O Pobre de Direita A Vingança Dos Bastardos Jessé
O Pobre de Direita A Vingança Dos Bastardos Jessé
O Pobre de Direita A Vingança Dos Bastardos Jessé
Produzido no Brasil
2024
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Júlia Vilhena pela crítica certeira e a Bruno Reikdal pela ajuda nas
entrevistas dos negros evangélicos.
SUMÁRIO
O problema sobre o qual este livro se debruça se resume nesta pergunta: por
que uma parcela significativa dos pobres – conhecidos hoje como os “pobres de
direita” –, os quais teriam muito a perder com Bolsonaro, representante das
piores elites nacionais, votaram nele duas vezes de forma maciça? Lembremos
que o contexto imediatamente anterior era o da polarização do “nós contra
eles”: quando os pobres votaram, em peso, pela primeira vez, durante quatro
eleições seguidas, em um partido de esquerda, o PT; e a classe média e a elite,
como sempre, no PSDB.
Como a pregação da austeridade elitista – eufemismo para o saque da
população – não tinha nenhum poder de convencimento, como se nota na
popularidade inexistente de Michel Temer, Bolsonaro surge como o azarão
capaz de conduzir, pelo voto, depois de duas décadas, o ideário da elite das
privatizações e dos saques financeiros impopulares de volta ao poder. Uma
proeza e tanto! A questão passa a ser como e por que isso aconteceu? Temos,
então, dois pontos: quais foram as novas formas de manipulação da população
inventadas, e quais foram as ansiedades das classes populares às quais elas se
dirigiram? Em geral, as análises existentes se debruçam sobre esse primeiro
ponto. Mas o decisivo é o segundo.
Por que a pregação da extrema direita encontra terreno fértil nos
empobrecidos? Vamos deixar algo claro desde o início, cara leitora e caro leitor:
a elite real é ínfima e se conta nos dedos no nosso país, e a classe média “real” –
definida pelo estilo de vida em comparação internacional – não chega a 20%
da população em lugar nenhum do Brasil.1 Que essas duas classes sociais, que
constituem o núcleo do bloco antipopular de classes no poder, votem nos
candidatos elitistas é compreensível. As razões para isso serão esclarecidas em
detalhe mais adiante. Mas essas classes não elegem ninguém pelo voto em
eleição majoritária – por conta de seu reduzido tamanho – embora sejam as
classes material e simbolicamente hegemônicas.
Portanto, a questão que realmente importa saber no Brasil de hoje é, em
outras palavras, por que parcelas significativas das classes populares, as quais
não têm nada a ganhar com Bolsonaro, só a perder, especialmente sob o ponto
de vista econômico objetivo – que é como definimos hegemonicamente a ação
racional em relação à irracional –, votaram duas vezes em alguém que os
prejudica sistematicamente? As respostas para essa questão – a mais importante
para o presente e o futuro do país – variam da presunção de “irracionalidade”
do público de “bolsominions” até a causalidade religiosa e de visão de mundo
conservadora de parcelas desse eleitorado.
A presunção de irracionalidade está baseada na ideia de que a ação econômica
– que calcula as perdas e ganhos sopesando sua desejabilidade e utilidade para o
indivíduo a partir desse cálculo – é o critério de racionalidade mais importante.
Ora, a decantada “racionalidade econômica”, como móvel do comportamento
humano em sociedade, pode ser percebida como uma balela de fácil
comprovação.
As pessoas têm como razão última de sua ação social a dimensão moral, ou
seja, a luta por reconhecimento social que garante autoestima e autoconfiança
para cada um de nós. Sem isso, ninguém se levanta da cama para fazer
qualquer outra coisa. Somos todos seres frágeis e vulneráveis e somos, portanto,
construídos pela visão positiva ou negativa que a sociedade possui de cada um
de nós. Como essa necessidade é mais primária e importante do que qualquer
outra, é a partir dela que devemos nos inquirir quando, muito especialmente,
as pessoas “aparentemente” agem, sob a ética da utilidade econômica, contra os
seus melhores interesses.
Isso significa, também, que não existe “a economia” enquanto tal, fora de um
horizonte moral e ético que define seus limites e possibilidades. Afinal, não
existe a “neutralidade valorativa da economia”, ou seja, todo modelo
econômico possui, no seu núcleo, uma concepção de justiça muito singular. A
economia moderna inventou as equações e os números precisamente para criar
a impressão de ser um conhecimento exotérico que pudesse reivindicar a
neutralidade “técnica” dos números e das ciências exatas. Tudo foi montado
para que esquecêssemos de que toda forma de produção e de circulação de bens
e mercadorias já é prenhe de determinada definição de justiça que diz que
alguns vão ter tudo, e outros nada ou muito pouco. E o que importa é
exatamente saber quem ganha e quem perde com essa definição de justiça
recalcada pela formalização da economia.
Nesse sentido, a economia jamais foi, em nenhum caso histórico, o móvel do
comportamento humano, simplesmente porque não existe nenhuma forma de
dividir e produzir bens que não esteja ancorada em uma visão de justiça que é
sempre contingente e particular. O que passa por questão econômica é, na
verdade, um esquema de produção e distribuição de mercadorias segundo um
princípio moral singular. O núcleo de qualquer produção e distribuição
econômica é, portanto, uma questão e uma escolha moral.
O que imaginamos ser econômico de modo moralmente neutro é a
presunção de que uma forma muito específica de produzir e distribuir bens se
torne algo “natural”, aparentemente, sem alternativa possível. Trata-se aqui da
imposição do que é objetivamente já dado, como se fosse a única forma
possível, exatamente para evitar sua crítica e o pensamento em outras opções. A
economia moderna se esforça, por conta disso, em ser percebida como se fosse
a imposição de uma “razão técnica” neutra e distanciada. Tudo foi feito para
que não se pense mais a economia como “economia política”, ou seja, como
uma realidade política e, portanto, moral, como era pensada no século XIX.
Isso significa que o móvel último de nosso comportamento social, como
Hegel já havia intuído, é sempre “moral”, quer saibamos disso ou não. A
reconstrução da hierarquia moral subjacente à sociedade moderna já foi
realizada em outros trabalhos, e não vou repeti-la aqui.2 O problema é que essa
hierarquia moral é implícita e precisa ser expressa e articulada para se tornar
compreensível. Desse modo, a confusão e a desorientação no mundo social
complexo, que é o destino dos desadaptados, abrem um espaço considerável
para a manipulação das necessidades dos indivíduos. Isso implica que as
pessoas pobres votaram em Bolsonaro causas morais, e não econômicas.
E essas causas morais não são as que imaginamos que sejam, como o
conservadorismo moral e a pauta de costumes. Ao contrário: o apego à pauta
de costumes e ao moralismo convencional são decorrentes de outras feridas
morais mais importantes, como a experiência da humilhação cotidiana – a qual
não é compreendida em seus efeitos reais. Quais são essas causas morais? Por
que elas ganharam os corações e mentes de tantos oprimidos? Essas são as
questões mais importantes para entendermos o Brasil atual.
As explicações existentes, que não estão implicitamente baseadas no cálculo
econômico, interpretam, por outro lado, a moralidade de modo superficial. As
outras explicações que dizem que os pobres votaram em Bolsonaro por serem
religiosos ou conservadores, na verdade, se limitaram a “descrever” um
fenômeno – menos ainda, se limitaram a circunscrever seu público –, ou seja,
não o explicam. A explicação precisa ir mais profundamente e considerar: por
que tantos pobres escolheram essa orientação religiosa e não nenhuma outra
dentre tantas possíveis? Por que a maioria dos pobres, inclusive, adere a uma
moralidade convencional e conservadora que foi construída especialmente para
oprimi-la? Sem responder a isso, não iremos “compreender” nada, mas apenas
fingir que compreendemos. A causalidade social tem que ser reconstruída em
todos os seus elos de sentido para que cheguemos às causas reais e operantes em
cada caso.
Este é o objetivo deste livro: explicar, e não apenas descrever, as razões
últimas que fizeram uma parcela significativa de um povo sofrido votar em um
candidato que é, objetivamente, medido pela regra da utilidade econômica,
votar em seu maior inimigo. Tal questão exige que penetremos nos mistérios e
segredos de nossa história peculiar, que foi, inclusive, muito mal interpretada
por pensadores elitistas que se passavam por críticos sociais.3
Uma dessas omissões da nossa inteligência hegemônica foi um fato que irá
desempenhar um papel central neste livro: ninguém presta muita atenção a
isso, mas o Brasil é dividido entre uma porção que é majoritariamente branca –
como os 72% da população do Sul do Brasil e 58% de São Paulo – e outra,
75% majoritariamente negra e mestiça – de São Paulo “para cima” no mapa.
Não conheço ninguém que tenha transformado essa “linha divisória” tão
importante em um problema fundamental de pesquisa para o comportamento
político no nosso país. E isso em um país com uma escravidão de 350 anos e
um racismo que, embora “cordial”, é dos mais insidiosos de que temos notícia.
Explicar Bolsonaro é, portanto, como veremos adiante, compreender como o
racismo brasileiro – mesmo depois do seu interdito na esfera pública que o
transformou em “cordial”, tentando negar a si mesmo – encontrou novas
máscaras para exercer suas manifestações mais arcaicas. E veremos em detalhe
como essa linha divisória entre o Sul e São Paulo, do branco europeu
imigrante, vai se opor ao resto do país, majoritariamente mestiço e negro –
mascarando o racismo “racial” em racismo “regional”. Isso não significa chamar
tudo de racismo, mas simplesmente entender como ele vai assumindo, sempre,
novas vestes e máscaras para continuar vivo, fingindo que morreu ou que
nunca existiu.
A partir desta questão, poderemos compreender o problema decisivo: por que
Bolsonaro é o representante orgânico mais fiel do “branco pobre” do Sul e de
São Paulo? Sendo eles, como efetivamente o foram, os grandes responsáveis por
suas votações expressivas em todos esses “estados brancos” da federação em
duas eleições.4 Embora tenham existido outros públicos importantes –
inclusive o “negro evangélico”, também a ser discutido neste livro –, nenhum
se transformou no segmento social “suporte”5 de Bolsonaro como os seus
coirmãos de origem europeia – mas empobrecidos e, portanto, ressentidos
como são o próprio Bolsonaro e sua família.6
Temos de deixar claro, logo de início, que as causas mais amplas e gerais para o
advento da extrema direita – que se baseia no cidadão empobrecido e que não
conhece as causas de seu sofrimento – não são nacionais nem especificamente
brasileiras. O seu pano de fundo é o capitalismo financeiro mundial que
enriquece uma meia dúzia às custas dos bilhões de empobrecidos no mundo
todo. O funcionamento do capitalismo financeiro é opaco, baseado na
existência de “paraísos fiscais”, para a evasão de impostos dos mais ricos, e nas
dívidas públicas galopantes e nunca auditadas. Ou seja, tudo aponta para a
fraude e corrupção organizadas de dívidas privadas transformadas em públicas,
que só são toleradas por conta de uma imprensa também privada e conivente
que cria uma realidade virtual e invertida para a população.
O filme Coringa (2019), de Todd Phillips, estrelado pelo grande Joaquin
Phoenix, toca em um ponto nevrálgico de nosso tempo ao reconstruir o
cidadão empobrecido, que se torna consciente de sua raiva e reage de modo
pré-político fazendo justiça com as próprias mãos. O personagem principal, ao
contrário do que poderíamos supor, é uma figura social típica do nosso
mundo, e não um ponto fora da curva. O quadro patológico do Coringa é
apenas a exacerbação de uma característica “normal” e generalizada no mundo
neoliberal do capitalismo financeiro.
O nosso anti-herói é pobre, cuida de uma mãe doente e é humilhado
constantemente em casa, no trabalho e na rua. É humilhado pela mãe, pelos
colegas, pelo governo, pelas instituições de assistência social, pelos outros, no
trem. E é humilhado, finalmente, pela solidão atroz que o faz viver uma vida
de imaginação e fantasia. Este é o ponto central: a experiência da humilhação é
de 24h, sem sossego e até mesmo durante o sono, pois quem é humilhado e
invisibilizado acaba sonhando com sua vexação diária – já que o cotidiano
perfaz o material dos sonhos.
Isso é algo que alguém das classes do privilégio – como a classe média “real”,7
que monopoliza o conhecimento legítimo – não sente e, portanto, não sabe o
que significa. A elite e a classe média não têm a experiência da humilhação
diária e recorrente. E para se entender o novo sujeito criado pelo
neoliberalismo é preciso compreender a experiência da humilhação constante
como sua marca mais profunda e existencial: ser humilhado é sua vida de fio a
pavio.
Também é necessário assimilar que a experiência da humilhação é a mais
fundamental para a dor e miséria de um ser humano. Afinal, como sabia Hegel
melhor do que ninguém, o nosso comportamento não é determinado por
necessidades econômicas, como acreditam tanto o liberalismo quanto versões
do marxismo. Ele é determinado pela nossa necessidade mais básica de todas: o
reconhecimento social de nossa dignidade e singularidade. Sem isso, não temos
autoestima. E, sem autoestima, propiciada por uma ideia positiva sobre si a
qual é sempre mediada pela percepção dos outros sobre nós, já entramos
derrotados na competição social. Não à toa, as doenças da época são a
depressão e o alcoolismo – causadas, quase sempre, pela falta de autoestima e
autoconfiança.
Os sinais dos novos tempos estão no cotidiano: emprego mal pago, trabalho
precário, culto aos ricos e ódio aos pobres, corte dos gastos sociais (remédios
deixam de ser custeados pelo Estado), desorientação e falta crônica de
esperança. Um dos principais sinais do quadro desolador de ser humilhado o
tempo todo é, precisamente, a fuga na fantasia e na imaginação, que é o
destino dos que se sentem abandonados. Quando a realidade se torna
insuportável, a fuga na fantasia é inevitável para tornar a vida minimamente
palatável.
O Coringa, nosso anti-herói, fantasia um namoro com sua vizinha a partir de
um breve encontro fortuito no elevador, assim como fantasia seus sonhos de
sucesso e de fama como comediante. A sua solidão e isolamento são extremos,
e esse talvez seja o aspecto principal aqui. O novo oprimido se encontra
sozinho e sem defesa. Não tem mais os sindicatos ou associações sociais que o
apoiam. Esse talvez seja o subproduto mais importante da guerra aos sindicatos
promovidas pelo capital financeiro dominante desde os anos 1980. A pobreza e
a humilhação passam a ser vividas como dores pessoais e intransferíveis. Pior,
passam a serem vividas como merecimento individual pelo fracasso social.
O isolamento marca, inclusive, o tipo de rebelião que esse tipo social está
condenado a fazer. Os seguidores do Coringa, no final do filme, se identificam
com sua luta contra os poderosos e contra o “sistema” e passam a agir como ele
em atos de violência, sem controle ou limites. É o mundo da anarquia, da
rebelião imediata, cega e sem estratégia ou propósitos definidos, outro reflexo
da guerra travada nas últimas décadas contra todos os baluartes de proteção da
classe trabalhadora. Sem sindicato, sem partido confiável e sem compreender o
contexto social maior no qual está inserido, porque também a toda a grande
imprensa foi comprada, é a violência bestial e sem direção que passa a ser a
crítica possível a um mundo com poucos vencedores e muitos perdedores.
Nesse sentido, o Coringa é a figura social mais típica de um mundo no qual a
pobreza é vivida como culpa pessoal das próprias vítimas. Por conta disso, ele é
uma boa introdução deste livro: como entender que pessoas pobres, brancas e
negras, votem e apoiem os candidatos da extrema direita que representam, na
realidade, as piores elites e seus maiores inimigos? A resposta mais comum é
supor falta de inteligência, como se a raiz do comportamento contrário aos
melhores interesses do sujeito oprimido fosse “racional”, fruto de uma escolha
consciente e refletida. É isso que se imagina quando se fala em “bolsominion”,
por exemplo. Essa é a perspectiva dominante no senso comum.
A resposta “científica” dominante parece ir em outra direção. Aqui, a índole
conservadora passa a ter causas políticas ou religiosas. Diz-se, então, que é o
perfil conservador do indivíduo ou influência de sua igreja ou religião. Ainda
que essa explicação seja um pouco melhor e vá um passo adiante da que atribui
o comportamento irracional à “burrice”, ela ainda é visivelmente incompleta e
superficial. Afinal, o que importa saber é o “porquê” da pessoa em questão ter
“escolhido” aquela religião e não qualquer outra? Ou ainda, o “porquê” de ela
recorrer a uma moralidade restritiva e até violenta que, em última análise,
limita a si e os outros? O que importa saber é o que está por trás de todas essas
aparentes “escolhas”. É isto o que a verdadeira ciência precisa fazer: elucidar o
que o senso comum não vê e aprofundar a análise superficialmente científica
que fica no meio do caminho. Esse será o nosso desafio neste livro.
O Coringa nos dá o mote do comportamento que importa esclarecer. A
legião de esquecidos e humilhados – que aumenta a cada dia em todo lugar,
muito especialmente em países onde a ideologia neoliberal domina sozinha o
imaginário social, como os Estados Unidos e o Brasil – possui uma raiva e um
ressentimento contra o mundo que eles não conseguem explicar nem
direcionar, mas apenas experenciar e vivenciar como culpa individual. Cerca de
metade da população brasileira tem uma vida muito semelhante à do Coringa,
por vezes, inclusive, bem pior.8 Nos Estados Unidos, um país de antiga
afluência e riqueza do capitalismo industrial, os ganhos do trabalhador estão
estagnados há cinquenta anos. Mesmo lá, muitos são pobres ou muito pobres.9
O problema é que os pobres e despossuídos são também aqueles que menos
compreendem como o mundo social funciona, os que são as maiores vítimas
de todos os preconceitos sociais criados pelos poderosos para oprimi-los. Quem
mais acredita na meritocracia – a crença no mérito individual do sucesso social
– é o mais pobre, ou seja, justamente a sua maior vítima.10 Se assim não fosse,
leitor e leitora, não existiria opressão social duradoura. A violência pode ser
importante de forma momentânea, mas sem convencimento do oprimido de
sua própria inferioridade não se tem dominação estável. Por conta disso, faz-se
necessária a construção de instituições de defesa da classe trabalhadora, como
os sindicatos e associações profissionais. Daí que seja necessário imprensa livre
e mídia plural baseadas no contraditório. Daí que seja necessário uma educação
pública e crítica. Ou seja, tudo o que já perdemos ou estamos em vias de
perder.
É essa situação de precariedade tanto material quanto cultural e simbólica
que ajuda a esclarecer o que parece inexplicável. Essa é, também, a onda que a
extrema direita surfa com desenvoltura. Os Coringas do mundo atual e seu
sofrimento são a matéria-prima essencial para a falsa rebelião da extrema direita
no mundo todo. É importante compreender o contexto histórico que
propiciou tamanha mudança de comportamento. Legitimar a opressão injusta
é o trabalho principal de qualquer classe social dominante. Não há domínio
duradouro sem o convencimento do oprimido de sua inferioridade inata, ou de
que a pobreza é culpa de si mesmo. Como foram construídos os “Coringas
modernos”, ou seja, os trabalhadores superexplorados, humilhados e
precarizados? Como essa nova classe se tornou a matéria-prima mais
importante da extrema direita mundial e brasileira?
7. Conforme será melhor detalhado adiante, a noção de classe média “real” existe para combater a
ideia nociva de que a classe C, que ganha a média da renda nacional, seria uma “nova classe
média”, ideia hoje bastante aceita. Ora, quem ganha a renda média num país pobre e desigual é
pobre, mesmo que remediadamente pobre. Classe média é uma classe de privilegiados que
reproduzem nos seus filhos os mesmos privilégios.
8. Ver Jessé Souza, A ralé brasileira, 2022b.
9. “Mais de 140 milhões de pessoas são pobres nos EUA, denuncia ONG”, Exame, 26 set. 2018.
10. Ver Jessé Souza, op. cit., 2022b.
1. OS ESTADOS UNIDOS COMO ESPELHO DO MUNDO
I. A SINGULARIDADE AMERICANA
11. Leo Panitch e Sam Gindin, The Making of Global Capitalism, 2013.
12. Ibidem.
13. Ibidem.
14. Walter Lipmann, The Public Opinion, 2015.
15. Joseph Schumpeter, Capitalism, Socialism, Democracy, 2018.
16. John Dewey, The Public and Its Problems, 2016.
17. Edward Bernays, Crystallizing Public Opinion, 2018.
18. Gustave Le Bon, The Crowd, 2009.
19. Stuart Ewen apud Edward Bernays, op. cit., 2018.
20. Ibidem.
21. Ver Georg Simmel, “O dinheiro na cultura moderna”, 2005.
22. Ibidem.
23. Jane Mayer, Dark Money, 2016.
24. Ibidem.
25. Ibidem.
26. Ibidem.
27. Charles Murray, Losing Ground, 1984.
28. Ibidem.
29. Jürgen Habermas, Der Strukturwandel der Öffentlichkeit, 1975.
30. Nancy Fraser, The Old Is Dying and the New Cannot Be Born, 2019.
31. Ibidem.
32. Eu mesmo, como autor, não pude mostrar a capa da segunda edição de meu livro A elite do
atraso no Facebook. Ao clicar em “publicar”, o conteúdo era imediatamente rejeitado e nunca
chegava a ser publicado. O episódio foi fartamente documentado e discutido entre os meus amigos
do portal. Esse é, por óbvio, apenas um pequeno exemplo de algo que ocorreu na minha esfera
pessoal.
2. AS RAÍZES HISTÓRICAS DA EXTREMA DIREITA NO BRASIL
Vimos acima que a “nova extrema direita” – de extração agora americana e não
mais europeia – serviu como uma luva para funcionalizar a raiva da classe
trabalhadora contra a pobreza relativa e a decadência social, às quais se tornou
submetida pela expropriação neoliberal e financeira. Na verdade, como a
expropriação econômica foi acompanhada da privatização da mídia – e,
portanto, da esfera pública que deveria servir para garantir a produção de
consensos democráticos – para tornar invisíveis as verdadeiras causas do
empobrecimento geral, inventou-se uma guerra entre os pobres. Tanto nos
Estados Unidos quanto no Brasil, uma guerra do branco pobre (ou do negro
que quer “embranquecer”) contra os negros, os imigrantes, os marginalizados
etc., contra o “sistema” – definidos de modo abstrato, de modo a identificá-los
como os próprios inimigos da extrema direita.
A extrema direita cria a falsa impressão de expressar a rebeldia popular. Por
conta disso, no Brasil, desde 2013, temos as demonstrações de rua como um
espaço da direita e não mais da esquerda como havia sido, quase sempre, o
caso. A vitória do capital desregulado se torna completa quando sua visão de
mundo passa a expressar a revolta dos oprimidos que desconhecem os motivos
reais de sua opressão. Com isso, você cria um eleitorado cativo que, apesar de
não conseguir nenhuma mudança real, vive a violência da extrema direita
como expressão de suas angústias e ressentimentos diários. Para quem não tem
nada, isso é muito. Gera sentimento de pertencimento ligado a algo
importante e decisivo, fazendo brilhar uma vida empobrecida e sem
perspectivas em todas as dimensões. Mais ainda que os Estados Unidos, o
Brasil oferece um terreno fértil para esse tipo de política do ódio. O decisivo
aqui é manter a crença na virtude inata dos mais ricos e na meritocracia, e
estigmatizar e culpar os marginalizados e excluídos.
É interessante observar que a novidade de Bolsonaro foi abrir uma caixa de
Pandora que já existia, em silêncio, entre nós. Daí o sucesso retumbante que o
levou à Presidência. Por conta disso, é decisivo compreender os sentimentos e
ansiedades que preexistiam a ele e vão continuar a existir mesmo sem ele.
Bolsonaro não agiu no vazio. Ele acordou ideias e sentimentos adormecidos
que vieram para ficar. Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, essas ideias e
sentimentos seculares são todos derivados do racismo primordial contra os
negros escravizados e seus descendentes. Tem gente que se incomoda quando
dizemos que todos os nossos males se devem, ao fim e ao cabo, ao racismo.
Afinal, pensam muitos, nem tudo é racismo. Essa crença tem a ver com uma
percepção superficial do racismo “racial” que não leva em conta suas máscaras
culturais inventadas para continuar vivo fingindo que morreu.
Para isso, o caminho brasileiro para a permanência do racismo é ainda mais
insidioso que o americano. Como os americanos optaram por um racismo
explícito, condenando os negros a guetos, a resistência ao racismo foi
construída pela luta diária vivida e experienciada por todos os oprimidos. No
Brasil, como já discuti em detalhe em outro livro,33 foi construído um
“racismo cordial”, que finge não ser racista. Não é à toa que a construção do
racismo cordial tenha se dado exatamente nas décadas de 1930 e 1940, sob o
impacto da “revolução cultural” do varguismo. Foi Getúlio Vargas, inspirado
especialmente pelas ideias do “bom mestiço”, de Gilberto Freyre, quem ousou
combater o racismo explícito então dominante tanto na sociedade quanto no
mundo intelectual, e construiu uma autoimagem distinta do Brasil celebrando
as origens africanas, ao invés de estigmatizá-las.34 É com Vargas que o Brasil
passa a ser pensado como o país do samba e do futebol praticado pelos negros.
Esse tipo de afirmação popular é fundamental. A mensagem ao povo pobre e
negro é mais ou menos a seguinte: você não é o lixo da história que sempre
contaram que você era, ao contrário, você tem virtudes e pode desenvolver
todo o seu potencial.
Um país não joga a maioria de seu povo na lata de lixo impunemente. E era
assim que negros e mestiços eram tratados de 1532 até 1930. Isso implica em
estigmatizar e humilhar a maioria da população como indigna – indigna de
voto, de trabalho decente e bem-pago, de moradia e, enfim, de respeito social.
Quando se humilha e se estigmatiza parte tão grande da população, se
normaliza também a perseguição policial e social contra todos os oprimidos,
negros e mestiços. Apesar do racismo ter continuado depois de Vargas – afinal,
a superação de todo racismo teria exigido gerações comprometidas com essa
luta – ele vai demandar um contorcionismo de quem quiser – consciente ou
inconscientemente – expressar sentimentos racistas a partir dessa época. Daí
que seja tão importante compreender o racismo como um dispositivo de poder
que pode, inclusive, dispensar o uso da palavra raça e de qualquer referência
racista explícita. Há que se compreender, também, o racismo “racial” como um
fenômeno multidimensional que pode, por exemplo, se mascarar de racismo
“cultural” – dando a impressão de leitura coerente da realidade e de ter
abandonado qualquer preconceito de origem racial.
Ninguém conseguiu isso com mais sucesso do que Sérgio Buarque, em 1936,
no seu clássico Raízes do Brasil.35 O livro foi pensado como um manifesto
liberal contra o varguismo então no poder. É isso, antes de tudo, que o faz ser o
mais importante manifesto elitista do Brasil moderno. Mas o golpe de mestre
de Buarque foi ter feito isso dando a impressão de estar propondo uma crítica
social, ou seja, de estar identificando o real causador das mazelas brasileiras. Por
conta disso, utiliza-se de uma interpretação mambembe e sem contextualização
histórica de Max Weber e de seu conceito de patrimonialismo36 para
criminalizar o Estado – onde Vargas estava – e a política, tornando invisível a
expropriação dos poderosos e dos proprietários a partir do mercado. A partir
daí, corruptos passam a ser os ocupantes do Estado, e nunca os donos do
mercado.
Como a imprensa pertence a essa mesma elite, então se constrói a pedra de
toque da cultura de golpes de Estado brasileira. É sempre preciso ter a
construção de uma ideia antes da ação. Essa foi a verdadeira contribuição de
Buarque. Assim, toda vez que um líder popular determinado a distribuir renda,
como Vargas e Lula, assume o poder, a elite e sua imprensa já possuem na
manga a carta decisiva e mortal: a acusação pronta de corrupção – que não
precisa ser verdadeira, desde que se force o povo a acreditar nela – que é, de
fato, a criminalização e a estigmatização do voto popular e de toda participação
política do povo. Isso tudo foi vendido e comprado por quase toda a elite
intelectual brasileira como “crítica social”.37 Pior: ainda é.
Mas Buarque não parou na criminalização do Estado e da política. Ele
também transformou o racismo “racial” brasileiro, que agora não poderia mais
ser explicitado, em racismo “cultural” ao perceber o povo brasileiro, mais uma
vez – como nos tempos do racismo explícito, antes de 1930 – no papel de “lata
de lixo” do mundo: corrupto, inconfiável e, finalmente, mas não menos
importante, eleitor de corruptos. O “homem cordial”, definido como o
produto mais acabado da tradição cultural brasileira, seria personalista e,
portanto, corrupto, por não separar o público do privado. Tudo como se a
privatização do que é público não fosse o modus operandi e o verdadeiro núcleo
do capitalismo desde seus inícios, em todo lugar deste planeta. Essas bobagens
da “confusão do público com o privado”, como se fosse uma jabuticaba
brasileira, são repetidas até hoje por praticamente todo intelectual brasileiro
como se fosse a descoberta do Santo Graal.
O pior é que o homem cordial nem sequer se refere ao povo como um todo.
Não nos esqueçamos de que a elite paulista estava empenhada em criar uma
linhagem virtuosa, desde o final do século XIX, que legitimasse seu domínio
sobre a nação. Conforme maior detalhamento adiante, esse mito foi criado a
partir da figura do bandeirante, estilizado como um “equivalente funcional” do
protestante ascético, o protótipo do pioneiro americano. Dos bandeirantes,
viria o espírito desbravador e empreendedor que caracterizaria os paulistas. De
certo modo, a elite de São Paulo se via, portanto, como uma reedição nos
trópicos das virtudes que haviam construído a autorrepresentação dos
formadores dos Estados Unidos. Voltaremos a este ponto fundamental mais
abaixo.
Não podemos nos esquecer também de que os anos 1930 fecham o ciclo de
chegada dos milhões dos brancos do sul da Europa que passaram a povoar a
região Sul e São Paulo entre 1870 e 1930. São cerca de 5 milhões de europeus
de todas as origens que começam a desembarcar em um país que, em 1872,
tinha menos de 10 milhões de pessoas.38 Como não podia deixar de ser, a
imigração maciça de brancos europeus para um país de maioria mestiça e negra
vai ter consequências decisivas não só demográficas, mas também nas
dimensões econômica, política, social e cultural.
Por sua origem europeia recente, a maioria desse pessoal nunca se considerou
parte do “povinho” mestiço e negro do país – até hoje, não se consideram. Se a
elite se via como “americana” (pela transfiguração do bandeirante na espécie de
“equivalente funcional” do pioneiro ascético), os brancos europeus – que vão se
tornar a maioria da classe média brasileira – se viam, pela origem recente,
como “europeus” nos trópicos. Desse modo, o cordial, personalista e corrupto
– como Buarque havia definido o brasileiro em geral – passa a ser apenas o
povo pobre, mestiço e negro.
Se antes o ataque era ao “estoque racial” considerado inferior, agora o mesmo
ataque contra o mesmo tipo de gente se traveste de “estoque cultural”,
recobrindo o racismo “racial” com as cores mais aceitáveis do racismo
“cultural” supostamente científico. Buarque, nesse sentido, e certamente sem
nenhuma intenção, repagina e mascara – moralizando e mascarando o racismo
como luta contra a corrupção – com sucesso o racismo brasileiro. Se a elite se
imagina americana, e os brancos e a classe média são europeus, então a “lata de
lixo” da brasilidade – percebida como inconfiável e corrupta – vai ser apenas o
povo mestiço, negro e pobre.
É esse contexto que construiu a “aliança antipopular” da elite de proprietários
e da classe média como seu representante incumbido da administração do
mercado, do Estado e da esfera pública em nome dos interesses da elite. Nesse
acordo de classes, o dinheiro fácil fica com a elite improdutiva, e o capital
cultural passa a ser monopolizado pela classe média branca de origem europeia.
A condenação moral de povo corrupto e inconfiável – a perfeita continuação
do antigo racismo de raça aberto e explícito que vigorou até 1930 – passa a se
dirigir contra as mesmas pessoas que, antes, eram estigmatizadas pelo “estoque
racial” supostamente inferior. Isso mostra sua real “função latente” de
reproduzir o racismo, agora por conta de um suposto “estoque cultural”
dirigido, no entanto, às mesmas classes de pessoas: mestiços, negros e, agora,
também uma porção significativa de brancos pobres. A perfeita substituição,
portanto, do racismo “racial” pelo racismo “cultural”.
A substituição do racismo “racial” pelo racismo “cultural” vai estigmatizar o
voto e a participação popular dos 80% da população que não são nem elite,
nem classe média branca. Por essas pessoas e seus representantes serem
percebidos como “inconfiáveis”, permitiu-se forjar uma tradição de golpes de
Estado para desbancar o representante popular toda vez que o sufrágio
universal, eventualmente, elegesse um líder identificado com as causas
populares. Por outro lado, a desvalorização moral das classes populares serve
também para “enobrecer” o próprio ódio devotado a elas pelas classes do
privilégio.
Desse modo, a justificação da dominação passa a ser compartilhada por todos
– tanto pelos algozes quanto pelas vítimas. O tema falso moralista da
corrupção vai permitir que, agora, o branquinho da elite ou da classe média
possa esconder seu racismo real sob a conveniente máscara de representante da
moralidade pública. A nova “identidade nacional” do brasileiro “vira-lata” e
corrupto – criada por Buarque e até hoje hegemônica, e que veio substituir a
identidade nacional positiva de Freire encampada por Vargas – permitiu
criminalizar a participação popular na política, tornando a posse do Estado um
privilégio das elites mesmo em um contexto de sufrágio universal. Basta que a
imprensa privada da mesma elite escandalize casos inexistentes de corrupção de
representantes populares. Mas não apenas isso. Ela permite legitimar a opressão
do povo justificando-a como dever e necessidade moral.
Uma leitura atenta pode chegar à pergunta: por que a elite – que capilarizou
a tese do povo corrupto convencendo toda a população por meio de sua
imprensa privada e da indústria cultural sob seu controle – tem tanto interesse
em desprezar e estigmatizar o próprio povo? Ora, do mesmo modo como
acontecia na República Velha, a intenção é amordaçar e enfraquecer o inimigo
mortal de toda elite do saque: a soberania popular consumada no voto
universal. Os líderes populares de nossa história – Vargas, Jango, Lula e Dilma
– tentaram usar o orçamento público em benefício da maioria da população. É
isso que a elite não quer. O Estado, suas riquezas, suas empresas e o orçamento
público devem ser exclusivamente para a elite do saque. Daí a necessidade de
humilhar e desprezar o próprio povo. Daí a construção de uma cultura de
golpes de Estado.
Na República Velha, o voto censitário permitia que, no máximo, apenas 5%
da população participasse da vida política. Mesmo assim, essa vontade de uma
ínfima minoria era fraudada “a bico de pena” pelos poderosos locais em todo o
país. Como o sufrágio universal e o combate ao racismo que havia levado ao
holocausto vêm ambos como ideias irresistíveis depois da Segunda Guerra
Mundial, a transformação do racismo “racial” em racismo “cultural” permite
que a elite mantenha o acesso exclusivo ao Estado – fonte de todos os
privilégios e “mamatas” – como se isso fosse decorrente, agora, de um
imperativo ético positivo contra o qual ninguém pode ser contra: o combate à
corrupção sempre dos líderes populares. É assim que a elite e a classe média
branca lograram legitimar a quase centenária tradição de golpes de Estado da
sociedade brasileira.
A luta de classes existe, sim, mas ela não é econômica nem comandada pela
economia, como acreditam tanto liberais quanto muitos marxistas. É sempre
repetida em todos os jornais a suposta frase do assessor de Clinton, que teria
dito: “É a economia, tolinho”, como se a opinião política das pessoas fosse um
cálculo econômico de perda e ganhos. Na verdade, tolinho é quem pensa que
algum dia foi apenas a “economia em si” a causa de qualquer mudança de
comportamento social. E esse dado fundamental é relativamente fácil de se
explicar.
Afinal, a “economia”, como já discutido no prefácio deste livro, enquanto
esfera da vida social encarregada da produção e distribuição de bens materiais e
simbólicos, é sempre, na verdade, expressão de um contexto moral que lhe é
anterior e lhe determina. Pensemos juntos: a ideia na qual o capitalismo nos
quis fazer crer é a de que existe uma esfera social independente de avaliações
morais, que deve ser “neutra” em relação a valores. É por conta disso que a
economia moderna se formalizou em equações e números, para fingir que é
uma esfera que deve ser julgada por critérios de eficiência instrumental, como
se fosse infensa a valores e avaliações vinculadas a noções elementares de justiça
que todos nós – de forma consciente ou não – compartilhamos.
No entanto, a economia sempre foi política, ou seja, sempre foi perpassada
por escolhas morais em última instância. Basta refletir um pouco: qualquer
padrão social e econômico de produção e distribuição de bens materiais e
simbólicos envolve obrigatoriamente – de forma explicita ou implícita – uma
ideia acerca de quem será privilegiado e de quem será oprimido e explorado.
Quem deverá ter acesso aos bens pelos quais todos nós competimos para
possuir? Essa questão, que no fundo é o núcleo de qualquer forma econômica,
é uma questão moral e não econômica. Ela se refere a critérios compartilhados
de justiça.
Imaginar a economia neutra com relação a valores morais é um dispositivo de
poder, de quem monopoliza os privilégios econômicos, de modo a apresentar o
arranjo econômico existente como o único possível. É retirar a contingência e a
contextualização moral de qualquer ação humana para fazer crer que o arranjo
atual é o único razoável e existente. Por conta disso é que se separou a
economia da política e da moralidade: facilita a desvinculação da apropriação
econômica diferencial a critérios de justiça, de modo a percebê-los como uma
necessidade técnica e pragmática incontornável.
No entanto, são as necessidades morais que perfazem o vetor mais
importante do nosso comportamento prático em todas as esferas da vida, e não
apenas na economia. Desse modo, para se entender como se dá a luta de
classes, que decide o acesso de cada um de nós a todas as oportunidades de
vida, devemos nos concentrar nas “justificações morais” que legitimam uma
determinada ordem socioeconômica contingente e arbitrária.
E como se dá a luta moral entre as classes sociais – que possibilita e legitima a
apropriação econômica diferencial entre indivíduos e classes – em nosso país?
Ora, vimos acima que a elite que se imagina americana e a classe média branca
de origem europeia construíram ideias e mecanismos para rebaixar e
desvalorizar as classes populares abaixo delas. Primeiro, o meio era o racismo
“racial” aberto e, depois dos anos 1930, o racismo “racial” repaginado como
racismo “cultural”. Se antes as classes populares de maioria mestiça e negra
eram humilhadas por um suposto “estoque racial”, agora elas o são por conta
de um suposto “estoque cultural” que as teria tornado um povo de corruptos e
eleitores de corruptos. Essa é a legitimação do arranjo desigual no Brasil nos
últimos 90 anos.
A manipulação do tema da corrupção também é a arma da qual o Norte
global, comandado pelos Estados Unidos, se utiliza para estigmatizar e
criminalizar o Sul global de modo a saquear suas riquezas. Os países da
América Latina, África e Ásia são percebidos como sociedades endemicamente
corruptas – assim como, por extensão, seus membros –, enquanto a corrupção
é vista como mero deslize pessoal no Norte. Tudo funciona como se o Norte
fosse honesto e o Sul corrupto. Como se o capitalismo, em especial o
capitalismo financeiro americano, não fosse o tempo todo, e em todo lugar,
apropriação privada do público – via evasão planetária de impostos – e lavagem
de dinheiro sujo em paraísos fiscais. Isso sem contar as guerras feitas para três
empresas privadas de petróleo, como no Iraque. Existe maior confusão entre o
público e o privado no mundo? Cadê a jabuticaba brasileira da suposta
confusão – que só ocorreria aqui – entre o público e o privado?
É que a acusação moral, aquela que se dirige ao que há de mais valorizado
para cada pessoa, atinge o nosso âmago de tal modo que nos desumaniza. Se a
dimensão moral é a mais importante e decisiva dentre todas as dimensões do
espírito – inteligência, moralidade e capacidade estética – e se é o espírito o que
nos afasta da animalidade do corpo e seus afetos, então negar a moralidade de
alguém é animalizá-lo, é retirar sua humanidade. Quem quiser eternizar sua
dominação social, política e econômica tem que se perceber como
manifestação do espírito, enquanto o polo dominado tem que ser percebido
como reduzido ao corpo e à animalidade. Seja na esfera global, seja na
dimensão local e em todas as múltiplas formas de opressão existentes, não
existe exceção a essa regra. É por conta disso que os palestinos, vinculados aos
povos do Sul, valem pouco; e os judeus, vinculados aos povos do Norte, valem
muito e podem massacrar e chacinar livremente.
É também por conta disso que a elite e seus intelectuais, à procura de um
substituto para o racismo “racial”, inventaram a “tradição de corrupção do
povo brasileiro”, como vimos, apenas daqueles que não possuíam origem
europeia. Dessa forma, supostamente por razões de “moralidade pública”, se
garante a posse do Estado apenas para a elite, e uma cultura de golpes de
Estado toda vez que um líder popular assume o poder. É a continuação da
escravidão, uma vez que se mantém o que é essencial para a continuidade do
sistema social anterior – com a roupagem vistosa da modernidade e da
democracia representativa. Porém, na verdade, a base da população composta
de negros e mestiços continua sem direito efetivo à participação política, já
que, no limite, seu voto não vale nem nunca valeu por muito tempo.
Não basta “dizer” que a escravidão foi importante. Apenas “dizer” não
esclarece coisa alguma. É preciso que se compreenda a diferença fundamental
entre o nome e o conceito, algo que poucos percebem. Saber o nome e
simplesmente “nomear algo” não significa compreender. Ao contrário do
conceito – que reconstrói de modo coerente a realidade confusa em
pensamento –, o nome não é unívoco. Cada cabeça vai ter uma ideia subjetiva
só sua, mas vai imaginar que essa opinião, apenas por se referir ao mesmo
nome, é uma explicação da realidade. Cada um vai ter uma ideia própria e
muito particular acerca dessa “importância”: para um, vai ser a feijoada; para
outro, o quarto de empregada; para outro ainda, a capoeira e assim por diante.
O engano se torna completo quando cada um imagina algo diferente supondo
que estão falando da mesma coisa. Não é, afinal, nem um pouco evidente
como a escravidão continua com outras máscaras, tanto que este é um trabalho
que ainda não havia sido feito no âmbito da sociologia brasileira, embora os
trabalhos históricos sobre o assunto tenham existido desde sempre.
Reconstruir o mundo de modo diverso à confusão reinante no senso comum
exige o trabalho do conceito, ou seja, uma elaboração abstrata e ideacional que
reconstrói o mundo em pensamento enquanto uma realidade compreensível.
Isso é o que a ciência deve fazer, embora na maioria das vezes simplesmente
repita o senso comum. O conceito, para esclarecer as pessoas de coisas que elas
não percebem, necessita que a hierarquia social seja, antes de tudo,
compreendida. As coisas não são igualmente importantes. Existe o que é
essencial e o que é secundário. E o aspecto mais importante de toda sociedade é
como ela legitima a dominação injusta. Deveria ser óbvio e ululante, mas não
é. Ao se perceber a forma específica de legitimação de uma sociedade,
saberemos todos os seus segredos, já que a legitimação tem que invisibilizar o
privilégio injusto e animalizar e estigmatizar o oprimido. Tudo o que se segue a
isso na vida social é secundário e construído pela própria necessidade de
legitimação que garante a reprodução social desigual.
Por esse motivo, meu conceito de continuidade da escravidão no tempo é
distinto de quem apenas “fala” ou simplesmente “diz” sobre a importância da
escravidão. O trabalho do conceito, nesse caso, é perceber sua continuidade sob
a máscara do novo. É preciso mostrar como se dá essa continuidade: apesar de
todas as máscaras, por baixo de todas as mentiras. E ela se dá de duas maneiras
fundamentais:
1) pela construção de uma dominação simbólica “vira-lata” para estigmatizar
o próprio povo mestiço e negro, e lhe tirar a legitimidade de sua participação
política e de seu voto;
2) pela construção de uma classe de abandonados e humilhados reduzidos à
sua força muscular e ao trabalho desqualificado, exatamente como acontecia
com os antigos escravos.
É a demonstração dessa tese que “explica” e não apenas “diz” que a escravidão
é o núcleo do Brasil moderno e contemporâneo. Os dois aspectos decisivos
para se compreender como uma sociedade funciona são a forma como ela é
legitimada e a forma como ocorre – a partir da reprodução da dominação
propiciada pela legitimação – a constituição das diferentes classes sociais e de
suas inter-relações. A legitimação é fundamental, visto que sem ela não existe
dominação social estável no tempo. A violência aberta se impõe num primeiro
momento, mas, sem legitimação, ela nunca se mantém no tempo. É necessário,
em todos os casos, “convencer” os oprimidos de que a dominação é boa para
eles também, ou que o sofrimento se dá por culpa própria. Por outro lado,
também é necessário compreender como se estabelece a construção
sociocultural por meio da família e da escola das diversas classes sociais de
modo a assimilar o arranjo de conflitos e alianças entre elas. A partir desses dois
aspectos, podemos compreender o núcleo de qualquer sociedade. Todo o resto
é derivado da dinâmica dessas duas questões.
Por essa razão, o fundamento mais importante e decisivo de nossa sociedade
se apresenta da seguinte forma: nossa “identidade nacional” degradada – com a
imagem de povo corrupto, modernizando a humilhação do antigo escravo –
disseminada nas escolas, universidades e em toda a imprensa e indústria
cultural, somada à produção de uma classe de pessoas feitas para serem
exploradas e humilhadas. Esses são os dois aspectos, intimamente relacionados,
mais importantes de qualquer sociedade: como ela é legitimada e como as
classes sociais são construídas.
Em livros como A elite do atraso e Brasil dos humilhados, avancei na primeira
questão. Em A ralé brasileira, Classe média no espelho e nos outros trabalhos
sobre as classes sociais procurei compreender as razões da segunda questão.
Meu primeiro trabalho empírico de longo prazo, não por acaso, foi a realização
de A ralé brasileira. Eu tinha, desde algum tempo, a intuição de que o que
explica o Brasil é a constituição intencional – como projeto político do bloco
antipopular, composto por classe média branca e elite de proprietários – de
uma classe de pessoas destinadas a serem abandonadas, criminalizadas,
perseguidas, exploradas e humilhadas. A “ralé”, como nomeei
provocativamente essa classe de marginalizados e excluídos de praticamente
tudo, não pode nem deve ser redimida em nosso país.
Afinal, toda vez que algum governo criou um projeto de reerguimento
popular, como melhores salários e acesso à educação de qualidade, aconteceu
um golpe de Estado apoiado pela classe média branca e pela elite de
proprietários. Isso não é acaso nem coincidência. Existe um acordo silencioso
que ninguém debate e explicita – o que ajuda sua continuidade – para manter
os humilhados onde estão. E esse acordo é mantido pelas classes do privilégio
que não querem, por exemplo, que pobre e preto cheguem à universidade
pública ou que compartilhem espaços sociais com elas. Essa é a razão última de
toda perseguição policial, exclusão planejada e indiferença em relação ao
destino dessas pessoas.
A classe de humilhados e perseguidos, que perfaz cerca de 40% de nossa
sociedade, é a pedra de toque para que saibamos como toda a sociedade
funciona.39 Ela tem um efeito semelhante à casta dos intocáveis da Índia, os
Dalit,40 que executam os serviços sujos e mal pagos que ninguém mais quer
fazer. A longevidade milenar do sistema de castas está ligada, precisamente, ao
fato de que se permite uma distinção social positiva a todas as castas situadas
acima dos intocáveis, inclusive os segmentos intermediários. Aqui vale a regra
de ouro: toda vez que inexistir a universalização das condições de igualdade – o
que exige o reconhecimento social do valor e da dignidade alheia –, a distinção
social positiva tem que ser conquistada “às custas dos outros”, isto é, pela
humilhação e pelo rebaixamento da vida do outro.
É preciso compreender que a escravidão não é apenas exploração do trabalho
alheio. Esse é o corpo, a dimensão material que é evidente a todos na
escravidão. Mas a alma da escravidão é a humilhação, ou melhor, o gozo e o
prazer na humilhação. Tornar o outro tão vulnerável e frágil a ponto dele se
tornar incapaz de se defender é o objetivo real aqui. Como a gritaria contra a
carteira de trabalho das empregadas domésticas no governo Dilma
demonstrou: se o escravo passa a possuir direitos, ele deixa de ser escravo e de
se comportar de modo servil e subordinado.41 Para a patroa típica de classe
média, a empregada é uma escrava doméstica que deve aturar todos os seus
humores e humilhações. Não existe nada mais escravocrata do que o prazer de
humilhar.
Nós somos uma sociedade desse tipo. Aliás, os Estados Unidos também, pela
mesma continuidade do passado escravista e suas máscaras lá e cá, assim como
a Índia e seu sistema de castas. Para nosso contexto neste livro, é importante
perceber o fato de que não apenas as classes do privilégio se “beneficiam” desse
esquema, mas também os setores intermediários – no caso brasileiro, os 40%
que são pobres remediados, ou seja, uma espécie de classe trabalhadora precária
do capitalismo financeiro, são, em sua maioria, pessoas que ganham entre dois
e cinco salários mínimos. E eles votaram, massivamente, em Bolsonaro.42
Em quem a classe média e a elite votam não tem muita importância, afinal,
constituem menos que 20% da população – não se ganha eleição majoritária
apenas com o apoio da classe média e da elite, embora essas classes comandem
a sociedade. Assim, é necessária a contribuição do pobre dito de direita – em
muitos casos, o branco pobre do Sul do país e de São Paulo, e o negro
evangélico no resto do Brasil. Isso nos faz voltar ao questionamento que
buscamos elucidar neste livro: por que alguém pobre votou, e ainda votaria, em
Bolsonaro?
Desde Marx, sobretudo após sua morte, a grande questão da “esquerda” e da
luta por igualdade e democracia foi compreender o pobre “sem consciência de
classe” que apoia quem o oprime. Dizer que o pobre de direita é burro,
“bolsominion”, ou que a raiz do problema é a filiação religiosa ou o caráter
intrinsecamente conservador da pessoa, como muitos fazem, não ajuda muito.
Afinal, como já dito, o que importa é saber o que motivou a escolha por
determinada filiação religiosa, e aprofundar “o que” a inclinação “conservadora”
lhe proporciona.
Para mim, são as necessidades de reconhecimento social desse segmento,
também oprimido pela falta de oportunidades educacionais – ao contrário da
classe média “real” –, que o faz tão suscetível à pregação bolsonarista. Como a
luta por capital econômico – ou seja, os títulos de propriedade das fazendas do
agronegócio, das redes de comunicação, das grandes empresas e dos títulos
bancários – estão concentrados no 1% mais rico, então a luta real dos 99% que
estão abaixo é, antes de tudo, por capital cultural legítimo. No Brasil, o capital
cultural considerado legítimo é monopolizado, porém, pela classe média
branca e “real”.43 O fato de alguém da classe média ter uma casa própria, um
carro importado e uma casa de veraneio não torna essa pessoa membro da elite
de proprietários, já que a reprodução de suas condições de vida depende de seu
estudo e de seu capital cultural – e não de seus títulos de propriedade.
Para os 80% que não são nem elite nem classe média “real”, a competição
social por capital cultural legítimo já está perdida: é a classe média “real” que
vai comandar toda a sociedade em nome dos proprietários – na economia, na
política e na esfera pública. Isso significa que 80% do nosso povo é explorado e
oprimido pela ausência de acesso a capital econômico e cultural qualificado.
Não há como competir com quem recebe, desde o berço, todos os estímulos
para o bom desempenho escolar e para o trabalho intelectual.
Uma criança de classe média recebe, sem esforço – pela simples internalização
e incorporação de exemplos de comportamento de pais e familiares em geral,
como o hábito de leitura –, o estímulo ao pensamento abstrato, à disciplina, ao
pensamento prospectivo e à capacidade de concentração. Ao contrário do que
se pensa, ninguém “nasce” com essas aptidões. Em um país como o nosso, elas
representam o maior e mais importante “privilégio de classe” – pois, acima de
tudo, esse privilégio é invisível ao olho não treinado. Como não se percebe a
incorporação dos exemplos familiares, imagina-se que essas disposições – que
anteveem o sucesso ou fracasso escolar – são mérito individual e não familiar e,
portanto, de uma classe social específica, transmitido de uma geração para a
outra. Daí a meritocracia e a falácia do mérito individual ser a principal
ideologia de nossa época: ela permite esconder e legitimar a produção
diferencial de indivíduos mais ou menos capacitados por sua herança de classe.
É assim, afinal, que as classes sociais se reproduzem: pelo efeito da
socialização familiar e escolar. É o tipo de família e o tipo de escola que vai
dizer, por exemplo, a renda diferencial que o indivíduo adulto irá auferir. Isso
demonstra como a percepção da classe social como renda diferencial é falaciosa.
As famílias abaixo da classe média, os 80% explorados e humilhados em graus
variáveis, se subdividem em classe trabalhadora precária e em uma “ralé” de
marginalizados e excluídos. A diferença entre as classes populares está também
ligada à socialização familiar e escolar diferencial.
As famílias da classe trabalhadora precarizadas pelo capital financeiro
apresentam, geralmente, contextos familiares mais estáveis – a exemplo da
família com os pais e mães presentes, embora lutem pela sobrevivência no dia a
dia. Os estímulos para a escola tendem a ser comparativamente maiores do que
no caso dos marginalizados. Isso produz aptidão social e profissional para o
exercício dos empregos “uberizados”, dos cargos intermediários do serviço
público (policial, membro das forças armadas), da atividade de pequeno
empreendedor etc. Em termos de renda, essa fração das classes populares se
situa entre dois e cinco salários mínimos mensais, possibilitando a existência do
que chamamos de “pobre remediado”: carente de tudo um pouco, mas sem
fome e com apoio familiar básico. Esse é o segmento chave para os propósitos
deste livro.
Os 40% de marginalizados na base da pirâmide social já apresentam um
outro quadro de vida. As famílias são, em sua maioria, monoparentais: quase
sempre só com a mãe, sendo o pai ausente. Muitas delas apresentam lares
desestruturados, com abuso físico e sexual frequente, e com pouco estímulo ao
sucesso escolar (pela falta de exemplos bem-sucedidos). Embora existam
exceções, a vida é levada com a ênfase no aqui e no agora, na comida de hoje,
para o almoço de hoje – o que condena essa classe a uma absoluta ausência de
futuro e de planejamento de vida. Sem pensamento prospectivo, isto é, a ideia
de que o futuro é mais importante do que o presente, não há condução
racional da vida possível.
É uma classe literalmente “sem futuro”, construída para os empregos pesados
como os que os antigos escravos faziam: as mulheres são as escravas domésticas,
e os homens os “escravos de ganho” em trabalho muscular e não qualificado.
Como a escola produz os “analfabetos funcionais” – daqueles que fazem de
tudo um pouco porque nunca aprenderam a fazer nada direito –, essa classe se
caracteriza pela falta e pela vulnerabilidade extremas. Tendo em vista que o
acesso ao capital cultural condiciona toda a participação social e todo emprego
competitivo, essa classe é desumanizada e animalizada.
Esse estilo de vida não é, obviamente, “culpa” das vítimas. Os 40%
marginalizados foram produzidos intencionalmente pelas classes do privilégio:
para explorá-los e humilhá-los. O gozo na exploração e na humilhação é o que
marca a relação das classes do privilégio com os pobres e marginalizados, e
mostra a continuidade da sociabilidade escravocrata. Todo governo popular
que procurou ajudar os marginalizados for apeado do poder por um golpe de
Estado apoiado pela elite e pela classe média. Claro que a desculpa foi sempre a
lorota da corrupção, de modo a moralizar o preconceito dos privilegiados e
justificar o abuso.
Essa é uma classe perseguida. Se fosse só indiferença e descaso, seria muito
melhor. Mas não é. É ódio e desprezo cultivados e cevados todos os dias. A
polícia foi criada para perseguir, matar e humilhar essa classe – sob aplauso das
classes do privilégio. É por conta disso que matar pobre e preto provoca
comoção em tão poucos. É um arranjo social irracional ao extremo, baseado no
ódio e na própria insegurança dos privilegiados. Ninguém pode viver bem em
uma sociedade na qual predomina a desigualdade e a opressão social. A vida
dos marginalizados é um verdadeiro inferno social. Essa é a vida da maioria das
pessoas que ganha entre zero e dois salários mínimos em termos de renda
comparativa.
A grande questão que se impõe aqui é: a quem serve a existência secular de
pessoas fragilizadas e vulnerabilizadas em todos os sentidos? É irracional evitar
que certa classe de pessoas possa ter condições de vida mínimas com alguma
dignidade. Insegurança pública de todos e pobreza da maioria são as
consequências. Além do prazer na exploração e na humilhação dessa classe,
quase toda preta e mestiça, existem outras razões: como a necessidade da elite e
da classe média em criarem o criminoso para melhor estigmatizá-lo. Se for
preto e pobre, é bandido – simples assim. Em uma sociedade tão desigual,
pode-se, a partir disso, justificar todo o esquema injusto ao conferir a culpa à
própria vítima e legitimar o acesso diferencial das classes do privilégio aos
capitais econômico, cultural e social. Quando se culpa a vítima, a real causa da
opressão social e econômica – o saque promovido pela elite contra a população
– se torna invisível, e se legitima o arranjo injusto e elitista. De quebra, como
vimos acima, ainda se criminaliza a participação popular dos pobres e
marginalizados, tornando a política e o acesso ao Estado monopólios da elite.
F. Rössler
F. Rössler é da linhagem dos primeiros descendentes de alemães, vindos do
Norte do Rio Grande do Sul, que colonizaram o oeste catarinense. Essa região
viveu a Guerra do Contestado – que envolvia a eliminação dos antigos
habitantes, indígenas e “bugres”, das terras às margens da Estrada de Ferro São
Paulo-Rio Grande, doadas pelo governo ao milionário americano Percival
Farquhar, como compensação pela construção da ferrovia. Essas terras, que
possuíam ocupação desde o século XVIII, tinham milhares de posseiros que
cultivavam erva-mate e gado em cultura extensiva, os quais foram
violentamente alijados de suas terras. Ao classificar as terras como devolutas,
como se não fossem habitadas por ninguém, o próprio governo federal criou as
precondições para o conflito.
A família de F. Rössler chegou ao local pouco depois da companhia
colonizadora formada para desocupar a região – e que, inclusive, já havia
“limpado a área” (na própria expressão de F. Rössler sobre o assassinato e
expulsão dos indígenas e bugres que habitavam o local). F. Rössler conhece
bem a história da colonização, e me diz que o massacre dos indígenas e bugres
foi uma necessidade para limpar a terra e dá-la aos novos donos. Assim como
os governo federal e estadual, a empresa de colonização comandada por
brasileiros de origem italiana considerava os antigos habitantes animais, e,
como dizia o avô de F. Rössler nas rodas de família: “O bugre é um bicho, e
bicho a gente mata”.
F. Rössler é brasileiro de três gerações, mas se declara “alemão”. Na realidade,
seu sobrenome alemão é da mãe, e não do pai descendente de poloneses. Uma
nítida escolha racial e de pureza étnica. Ele e todo o ramo da família da mãe
ainda se veem como alemães, apesar de estarem no país há mais de um século.
Seu avô, citado acima, foi um fervoroso simpatizante do nazismo no Brasil, e F.
Rössler guarda várias fotos dessa época. Essa é uma história contada, ainda
hoje, com orgulho.
F. Rössler é subgerente de uma loja de materiais de construção em
Concórdia, uma cidade marcada pelo domínio da empresa Sadia. Ele ganha 5
mil reais como subgerente da loja, mas assume posturas de quem pertence às
classes do privilégio econômico ou cultural. A loja de materiais de construção
pertence a dois tios, e todos moram nos três andares de cima da loja, que fica
no andar térreo. F. Rössler mora em um quarto e sala no primeiro andar junto
com primos solteiros, cada um ocupando uma unidade. Os dois andares de
cima são ocupados pela família de cada um dos tios donos da loja.
Os primos solteiros são jovens e fazem faculdade – coisa que F. Rössler não
fez. Com 18 anos, tentou universidades públicas de cidades vizinhas, mas não
conseguiu passar. As universidades privadas eram muito caras para ele. F.
Rössler “racionaliza” sua posição de desvantagem objetiva pela falta de estudos
dizendo que a “vida prática” no trabalho ajuda muito mais do que os estudos
na universidade. Ele queria ser administrador de empresas, mas tinha péssimas
notas em matemática e isso condicionou seu insucesso nas provas de admissão.
Tendo entrevistado F. Rössler duas vezes no seu ambiente de trabalho, pude
testemunhar coisas interessantes. A caixa da loja era chamada por ele de
“bugra”, como os descendentes de indígena são conhecidos no Sul do Brasil –
embora dito sem agressividade explícita, quase como se fosse carinhoso, na
verdade passava um tom de desprezo evidente. Tive oportunidade de perguntar
à caixa, que se chamava Clarice, se o apelido lhe incomodava, ao que ela me
respondeu: “Nem me incomodo mais com isso. É como todo mundo me
chama por aqui”.
No dia da primeira entrevista, soube, por intermédio de Clarice, que F.
Rössler havia tido problemas também com um faxineiro haitiano (uma espécie
de encarregado geral de limpeza da loja). Segundo ela, F. Rössler dava broncas e
gritava com o rapaz todos os dias. Até que o rapaz apareceu acompanhado de
amigos, que cercaram F. Rössler e quase bateram nele. O faxineiro terminou
despedido por justa causa. Clarice explica que os episódios constantes de
racismo contra os haitianos em Concórdia – que vieram para cobrir a falta de
mão de obra na cidade – fizeram com que criassem grupos de homens para se
defender.
Quando perguntei a F. Rössler sobre o fato, ele me respondeu do seguinte
modo: “Eu não sou racista, tenho amigos e empregados negros. Agora, que os
caras são lentos e sem disciplina, isso é inegável. A nossa tradição60 é a do
trabalho e da disciplina. O cara não é pior porque é negro, ele simplesmente
teve outra cultura e assimilou isso.”
“Como assim ‘cultura’”, perguntei. “Cultura é o que se aprende em casa, e eu
aprendi a ser trabalhador e disciplinado. A cultura negra é a da festa, da dança,
da preguiça e do barulho, não do trabalho”, F. Rössler define. Eu aproveito e
pergunto quais são os valores principais dessa tradição cultural a que ele se
refere. Ele me diz que são os valores da honestidade, do trabalho e da família. E
acrescenta: “Onde quer que se tenha essas três coisas juntas, o lugar pode ser
um país ou uma cidade,� ele vai se desenvolver”, e cita o caso da própria
cidade de Concórdia como comprovação empírica do que afirma: “A cidade é
pequena, mas é limpa e bem-cuidada, e a economia vai de vento em popa.”
Em seguida, perguntei por que as condições de vida dos negros e dos
nordestinos são tão precárias e desiguais. O “culturalismo” de F. Rössler se
reafirma: “A cultura do negro, basta ver o carioca e o baiano, é mais de se
divertir e não do trabalho. Isso é bom para o carnaval, mas não para a vida do
dia a dia. Depois começa a fazer filho e aumentar a schwarzelei [‘negrada’, em
alemão da região] para conseguir uma ‘bolsa preguiça’ do governo.” No
entanto, curiosamente, F. Rössler acha que o negro pode ser ensinado a
trabalhar, coisa que ele não acredita ser possível para aqueles sobre os quais
deixa recair seu julgamento mais severo: os nordestinos e os “bugres”.
Para F. Rössler, os nordestinos e os “bugres” – odiado há séculos na região do
oeste catarinense – são a “praga” do Brasil.
Não me entenda mal, eu já fui ao Nordeste de férias e sempre fui bem tratado. O
problema não é esse. O que me dá raiva é o hábito das pessoas de lá de viver à custa
dos outros. O Sul e o Sudeste produzem as riquezas – isso todo mundo sabe – e os
nordestinos se aproveitam de uma riqueza que eles não contribuíram. Tudo para
viver à custa do esforço do trabalho dos outros. Os “nordestino” só fazem filho para
poder receber do governo, não tem o sentido de família, me entende?
“Você fala do ‘Bolsa Família’”?, perguntei.
Sim, claro, mas não é só isso. Por que alguns têm tanto privilégio e outros não?
Cadê a recompensa para quem trabalha duro e não tem a ajuda de ninguém? Não
me entenda mal. Não tenho nada contra o povo de lá. Como disse, acho bom ir lá
de férias, o povo é simpático, sabe receber o forasteiro. Mas eu queria poder entrar
um dia no Nordeste de passaporte, entende?
“Como qualquer europeu?”, perguntei. “Sim, como qualquer europeu ou
estrangeiro”, F. Rössler responde, de pronto.
Você acha que as escolhas políticas dos nordestinos prejudicam o resto do
Brasil?
É que lá tem a coisa de obedecer ao político, entende? Se a pessoa te dá uma cesta
básica e uma prótese dentária, você vota nela seja lá quem for. Quando digo que
quero passaporte para ir ao Nordeste, é que quero aproveitar as coisas boas de lá,
como as comidas e as praias, sem que seja o nordestino quem diga quem vai
comandar o país, entende?
Você está se referindo ao voto dos nordestinos nas últimas eleições que
elegeram o Lula?
Não só nas últimas, mas em todas as eleições que me lembro. É só dar alguma
vantagem para eles que eles passam a te seguir como um cãozinho. Foi isso que o
Lula fez. Como nordestino, ele sabia como levar o povo no bico. Mas eles não
pensam no país, só pensam neles próprios. É como esses “bugre” aqui da região, de
vez em quando você vê um bugre de camionete nova, comprada com financiamento
que deveria ir para a criação de porco e frango. É por conta disso que o país não vai
para frente como os outros. Tem sempre o camarada do almoço grátis para
atrapalhar.
Você já teve problemas com os “bugres”?
Sim, já tive. Já quiseram me obrigar a botar meus filhos na escola junto com “os
filho de bugre”, e nos organizamos contra isso. Não é o tipo de influência que quero
para meus filhos, e um pai tem o direito e o dever de proteger sua família. O PT
governou Concórdia de 2001 a 2016 e só fez ruindade, como a escola misturada
por pura demagogia. Para mim, o maior problema é o PT e a demagogia que eles
fazem. Aqui na minha casa ninguém usa camisa vermelha. Nem na loja também,
funcionário meu não usa vermelho. Se usar, eu demito.
F. Rössler, você votou no Bolsonaro?
Sim, nas duas eleições. Eu não digo que ele é perfeito. Ele errou na pandemia, por
exemplo. Eu mesmo perdi amigos e familiares quando ficou todo mundo sem
vacina. Tive covid e passei três dias muito mal, quase fui entubado. Quando pude,
me vacinei, ao contrário do povo mais jovem daqui, que não se vacinou. Então não
acho que tenha sido tudo bom. Mas ele é diferente dos outros políticos. Pode errar, é
verdade, mas é sincero e diz tudo o que pensa, e não tem medo de apontar o que
está errado. Agora, que tem uma campanha da mídia contra ele,�isso tem. E isso é
porque ele toca nas coisas que ninguém quer falar por medo. Ele é político diferente
dos outros, e é isso que gosto nele. Ele fala como a gente aqui. Acho ele parecido com
a gente. É um dos nossos. E tem a defesa da família, que é o principal. E não sou só
eu que me identifico com ele, 90% da comunidade daqui é Bolsonaro.
Você é religioso?
Eu sou da Igreja Batista. Meus avós são luteranos, mas hoje em dia ninguém mais
jovem aqui é luterano. Aqui é tudo pentecostal, batista ou Universal. Os luteranos
que restaram têm todos mais de 70 anos. O que me importa em uma igreja é a
proteção da família e a certeza de que vamos passar nossos valores para os nossos
filhos.
Uma última pergunta, F. Rössler. Quando entrei em Concórdia, vi uma grande
placa na entrada da cidade que dizia: “Bolsonaro não rouba nem deixa roubar.”
Você acredita nessa frase?
Olha, acredito, sim. Ninguém pode negar a roubalheira do PT no governo. Todo
mundo viu e muitos parecem ter esquecido, mas eu não esqueci. Agora, para criar
confusão, a mídia quer fazer todo mundo acreditar que Bolsonaro também é
corrupto. Mas nada ficou provado contra ele como ficou provado com o Lula e o PT.
É sempre assim, quem tenta mudar o país para melhor vai receber campanha da
imprensa contra, vai ter juiz contra para que tudo continue como sempre foi. Eu
acho que tem uma armação da imprensa e do STF para desmoralizar o Bolsonaro.
Marcelo
Marcelo é gaúcho e morador de Porto Alegre. Marcelo é branco, forte e
musculoso, alto e com rosto de traços finos. Marcelo, ao contrário da maioria
das pessoas analisadas aqui, nasceu na classe média estabelecida, ou seja, na
classe média “real” – e não no faz de conta da “nova classe média” –, tendo a
sua mãe um bom salário como oficial de justiça do Rio Grande do Sul.
Embora nosso tema seja em especial os brancos pobres, as trajetórias de
decadência social, como a de Marcelo, que implicam a impossibilidade de
reproduzir a trajetória dos pais e da geração anterior, também nos interessam.
Elas também provocam ressentimentos, raivas e desorientações que são
importantes para nosso tema neste livro. Afinal, apesar da origem distinta, essas
pessoas agora ocupam um lugar muito próximo no espaço social em relação aos
pobres remediados que estamos estudando.
Marcelo cresceu sob os cuidados da mãe, que se separou do pai muito cedo.
Ainda que, hoje em dia, Marcelo se encontre com o pai de vez em quando, ele
foi ausente na educação do filho. Como filho único, Marcelo teve todos os
cuidados de sua mãe, inclusive com acesso a boas escolas particulares de Porto
Alegre. Nunca foi um bom aluno, mas se destacava nos esportes, sobretudo no
futebol, tendo jogado no time juvenil do Grêmio. Seu desejo juvenil de ser
jogador de futebol não se concretizou, já que foi reprovado no funil do Grêmio
para a profissionalização. Sua opção seriam os times menores do interior – de
quem teve convites que, no entanto, não o animaram.
Depois de reprovado nos vestibulares para direito nas universidades públicas
de Porto Alegre, Marcelo foi aceito em uma universidade privada, a PUC de
Porto Alegre. Marcelo levou a universidade do mesmo modo como levou toda
sua vida escolar anterior: estudava apenas o suficiente para passar. Ainda assim,
teve que repetir matérias, o que fez seu curso demorar mais do que o esperado.
Aos 23 anos, quando termina a faculdade, Marcelo se dedica a um mestrado
em economia, agora já trabalhando para ajudar a pagar a universidade. É nessa
época que surge a ideia de montar um bar junto com outro amigo. A coisa não
vai para a frente, e depois de dois anos de muita dificuldade, os sócios decidem
fechar o negócio.
Aos 25, com mestrado concluído, mas sem inserção no mercado, Marcelo
tenta realizar seu antigo sonho de entrar para a Polícia Federal por meio de
concurso público. Importante ressaltar que a sua mãe lhe garantia o privilégio
máximo para qualquer jovem de classe média no Brasil: Marcelo podia apenas
estudar sem se preocupar com a subsistência. Depois de várias tentativas sem
sucesso, Marcelo decide fazer concurso para agente penitenciário, e é aprovado.
Não era o seu sonho, mas pelo menos tinha um emprego. Isso o permitiu
alugar um pequeno apartamento com sua noiva, Donatella Gimenez, que faz
pós-graduação em direito e é estagiária em um grande escritório, ganhando
1.500 reais por mês.
Marcelo me confidenciou que, somando todas as horas extras que faz, ganha
cerca de 4 mil reais mensais como agente penitenciário, o que faz dele um
pobre remediado no sentido que estamos desenvolvendo neste livro. Seu capital
econômico e cultural o exclui da classe média branca estabelecida, à qual a sua
mãe pertencia. Ou seja, sua realidade o insere em uma trajetória social de
decadência – destino de muitos brancos pobres no Sul do país. O caso de
Marcelo não é isolado. Ele me disse que a maioria de seus amigos não
conseguiu, assim como ele, reproduzir as trajetórias sociais mais bem-sucedidas
da geração anterior.
Marcelo se envergonha do seu emprego atual e não desiste de seu sonho de se
tornar policial federal. No entanto, as reprovações se repetem já há vários anos.
Ele começa a se acostumar com seu destino. Ele me disse, em tom não muito
convincente, que se o emprego atual é o emprego de sua vida, então “que seja”.
Mas a mãe, segundo ele, não o deixa “desistir de seus sonhos”. A mãe é a
grande figura de inspiração para o filho. Aposentada aos 50 anos, possui um
bom rendimento que a permite “viajar o mundo” e pôr suas histórias e suas
fotos em um grupo no Instagram voltado a dicas de viagem. Esse grupo é o
interesse principal da mãe.
Quando minha conversa com Marcelo – depois da confiança gerada no
diálogo introdutório sobre as generalidades da vida familiar e escolar – passa ao
tema da política e dos preconceitos sociais, ele não esconde suas opiniões sobre
nenhum assunto. Ao tocar no tema do racismo, sua resposta foi muito
interessante. Marcelo me disse que ele, ao contrário da mãe, que é abertamente
racista – tendo dissolvido a relação com uma amiga querida de muito tempo
depois que ela se casou com um homem negro –, não se considera racista.
Ainda que ele concorde com a mãe quando ela afirma que: “A polícia tem que
subir o morro matando todo mundo, mesmo”, Marcelo não percebe o racismo
de raça e de classe que esse tipo de fala envolve. Para ele, se não houver
referência explícita à negritude das pessoas atingidas, não significa racismo.
Vemos aqui a eficácia das máscaras que o racismo “racial” assume para
continuar vivo. O bordão “bandido bom é bandido morto” é o substituto do
“negro bom é negro morto”.
Para Marcelo, o Brasil não é um país racista (mesmo reconhecendo o racismo
da mãe). Como prova, ele me relata que, em uma estadia no Rio de Janeiro
visitando um familiar, foi correr no parque Guinle – um conhecido parque em
Laranjeiras – e viu um homem negro “cagando”, e se surpreendeu por ninguém
ter dado uma surra no sujeito. Ele explica que, em Porto Alegre, o homem
negro teria apanhado muito. Para ele, isso demonstrou a ausência de racismo
no país.
Na verdade, para Marcelo, o racismo é científico. Os brancos têm uma curva
de inteligência maior do que a dos negros, assim como os amarelos a teriam
maior do que a dos brancos, mas os negros são melhores no esporte e em tudo
o que se refere a atletismo. É como se cada “raça” tivesse pontos positivos e
negativos, sem que isso signifique racismo contra uma raça específica. Marcelo
esquece, obviamente, que as características do branco – e do amarelo, para ele
– são virtudes do “espírito”, conforme definido por Immanuel Kant:
inteligência, moralidade e capacidade estética que nos aproxima do divino na
natureza humana. Ao negro, sobraria excelência nos atributos corporais –
mostrando sua animalização, já que o corpo, e suas emoções e virtudes
ambíguas, nos aproximam do reino animal por oposição ao “divino”. E, como
já exposto neste livro, destituir alguém de sua humanidade é a operação
fundamental de todo tipo de racismo.
Esse tipo de esquema de explicação perpassa toda a visão de mundo de
Marcelo. Ele é, por exemplo, contra o voto universal, por considerar que as
pessoas sem estudo não entendem de política – elas ou não deveriam votar, ou
seus votos deveriam valer menos. Ele me pergunta: “Você deixaria que alguém
que não fosse médico te operasse? É a mesma coisa no caso do voto de quem
não tem formação.” Em seguida, olha para mim com cara de vitória, como se
acabasse de formular um argumento definitivo e acima de qualquer dúvida.
Sua concepção de sociedade é meritocrática e assume que o mundo atual é o
melhor dos mundos possíveis. Para ele, o capitalismo é a repetição mais perfeita
da ordem das coisas. “É assim que as pessoas são”, diz, referindo-se ao egoísmo,
que seria o dado mais importante do progresso social na medida em que
“impulsiona as pessoas para frente”. E completa: “Quem mora na rua é porque
quer.” Afinal, para ele, quem quiser – de verdade – melhorar de vida, consegue.
Como exemplo, cita o caso de uma faxineira conhecida que, segundo ele, é
quem alimenta os filhos e compra, inclusive, móveis novos para a casinha
modesta.
Quando perguntei se tinha raiva de pobre, ele me respondeu que respeita o
pobre que se esforça a ponto de subir na vida: “Quem continua pobre é porque
é preguiçoso e não gosta de trabalho.” E logo lança sua crítica às cotas em
universidade. Para Marcelo, as cotas não são inclusivas, uma vez que discrimina
o branco pobre. Quando fiz referência às cotas sociais por escola pública, que
abrangeria todas as “raças”, ele me retrucou dizendo que fora do Rio Grande
do Sul existem poucos brancos nas escolas públicas – a maioria é negra ou
mestiça, o que, em sua visão, corrobora seu argumento de que cotas são sempre
raciais e injustas.
Apesar de já ter recorrido ao SUS várias vezes, Marcelo é também defensor do
Estado mínimo. Como estudou economia, afirma: “O mercado é melhor
regulador da vida social porque sempre privilegia quem merece.” Para ele, o
Estado entra sempre para atrapalhar e evitar a livre competição de todos contra
todos, prometendo “almoço de graça” para alguns escolhidos, em especial os
pobres, sempre com fins eleitoreiros e políticos.
Como a sua mãe, Marcelo primeiro tendeu a votar, em 2018, em Amoedo –
o político até hoje mais admirado por ela. Os dois se encantaram com a “nova
política” e com as teses hiperliberais. No entanto, logo depois da “facada”,
decidiu apoiar Bolsonaro e se manteve fiel até hoje, sem jamais titubear. Não
acredita na imprensa “elitista” que fala mal de Bolsonaro e, como pude
observar no dia da entrevista, a TV de casa está sempre ligada na Jovem Pan.
A conversão ao bolsonarismo se deu a partir da percepção de que Bolsonaro
encarnaria duas coisas importantes para ele: o liberalismo sem peias,
simbolizado na escolha por Paulo Guedes e o discurso do armamento da
população. De início, como me falou, tinha desconfiança de Bolsonaro por esse
ser “estatista”, já tendo, no passado, votado contra a privatização da Petrobrás.
Mas o quadro de guerra política de 2018 o fez reconsiderar tudo a ponto de se
tornar um apoiador acrítico, racionalizando contrabando de joias e
“rachadinhas”. Para Marcelo, existe um plano articulado pela imprensa para
manchar a imagem da família Bolsonaro.
Embora não seja evangélico, admira a bandeira moralista, como, por
exemplo, no caso do aborto. Esse ponto é interessantíssimo, já que o próprio
Marcelo me confessa que já havia feito, ele próprio, aborto em três mulheres
que haviam engravidado dele. Segundo ele, basta dar dois comprimidos: um
pela boca e o outro pelo ânus. Sua explicação da óbvia contradição não deixa
de ser reveladora: para Marcelo, o que se deve evitar é a existência de uma lei
permitindo o aborto, pois isso apenas aumentaria a sua prática. Afinal, quem
precisar pode fazer em casa “com segurança”.
Mas o ponto alto da admiração por Bolsonaro – que se tornou incondicional
– é mesmo o discurso “bandido bom é bandido morto”. Marcelo só anda
armado fora de casa. Em casa, guarda a arma em cima da mesa de TV: um
revólver prateado, de grosso calibre, que nos observava atento durante toda a
nossa conversa. Apesar de gentil e educado comigo, a figura de Marcelo é
assustadora de tão forte e musculosa. E ele não hesita em usar da violência
quando acha necessário. No dia da segunda entrevista, realizada no final do dia,
ele me contou que tinha dado um “tapão” na cara de um estuprador algemado,
que teria rido para ele. A pancada nos presos é parte da vida diária, Marcelo diz
que é a única maneira de se lidar com esse tipo de gente e ser respeitado.
Ainda que não goste do serviço e reclame do salário, ele tem parceiros no
trabalho. Toda semana, no seu dia de plantão, faz um churrasco com os amigos
agentes penitenciários na cadeia. Eles levam a carne, o equipamento e fazem
uma churrascada a noite toda. Ele me conta aos risos, como se fosse muito
engraçado, que, quando o cheiro da carne sobe para as galerias onde estão os
presos – muitos com fome e sem comer carne há dias ou semanas –, a cadeia
toda é tomada por gritos, protestos e revolta geral. É uma tortura explícita que
o grupo de amigos faz de bom grado.
Quando o barulho da indignação fica muito alto e dura muito tempo, os
agentes jogam mangueira de água gelada nos presos, mesmo no frio inverno
porto alegrense. Apesar de tudo, o churrasco semanal noturno é uma grande
alegria e motivo de comemoração. Em meio a gritos lancinantes, o churrasco e
as risadas entre os amigos duravam horas e, às vezes, a noite toda. Como não
acredita na regeneração dos presos – para ele, todos saem piores –, Marcelo
considera que esse tipo de punição, como agressões violentas a presos indefesos
ou a tortura da carne sendo assada lentamente, seria o único meio de fazê-los
pagar pelo mal que fizeram. Ele me deu a impressão de que, se morasse no Rio
de Janeiro, seria um miliciano assassino sem sentimento de culpa.
R. Kühn
R. Kühn é filha mestiça de pai alemão e de mãe brasileira, negra e baiana de
família pobre. A família do pai era altamente preconceituosa. A avó dizia
sempre: “Ainda bem que os filhos do pai descendente de alemães nasceram
brancos, apesar da mãe negra.” A exceção foi R. Kühn, que seria percebida
como uma “mulata clara” fora do Sul do país.
Como R. Kühn me confirma, ela é percebida como branca em todo o Brasil,
exceto no Sul, afinal possui cabelos longos e lisos, que é o dado mais
importante para a percepção da branquitude no país. Ela sentiu preconceito na
escola o tempo todo. Como era tudo em tom de brincadeira, ficava difícil se
defender, e a única saída possível era fazer de conta que não era sério. Ela
procurava aprender a “levar na brincadeira”.
Quando ela se aproximava, os amiguinhos diziam coisas como: “Lá vem a
escuridão.” Como havia muitos descendentes de italianos na escola, os meninos
cantavam uma música em italiano que, em tradução para o português, dizia:
“Cão, corvo, sapo e negro é tudo a mesma coisa.” Se havia uma pequena
disputa ou discussão, então a coisa ficava mais séria e agressiva. Era comum
ouvir falas do gênero: “Volta para a senzala, negra do diabo.”
A avó paterna, figura proeminente na família, não a tratava mal, mas a
tratava de modo diferente dos netos brancos “puro sangue”. Tudo isso fez com
que R. Kühn se sentisse “um estranho no ninho” durante toda a vida. Parecia
que a vida não havia sido feita para ela. O fato de ser negra, mulher e ainda
namorar mulheres em uma cidade pequena, fez com que ela adotasse uma
posição defensiva e reativa a vida inteira. R. Kühn via no estudo uma maneira
de ficar livre disso tudo. Sempre foi boa aluna, conseguiu se formar em
Jornalismo e seguir a profissão. Ela me diz: “Sou uma das únicas mulheres
negras a trabalhar em um jornal importante de Chapecó.” Ela reflete sobre a
forte onda de preconceito que existe na cidade e no Estado.
Não é só contra o negro, o pessoal do Nordeste também é visto como preguiçoso e
aproveitador. Com os negros é pior. Como jornalista, eu tive que cobrir uma
reportagem sobre os haitianos que haviam sido convidados a trabalhar aqui –
existem milhares de vagas abertas em toda a região, que tem pleno emprego, daí a
necessidade de importar trabalhadores. E eles, no começo, me disseram que
simplesmente não entendiam os maus-tratos da população e da polícia contra eles.
Era uma realidade que eles não tinham no Haiti.
Mas o preconceito “regional” contra os nordestinos também é muito forte. É como
se a culpa de tudo fosse do nordestino que não trabalha e é sustentado pelo trabalho
do Sul. Vamos separar o Sul do resto do Brasil, porque é o Sul quem mantém o país
dos preguiçosos – Chapecó, ao contrário, assim como Santa Catarina, é a capital do
trabalho!
Mas o pior, para R. Kühn, é o preconceito arraigado contra ela na própria
família: “Por conta da minha opção de fumar um baseadinho, meus tios já
invadiram a minha casa e me bateram. Mas veja só: todo mundo sabia que
meus tios haviam sido viciados em cocaína por muito tempo. Por que a
perseguição comigo?”
Ela não tem dúvida de que a razão profunda é ela ser “mestiça” e lésbica.
Existem dois tios, em especial, que quando se embebedam – o que é comum –
agridem R. Kühn verbalmente e, em duas ocasiões, agrediram fisicamente.
Uma das vezes ela foi empurrada de uma escada e caiu, se machucando de
forma séria. Já levou tapas e até uma tentativa de estrangulamento de um dos
tios. Ela me conta que enquanto um tio estava apertando seu pescoço na
tentativa de estrangulamento, ela pedia, em desespero, ajuda ao outro tio – que
nada fazia, apenas assistia e aprovava. Foi necessário que viessem as irmãs e tias,
que ouviram a briga e os gritos, para tirarem o tio de cima dela. O motivo foi o
cheiro de um baseado que ela acendeu em casa para relaxar.
Receber tapas na cara dos tios era comum a cada briga. Como todos
moravam em um único prédio em cima da casa de ferragens da família, o
convívio era íntimo. A família inteira morava num prédio de quatro andares
com a loja do avô no térreo. Um esquema muito semelhante ao de Felipe em
Concórdia, que já examinamos algumas páginas antes. A empresa familiar no
térreo era uma loja de secos e molhados, e depois virou uma casa que vende
ferramentas. Todos trabalhavam com o avô. Com o tempo, só a mãe de R.
Kühn permaneceu, e os tios abririam lojas próprias.
Para que as agressões ocorressem, bastava que R. Kühn pegasse o carro do avô
– que ninguém mais usava, de tão velho – para resolver alguma pendência.
Então os tios a xingavam de “aproveitadora de idoso”, embora o próprio avô
permitisse que a neta usasse o carro. R. Kühn me conta que, no contexto da
família, ela se sentia de direita porque não queria ser excluída. A pressão
familiar era enorme nesse sentido. Mas a partir do impeachment de Dilma, que
R. Kühn achou vergonhoso, começou a mudar e a articular uma nova
identidade política. Isso a ajudou também a assumir sua sexualidade, já que
para a agradar a família havia tido namorados na adolescência. Tendo se
tornado de “esquerda”, lésbica e “maconheira”, e já sendo “negra”, morar com a
família ficou insuportável.
R. Kühn deixou sua pequena cidade no oeste catarinense há alguns anos, e
hoje mora em Chapecó, onde divide um pequeno apartamento de três quartos
com duas amigas. As duas cidades, como toda a região, têm um ambiente
social e político muito semelhante. Em Santa Catarina, como no Sul inteiro,
diz-se que eles são imigrantes – ou seja, europeus e não brasileiros. Para R.
Kühn, essa crença é a mais importante fonte de orgulho das pessoas em todo o
Sul do país: “Já andei por vários lugares do Sul, como o norte do Rio Grande
do Sul e o interior do Paraná, na minha atividade de jornalista. E o ambiente é
o mesmo, com poucas mudanças. Aqui é difícil achar uma pessoa que pense
diferente”. Mas elas existem, a exemplo do seu atual chefe no jornal. Ele não é
de esquerda, mas não admite qualquer comentário racista ou sexista no
ambiente de trabalho. E foi a possibilidade de trabalhar com ele o principal
motivo dela ter ido morar em Chapecó.
A bisavó “alemã” de R. Kühn, uma senhora ainda lúcida e rija de 94 anos, foi
visitá-la um dia, e saiu dizendo que a casa de R. Kühn “parecia casa de negro”,
porque o espaço estava desarrumado e com roupas jogadas em muitos lugares.
R. Kühn, no entanto, percebe claramente o que está por trás do racismo: “O
discurso racista empodera as pessoas, faz elas sentirem que são melhores do que
outras.”
Um dos seus tios é agora vereador pelo PL em Concórdia, o partido que, com
o PSDB, controla a cidade. O discurso do tio tem como objetivo criar o que R.
Kühn chama de “pânico moral”. Ele cria pânico moral para culpar nordestinos,
por exemplo, por badernas à noite no final do turno do frigorífico da BRF às 3h
da manhã. Como alguns vão tomar uma cerveja com os colegas antes de irem
dormir, o tio apregoa que a cidade está à mercê de “baderneiros”. As outras
vítimas são os haitianos, que foram chamados para trabalhar numa cidade com
pleno emprego e falta de mão de obra. As terceiras vítimas são os moradores de
rua, um fenômeno recente na cidade. Para o tio, não pode ter morador de rua
nem pessoas pedindo no sinal. É preciso “limpar” a cidade. Segundo R. Kühn,
a articulação PL e PSDB, atendendo a essa forma de apelo, destruiu o que havia
sido feito pelo PT até 2016 – como escolas, postos de saúde e parques nas
regiões carentes. A parte europeia da cidade aprovou todo esse desmonte.
Matheus
Matheus é advogado e tem trinta anos. Quando no começo da entrevista eu
contei a ele que também estudei direito, mas que nunca advoguei, ele replicou:
“É, tem advogado que foge da raia!”, como se fosse uma questão de honra e
não de escolha. Matheus nasceu em Santa Cruz, no Rio Grande do Sul, filho
de uma pedagoga e de um veterinário tardio, que se formou mais tarde. A vida
da família foi de muito trabalho e pouco dinheiro. Mas, ainda que com
sacrifícios, os pais fizeram de tudo para Matheus estudar em escola particular e
ter uma boa formação.
A história familiar é marcada pela carreira do pai como funcionário de
escritório da BRF. Matheus morou em Santa Catarina, Goiás e Mato Grosso.
Ele me conta que esse contato próximo com o agronegócio durante seus anos
de formação forjou muito de suas convicções políticas atuais – Matheus afirma
que o agronegócio é todo de extrema direita: “Isso me influenciou, mas não fui
tanto por esse lado mais extremado. Eu sou de centro direita hoje, e liberal.
Meu pai já é mais de acordo com o ambiente de trabalho dele.”
Como o pai pagava com esforço sua escola particular, ele era muito exigente
com Matheus e não queria que ele se divertisse quando adolescente. Esse
sempre foi um ponto de discordância com o pai. Mas o maior problema foi o
fato de Matheus ter descoberto, no final da adolescência, sua
homossexualidade. O pai não se conformou por um bom tempo com a
situação, e ponderava com o filho como isso podia pôr todos seus planos de
uma carreira a perder. A mãe, de início, reagiu como o pai, mas logo ficou ao
lado do filho, tentando fazer o meio-campo com o marido para aceitar o filho.
Ele sempre foi mais próximo da mãe do que do pai. Hoje, no entanto, ele se
hospeda com o namorado na casa do pai, sem problema algum.
Como sempre quis fazer direito, Matheus tentou e conseguiu um lugar na
Universidade Federal de Pelotas, no Rio Grande do Sul. Matheus achou a
universidade pública muito desorganizada e com uma turma heterogênea que
vinha não apenas do interior do estado e da região Sul, mas também de todo
Brasil. Já era o tempo do Enem e das cotas sociais e raciais. Ao contrário das
escolas particulares em que estudou, Matheus reclama da falta de material para
os estudantes e dos períodos longos de greve que marcaram o período no qual
ele estudou lá. Isso vai reforçar suas ideias e concepções sobre a ineficiência,
para ele inerente, de qualquer serviço público.
Um outro ponto que o incomodava era a discrepância de suas posições
políticas com a dos colegas vindos de outros lugares do Brasil. Eram os agitados
anos pré-impeachment – estudou na universidade de 2012 a 2016 –, e ele se
torna um ferrenho opositor do PT e um apoiador de primeira hora da Lava
Jato. A maior parte de seus colegas, no entanto, estavam no outro espectro
político, e essa também foi uma experiência formadora para Matheus.
A principal frustração de Matheus foi a impossibilidade de cursar uma
universidade privada, por falta de dinheiro. Seu desejo era sair de Pelotas para
estudar direito empresarial na PUC-RS, que tinha bons professores na área. Seu
objetivo era ser advogado de empresas em processos trabalhistas contra
empregados. Teve que continuar em meio a “bagunça”, como ele diz, da
universidade pública em Pelotas.
Matheus estagiou em vários escritórios e se dedicou mais ao trabalho do que
no estudo na universidade. Para ele, isso o ajudou a ter uma visão prática da
advocacia. O estágio cobria a maior parte de suas despesas em Pelotas e o
permitiu chegar ao final do curso em 2016. A dedicação de Matheus ao
trabalho de estagiário se devia também ao fato dele procurar um escritório que
pudesse contratá-lo depois de formado. Apesar das boas experiências e de sua
dedicação, isso não aconteceu. Ele me explica o motivo: “Nos escritórios
grandes, conta muito mais as relações familiares e com gente importante do
que o trabalho que você faz.” Ele trabalhava em um dos poucos escritórios
grandes de Pelotas e, na hora que se formou, foi preterido por um filho de
desembargador que caiu de “paraquedas”, como ele me disse, no escritório
onde nunca tinha pisado o pé.
Foi aí que decidiu fazer o concurso para técnico judiciário em Curitiba, onde
mora hoje. Matheus ganha cerca de 7 mil reais líquidos na vara em que
trabalha. Continua sonhando em trabalhar como advogado de empresas, mas
ele reconhece que, com o tempo, isso se torna cada vez mais difícil. A falta de
relações sociais importantes – uma rede de contatos, crucial no campo da
advocacia – é percebida por Matheus como o principal entrave para a não
realização, até agora, de seu sonho de trabalhar num grande escritório de
advocacia empresarial.
A paixão de Matheus pelo direito empresarial tem uma causa política.
Matheus se define como liberal e acredita que a empresa é o modelo ideal para
qualquer associação humana. Ele me diz que um país é tanto mais adiantado
quanto mais se pareça com uma empresa – como ele acredita ser o caso dos
Estados unidos. Isso parece condicionar o seu antipetismo na política, já que o
Estado inchado seria o maior problema que enfrentamos.
Para ele, em qualquer área da vida social, a iniciativa privada é mais eficiente.
Por conta disso, quanto menos Estado melhor. Estado significa, para Matheus,
ineficiência e corrupção. Daí seu apoio à Lava Jato e ao impeachment de
Dilma, em 2016. Pergunto se ele acha a corrupção o maior problema do Brasil,
e ele me responde que sim, que foi algo que sempre existiu no país desde o
começo da colonização, como se estivesse no nosso DNA, e acrescenta: “Hoje
em dia, nós temos um sistema político que é muito sujo.”
Como a maioria do povo brasileiro até hoje, Matheus acha que a corrupção é
algo inerente apenas à política, e nunca aos negócios do mercado. Quando
pergunto sobre as malas de dinheiro da JBS para Aécio e Temer, isso não o faz
mudar de opinião.
O problema é sempre do político, porque se ele for honesto não vai ter a falcatrua.
Todo mundo tem que ser honesto, mas especialmente o político, porque responde
pelos muitos que votaram nele e mexe com o dinheiro público. O empresário,
mesmo corrupto, faz isso com o próprio dinheiro e não com dinheiro alheio.
Apesar de perceber o Estado como a origem de todos os males, Matheus não
advoga em favor da simples eliminação do Estado. Ele considera que, em países
como o Brasil,61 é preciso haver um pouco de Estado para combater a miséria.
Eu não me importo com a desigualdade, já que ela é inerente a toda sociedade, mas
sim com a miséria, é ela que deve ser combatida. Os Estados Unidos são um país
desigual, mas isso não tem problema, porque os pobres de lá não são miseráveis
como os daqui.
Aproveito a deixa e pergunto o que ele acha do Bolsa Família para combater a
miséria. Matheus acha que o Bolsa Família é algo negativo, já que é um
benefício para garantir o voto do pobre e manipulá-lo.
De início, eu gostava da obrigatoriedade de mandar o filho para escola, mas até isso
se perdeu no programa. Pra mim, o Bolsa Família tinha que ser de, no máximo,
cinco anos – até que as pessoas possam caminhar com as próprias pernas.
Sobre a maior parte das pessoas atendidas pelo programa serem nordestinas,
para Matheus, isso se deve primeiro a diferenças geográficas – como qualidade
da terra e água para cultivo –, que depois se tornam uma “bola de neve”, na
medida em que a falta de educação e de recursos seriam consequência da
determinação natural que se autonomiza. Matheus afirma: “Por conta disso, a
situação do Nordeste é tão difícil.”
Sobre a Lava Jato, Matheus é só elogios. Ele cita uma pesquisa que teria dito
que 64% das pessoas acham que a corrupção aumentou depois do desmonte da
Lava Jato. É radicalmente contra esse desmonte, e acha a Lei da Ficha Limpa
algo fundamental, embora ele acredite que não é aplicada. Por conta de sua
cruzada contra o Estado e o assistencialismo que o PT representaria, Matheus
sempre votou contra o partido: “Se tiver qualquer coisa como alternativa ao PT,
eu vou votar nessa alternativa”.
“Em quem você votou para presidente?”, pergunto. “Eu votei no Amoedo,
em 2018, e em Felipe D´Avila, em 2022. Só no segundo turno, para evitar o
PT, é que votei em Bolsonaro.” Ele me disse ainda que não gosta de Bolsonaro
porque não é uma pessoa que ele “contrataria” para sua empresa, se tivesse
uma. E que, como não contrataria nenhum dos dois (Lula ou Bolsonaro) para
ser o CEO de uma empresa, também não votaria de livre vontade neles. Eles não
seriam, portanto, bons CEOs da Brasil S/A.
Em resumo, ele votou em Bolsonaro pelo perfil ultraliberal de Paulo Guedes,
mas não gosta do estilo agressivo e preconceituoso de Bolsonaro – cita, como
exemplo, as perseguições a gays e indígenas sob seu governo. Ao mesmo tempo,
diz que a posição radical de Bolsonaro nesses temas tem a ver com o discurso
meramente retórico do PT em defesa das minorias. Matheus acredita que não
cabe ao Estado mexer nesse assunto, já que as empresas já fazem inclusão de
minorias – inclusive de gays, negros e mulheres. Ainda que jogue a culpa pelo
preconceito às minorias no colo do PT e de seu discurso retórico, ele ressalta
que não votou em Bolsonaro no primeiro turno das duas últimas eleições por
conta desse ataque às minorias.
Ele me diz também que a polarização já existia antes, e por culpa do PT: “Foi
o PT que inventou aquela história do nós contra eles e, com isso, conflagrou o
país.” Em seguida, me confessa que o antipetismo une toda a sua família no
campo da direita e da extrema direita. A maior parte da família foi do PSDB
para o Partido Novo – que é o partido com o qual ele mais simpatiza –, e
alguns direto para o colo de Bolsonaro. Matheus finaliza, relembrando a única
exceção na família: “Eu tenho uma tia petista, mas dela eu gosto porque o
discurso combina com a prática�no caso dela”.
Tiago
Tiago, 76 anos, me conta que sua vida familiar foi em Ribeirão Preto, em São
Paulo, cidade onde nasceu. Seu pai natural abandonou a família – formada por
ele, um irmão mais velho e a mãe. A mãe, uma mulher bonita, segundo ele,
casou-se de novo com um grande empresário da região. Tiago tinha seis anos
quando isso tudo aconteceu. A mãe teve dois filhos com o novo marido, e o
grande problema de Tiago parece ter sido o fato de se ver preterido pelos
irmãos do novo casamento.
Ele relata que sua infância e adolescência foram um grande esforço para
merecer a atenção da mãe e do padrasto. Segundo ele, a mãe gostava mais do
filho caçula do novo casamento, o qual também era o filho preferido do
padrasto (pai biológico de Nuno, o caçula) – que costumava dizer, à mesa, que
queria que Nuno guiasse os negócios da empresa. O padrasto era dono de
várias fazendas na região onde se criava cavalos de raça para venda. Tiago conta
que os cavalos eram, e ainda são, vendidos a peso de ouro. Também tinha
diversas revendedoras de automóvel e tratores na região, e uma infinidade de
bens imóveis em Ribeirão Preto e entorno. Esse tipo de tratamento era
percebido por Tiago como uma injustiça, já que, por mais que quisesse
angariar o afeto especial de padrasto e da própria mãe, nunca conseguia
competir com os irmãos mais novos. Ele culpa mais a mãe por isso tudo, afinal,
ele compreendia o fato do padrasto gostar mais dos filhos naturais.
Essa experiência parece ter sido definidora da personalidade de Tiago. Ele me
conta que, enquanto os irmãos iam fazer – aos 16 ou 17 anos – cursos de um
ano em Londres para aprender inglês em uma escola cara e com mesada alta,
ele permanecia na cidade natal tendo uma vida comum e sem privilégios. Disse
também que nunca teve as chances que os meios-irmãos tiveram. Era um
sonho do padrasto que Nuno fosse político e empresário – segundo a opinião
do padrasto, uma coisa ajudava a outra –, então Nuno era preparado com
devoção. Quando o menino completa 17 anos, é mandado para Nova York
para estudar administração de empresas e economia na New York University.
Nessa ocasião, o padrasto de Tiago compra um pequeno apartamento para o
filho caçula, bem pertinho da universidade – que fica no Village, no coração da
cidade –, com uma linda vista de Nova York. Ele cita o fato para mostrar o
esmero e a afeição do pai pelos filhos naturais – em especial o caçula –, que
tiveram tudo o que quiseram. Tiago também culpa a revolta de se ver sempre
sendo preterido pelo fato de ter sido um aluno medíocre na escola e na
universidade.
Ao terminar a universidade particular de administração de empresas, ele
almeja algum cargo de direção nas empresas do padrasto. Consegue, no
entanto, apenas o cargo de gerente de uma revendedora de tratores. Tiago tinha
27 anos. O filho mais velho do segundo casamento, Enzo, tinha apenas 21
anos e ainda cursava administração na FGV, em São Paulo, quando o pai o
chamou para ajudá-lo nas empresas da família. Mais um revés para Tiago.
Quando tinha 30 anos, um dos diretores denunciou um desfalque na
empresa de tratores e apontou Tiago como o suposto autor da fraude. Como
esse diretor era também o melhor amigo do padrasto, ou seja, tinha sua total
confiança, Tiago perdeu o cargo de direção e nunca mais recebeu outra chance.
Em vez disso, trabalhou em cargos intermediários nas empresas do padrasto até
sua aposentadoria. Hoje, Tiago recebe cerca de cinco mil reais do INSS, e me diz
que sua sorte foi seu irmão caçula ter deixado um apartamento do espólio do
pai com ele, por decisão própria, já que ele não teria direito a nada quando o
pai morreu: “Ele me livrou do aperto que seria pagar aluguel com o que ganho
hoje.”
Exceto o contato com o caçula Nuno, que o ajuda eventualmente a comprar
remédios e pagar terapias, dado que Tiago foi diagnosticado com Parkinson em
estágio inicial, ele não tem contato com mais ninguém da família, posto que,
no episódio do desfalque, todos acreditaram no relato do diretor. Tiago
adiciona um comentário significativo sobre todo esse caso: “Se eu tivesse feito o
desfalque, teria sido uma reparação pela injustiça que sofri a vida toda.” E
acrescenta, com a ênfase de quem acredita no que diz: “Mas não fui eu que
fiz!”. Por alguma razão, não acreditei em Tiago nem na sua inocência.
Tiago é daquelas pessoas que culpam o mundo pelo próprio fracasso. Sua
decadência não foi, de modo algum, pedagógica para ele. O que comanda sua
ética de mundo é: independentemente do teor daquilo que ele faça, tudo é
bom e justo por ser reparação das injustiças que sofreu. Aos 70 anos, o
ressentimento de Tiago parece ter encontrado um canal de expressão no
fenômeno político Bolsonaro. Quando respondia às minhas mensagens no
WhatsApp para marcarmos as entrevistas, ele sempre me mandava um “joinha”
feito pela figura do Bolsonaro com o polegar para cima e passando através de
uma parede. Tiago mora sozinho desde o divórcio com a mulher, cerca de onze
anos antes. Quase todo seu tempo é dispendido na internet, onde ele participa
de vários grupos extremistas de direita.
O ódio pessoal a Lula é o traço mais evidente: “Esse cara é um atraso para o
país. Imagina no exterior, todas as coisas que esse analfabeto faz? É uma
vergonha para o Brasil inteiro!”. Pergunto a ele o que tanto o desagrada em
Lula. Ele responde, de bate-pronto: “Ele é ladrão, além de burro e analfabeto.
Temos que tirá-lo de onde está – seja por bem, seja por mal”. Em seguida,
perguntei se ele havia se mobilizado para ir a Brasília no Oito de Janeiro, e o
retorno foi: “Convidado eu fui, mas eu tenho quase oitenta anos e decidi me
preservar.” Ele acreditou piamente na versão que diz que foram os militares –
que covardemente arregaram na “hora h” – os responsáveis pela tentativa
fracassada de golpe. Tiago continua: “Ainda bem que não fui. Convite tive
muitos. Muita gente saiu de ônibus daqui com mantimentos para vários dias”
– ou seja, tudo pago por gente ligada ao agronegócio da região. E finaliza o
raciocínio dizendo que prefere fazer a sua parte pela internet mesmo.
Tiago passa a maior parte de seu tempo no computador, conversando e
articulando nas suas redes de extrema direita. Um dos pontos mais
representativos da personalidade de Tiago é ele acreditar que pobres e pessoas
sem escolaridade superior não devem ter o mesmo peso eleitoral de quem tem
boa formação. Ele me diz: “O ideal é que o voto de quem tem estudos valha
pelo menos três vezes mais do que o do pobre preguiçoso que não aproveita as
chances e oportunidades.”
E não é apenas Lula o alvo do ódio. Tiago parece odiar qualquer pessoa das
classes populares que tenha ascendido socialmente. Ele tem um namoro virtual
com uma mulher de 61 anos, moradora de Natal, no Rio Grande do Norte, a
qual conheceu nas redes de extrema direita. Os dois já se viram
presencialmente duas vezes, mas o contato principal é pela internet. Tiago me
mostra as trocas de mensagens com a namorada, e observo que a governadora
do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra, é o ser mais odiado – depois de Lula,
claro – pelos dois. Eles trocam memes o dia inteiro tirando sarro da herança
indígena da governadora, e a acusando constantemente de tráfico de drogas e
corrupção.
Ele diz que a namorada tem mais de 30 mil seguidores no Instagram e outros
tantos no Facebook, e milhares de contatos no Telegram. Tiago se orgulha do
sucesso da namorada e a incentiva a entrar na política. Ela já tentou ser
vereadora por Macaíba, uma pequena cidade perto de Natal, onde nasceu.
Segundo Tiago, ela perdeu por muito pouco, mas nunca mais quis tentar um
novo cargo eletivo. Tiago me confessa que já teve ambições políticas quando
mais jovem, mas que agora se acha velho para esse tipo de batalha: “Eu faço
meu trabalho de casa, mesmo. Quando tem um evento político da direita na
região também procuro ir, se estiver bem de saúde.”
Pelo que pude observar vendo seu computador, o “trabalho” de Tiago é,
exclusivamente, espalhar todo tipo de notícia falsa e dar credibilidade a elas.
Ele participa de, pelo menos, quinze grupos de bolsonaristas de todo o país.
Explica: “O meu trabalho é de formiguinha, mas pouco a pouco vou
conseguindo atingir mais pessoas.”
Muitos dos contatos de Tiago são policiais, bombeiros e caminhoneiros que
ele conheceu em Ribeirão Preto e região. Com os problemas familiares que
teve, Tiago me conta que não é bem-recebido pela família: “Eles acreditaram
piamente nas mentiras que inventaram contra mim.” A única exceção é o
caçula, que já foi deputado federal por São Paulo e que hoje comanda as
empresas que restaram depois da má administração do dinheiro familiar pelo
irmão mais velho do segundo casamento: “Ele é o único que me ajuda quando
preciso. Mas não fico enchendo o saco dele, não. Só peço quando preciso,
mesmo. E sempre por problemas de saúde”.
A referência ao irmão mais velho do segundo casamento, que arruinou boa
parte da fortuna do pai, é a prova, para Tiago, de que foi preterido
injustamente. Ou seja, ele acredita que as atitudes de Biba – apelido do irmão
mais velho do segundo casamento, que se chama Enzo – demonstram que a
perseguição familiar contra ele não tem fundamento.
O Biba deu “tombo” em todo mundo que podia. Vendeu boa parte do patrimônio
imobiliário do pai dele e gastou o dinheiro em fazendas superluxuosas, poker, carros
importados e até em um pequeno jatinho. Fazia também festas de orgia na sua
fazenda preferida, e mandava vir mulheres da capital no jatinho ou voos fretados.
Além de muita, mas muita cocaína. Eram festas que duravam dias, regadas a
centenas de garrafas do champanhe Veuve Clicquot”. Depois de dizer isso Tiago
arremata: “Imagine, o que eu fiz62 foi pinto pequeno perto desse estrago do meu
meio-irmão. Mas o que foi que aconteceu com ele? Nada.
Enzo arruinou 50% da fortuna do pai em poucos anos, e, apesar de ser
afastado de todas as empresas, recebe ainda uma mesada de trinta mil reais do
caçula que assumiu todos os negócios restantes para si. Tiago acrescenta: “O
cara roubou todo mundo e ainda ganhou um prêmio. Enquanto eu�fiquei a
ver navios.” A história de vida de Tiago, ao que pude perceber depois de várias
entrevistas com ele, liga-se ao bolsonarismo pelo seu ressentimento amargo.
Bolsonaro é visto por ele como uma figura de fora do sistema, que assume o
comando pela sua sinceridade e coragem.
Ele teve a coragem de peitar todo mundo, coisa que eu não fiz – e olha onde estou
agora. Só não foi eleito porque o Nordeste, a região mais atrasada do país, vota até
em ladrão condenado desde que ele tenha distribuído umas migalhas por lá.
Tomara que todos passem fome agora! A culpa é deles em não reconhecerem tudo o
que o Bolsonaro fez pela região. Que morram de fome!
Para Tiago, os nordestinos são a praga do Brasil. E ele elenca razões empíricas
que comprovariam sua tese:
Quando foi que começou a ter assaltos na cidade de São Paulo? Quando vieram os
nordestinos. O mesmo aconteceu no Rio. São preguiçosos e perigosos. Só querem
levar vantagem. É sempre a mesma turma que quer algo especial para si, uma lei
especial para levar vantagem à custa dos outros, como os LGBT+, os quilombolas, os
indígenas e até as mulheres. Grande parte de minha admiração pelo Bolsonaro vem
de ele não aceitar isso e de dizer na cara de qualquer um.
Pergunto se ele tem orgulho de sua ascendência italiana.
Óbvio. Foram os italianos que construíram São Paulo, hoje o estado mais rico do
Brasil. Tudo com trabalho duro, sem apoio e ajuda, só pela vontade do trabalho,
mesmo. Seria um sonho que o Brasil todo fosse como São Paulo. Você vê, em algum
lugar do Brasil, coisa parecida com as estradas e as empresas que temos aqui?
Geraldo
Geraldo é um gaúcho que emigrou para Brasília, com os familiares, aos 16
anos. Geraldo tem uma história de vida peculiar. Foi sempre um aluno de altas
notas na escola e excelente desempenho. Entrou na universidade passando em
segundo lugar no vestibular para Engenharia Civil da UnB, em Brasília. Saiu
também com a segunda maior nota do curso entre todos os alunos. Logo
conseguiu uma boa colocação em uma das empreiteiras mais importantes da
cidade, e fez carreira na empresa dos 24 aos 42 anos.
Com 41 anos, foi direcionado para comandar a construção de uma série de
condomínios de luxo que a empresa pretendia construir no litoral da Bahia.
Geraldo assumia, pela primeira vez, uma função de comando e direção. Antes,
desempenhava com zelo a função de assessorar o presidente da empresa na
aprovação de todos os projetos. Uma função importante, mas sem autonomia.
A nova função de comando na Bahia, que deveria durar cerca de três anos,
revelou, com o passar do tempo, uma vulnerabilidade de Geraldo que iria
acompanhá-lo como um fantasma pelo resto da vida: a sua bipolaridade.
Como pude apreender de sua fala, o fato de não estar na sombra do chefe
maior desestruturou a personalidade de Geraldo. Ele me conta que brigou com
praticamente todo mundo da empresa na Bahia, e ainda pôs em risco o projeto
ao confrontar agressivamente membros do Ministério Público e figuras
importantes da política baiana. Sem a proteção e a subordinação a uma
autoridade maior, Geraldo literalmente “louqueou” e passou a imaginar,
inclusive, que poderia se candidatar a cargos políticos no município baiano –
tornando-se uma espécie de caudilho local. Ele era neto de uma figura
importante da política gaúcha, e se acreditava ungido de carisma político — a
sua verdadeira paixão. Esse movimento, detectado de imediato pelos políticos
locais, passou a gerar todo tipo de problema para a empresa e quase
inviabilizou o projeto como um todo.
A demissão às pressas salvou o projeto da empresa, e Geraldo foi substituído
rapidamente. Ele foi demitido pelo mesmo chefe da empresa que antes o
protegia. Logo foi diagnosticado um quadro de mania causado pela
bipolaridade – o que explica o comportamento agressivo e a perda de referência
do próprio comportamento. Geraldo jamais se recuperaria desse baque. Tentou
construir uma empresa própria e não conseguiu. Além disso, toda a
comunidade de engenheiros de Brasília sabia o que tinha acontecido na Bahia,
o que lhe impedia de conseguir novo emprego em qualquer lugar na cidade. O
caso foi rumoroso, sobretudo porque Geraldo atribuía as reações à inveja de
colegas que se sentiam preteridos pelo fato dele ter sido um protegido do dono
da empresa. Geraldo ficou quase um ano sem qualquer emprego.
Finalmente, recebeu o convite de um primo que havia seguido a trajetória do
avô e se tornado deputado federal por Goiás. A influência maior desse primo se
localizava na cidade de Santo Antônio do Descoberto, perto de Brasília. A
partir de contatos pessoais, foi possível conseguir um cargo de confiança para
Geraldo na prefeitura de Santo Antônio. Ele ajudava na detecção de defeitos de
construção de casas e prédios, e concedia alvarás de construção para todo tipo
de edificação. O salário de 5 mil reais era considerado pequeno para ele, mas
numa cidade pequena o custo de vida é também muito mais baixo, a começar
pelo aluguel. Mas jamais desistiu do sonho de entrar na política.
A ocasião surgiu com a subida meteórica de Bolsonaro à presidência. Geraldo
me conta que sempre foi conservador em todas as questões relativas à família e
à sociedade. Teve sérios problemas com a única filha porque a moça fumava
maconha, por exemplo. Geraldo chegou a expulsá-la de casa. Suas fases
maníacas e depressivas, que se alternavam – ele conta que não tomava a
medicação adequada direito – haviam levado Geraldo a perder novamente o
último emprego. Foi nesse contexto que ele passou a ser um seguidor fiel e
apaixonado de Bolsonaro. Ele me conta sobre o ídolo:
Bolsonaro tem a mesma raiva que eu sinto contra tudo aquilo que acho errado.
Pessoas como eu, que suaram a camisa e ralaram na vida para ser alguém, não têm
o reconhecimento que deveriam ter. O que nós vemos é o mesmo pessoalzinho da
mamata se dando bem, como sempre foi. Bolsonaro foi o único que quis dar um
basta nisso. Precisava ser alguém como ele, sem medo de dizer tudo o que pensa.
Geraldo viu a oportunidade de se candidatar – seu eterno sonho – a um cargo
eletivo em Santo Antônio do Descoberto. Suas pautas foram “costumes” e
“segurança pública”. Ficou amigo de uma turma de policiais do Batalhão de
Choque da Polícia Militar do DF (PATAMO). Ofereceu, inicialmente, ajuda a um
policial que queria reformar a casa, e Geraldo passou a fazer o trabalho de
engenheiro de graça para os novos amigos. “Tornei-me um construtor de lajes”,
conta ele, rindo. Quatro desses policiais se tornaram seus cabos eleitorais
fervorosos nas diversas polícias militares do DF e seu entorno. Muito de sua
propaganda eleitoral eram selfies que ele tirava com os policiais em ação. O
mantra da campanha? Por óbvio, “bandido bom é bandido morto”.
Passou a andar armado, e suas redes sociais estão cheias de fotos em clubes de
tiro com os amigos policiais. O outro ponto central da visão política de
Geraldo é o seu ódio às drogas, em especial à maconha, provavelmente em
decorrência do problema com a filha. Para ele, traficante tem que morrer, e o
usuário tem que apanhar para aprender.
Apesar do apoio dos amigos da polícia, Geraldo teve apenas 139 votos e ficou
longe de ser eleito vereador da pequena cidade. Mais um fracasso para sua
longa carreira de tentativas malsucedidas. Por meio dos policiais, Geraldo teve
acesso aos empresários bolsonaristas da região, que financiam a disseminação
de fake news. Como a aposentadoria de Geraldo é pequena, não chegando a
cinco mil reais, sua nova atividade de aposentado é ser “influencer digital” na
periferia de Brasília – o que lhe garante uns trocados a mais, além de poder
participar dos churrascos de fim de semana de sua nova “galera”.
Geraldo me confidencia que existem filmagens falsas, pagas pelos
empresários, registrando um “cracudo”, obviamente um negro, roubando
coisas de um supermercado local e saindo correndo. Em seguida, pode-se ver
nas legendas do vídeo: “É isso o que vocês querem? Então votem no
presidiário!” Ele me diz que pagaram quinhentos reais ao “cracudo” para
participar da farsa. O trabalho de Geraldo é distribuir esse tipo de coisa para o
maior número de pessoas possível. Quando pergunto a Geraldo se ele não se
incomoda com o fato de divulgar mentiras, ele não hesita: “Mas é isso mesmo
o que acontece, isso é verdade todos os dias. Nós apenas mostramos algo que,
de outro modo, não poderíamos filmar. A filmagem representa o que acontece
no país inteiro mas nunca é mostrado. Então, nós mostramos.”
A seara bolsonarista deu um novo senso de importância à vida de Geraldo.
Ele agora acredita que participa, como membro ativo, de um processo de
mudança estrutural do Brasil. A mudança para um Brasil sem feminismo, sem
“privilégio” para as minorias e, principalmente, sem criminosos. Até uma nova
namorada ele conquistou nos frequentes convescotes de bolsonaristas do
entorno de Brasília. Apesar de morar em Goiás, em Santo Antônio do
Descoberto, Geraldo conheceu uma senhora de Brasília – uma bolsonarista
“roxa” que ia levar sopa quentinha para os acampamentos ao redor do setor
militar, com quem namora nos fins de semana.
Pode-se dizer que a militância bolsonarista deu tudo a Geraldo, que antes se
via como um fracassado. Hoje ele tem um propósito na vida, compartilhado
ardorosamente com outros iguais a ele, o que lhe traz o reconhecimento social
que sempre lhe faltou. Passou a contar com uma vida social frequente,
garantindo laços de camaradagem e amizade. Finalmente, mas não menos
importante, essa militância deu a Geraldo uma companheira, algo que ele
sentia falta há muito tempo. A solidão anterior, como ele próprio pontuou
várias vezes nas entrevistas, era algo que o incomodava muito. A militância
bolsonarista deu uma nova vida a Geraldo.
O conjunto das trajetórias de vida elencadas pelas entrevistas que fiz na região
Sul do país (na qual incluo São Paulo não só por partilhar o imaginário da
região, mas por tê-lo criado, em grande medida), mostram uma realidade
pouco estudada e muito peculiar. A negação do racismo entre nós é tanta que
quase ninguém fala da oposição – de resto, flagrante – entre o Brasil branco do
Sul e o Brasil mestiço e negro do Norte (São Paulo para cima no mapa,
englobando o Rio de Janeiro). Pior ainda: quando a BBC divulgou uma
entrevista comigo sobre a construção do “excepcionalismo paulista”,63 que
discuti acima, a reação contrária foi violenta. O meu Instagram sofreu uma
avalanche de críticas como nunca havia acontecido antes. Acusavam-me de
estimular a “cizânia nacional”, como se estivesse criando divisões onde,
supostamente, não existiam. Quando isso acontece – tocar em um nervo tão
dolorido que desperta esse tipo de emoção – tenho a prova de que preciso
seguir adiante: nada mais importante do que revelar as verdades reprimidas.
A “cizânia” que atribuem a mim foi criada, de forma intencional, pela elite de
São Paulo – como demonstrei acima – cuja influência se espraia na região Sul e
na fronteira agrícola do Sul de Minas Gerais. A solidariedade orgânica entre os
estados do Sul e de São Paulo – e que fez a maioria votar em uníssono em
Bolsonaro – é cimentada na crença comum da “europeidade” como sinal racial
e cultural de superioridade em relação ao resto do Brasil. Seu intuito foi, como
vimos, primeiro legitimar a superioridade inata da elite, com base em um
suposto culturalismo – que é uma fraude científica, como vimos. Em seguida,
depois de 1932, o objetivo foi ampliar essa superioridade para todo o povo
branco e europeu – que não seria gente-lixo, como são entendidos o resto do
Brasil mestiço e negro. Ou seja, a “cizânia”, criando uma oposição entre os de
dentro e os de fora, foi urdida pela necessidade de legitimar a supremacia
política de uma elite ascendente. Hoje, isso tudo está naturalizado por cem
anos de propaganda da imprensa elitista, e poucos se lembram de como tudo
começou.
A construção de uma identidade nacional da região Sul como identidade
distinta da do resto do país, por conta da “europeidade” é, no entanto, uma
realidade insofismável, apesar de tão reprimida. E é, antes de tudo, a elite de
São Paulo que a constrói – conforme vimos acima. Como o traço racial foi
simplesmente reprimido – pela afirmação popular de Getúlio – mas nunca
devidamente criticado, então o reprimido volta com ainda mais força sob
alguma máscara conveniente. Essa máscara foi a construção da imagem do
povo brasileiro mestiço e negro como corrupto, inconfiável, eleitor de
corruptos e aproveitador egoísta e preguiçoso.
Vimos anteriormente, em detalhe, que o povo cordial, emotivo, passional,
pré-moderno e inconfiável é apenas o mestiço e o negro. A parte “europeia” do
país, São Paulo e região Sul, ganha a legitimação que precisa para criar uma
distinção social positiva em comparação ao resto do país. Até hoje, boa parte
dessa população aufere autoestima pela origem europeia e se vê como distinta
do resto do país. Essa “cizânia” não fui eu que criei de modo artificial, como
alegaram meus críticos – ela já existia desde antes, e foi cimentada como crença
popular e destilada de modo capilar e emocional, ou seja, infensa à crítica e à
reflexão para toda a população branca.
Se existe um traço comum a todas as pessoas entrevistadas acima, é a crença
na supremacia natural do Sul e do branco de origem europeia sobre o resto do
país mestiço. Uma oposição que ficou consolidada quando se logrou substituir
o racismo “racial” anterior por um racismo, em tese, “cultural”. Esse tipo de
máscara do racismo “racial” permite ao racista odiar o mais frágil e vulnerável
fingindo que deixou de ser racista. O nordestino é tão odiado não pelo fato de
ter nascido perto da linha do Equador, mas porque a população nordestina é,
pelo menos, 80%, mestiça e negra.
Isso tudo foi naturalizado com facilidade, já que o racismo é o mapa social
mais ao alcance do leigo – que precisa de uma explicação convincente para a
hierarquia social, mas que não sabe como o mundo social complexo e confuso
funciona. O racismo permite esclarecer todas as dúvidas e passa a presidir a
visão de mundo dessas pessoas cognitivamente carentes de uma explicação
razoável acerca de como o mundo social funciona. Além da “necessidade
teórica” de explicação para o funcionamento complexo da sociedade, temos
aqui também o vínculo emocional, que é o que torna essas distinções
irresistíveis para um público sedento por autoestima e distinção social positiva
à custa de quem for.
A construção do “povo corrupto” como sendo o mestiço nordestino e o negro
eleitor de corruptos é a chave para a dominação social brasileira, que veste o
racismo íntimo de todos nós com um racismo “cultural” pseudocientífico –
sem recorrer à palavra raça e, portanto, podendo pleitear o “prestígio científico”
para corroborar sua validade. É assim, aliás, que são criadas todas as ideias
importantes. Durante a história da humanidade, as ideias que lograram
alcançar grandes massas ou foram ideias religiosas, ou – depois da secularização
– ideias científicas, uma vez que, sem o prestígio da religião ou da ciência,
nenhuma ideia vinga.
Quando se culpa a vítima dessa forma, o poder real se torna invisível, e não
existe nada mais importante para a reprodução de todo tipo de privilégio do
que se tornar invisível. Foi esse feito extraordinário que a elite paulista
alcançou: repaginar o racismo “racial” brasileiro em racismo “cultural” baseado
na ideia de corrupção como mote central. A hipotética superioridade do sulista
e do paulista em relação ao resto do país foi construída e alimentada sob a
forma de um equivalente funcional do racismo “racial” anterior. O novo
racismo “cultural” da pecha de corrupto aproxima e chama para si todos os
pecados morais da preguiça, da falta de confiança – daí a construção do negro
como criminoso – e da apatia.
Isso é visto em quase todos os testemunhos elencados. O gaúcho Marcelo,
por exemplo, é explícito: negro cagando em lugar público merece ser linchado,
do mesmo modo como ele tortura os presos famintos com o cheiro de picanha
sendo assada no churrasco semanal com os colegas agentes penitenciários – e
sabemos que os presos, em todo lugar, são mestiços e negros, em sua
esmagadora maioria. Sadismo em alto grau de requinte.
O caso da catarinense R. Kühn também salta aos olhos. Sendo a única
mestiça da família, ela experimentou uma perseguição doméstica dos próprios
familiares durante toda a vida – sem contar as piadas humilhantes na escola e
no ambiente de trabalho. As suas outras características – como sua orientação
sexual e o uso recreativo da maconha – surgem como confirmação de seu
caráter duvidoso, já prenunciado pelo simples fato de ser negra.
A ira do paulista Tiago ao atribuir o aumento da violência em São Paulo à
imigração nordestina – considerando o povo do Nordeste a origem do crime –,
e ao ridicularizar a origem indígena da governadora do Estado, atestam a
permissividade de um racismo insidioso – explicitado pela permissividade do
discurso de ódio bolsonarista.
O caso do gaúcho e hoje paranaense Matheus é mais matizado, e seu racismo
mais “sofisticado”, ou seja, um racismo que segue as regras do racismo cordial
brasileiro que finge não ser racista. Isso o obriga a procurar subterfúgios para
aquilo em que ele quer acreditar. Assim, a reclamação recai sobre a “bagunça”
das universidades públicas – um ambiente onde já reinam as cotas raciais e
sociais –, e sua ansiedade é para se mudar para uma universidade privada, cara
e cheia de gente branca e rica.
Como sempre, e em todos os casos, o falso discurso da corrupção é a melhor
forma de impedir a ascensão popular. O ataque ao Estado petista tem esse
componente bem-marcado. A pecha de corrupto, bombardeada pela imprensa
elitista, permite defender a exclusão social continuada como se fosse defesa da
moralidade pública. O ataque ao Estado se dirige unicamente ao Estado que se
pretende social e interventor no combate à desigualdade.
Geraldo, o gaúcho da fronteira, confirma praticamente todos os preconceitos
que travestem o ódio de raça e de classe social em defesa da moralidade pública
e privada. Essa dinâmica sustenta a tese do “bandido bom é bandido morto” –
cujo teor real é “negro bom é negro morto” – e o ódio a qualquer forma de
manutenção livre do estilo de vida (em especial, a livre orientação sexual dos
indivíduos). O bolsonarismo oferece o velho racismo repaginado agora como
luta política idealista e rebelde, aglutinando, também, todos os frustrados que
culpam a vida e os outros pela sua decadência e desgraça. Mais ainda: propicia
excitação, participação política simulada e sensação de direção para esse tipo de
gente que havia perdido o trem da vida.
O caso de F. Rössler confirma e aprofunda o que estamos discutindo aqui.
Seu ódio se dirige tanto aos negros haitianos – que ele vê como grave ameaça
civilizatória para sua pequena cidade – quanto aos “nordestino” que, pela
suposta pouca inteligência e apatia, elegem quem não deve. É interessante
perceber que Felipe diz isso tudo centrado em um discurso moral da
supremacia cultural alemã e branca sobre o resto do país. Os valores
“germânicos” seriam, antes de tudo, disciplina e amor ao trabalho e cuidado
com a família. Mais uma vez, o racismo “racial” sendo recoberto por
hipotéticas superioridades culturais.
O que parece ter acontecido é que Bolsonaro “destampou” o fétido bueiro
que antes barrava as formas explícitas de racismo. Racismo tanto de raça
quanto de classe, já que ambos estão amalgamados de modo indelével entre
nós. O contexto de desconfiança política criado pela celeuma da Lava Jato se
mostrou perfeito para a criação desse monstro. Possibilitou conferir uma
dimensão ética à pretensa luta bolsonarista, permitindo a transfiguração do
fracasso de classe do branco pobre ou empobrecido em uma bandeira política
de suposto interesse universal – como os bons costumes e a política “limpa”.
Bolsonaro conseguiu realçar o racismo brasileiro entranhado em todos nós,
ainda hoje, canalizando o ódio e ressentimento de classe do branco pobre
empunhando a bandeira de uma luta política pela violência purificadora.
O ressentimento social é a procura de um culpado externo para a sensação de
fracasso objetivo daqueles que não possuem nem capital econômico nem
capital cultural legítimo. A nossa imprensa dominada – e a serviço do saque
elitista – não permite a compreensão do mecanismo social que reproduz as
classes do privilégio. Desse modo, o fracasso objetivo é subjetivado e vivido
como culpa pessoal pelo branco pobre que se pensa europeu, mas que tem as
mesmas condições de vida dos mestiços e de muitos negros.
Como esse indivíduo precisa encontrar um culpado externo para uma ferida
narcísica desse tamanho e proporção – vivida como incapacidade pessoal e não
como construída socialmente –, todos os fantasmas do racismo explícito
brasileiro, que vigorava antes de 1930, são liberados novamente. Mas, agora,
sua expressão tem que obedecer às vicissitudes de uma cruzada moral do bem
contra o mal – o que confere ao racista empedernido a justificativa falso
moralista da qual precisa para ele ser quem sempre foi.
Seu ódio, no entanto, não se dirige às elites que reproduzem a pobreza da
maioria da população ao se apropriarem de toda riqueza disponível. Elas são
seu verdadeiro inimigo, mas nunca ninguém contou isso para ele. A imprensa
existe para blindar qualquer referência aos ricos e poderosos como causa
verdadeira da pobreza. Quando o caminho da indignação contra a injustiça
está fechado, o caminho que sobra é dirigir a raiva contra os mais frágeis e
vulneráveis – incapazes de defesa, na maior parte dos casos. Daí o
direcionamento do ódio aos nordestinos, negros, mulheres e público LGBT+. É
uma canalização da raiva que garante duas coisas importantes para esse
indivíduo: a compreensão do mundo social de uma forma que lhe é
conveniente; a certeza de sua superioridade moral sobre os outros, de modo a
aplacar e mitigar seu sentimento de fracasso pessoal.
Para Max Weber, o sociólogo das religiões mais influente e importante de todos
os tempos, a religiosidade tem íntima relação com a classe social, ou seja, com a
posição relativa dos fiéis na hierarquia social. As versões mais racionais e éticas
da religiosidade costumam estar relacionadas à vida citadina – em especial aos
comerciantes e artesãos qualificados com seu cotidiano calculável, regular e
previsível. Já os camponeses e as classes populares percebem seu cotidiano
como dominado por forças externas incontroláveis, como a natureza e a
opressão social associada ao trabalho desqualificado, dependente e servil.
O pentecostalismo, desde a sua vertente original nos Estados Unidos, nasce
como oposição ao protestantismo histórico e ao processo de secularização que
lhe foi subsequente. Como se sabe, a tese weberiana para explicar o processo de
secularização parte da contradição interna ao protestantismo ascético, que
constrói um “caminho para salvação” baseado no sucesso mundano. Ao
interpretar o caminho para a salvação eterna como decorrente do sucesso
mundano e visível, ou seja, como riqueza material, o ascetismo protestante
passa a exigir do fiel a “dominação do mundo” social e natural como
precondição para ser salvo.
Para que o mundo seja dominado, ele precisa, porém, ser conhecido. É
necessário que se conheça como o mundo social e natural funciona para que se
tenha sucesso nele. Ora, a ciência é exatamente a dimensão criada para o
conhecimento e controle do mundo externo. Existe uma forte correlação entre
o advento do protestantismo e a ascensão da ciência experimental. A visão
científica do mundo, no entanto, elimina pouco a pouco o “mistério”,
elemento indispensável a qualquer forma de religiosidade. O estabelecimento
da ciência enquanto esfera simbólica detentora de sentido hegemônico implica
o enfraquecimento – não a morte – da visão religiosa. É por conta de suas
contradições internas que o protestantismo é visto como a parteira do mundo
moderno, secular – e, dentre outras consequências, um mundo onde a ciência
substitui a religião como provedora de sentido.
Isso, por óbvio, não ocorreu sem resistências. Especialmente nos Estados
Unidos – a pátria do puritanismo ascético –, foram desenvolvidas, desde o
século XVIII, tendências revivalistas da religiosidade, as quais são o berço
histórico do movimento pentecostal posterior. Esses movimentos eram plurais,
e havia uma quantidade de oferta religiosa significativa comandadas por novos
profetas que pululavam em vários lugares. Um deles foi Charles Parham, figura
emblemática da novidade pentecostal, que se tornou o primeiro pregador a
fazer a ligação entre experiências extáticas – com manifestações de transe e
glossolalias (o falar em “língua estranha”) – e o “batismo com o Espírito
Santo”.64
Um dos seguidores de Parham, William Seymor – que se tornaria conhecido
como o “profeta negro da Rua Azuza” – assistia às suas aulas no corredor e não
na sala de aula, por conta do racismo de Parham, e decidiu fundar sua própria
denominação na Rua Azuza, em Los Angeles. Rua Azuza se tornou, a partir
daí, uma espécie de galvanizador e campo de experiência de uma religiosidade
que valorizava a tradição negra: em traços como a oralidade da liturgia,
testemunhos orais, inclusão do êxtase, sonhos e visões, inclinação para o
xamanismo religioso, uso de coreografia e muita música nos cultos.65
Essa ligação com a cultura negra explica, em boa parte, a irresistível
influência desse tipo de religiosidade entre nós. Aqui podemos já visualizar que
o ancoramento social desse tipo de manifestação religiosa se dirige aos
desterrados, humilhados e imigrados. São pessoas que não conseguem se sentir
pertencentes à realidade social, visto que essa os humilha e não os reconhece.
São pessoas que estão no mundo social, mas não se sentem parte desse mesmo
mundo. Nascia então uma religiosidade, feita com precisão de alfaiate, para os
abandonados e excluídos. Como sempre, a religiosidade mágica é a arma dos
despossuídos, daqueles que não têm futuro. Como diria Pierre Bourdieu, em
uma de suas frases magistrais: “A esperança mágica é a visada de futuro dos que
não têm futuro.”
Criada nos Estados Unidos no começo do século XX, essa forma de
protestantismo popular tem se globalizado com rapidez entre as massas
empobrecidas do Sul global. Descendentes do metodismo Wesleyano e do
Holiness Movement [Movimento da Santidade], os pentecostais, por diferença
em relação ao protestantismo histórico, acreditam que Deus, por meio do
Espírito Santo – responsável pelo componente mágico desse tipo de
religiosidade – continua a agir diretamente no mundo prático. Essa ação se
materializa em curas, exorcismo de demônios e realização de milagres.
A diferença entre religiosidade ética e religiosidade mágica é a mais
importante do universo religioso. A religiosidade ética, produto singular da
cultura ocidental – que nasce no judaísmo antigo e influencia diretamente o
cristianismo e o islamismo – cria uma tensão ética entre o mundo
transcendente e o mundano. O Deus e seus mandamentos morais, na
religiosidade ética, pretendem mudar o mundo profano como ele é. Pretende
criticá-lo e revolucioná-lo. Por exemplo, Jeová exige dos fiéis que eles não
matem, não roubem e não desejem a mulher do próximo porque na
humanidade há quem tenha desejos assassinos, desejos de apropriação das
coisas alheias e desejos libertinos em relação à mulher do próximo. A
religiosidade ética abre a possibilidade de mudança do mundo social e do nosso
comportamento nele. Ela é intrinsecamente revolucionária, ainda que os
compromissos com os poderes mundanos tenham sido, historicamente, a regra.
Com a magia, temos o efeito contrário. Na magia, não há oposição entre a
dimensão religiosa transcendente e a dimensão mundana, mas sim
proximidade e contiguidade. Os entes transcendentes são próximos, e seus
favores devem ser conquistados do mesmo modo como fazemos com os
poderosos deste mundo: com presentes, bajulações, elogios e afagos. Não existe
a tensão ética que possibilite transformar o fiel mágico em outra coisa que ele
ainda não seja. A regra aqui é a dos rituais: vive-se da repetição, da tradição e
do eterno ontem que sacraliza o mundo como ele é.
Além disso, como a moralidade mágica não pressupõe reflexão – uma vez que
é mera compulsão pela repetição – inexiste o drama típico da consciência
moral ética, que é representado pela questão: devo seguir o que Deus manda,
ou seguir aquilo para o qual já me inclino desde sempre? Essa é a primeira
forma de consciência moral individual da história – o drama consciente da
escolha de caminhos alternativos de vida. Na magia, não há alternativa, nem
drama de escolha, nem consciência moral. A magia é, portanto,
intrinsecamente conservadora. Não há crítica social possível a partir dela. E foi
esse tipo de protestantismo mágico, em forte oposição ao protestantismo
histórico, a forma de religiosidade ética mais consequente de que se tem notícia
– que tomou o Brasil de assalto a partir dos fins do século XX.
A novidade americana logo chegou, como sempre acontece, rápido ao Brasil.
Vários missionários inspirados pela Rua Azuza chegaram aqui poucos anos
mais tarde, como Louis Francescon, Daniel Berg e Gunnar Vingren, os
pioneiros do pentecostalismo no Brasil.66 Os estudiosos dividem em três fases a
história do pentecostalismo e neopentecostalismo brasileiro. A primeira onda
acontece a partir de 1910, com a vinda dos missionários estrangeiros para
ensinar os fundamentos da nova religião. A segunda onda se dá nos anos 1940
e 1950, sobretudo em São Paulo. A terceira onda ganha impulso a partir dos
anos 1970 e 1980, em especial com a Igreja Universal do Reino de Deus –
comandada com mão de ferro pelo autointitulado bispo Edir Macedo. O
contexto da terceira onda é carioca.67
O pentecostalismo clássico brasileiro, típico da primeira onda, é representado
pela Congregação Cristã do Brasil e pela Assembleia de Deus, a maior
denominação pentecostal do Brasil. Suas características principais são o
anticatolicismo, o dom de falar em “línguas estranhas”, a crença na volta
iminente de Cristo e na salvação paradisíaca, e o radical sectarismo e ascetismo.
A segunda onda teve início nos anos 1950 principalmente em São Paulo, a
partir de dois missionários americanos que formaram o Evangelho
Quadrangular, trazendo para o Brasil a evangelização em massa baseada na cura
divina.68
Tal ênfase na cura divina foi o grande mecanismo para o crescimento do
pentecostalismo brasileiro, como, aliás, aconteceu no mundo todo.69 O que
separa as duas ondas é a ênfase diferencial nos dons do Espírito Santo. A
primeira onda enfatiza o dom de línguas; enquanto a segunda privilegia a cura
divina. Existe grande influência recíproca entre as diversas denominações, e,
em um processo de tentativa e erro, tudo aquilo que se mostrar bem-sucedido
tende a ser imitado pelas outras denominações.
A terceira onda se inicia nos anos 1970 e ganha força nas duas décadas
seguintes. Seu principal símbolo é a Igreja Universal do Reino de Deus, que é
marcada pelo antiecumenismo – forte oposição aos cultos afro, forte hierarquia
e centralização, uso de meios de comunicação de massas, ênfase na cura e no
exorcismo de demônios. E, como característica mais marcante, as técnicas para
retirar dinheiro dos fiéis em troca de bens simbólicos mediante pagamento
direto em moeda sonante. Combinado a essa guinada mundana e
empreendedora temos a rejeição consequente a toda forma de ascetismo
mundano.
Se as ênfases das igrejas anteriores privilegiavam as “línguas estranhas” e a
cura divina, na terceira onda neopentecostal a centralidade é do exorcismo de
demônios. A singularidade da Universal é baseada na ênfase da luta entre Deus
e o demônio, e cabe ao pastor dizer quem é um e quem é o outro (a divindade
pode ser associada, inclusive, a Bolsonaro, se o pastor assim o desejar, afinal, ele
tem “Messias” no nome). O contexto conservador da magia é levado ao
paroxismo na teodiceia neopentecostal. Como inexiste qualquer separação
entre a esfera mundana e a transcendente, a esfera mundana é percebida como
subordinada à esfera transcendente, perdendo, portanto, qualquer autonomia e
independência.
Isso significa que se alguém está doente e não encontra remédio, não é culpa
do descaso da sociedade desigual nem da falta de adequado financiamento do
sus, mas sim do diabo que invadiu seu corpo. Elimina-se, desde o início,
qualquer possibilidade de crítica social à dimensão mundana. O “sacrifício do
intelecto”, que Weber percebia em toda forma de religiosidade, é aqui levado
ao limite lógico. O mundo social, por mais injusto e perverso que seja, não só
não é criticável como passa a ser, inclusive, sacralizado. Trata-se da mais perfeita
legitimação da meritocracia e do mundo desigual, visto que invisibiliza as
causas da opressão social.
A teodiceia da prosperidade neopentecostal é, em alto grau, uma religiosidade
“afirmativa do mundo” – ao contrário de sua negação, como acontece na
religiosidade ética. Como corolário, temos a liberalização dos costumes e do
apelo ao consumo material. A principal novidade do neopentecostalismo é sua
inversão da “negação do mundo” pentecostal clássica em uma decidida
“afirmação do mundo” por conta do maior peso do componente mágico e
pragmático. O sucesso do neopentecostalismo tem contribuído para influenciar
todo o mercado religioso pentecostal. A própria competição pelo controle de
meios de comunicação de massas, entre as diversas denominações, traz uma
urgência econômica que tende a ser suprida com os dízimos e ofertas em
dinheiro.
O que de fato singulariza a Igreja Universal é a exacerbação de uma luta
cósmica dualista entre Deus e o diabo pelo domínio da humanidade. Uma
guerra, portanto. Pelo menos quatro características principais derivam dessa
luta: 1) o embate não é apenas espiritual, mas prático, envolvendo a dimensão
sociopolítica e a tentativa de dominar o mundo social segundo seus preceitos,
por meio da influência na política partidária e pelo proselitismo nos meios de
comunicação de massa; 2) o rompimento com a salvação extramundana e seu
ascetismo e rejeição do mundo, tendo como substituta a teodiceia de afirmação
e dominação do mundo. Ao contrário da resignação, os neopentecostais são
triunfalistas e intervencionistas; 3) como consequência lógica dessa inversão de
perspectivas, temos a criação da teologia da prosperidade para o gozo do
dinheiro e dos prazeres mundanos; 4) e, como corolário, a ideia de que o
serviço a Deus é mediado pelo pagamento em dinheiro: o dízimo – por óbvio
– mas sobretudo “ofertas” em profusão.
Vanderson
Vanderson, 34 anos, negro, pobre e morador da conhecida favela de São Paulo,
Jardim Ângela, é um caso típico do público evangélico que examinamos.
Como quase todos os adolescentes das classes populares, Vanderson teve que
trabalhar muito cedo, e já tinha carteira assinada aos 14 anos. Perguntado sobre
sua vida nessa época, Vanderson responde:
Trabalhei desde cedo. Tive logo o registro em carteira com 14 anos. Entrei no
Grupo Pão de Açúcar, né? Companhia Brasileira de Distribuição. Antes disso, eu
cheguei a trabalhar em feira, também. Aqui no Jardim Ângela, que tem uma feira
de domingo. Também cheguei a trabalhar na feira lá em Moema. Biquinho pra lá,
biquinho pra cá, depois eu consegui esse emprego fixo no Pão de Açúcar, no
mercado. Lá eu cheguei a trabalhar acho que uns 6, 7 anos, mais ou menos. E aí
foi só�entra em empresa, sai de empresa, entra em empresa, sai de empresa.
A carreira do emprego precário, que implica a troca constante de empregos de
pouca qualificação, é uma espécie de destino inevitável para grande parcela da
população brasileira. Com pouco estímulo em casa e tendo frequentado escolas
precárias, adolescentes como Vanderson são desarmados para a competição
social e passam a ser explorados como trabalhadores desqualificados. Vanderson
chegou a cursar alguns anos na universidade, o que ele acha que muito
contribuiu para ampliar seus horizontes de vida. Imaginava que poderia
continuar os estudos, mas aí, como quase sempre acontece nessa classe social,
vieram os filhos – e tudo ficou como mero sonho e utopia:
Aí teve um período que eu ingressei na faculdade, né? Cheguei a fazer na Uninove
tecnologia de comércio exterior. Depois mudei pra tecnologia em logística, aí depois
de seis meses fui pra tecnologia em comércio exterior. Era um curso de duração de
dois anos [refere-se a um curso técnico], porém, quando estava fazendo, chegando
a um ano e meio, fui mandado embora da empresa que eu trabalhava e não tive
como continuar. Mas a minha intenção era dar continuidade e fazer
administração, né? Se eu fizesse mais dois anos, eu pegaria o certificado de
administração. Mas aí não consegui mais. Depois vêm as “cria”, vêm os “filho”, aí
pronto, aí não dá mais.
Como sempre, são as urgências da vida que pegam de surpresa o jovem das
classes populares. Nas famílias de classe média, o jovem se prepara – em geral,
com todo o tempo do mundo – para incorporar conhecimento considerado
legítimo pela sociedade, e apenas depois para formar uma família. Essa é a
trajetória típica de um jovem de classe média. Para o jovem das classes
populares, as urgências se impõem no dia a dia e comprometem o ponto
essencial para qualquer trajetória social de sucesso: o cálculo do futuro e o foco
no que é essencial.
O pertencimento à Assembleia de Deus não veio dos pais, como em muitos
casos que serão examinados aqui. Vanderson já era adulto e, por pressão da sua
noiva na ocasião, passou a frequentar o culto e gostou. Continuou na igreja
mesmo depois que o noivado acabou. Quando perguntei se a igreja o ajuda,
Marcelo respondeu o seguinte:
Eu acredito que sim. Porém, como eu cheguei a frequentar a faculdade, o leque se
abre mais ainda. Mas a igreja ajuda muito. Com certeza. Ajuda principalmente a
saber trilhar os caminhos corretos. Porque há muitos caminhos que você acha que
seria bom, tipo: “Ah, vai pela cabeça de fulano, vai pela cabeça de ciclano!”, só que
aí o final é só dor. A igreja é muito importante pra essa fase de aconselhamento, de
ensino baseado na palavra, mesmo. Em termos de saber onde você anda, com quem
você anda, como você anda. Em termos de companhia, também. Nesse quesito, eu
acho a igreja muito importante.
Mais uma vez, aquilo que é ensinado de modo insensível nos lares de classe
média desde tenra idade – como a importância da disciplina e do foco no
estudo e no trabalho – é conseguido na vida adulta pela tardia socialização
religiosa de muitos membros das classes populares. Com a diferença marcante
do menor respeito à individualidade, dada a rigidez da moral religiosa baseada,
supostamente, na “palavra da Bíblia”. O guia espiritual para iluminar o difícil
caminho da vida é conseguido com o sacrifício do intelecto exigido – em maior
ou menor grau – por toda forma de religiosidade. Por conta disso, uma
individualidade refletida e crítica é tão difícil nesse contexto.
Questionado sobre a recente expansão das igrejas evangélicas, inclusive na
esfera política, Vanderson responde:
Particularmente falando, eu achei bom. Achei muito bom. Porém, ela foi crescendo
e a qualidade foi ficando por último, né? Principalmente essas igrejas
neopentecostais. Aqui no bairro, nos anos 1990, era muito perigoso, tinha muitas
gangues. Hoje são as facções. Antigamente era gangue. Gangue da rua tal, gangue
da rua não sei onde. Então, eu pensava: “Nossa, quanto mais igreja, menos bares,
menos gangue, menos violência e tal.” Antes igreja que boca de fumo.
A rigidez moral se aplica em um contexto de tamanha violência e
vulnerabilidade social que explica sua aceitação de tão bom grado. É uma
forma de garantir para si e para os filhos uma vida “fora do crime” e da
violência que ele envolve. É uma boia de salvação para aqueles que se
encontram ameaçados, por todos os lados, pelos apelos de curto prazo. Além
disso, e ainda mais importante, está o fato de que essa moralidade, apesar de
sua rigidez, “eleva” moralmente aqueles que foram mais humilhados pela vida.
Nesse cenário, podemos compreender o apoio irrestrito de Vanderson, e de
tantos do seu meio social, à politização da igreja no Brasil.
Eu acho que é até bíblico. Tanto é que muitos políticos da época, da classe alta,
foram importantes para a expansão do Evangelho, né? Se não fosse também o
próprio império de Roma, o Evangelho não teria se difundido tanto. É lógico que é
Deus no controle, mas o Império Romano ajudou muito nessa expansão. Eu não
acho pecado. Para mim, quanto mais crente na política, mais próximo do povo a
política ficaria. A igreja tem todo o dever, todo o direito de participar. Aliás, nós,
como brasileiros, participamos muito pouco da política. Mas eu creio nisso: quanto
mais crente o camarada que entre lá no meio da política, melhor. Não concordo
com o que aconteceu naquele começo do ano com aquela manipulação de massa
[refere-se ao Oito de Janeiro e à tentativa de golpe], utilizando os coitados dos
irmãos crentes, inocentes, pra fazer baderna lá. Nem todos eram crentes, ali. Tinha
muito baderneiro. Agora, o que não pode é aquele negócio de igreja ter partido,
como nós vemos no nosso país, infelizmente. Tem certas denominações que já têm
até partido político.
Como muitos, Vanderson considera a partidarização da igreja um mal, mas
tolera e até aplaude a “evangelização” da sociedade e da política. Ele não parece
ser consciente da evidente contradição. Isso vai ser algo que se repetirá em
muitas das entrevistas que iremos discutir aqui mais abaixo. A referência à
politização da igreja abriu a oportunidade para perguntar em qual candidato
Vanderson votou para presidente.
Oxe, claro que Bolsonaro! O “menos pior”. Era o que eu falava: “Ó, eu tô votando
no menos pior.” Pra governador, votei em Tarcísio. Candidatos a deputado, não
lembro. Eu votei em uns “menininho” aqui, que tenta ser político aqui do bairro.
Alguns que eu conheço: “Eu conheço você desde pequeno, então, tem meu voto.”
A ideia de que Bolsonaro é o “mal menor” é uma postura muito frequente no
meio evangélico. Muitos acham difícil defendê-lo, sobretudo por conta da
tentativa de golpe ao seu comando e por seu papel na pandemia – mas o fazem,
assim como Vanderson. A partir daí, podemos ver todo tipo de acrobacia para
justificar o voto. Bolsonaro tende a ser “normalizado” com seus defeitos sendo
percebidos como defeitos de todos os envolvidos na política. Vemos como a
criminalização da política foi, e ainda é, fundamental na sua estratégia e apelo
político. Quando perguntei sobre sua avaliação do governo Bolsonaro,
Vanderson respondeu o seguinte:
Do governo Bolsonaro? Apesar de ele ter falado muita bobagem, como é de praxe,
afinal, se um político não falar tanta bobagem, não é político brasileiro – eu achei
muito honesto e bom em termos de pautas. Embora nisso a pandemia tenha
atrapalhado muito, né? Mas eu votei nele, de boa. Só achei errado esse último lance
dele, de querer militarizar. Isso já não concordei. Porém, sabemos que nossa política
tem muitos barões, né? Então eu não tinha nada o que falar, a não ser essa última
mancha que ele teve, no finalzinho, tentando ficar no poder. A verdade é que outros
partidos também querem sempre isso aí.
O resumo da resposta de Vanderson pode ser elaborado da seguinte maneira:
prestar, Bolsonaro não presta – mas, como ninguém presta, ele está na média
geral. As bobagens que diz, as mortes que causou na pandemia e até a tentativa
de golpe de Estado, tudo fica em segundo plano, já que ele seria “honesto”,
apesar de tudo. A contradição evidente permitiu um aprofundamento que viria
na resposta seguinte, sobre qual valor ou ideia de Bolsonaro Vanderson acharia
interessante.
Então, eu vou ser sincero. Não por eu ser crente, mas porque conheci e conheço
muitas pessoas que vieram do PT. E também não por conta desse negócio de
“direita, esquerda” e tal. Pra mim, pode vir qualquer camarada, qualquer político
que venha disputar voto pelo PT, PSOL, essas “encrenca” aí, que eu voto sempre do
lado branco da coisa – do lado negro, do lado vermelho, enfim! Porque as pautas
deles são muito complicadas. Qualquer cristão, não só evangélico, deveria perceber
mais. Porque eles não tão nem aí. Eles querem destruir a sociedade, liberar
maconha. O negócio deles é só esse, entendeu? Eu votei no Bolsonaro mais por isso.
Porque eu sabia que era o único que ia bater de frente com os “petralhas”, como se
diz por aí.
O antipetismo popular mostra aqui toda a sua força, e ela é evangélica. Se na
classe média o falso moralismo da corrupção seletiva é decisivo, nas classes
populares decisivo é o ganho compensatório do narcisismo da pequena
diferença, que está embutido na rigidez moral e regressiva das igrejas
evangélicas. Vale, como estamos vendo, qualquer malabarismo para conciliar
visões que entreguem ao crente aquilo que ele mais necessita: autoestima em
um mundo que o humilha desde seu nascimento.
Perguntado sobre a pauta LGBT+, Vanderson revela a estratégia típica do
moralismo evangélico de acusar as minorias oprimidas de estarem pedindo
privilégios inadmissíveis.
Eles pedem leis, e mais leis, e mais leis só pra benefício próprio, sendo que todos
somos “todos iguais perante a lei”. A classe política tem um tipo de lei pra eles, que
defende eles. A classe LGBT+ quer uma lei que os defenda também. Aí vem a classe
racial: é o negro, os “branco”. Os negros, os morenos, os pardos querem leis pra eles.
Depois vem o feminismo, né? As mulheres querem ganhar o mesmo salário que os
homens. Imagine, se cada um vai puxando pro seu lado! Haja lei. Não vai poder
nem piscar mais que você vai estar “infringindo a lei do grupo tal”. Entendeu? O
que nós vemos é isso, conflitos de interesses. Essa é a realidade. Eles não pensam em
toda a sociedade. Eles querem uma lei só pra eles. Já pensou se os motoboys quiserem
uma lei só pra eles, os taxistas outra lei? Onde nós iríamos parar? Então, que eu
percebo é isto: pessoas querendo privilégio demais. Principalmente os dessas classes
de LGBT+. Não tenho nada contra, cada um faz o que quer e não é da minha conta,
segue sua vida. Mas não dá pra querer ter um privilégio maior do que o de um pai
de família. A lei tem que ser boa e saudável pra todos.
A estratégia conservadora é acusar a justa compensação às minorias perseguidas
de pretenderem um privilégio indevido e exagerado em uma sociedade
igualitária. Isso é algo que já havia percebido desde nossa primeira pesquisa
empírica com os membros da “ralé”, excluídos e abandonados de tudo. São eles
os mais meritocratas. São eles quem mais apoiam todos os preconceitos
produzidos pela elite e seus prepostos conservadores para oprimir os negros e os
pobres como Vanderson.
O que é óbvio e não deveria causar surpresa, já que são também, pelo seu
abandono e exclusão, os menos aptos cognitiva e emocionalmente para se
defenderem. Desse modo, se tornam presa fácil da oposição entre o pobre
decente (ou “homem de bem”) e o pobre indecente ou criminoso. É a partir
dessa falsa e artificial distinção operada pela orientação sexual que faz com que
Vanderson, e muitos como ele, sintam-se “moralmente” superior aos seus
irmãos de infortúnio.
Esse fato da tentativa desesperada de se dissociar dos desonrados – por
definição, o negro e o pobre na nossa sociedade – faz com que Vanderson
assuma todos os preconceitos contra os de sua cor, como fica explícito na
resposta sobre a necessidade ou não da câmera dos policiais nas suas
abordagens.
A câmera por um lado ajuda, por outro lado não. Ajuda por causa dos excessos.
Muitos policiais cometem excessos. Porém, também inibe muitos policiais de� né?
Todo polícia age na força, porque ninguém tem escrito “bandido” na testa
[passando o indicador na própria testa], mas as caras dos camaradas às vezes já
denunciam. A tua cara já denuncia, né?
A cara que denuncia, sabemos todos, é a cara do negro pobre, assim como a de
Vanderson. Ele, no entanto, é convidado a participar de um contexto moral em
que assume o olhar do seu opressor como se fosse seu. Vanderson
“embranquece” ao ficar do lado do opressor contra seu irmão negro perseguido.
É essa traição que se exige para todo negro que queira ascender entre nós. A
ascensão tem que ser individual – como no identitarismo neoliberal de hoje – e
assumir, como se fossem seus, os ódios dos opressores contra os seus iguais. É
exatamente o que o moralismo evangélico almeja: parasitar a própria
vulnerabilidade social de sua clientela para vender uma fantasia compensatória
de participação na moral elitista dominante.
Ao perguntá-lo se já havia sentido xenofobia – sempre uma forma mascarada
de racismo “racial” –, Vanderson conta o seguinte:
Não. Até porque, aqui no Jardim Ângela o que mais tem é nordestino. Cheguei a
conhecer algumas cidades em Santa Catarina. Cheguei a conhecer o Paraná,
também. Uma cidade chamada Cornélio. Mas, pelo menos aqui em São Paulo, e
também no Nordeste, lógico, você vê o povo também muito humilde. Já nesses
estados, você vê um povo muito mais fechado, tanto em Santa Catarina quanto no
Paraná. Nesses termos aí, de xenofobia, mais nesses estados. Aqui, não. Assim, tem
esse negócio de: “Só podia ser baiano, mesmo”, essas coisas que vem do passado. “Ô,
pernambucano”, “Ô, alagoano”. Mas em termos de ira contra a pessoa só porque ela
mora aqui, na periferia nunca vi isso, não.
Logo a seguir, no entanto, lembra-se de casos que presenciou também em São
Paulo.
Eu trabalhava num escritório de commodities. Aí lá, sim, tinha um camarada, um
sócio de um ex-patrão nosso. Com as coisas dele, as palavras dele, o jeito dele, ele era
xenófobo. Porque também ele filho único, cresceu lá no Paraíso, bairro nobre e tal.
Nunca saiu da região central de São Paulo. O máximo que ele ia era a Vila
Olímpia, então ele era muito de falar algumas frases tipo: “É, esse baiano”, “esse
nordestino”, mas ele não falava conosco. Ele falava com o patrão dele, com umas
outras pessoas e, às vezes, com quem ele falava por telefone.
Por fim, perguntei como Vanderson se vê hoje, tendo um pequeno comércio
que construiu na garagem da casa da mãe. Ele diz: “Tô na fase de construção,
ainda. Consegui botar um ponto comercial na garagem da minha mãe, né, na
realidade. Sou empreendedor� Sonho de um empreendedor.”
Ederson
Ederson é negro, carioca e mora em São Paulo desde os quatro anos. Mora no
Capão Redondo, zona periférica de São Paulo.78 Seu pai se mudou para São
Paulo porque não teria se habituado à malandragem carioca.
No Rio de Janeiro foi sempre muito quente! E meu pai nunca se adaptou ao clima.
E também à diferença de trabalho. Mesmo sendo ainda funilaria e pintura,
parecendo a mesma coisa, a cultura deles de trabalho, de preço, de modelo de
trabalho, mesmo, é totalmente diferente. Muita malandragem, sabe? E aqui o
negócio era mais sério. Sempre foi muito sério. Então meu pai não conseguiu se
adaptar de jeito nenhum. É outra situação.
O novo paulistano, vindo do Rio, já introjeta toda a mística que
desenvolvemos acima – do “excepcionalismo paulista” – na sua versão popular
da oposição trabalho/preguiça. Ederson incorpora uma espécie de tipo ideal do
evangélico da periferia. Como todo pobre, é refém de todos os preconceitos
que a elite construiu para oprimi-lo. A começar pela oposição entre “SP do
trabalho” (o que mostra o que discutimos acima sobre a penetração do
“excepcionalismo paulista” em todas as classes) e “RJ da vagabundagem”.
Questionado sobre sua vida escolar, Ederson responde que sempre
frequentou a escola pública. Sua vida foi de “trampo a trampo” desde os 11
anos, quando começa a ajudar o pai na funilaria improvisada. No entanto, teve
que fazer faculdade “na marra”:
Eu, com 11 anos, trabalhei com meu pai quando fui pra Aracati. Trabalhei com ele
na oficina. Porque como o terreno era grande, ele pegou e montou o salão – fez o
salão na frente, montou a oficina, e eu trabalhei com ele até os meus 18, 19 anos.
Só que quando eu tinha 19 anos, meu pai… Não é que ele era muito rígido, ele era
muito certo. Sabe quando a pessoa é muito certinha? Começou a não dar certo nós
dois juntos. Aí eu falei: “Ó, pai, não tá dando certo. A gente não tá dando certo. Tá
dando muita discussão, muita briga, eu vou tomar meu rumo.” Fui procurar
emprego, e ele falou: “Vai, meu filho, vai lá.” Arrumei um emprego em uma
empresa de office boy. Fiquei acho que 8 meses. Aí eu saí e fui para uma
administradora de condomínios, fiquei uns 3 anos. Em 2001, eu entrei em um
escritório de advocacia e fiquei até 2013. Eu entrei como office boy interno, lá, e fui
crescendo, sendo promovido. Aí chegou num ponto em que mudou a gerência,
mudou a gerente. Uma dessas gerentes era bastante exigente, e perguntou quem era
formado e quem não era. Depois de um tempo, ela avisou: “Quem não tem
faculdade, vai ter que começar a fazer. No próximo ano, tem que estar fazendo
faculdade. Quem não entrar, infelizmente, vou ter que dispensar”. Foi simples
assim, direta e reta. Então eu comecei a estudar e fui atrás da faculdade. Fiz gestão
financeira na Unip. Aquele curso mais rápido, de dois anos, porque eu precisava de
diploma, precisava de faculdade pra poder ficar na empresa. Eu fiz tudo e consegui
ficar lá até 2023. Aí esse foi o curso que eu fiz, que foi a faculdade, né?
Ederson hoje assumiu a antiga funilaria improvisada do pai porque batalhou,
sem sucesso, apesar de formado, por um emprego melhor. Ele se casou e teve
dois filhos. Evangélico desde criança por influência dos pais, também considera
a igreja fundamental na educação dos filhos. Aliás, mudaram de igreja, dentro
da denominação batista, para uma que oferece infraestrutura para as crianças.
Na vida do pobre, a igreja é tudo, inclusive lazer.
Quando perguntei sobre o motivo da igreja ser fundamental na educação dos
filhos, Ederson respondeu o seguinte:
Acho que por conta do ensinamento em si, da Bíblia, mesmo. Com relação ao
respeito aos pais. Começando dentro de casa, como o próprio Jesus ensinou, que a
gente vai ter mais anos de vida na terra se honrarmos nossos pais e mães. Esse
ensinamento, logo de cara, é fundamental, porque é o futuro deles, né?
E para os adultos, você acha que a igreja ajuda a tomar melhores decisões
políticas?
Cara, pensando na minha, por exemplo, o Bolsonaro, tem os problemas que ele
teve, né? Umas condutas que muita gente não concorda, mas se você comparar com
o governo de hoje, ele era um cara que pensava em família, um cara que a esposa
era cristã. Ele tem uma ideologia voltada ao cristianismo, mesmo, né? E meu pastor
sempre apoiou isso.
A influência do pastor era mais direta ou indireta?
É�mais indireta. Ele falava e deixava em aberto. Cada um tem o livre-arbítrio
pra votar em quem quiser, né? Mas, por mais que seja estratégia política do
Bolsonaro de querer conquistar a família pelo lado da igreja, cara, é a melhor
opção! Como os princípios cristãos estão atrelados a ele, então você acaba indo mais
pro lado dele. Meu pastor não era tão explícito, mas ele meio que dava aquelas
indiretas, entendeu? Pra dar uma incentivada no povo.
Para bom entendedor, meia palavra basta, né?
Isso! Exatamente. Mas, assim, eu procuro nem misturar muito igreja com política.
Porque isso já é uma cultura antiga aqui no Brasil, né? Eu, particularmente, não
concordo com o pessoal da política que usa a igreja pra se beneficiar. Mas,
infelizmente, é uma coisa que acontece muito hoje.
Ederson nos permite uma entrada interessante no modus operandi evangélico.
Nenhuma outra questão importa, a não ser os “valores familiares” que estariam
ameaçados por um presidente não cristão (leia-se não evangélico e não ungido
pelos pastores). Sobre o resto da vida social, nenhuma palavra. Até mesmo pelo
foco nessa questão fica claro, para o crente, que ela é o dado essencial. Coisa
que ele havia experenciado consigo próprio e na sua família, com ajuda e apoio
ao invés de abandono. Como sua boia de salvação é o moralismo mais grosseiro
e rígido, ele não tem outra opção a não ser seguir o rebanho. Como toda
religião, o cristianismo emotivo evangélico quer controlar o corpo e a alma do
fiel.
Questionado se o país teria regredido com Lula, a resposta de Ederson é
taxativa:
Ah! Piorando, sem dúvida! Eu não consigo entender até hoje como é que o Lula tá
no poder. Depois de tudo o que ele fez, de tanta corrupção, de todas as provas que
contra ele, das pessoas que estavam em volta dele, de tanta coisa errada, tanta
roubalheira. E quem sofre com isso é o povo. Bolsonaro se queimou por conta da
questão das vacinas na pandemia, e Lula se beneficiou disso. E o que ele faz?
Promete coisa que ele não pode cumprir, porque o objetivo dele é a pobreza, e aí
mira em quem? No pobre. “Vou dar picanha”, muita gente cai. Eu ainda não sei se
essa votação foi real. Muita gente fala que foi estranho, porque foi os números
foram muito próximos. Por mais que o Bolsonaro tenha feito algumas coisas
erradas, principalmente na pandemia, o Brasil tava melhorando, a economia tava
melhorando com o Guedes lá, cara! Aos poucos, mas tava melhorando. E aí entra o
Lula e a primeira coisa que ele faz é trazer o presidente da Venezuela, o Maduro,
cara! Ditador, mano! Pelo amor de Deus! E o tanto de dinheiro que o governo deu,
na época do Lula, pra esses países de fora enquanto o Brasil estava precisando tanto.
Os caras dando dinheiro pra fora, e o povo aqui só se ferrando.
Ederson é vítima de todas as fake news construídas para criar uma realidade
alternativa imaginária e protegida por uma bolha religiosa de pessoas que
experimentam, pela primeira vez, o fato de ter uma opinião e de ter a
impressão de que ela é relevante para alguma coisa. Eles se sentem parte da
política e não mais alijados dela. Não é uma opinião própria, nem
independente, mas “parece” ser dele. Toda as vezes em que foi perguntado
sobre essas questões políticas, a ambiguidade e a confusão eram a marca de
todas as respostas, ainda que o ponto de vista conservador seja dominante.
Vejamos o que ele diz sobre segurança pública e a necessidade de câmeras para
os policiais:
O governo de hoje, assim, ele protege muito o ladrão. Esse negócio de direitos
humanos, assim, ele protege muito o ladrão. Se você tem câmera, você fica inibido
de dar uma correção pro cara que tem que ser. É� mas, também, tem uns caras
que se aproveitam, tem policiais que são corruptos que se aproveitam da situação
e� às vezes matam um inocente também, entendeu? Então, assim, eu acho que a
questão da câmera até que é boa, porque�sei lá, evita os cara de matar inocente.
Porque já teve caso dos cara matar inocente, entendeu? Evita… abuso de poder dos
cara, entendeu?
Apesar de perceber o mal uso da força e o abuso policial, a ética do “bandido
bom é bandido morto” (quase sempre um negro, como Ederson) domina a
visão de mundo de Ederson e de muitos de sua classe. De resto, ele confirma
toda a visão conservadora, a começar pela família e pela “ameaça” LGBT+.
Ah, cara, eu vejo muito a questão da internet. A internet hoje é um veneno para as
crianças. Na escola do meu filho, uma escola cristã, da Adventista79, tem criança
com oito anos que fala coisas que te deixam chocado: “Eu não gosto de gosto de
menina”, “Eu vou, casar com homem”, entendeu? De onde que eles tiram isso?
Como que, com oito anos, a criança já sabe o que é gay, o que é lésbica? Não
poderiam já estar falando um negócio desse. Isso em uma escola evangélica! Imagina
numa escola pública, que já tem o aval de poder usar aquelas apostilas� que, na
época do Bolsonaro, eles tiraram, mas não sei se agora voltou. Agora imagina isso
tudo na cabeça de uma criança que não tem o acompanhamento dos pais, que tá
na mão de um governo desses que não tá nem aí? Pra eles, é abertamente livre, é
tudo normal. Então a tendência de uma criança dessas, Deus me livre!
Ederson parece acreditar piamente no “kit gay” e em uma ameaça à família
tradicional formada por homem e mulher. Para ele, foi Bolsonaro quem os
livrou da ameaça do “kit”, mostrando a realidade virtual em que habita. Como
quase todo pobre de direita, Ederson abomina o Bolsa Família e, por
contiguidade, os nordestinos tidos como únicos beneficiários:
Como lá no Nordeste é tudo mais barato, eles só recebem esse Bolsa Família, pagam
o que tem que pagar e vão pro bar beber, jogar sinuca. Acaba deixando os caras
tudo vagabundo, não querem trabalhar! Você tem um governo que pode te pagar
um salário, uma ajuda de custo, então você não vai correr atrás de emprego, não
vai atrás de nada, entendeu? Eu acho que falta controle.
Todos os preconceitos elitistas contra os pobres são percebidos por Ederson
como se fossem seus. Esse é o processo de branqueamento real em ação no
nosso país – e a forma como ele opera na consciência do oprimido. Um preto
que pensa como branco e odeia seus irmãos. Para que não falte nada da visão
de mundo bolsonarista associada à igreja evangélica, que Ederson passa a
defender como se fosse escolha própria, temos sua última fala bem significativa
de tudo o que estamos discutindo aqui:
Esse Alexandre de Moraes, por exemplo, ele manda em tudo, parece que o cara é
que é o presidente! Ele que manda em tudo. Eu tiro essa medida muito pelos
Estados Unidos, um país que eu admiro demais. Já tive a oportunidade de ir pra
lá. Já passei férias lá com minha esposa. E, cara, é um país sensacional em termos
de organização, de respeito, patriotismo. Em cada casa você vai ver uma bandeira
dos Estados Unidos. A cultura deles é sensacional e eles pensam no povo.
Marluce
Marluce teve a mesma vida de todos que estamos analisando aqui. Afinal, a
maioria da clientela evangélica provém das classes populares. Nasceu em
Parelheiros, região periférica de São Paulo, e, como quase todo mundo da
periferia da grande metrópole, é filha de nordestinos. Frequentou a escola
pública no primeiro e no segundo grau e, também como quase todos de sua
classe social, teve que trabalhar desde muito cedo.
Comecei a trabalhar com 15 anos. Nada registrado. Tinha uma vizinha que
precisava de alguém pra limpar a casa, então eu ficava uns dias limpando a casa
dela, tipo duas vezes na semana. Cada dia que eu ia, ela me pagava 50 reais.
Depois eu ajudei a cuidar de criança. A outra vizinha tinha quatro filhos, eu
ajudava levando pra consulta, essas coisas. Aí eu conseguia meu dinheirinho.
Quando eu fiz 17, na rua onde eu morava, mesmo, teve um vizinho que abriu
uma fábrica de chicotes eletrônicos80 que fazia alguns cabos elétricos de máquina de
bingo, máquina caça-níquel. Precisava de mão de obra barata, sem registro, pra
trabalhar. Aí com ele eu trabalhei mais ou menos uns quatro anos.
Quando se tornou adulta, Marluce trabalhou muitos anos em telemarketing,
um trabalho do qual não gostou, e agora é auxiliar administrativa em uma
Unidade Básica de Saúde (UBS) na periferia da capital. Marluce se tornou
“bleia” – apelido de quem é fiel da Assembleia de Deus – somente aos 28 anos,
em uma igreja de sua região. Foi lá que conheceu seu atual marido. Os dois
eram ativos na igreja, e acabaram se conhecendo e se apaixonando.
Para ela, a igreja foi fundamental para a incorporação de uma nova ética do
trabalho:
Ah, ajuda, sim. A igreja desenvolve alguns perfis na gente que, por exemplo, eu
mesmo não me via neles. Tipo liderança, né? O perfil de liderar jovens, de ser
modelo para alguém, trazer uma visão pra alguém. Isso aí a gente acaba
desenvolvendo na igreja e vira até algo natural, do seu dia a dia. Esse negócio de
delegar funções, de organizar as coisas. A igreja trabalha muito assim: “Ah, temos
um projeto”, e aí pra realizar o projeto precisamos entender ele, definir tudo
certinho como forma de execução, qual valor precisa ser arrecadado, qual a forma
de arrecadação, horário, roupa, programação. Então, a gente trabalha com tudo isso
na igreja e no serviço isso não é diferente. Como eu comecei a ser organizada para
as coisas da igreja, isso se refletiu no serviço isso refletiu também. Aquele perfil de
liderança. Onde eu tô, praticamente não preciso de uma chefia. É a gerente
tratando comigo. Você vê que eu não preciso mais que alguém fique mandando eu
fazer as coisas. Eu já tenho um olhar mais amplo. Eu acredito que é por conta da
igreja, mesmo. Por conta desse convívio da igreja.
Mas a vida do nordestino não é fácil em lugar nenhum, e Marluce, que nasceu
em São Paulo, mas se considera baiana porque toda a sua família vem da Bahia,
tem muito a relatar sobre preconceito e xenofobia – mero eufemismo para
racismo “racial”, como estamos vendo no decorrer deste livro:
Já ouvi coisas sobre a localidade, né? Porque minha família é toda baiana, então eu
falo também que sou baiana. Sou de São Paulo, mas eu também sou baiana porque
eu tenho sangue de baiano. Uma mistura, porque minha mãe é de Pernambuco.
No Sul, a gente ouve: “Ah, isso é coisa de nordestino”. Umas piadinhas, sabe? Tipo:
“Nossa, que baianada que foi feita aqui”, uns comentários assim, mesmo. E me
incomoda isso de sempre comparar o Nordeste com alguma coisa ruim. Sabe? “Ah, é
coisa de desleixado, é coisa de nordestino.” E não é! Não é! Se você parar pra pensar,
a cidade de São Paulo só tá construída hoje por causa desse povo todo que veio do
Nordeste trabalhar aqui, né? Eles ajudaram no desenvolvimento. Eles não são
menos importantes, não são menos inteligentes por conta disso. É bastante trabalho
braçal? É. Mas não é pra desprezar, muito menos por ter vindo veio do Nordeste. O
Nordeste, se você for visitar, é muito lindo! Eu teria muito orgulho de dizer: “Eu
moro lá na Bahia”, “Eu moro em Pernambuco”. Você já viu as praias de lá?
Limpíssimas! Aí você vem para as praias no litoral sul de São Paulo, tudo largado.
Outro tipo de preconceito que incomoda Marluce é o exercido pela orientação
religiosa. Para ela, o “crente”, como se designa comumente o evangélico, é
vítima de um preconceito virulento e desrespeitoso.
Tipo: “Ah, crente é tudo doido”, “Crente é tudo fanático, só Bíblia”, né?
Principalmente quando você é cristão e se identifica como cristão, seja na faculdade
ou seja no trabalho, qualquer atitude sua é: “Pera aí! Você ficou brava? Mas você
não é cristã?”. A sua referência é o cristão, né? Você tem que agir com uma atitude
que, pra eles, é a coerente, né? Eles esquecem que você é ser humano.
Quanto à pauta de costumes – como a orientação sexual e estilo de vida –, a
posição de Marluce é mais matizada, sobretudo se comparada às falas dos
homens que estamos entrevistando, que exalam homofobia reprimida. Para ela,
cada um pode e deve definir ser quem se quer ser, mas não aceita que as igrejas
sejam obrigadas, por exemplo, a realizarem casamentos homoafetivos:
A ideia de “Eu vou obrigar as religiões a aceitarem e fazerem os casamentos dentro
das suas igrejas” fere um princípio cristão. É meio complicado. Quando é por lei,
pelo cartório, meio que tipo, o cartório tem uma diversidade, ele é para todos os
brasileiros. Agora, a religião já é uma outra coisa. É uma outra vertente. Então, é
meio complicado dizer: “Eu vou obrigar os pastores a fazerem o casamento
homoafetivo”. Eu não concordo com essa obrigação porque fere, realmente, os
mandamentos, tudo o que a gente vê na Bíblia. Ah, tudo bem, a Bíblia é antiga,
tem mais de 2 mil anos e tudo o mais. Mas o máximo que a gente pode absorver e
fazer com aquilo que tá escrito, a gente faz. Né?
Também em relação à política – e ao entrelaçamento entre religião e política –,
a opinião de Marluce é mais refletida e crítica. Para ela, as duas coisas não
devem se misturar tanto, e não considera razoável que a igreja leve candidatos
ao púlpito.
Eu não concordo, por exemplo, com ficar chamando candidato e fazendo boca de
urna dentro da igreja. É importante você parar e pesquisar, né? Eu vou votar em
quem? Qual é o projeto de lei dessa pessoa? Quem é essa pessoa? O que ela já
construiu de projeto político no Brasil? Tem a ficha limpa? Condiz com o que eu tô
pensando? É o mínimo. É o mínimo de todo cidadão e de todo cristão também. A
gente não pode se apartar disso.
A escolha por Bolsonaro para a presidência não foi uma escolha fácil nem feita
com entusiasmo por Marluce. A postura de Bolsonaro na ocasião da covid-19
foi um episódio decisivo para essa dificuldade. Mas a necessidade existencial de
uma “boia de salvação moral”, ou seja, alguma dimensão da vida onde alguém
como ela pudesse ser vista – pelos outros e por ela própria – como uma pessoa
“respeitável” foi o aspecto decisivo da escolha, aparentemente irracional:
Foi uma batalha. Eu meio que me senti sem opção, mas acabei votando no
Bolsonaro. Por incrível que pareça. Eu não concordei com todo o modo de política
dele, e a postura dele diante da covid, achei bem decepcionante. Mas eu via que ele
também seguia, não sei se por coação, por uma linha da família, da preocupação
com os lares, com o que estavam apresentando de material escolar e tudo o mais. E
aí eu acabei indo por essa linha. Falei: “Bom, até agora foi o que me pareceu
melhor, vou nesse.”
Se nos aprofundarmos nas razões da escolha de Marluce, logo teremos o rastro
do antipetismo cevado pela grande imprensa durante vários anos. Para muitos
das classes populares, o simples bombardeio midiático generalizado parece ser
um atestado da verdade. O debate sobre as irregularidades da Lava Jato nem
sequer chegou a ser acolhido nesse meio.
Eu fiquei com pé atrás com o PT. Desde quando o Lula foi preso, eu não voto mais
no PT. Até porque eu acho que, na verdade, ele nunca saiu do poder. O Lula saiu,
ele deixou a Dilma, mas, pra mim, ela sempre foi manipulada por ele. Então,
querendo ou não, é meio que um comunismo ali. Eles estão presos naquela cadeira,
num domínio, por muito tempo. Eu não vejo uma grande diferença. E sempre a
saída é dar uma bolsa. É bolsa pra isso, bolsa pra aquilo. Que nem, agora, o carro-
chefe dele foi “dar picanha”. Eu não quero! Eu consigo trabalhar e ter uma
picanha. Eu quero algo mais efetivo. Eu queria uma escola mais bem estruturada,
entendeu? Então, assim, são projetos de leis que não me agradam. Ainda são
candidatos que já tem a ficha suja. Então, eu não vou votar assim. Também não foi
uma escolha muito feliz no Bolsonaro, mas a gente vai tentando.
A penetração do antipetismo popular está umbilicalmente ligada à ampla
aceitação da meritocracia, sobretudo entre os mais pobres. Como sempre, os
mais oprimidos são os que possuem menos condições de se insurgir contra os
valores que os oprimem. A reflexão de Marluce sobre o Bolsa Família e outras
cotas sociais refletem perfeitamente essa aceitação acrítica. Para ela, o Bolsa
Família não deve apenas “dar dinheiro”, mas, também, exigir contrapartidas –
que já existem, mas Marluce e muitos pobres não sabem.
Com essas bolsas, tipo Bolsa Família, eu até concordo, em um certo nível. Pra
família de extrema pobreza, mesmo. Que não teve oportunidade pra nada. Ter uma
forma de tirar essas pessoas da extrema pobreza, beleza. Mas eu acho que não é só
dar o dinheiro, tinha que ter uma cobrança. Por exemplo: “Vou te dar um
dinheiro, mas quero que você matricule na escola tua filha.” Ou: “Vou te dar um
dinheiro, mas você tem que procurar trabalho.” Ou dar um curso pra essa pessoa,
preparatório para um trabalho. Eu sempre aprendi que devemos “correr atrás”.
Vamos fazer acontecer, né? Agora, já tenho uma visão um pouco diferente quando
se trata de estudo. Por exemplo: bolsas de estudo. Acho que tinha que ser que nem
nos países de Primeiro Mundo: todo mundo que estudasse, tinha que ter direito ao
acesso à faculdade. E aí vai concorrer quem consegue o acesso às melhores
faculdades. Entendeu? Quanto melhor nota tiver, a melhor faculdade vai estar mais
ao teu alcance. Mas todos deveriam ter o direito de ir pra faculdade. Infelizmente,
isso não acontece. O ensino público é defasado, vai pra faculdade pública quem tá
na escola particular. Inversão de valores. Eu acho que quem estudou em escola
pública, sim, deveria ter sua oportunidade de bolsa, de cota, seja o que for. Ter, pelo
menos, mais uma oportunidade. Nessa vertente de estudo, acho que quanto mais
oportunidade, melhor.
A opinião mais matizada de Marluce se deve provavelmente ao seu relativo
maior tempo de estudo, inclusive universitário. No entanto, percebemos na
fala de Marluce o quão difícil é o avanço de alguém mais pobre, mesmo que
tenha determinação e vontade de estudar. Em seu caso, o estudo não a levou
mais longe. Parece que o diploma não melhora a sua vida. Isso a fez tomar um
choque de realidade e não esperar tanto do estudo.
Depois que eu terminei o ensino médio, eu fiz o curso de artes visuais. Faculdade.
Mas no último ano, desisti. Não quis mais. Comecei a trabalhar, fui fazer estágio,
me decepcionei muito com a realidade. Aí eu falei que não queria mais esse
caminho escolar. Tranquei a faculdade e não voltei mais. Hoje, eu faço faculdade
de teologia. Estudo todo dia. Estou no terceiro ano. E, assim, eu gostei muito porque
tirou algumas dúvidas minhas dessa parte religiosa, do cristianismo e tudo o mais.
E de outras vertentes também, de outras religiões. Mas eu também não vou
trabalhar nessa área, né? Eu vou terminar a faculdade de teologia e pretendo fazer
gestão hospitalar em algum momento, pra me manter na área da saúde, mas dentro
desse olhar administrativo.
Edvani
Edvani nasceu em Jardim Progresso, na periferia da Zona Sul de São Paulo.
Apesar de ter estudado em uma escola particular perto de casa até a oitava série,
sua vida não difere muito dos perfis aqui analisados. O segundo grau ela teve
que fazer na escola pública e já trabalhar – como sempre, sem carteira assinada
– a partir dos quinze anos.
Edvani teve uma família estruturada, com pai e mãe morando juntos, mas o
decisivo aqui é a escola precária, seja pública ou particular, e a necessidade
desde muito cedo de combinar trabalho e estudo. Essa é a condenação do
pobre, que, nesse contexto, mesmo se conseguir vingar e ter acesso a alguma
forma de qualificação do trabalho, sempre trará as marcas da socialização
escolar precária. Ela nasceu praticamente dentro da igreja, a Assembleia de
Deus, na qual seus pais já eram ativos e envolvidos. Edvani guarda boas
lembranças desse período de sua vida.
Importante, pra mim, foi partilhar momentos, ali, com as pessoas. A troca de
ideias. Teve também um grupo de estudo bíblico que nós fizemos. Inclusive, bem
legal! Eu pude aprender bastante. Acho que é isso, a troca entre as pessoas – de
conhecimento, tudo, no geral. Eu curtia muito estar junto da galera. E tinha
momentos de louvor aos sábados, que eram os encontro dos adolescentes. Tinha
louvor, tinha ministração. Bem legal. A Bíblia é muito complexa, né? Assim, não é
fácil. Mas esse grupo de estudo me ajudou a enxergar algumas coisas que eu não
conseguia enxergar, eu mesma, lendo. Ajudou a ter o conhecimento de ler a Bíblia,
né? Uma forma boa de interpretar.
A igreja fornece aos pobres praticamente tudo o que eles precisam. Como o
abandono social dessas pessoas é profundo, passa a ser um espaço único de
sociabilidade e ajuda mútua. Como todos precisamos dotar o mundo de
sentido e de pertencimento, é aí que a igreja evangélica – que, como toda
igreja, dá o que os clientes querem – mostra toda a sua força de arregimentação
popular.
Na verdade, a igreja somos nós, né? Estar na igreja, com um líder, é estar com
alguém que intercede por você, com uma espiritualidade maior, ou melhor, com
uma força maior pra ajudar espiritualmente. Então nisso eu vejo importância da
igreja, hoje. Né? Não que a tua oração, teu pedido não cheguem lá em cima, mas
eu acredito que a gente precise dessa rede de apoio, de uma oração maior. Uma
cobertura espiritual!81
Questionada acerca de suas posições políticas, Edvani não se sente tão à
vontade. Para ela, é o mesmo que falar sobre algo que não se compreende. A
influência da igreja vem preencher esse hiato. Quando falo sobre a mistura
entre religião e política, ela responde:
Eu não entendo muito de política, não, viu? Mas eu acho que são áreas totalmente
diferentes. Eu não vejo que tem uma ligação entre política e religião. Na minha
cabeça, os dois não se ligam. Existem discussões na igreja sobre isso. Então, como eu
vou de vez em quando, né? Fui a um culto antes da eleição e eles pediam para orar
pela nação. Independentemente de quem fosse ganhar, eles estavam orando pela
nação, então que fosse feito o melhor pela nação. E foi isso. Não levantaram
bandeira. Se levantaram, eu não vi. No dia do culto que eu fui, eles tavam orando
pela nação.
A influência e manipulação política, muitas vezes, como no caso de Edvani,
não ocorre de modo explícito. Como na passagem acima, os nomes dos
candidatos não são ditos, e a influência óbvia no caso – já que orar para a
“nação” nesse contexto é orar para Bolsonaro – torna-se ainda mais eficiente,
visto que se dá como se não acontecesse. Edvani se sente representada pelo
bolsonarismo – como sempre, por dois fatores que se combinam: a pauta de
costumes conservadora e regressiva e o tema da (in)segurança pública:
Assim, não que eu seja contra, tá? Não. Nada contra os LGBT+, mas tudo isso tá se
tornando muito explícito, e preocupa por conta das crianças. Hoje eu tenho minha
cabeça formada. Mas, querendo ou não, as crianças crescem num mundo com essa
influência. Se hoje meu filho está aqui, e eu sou casa com uma mulher, no futuro
ele pode se casar com um homem! Ele pode casar com mulher? Pode, mas a
tendência é de que os filhos se espelhem nos pais.
Sobre a questão da segurança pública, sua resposta foi a seguinte:
Pela liberação, pela liberdade que tá em tudo hoje, você não tem mais segurança de
sair na rua, durante a noite� Você sai sempre com medo. Eu fui roubada dentro
da minha casa! Entendeu? O portão tava aberto, entraram e levaram a moto. Que
segurança eu tenho? Tá ficando muito liberal, e ninguém é punido. Essa liberação
toda me preocupa. Tanto na questão que levantei antes quanto nessa questão de
segurança, em tudo.
Edvani também não nos decepciona quando perguntamos acerca do terceiro
tema fundamental para a extrema direita, que é a crítica a qualquer ajuda do
Estado. Ainda que a opinião de Edvani seja mais matizada do que a da maioria
das entrevistas acima – isso parece ser uma qualidade feminina por nossa
amostra – ela repete muitas das críticas elitistas contra os mais pobres.
Interessante, nesse contexto, é que Edvani, quando questionada mais adiante
sobre as cotas universitárias, sendo obviamente uma mulher parda e, portanto,
afrodescendente, percebe-se como “branca” e reflete como se esse fosse o seu
lugar efetivo. Esse fato é uma espécie de corolário do processo de
embranquecimento entre nós: a perda da referência racial vai junto com a
perda de seu lugar social e político, assumindo os preconceitos elitistas como se
fossem seus.
Acredito que o Bolsa Família pode ser bom pra quem realmente precisa. Mas
conheço muitas pessoas que não têm necessidade e recebem. Isso torna a pessoa
preguiçosa. A pessoa que eu conheço não trabalha, não faz nada, só vive disso. Não
tem uma inspeção pra conferir se a condição da pessoa é verdade ou não, entendeu?
Então, é muito fácil você conseguir� Não, mentira! Não é fácil não, porque eu
tentei e não consegui. É verdade! Até hoje nunca saiu. Mas agora eu tô
trabalhando, então� né? Eu acho que quem realmente tem necessidade, tem que
ter ali� Poderia ter alguém, alguma assistente social que fosse acompanhar a
necessidade da pessoa. Eu vejo por esse lado. Tem muita gente que usa de má-fé. É
bom, sim, pra quem realmente precisa. Mas muita gente que age de má-fé.
Sobre as cotas, sua opinião é a seguinte:
Eu acho que todo mundo tem capacidade. Tá? De conseguir passar, de estudar –
todo mundo tem a capacidade. Cota você fala para os negros e essas coisas, né? Eu
não sou a favor, mas não é porque sou branca. Quando você faz o enem, lá na
prova você não especifica se é branco. Na prova, não. Independentemente da tua
pontuação. Tem isso quando você vai fazer o cadastro. Aí pedem, né? Mas, a sua
pontuação é a sua pontuação. Independentemente de você ser branco, ser amarelo,
verde ou azul. O que vale é seu conhecimento. Não vejo como uma coisa boa.
Porque todo mundo tem capacidade. Assim como um branco� Na prova, não vem
nada escrito discriminando sua cor.
Edvani é presa fácil da suposta igualdade de oportunidades embutida no
conceito de meritocracia. Em grande medida, é uma fiel típica do mundo
evangélico – já que a possibilidade de crítica ao mundo social como ele é passa
a ser mitigada ao máximo na maioria das denominações. E tem também o fato
de se achar ocupando um outro lugar que não é o seu. As fake news nas quais
Edvani acredita fazem o trabalho complementar de confundir e atordoar.
Assim, Edvani, filha e neta de nordestinos, responde sobre o voto nordestino
ter sido em Lula da seguinte maneira:
Eu não sei nem o que dizer. Mas, pelo que eu ouvi, por cima� Para o pessoal do
Nordeste� O partido atual que hoje tá aí, atuando pra nós, ficou no cargo
durante muitos anos e, querendo ou não, deixou muito a desejar. Principalmente,
pra eles! Em questão da água, tudo. Pelo que eu vi, assim, por cima. Vi que no
governo passado eles conseguiram finalizar essa questão, né? E realmente o povo do
Nordeste foi e votou no partido que... [Arregalou os olhos com cara de
desconfiança e deu um breve riso.] Mas também tem aquilo: conheço muitas
pessoas, tipo a minha vizinha que mora aqui embaixo, que votou no partido de
hoje por questão do auxílio! Porque do partido do governo passado ela não tinha, e
quando era desse de agora, ela conseguiu. Então, ela foi muito nessa questão. Eu
não sei, né, se o pessoal acreditou que ia continuar no Bolsa Família. Porque a
maioria do pessoal do Nordeste tem esse programa, né? Não sei se foram nesse
pensamento. Como eu te falei, eu não sei se tem outros benefícios e qualidades, mas
eu achei que não condizia com o que eu via – por cima.
Jefferson
O caso de Jefferson é muito interessante. Sua trajetória é parecida com a de
quase todos os outros, exceto por uma diferença fundamental. Jefferson
chegou, com apoio da igreja, a cursar teologia e filosofia, e hoje é professor da
rede pública do Estado de São Paulo. Isso acontece quando surgem influências
relevantes – quase sempre, um adulto significativo, como o “Minduca” foi para
Jefferson, como veremos mais abaixo –, que permitem uma variação na
incorporação de capital cultural (o que proporciona não só um emprego
seguro, mas também maior consciência social).
Jefferson teve, de início, a trajetória típica dos jovens das classes populares. O
pai tinha uma pequena sorveteria em um bairro periférico de São Paulo e,
tanto a mãe de Jefferson quanto ele trabalhavam na sorveteria – ele, desde os
14 anos. A dupla jornada de trabalho e estudo é uma espécie de condenação
para as classes populares, já que não se pode fazer nem um nem o outro bem-
feito. Os pais cursaram até o Ensino Médio, e esse seria o destino prefigurado
para Jefferson.
Quando a sorveteria do pai quebrou, Jefferson era adolescente. O pai foi ser
pintor de paredes – outra invariante dessa classe social são os “bicos”, ou os
empregos de quem aprendeu tudo na vida por imitação e não pela escola.
Jefferson acompanhava o pai nos trabalhos de pintura. A certa altura, o
adolescente, com 15 anos, era quem levava drogas para os auxiliares do pai nos
trabalhos das casas da classe média. Essa atitude do jovem enchia os pais de
tristeza, até que o próprio Jefferson decidiu que essa coisa de “trabalho braçal”
não era para ele.
É aqui que entra o “Minduca”, o hippie que vendia miçangas e que passou a
aconselhar Jefferson nos seus passos para o futuro. Segundo Jefferson, foi
Minduca quem o “discipulou”, ou seja, tornou-o um discípulo da doutrina
religiosa. Minduca influenciou o jovem Jefferson a refletir sobre a própria vida.
Como Minduca era cristão evangélico, foi ele quem evangelizou Jefferson
defendendo a primazia da vida espiritual em relação ao mundo material.
Minduca unia duas vivências improváveis: a do “hippie”, no comportamento e
valores de vida, e a do pregador evangélico. Jefferson disse que Minduca foi seu
primeiro “profeta do deserto” do Antigo Testamento, ou seja, os profetas
ascetas que desdenhavam das riquezas, e que vinham contar as verdades
desagradáveis aos que esqueciam a palavra de Deus.
Sob a influência de Minduca, Jefferson decide estudar teologia e depois
filosofia. Desse modo, quando ninguém mais da família nem ninguém mais da
igreja tinha esperança de que Jefferson se evangelizasse, eis que surge um rapaz
com novos sonhos e ambições. Essa conversão se deu quando a mãe de
Jefferson, e depois ele próprio, sofreu de depressão. A igreja pagou a psicóloga,
o tratamento psiquiátrico e, em seguida, os estudos teológicos e filosóficos de
Jefferson.
Foi a igreja que pagou a minha psicóloga. Porque eu me aconselhava bastante com
o pastor, né? E ele via que eu estudava bastante. Comecei a estudar bastante a
Bíblia quando eu me converti, teologia. Mas aí o pastor falou que meu caso tava
fora da esfera dele. Porque eram as mesmas crises. Ele falava as mesmas coisas, até
que ele disse: “Jeff, eu acho que isso aí é psicológico.” E me indicou uma psicóloga
que não era cristã. Inclusive, a igreja financiou. A igreja transformou a minha
vida. Não só nisso. Ela que me mandou pra faculdade, pagou minha faculdade,
pagou minha moradia. Eu devo muito à igreja. Eu sou apaixonado por igreja,
porque minha experiência foi profundamente positiva.
Por conta do apoio que teve na igreja, Jefferson conseguiu algo quase
impossível para um jovem pobre da periferia: apenas estudar! Quando foi fazer
filosofia na Faculdade São Camilo no Ipiranga, em São Paulo, Jefferson estava
empregado, mas deixou o emprego para se dedicar inteiramente aos estudos –
um privilégio típico das classes médias que, assim, reproduzem seus privilégios.
Eu larguei o emprego. Aí meus pais me mandavam trezentos reais por mês, e me
virei com isso daí pelos três anos, né, depois. No primeiro ano só que eu trampei. Eu
trampei lá no Colégio Batista82 como inspetor de alunos. Aí depois eu deixei e fui só
fazer filosofia.
Em todo esse tempo, Jefferson teve o apoio da liderança da Igreja Batista, da
família e dos pais. Foi certamente um sentimento de esperança para pessoas
que o conheciam desde pequeno – e que o tinham como irrecuperável – vê-lo
estudioso e aplicado, com um foco na vida que não fosse drogas e “rolês”.
Questionado sobre a influência desse apoio na sua vida pessoal, Jefferson me
responde: “Eu me tornei gente por causa da igreja. Entendeu? Eu nem teria um
trabalho se não fosse a igreja, né? A relação pra mim é direta, assim.”
Quando começamos a discutir sobre a situação política, pude perceber a
posição diferenciada de Jefferson no assunto, muito diferente de todos os
outros casos que examinamos acima. O aspecto decisivo aqui é a capacidade de
reflexão adquirida nos estudos teóricos de teologia e filosofia. Esse é o motivo
que torna possível que Jefferson tenha distanciamento reflexivo e opinião
própria. Comecei, como sempre, perguntando sobre a mistura entre política e
religião no meio evangélico. Jefferson me disse o seguinte:
Ultimamente, eu vejo como desgraçada essa influência da igreja. Porque quando
você mistura a religião com a politica� Não é que eu seja contra a mistura. Eu sou
a favor. Só que quando você sacraliza posições políticas, você� Eu venho falando
que tem sido recorrente, mais ainda nos últimos quatro ou seis anos, um certo tipo
de terrorismo eleitoral. É, um terrorismo eleitoral. Se você não votar em alguém que
Deus está mostrando como caminho de saída pra esse país, você não é crente.
Entende? Então, por exemplo, saíram posts dizendo que os lugares mais quentes do
inferno estão reservados para as pessoas que se mantém em posição de isenção em
momentos de crise. E aí falaram que é do Dante Alighieri essa frase. Nem é dele!
Mas colocaram como se fosse. Eu exponho, não tenho problema: anulei o meu voto
nas duas últimas eleições. Então eu sou pior do que o cara que eles acham que é o
pior, que é um endemoninhado. Eu sou pior ainda, porque o lugar mais quente do
inferno é reservado pra mim, que não gosto desse tipo de manipulação. Esse
terrorismo teve efeitos reais na vida das pessoas, das famílias. Eu converso com
muitos pastores. Sei de famílias que pararam de se falar! Assim, pai com filho, mãe
com filho. E não pararam de se falar por causa de alguma questão legítima do
Evangelho. Pararam de se falar por causa de um candidato, né? De candidatos
políticos.
O fato de que Jefferson seja o primeiro negro evangélico, entrevistado para este
estudo, que não votou em Bolsonaro e preferiu anular o voto nas duas eleições
é muito sintomático. Perceba a contradição de Jefferson: ele deve tudo à igreja
e à ajuda que recebeu. O sentimento de gratidão é explícito e compreensível.
Como ele mesmo diz, ele deve a “vida” à igreja. No entanto, isso não o impede
de exercitar seu espírito crítico desenvolvido no estudo da filosofia e da
teologia. Ele percebe a manipulação política envolvida.
Mas eu acho que a igreja evangélica deu munição. Foi ela, na verdade, que forçou
a formação de uma reação contra a esquerda da qual ela tem medo. Ela pega
alguns elementos que parecem ou são cristãos, distorce, mistura numa salada inteira
pra colocar todo mundo que está fora desses elementos fora da possibilidade de
bondade.
A crítica de Jefferson é a de quem conhece profundamente, por estudo e
vivência, o assunto que estamos tratando. Ele percebe que o mundo evangélico,
por sua tentativa de se tornar uma força social política, religiosa e econômica,
secundariza a doutrina do amor cristão e apela para o poder de exclusão
implícita de forma ambivalente em toda forma de religiosidade. E ele percebe
que a igreja tem lado, sim. É o lado da direita política contra a esquerda. Isso se
deve não apenas à chamada “pauta de costumes” liberal da esquerda, mas
também ao fato de que a explicação da esquerda para a desigualdade e as
agruras do mundo profano possui uma causalidade social e não religiosa.
Para ele, a “polarização” atual já existia desde sempre – de modo velado:
Então, esse tipo de polarização vai se consolidar. Já tava consolidada, na verdade.
Só apareceu. No Brasil, todas as pautas sociais importantes, que devem ser
assumidas, vão ser deixadas na mão dos progressistas, e as partes teológicas que são
importantes vão ficar com a galera conservadora. E não vai ter diálogo. Só que
alguém vai sofrer com isso. E alguém vai pagar o preço. E é quem? O pobre que tá
precisando. Porque daí ou ele vai ser acolhido financeiramente sem a doutrina
cristã, ou ele vai ser acolhido pela doutrina cristã, mas sem comer, né? Então, isso
prejudica quem sempre se prejudicou, que é o mais fraco. Né? Sempre a corda
estoura para o mais fraco.
Quanto ao tema dos costumes e do movimento LGBT+, o grande fantasma dos
evangélicos, a opinião de Jefferson também é mais razoável do que a dos
demais – ainda que ele assuma que as questões de gênero são um “perigo”,
embora de “segundo grau”, para ele.
Eu acho que a pauta LGBT+ é um risco, mas um risco de segundo nível. No primeiro
nível, você tem que ver mais de modo nuclear, que é a formação dos valores. Certo?
Os pais formam os valores nos filhos. Então, se há um pai ausente demais, por causa
do trabalho que tá sugando ele, uma carga horária muito grande, sei lá, isso tá
destruindo a família dele. Certo? Porque ele não vai ter tempo com o filho. Ou o
cara que tá absorto em pornografia, também tá destruindo a família dele.
Querendo ou não, ele tá criando uma destruição dentro da sua casa. Ou uma
família voltada demais para o consumo: se a mente que você cria na sua família é
uma mente consumista, e se o identitarismo LGBT+ virou um produto de consumo
também, entendeu para onde você está jogando seu filho? É mais uma opção de
consumo. É mais um produto.
Mesmo Jefferson, um rapaz inteligente e com boa formação, percebe com
desconfiança a livre orientação sexual dos outros. Isso mostra como a pauta
moralista, baseada no narcisismo da pequena diferença, é decisiva para os
pobres. Aqui, qualquer distinção moral, por mínima que seja, representa
muito, uma vez que é fonte de reconhecimento social e de senso de dignidade.
Mais reflexivo do que todos os demais, Jefferson é professor de filosofia na rede
pública e percebe a manipulação política das igrejas e seu antiesquerdismo.
Mas, ao mesmo tempo, deve tudo à Igreja. Tudo mesmo – desde seu resgate,
quando muito jovem, até sua formação e seu tratamento psicológico. Ou seja,
mesmo para quem percebe a manipulação, a dívida é tamanha – a dívida aqui é
por ter se tornado “gente”, cidadão com respeito social etc. – que ele não se
insurge totalmente contra o espírito dessa igreja (anulando o seu voto, em vez
de optar pela “oposição”).
Alan
A trajetória de vida de Alan não é muito diferente dos membros das classes
populares, negra e pobre no Brasil. Perdeu a mãe para o câncer quando tinha
apenas sete anos e conviveu com um pai autoritário e alcoólatra que era
funcionário de uma firma de segurança. Como o pai fazia muitos plantões e
ficava pouco em casa, Alan passava muito tempo nas casas de suas tias.
Conseguiu terminar, com muito esforço, o segundo grau, mas segundo ele
próprio não aprendeu muita coisa e entende que isso não faz diferença na vida
atual como pedreiro.
A trajetória dos pobres brasileiros sem estímulo para os estudos e escola
precária condiciona a vida precária e humilhada que irão levar quando adultos.
Sem absorver pensamento abstrato nem desenvolver as habilidades mínimas
para um serviço qualificado e mais valorizado, quase metade da população
brasileira, assim como Alan, é condenada a fazer de tudo porque não
aprenderam a fazer nada direito.
É aí que entra o “biscate” – o trabalhador de ocasião. Alan foi ajudante de
borracheiro no primeiro emprego, aos 15 anos. Depois, como não conseguiu
ficar no Exército por excesso de contingente – era seu sonho –, foi também
balconista, garçom, atendente de lanchonete, faxineiro de condomínio,
ajudante em uma pequena fábrica de cisternas, e, finalmente, ajudante de
pedreiro. E pedreiro é, agora. Ou melhor, era, já que está desempregado.
Alan decidiu entrar na Igreja Universal em 2020, logo quando começou a
pandemia. O que ele gosta na igreja é que ela dá o estudo da palavra (de Deus)
por meio da leitura da Bíblia. Ele me disse que nem todos os pastores falam de
política, embora alguns falem – cita o pastor que, segundo ele, é “digital
influencer”. Nesse caso, a pregação política, especialmente a luta do bem contra
o mal, domina tudo. O restante evita o proselitismo aberto e apenas pede um
voto de confiança para o “partido do Evangelho”, ou seja, o pastor pede aos
fiéis para votarem nos membros da igreja e naqueles que defendem a igreja e a
família. Quando pergunto a Alan quantos seguem as indicações do pastor, ele
me responde: “Ah, pelo menos uns 60% seguem e concordam com essas coisas
que o pastor fala.”
A “ideologia de gênero” também é um medo real para ele. Alan me conta que
uma das piores brigas com a mulher, Rose, uma verdadeira feminista da
periferia, foi por conta do que aconteceu com o filho na escola, quando ele
tinha uns seis ou sete anos. O menino chegou em casa, certo dia, contando que
a professora tinha falado sobre a existência de casais homossexuais. Agenor, o
nome do garoto, perguntou à mãe se o casamento não era só entre homem e
mulher – se poderia ser entre homens também. A mãe estava tentando explicar
para o filho quando o pai interrompeu, colérico, a discussão, dizendo que Deus
fez Adão e Eva para dar o exemplo do que é certo. E ele é decididamente
contra o casamento gay, acha que esse tema não é coisa que se fale às crianças.
A briga que se instaurou entre o casal quase levou à separação: “A Rose me
perguntou o que eu faria se meu filho fosse gay, se eu não iria amá-lo mais. Eu
respondi que ele não vai ser gay porque recebe boa educação em casa”, disse.
Não é um medo real para ele. E diz que, de qualquer modo, se o filho fosse
gay, não teria problema nenhum para ele, porque é o filho que ele ama e nunca
deixaria de amar. Para não contrariar a mulher, Alan desistiu de ir à escola
reclamar pelo acontecido. Para ele, a escola deve ensinar o “certo” e não pôr
ideias na cabeça dos alunos – muito menos “chamar a atenção” das crianças
para fatos que elas não compreendem. “Deus falou de Adão e Eva e não de
Adão e José”, disse Alan. Eu perguntei se ele acha certo a mistura de religião e
política, ao que ele me respondeu que: “Eu nunca concordei com isso. Religião
é uma coisa e política é outra bem diferente. Não tem como misturar. Não
gosto quando pastor fala de política e quer influenciar o voto.”
Alan parece não se dar conta da visível contradição em se ser contra a mistura
de religião e política e defender uma concepção unilateral e religiosamente
motivada de vida familiar. Para ele, “interferência política” é quando se fala de
política partidária. A política como “visão de mundo”, por outro lado, a
política da vida cotidiana, que é a que importa, deve defender o lado certo da
vida, ou seja, o que a religião ou o pastor diz ser o certo. Nesse caso, deve haver
mistura de religião e política. Alan é preocupado, antes de tudo, que a
“ideologia de gênero” corrompa a formação dos filhos. O simples fato de outras
pessoas serem gays incomoda Alan. Ele diz que “aceita” o fato da
homossexualidade alheia, mas exige ser respeitado – por exemplo, não admite
ser cantado por um gay. Seria briga na certa. Segundo Rose, essa teria sido a
briga mais séria do casal.
A predileção por Bolsonaro está ligada à igreja. Basicamente, o decisivo é que
Bolsonaro é defensor da família composta por marido e mulher – a verdadeira
obsessão de Alan. Aliás, como de quase todos os entrevistados. Para ele, família
é a família do cristianismo, e as ameaças a ela vêm do campo LGBT+ e de coisas
como o “kit gay”, que ele acreditou piamente que existia. Além da pauta
familiar conservadora, o outro ponto que Alan gostou em Bolsonaro foi o tema
da segurança pública. Ele me diz que quando ouvia Bolsonaro ele achava que a
segurança pública ia mudar no país inteiro. “Mas não mudou, né?”, perguntei.
Ao que ele me disse: “É, não mudou.”
Quanto aos outros aspectos do governo Bolsonaro, ele me diz, cuidadoso:
“Não sei se o que vou dizer agora é o correto, mas acho que o preço da
gasolina, e das coisas, baixaram.” E sobre a pandemia, o que ele lembra foi a
ajuda de seiscentos reais: “Foi pouco para manter a família, mas ajudou muito
a não passar necessidade.” Mas a mortandade na pandemia o assustou. E
também o fato de Bolsonaro ficar “zoando” com quem não podia mais respirar.
Por conta disso, ele não pensava em votar de novo em Bolsonaro, em 2022.
Sua mudança de perspectiva tem uma nítida influência da sua mulher, Rose.
Ela, no seu trabalho de faxineira, consegue trazer entre 3 mil e 3.500 reais para
casa todo mês. Leva ainda três horas de ida e três horas de volta para o
transporte de Curicica, na Zona Oeste da metrópole, até a Zona Sul carioca.
Aproveita o tempo no trem e no ônibus para ler o material do curso noturno e
online de pedagogia. Alan ganhava cerca de 1.500 reais, às vezes, 2 mil reais ao
mês, mas agora se encontra desempregado e Rose sustenta a casa – como
muitas mulheres neste país.
Ele me conta que a política era tema frequente com a esposa. Rose, que
acompanhou de perto toda a entrevista realizada na casa de Alan, em Curicica,
deixou de gostar de Lula, em quem já havia votado duas vezes, desde a Lava
Jato – como ela me disse: “Que teve alguma coisa ali, teve”. E essa desconfiança
nunca mais se apagou. Mas é contra Bolsonaro também, e, por isso, votou em
Simone Tebet. Aliás, Rose, como me contou no dia da entrevista do marido,
sempre votou em mulheres – como Marina Silva, Dilma Rousseff e, agora, em
Tebet. Quando Tebet saiu da disputa, Rose anulou o próprio voto. O único
homem em quem ela votou para presidente foi Ciro Gomes, em 2018: “Pensei
que ele fosse ganhar”, disse ela.
Rose é inteligente e articulada, e sabe fundamentar suas posições com
argumentos bem construídos. A sua influência sobre o marido é visível, assim
como é visível que Alan admira e respeita a esposa – que possui mais estudo e
escolaridade. Alan me conta que a mulher nunca entendeu como um negro e
pobre como ele vota em Bolsonaro, que nada faz pelos pobres e ainda foi
irresponsável e maldoso na pandemia. A resposta de Alan é a de que não queria
votar no Lula de jeito nenhum, pelas mesmas razões de Rose, e acha
interessante a pauta de costumes de Bolsonaro.
Mas, assim como a mulher – e provavelmente sob sua influência –, Alan
votou em Simone Tebet no primeiro turno de 2022. Ele me conta que o
motivo do voto foi pela ênfase na importância da educação para Tebet. Ele
esperava melhoria nas escolas e cursos profissionalizantes. Segundo ele: “O
nosso ensino ainda é muito precário e não é de Primeiro Mundo”. No segundo
turno, no entanto, “por falta de opção”, de acordo com ele, decidiu votar em
Bolsonaro, mais uma vez. “E o Lula, por que você não gosta dele?”, perguntei.
Olha, o que vou dizer eu não sei se é verdade, então só posso dizer o que ouvi na tv,
mas dizem que ele roubou no governo dele, então não voto nele. E Bolsonaro tem
um jeito que eu gosto, aquela coisa da “zoação”, da brincadeira, de falar um
palavrão aqui e acolá, acho legal, parece com a gente e isso me aproxima dele.
A última pergunta foi sobre a tentativa de golpe de Oito de Janeiro de 2023.
Alan discordou frontalmente da tentativa por ser contra todo tipo de violência.
Discordou do motivo também, já que acredita que as urnas são seguras. E, para
ele, quem deve tem que pagar.
64. Leonildo Silveira Campos, “As origens norte-americanas do pentecostalismo brasileiro”, 2005.
65. Ibidem.
66. Ibidem.
67. Ricardo Mariano, Neopentecostais, 1999.
68. Ibidem.
69. Ibidem.
70. Vagner Gonçalves da Silva, “Concepções religiosas afro-brasileiras e neopentecostais”, 2005.
71. Ibidem.
72. Ronaldo Almeida, A Igreja Universal e seus demônios, 2009.
73. Ibidem.
74. Ibidem.
75. Ibidem.
76. Ibidem.
77. Ibidem.
78. Nos anos 1990, Jardim Ângela, Capão Redondo e Jardim São Luiz compunham o chamado
“triângulo das bermudas” ou “triângulo da morte”, por serem bairros vizinhos com altos índices de
violência – em especial no Jardim Ângela.
79. A região do Capão Redondo, Campo Limpo e Jardim Ângela contém a maior população de
fiéis da Igreja Adventista do Sétimo Dia no mundo.
80. Na verdade, a entrevistada se referia a “chicote elétrico”, um condutor de energia para
automóveis e outras maquinarias.
81. “Cobertura espiritual” é uma expressão recente, surgida depois do advento do
neopentecostalismo, mas adotada por várias denominações para indicar ou legitimar a maior
capacidade de discernimento, sabedoria e atuação religiosa dos pastores. A “cobertura espiritual”
do pastorado diz respeito à capacidade da liderança de atender sua membresia e garantir que ela
esteja protegida e cuidada no âmbito espiritual. No limite, essa cobertura pode ser tanto
compreendida positivamente, como cuidado, quanto negativamente, por meio de ameaças do tipo
“estar fora da cobertura espiritual de um pastor” ao sair da igreja e, portanto, à deriva ou sob risco
de perder a fé ou não cumprir com o necessário para estar espiritualmente bem, “desviar-se”. Nota
de Bruno Reikdal.
82. O Colégio Batista Brasileiro é uma instituição privada de ensino infantil, fundamental e
médio, que é também confessional. Localizada em Perdizes, bairro nobre da cidade de São Paulo,
foi fundada no início da década de 1920 por missionários batistas estadunidenses.
Conclusão
O vingador dos bastardos
Freud não inquire sobre a origem social e moral dessas características típicas.
Apesar de não esclarecer as origens, ele constata e descreve um mecanismo
importante para nossos fins. A entronização do superego na psique humana é,
talvez, o avanço civilizatório e histórico mais importante – como se depreende
da soberba análise do processo civilizatório em Norbert Elias.96 É sua
incorporação na psique individual que possibilita, no limite, a ação racional no
mundo possibilitando um freio social fundamental para os desejos irracionais,
agressivos e associais. Como no processo de identificação das massas com o
líder o superego (e sua função moralizadora) é substituído pelo líder, o que
acontece na prática é uma reversão e regressão da dimensão moral e cognitiva
individual. A infantilização de pessoas que rezam para pneus e a dissonância
cognitiva típica do público bolsonarista pode ser mais bem compreendida.
O tipo de “profeta exemplar”, adaptado à realidade política que estamos
discutindo aqui, não se dirige, portanto, como o “profeta ético” e sua doutrina
– à consciência dos indivíduos –, mas, sim, aos seus desejos mais primitivos e
sem controle racional. Esse tipo de relação primitiva e inconsciente nos ajuda a
compreender figuras como Bolsonaro e o fascínio que ele exerce sobre muitos –
como branco pobre, imigrante de países europeus como a maioria da
população do Sul e de São Paulo, pessoas sem estudo e sem capacidade de
reflexão elaborada etc. Bolsonaro incorpora e manifesta na sua fala e no seu
comportamento prático a raiva do injustiçado que não compreende como se dá
a opressão social nem percebe em favor de quem ela é exercida.
Assim, da mesma forma que um nordestino pobre se identifica com Lula e
sua vida exemplar de luta contra a fome e a desigualdade, o branco pobre do
Sul e de São Paulo se identifica com a raiva e o ressentimento típico de
Bolsonaro – que cria, para eles, uma liderança política que realiza, pelo seu
exagero e sua agressividade performática e sem mediação da consciência, suas
aspirações e ansiedades mais profundas. Afinal, Bolsonaro é um típico “lixo
branco” brasileiro,97 ou seja, um branco pobre e ressentido pela ausência
relativa do capital cultural legítimo que é monopólio da classe média branca
“real”. Por conta disso, seu projeto de ascensão social, limitada pela ausência de
conhecimento legítimo acumulado, é a de conseguir um cargo nas burocracias
médias do Estado, como Exército ou Polícia Militar. A trajetória social de
Bolsonaro98 é uma trajetória de vida típica desse estrato social, portanto.
Sociologicamente, a partir do raciocínio que perpassa todo este livro, a razão
maior é o ressentimento e a raiva justos, diga-se de passagem, na medida em
que o acesso a boas escolas e boas universidades é restrito para a classe média
branca e “real”, e o branco pobre foi injustamente excluído dessas chances pelo
nascimento em uma família pobre. Se ele fosse consciente de sua opressão,
então poderia transformar a raiva e o ressentimento em indignação – o que o
levaria para a luta política junto aos demais oprimidos. Mas não é isso o que
acontece. Ninguém explica, muito menos nossa imprensa venal, quem causa
seu sofrimento. Como a relação com a classe média “real” e a elite é
ambivalente, misturando inveja e admiração, então ele se torna presa de seu
próprio desconhecimento.
É esse ressentimento compartilhado que será a base, por exemplo, dos
ataques à ciência, às artes, às universidades e à cultura em geral, que foi um
tema constante do período Bolsonaro. Como os brancos pobres que o apoiam
desconhecem os reais motivos de sua pobreza relativa, então a tendência vai ser
atacar os símbolos visíveis do capital cultural legítimo – como os indicados
acima – ao qual não tiveram acesso. Afinal, mesmo sem compreender de modo
coerente a situação social, todos percebem, intuitivamente pela experiência
vivida, que é a ausência desse capital cultural, altamente valorizado na
sociedade moderna, que causa sua humilhação objetiva e sua sensação de ser
inferior aos outros acima dele. A extrema direita nada de braçada no
ressentimento dos que não conhecem as causas de sua condição social. A causa
aqui é a ausência de autoestima, autoconfiança e de reconhecimento social,
provocadas pela experiência da humilhação moral cotidiana – como o Coringa,
que analisamos no início deste livro.
Como o trabalho socialmente útil, sacralizado pela Reforma Protestante, é o
elemento central da atribuição de respeito social na sociedade moderna,99 e a
incorporação de conhecimento é o que garante produtividade e
reconhecimento social ao trabalho, cria-se um abismo social entre quem tem e
quem não tem conhecimento considerado legítimo incorporado. Nenhum
indivíduo pode “criar os valores” que regem a sua vida. Todos esses valores são
socialmente construídos, embora muitos não saibam como isso acontece. E o
mais importante valor social de qualquer sociedade moderna é o trabalho útil
baseado na incorporação de conhecimento considerado legítimo para esse fim.
E cada um de nós vai ser avaliado de mil maneiras diferentes pelos outros a
partir desse valor fundamental. Como o conhecimento é o único caminho para
o trabalho produtivo bem-feito, a posse de conhecimento legítimo – do qual o
branco pobre está excluído – é a sua limitação social mais importante.
Já a situação do negro pobre e evangélico é diferente. Ele não é apenas pobre
como o branco que analisamos acima. Ele é atormentado constantemente pela
insegurança existencial e ontológica provocada pela negação, compartilhada
por toda a sociedade, de seu valor como ser humano. Não existe chaga maior
para cada um de nós. Já criticamos acima a tolice de quem percebe a economia
e as necessidades econômicas como a dimensão mais importante da vida.
Vimos que na base de todo sistema econômico temos um acordo tácito que é
sempre moral e político. Mas não é apenas a sociedade que tem como núcleo a
moralidade. Nós, indivíduos, também somos moralmente construídos para o
bem e para o mal. Isso significa que o que comanda o nosso comportamento
prático são as nossas necessidades morais e não econômicas. É, portanto, a
partir delas que poderemos compreender a intensidade da entrega de certos
segmentos sociais ao bolsonarismo.
Nós somos, na verdade, seres morais, no sentido de que todos somos
dependentes do julgamento que a sociedade faz de cada um de nós. É esse
julgamento que decide se somos aceitos ou rejeitados pelos outros. Como diz
exemplarmente o filósofo canadense Charles Taylor:
A tese é a de que a nossa identidade é em parte formada pelo reconhecimento ou pela ausência deste.
Muito frequentemente, nos casos de falso reconhecimento [misrecognition] por parte dos outros, uma
pessoa ou um grupo de pessoas pode sofrer um prejuízo real, uma distorção efetiva, na medida em
que os outros projetem nele uma imagem desvalorizada e redutora de si mesmos. Não
reconhecimento e falso reconhecimento podem infligir mal, podem ser uma forma de opressão,
aprisionando alguém em uma forma de vida redutora, distorcida e falsa� Nessa perspectiva, não-
reconhecimento não significa apenas ausência do devido respeito. Ele pode infligir feridas graves a
alguém, atingindo as suas vítimas com uma mutiladora autoimagem depreciativa. O reconhecimento
devido não é apenas uma cortesia que devemos às pessoas. É uma necessidade humana vital.100
Mapa da distribuição dos votos válidos no segundo turno das Eleições 2014 –
Presidente da República
Mapa da distribuição dos votos válidos no segundo turno das Eleições 2018 –
Presidente da República
Mapa da distribuição dos votos válidos no segundo turno das Eleições 2022 –
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O pobre de direita
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