Mas eu também não vou
trabalhar nessa área, né? Eu vou terminar a faculdade de teologia e pretendo fazer
gestão hospitalar em algum momento, pra me manter na área da saúde, mas dentro
desse olhar administrativo.
Edvani
Edvani nasceu em Jardim Progresso, na periferia da Zona Sul de São Paulo.
Apesar de ter estudado em uma escola particular perto de casa até a oitava série,
sua vida não difere muito dos perfis aqui analisados. O segundo grau ela teve
que fazer na escola pública e já trabalhar – como sempre, sem carteira assinada
– a partir dos quinze anos.
Edvani teve uma família estruturada, com pai e mãe morando juntos, mas o
decisivo aqui é a escola precária, seja pública ou particular, e a necessidade
desde muito cedo de combinar trabalho e estudo. Essa é a condenação do
pobre, que, nesse contexto, mesmo se conseguir vingar e ter acesso a alguma
forma de qualificação do trabalho, sempre trará as marcas da socialização
escolar precária. Ela nasceu praticamente dentro da igreja, a Assembleia de
Deus, na qual seus pais já eram ativos e envolvidos. Edvani guarda boas
lembranças desse período de sua vida.
Importante, pra mim, foi partilhar momentos, ali, com as pessoas. A troca de
ideias. Teve também um grupo de estudo bíblico que nós fizemos. Inclusive, bem
legal! Eu pude aprender bastante. Acho que é isso, a troca entre as pessoas – de
conhecimento, tudo, no geral. Eu curtia muito estar junto da galera. E tinha
momentos de louvor aos sábados, que eram os encontro dos adolescentes. Tinha
louvor, tinha ministração. Bem legal. A Bíblia é muito complexa, né? Assim, não é
fácil. Mas esse grupo de estudo me ajudou a enxergar algumas coisas que eu não
conseguia enxergar, eu mesma, lendo. Ajudou a ter o conhecimento de ler a Bíblia,
né? Uma forma boa de interpretar.
A igreja fornece aos pobres praticamente tudo o que eles precisam. Como o
abandono social dessas pessoas é profundo, passa a ser um espaço único de
sociabilidade e ajuda mútua. Como todos precisamos dotar o mundo de
sentido e de pertencimento, é aí que a igreja evangélica – que, como toda
igreja, dá o que os clientes querem – mostra toda a sua força de arregimentação
popular.
Na verdade, a igreja somos nós, né? Estar na igreja, com um líder, é estar com
alguém que intercede por você, com uma espiritualidade maior, ou melhor, com
uma força maior pra ajudar espiritualmente. Então nisso eu vejo importância da
igreja, hoje. Né? Não que a tua oração, teu pedido não cheguem lá em cima, mas
eu acredito que a gente precise dessa rede de apoio, de uma oração maior. Uma
cobertura espiritual!81
Questionada acerca de suas posições políticas, Edvani não se sente tão à
vontade. Para ela, é o mesmo que falar sobre algo que não se compreende. A
influência da igreja vem preencher esse hiato. Quando falo sobre a mistura
entre religião e política, ela responde:
Eu não entendo muito de política, não, viu? Mas eu acho que são áreas totalmente
diferentes. Eu não vejo que tem uma ligação entre política e religião. Na minha
cabeça, os dois não se ligam. Existem discussões na igreja sobre isso. Então, como eu
vou de vez em quando, né? Fui a um culto antes da eleição e eles pediam para orar
pela nação. ­Independentemente de quem fosse ganhar, eles estavam orando pela
nação, então que fosse feito o melhor pela nação. E foi isso. Não levantaram
bandeira. Se levantaram, eu não vi. No dia do culto que eu fui, eles tavam orando
pela nação.
A influência e manipulação política, muitas vezes, como no caso de Edvani,
não ocorre de modo explícito. Como na passagem acima, os nomes dos
candidatos não são ditos, e a influência óbvia no caso – já que orar para a
“nação” nesse contexto é orar para Bolsonaro – torna-se ainda mais eficiente,
visto que se dá como se não acontecesse. Edvani se sente representada pelo
bolsonarismo – como sempre, por dois fatores que se combinam: a pauta de
costumes conservadora e regressiva e o tema da (in)segurança pública:
Assim, não que eu seja contra, tá? Não. Nada contra os LGBT+, mas tudo isso tá se
tornando muito explícito, e preocupa por conta das crianças. Hoje eu tenho minha
cabeça formada. Mas, querendo ou não, as crianças crescem num mundo com essa
influência. Se hoje meu filho está aqui, e eu sou casa com uma mulher, no futuro
ele pode se casar com um homem! Ele pode casar com mulher? Pode, mas a
tendência é de que os filhos se espelhem nos pais.
Sobre a questão da segurança pública, sua resposta foi a seguinte:
Pela liberação, pela liberdade que tá em tudo hoje, você não tem mais segurança de
sair na rua, durante a noite� Você sai sempre com medo. Eu fui roubada dentro
da minha casa! Entendeu? O portão tava aberto, entraram e levaram a moto. Que
segurança eu tenho? Tá ficando muito liberal, e ninguém é punido. Essa liberação
toda me preocupa. Tanto na questão que levantei antes quanto nessa questão de
segurança, em tudo.
Edvani também não nos decepciona quando perguntamos acerca do terceiro
tema fundamental para a extrema direita, que é a crítica a qualquer ajuda do
Estado. Ainda que a opinião de Edvani seja mais matizada do que a da maioria
das entrevistas acima – isso parece ser uma qualidade feminina por nossa
amostra – ela repete muitas das críticas elitistas contra os mais pobres.
Interessante, nesse contexto, é que Edvani, quando questionada mais adiante
sobre as cotas universitárias, sendo obviamente uma mulher parda e, portanto,
afrodescendente, percebe-se como “branca” e reflete como se esse fosse o seu
lugar efetivo. Esse fato é uma espécie de corolário do processo de
embranquecimento entre nós: a perda da referência racial vai junto com a
perda de seu lugar social e político, assumindo os preconceitos elitistas como se
fossem seus.
Acredito que o Bolsa Família pode ser bom pra quem realmente precisa. Mas
conheço muitas pessoas que não têm necessidade e recebem. Isso torna a pessoa
preguiçosa. A pessoa que eu conheço não trabalha, não faz nada, só vive disso. Não
tem uma inspeção pra conferir se a condição da pessoa é verdade ou não, entendeu?
Então, é muito fácil você conseguir� Não, mentira! Não é fácil não, porque eu
tentei e não consegui. É verdade! Até hoje nunca saiu. Mas agora eu tô
trabalhando, então� né? Eu acho que quem realmente tem necessidade, tem que
ter ali� Poderia ter alguém, alguma assistente social que fosse acompanhar a
necessidade da pessoa. Eu vejo por esse lado. Tem muita gente que usa de má-fé. É
bom, sim, pra quem realmente precisa. Mas muita gente que age de má-fé.
Sobre as cotas, sua opinião é a seguinte:
Eu acho que todo mundo tem capacidade. Tá? De conseguir passar, de estudar –
todo mundo tem a capacidade. Cota você fala para os negros e essas coisas, né? Eu
não sou a favor, mas não é porque sou branca. Quando você faz o enem, lá na
prova você não especifica se é branco. Na prova, não. Independentemente da tua
pontuação. Tem isso quando você vai fazer o cadastro. Aí pedem, né? Mas, a sua
pontuação é a sua pontuação. Independentemente de você ser branco, ser amarelo,
verde ou azul. O que vale é seu conhecimento. Não vejo como uma coisa boa.
Porque todo mundo tem capacidade. Assim como um branco� Na prova, não vem
nada escrito discriminando sua cor.
Edvani é presa fácil da suposta igualdade de oportunidades embutida no
conceito de meritocracia. Em grande medida, é uma fiel típica do mundo
evangélico – já que a possibilidade de crítica ao mundo social como ele é passa
a ser mitigada ao máximo na maioria das denominações. E tem também o fato
de se achar ocupando um outro lugar que não é o seu. As fake news nas quais
Edvani acredita fazem o trabalho complementar de confundir e atordoar.
Assim, Edvani, filha e neta de nordestinos, responde sobre o voto nordestino
ter sido em Lula da seguinte maneira:

Eu não sei nem o que dizer. Mas, pelo que eu ouvi, por cima� Para o pessoal do
Nordeste� O partido atual que hoje tá aí, atuando pra nós, ficou no cargo
durante muitos anos e, querendo ou não, deixou muito a desejar. Principalmente,
pra eles! Em questão da água, tudo. Pelo que eu vi, assim, por cima. Vi que no
governo passado eles conseguiram finalizar essa questão, né? E realmente o povo do
Nordeste foi e votou no partido que... [Arregalou os olhos com cara de
desconfiança e deu um breve riso.] Mas também tem aquilo: conheço muitas
pessoas, tipo a minha vizinha que mora aqui embaixo, que votou no partido de
hoje por questão do auxílio! Porque do partido do governo passado ela não tinha, e
quando era desse de agora, ela conseguiu. Então, ela foi muito nessa questão. Eu
não sei, né, se o pessoal acreditou que ia continuar no Bolsa Família. Porque a
maioria do pessoal do Nordeste tem esse programa, né? Não sei se foram nesse
pensamento. Como eu te falei, eu não sei se tem outros benefícios e qualidades, mas
eu achei que não condizia com o que eu via – por cima.
Jefferson
O caso de Jefferson é muito interessante. Sua trajetória é parecida com a de
quase todos os outros, exceto por uma diferença fundamental. Jefferson
chegou, com apoio da igreja, a cursar teologia e filosofia, e hoje é professor da
rede pública do Estado de São Paulo. Isso acontece quando surgem influências
relevantes – quase sempre, um adulto significativo, como o “Minduca” foi para
Jefferson, como veremos mais abaixo –, que permitem uma variação na
incorporação de capital cultural (o que proporciona não só um emprego
seguro, mas também maior consciência social).
Jefferson teve, de início, a trajetória típica dos jovens das classes populares. O
pai tinha uma pequena sorveteria em um bairro periférico de São Paulo e,
tanto a mãe de Jefferson quanto ele trabalhavam na sorveteria – ele, desde os
14 anos. A dupla jornada de trabalho e estudo é uma espécie de condenação
para as classes populares, já que não se pode fazer nem um nem o outro bem-
feito. Os pais cursaram até o Ensino Médio, e esse seria o destino prefigurado
para Jefferson.
Quando a sorveteria do pai quebrou, Jefferson era adolescente. O pai foi ser
pintor de paredes – outra invariante dessa classe social são os “bicos”, ou os
empregos de quem aprendeu tudo na vida por imitação e não pela escola.
Jefferson acompanhava o pai nos trabalhos de pintura. A certa altura, o
adolescente, com 15 anos, era quem levava drogas para os auxiliares do pai nos
trabalhos das casas da classe média. Essa atitude do jovem enchia os pais de
tristeza, até que o próprio Jefferson decidiu que essa coisa de “trabalho braçal”
não era para ele.
É aqui que entra o “Minduca”, o hippie que vendia miçangas e que passou a
aconselhar Jefferson nos seus passos para o futuro. Segundo Jefferson, foi
Minduca quem o “discipulou”, ou seja, tornou-o um discípulo da doutrina
religiosa. Minduca influenciou o jovem Jefferson a refletir sobre a própria vida.
Como Minduca era cristão evangélico, foi ele quem evangelizou Jefferson
defendendo a primazia da vida espiritual em relação ao mundo material.
Minduca unia duas vivências improváveis: a do “hippie”, no comportamento e
valores de vida, e a do pregador evangélico. Jefferson disse que Minduca foi seu
primeiro “profeta do deserto” do Antigo Testamento, ou seja, os profetas
ascetas que desdenhavam das riquezas, e que vinham contar as verdades
desagradáveis aos que esqueciam a palavra de Deus.
Sob a influência de Minduca, Jefferson decide estudar teologia e depois
filosofia. Desse modo, quando ninguém mais da família nem ninguém mais da
igreja tinha esperança de que Jefferson se evangelizasse, eis que surge um rapaz
com novos sonhos e ambições. Essa conversão se deu quando a mãe de
Jefferson, e depois ele próprio, sofreu de depressão. A igreja pagou a psicóloga,
o tratamento psiquiátrico e, em seguida, os estudos teológicos e filosóficos de
Jefferson.
Foi a igreja que pagou a minha psicóloga. Porque eu me aconselhava bastante com
o pastor, né? E ele via que eu estudava bastante. Comecei a estudar bastante a
Bíblia quando eu me converti, teologia. Mas aí o pastor falou que meu caso tava
fora da esfera dele. Porque eram as mesmas crises. Ele falava as mesmas coisas, até
que ele disse: “Jeff, eu acho que isso aí é psicológico.” E me indicou uma psicóloga
que não era cristã. Inclusive, a igreja financiou. A igreja transformou a minha
vida. Não só nisso. Ela que me mandou pra faculdade, pagou minha faculdade,
pagou minha moradia. Eu devo muito à igreja. Eu sou apaixonado por igreja,
porque minha experiência foi profundamente positiva.
Por conta do apoio que teve na igreja, Jefferson conseguiu algo quase
impossível para um jovem pobre da periferia: apenas estudar! Quando foi fazer
filosofia na Faculdade São Camilo no Ipiranga, em São Paulo, Jefferson estava
empregado, mas deixou o emprego para se dedicar inteiramente aos estudos –
um privilégio típico das classes médias que, assim, reproduzem seus privilégios.
Eu larguei o emprego. Aí meus pais me mandavam trezentos reais por mês, e me
virei com isso daí pelos três anos, né, depois. No primeiro ano só que eu trampei. Eu
trampei lá no Colégio Batista82 como inspetor de alunos. Aí depois eu deixei e fui só
fazer filosofia.
Em todo esse tempo, Jefferson teve o apoio da liderança da Igreja Batista, da
família e dos pais. Foi certamente um sentimento de esperança para pessoas
que o conheciam desde pequeno – e que o tinham como irrecuperável – vê-lo
estudioso e aplicado, com um foco na vida que não fosse drogas e “rolês”.
Questionado sobre a influência desse apoio na sua vida pessoal, Jefferson me
responde: “Eu me tornei gente por causa da igreja. Entendeu? Eu nem teria um
trabalho se não fosse a igreja, né? A relação pra mim é direta, assim.”
Quando começamos a discutir sobre a situação política, pude perceber a
posição diferenciada de Jefferson no assunto, muito diferente de todos os
outros casos que examinamos acima. O aspecto decisivo aqui é a capacidade de
reflexão adquirida nos estudos teóricos de teologia e filosofia. Esse é o motivo
que torna possível que Jefferson tenha distanciamento reflexivo e opinião
própria. Comecei, como sempre, perguntando sobre a mistura entre política e
religião no meio evangélico. Jefferson me disse o seguinte:
Ultimamente, eu vejo como desgraçada essa influência da igreja. Porque quando
você mistura a religião com a politica� Não é que eu seja contra a mistura. Eu sou
a favor. Só que quando você sacraliza posições políticas, você� Eu venho falando
que tem sido recorrente, mais ainda nos últimos quatro ou seis anos, um certo tipo
de terrorismo eleitoral. É, um terrorismo eleitoral. Se você não votar em alguém que
Deus está mostrando como caminho de saída pra esse país, você não é crente.
Entende? Então, por exemplo, saíram posts dizendo que os lugares mais quentes do
inferno estão reservados para as pessoas que se mantém em posição de isenção em
momentos de crise. E aí falaram que é do Dante Alighieri essa frase. Nem é dele!
Mas colocaram como se fosse. Eu exponho, não tenho problema: anulei o meu voto
nas duas últimas eleições. Então eu sou pior do que o cara que eles acham que é o
pior, que é um endemoninhado. Eu sou pior ainda, porque o lugar mais quente do
inferno é reservado pra mim, que não gosto desse tipo de manipulação. Esse
terrorismo teve efeitos reais na vida das pessoas, das famílias. Eu converso com
muitos pastores. Sei de famílias que pararam de se falar! Assim, pai com filho, mãe
com filho. E não pararam de se falar por causa de alguma questão legítima do
Evangelho. Pararam de se falar por causa de um candidato, né? De candidatos
políticos.
O fato de que Jefferson seja o primeiro negro evangélico, entrevistado para este
estudo, que não votou em Bolsonaro e preferiu anular o voto nas duas eleições
é muito sintomático. Perceba a contradição de Jefferson: ele deve tudo à igreja
e à ajuda que recebeu. O sentimento de gratidão é explícito e compreensível.
Como ele mesmo diz, ele deve a “vida” à igreja. No entanto, isso não o impede
de exercitar seu espírito crítico desenvolvido no estudo da filosofia e da
teologia. Ele percebe a manipulação política envolvida.
Mas eu acho que a igreja evangélica deu munição. Foi ela, na verdade, que forçou
a formação de uma reação contra a esquerda da qual ela tem medo. Ela pega
alguns elementos que parecem ou são cristãos, distorce, mistura numa salada inteira
pra colocar todo mundo que está fora desses elementos fora da possibilidade de
bondade.
A crítica de Jefferson é a de quem conhece profundamente, por estudo e
vivência, o assunto que estamos tratando. Ele percebe que o mundo evangélico,
por sua tentativa de se tornar uma força social política, religiosa e econômica,
secundariza a doutrina do amor cristão e apela para o poder de exclusão
implícita de forma ambivalente em toda forma de religiosidade. E ele percebe
que a igreja tem lado, sim. É o lado da direita política contra a esquerda. Isso se
deve não apenas à chamada “pauta de costumes” liberal da esquerda, mas
também ao fato de que a explicação da esquerda para a desigualdade e as
agruras do mundo profano possui uma causalidade social e não religiosa.
Para ele, a “polarização” atual já existia desde sempre – de modo velado:
Então, esse tipo de polarização vai se consolidar. Já tava consolidada, na verdade.
Só apareceu. No Brasil, todas as pautas sociais importantes, que devem ser
assumidas, vão ser deixadas na mão dos progressistas, e as partes teológicas que são
importantes vão ficar com a galera conservadora. E não vai ter diálogo. Só que
alguém vai sofrer com isso. E alguém vai pagar o preço. E é quem? O pobre que tá
precisando. Porque daí ou ele vai ser acolhido financeiramente sem a doutrina
cristã, ou ele vai ser acolhido pela doutrina cristã, mas sem comer, né? Então, isso
prejudica quem sempre se prejudicou, que é o mais fraco. Né? Sempre a corda
estoura para o mais fraco.
Quanto ao tema dos costumes e do movimento LGBT+, o grande fantasma dos
evangélicos, a opinião de Jefferson também é mais razoável do que a dos
demais – ainda que ele assuma que as questões de gênero são um “perigo”,
embora de “segundo grau”, para ele.
Eu acho que a pauta LGBT+ é um risco, mas um risco de segundo nível. No primeiro
nível, você tem que ver mais de modo nuclear, que é a formação dos valores. Certo?
Os pais formam os valores nos filhos. Então, se há um pai ausente demais, por causa
do trabalho que tá sugando ele, uma carga horária muito grande, sei lá, isso tá
destruindo a família dele. Certo? Porque ele não vai ter tempo com o filho. Ou o
cara que tá absorto em pornografia, também tá destruindo a família dele.
Querendo ou não, ele tá criando uma destruição dentro da sua casa. Ou uma
família voltada demais para o consumo: se a mente que você cria na sua família é
uma mente consumista, e se o identitarismo LGBT+ virou um produto de consumo
também, entendeu para onde você está jogando seu filho? É mais uma opção de
consumo. É mais um produto.
Mesmo Jefferson, um rapaz inteligente e com boa formação, percebe com
desconfiança a livre orientação sexual dos outros. Isso mostra como a pauta
moralista, baseada no narcisismo da pequena diferença, é decisiva para os
pobres. Aqui, qualquer distinção moral, por mínima que seja, representa
muito, uma vez que é fonte de reconhecimento social e de senso de dignidade.
Mais reflexivo do que todos os demais, Jefferson é professor de filosofia na rede
pública e percebe a manipulação política das igrejas e seu antiesquerdismo.
Mas, ao mesmo tempo, deve tudo à Igreja. Tudo mesmo – desde seu resgate,
quando muito jovem, até sua formação e seu tratamento psicológico. Ou seja,
mesmo para quem percebe a manipulação, a dívida é tamanha – a dívida aqui é
por ter se tornado “gente”, cidadão com respeito social etc. – que ele não se
insurge totalmente contra o espírito dessa igreja (anulando o seu voto, em vez
de optar pela “oposição”).
Alan
A trajetória de vida de Alan não é muito diferente dos membros das classes
populares, negra e pobre no Brasil. Perdeu a mãe para o câncer quando tinha
apenas sete anos e conviveu com um pai autoritário e alcoólatra que era
funcionário de uma firma de segurança. Como o pai fazia muitos plantões e
ficava pouco em casa, Alan passava muito tempo nas casas de suas tias.
Conseguiu terminar, com muito esforço, o segundo grau, mas segundo ele
próprio não aprendeu muita coisa e entende que isso não faz diferença na vida
atual como pedreiro.
A trajetória dos pobres brasileiros sem estímulo para os estudos e escola
precária condiciona a vida precária e humilhada que irão levar quando adultos.
Sem absorver pensamento abstrato nem desenvolver as habilidades mínimas
para um serviço qualificado e mais valorizado, quase metade da população
brasileira, assim como Alan, é condenada a fazer de tudo porque não
aprenderam a fazer nada direito.
É aí que entra o “biscate” – o trabalhador de ocasião. Alan foi ajudante de
borracheiro no primeiro emprego, aos 15 anos. Depois, como não conseguiu
ficar no Exército por excesso de contingente – era seu sonho –, foi também
balconista, garçom, atendente de lanchonete, faxineiro de condomínio,
ajudante em uma pequena fábrica de cisternas, e, finalmente, ajudante de
pedreiro. E pedreiro é, agora. Ou melhor, era, já que está desempregado.
Alan decidiu entrar na Igreja Universal em 2020, logo quando começou a
pandemia. O que ele gosta na igreja é que ela dá o estudo da palavra (de Deus)
por meio da leitura da Bíblia. Ele me disse que nem todos os pastores falam de
política, embora alguns falem – cita o pastor que, segundo ele, é “digital
influencer”. Nesse caso, a pregação política, especialmente a luta do bem contra
o mal, domina tudo. O restante evita o proselitismo aberto e apenas pede um
voto de confiança para o “partido do Evangelho”, ou seja, o pastor pede aos
fiéis para votarem nos membros da igreja e naqueles que defendem a igreja e a
família. Quando pergunto a Alan quantos seguem as indicações do pastor, ele
me responde: “Ah, pelo menos uns 60% seguem e concordam com essas coisas
que o pastor fala.”
A “ideologia de gênero” também é um medo real para ele. Alan me conta que
uma das piores brigas com a mulher, Rose, uma verdadeira feminista da
periferia, foi por conta do que aconteceu com o filho na escola, quando ele
tinha uns seis ou sete anos. O menino chegou em casa, certo dia, contando que
a professora tinha falado sobre a existência de casais homossexuais. Agenor, o
nome do garoto, perguntou à mãe se o casamento não era só entre homem e
mulher – se poderia ser entre homens também. A mãe estava tentando explicar
para o filho quando o pai interrompeu, colérico, a discussão, dizendo que Deus
fez Adão e Eva para dar o exemplo do que é certo. E ele é decididamente
contra o casamento gay, acha que esse tema não é coisa que se fale às crianças.
A briga que se instaurou entre o casal quase levou à separação: “A Rose me
perguntou o que eu faria se meu filho fosse gay, se eu não iria amá-lo mais. Eu
respondi que ele não vai ser gay porque recebe boa educação em casa”, disse.
Não é um medo real para ele. E diz que, de qualquer modo, se o filho fosse
gay, não teria problema nenhum para ele, porque é o filho que ele ama e nunca
deixaria de amar. Para não contrariar a mulher, Alan desistiu de ir à escola
reclamar pelo acontecido. Para ele, a escola deve ensinar o “certo” e não pôr
ideias na cabeça dos alunos – muito menos “chamar a atenção” das crianças
para fatos que elas não compreendem. “Deus falou de Adão e Eva e não de
Adão e José”, disse Alan. Eu perguntei se ele acha certo a mistura de religião e
política, ao que ele me respondeu que: “Eu nunca concordei com isso. Religião
é uma coisa e política é outra bem diferente. Não tem como misturar. Não
gosto quando pastor fala de política e quer influenciar o voto.”
Alan parece não se dar conta da visível contradição em se ser contra a mistura
de religião e política e defender uma concepção unilateral e religiosamente
motivada de vida familiar. Para ele, “interferência política” é quando se fala de
política partidária. A política como “visão de mundo”, por outro lado, a
política da vida cotidiana, que é a que importa, deve defender o lado certo da
vida, ou seja, o que a religião ou o pastor diz ser o certo. Nesse caso, deve haver
mistura de religião e política. Alan é preocupado, antes de tudo, que a
“ideologia de gênero” corrompa a formação dos filhos. O simples fato de outras
pessoas serem gays incomoda Alan. Ele diz que “aceita” o fato da
homossexualidade alheia, mas exige ser respeitado – por exemplo, não admite
ser cantado por um gay. Seria briga na certa. Segundo Rose, essa teria sido a
briga mais séria do casal.
A predileção por Bolsonaro está ligada à igreja. Basicamente, o decisivo é que
Bolsonaro é defensor da família composta por marido e mulher – a verdadeira
obsessão de Alan. Aliás, como de quase todos os entrevistados. Para ele, família
é a família do cristianismo, e as ameaças a ela vêm do campo LGBT+ e de coisas
como o “kit gay”, que ele acreditou piamente que existia. Além da pauta
familiar conservadora, o outro ponto que Alan gostou em Bolsonaro foi o tema
da segurança pública. Ele me diz que quando ouvia Bolsonaro ele achava que a
segurança pública ia mudar no país inteiro. “Mas não mudou, né?”, perguntei.
Ao que ele me disse: “É, não mudou.”
Quanto aos outros aspectos do governo Bolsonaro, ele me diz, cuidadoso:
“Não sei se o que vou dizer agora é o correto, mas acho que o preço da
gasolina, e das coisas, baixaram.” E sobre a pandemia, o que ele lembra foi a
ajuda de seiscentos reais: “Foi pouco para manter a família, mas ajudou muito
a não passar necessidade.” Mas a mortandade na pandemia o assustou. E
também o fato de Bolsonaro ficar “zoando” com quem não podia mais respirar.
Por conta disso, ele não pensava em votar de novo em Bolsonaro, em 2022.
Sua mudança de perspectiva tem uma nítida influência da sua mulher, Rose.
Ela, no seu trabalho de faxineira, consegue trazer entre 3 mil e 3.500 reais para
casa todo mês. Leva ainda três horas de ida e três horas de volta para o
transporte de Curicica, na Zona Oeste da metrópole, até a Zona Sul carioca.
Aproveita o tempo no trem e no ônibus para ler o material do curso noturno e
online de pedagogia. Alan ganhava cerca de 1.500 reais, às vezes, 2 mil reais ao
mês, mas agora se encontra desempregado e Rose sustenta a casa – como
muitas mulheres neste país.
Ele me conta que a política era tema frequente com a esposa. Rose, que
acompanhou de perto toda a entrevista realizada na casa de Alan, em Curicica,
deixou de gostar de Lula, em quem já havia votado duas vezes, desde a Lava
Jato – como ela me disse: “Que teve alguma coisa ali, teve”. E essa desconfiança
nunca mais se apagou. Mas é contra Bolsonaro também, e, por isso, votou em
Simone Tebet. Aliás, Rose, como me contou no dia da entrevista do marido,
sempre votou em mulheres – como Marina Silva, Dilma Rousseff e, agora, em
Tebet. Quando Tebet saiu da disputa, Rose anulou o próprio voto. O único
homem em quem ela votou para presidente foi Ciro Gomes, em 2018: “Pensei
que ele fosse ganhar”, disse ela.
Rose é inteligente e articulada, e sabe fundamentar suas posições com
argumentos bem construídos. A sua influência sobre o marido é visível, assim
como é visível que Alan admira e respeita a esposa – que possui mais estudo e
escolaridade. Alan me conta que a mulher nunca entendeu como um negro e
pobre como ele vota em Bolsonaro, que nada faz pelos pobres e ainda foi
irresponsável e maldoso na pandemia. A resposta de Alan é a de que não queria
votar no Lula de jeito nenhum, pelas mesmas razões de Rose, e acha
interessante a pauta de costumes de Bolsonaro.
Mas, assim como a mulher – e provavelmente sob sua influência –, Alan
votou em Simone Tebet no primeiro turno de 2022. Ele me conta que o
motivo do voto foi pela ênfase na importância da educação para Tebet. Ele
esperava melhoria nas escolas e cursos profissionalizantes. Segundo ele: “O
nosso ensino ainda é muito precário e não é de Primeiro Mundo”. No segundo
turno, no entanto, “por falta de opção”, de acordo com ele, decidiu votar em
Bolsonaro, mais uma vez. “E o Lula, por que você não gosta dele?”, perguntei.
Olha, o que vou dizer eu não sei se é verdade, então só posso dizer o que ouvi na tv,
mas dizem que ele roubou no governo dele, então não voto nele. E Bolsonaro tem
um jeito que eu gosto, aquela coisa da “zoação”, da brincadeira, de falar um
palavrão aqui e acolá, acho legal, parece com a gente e isso me aproxima dele.
A última pergunta foi sobre a tentativa de golpe de Oito de Janeiro de 2023.
Alan discordou frontalmente da tentativa por ser contra todo tipo de violência.
Discordou do motivo também, já que acredita que as urnas são seguras. E, para
ele, quem deve tem que pagar.

IV. ANÁLISE DAS ENTREVISTAS DOS NEGROS EVANGÉLICOS

É importante aqui um esclarecimento: o sofrimento do negro evangélico, ainda


que pobre remediado, é muito distinto do sofrimento do branco pobre
analisado mais acima. O negro é oprimido e negado de sua humanidade o
tempo todo – algo que o branco, mesmo pobre, não sofre. O branco pobre se
enxerga “menos” que o branco mais rico com capital cultural, mas a sua
humanidade e pertencimento social não são postos em dúvida. O contrário
acontece com o negro, que é obrigado a enfrentar cotidianamente a ameaça de
animalização – considerado por todos, ou pela maioria, como “subgente” que
pode ser morta e humilhada sem qualquer reação social. Na conclusão,
aprofundaremos esse ponto fundamental.
Comecemos por Ederson, negro carioca que mora em São Paulo. É
impressionante, desde o início, a aceitação de todo tipo de preconceito
dominante – criados, com precisão de alfaiate, para humilhar a vítima. Assim,
o carioca Ederson repete os chavões das personalidades típicas de dada região, e
lembra que o carioca é a malandragem e o paulista o trabalho, evidenciado a
força da ideia do “excepcionalismo paulista” que se capilarizou por todas as
classes – como mostramos acima – da sociedade paulista e nacional. Ederson
repete a experiência de todos os entrevistados da periferia: escola pública
precária, trabalho na adolescência e, portanto, uma dupla jornada de trabalho
ainda muito jovens.
Como também em todos os depoimentos, o apoio a Bolsonaro se dá mesmo
com o reconhecimento de seus erros, aceitando que muitas de suas ações,
sobretudo na pandemia, são questionáveis. Mas o aspecto principal, que ofusca
todos os erros, é que Bolsonaro – ao contrário do atual governo lulista –
pensava na família, tinha uma esposa cristã e uma ideologia voltada ao
cristianismo. Por conta disso, ele seria “a melhor opção”.
Também de modo muito típico, Ederson condena, em abstrato, a mistura de
religião e política, especialmente o uso da igreja para se beneficiar
politicamente. Essa é uma contradição evidente, dado que Bolsonaro fez isso.
Ederson considera que o país está pior com Lula e que ele teria se beneficiado
das bobagens que Bolsonaro fez na pandemia para manipular os pobres com
promessas irrealizáveis, como a promessa de picanha para todos. Ele também
não tem completa certeza, inclusive, de que Lula venceu o pleito, afinal, a
diferença foi mínima. Critica também, usando mais um chavão, a relação com
Maduro e o apoio financeiro à Venezuela. Apesar das bobagens cometidas na
pandemia, segundo ele, a economia estava melhorando com Guedes.
O caso de Marluce também chama atenção pela mesmice da trajetória de
classe e pela repetição de fake news e chavões da extrema direita alicerçada no
mundo evangélico. Ela, como todos, começou a trabalhar muito cedo – no
caso aos 15 anos –, e também como de costume, sem qualquer registro
trabalhista. A igreja é percebida como ajudando em todas as dimensões da vida,
inclusive, no trabalho, pelo cultivo das virtudes da “liderança”, segundo nos
conta Marluce. “Liderança” parece significar o hábito de organizar as coisas
com disciplina e atenção.
Ao ser perguntada, Marluce reclama da xenofobia que percebe em São Paulo
contra os nordestinos, de quem ela descende. Na realidade, a xenofobia é uma
das máscaras mais comuns do racismo “racial” e de classe – afinal, como já
vimos sobejamente, ninguém tem desprezo por alguém pela simples latitude
em que a pessoa nasce. Reclama também do preconceito generalizado que
percebe contra os “crentes”, como se fossem pessoas enlouquecidas. Mas a
xenofobia, em especial, incomoda-a muito pela flagrante injustiça com pessoas
que até ajudaram a erguer São Paulo e sua imponência. Ela percebe que a
xenofobia aqui se liga ao trabalho braçal – notando, com isso, o preconceito de
classe (mas não o de raça) embutido nas mais variadas formas de xenofobia.
Marluce compartilha do mesmo moralismo tradicional e rígido que
caracteriza os evangélicos em sua maioria. Como regra, são os mais pobres as
vítimas do preconceito, os que possuem menos condições – cognitivas e
emocionais – de se defenderem dos preconceitos que a elite cria contra eles.
Marluce cita a Bíblia como se ela fosse a base fundamental para avaliar os
comportamentos adequados ou não até hoje, uma vez que ela já tem 3 mil
anos. Trata-se de uma tradição sagrada, com a qual a dúvida, a ciência, e o
conhecimento crítico nada podem fazer. Também como todos os outros
entrevistados, Marluce se diz contrária, em abstrato, à mistura entre religião e
política. No entanto, ela só vota em quem pensa como ela a partir de uma
visão de mundo religiosamente motivada. É como se não houvesse separação
entre religião e política – pior, a política é vista como subordinada à religião.
Marluce votou em Bolsonaro apesar da gestão catastrófica da pandemia, que
ela reconhece como erro, mas, como ele vinha com a defesa da família,
“preocupação com os lares” e com o que estava sendo ensinado às crianças na
escola, ele mereceu, mais uma vez, o seu voto. Desde que Lula foi preso,
Marluce – mostrando o peso irreparável da Lava Jato – nunca mais votou nele.
Depois veio a Dilma, que seria, de acordo com ela, controlada pelo Lula, ou
seja, ficava claro que havia um “comunismo” ali. A crítica ao PT e ao lulismo
gira em torno de bolsas ou de picanha. Ao que ela retruca: “Eu não quero,
posso trabalhar para comprar picanha.” E acrescenta que quer “escola de
qualidade”. Resumindo tudo: segundo ela, como todos têm ficha suja, mesmo
sem gostar, votou em Bolsonaro.
Na sua crítica ao Bolsa Família, finalmente, Marluce repete todos os clichês
da ideologia do empreendedorismo. Acha que tem que existir estímulo a “fazer
acontecer”, ou a “correr atrás”, insinuando que é tudo uma questão de vontade.
Com relação às bolsas de estudo, ela é mais consciente. Ela defende bolsas para
alunos da escola pública – quem realmente precisa, em sua opinião. Marluce
hoje se dedica ao telemar­keting e acha que quem votou em Lula o fez pelo
Bolsa Família, apesar de, segundo ela, o PT jamais ter ajudado o Nordeste.
Já Edvani é uma mulher parda que, no entanto, como muitos brasileiros, vê-
se como branca. Sua trajetória familiar repete, com poucas variações, o que
vimos até aqui. Estudou na infância em uma escola particular do bairro
periférico onde morava e onde o pai exercia a função de pastor. Fez também até
aula de música, o que a põe em um patamar social ligeiramente superior aos
casos anteriores, pela incorporação de capital cultural legítimo, normalmente
restrito às classes do privilégio. As aulas de música foram particulares, já que na
igreja só tinha religião para crianças. Como todos de sua classe social, começou
a trabalhar na adolescência já a partir do ensino médio, e, também, como
sempre, sem registro do trabalho. Chegou a entrar em uma faculdade
particular, mas foi obrigada a desistir depois que engravidou – todavia,
promete que vai voltar à universidade.
A socialização religiosa, desde criança, de Edvani, implicou ser na igreja o
local em que ela encontrava possibilidades de atividade lúdica junto com
crianças da mesma idade. Esse é um aspecto fundamental. Como o público
evangélico mora majoritariamente na periferia das grandes cidades – lugares
com pouca ou nenhuma opção de lazer para os mais jovens –, a igreja se
converte no único espaço de desenvolvimento de laços de amizade e lazer com
as amigas. É nessa época, também, que é inculcada a referência da Bíblia –
como interpretada pelos pastores – enquanto uma referência cognitiva e moral
para compreender e avaliar o mundo. Nesse ambiente, a igreja tende a
representar a necessidade de proteção – por uma espiritualidade maior – para
pessoas que se percebem como não controlando a própria vida, evocando tanto
a rede de apoio da comunidade quanto uma espécie de “cobertura espiritual”.
Como todos que já são socializados no ambiente religioso evangélico – o qual
ou nega a lógica imanente do mundo profano, ou a mitiga – a relação entre
religião e política é bastante problemática e mal compreendida. Embora Edvani
diga que é contra a mistura entre as duas esferas, como ocorreu em todas as
entrevistas, a sua própria atitude em relação ao mundo já foi moldada
religiosamente de modo imperceptível – muitas vezes, o que apenas aumenta e
potencializa sua força e sua ação. Assim, ela se preocupa, politicamente, com a
“ameaça” LGBT+ – com o perigo que isso representaria para os filhos. Afinal,
como ela mesma diz, os filhos se espelham nos pais. Nesse contexto, o
proselitismo político da igreja pode assumir feições menos evidentes à primeira
vista. Assim, na época da última eleição o pastor não pediu votos diretamente
aos fiéis em um candidato específico. No entanto, sua oração foi feita em
louvor à “nação”, favorecendo, obviamente, o candidato com discurso
supostamente nacionalista.
A outra questão que mais preocupa as pessoas dessa classe social
intermediária – entre a classe média “real” e a ralé de abandonados – é a
insegurança pública. Edvani diz: “Aqui ninguém está seguro nem em sua
própria casa”, referindo-se ao abandono, intencional muitas vezes, da polícia
que se vê obrigada apenas a defender e guardar os bairros de classe média, mas
não os dos mais pobres.
Quanto à posição de Edvani sobre os programas sociais como o Bolsa
Família, ela confirma a posição majoritária no campo evangélico de que para
ela, apesar de ser uma boa ideia para quem realmente precisa, ela própria
conhece pessoas que recebem sem precisar e “vivem disso”. Em resumo, apesar
das boas intenções, a ajuda deixaria as pessoas preguiçosas. Sobre as cotas, a
parda Edvani – percebendo-se, no entanto, como “branca” – sente-se
injustiçada, visto que a nota na escola deveria ser independente da cor para ela.
Edvani diz ainda que nem estuda nem se interessa por política, informando-se
apenas “por cima”, ou seja, por ouvir dizer – o que, no seu meio social,
significa a opinião guiada por fake news.
A trajetória familiar de Vanderson é mais do mesmo que estamos vendo neste
capítulo. Mora em um bairro periférico da capital, filho de migrantes
nordestinos – ele se diz mais baiano do que paulista, apesar de ter nascido já
em São Paulo – e estudou em escola pública a vida toda. Vanderson mora no
Jardim Ângela desde sempre, e construiu sua casa em cima da casa da mãe, no
que antes era a laje onde, na infância, empinava papagaios. Vanderson chegou a
cursar a universidade – como sempre, particular –, mas, como também de
costume, quando os filhos chegaram ficou sem ter como pagar. Mas, como
também é usual, promete voltar um dia.
Vanderson, quando perguntado, diz que gosta da expansão das igrejas
evangélicas nos últimos tempos no Brasil. Para ele, quanto mais igreja, menos
bares, menos gangues, menos violência e, acima de tudo, menos boca de fumo.
Refletindo uma posição mais proselitista, Vanderson acha que a igreja tem o
dever de participar da política – ponderando, no entanto, que ela não pode se
transformar num partido político.
Seu voto foi para Bolsonaro, mas não sem certa relutância, já que ele seria o
menos ruim. Ocorre, como estamos vendo até aqui, uma relativização da figura
de Bolsonaro entre os evangélicos. Vanderson diz, por exemplo, que é verdade
que Bolsonaro fala muita besteira, mas que todos os políticos brasileiros
também falam. Se na pandemia, como é opinião unânime entre todos,
Bolsonaro atrapalhou ao invés de ajudar, ele seria também, em outros âmbitos,
“o mais honesto”. Apesar de ter sido contra o golpe bolsonarista, relativiza mais
uma vez dizendo que todos os partidos tentam se perpetuar no poder.
Para Vanderson, portanto, Bolsonaro pode ser o que quiser que sempre
haverá a possibilidade de relativizar a sua imagem. No fundo, qualquer partido
que disputar voto com essa “encrenca aí” – referindo-se ao PSOL e ao PT – ele
vota do “lado branco” (sic) e nunca no lado preto ou vermelho. Afinal, eles
representam a busca do “privilégio”, referindo-se às demandas por proteção dos
LGBT+, os quereriam “leis só para eles” – da que ele discorda frontalmente,
afinal, as leis são para todos. Vanderson continua no mesmo diapasão:
motoboys, taxistas e até as mulheres – sobre as quais recai, reconhece ele, o
cuidado da ­família –, que agora querem ganhar o mesmo que os homens. Daí,
arremata Vanderson: “Haja lei, né?”. Interessante notar que toda a defesa do
não reconhecimento das minorias oprimidas é baseada em uma suposta
“igualdade” – a exemplo das leis, que “devem ser para todos”.
De resto, Vanderson reflete as opiniões dominantes em seu meio social: o
Bolsa Família geraria dependência nos beneficiários. Vanderson defende, em
causa própria, que o que deveria haver era bolsas para estudo e qualificação,
embora não haja qualquer oposição entre as duas coisas. Para ele, o problema é
que o Brasil é o país dos empreendedores, mas, infelizmente, não há incentivo.
Acerca dos preconceitos que sofre, Vanderson diz que, no Jardim Ângela,
onde mora, uma comunidade de maioria nordestina em São Paulo, ele não
sofre xenofobia. Mas acrescenta que no Paraná e em Santa Catarina percebeu
isso. Em São Paulo, incialmente, não se lembrou de casos assim, mas se recorda
finalmente de um caso dentro da empresa – mas pondera, afinal, era ao
telefone com outras pessoas.
Jefferson possui uma trajetória muito interessante e algo distinta das demais
que examinamos acima. Primeiro ele fez escola particular na primeira infância,
mas os pais “deram uma quebrada” e ele mudou para a escola pública até o
final do segundo grau. O pai tinha uma sorveteria até falir e passar a se virar
com bicos. Jefferson também trabalhou na adolescência, mas depois avaliou
com o pai que trabalho braçal não era para ele.
Apesar dos pais já serem evangélicos, a conversão de Jefferson demorou.
Segundo ele, o pessoal da igreja já tinha desanimado e perdido as esperanças
nele. Jefferson gostava de “bagunça” e de “chapação”, e era cheio de
“pensamentos blasfemos”, até que, aos 17 anos, converteu-se. Na ocasião,
estava com depressão e sofria de transtorno obsessivo compulsivo. Foi a igreja
que lhe proporcionou atendimento profissional e pagou sua psicóloga, como
consta em seu relato. O pastor gostava do fato dele ter se tornado um estudioso
da Bíblia, e tudo fez para ajudá-lo. Jefferson é imensamente grato à igreja. Foi
ela que possibilitou uma transformação em sua vida. De uma espécie de
delinquente juvenil que ele era, transformou-se em um estudioso de filosofia e
de teologia. Além disso, a igreja pagou tudo para ele: a escola, a moradia, a
faculdade e até o tratamento.
Jefferson conseguiu terminar os estudos de teologia e filosofia e, atualmente,
exerce a função de professor de filosofia no ensino público de São Paulo.
Conseguir terminar a faculdade é um diferencial importante. E Jefferson é um
professor diferente, visto que aposta nos alunos – inclusive, nos mais
problemáticos, como ele mesmo foi um dia. Respeita os alunos e procura não
ser autoritário, buscando respeitá-los e pedindo desculpas quando exagera ou
erra.
Ele é diferente de todos os casos examinados até aqui. Por óbvio, seu nível de
instrução e sua vivência universitária contribuíram para isso. Ele é contra a
politização da religião – coisa que ele observa por todos os lados. Para ele, a
igreja evangélica forçou uma oposição com a esquerda do espectro político e
atua como uma força inimiga. Nas duas últimas eleições, de modo interessante,
ele anulou o voto: uma forma de não votar em Bolsonaro, mas, também, de
não contrariar a igreja que tanto o ajudou.
Para Jefferson, a polarização é deletéria. A esquerda fica com as pautas sociais,
e a direita com o discurso moralista – e não há conversa possível entre eles.
Para ele, essa polarização já existia na sociedade, e o momento atual apenas a
fez aflorar – uma ideia interessante que mostra a inteligência especial de
Jefferson. Também com relação ao espectro LGBT+, uma obsessão dos
evangélicos, a opinião de Jefferson é mais matizada. Ele considera essa “ameaça”
uma ameaça de segundo nível. Se as pautas LGBT+ se transformam numa
espécie de escolha de consumo – o que seria uma ameaça real –, ele aconselha
que a presença dos pais na família poderia agir como antídoto, visto que pais
presentes e atuantes vão ser sempre o espelho dos filhos.
Já Alan é carioca e mora em Curicica, bairro da Zona Oeste do Rio de
Janeiro. Alan tem uma trajetória muito semelhante à maioria dos pobres
brasileiros. É um negro casado com uma mulher parda, mais clara que ele e
com mais capital cultural. Alan não recebeu os estímulos para o estudo como
acontece em uma casa da classe média. O pai era autoritário e tinha que se
ausentar por conta do trabalho de segurança que exercia. Terminou,
basicamente, como analfabeto funcional – com apenas os conhecimentos
muito básicos para escrever e ler.
Alan é um caso típico entre os negros pobres e religiosos. A bandeira
moralista tradicional e regressiva é o grande aspecto que o fez se aproximar de
Bolsonaro. Fica evidente o papel do moralismo como forma de se sentir
superior “moralmente” aos outros que não seguem a Bíblia como interpretada
pelo seu pastor. De certo modo, isso o “embranquece”, já que sua tentativa de
obtenção de uma autoestima mínima implica que ele adira aos valores
tradicionais dominantes construídos para oprimi-lo. O “outro” vai ser, antes de
tudo, outro negro que ele classifica como bandido, gay, devasso e sem amor à
família. Pela oposição ao “negro delinquente” – pode ser “bandido” ou gay –
ele passa a se considerar digno do respeito alheio.
Essa é boia de salvação de uma moralidade estrita e autoritária, que o faz se
sentir menos indigno e menos passível da humilhação cotidiana reservada aos
que são como Alan no nosso país. São os valores dominantes que permitem
jogar um pobre contra o outro. Ao participar da moralidade rígida, Alan espera
se diferenciar do negro bandido ou gay, ou simplesmente, da mulher vista
como inferior. Qualquer distinção social positiva passa a ser obtida sempre à
custa de alguém ainda mais frágil, humilhado e perseguido como ele. Essa é a
lógica perversa do “racismo cordial” brasileiro.
Alan possui parcos recursos para refletir sobre o mundo de maneira
consequente e racional. A sua recusa de admitir a mistura entre religião e
política é contraditória com a politização dos “valores familiares” que
fundamenta seus votos. Como vimos, quase todos os entrevistados também
têm o mesmo problema e a mesma visão. Não se sabe sequer o que é a
laicidade e seus efeitos e consequências.
As entrevistas do público evangélico, independente da denominação que
professem, seguem um mesmo padrão. A “questão moral” predomina, ou seja,
o tipo de moralidade regressiva que impõe padrões rígidos de uma moralidade
tradicional para os indivíduos. Sobretudo na moral sexual, abertamente
homofóbica e machista, que implica estigmatizacão dos que pensam diferente e
subordinação da mulher.
Esse aspecto só pode ser adequadamente explicado pela necessidade de
compensação moral do valor relativo de pessoas objetivamente abandonadas
pela sociedade – abandono esse, antes de tudo, causado por parte daqueles que
a comandam economicamente. Qualquer pessoa abandonada vai se segurar em
qualquer ilusão que seja construída para captar sua ânsia de escapar, ainda que
de maneira momentânea, de uma situação vivida como humilhação e privação.

64. Leonildo Silveira Campos, “As origens norte-americanas do pentecostalismo brasileiro”, 2005.
65. Ibidem.
66. Ibidem.
67. Ricardo Mariano, Neopentecostais, 1999.
68. Ibidem.
69. Ibidem.
70. Vagner Gonçalves da Silva, “Concepções religiosas afro-brasileiras e neopentecostais”, 2005.
71. Ibidem.
72. Ronaldo Almeida, A Igreja Universal e seus demônios, 2009.
73. Ibidem.
74. Ibidem.
75. Ibidem.
76. Ibidem.
77. Ibidem.
78. Nos anos 1990, Jardim Ângela, Capão Redondo e Jardim São Luiz compunham o chamado
“triângulo das bermudas” ou “triângulo da morte”, por serem bairros vizinhos com altos índices de
violência – em especial no Jardim Ângela.
79. A região do Capão Redondo, Campo Limpo e Jardim Ângela contém a maior população de
fiéis da Igreja Adventista do Sétimo Dia no mundo.
80. Na verdade, a entrevistada se referia a “chicote elétrico”, um condutor de energia para
automóveis e outras maquinarias.
81. “Cobertura espiritual” é uma expressão recente, surgida depois do advento do
neopentecostalismo, mas adotada por várias denominações para indicar ou legitimar a maior
capacidade de discernimento, sabedoria e atuação religiosa dos pastores. A “cobertura espiritual”
do pastorado diz respeito à capacidade da liderança de atender sua membresia e garantir que ela
esteja protegida e cuidada no âmbito espiritual. No limite, essa cobertura pode ser tanto
compreendida positivamente, como cuidado, quanto negativamente, por meio de ameaças do tipo
“estar fora da cobertura espiritual de um pastor” ao sair da igreja e, portanto, à deriva ou sob risco
de perder a fé ou não cumprir com o necessário para estar espiritualmente bem, “desviar-se”. Nota
de Bruno Reikdal.
82. O Colégio Batista Brasileiro é uma instituição privada de ensino infantil, fundamental e
médio, que é também confessional. Localizada em Perdizes, bairro nobre da cidade de São Paulo,
foi fundada no início da década de 1920 por missionários batistas estadunidenses.
Conclusão
O vingador dos bastardos

A união das perspectivas falso moralistas da classe média e da classe


trabalhadora precária, cada uma à sua maneira, explica a vitória de Bolsonaro,
em 2018, e sua votação expressiva, em 2022. O que estou chamando de falso
moralismo aqui é o recobrimento do racismo “racial” arcaico brasileiro com
uma pátina, uma fina superfície composta pelo racismo agora trajado de
racismo “cultural”. A ideia original dessa estratégia – de resto, aplicada na
própria dominação mundial do Norte global contra o Sul global – é a troca do
racismo “racial” pelo racismo “cultural”. 83
Se antes a culpa era do “estoque racial” do indivíduo, agora a culpa passa a
ser do “estoque cultural”, ou seja, supostamente pela influência inconsciente da
cultura na qual se nasce e que forma o indivíduo. O que importa aqui, no
entanto, é que as mesmas pessoas a serem estigmatizadas pelo racismo
“cultural” serão as que o eram antes, no caso do racismo explícito. A
metamorfose visa unicamente “moralizar” o racismo – que é a função latente e
mais importante do racismo “cultural” – adicionando uma função manifesta,
pretensamente científica, que, ao mesmo tempo, esconde e legitima o racismo.
Tudo se passa como se fosse uma concepção que deixou de ser “racista”
apenas porque não se usa mais a palavra “raça” – substituída, com
conveniência, pelo termo “cultura”, no caso a “cultura da corrupção”,
aparentemente mais científico, mas que, na maioria dos casos, é um simples
compósito impressionista concebido a partir de noções próximas ao senso
comum leigo. Nesse sentido, o prestígio científico é parasitado por uma
concepção que visa legitimar, antes de tudo, pela “moralidade” – que é a
dimensão mais importante de nossa personalidade e nos diz que tipo de gente
cada um é – a dominação fática de indivíduos, classes sociais, “raças” ou
sociedades inteiras sobre outras.
A oposição corpo/espírito, que rege o Ocidente desde os seus inícios, é
construída como uma oposição entre as dimensões da mente humana. Ou seja,
cognição e inteligência; moralidade refletida e capacidade de elaboração
estética, como construída por Kant; e o corpo, em nítida contraposição à
mente, percebido como o reino da animalidade incontrolável das pulsões do
sexo e da agressividade (do “afeto”, em última instância). Nos últimos duzentos
anos, todas as formas de dominação existentes se fundamentaram na oposição
corpo/espírito. Todas, sem nenhuma exceção. Quem domina tem que ser
associado ao espírito, quem é dominado vai ser associado ao corpo. Seja para
opor sociedades, classes sociais, raças ou gêneros – é sempre a mesma
hierarquia moral. Saber disso é decisivo para a análise do mundo social.
A moralidade, mais do que a estética e a cognição – as outras dimensões do
espírito humano – presta-se ao objetivo de justificar a superioridade de uns
sobre outros. Por conta disso, todas as teorias pseudocientíficas que surgiram
no século XX vão se utilizar da oposição entre o espírito, ou seja, aquilo que nos
liga ao divino, contra o corpo, ou seja, aquilo que nos une a toda forma de
animalidade. Exemplo máximo disso é a “teoria da modernização” americana
dos anos 1950 e 1960 – hoje naturalizada como pano de fundo de todas as
teorias europeias e americanas, mesmo as que se propõem a ser críticas –, que
logrou influenciar até hoje a forma como vemos a comparação entre as
diferentes “culturas”.
Não à toa, o tema da moralidade e da corrupção assumem o papel mais
importante nesse contexto. A principal distinção concebida para apartar os
países do Norte global dos do Sul global é, veja que coincidência, referida à
corrupção.84 A corrupção vai ser explicada pelo maior peso relativo do afeto,
exatamente como no “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda,
impedindo uma suposta consideração racional e “impessoal” por parte de
certos povos, inclusive o nosso. Acredita-se piamente que as sociedades do Sul
global, latino-americanas, africanas ou asiáticas são endemicamente corruptas,
ao passo que no Norte global a corrupção é percebida como mero “deslize
individual”.
Isso faz com que se justifique o saque – e os golpes de Estado – aos países do
Sul global, como o Brasil, a partir da pecha de corrupto, ou seja, de alguém
inconfiável e desprezível que merece e deve ser controlado, dominado e
explorado. É a disseminação dessa ideia no mundo todo, não apenas nas
universidades, mas também na imprensa, nas redes sociais, e na indústria
cultural que faz com que, por exemplo, a morte de palestinos ou de imigrantes
africanos não provoque comoção generalizada nos países do Norte global.
Quando não vemos o outro ser humano como igual, então não podemos
desenvolver empatia em relação a ele. Criamos então um “estranho”, alguém
“exótico”, destinado a provocar, no máximo, pena – e, quase sempre, desprezo.
No entanto, tudo isso foi, primeiro, construído como se ciência fosse. Assim,
as sociedades supostamente mais “impessoais”, do espírito, seriam mais
democráticas e moralmente superiores às culturas do “personalismo” e do afeto.
A maioria dos intelectuais do Sul global, em especial no Brasil, engolem, até
hoje, como se verdade fosse, essa bobagem. No entanto, basta pensar um
pouco para se perceber como essa distinção é absurda e arbitrária. O
capitalismo financeiro americano, que domina as finanças globalmente, baseia-
se na existência de paraísos fiscais – que só existem porque os Estados Unidos
querem85 – e, portanto, na evasão planetária de impostos dos mais ricos e na
indistinção entre dinheiro limpo e sujo que vêm das atividades criminosas.
Uma corrupção deslavada e planetária, que é maior quantitativa e
qualitativamente que qualquer outra, mas que ninguém vê como corrupção –
já que o “corrupto”, por definição, são os povos mais escuros do Sul global.
A elite brasileira e seus intelectuais orgânicos, a partir dos anos 1930, tiveram
a inteligência maligna de usar as mesmas distinções do racismo “cultural”
global no contexto nacional interno. Nesse sentido, a construção do “homem
cordial” como protótipo do brasileiro em geral, por Sérgio Buarque, em 1936,
transforma o povo brasileiro em povo do afeto e, portanto, da corrupção.
Como a elite paulista se imaginava americana, e a nascente classe média branca
se via como europeia pela imigração recente, então “homem cordial” e
corrupto vai ser apenas o povo mestiço e negro empobrecido.
É como se a distinção global entre os povos dominadores e dominados fosse
aplicada dessa forma também na dimensão interna, transferindo para o
território nacional o mesmo esquema de classificação global. Tudo funciona
como se, internamente, no âmbito da sociedade nacional brasileira, a elite e a
classe média branca fossem os Estados Unidos e a Europa, respectivamente, e
as classes populares a América Latina, a África e a Ásia – que, de fato, são mais
“escuras”. A suposta maior honestidade e moralidade atribuída aos
dominadores – e a ausência dessas supostas virtudes no dominado – é o que
garante a reprodução de todos os privilégios injustos.
O estatuto da falsa moralidade é o principal instrumento de opressão, apesar
de ser “apenas simbólico”. A violência material exclusiva pode ser importante
em dado momento, mas ela jamais garante a reprodução da dominação política
estável. Para se dominar no decorrer do tempo, é preciso convencer o oprimido
de que ele é inferior, de fato. Quando se chega a esse estado, então o esquema
de exploração e humilhação se institucionaliza e se torna estável, candidatando-
se a se manter no tempo.
A elite descobre o equivalente funcional perfeito do racismo “racial”, sem
tocar na palavra raça. Desse modo, consegue frear seu maior inimigo na luta
pelo monopólio do Estado, que é o sufrágio universal. Toda vez que o povo
mestiço e negro elege alguém vinculado às pautas populares de inclusão social,
a elite – que tem toda a imprensa no bolso – toca o bumbo do falso moralismo
da corrupção para justificar golpes de Estado. Aconteceu em, literalmente,
todos os casos históricos de tentativas de inclusão social – com Vargas, Jango,
Lula e Dilma.
A elite faz isso, como já vimos, visto que precisa do Estado e de sua máquina
para roubar para si o orçamento público e as riquezas que são de todos. Esse é
o verdadeiro “negócio” da elite brasileira. Mas a elite precisa fingir que sua
comoção com a “corrupção fabricada” por ela mesma e pelos seus próprios
jornais e televisões é real e, para isso, precisa de um arremedo de “apoio
popular”. A classe social que vai cumprir esse papel – em todos os casos
históricos descritos acima, fingindo que é povo – é, na realidade, a classe média
branca nas ruas.
A classe média branca entra nesse jogo por duas razões: primeiro, ela “pensa
que é elite” e se comporta como o “agregado”86 que se imaginava da família do
“Senhor de terras e gente”, criando a fantasia de pertencer aos que dominam.
Em segundo lugar, mas não menos importante, ela também procura evitar a
concorrência a partir de baixo ao seu monopólio educacional do capital
cultural legítimo – além do capital social em relações pessoais, possibilitado
pelo acesso prévio a capital econômico ou cultural – que lhe garante bons
salários e reconhecimento social. A classe média branca odiou a política de
cotas que pôs estudantes negros lado a lado com seus filhos nos bancos da
universidade pública de melhor qualidade, até então seu principal “bunker” de
poder. Foram essas, e outras razões similares87 que fizeram milhões de
branquinhos, bem-vestidos e histéricos irem às ruas das grandes cidades
brasileiras, em 2015 e 2016, fingindo que estavam clamando contra a
corrupção e a favor da moralidade pública.
Nem a elite nem a classe média branca tem qualquer problema com a
corrupção, desde que seja cometida pelos ricos do mercado. Como vimos com
Lehmann e seus sócios nas Americanas – apenas um caso entre milhares
possíveis – fazer desaparecer quarenta bilhões de reais é um negócio bem-feito
como outro qualquer. A foto dele continua nos jornais, e isso não incomoda
ninguém. A classe média branca nunca teve qualquer preocupação com a
corrupção, mas sim com qualquer forma de inclusão popular que possa
prejudicar a sua reprodução como classe do privilégio do monopólio do
conhecimento tido como legítimo. A posse do Estado para o seu livre saque
pela elite e o monopólio do capital cultural legítimo pela classe média são a
base do bloco antipopular construído nos anos 1930, e que perdura até hoje
entre nós. Qualquer inclusão deve ser banida, e qualquer uso do Estado que
não seja para enriquecer uma meia dúzia deve ser evitado.
O tema da corrupção no Brasil serve apenas para mascarar o racismo “racial”
em um contexto em que se perdeu a legitimidade do discurso racista
tradicional. A saída encontrada foi substituir a pecha de “negro inferior” pela
de “povo corrupto”. Isso permite “moralizar” o racismo, tornando possível a
livre expressão do afeto racista sob uma máscara mais do que conveniente. O
branquinho histérico da classe média, agora, pode se mostrar “indignado” com
a corrupção sempre que quiser se opor às políticas de inclusão popular. Ele
pode também se ver como “defensor da moralidade pública” e não mais como
um canalha racista. E qual canalha racista não gostaria de se ver sob essa ótica?
É para isso, exclusivamente, que serve o mote da corrupção.
No entanto, a elite e a classe média somadas, como já lembramos várias vezes
neste livro, não perfazem sequer 20% da população. Não se ganha eleições
majoritárias com o mero apoio do bloco antipopular. Bolsonaro, racista e
mesquinho como é, ganhou de partida o coração da classe média branca e da
elite do saque. A farsa da Lava Jato ajudou com os setores falso moralistas da
classe média. O problema real acontece, no entanto, quando amplos setores
populares aderem a ideologias elitistas construídas para fazê-los agir contra os
seus melhores interesses.
O moralismo da classe média, que já examinamos acima e em detalhe em
outros livros,88 é, no entanto, de natureza distinta do moralismo popular dos
pobres remediados. É preciso ter em mente que 80% da população brasileira é,
pela comparação internacional, pobre – ou seja, não têm acesso, ou têm acesso
muito limitado às benesses do mundo moderno. Desses 80%, cerca de metade
é pobre remediado, são as pessoas que ganham entre dois e cinco salários
mínimos e possuem acesso a algum capital cultural técnico.89 Muitos deles são
brancos no Sul e em São Paulo, como vimos nas entrevistas acima, e votaram
nas duas últimas eleições majoritariamente em Bolsonaro que, objetivamente,
nunca fez nada de “racionalmente” positivo para eles.
Ainda que o falso moralismo da corrupção seletiva também exerça sua força
nesse segmento social, outra forma de moralismo assume a predominância: a
oposição entre o pobre honesto e o pobre delinquente, que irá esgarçar o tema
da (in)segurança pública entre nós. É necessário se pôr na pele de um branco
remediadamente pobre para compreender seu comportamento – o qual, de
outro modo, seria apenas o comportamento incompreensível de um tolo que
dá um tiro no pé.
Como pensa um branco pobre de Santa Catarina ou São Paulo? As
entrevistas acima nos ajudam a entender seus reais motivos. Em primeiro lugar,
temos que compreender o racismo – que habita cada um de nós de maneira
insidiosa – como uma espécie de “mapa social” para o leigo que não
compreende como funciona o mundo social. O racismo simplifica um mundo
social confuso e complexo e garante alguma forma de compreensibilidade da
vida, ou seja, ajuda a conferir sentido ao mundo, que é uma demanda
invariável para todos os humanos em todas as épocas históricas.
Desse modo, a situação do branco remediadamente pobre é de carência
objetiva, em específico a falta de capital cultural legítimo, monopolizado pela
classe média branca acima dele. Suponhamos um caminhoneiro90 de Santa
Catarina, com nome e “sangue” alemão – o branco mais branco dentre os
brancos, como diria Gilberto Freyre – que ganha 4 ou 5 mil reais ao mês e
obedece a um outro branco com sobrenome também alemão que é seu chefe, e
que ganha dez vezes mais que ele. Como o mapa social desse indivíduo é de
fundo racial, sua situação é completamente inexplicável. Por que ele ganha dez
vezes menos que o seu “irmão” de sangue germânico – o elemento que ele
pensava ser o decisivo? É apenas porque um tem mais estudo do que o outro?
Esse caminhoneiro, como todo pobre, acredita piamente na meritocracia que
diz que cada um pode conseguir, com esforço próprio, uma boa vida. Ele
trabalha até dezesseis horas por dia e a vida dele é de carência e necessidade. É
apenas natural que sinta ressentimento e raiva de sua condição que lhe parece
“injusta”. Se tivéssemos imprensa plural e pública, talvez ele soubesse que são
privilégios herdados desde a tenra convivência familiar que predeterminam
quem vai ganhar e quem vai perder na vida. Nesse caso, sua raiva sem direção
poderia se metamorfosear em indignação e adquirir um sentido político de
crítica e mudança. Mas não é isso o que acontece. Ninguém revela a ele as
causas reais que explicam seu sofrimento.
Ele é jogado a si mesmo e à suas parcas defesas cognitivas e emocionais, de
modo a permitir explicar o aparentemente inexplicável. Como ele acredita na
falácia da meritocracia, a culpa do seu relativo fracasso social seria dele próprio.
Essa é uma ferida mortal capaz de jogar o indivíduo na depressão e no álcool,
por exemplo. E isso, efetivamente, acontece de forma endêmica com muitos. A
alternativa é culpar um “outro”, se possível mais frágil do que ele, já que a
falácia da meritocracia e a imprensa enviesada pelo dinheiro o impede de odiar
os reais dominadores e causadores de seu injusto sofrimento. Desse modo, ele é
estimulado a odiar os mais frágeis – os LGBT+, as mulheres, os negros
transformados em bandidos e os nordestinos supostamente preguiçosos etc. O
objeto de ódio é intercambiável, mas o pano de fundo de racismo “racial” e do
sexismo estão presentes em todas as variantes.
Compreender o branco pobre remediado é compreender o radical desespero
de quem é injustiçado e privado, por exemplo, do acesso às boas escolas da
classe média “real” e dos meios para a competição social em todas as
dimensões. A ação mais racional aqui seria unir forças com os outros
explorados e humilhados contra os que causam a privação e a injustiça. Mas ele
não sabe quem causa seu infortúnio. Ninguém jamais explicou isso para ele.
Como ele poderia saber? Como a elite econômica controla todos os meios de
comunicação de massas, então essa possibilidade é tornada impossível.
O problema é que nós, humanos, precisamos de uma “explicação” para a
vida. Como diria Max Weber, a procura por um sentido da vida é tão
avassaladora para todos que, na sua ausência, qualquer coisa, mesmo a ideia
mais abstrusa, pode fazer sentido e passar a ser aceita como verdade. É essa a
situação do branco remediadamente pobre entre nós. Essa explicação abstrusa
passa a ser cevada, cotidianamente, pelo mapa social construído a partir de
distinções raciais e sexistas.
Afinal, racismo “racial” e sexismo já estão aí desde sempre, e passam de pais
para filhos de maneiras imperceptíveis ao senso crítico. Desarmado dos meios
cognitivos para a compreensão de seu lugar social, e armado apenas com o
afeto racista, o branco pobre, com sobrenome alemão ou italiano,
simplesmente não compreende o porquê de ser pobre tendo sangue europeu
num país de mestiços. Esse é o contexto que permite compreender seu
comportamento aparentemente sem sentido. Assim sendo, basta que alguém
consiga construir uma máscara de moralidade para o ódio racista e sexista que
já se guarda no peito. Foi o que Bolsonaro fez.
Assim, as máscaras do racismo e do sexismo campeiam. Como os negros não
podem mais ser odiados publicamente de forma explícita, então se transforma
o negro em bandido. Ou alguém tem dúvida de que a “arminha” do Bolsonaro
estava dirigida à cabeça de um jovem negro carente? No caso dos nordestinos,
do mesmo modo: o racismo aqui é nítido, já que a maioria dos nordestinos são
mestiços de negro e indígena. O preconceito regional enquanto tal, como já
vimos, não existe. Aqui, como quase sempre, o preconceito regional é
construído se parasitando o racismo “racial” ou de classe social para melhor
mascará-lo.
O ódio à maconha, como no caso de R. Kühn, de Santa Catarina, também
possui resquício racial. A maconha era a droga por excelência dos negros
escravizados e de seus descendentes. Como sempre, crime é tudo aquilo que o
negro faz: sua religião, sua música, seu lazer. A guerra às drogas, assim como a
guerra contra o crime, também é uma guerra cifrada contra os negros. O
racismo “racial” se mostra, por meio de suas máscaras e denegações, como o
componente mais importante para angariar imediato apoio emocional de todas
as classes sociais superiores e intermediárias. É isso que explica que o bloco
antipopular, composto pela elite de proprietários e pela classe média, tenha
conseguido arregimentar uma boa parte dos perdedores e injustiçados para o
seu lado da política. O racismo “racial” continua sendo, agora por meio de suas
máscaras “culturais”, o fundamento do cimento social brasileiro.
Muitos pensam: “Puxa, mas o racismo não é tudo, existem outras coisas
importantes.” É inegável que existem outras coisas que importam, mas é
preciso sempre separar o principal do secundário. E o principal é o racismo
“racial” como mapa mais eficaz e importante de classificação e avaliação da vida
social por todo mundo. Se tomarmos suas máscaras e denegações, ele é apenas
comparável ao sexismo primordial da nossa formação histórica – que tinha não
apenas a escravidão semi-industrial dos homens no campo, mas também os
haréns de mulheres, o que objetifica e degrada por extensão todas as mulheres
(como na sociedade moura e do Norte da África da poligamia islâmica). Não é
à toa que o Brasil é o campeão de feminicídios.
Mas o racismo “racial” é a lei não escrita da sociedade brasileira como um
todo, a lei que nem todas as constituições somadas puderam arrefecer. Tanto o
princípio legitimador, como também esquema classificatório da sociedade
brasileira no seu conjunto, é racialmente construída. Nesse esquema, os negros
e mestiços despossuídos da “ralé” de novos escravos, desarmados de qualquer
proteção e condições mínimas para competir na vida social, ocupam o degrau
mais baixo de todo sistema classificatório que preside nossas avaliações sobre o
mundo social. Como essa classe de negros e mestiços foi cevada e construída
intencionalmente – vimos acima que qualquer tentativa de os redimir é
condenada ao fracasso e conduz invariavelmente a golpes de Estado – ela passa
a agir como o pano de fundo negativo que permite que todas as outras classes,
acima dela, ganhem autoestima e reconhecimento social à custa de sua
humilhação absoluta e permanente.
Nesse contexto, vale a máxima: toda vez que o princípio da igualdade não for
generalizado e expandido – o que leva ao reconhecimento social de todos
segundo seu desempenho específico, obtido, portanto, “com os outros” – o
reconhecimento social terá que ser obtido “contra os outros” (especialmente os
mais frágeis e sem defesa). É exatamente a função no Brasil da classe mais
baixa, negra e mestiça: transformando-se em uma espécie de casta de intocáveis
e indesejáveis muito próxima do caso hindu. Uma gente que não é gente, que
tem sua humanidade constantemente negada, e pode, por conta disso, ser
assassinada pela polícia sem qualquer comoção – violências sendo, em muitos
casos, até celebradas pelas classes acima dela.
Max Weber, em sua análise clássica do hinduísmo,91 já observa que o sistema
de castas conseguiu se preservar sem mudanças significativas durantes milênios,
em específico porque permitia um ganho em autoestima e distinção social
positiva a todas as castas intermediárias e superiores. Quando não existe o
orgulho pelo compartilhamento do respeito social generalizado a (quase) todos,
como acontece, pelo menos em boa medida ainda, nos países escandinavos, na
Alemanha ou na Suíça, o sentimento de respeito vai ser obtido,
invariavelmente, pelo desrespeito e desprezo de outros ainda mais frágeis.
Esse aspecto é tão decisivo que nos permite compreender, inclusive, o
segundo caso que examinamos acima nas entrevistas, o do negro evangélico. A
questão aqui é: como um negro oprimido pelo racismo pode ajudar a apoiar e
reforçar aquilo que o humilha? Aqui o decisivo é que a pregação evangélica de
muitas denominações tem como eixo central dotar o oprimido da autoestima e
da autoconfiança necessária para a competição social. É impressionante que em
todas as entrevistas dos negros evangélicos o papel da “família honrada” seja a
pedra de toque principal para ganhar sua fidelidade à igreja. É o típico caso
daquele que nasce “desonrado” e precisa se sentir valioso e angariar a honra e
respeito que nunca tiveram. A religiosidade evangélica oferece uma boia de
salvação a todos esses desamparados e abandonados.
Como na nossa sociedade a honra é branca e a desonra é negra, então o negro
que quer ascender socialmente é levado a perceber que o único modo disso
acontecer é quando ele aceita se “embranquecer”. O “embranquecimento”, no
Brasil, é antes de tudo uma realidade social e moral, ou seja, é, antes de tudo,
participar da ética social e moral dominante criada pelos brancos para oprimir
os próprios negros. O desespero social do negro aqui é em tudo semelhante ao
dilema do branco pobre, embora sua posição seja ainda muito pior por ocupar
a última escala da hierarquia social. Mas o drama é comum tanto ao negro
quanto ao branco pobre: como conquistar o respeito social, que todos
buscamos como nossa necessidade mais importante e mais premente, na
ausência de muitos dos pressupostos para o sucesso social? A saída para o negro
vai ser odiar o seu irmão negro, ao vê-lo, como os brancos, como delinquente,
como o resultado de um desejo desesperado de se distinguir positivamente em
relação a ele.
No entanto, apesar da semelhança do drama e do abandono social em ambos
os casos, o sofrimento do branco pobre não se compara ao sofrimento do negro
pobre. O branco pobre se sabe e é percebido pela sociedade como “gente”
apesar das precondições adversas. O negro, ao contrário: tem, o tempo todo,
que defender sua própria “humanidade”, ou seja, o direito de ser tratado com
algum respeito e dignidade. Precisamente o que lhe é negado por todos. Como
os negros ocupam o último degrau da hierarquia social, sua função real é a de
ser humilhado e desprezado por todos acima deles socialmente. Existem para
serem odiados. O dispositivo do desprezo é acionado pela animalização, ou
seja, pela redução de sua personalidade ao corpo e aos afetos. É isso que
desumaniza. O branco pobre não passa por esse sofrimento ontológico,
virtualmente irremissível.
E isso se mostra nas nossas entrevistas: o branco pobre do Sul e de São Paulo
se identifica com Bolsonaro quase perfeitamente. As críticas são, na maioria
dos casos, leves e pontuais – quando existem. Para os negros, não. A maioria
votou em Bolsonaro com má consciência e com críticas rigorosas, às vezes. Ao
fim e ao cabo, venceu a pressão evangélica de se pôr no lado do “bem” e da
“virtude”, como definida pela leitura aleatória da Bíblia que parasita o seu
prestígio. Mas Bolsonaro não é o líder para a maioria dos negros da forma
como ele é para a maioria dos brancos pobres. Foi o decidido apoio do mundo
evangélico que funcionalizou o voto do negro a favor de Bolsonaro. Mas o
decisivo aqui é que o negro não se identifica integralmente com Bolsonaro,
enquanto o branco pobre, sim. O que está por trás da relação tão especial de
Bolsonaro com os brancos pobres? A “identificação” afetiva e irracional é o
mecanismo decisivo, e é ele que explica o irracionalismo das massas.
Sigmund Freud, no seu texto clássico Massenpsychologie und Ich-Analyse92
[Psicologia das massas e a análise do eu], procura desvendar o mistério do amor
sem limites ao líder político ou religioso. Como tivemos pessoas rezando para
pneus, doando dinheiro suado para Bolsonaro e depredando prédios públicos
para causar caos? Como e por que temos, agora na psique individual, a
“paixão” cega e desmedida por alguém como Bolsonaro?
Para Freud, para além da dedicação absoluta a outra pessoa que conhecemos
na vida sexual, um outro mecanismo poderoso de ligação pulsional e
sentimental é a “identificação”. A identificação é uma forma primária de
ligação pulsional e sentimental, a qual, já no Complexo de Édipo, corre em
paralelo à explícita ligação sexual do menino com a mãe – sob a forma de uma
ligação sentimental com o pai. O menino deseja a mãe e se identifica com o
pai. Com a posterior unificação da vida espiritual, as duas correntes entram em
choque e produzem o Complexo de Édipo.
A identificação é, portanto, desde o início, “ambivalente”, ou seja, o desejo de
ser o pai confunde-se com o desejo de substituir o pai ao lado da mãe. A
identificação pode ainda, além de ser uma forma arcaica de ligação pulsional a
um objeto, como no Complexo de Édipo, ser, também 1) uma regressão
substituindo a relação libidinosa por meio da introjeção do objeto (caso de
Dora que imita a tosse do pai, no texto famoso); ou, 2) pela comunhão com
outra pessoa que não é objeto da libido (caso da menina que sofre como a
amiga por ciúmes, pelo fato de também desejar um namorado). É esse último
caso de identificação que parece interessar a Freud para a análise das massas.
Quanto maior a comunhão de expectativas, maior o vínculo entre as pessoas. A
questão principal aqui é a de que a comunhão das pessoas entre si depende da
relação que elas possuem com o líder.
No caso desse livro, em particular, é que o tema da “identificação” ganha
todo seu sentido. Para Freud, a “identificação” tem que ser associada à
“idealização”, à paixão e à hipnose de modo a compreendermos
adequadamente o que se passa na relação das massas com o líder. A paixão,
quando comandada por objetivos sexuais reprimidos, leva à idealização do
objeto amado – que passa a ser visto como exemplo de perfeição: nesse caso, o
objeto amado ocupa o lugar do superego.93
Já a hipnose é definida por Freud como uma dedicação apaixonada sem a
presença da satisfação sexual, mas possibilitando a mesma substituição do
superego pelo hipnotizador. Assim, ainda que Freud reconheça a dificuldade de
tratar a hipnose de modo racional, por conta de seu componente “místico” e
misterioso, é a relação hipnótica que permitiria uma melhor “aproximação”
possível para esclarecer a relação das massas com seu líder. Massa seria, nesse
sentido, um grupo de indivíduos que põem o mesmo objeto amado – o líder –
no lugar dos seus respectivos superegos.94 O tipo mais vulnerável à
massificação é aquele, portanto, no qual a distância entre o ego e o superego é
pequena, revelando a manutenção da autossatisfação narcísica infantil. E Freud
completa com uma observação muito importante para nossos propósitos aqui:
“Nesse caso, basta que o líder incorpore algumas das características típicas destes indivíduos de forma
aguda para ‘hipnotizá-los’.”95

Freud não inquire sobre a origem social e moral dessas características típicas.
Apesar de não esclarecer as origens, ele constata e descreve um mecanismo
importante para nossos fins. A entronização do superego na psique humana é,
talvez, o avanço civilizatório e histórico mais importante – como se depreende
da soberba análise do processo civilizatório em Norbert Elias.96 É sua
incorporação na psique individual que possibilita, no limite, a ação racional no
mundo possibilitando um freio social fundamental para os desejos irracionais,
agressivos e associais. Como no processo de identificação das massas com o
líder o superego (e sua função moralizadora) é substituído pelo líder, o que
acontece na prática é uma reversão e regressão da dimensão moral e cognitiva
individual. A infantilização de pessoas que rezam para pneus e a dissonância
cognitiva típica do público bolsonarista pode ser mais bem compreendida.
O tipo de “profeta exemplar”, adaptado à realidade política que estamos
discutindo aqui, não se dirige, portanto, como o “profeta ético” e sua doutrina
– à consciência dos indivíduos –, mas, sim, aos seus desejos mais primitivos e
sem controle racional. Esse tipo de relação primitiva e inconsciente nos ajuda a
compreender figuras como Bolsonaro e o fascínio que ele exerce sobre muitos –
como branco pobre, imigrante de países europeus como a maioria da
população do Sul e de São Paulo, pessoas sem estudo e sem capacidade de
reflexão elaborada etc. Bolsonaro incorpora e manifesta na sua fala e no seu
comportamento prático a raiva do injustiçado que não compreende como se dá
a opressão social nem percebe em favor de quem ela é exercida.
Assim, da mesma forma que um nordestino pobre se identifica com Lula e
sua vida exemplar de luta contra a fome e a desigualdade, o branco pobre do
Sul e de São Paulo se identifica com a raiva e o ressentimento típico de
Bolsonaro – que cria, para eles, uma liderança política que realiza, pelo seu
exagero e sua agressividade performática e sem mediação da consciência, suas
aspirações e ansiedades mais profundas. Afinal, Bolsonaro é um típico “lixo
branco” brasileiro,97 ou seja, um branco pobre e ressentido pela ausência
relativa do capital cultural legítimo que é monopólio da classe média branca
“real”. Por conta disso, seu projeto de ascensão social, limitada pela ausência de
conhecimento legítimo acumulado, é a de conseguir um cargo nas burocracias
médias do Estado, como Exército ou Polícia Militar. A trajetória social de
Bolsonaro98 é uma trajetória de vida típica desse estrato social, portanto.
Sociologicamente, a partir do raciocínio que perpassa todo este livro, a razão
maior é o ressentimento e a raiva justos, diga-se de passagem, na medida em
que o acesso a boas escolas e boas universidades é restrito para a classe média
branca e “real”, e o branco pobre foi injustamente excluído dessas chances pelo
nascimento em uma família pobre. Se ele fosse consciente de sua opressão,
então poderia transformar a raiva e o ressentimento em indignação – o que o
levaria para a luta política junto aos demais oprimidos. Mas não é isso o que
acontece. Ninguém explica, muito menos nossa imprensa venal, quem causa
seu sofrimento. Como a relação com a classe média “real” e a elite é
ambivalente, misturando inveja e admiração, então ele se torna presa de seu
próprio desconhecimento.
É esse ressentimento compartilhado que será a base, por exemplo, dos
ataques à ciência, às artes, às universidades e à cultura em geral, que foi um
tema constante do período Bolsonaro. Como os brancos pobres que o apoiam
desconhecem os reais motivos de sua pobreza relativa, então a tendência vai ser
atacar os símbolos visíveis do capital cultural legítimo – como os indicados
acima – ao qual não tiveram acesso. Afinal, mesmo sem compreender de modo
coerente a situação social, todos percebem, intuitivamente pela experiência
vivida, que é a ausência desse capital cultural, altamente valorizado na
sociedade moderna, que causa sua humilhação objetiva e sua sensação de ser
inferior aos outros acima dele. A extrema direita nada de braçada no
ressentimento dos que não conhecem as causas de sua condição social. A causa
aqui é a ausência de autoestima, autoconfiança e de reconhecimento social,
provocadas pela experiência da humilhação moral cotidiana – como o Coringa,
que analisamos no início deste livro.
Como o trabalho socialmente útil, sacralizado pela Reforma Protestante, é o
elemento central da atribuição de respeito social na sociedade moderna,99 e a
incorporação de conhecimento é o que garante produtividade e
reconhecimento social ao trabalho, cria-se um abismo social entre quem tem e
quem não tem conhecimento considerado legítimo incorporado. Nenhum
indivíduo pode “criar os valores” que regem a sua vida. Todos esses valores são
socialmente construídos, embora muitos não saibam como isso acontece. E o
mais importante valor social de qualquer sociedade moderna é o trabalho útil
baseado na incorporação de conhecimento considerado legítimo para esse fim.
E cada um de nós vai ser avaliado de mil maneiras diferentes pelos outros a
partir desse valor fundamental. Como o conhecimento é o único caminho para
o trabalho produtivo bem-feito, a posse de conhecimento legítimo – do qual o
branco pobre está excluído – é a sua limitação social mais importante.
Já a situação do negro pobre e evangélico é diferente. Ele não é apenas pobre
como o branco que analisamos acima. Ele é atormentado constantemente pela
insegurança existencial e ontológica provocada pela negação, compartilhada
por toda a sociedade, de seu valor como ser humano. Não existe chaga maior
para cada um de nós. Já criticamos acima a tolice de quem percebe a economia
e as necessidades econômicas como a dimensão mais importante da vida.
Vimos que na base de todo sistema econômico temos um acordo tácito que é
sempre moral e político. Mas não é apenas a sociedade que tem como núcleo a
moralidade. Nós, indivíduos, também somos moralmente construídos para o
bem e para o mal. Isso significa que o que comanda o nosso comportamento
prático são as nossas necessidades morais e não econômicas. É, portanto, a
partir delas que poderemos compreender a intensidade da entrega de certos
segmentos sociais ao bolsonarismo.
Nós somos, na verdade, seres morais, no sentido de que todos somos
dependentes do julgamento que a sociedade faz de cada um de nós. É esse
julgamento que decide se somos aceitos ou rejeitados pelos outros. Como diz
exemplarmente o filósofo canadense Charles Taylor:
A tese é a de que a nossa identidade é em parte formada pelo reconhecimento ou pela ausência deste.
Muito frequentemente, nos casos de falso reconhecimento [misrecognition] por parte dos outros, uma
pessoa ou um grupo de pessoas pode sofrer um prejuízo real, uma distorção efetiva, na medida em
que os outros projetem nele uma imagem desvalorizada e redutora de si mesmos. Não
reconhecimento e falso reconhecimento podem infligir mal, podem ser uma forma de opressão,
aprisionando alguém em uma forma de vida redutora, distorcida e falsa� Nessa perspectiva, não-
reconhecimento não significa apenas ausência do devido respeito. Ele pode infligir feridas graves a
alguém, atingindo as suas vítimas com uma mutiladora autoimagem depreciativa. O reconhecimento
devido não é apenas uma cortesia que devemos às pessoas. É uma necessidade humana vital.100

O que o “não reconhecimento social” causa é a impossibilidade de se


construir autoestima e autoconfiança. Sem autoestima, não nos levantamos da
cama pela manhã, e somos assolados pela insegurança emocional e pelo
desespero. Esse foi o mundo criado para os negros no nosso país. Ao contrário
dos brancos, mesmo os pobres, os negros têm que lidar com o desprezo
cotidiano e institucionalizado dirigido contra eles. Se trabalha na casa de
alguém e some qualquer coisa, será ele o primeiro a ser criminalizado. É o
negro que percebe que muitos não vão se sentar ao seu lado no ônibus, e que
vão também evitar o encontro casual na rua mudando de calçada. É o negro
que vai encontrar os piores empregos, cansativos e repetitivos, usando a energia
muscular como os animais e os antigos escravos.
Nos restaurantes de metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro, são, na
maioria dos casos, os mestiços nordestinos quem atendem a classe média
branca, e quase nunca um negro. Existe uma nítida divisão aí: os mestiços
podem conviver com os clientes brancos, os negros devem ficar escondidos na
cozinha. Os negros vão exercer o mesmo tipo de trabalho que os antigos
escravos exerciam – as mulheres nos lares da classe média faxinando,
cozinhando ou cuidando dos filhos da patroa, como a velha escrava doméstica
(se possível, sem direito algum); e os homens na última escala dos empregos
uberizados e sem proteção, por exemplo, entregando pizza quentinha na casa
do bacana de classe média e alta pedalando uma bicicleta do Itaú durante 14
horas ao dia.
A isso, junta-se a perseguição policial e judicial institucionalizada que
enchem nossas prisões de pretos pobres. Assim como as execuções sumárias
pela polícia e os “linchamentos pedagógicos” que vemos constantemente nas
redes sociais. Isso para não falar do interdito político, que reina entre nós há
cem anos – por parte das classes do privilégio – e que consiste em derrubar, por
golpe de Estado, sob o falso pretexto de combate à corrupção, qualquer
governo que defenda a inclusão de negros e de pobres. Todo o cimento social
brasileiro de fio a pavio é construído a partir do ódio e do desprezo contra o
negro. O branco pobre não sente nada disso, daí a discrepância fundamental
entre os dois segmentos sociais populares que analisando neste livro: o “lixo
branco” do Sul e de São Paulo; o negro evangélico.
É a partir do verdadeiro inferno social construído para quem é negro no
Brasil que podemos perceber o real trabalho das igrejas evangélicas. Todas as
denominações evangélicas, sem exceção, lutam entre si para oferecer um
bálsamo para quem sofre tanto e, a partir disso, controlar e manipular os
corações e as mentes dos perseguidos e abandonados. Como a falta é, antes de
tudo, moral e não econômica, a resposta também tem que ser moral, ainda que
rebaixada em moralismo regressivo. Como isso é construído para os negros e
mestiços que formam a maioria do mundo evangélico? Pela oposição artificial e
fabricada para fins manipulativos, que separa o pobre honesto – ou homem de
bem – do pobre visto como delinquente.
A oposição entre o pobre honesto e o pobre delinquente é a oposição moral
mais forte nas classes populares.101 É, antes de tudo, ela que dificulta a
solidariedade dos que sofrem, por um lado, e permite também, por outro lado,
a adesão subordinada de muitos oprimidos aos códigos das classes brancas e
dominantes. Para quem é humilhado 24h por dia, como os negros são no
nosso país, libertar-se desse desprezo aterrador e onipresente passa a ser sua
maior necessidade, nem que seja à custa de seu irmão de cor e de infortúnio.
Assim, a necessidade compreensível dos que habitam um inferno social – que
os ameaça com a desumanização constante – explica a ideologia do
“embranquecimento” no Brasil. Como vimos, embranquecer é se identificar
com o opressor e seus valores – que dizem, por exemplo, que a vida do pobre
vale pouco ou nada e que a propriedade dos ricos é o que vale muito.
Nesse contexto, o que mostra a origem elitista dessas distinções é que o crime
maior não é o assassinato, mas sim o roubo da propriedade alheia. Para o
miliciano ou policial que decide sobre morte e a vida, sua violência é
purificadora e visa a utilizar o assassinato em nome da defesa da sociedade dos
bons e honestos. Esta visão é compartilhada pela maior parte das pessoas das
classes populares, inclusive pelos negros: uma visão que diz que os objetos de
consumo das classes do privilégio valem mais do que a vida de um pobre. Essa
inversão valorativa mostra o dna mais profundo da sociedade brasileira –
proteger a qualquer custo a propriedade dos privilegiados à medida que
desvaloriza a vida dos oprimidos, especialmente os negros e pobres.
Como diz um miliciano: “Meu pai era bravo para caralho, mas ele não
esquenta a cabeça se eu matar. Só se roubar.”102 Lobo, o miliciano entrevistado
por Bruno Paes Manso no seu excelente A república das milícias,103 e seu pai,
também da polícia e da milícia, oprimidos socialmente eles próprios,
internalizam como se fossem seus os preconceitos construídos pela elite em seu
próprio benefício. Essa é nitidamente a “ética miliciana” que age como o
“capitão do mato” moderno, conferindo materialidade à ideologia do “bandido
bom é bandido morto”. Trata-se da continuidade do medo arcaico do escravo
rebelde – que não aceita a regra do senhor – a ser evitado a qualquer custo,
inclusive pela eliminação física.
Vemos aqui também o elo orgânico entre milícia, igrejas evangélicas e
bolsonarismo. O inimigo comum que une igrejas evangélicas variadas, milícias
e bolsonarismo é o antiesquerdismo de todos eles. Afinal, qualquer relevância
dos direitos populares, e da conscientização da causalidade social que explica a
opressão, minam por dentro a lógica comum aos três movimentos. Essa é uma
aliança política e não apenas de sentido partidário, mas de visão de mundo
comum.
No entanto, para cada negro que “embranquece” existe um negro que será
ainda mais hostilizado, agora também pelos seus irmãos de cor. Como as
oposições visíveis são sempre “moralistas” – como a salvaguarda da família –,
não chega à consciência do negro oprimido (que quer embranquecer) o
conteúdo profundamente racial do preconceito original (antes da canalização e
mascaramento pseudomoralista) em jogo aqui. Ele, como diria Cartola, cava
sua tragédia com os próprios pés.
É por conta disso que vemos negros que celebram a rotina assassina da
polícia brasileira contra os cidadãos de sua cor. Para escaparem da humilhação
constante, eles se associam aos brancos dominadores por meio da adoção de
seu código moral e a partir das múltiplas máscaras que o próprio racismo
“racial” assume. Como, especialmente no neopentecostalismo, o inimigo a ser
abatido são precisamente os cultos afro, o racismo passa a ser o núcleo duro da
expansão desse tipo de religiosidade. Ao permitir transmutar o racismo “racial”
em uma linguagem religiosa de prestígio, por meio de uma leitura unilateral e
neoliberal da Bíblia, a Igreja Universal se aproveita vicariamente do racismo
brasileiro como sua principal força motora.
Mas a imensa maioria das denominações pentecostais – e não apenas o
neopentecostalismo da Universal – convergem para o mesmo ponto: separar o
“pobre honesto” do “pobre delinquente”, que passa a ser odiado pelo seu irmão
de classe e raça. A “delinquência” pode, afinal, assumir diversas formas. Não é
apenas o “bandido” – ou seja o negro – o delinquente. Mas também o LGBT+, a
mulher, o usuário de drogas etc., como vimos nas entrevistas acima. Sem o
estigma desses tipos sociais, não existe o ganho existencial em autoestima do
negro “embranquecido” que se associa ao código dos brancos opressores. É isso
o que explica, em última análise, a opção do negro que quer embranquecer
moralmente por Bolsonaro.
A partir desse quadro, torna-se mais compreensível que segmentos
significativos das classes populares – os quais têm tudo a perder com Bolsonaro
– tenham se transformado na principal base de apoio do ex-presidente. Como
vimos, seu viés de conservador liberal e de falso moralista conquistou as classes
médias e a elite de proprietários. O difícil é conseguir o apoio popular às
políticas que são impopulares no seu cerne. Ele consegue isso ao contar com o
apoio de lideranças evangélicas dispostas a ressignificar a teologia do domínio
neopentecostal – também defendida de modo difuso por outras denominações
pentecostais, em uma suposta luta contra as elites, ainda que personalizada de
modo infantil e “fulanizada” na figura dos inimigos pessoais do líder – e,
depois, combiná-las e ligá-las organicamente com a oposição popular já
existente entre o pobre honesto e o pobre delinquente.
Mas é a explicação relativa ao branco pobre do Sul e de São Paulo que mais
descortina o mistério de pessoas pobres que idolatram um líder nefasto inimigo
dos pobres. Como representante orgânico desse segmento social que se torna
sua “classe suporte”,104 Bolsonaro pode ser “quem ele é” e ser amado sem temer
represálias. E essa ideia exige que passemos a problematizar aquilo que
ninguém gosta de observar em um país que tem ojeriza de admitir seus
conflitos: a divisão regional entre os brancos do Sul e de São Paulo e o resto do
Brasil, especialmente o Nordeste (mestiço e negro). Essa divisão já está na
cabeça das pessoas, seja do algoz, seja da vítima. E ela é arcaica e recalcada: um
mero disfarce para o atávico racismo “racial” que comanda, silenciosamente,
com suas múltiplas máscaras – para continuar vivo, fingindo que morreu – a
política e a sociedade brasileira até hoje.
83. Jessé Souza, Como o racismo criou o Brasil, 2021.
84. Ibidem. Ver também Talcott Parsons e Edward Shills, Toward a General Theory of Action, 2017;
Niklas Luhmann, “Inklusion und Exklusion”, 2011; e Niklas Luhmann, “Kausalität im Süden”,
1995.
85. Em 2011, na reunião do G7, tanto França quanto Alemanha pressionaram no sentido de uma
limitação dos paraísos fiscais no mundo. Obama foi o único contrário.
86. Jessé Souza, A classe média no espelho, 2018.
87. Jessé Souza, A herança do golpe, 2022a.
88. Jessé Souza, op. cit., 2018.
89. Os 40% de baixo, que ganham entre zero e dois salários mínimos, são, no máximo, analfabetos
funcionais e condenados ao trabalho muscular desqualificado. Ver Jessé Souza, A ralé brasileira,
2022b.
90. Um dos grupos sociais que mais apoiaram Bolsonaro.
91. Max Weber, Hinduismus und Buddhismus, 1991.
92. Sigmund Freud, Massenpsychologie und Ich-Analyse, 1991.
93. O superego é a dimensão da psique que é responsável pela internalização dos padrões sociais de
moralidade, constituindo-se em uma forma de “ego ideal” do qual almejamos nos aproximar.
94. Desse modo, Freud procura estabelecer uma relação entre as massas e a horda primitiva, da
qual já havia tratado no livro Totem e tabu, no sentido de perceber a vinculação erótica como o
dado principal. Assim, o líder das massas seria como o pai primevo e onipotente para os filhos,
algo que se renova em cada nova família desde então, em relação ao qual só se pode agir de modo
passivo ou masoquista.
95. Sigmund Freud, Totem e tabu, 2013.
96. Norbert Elias, Über den Prozess der Zivilisation, 1996.
97. Termo cunhado nos Estados Unidos para separar o branco pobre do Sul e com menos estudo
em relação aos brancos do Norte mais ricos e com mais capital cultural.
98. Mais uma vez, refiro-me aqui à família onde Bolsonaro nasceu e não a família que ele formou
enriquecida por negócios escusos.
99. Ver Charles Taylor, The Sources of the Self, 1995.
100. Charles Taylor, “The Politics of Recognition”, 1994. Tradução minha.
101. Jessé Souza, op. cit., 2022b.
102. Bruno Paes Manso, A república das milícias, 2020.
103. Ibidem.
104. Denominação de Max Weber para os estratos sociais que carregam de modo intenso e
decidido seja uma religião, seja uma ideologia política, não se confundindo, portanto, com outros
grupos nos quais essa predileção é menos intensa.
ENCARTE

Mapa demográfico de cor ou raça predominante por município


Ocupação territorial do Brasil segundo as maiorias raciais..

Distribuição da população residente em percentuais por cor ou raça, segundo as


grandes regiões e o estado de São Paulo
Além dos estados do Sul, o estado de São Paulo é o único do país em que há maioria
populacional autodeclarada branca.
Quando comparamos o mapa demográfico de cor ou raça e o mapa da distribuição
dos votos, vemos algumas áreas coincidentes. Os estados de maioria populacional
branca tendem a votar em candidatos de direita e extrema direita. Por outro lado,
estados com maior presença percentual de população negra (preta e parda) e
indígena tendem a votar em candidatos de esquerda.

Mapa da distribuição dos votos válidos no segundo turno das Eleições 2014 –
Presidente da República

Mapa da distribuição dos votos válidos no segundo turno das Eleições 2018 –
Presidente da República
Mapa da distribuição dos votos válidos no segundo turno das Eleições 2022 –
Presidente da República

Distribuição percentual da população por grupos de religião


1
Assembleia de Deus, Congregação Cristã, O Brasil para Cristo, Evangelho
Quadrangular, Universal do Reino de
Deus, Casa de Bênção, Deus é Amor, Maranata, Nova Vida, Comunidade Evangélica,
evangélica renovada não
determinada e outras evangélicas de origem pentecostal.
2
Luterana, presbiteriana, metodista, batista, congregacional, adventista e outras
evangélicas de missão.
3
Outros grupos evangélicos.
IBGE – Censo 2000 e 2010

Distribuição percentual da população por grupos de religião e cor ou raça


Os gráficos a seguir apresentam a composição racial das religiões católica e evangélica
no Brasil, nas grandes regiões e no estado de São Paulo.
Os percentuais de Brasil são calculados de acordo com os números totais de contagem
da população. Os números percentuais das grandes regiões são calculados de acordo
com a contagem total da população de cada região. Assim como os percentuais do
estado de São Paulo são calculados de acordo com a contagem total da população do
estado de São Paulo. Os números percentuais inteiros são aproximados para facilitar a
leitura dos dados.
IBGE – Censo 2010
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