Como o Racismo Criou o Brasil - Jessé Souza
Como o Racismo Criou o Brasil - Jessé Souza
Como o Racismo Criou o Brasil - Jessé Souza
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida
sob quaisquer meios existentes sem autorização por escrito dos editores.
Formato: e-book
Requisitos do sistema: conteúdo autoexecutável
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5733-011-1 (recurso eletrônico)
Prefácio
A SINGULARIDADE DA MORALIDADE NO
OCIDENTE
O judaísmo antigo
O nascimento do cristianismo
A revolução protestante
A moralidade pós-religião
A luta pelo reconhecimento social
A semente hegeliana
O reconhecimento social como motor das lutas políticas
Entre moralidade e racismo
O RACISMO MULTIDIMENSIONAL
O racismo global
Do racismo científico ao culturalismo que ainda tenta não ser racista
Um novo racismo para um novo império: o racismo cultural
As bases racistas da nova ciência mundial americana
O racismo cultural dos povos colonizados
A crítica ao culturalismo
Por uma teoria crítica e não racista do mundo contemporâneo
O amálgama entre racismo de classe e de raça: a criação do burguês, do
trabalhador e do marginal
O racismo racial no comando da sociedade brasileira
A ideologia do branqueamento
O contraponto antirracista e a revolução de Vargas
A metamorfose do racismo em falso moralismo anticorrupção
O aprendizado interrompido: Diretas Já, o impedimento de Collor e a
construção do PT encampando o falso moralismo
Bolsonaro e a explosão do racismo popular brasileiro
Conclusão
Notas
Prefácio
N
este livro defendo a tese de que o racismo racial é o elemento central
da sociedade brasileira moderna e o grande responsável pelo atraso
moral, social e político do Brasil. No entanto, não é fácil demonstrar e
verdadeiramente explicar como esse fenômeno acontece. Sempre haverá
alguém que dirá: “Mas isso eu sempre soube!” Só que, na verdade, quem diz
isso tem uma mera intuição, uma crença, a qual não consegue demonstrar.
Isso ocorre porque o racismo racial muitas vezes – se não na maioria delas –
assume outras formas para poder continuar existindo.
Os que acham que essa convicção basta esquecem que o racismo racial
pode ser exercido das mais variadas maneiras, disfarçado, por exemplo, de
“moralismo anticorrupção” ou de “guerra contra o crime” – e serão a vida
inteira feitos de tolos pelas máscaras que ele assume para continuar bem vivo
fingindo que está morto. A história do Brasil moderno é a história dessas
máscaras.
Para superar a dimensão da mera “convicção”, afetiva e desinformada, é
necessário reconstruir não somente o que o racismo destrói nas pessoas, mas
também todas as múltiplas formas que ele assume. Sem isso, não
compreenderemos como ele adota esses disfarces para continuar enganando
as pessoas. Além disso, é fundamental explicar que, se o racismo racial pode
assumir outras máscaras, então existem, obviamente, manifestações não
raciais do racismo, que produzem o mesmo efeito destruidor e deletério nas
pessoas.
Por conta disso, temos que compreender o que é o racismo em sua
dimensão mais genérica, o que ele destrói nas pessoas e, em seguida, aprender
a identificá-lo em todas as suas roupagens. É esse trajeto que faremos neste
livro. Minha ambição é verdadeiramente explicar o racismo, tanto o racial
quanto o multidimensional. Isso significa reconstruir sua gênese histórica e
demonstrar sua dinâmica e sua função social na manutenção da opressão e da
humilhação de indivíduos e grupos sociais.
Minha tese é a de que até hoje, tanto no Brasil quanto fora dele, as
tentativas de explicar o racismo se reduziram, no entanto, a meramente
comprovar que ele existe. Porém as estatísticas já fazem isso ao mostrar o
tratamento desigual legado aos negros em todas as dimensões da vida e
demonstrar a existência do privilégio branco. É preciso ir além da mera
comprovação de que ele existe. É necessário compreender sua gênese
histórica e seu papel nas relações sociais. É porque o racismo é um grande
mistério que existe todo tipo de confusão em relação a ele, como a invenção
de um “lugar de fala” autorizado e a pretensão de “representar” outros sem a
devida procuração das vítimas, já convenientemente silenciadas. Neste livro
enfrentaremos todos esses mitos e fantasmas.
A única maneira de verdadeiramente explicar o racismo é
compreendermos o que ele destrói nas pessoas. Por essa razão é tão gritante a
necessidade de reconstruir as precondições, historicamente construídas,
afetivas e morais, para que a individualidade de cada um possa ser exercida
com confiança e autoestima de forma a merecer o respeito dos outros. É isso,
afinal, que o racismo destrói. Só assim poderemos reconhecer o racismo
como o meio de opressão e humilhação social em grande escala que ele é.
Depois examinaremos todas as formas multidimensionais do racismo
para poder compreender de que maneira, em uma sociedade como a
brasileira, o racismo racial assume o comando da vida social a partir da
construção de uma “ralé de novos escravos”. Uma classe/raça composta em
sua esmagadora maioria por negros, destinada a ser a “Geni” da sociedade
brasileira, que todos podem oprimir, explorar, humilhar, cuspir e matar sem
que ninguém realmente se comova. Uma classe/raça construída para que
todas as outras possam se sentir superiores a ela, ajudando a justificar e
legitimar uma sociedade que é desigual e perversa como um todo.
O que me faz acreditar ter avançado na compreensão dessa questão
central da sociedade brasileira não é, seguramente, o fato de ser mestiço, ou
“mulato”, como se dizia antes do politicamente correto, e me declarar pardo
nos censos oficiais – o que me torna participante da maioria da população
brasileira que se declara afrodescendente. Veremos quanto de mentira e de
manipulação existe na crença de que o oprimido conhece melhor do que
ninguém a opressão que sofre. Acreditar nessa tolice é não compreender
absolutamente nada sobre como funcionam as formas de humilhação e
opressão na sociedade – e, portanto, contribuir para a sua continuidade.
Todos esses temas serão discutidos em profundidade neste livro.
O que me faz acreditar ter avançado na explicação do racismo, além da
mera comprovação de sua existência, foram, antes de tudo, os últimos 25 anos
de estudo empírico ininterrupto dos diversos segmentos da sociedade
brasileira2 e de outras sociedades.3 Esse esforço e essa dedicação me fizeram
aprimorar o que aprendi em mais de 40 anos de estudo teórico sistemático de
grandes pensadores4 e me ajudaram a compreender melhor tanto as causas
sociais de todo aprendizado coletivo, ou seja, aquele que a sociedade como
um todo realiza, quanto o funcionamento da opressão e da humilhação que
impedem, por outro lado, esse mesmo aprendizado e, portanto, o real
progresso social. Boa parte do trajeto intelectual que percorri ao longo da
minha atuação como estudioso e pesquisador está neste livro de forma
resumida e acessível, espero eu, a qualquer leitor interessado em aprender.
Acredito que mesmo as ideias de pensadores complexos podem ser expostas
de modo a que todos possam compreendê-las. Apenas a pretensão pedante de
alguns falsos intelectuais acredita que a linguagem hermética e
incompreensível é sinal de erudição e conhecimento. Tudo pode e deve ser
exposto de tal modo que qualquer pessoa possa entender.
Finalmente, gostaria de agradecer a Boaventura de Souza Santos, que me
fez críticas extremamente relevantes que ajudaram a melhorar este livro.
Agradeço também à minha mulher, Joyce Anselmo, uma brilhante socióloga
que também leu e criticou produtivamente várias versões do livro. Por fim,
agradeço a Boike Rehbein, meu parceiro de muitos anos em pesquisas
empíricas no mundo todo, por sua crítica sempre sincera e estimulante.
O fato de uma pessoa ser negra não significa que ela saberá refletir crítica e
filosoficamente sobre as consequências do racismo. Inclusive, ela até poderá
dizer que nunca sentiu racismo, que sua vivência não comporta ou que ela
nunca passou por isso.10
O lugar social não determina uma consciência discursiva sobre esse lugar.
Porém, o lugar que ocupamos socialmente nos faz ter experiências distintas
e outras perspectivas. A teoria do ponto de vista feminista e lugar de fala
nos faz refutar uma visão universal de mulher e de negritude, e outras
identidades, assim como faz com que homens brancos, que se pensam
universais, se racializem, entendam o que significa ser branco como
metáfora do poder, como nos ensina Kilomba. Com isso, pretende-se
também refutar uma pretensa universalidade. Ao promover uma
multiplicidade de vozes o que se quer, acima de tudo, é quebrar com o
discurso autorizado e único, que se pretende universal. Busca-se aqui,
sobretudo, lutar para romper com o regime de autorização discursiva.12
Ora, caro leitor, como diria Sigmund Freud, é brincando que a gente diz
as maiores verdades. O que o livro quer mesmo provar é que a própria
Djamila – sendo, ao mesmo tempo, mulher e negra e, segundo ela, ocupando
o degrau mais baixo e vulnerável da sociedade por conta disso – seria,
portanto, a representante geral do locus social do oprimido, somando à
vulnerabilidade da mulher a vulnerabilidade do negro. Assim, a defesa da
própria posição social como a única a congregar todas as injustiças e,
portanto, a única “autorizada” a falar em nome dos afetados por ela parece ser
o motivo profundo e o prêmio real de toda a confusa argumentação no livro.
Como as causas da dominação social e do racismo são múltiplas, invisíveis e
complexas, mas seus efeitos são claros para todos, quem parece representar
esse lugar do oprimido pode, então, contar com a simpatia geral do público
antirracista, seja ele negro ou branco.
As mulheres negras que estudamos na “ralé brasileira”, muitas das quais
não sabiam ler e eram sistematicamente oprimidas pelos valores que as classes
dominantes haviam construído para dominá-las, não me parecem ter nada
em comum com Djamila, a não ser a cor da pele e o gênero. Mesmo as
mulheres brancas e pobres da favela, onde evidentemente são minoria, não
me parecem também ter qualquer semelhança com o mundo social de
intelectuais negras de classe média. Quando perguntamos a uma dessas
informantes qual a causa de permanecer casada com um homem violento e
do qual não gostava, a resposta que recebi foi que mulher sem homem na
favela é “toco pra cachorro mijar”, ou seja, qualquer homem, a qualquer hora,
em qualquer beco, poderia estuprá-la sem temer consequências.
O problema é que as experiências cotidianas dessa classe/raça, como fica
claro na pesquisa clássica de Florestan Fernandes16 e na minha própria,
realizada 60 anos depois,17 quando coordenei uma equipe brilhante de jovens
pesquisadores durante vários anos, não são visíveis na esfera pública. É um
sofrimento cuidadosamente silenciado, tornado privado, que não interessa a
ninguém, que não parece merecedor do interesse público. Não é, em resumo,
um sofrimento que aparece na Rede Globo. Os entrevistados dessa classe
recebem com alegria os entrevistadores. Afinal, para muitos é a primeira vez
que alguém se interessa por eles, pela história que têm para contar. De resto, a
história dessa classe/raça, quase inteiramente negra e que perfaz cerca de 40%
da população brasileira, não interessa nem nunca interessou a quase
ninguém.
Condenar ao silêncio o sofrimento da maioria e, ao mesmo tempo, dar
visibilidade ao 1% dos negros e mulheres mais talentosos e mais aptos na
esfera pública, de modo a parecerem “representar” todo o sofrimento social
pelo simples fato de serem negros ou mulheres, não é um projeto pessoal de
Djamila Ribeiro. Esse é o principal projeto político do capitalismo financeiro
neoliberal há mais de 30 anos! O mesmo tipo de capitalismo que deixa 99%
da população mais pobre em favor do 1% mais rico, mas que, para isso,
precisa sequestrar a demanda por emancipação social, de modo a “tirar onda”
de progressista, quando o projeto, na verdade, é explorar, expropriar e deixar
os outros na miséria. Djamila Ribeiro é apenas a versão mais bem-sucedida
desse projeto neoliberal no Brasil.
O sequestro da linguagem da emancipação
Por isso é tão necessário, caro leitor e cara leitora, reconstruir a estratégia do
capitalismo financeiro de se apropriar do próprio discurso da emancipação,
apoderando-se, antes de tudo, do discurso antirracista. Essa é uma artimanha
da elite financeira americana, a qual, sendo a fração mais importante da elite
mundial, influencia o mundo inteiro também. Mas poucos países são tão
colonizados pelos americanos, tão vira-latas e sem autonomia intelectual
quanto o Brasil. Aqui a influência e a recepção acrítica das “modas
americanas” são muito maiores. Se quisermos compreender a fraude de boa
parte do suposto antirracismo brasileiro, precisamos compreender a fraude
do sequestro da linguagem da emancipação pelo capitalismo financeiro
americano.
O saque neoliberal de 99% da população só pode ser mantido se duas
condições forem alcançadas:
1) Se as causas reais da pobreza se tornam invisíveis, o que é possível
quando os bilionários neoliberais compram a imprensa e a esfera pública
mundial não apenas para tornar invisível o sofrimento da maioria como para
chamar, por exemplo, a simples destruição dos direitos do trabalhador de
“reforma inadiável, necessária e urgente”;
2) Se o próprio neoliberalismo se apropria da linguagem da emancipação,
ou seja, da única arma de defesa dos oprimidos na sua luta contra a opressão,
não para libertar alguém, mas para melhor exercer a própria opressão.
Luc Boltanski e Ève Chiapello18 demonstraram com clareza e sagacidade
a capacidade antropofágica do capitalismo financeiro, que “engole” a
linguagem do protesto e da libertação para transformá-la e utilizá-la para
legitimar a dominação social e política a partir do próprio mercado. Na
dimensão do mundo do trabalho, por exemplo, todo um novo vocabulário
teve que ser inventado para escamotear as novas transformações e melhor
oprimir o trabalhador. Com essa linguagem aparentemente libertadora,
passa-se a impressão de que o ambiente de trabalho melhorou e o trabalhador
se emancipou.
Assim, houve um esforço dirigido para transformar o trabalhador em
“colaborador”, para eufemizar e esconder a consciência de sua
superexploração; tenta-se também exaltar os supostos valores da liderança
para possibilitar que, a partir de agora, o próprio funcionário, não mais o
patrão, passe a controlar e vigiar o colega de trabalho. Ou, ainda, há a
intenção de difundir a cultura do empreendedorismo, segundo a qual todo
mundo pode ser empresário, basta querer. Por essa ótica, o trabalhador
tornado informal e sem quaisquer direitos ou garantias na verdade se torna
empresário de si mesmo. E, o mais importante, se ele falhar nessa empreitada,
a culpa é apenas dele. É necessário sempre culpar individualmente a vítima
pelo fracasso socialmente construído.
Mas não se vê essa mudança de estratégia apenas na economia e no
mundo do trabalho. Buscou-se mudar também – e infelizmente com grande
sucesso – toda a percepção do mundo político para que a luta por
emancipação que havia marcado os últimos 200 anos de lutas sociais desse a
impressão de ter sido aprofundada e radicalizada sob a égide do capitalismo
financeiro. A ofensiva dominante se empenhou em construir a narrativa, tão
falsa quanto sugestiva, de uma suposta mudança de paradigma nesse campo.
De acordo com essa leitura, se nos últimos 200 anos essas lutas tiveram como
eixo principal as demandas por distribuição econômica, hoje elas teriam seu
núcleo e impulso maior nas lutas pela “emancipação das minorias
oprimidas”, como as mulheres e os negros. A narrativa mais clássica desse
processo passa a interpretar o contexto político contemporâneo como uma
luta pelos “direitos identitários e culturais” desses grupos politicamente
dominados.
No contexto dos anos 1990, quando esse discurso se torna dominante
com Clinton nos Estados Unidos e FHC no Brasil, a massiva desapropriação
neoliberal apenas começava a se delinear. Isso facilitou sua propagação
enquanto ideário falsamente libertador. Tudo parecia indicar que teríamos
entrado em uma nova fase das lutas por emancipação, ao mesmo tempo
realizando e radicalizando seu conteúdo anterior. Uma nova fronteira de
democratização se abria aos olhos de muitos. O capitalismo financeiro das
dívidas públicas galopantes, impagáveis e fraudulentas, que saqueia, para o
bolso de uma meia dúzia, o orçamento público pago pelos mais pobres,
marcava seu surgimento se travestindo de um novo modo progressista de
relações econômicas e políticas.
Não nos esqueçamos, também, que esse processo de reinterpretação das
lutas políticas se dá no contexto da privatização e financeirização da mídia em
escala mundial. Grandes investidores, como Murdoch e seus filhos, lançam o
projeto deliberado de converter a esfera pública política mundial em esteio do
ideário neoliberal. No Brasil, a Rede Globo incorporou, como nenhuma outra
empresa midiática, a nova narrativa neoliberal, transformando-a na leitura
oficial da empresa. Nessa visão se enquadram tanto a iniciativa de renomear
as favelas e chamá-las de comunidades,19 fazendo de conta que o novo nome
magicamente mudou a vida das pessoas afetadas pela miséria, como também
a de adotar a narrativa dos tais “direitos culturais e identitários” como se
representassem um real progresso social. Sem a ofensiva neoliberal de se
apropriar da mídia, principalmente de canais de TV e grandes jornais, seria
impossível filtrar e maquiar o descontentamento social de modo a repaginar o
sentido de emancipação social de acordo com a mensagem neoliberal.
É aqui que entram os novos movimentos culturais e identitários. Como
em todas as ofensivas desse tipo, existem sempre um componente intelectual
e outro político, que se apoiam mutuamente. Muitos pensadores importantes
que refletiram sobre a questão do multiculturalismo,20 inclusive do porte de
um Charles Taylor, insistiram na falsa suposição de que haveria uma linha de
desenvolvimento histórico das lutas políticas em geral que seria marcada pela
passagem das lutas políticas por igualdade legal para as lutas pelo
reconhecimento de identidades definidas “culturalmente”. Para que essa linha
de argumentação – tão sugestiva quanto simplificadora – possa ter alguma
validade, faz-se necessário tanto tornar invisível o componente cultural das
lutas por igualdade jurídica do passado quanto eliminar as implicações legais
das atuais lutas pelas “identidades culturais”.
Boa parte dos intelectuais “progressistas” vai embarcar nessa canoa
furada. Desse modo, os supostos novos movimentos sociais se tornam uma
moda inevitável. Como nota Axel Honneth,21 dadas as consequências fatais
da filosofia da história marxista, que via o proletariado como o único sujeito
da história, independentemente do escrutínio empírico, grande parte dos
teóricos de esquerda vai pretender ver os “novos movimentos sociais” como a
prova empírica irrefutável de uma nova espécie de descontentamento político
– fugindo, portanto, do dogmatismo marxista. Na dimensão política, o
Partido Democrata americano, de modo paradigmático a partir de Bill
Clinton, vai transformar o sentido de emancipação social: em vez da inclusão
progressiva das grandes massas empobrecidas, que a crise fiscal estrutural do
Estado rentista não pode mais sustentar, a demanda por emancipação social é
reconstruída e ganha o sentido atual de uma suposta inclusão das minorias
até então excluídas – ou, mais precisamente, do 1% mais talentoso e mais
privilegiado entre elas, que pretende falar em nome de todos.
Ou seja, não se trata mais de garantir a todos e a todas as precondições
familiares e escolares para a maior igualdade possível entre os indivíduos e de
criar os empregos necessários para a inclusão social dos muitos excluídos que
sofrem silenciosamente longe dos seletivos olhos midiáticos. Entra em cena,
agora, o discurso que defende que as velhas lutas políticas por inclusão
universalista são coisa do passado e as novas lutas pelas minorias antes
excluídas representam a nova forma de liberdade e emancipação. Percebam
bem, cara leitora e caro leitor: como não há como simplesmente abolir
qualquer consideração sobre emancipação política, o discurso emancipatório
clássico tem que ser reconstruído de modo a legitimar e permitir os novos
níveis de superexploração econômica, fingindo, ao mesmo tempo, que as
novas demandas populares estão sendo atendidas. Afinal, precisa-se do voto
popular a cada quatro anos.
O problema nesse tipo de inclusão é que ela se dá de modo individual,
meritocrático e liberal. Dito em outras palavras: serão apenas os membros
mais aptos de cada uma dessas minorias, cuja posição de classe já era de
relativo privilégio, os que terão efetiva oportunidade de ascensão social. Para
o novo capitalismo financeiro, resumir toda a linguagem da emancipação no
discurso meritocrático das supostas lideranças performáticas das minorias
identitárias é um bálsamo. Assim não há sequer a expectativa de nenhuma
mudança no que realmente importa, que é a apropriação da riqueza da
sociedade por uma meia dúzia de pessoas. Basta legitimar o novo arranjo
incluindo uma pequena porcentagem das minorias oprimidas no mercado de
trabalho e na esfera pública. De lambuja, o novo capitalismo ainda se legitima
politicamente como “emancipador das minorias oprimidas”. O Partido
Democrata americano, de Clinton a Obama, abandonando o ideário do New
Deal e passando a adotar a mensagem do complexo financeiro-informático,
passa a ser o principal porta-voz dessa falsa revolução.
O desafio aqui é legitimar a dominação social e política a partir do
próprio mercado. Saem de cena os partidos que representavam correntes de
opinião e visões da realidade e entram as próprias empresas vendendo
“ecologia”, “saúde alternativa”, “inclusão de minorias”, “bandeiras
antirracistas”, “emancipação” e “liberdade” – tudo etiquetado com códigos de
barra, embalado e entregue em casa com todo o conforto pela Amazon. Cria-
se, a partir disso, um novo mercado de trabalho para as lideranças
performáticas e mais talentosas das minorias oprimidas, já devidamente
compradas pelo mesmo capital financeiro. Agora todas as empresas de todos
os ramos de produção disputam a contratação dos porta-vozes das bandeiras
identitárias como forma de se venderem ao público como “emancipadoras”.
Sua imagem passa a ser associada a um estilo de vida cool e descolado, que se
pretende antenado com as grandes questões sociais da época. Assim, as
marcas de luxo no mercado da moda, por exemplo, se utilizam
crescentemente de modelos negros e negras como prova irrefutável de seu
comprometimento social com a causa da “emancipação”.
Pode-se ganhar dinheiro – às vezes muito dinheiro – posando de
representante não autorizado do sofrimento alheio. Como a maioria de
mulheres e negros pobres está convenientemente silenciada e seu sofrimento
não chega à esfera pública seletiva, abre-se um mercado promissor e crescente
para seus autodeclarados representantes.
O novo capitalismo financeiro, que tudo privatiza, privatiza também a
política e o próprio discurso da emancipação ao cooptar e comprar as
lideranças mais talentosas dos grupos sociais oprimidos. Alguns podem dizer:
“Isso é bom, afinal. Ao menos se consegue um espaço de mercado para
pessoas que antes não tinham nenhum por efeito do preconceito.”
É verdade. O problema é que essa inclusão seletiva do 1% mais apto se dá
ao custo da crescente invisibilidade dos 99% que continuam sem chance e,
agora, sem voz. Pior ainda: com o barulho criado na esfera pública pela
inclusão do 1% privilegiado, cria-se a impressão – e esse é o real objetivo do
capitalismo financeiro – de que o tema da inclusão social e da emancipação
política já foi resolvido pelo próprio mercado. Com isso, a opacidade e o
silenciamento do sofrimento dos 99% que continuam excluídos e sem chance
aumentam exponencialmente. Para o neoliberalismo, a inclusão tem que ser
individual e meritocrática, e não da maioria oprimida como um todo.
Mais adiante veremos como, no caso brasileiro, a estratégia do lugar de
fala se ajusta perfeitamente à ideologia do branqueamento, que pode ser
apontada como a estratégia secular da elite brasileira de cooptar os membros
mais aptos e talentosos dos mestiços e dos negros para incluí-los nos
privilégios sociais, de outro modo restritos apenas aos brancos e ricos. Na
estratégia do branqueamento, o decisivo é que a ascensão de negros e
mestiços seja individual, daqueles que aceitam as regras do sistema
dominante, e nunca coletiva, o que poderia pôr o sistema como um todo em
xeque. O que o progressismo neoliberal hoje faz é, sem tirar nem pôr, o que as
elites racistas brasileiras sempre fizeram para enfraquecer a resistência
popular, cooptando e “comprando” suas melhores cabeças.
Aqui se trata de uma nova dialética do visível/invisível, em que o que se
torna visível é a dramatização midiática de uma luta de classes por
redistribuição de renda supostamente já solucionada e a abertura de uma
nova fronteira da liberdade e da emancipação: a das minorias “culturalmente”
oprimidas. A grande esperteza do capitalismo financeiro e de seu
progressismo neoliberal22 foi primeiro comprar os grandes jornais e cadeias
de TV em todo o mundo, em um esforço dirigido de manipulação, para, em
seguida, utilizar a “linguagem da emancipação” nos seus próprios termos.23
Desse modo se torna invisível o empobrecimento da maioria, inclusive dos
99% das minorias oprimidas, na medida em que somente a inclusão midiática
de 1% de seus representantes se torna visível como cartão de visita das
empresas “emancipadoras”.
O perigo aqui é a redução de todo sofrimento e toda injustiça social aos
aspectos que conseguiram ultrapassar os filtros e os controles da mídia
dominante – que em países como os Estados Unidos e o Brasil é elitista e
privatista desde o começo. As reivindicações não articuladas ou das quais foi
cuidadosamente retirado o foco da atenção pública se tornam literalmente
invisíveis. Ocorre com os “novos movimentos sociais” o mesmo que
aconteceu com a tradição marxista e o status privilegiado concedido à classe
trabalhadora, que passara a ser percebida como a única articuladora do
descontentamento na sociedade capitalista, independentemente do escrutínio
empírico.
A prova de que outras formas de sofrimento e humilhação são típicas de
nossa época é apresentada, por exemplo, no livro de Pierre Bourdieu A
miséria do mundo,24 assim como no meu A ralé brasileira,25 que aborda o
mesmo tema, só que no contexto brasileiro. Como o tipo de sofrimento social
analisado empiricamente nesses livros é difuso e vivido na experiência
cotidiana, ele tende a ser percebido como coisa privada e excluído, portanto,
do debate público. Nesse sentido, considerar legítimos apenas os movimentos
sociais e culturais que conseguem ser articulados e ganhar visibilidade – em
meio à multiplicidade das lutas sociais tornadas invisíveis pelos mecanismos
excludentes da mídia dominante – é se deixar manipular pelas forças
hegemônicas do próprio capital financeiro.
Passa a existir um paralelo sugestivo entre as elites financeiras, ou seja, o
1% que se apropria de toda a riqueza social, e as elites performativas do
discurso identitário, ou seja, o 1% que de fato se beneficia da inclusão
meritocrática ao se arvorar em representante do sofrimento alheio. É isso que,
referindo-se ao caso paradigmático do feminismo nos Estados Unidos, Nancy
Fraser chama de feminismo do 1%,26 ou seja, aquele que inclui no mercado
competitivo uma ínfima parcela das mulheres, precisamente aquelas já
privilegiadas por sua situação de classe. Enquanto isso, 99% das mulheres, as
que mais precisam, são condenadas ao mesmo abandono, exclusão e
invisibilidade de sempre. É por conta disso que Fraser, uma das mais
importantes pensadoras do feminismo contemporâneo, chama essa estratégia
falsamente emancipadora de “progressismo neoliberal”. Ela também explica
sua opção por Bernie Sanders na última eleição presidencial dos Estados
Unidos, apesar de Sanders não defender nenhuma bandeira específica das
mulheres. É que a bandeira universalista do aumento do salário mínimo
defendida por ele beneficiaria, antes de tudo, as mulheres – sobretudo as
negras –, que são as trabalhadoras mais mal pagas de todo o país.
As consequências deletérias desse gigantesco projeto elitista de distorção
da realidade já são conhecidas. Um projeto que une uma linguagem de
ativismo e de emancipação ao aumento da pobreza e do sofrimento social real
está condenado a produzir confusão, ressentimento e violência. Contra a
dominação do neoliberalismo progressista do Partido Democrata
desenvolveu-se na extrema direita americana um discurso que reproduz a
mesma invisibilidade das reais causas da pobreza e do sofrimento social, mas
que agora culpa as mesmas minorias que foram redimidas “apenas no
discurso”. Como as causas reais do efetivo empobrecimento coletivo
produzido pela desapropriação rentista neoliberal são cuidadosamente
ocultadas pela mídia privatizada, o que se torna visível ao público
desinformado é apenas a suposta entronização da nova pauta do
progressismo neoliberal.
Nesse sentido, é perfeitamente compreensível que o próprio discurso das
“identidades culturais” seja visto pelas massas empobrecidas e desinformadas
como a causa real de seu infortúnio. Tanto nos Estados Unidos quanto no
Brasil, o progressismo restrito apenas à linguagem do discurso identitário é
um dos principais combustíveis da extrema direita. Utilizando-se do
ressentimento provocado por essa emancipação “da boca para fora” que não
reduz o sofrimento real da maioria, a extrema direita conseguiu facilmente
vender a ideia de que as pautas identitárias são a causa de todos os problemas
e levar tanto Trump como Bolsonaro ao poder.
Por fim, na dimensão jurídica dessa questão, é extremamente
problemático falar em “direitos identitários grupais”, principalmente diante
do fato de os movimentos religiosos e políticos fundamentalistas da extrema
direita apelarem para a legitimidade segundo as mesmas “identidades
coletivas culturais”. Quase sempre, essas concepções grupais são retrógadas e
conservadoras, aludindo a formas de consciência social autoritárias e
ultrapassadas.
Como veremos em detalhe mais à frente, toda a história da evolução das
concepções de justiça e das formas de moralidade do Ocidente tem a ver com
processos de ganho em autoconsciência individuais. Isso não significa
individualismo e muito menos egoísmo, mas sim que toda articulação da
vontade coletiva tem seu contraponto no efetivo convencimento de
indivíduos, os quais são percebidos como seres capazes de julgamento
autônomo. Por princípio, indivíduos autônomos representam os próprios
interesses ou delegam expressamente, por meios legais, essa representação.
Quem fala pelos outros sem autorização expressa está necessariamente
supondo e, portanto, manipulando a vontade política de uma maioria
convenientemente silenciada.
Assim, também na dimensão jurídica não vejo qualquer necessidade de
uma demanda retórica pela proteção cultural de minorias e grupos sociais
oprimidos como uma nova forma de direito ou princípio moral específico. Na
imensa maioria dos casos que apelam à proteção da integridade grupal, a
referência é, necessariamente, ao princípio moral e legal da igualdade
individual, pois o que se deseja é igualdade de tratamento independentemente
de diferenças culturais. Isso é verdade, por exemplo, em relação a demandas
que visam à proteção contra as pressões externas para o livre exercício de
práticas culturais específicas.
O mesmo raciocínio se aplica a demandas “positivas”, na medida em que
tenham o intuito de preservar a coesão interna do grupo dado o passado de
desvantagens cumulativas. Esse é o caso das cotas raciais e de gênero, por
exemplo. Também aqui o princípio da igualdade legal é decisivo, pois se trata
da reparação de injustiças históricas em nome do princípio da igualdade.
Qualquer forma de proteção contra ataques implícitos ou explícitos por parte
da maioria cultural exige a aplicação às vezes inovadora do princípio da
igualdade jurídica.
Como não poderia deixar de ser, a alusão performática, teatralizada e sem
base na realidade a supostas identidades culturais pretende esconder a forma
individualista, liberal e meritocrática como essa inclusão social é pensada.
Afinal, apenas os mais aptos entre os representantes das minorias oprimidas
ganham possibilidades de inclusão. Dito de outro modo: como é a
socialização de classe que decide previamente as chances dos indivíduos no
processo de classificação social, serão sempre os membros já pré-selecionados
entre as minorias oprimidas os que terão acesso às novas chances criadas
pelas lutas performativas na esfera pública comprada do novo tipo de
capitalismo que se cria.
Como nem a Rede Globo nem as redes sociais mostram o sofrimento
cotidiano das maiorias silenciosas e silenciadas, a sua dor não tem nome nem
comove ninguém. Por conta disso, a simultaneidade do discurso do lugar de
fala e da suposta representatividade performativa só pode funcionar segundo
os novos mecanismos de filtros seletivos da esfera pública e da mídia
financeirizada, que decidem de antemão quem tem um lugar de fala legítimo
ou não. Constrói-se assim uma óbvia aliança entre os interesses da
desapropriação financeira neoliberal e o discurso pseudoemancipador, uma
aliança entre duas minorias privilegiadas: o 1% dos que saqueiam a riqueza
social em benefício próprio e o 1% que pretende falar, sem autorização, em
nome dos que sofrem. A intenção aqui é despolitizar e invisibilizar todo
sofrimento que não tenha condições de se articular como um lugar de fala
compreensível e visível. Nesse sentido, atentar apenas aos movimentos sociais
que se organizam segundo essas regras restritivas é a base de todo o engano.
As suas próprias precondições e seus mecanismos de seletividade funcionam
para não permitir a percepção do sofrimento da maioria silenciada.
Acontece aqui um casamento do novo discurso econômico do
empreendedorismo com um discurso político que reproduz, na esfera
pública, as mesmas falácias do ativismo individualista neoliberal. Como a luta
se reduz, ao fim e ao cabo, à tentativa de conquistar um lugar ao sol para si
mesmo, passa a existir um “vale-tudo” performativo, em geral extremamente
agressivo, que a autoridade autoimputada e incondicionada do lugar de fala –
na verdade um mero atalho para evitar o livre confronto de ideias baseado no
melhor argumento – exemplifica à perfeição. Fica a questão: com o tal lugar
de fala e a representatividade meramente suposta e exercida em benefício
próprio, o que ganham os 99% de mulheres e negros sem acesso à nova esfera
pública moldada para perceber a emancipação social apenas em termos
seletivos, performativos e meritocráticos?
Para a adequada compreensão das lutas sociais de nosso tempo em geral,
assim como da desigualdade e do racismo brasileiro em particular, é
necessária uma reconstrução da realidade vivida que dê conta do sofrimento e
da humilhação que são produzidos de modo independente da articulação de
movimentos sociais concretos – midiaticamente privilegiados ou não. É isso
que faremos mais adiante. Como veremos, será fundamental compreender
tanto o processo de aprendizado que conduz o indivíduo e a sociedade a
graus crescentes de reconhecimento social quanto o racismo
multidimensional que oculta e distorce esse mesmo processo.
Afinal, onde está a estrutura do
“racismo estrutural”?
No dia a dia, todos nós experimentamos emoções morais que motivam todas
as nossas ações, sem exceção – amor, inveja, ambição, raiva, compaixão, ódio,
etc. Nosso mundo privado é dominado por emoções desse tipo. Qualquer
leitora ou leitor pode fazer essa experiência por si só. Às vezes nos
confundimos quando imaginamos, por exemplo, que o que motiva nosso
comportamento é a busca por dinheiro. Como o dinheiro se torna o
equivalente universal e o meio por excelência para alcançar qualquer
finalidade, terminamos por ser dominados por uma “ilusão objetiva” e achar
que o dinheiro é um fim em si.31
Se refletirmos bem, veremos que, no fundo, a acumulação de riqueza
tende a ser motivada, antes de tudo, pela nossa necessidade de
reconhecimento e de distinção social positiva em relação aos outros, ou seja,
de assegurar a sensação de que somos superiores e melhores que os outros.
Assim, o dinheiro e a riqueza, que proporcionam esse sentimento, atendem a
uma necessidade moral. Normalmente, quando nos referimos a “economia”,
“necessidades econômicas”, “mercado”, etc., estamos simplesmente falando
de necessidades morais que foram petrificadas e “se esqueceram de sua
gênese” para fins de simplificação ou manipulação.
Quando falamos, por exemplo, de interesses econômicos, estamos
falando, na verdade, da forma histórica e contextual por meio da qual
expressamos a ideia inarticulada de “distribuição justa de bens econômicos”.
Essa é uma conclusão óbvia, caro leitor e cara leitora. Reflitamos juntos. É
claro que todos temos necessidades de sobrevivência, que chamamos hoje em
dia de necessidades econômicas: precisamos ter um teto sobre a cabeça e
alimentos para comer, por exemplo. Ninguém nega que isso seja verdade.
Mas isso não é o principal. O principal é que a forma específica por meio da
qual consideramos adequado distribuir e satisfazer essas necessidades básicas
não é uma fórmula universal e natural. Ainda que a fome seja invariável, a
forma como a sociedade decide prover a alimentação varia enormemente se
ela, por exemplo, reserva a boa comida para poucos e comida de baixa
qualidade para a maioria. A variação na forma de se atender às tais
necessidades invariáveis é, em si, uma decisão moral e política e, obviamente,
o fato mais importante nessa questão. O dado mais importante acerca da
necessidade de moradia é saber se alguns vão ter uma casa de luxo e outros
vão ficar sem teto. Existem, portanto, infinitas maneiras de se atender às
nossas necessidades, e todas elas são decisões morais e políticas. A própria
noção de “invariabilidade” age no sentido de legitimar uma forma específica,
entre as inúmeras possíveis, de se atender a uma necessidade e fingir,
portanto, que não existem alternativas. Isso só interessa a quem domina.
Afinal, a legitimação de escolhas arbitrárias como se fossem naturais e as
únicas possíveis é uma das principais estratégias de dominação.
Na verdade, a forma de atender nossas necessidades básicas depende
sempre de concepções socialmente compartilhadas acerca do que é
considerado, em cada caso concreto, uma distribuição justa de bens básicos –
ou seja, uma ideia moral que avalia quem deve ter acesso prioritário a esses
bens, por exemplo, e por quê. A base da vida social é, portanto, moral, e não
econômica, quer tenhamos consciência disso ou não. Todas as nossas ações no
mundo pressupõem uma avaliação acerca da sua importância, conveniência,
oportunidade, etc. Essa avaliação é sempre moral e é, na realidade, a
moralidade em ato e em ação. Como a maior parte dessas avaliações é
herdada e não passa pela reflexão consciente, não temos ciência da tessitura
moral do nosso comportamento e imaginamos que determinadas coisas são
naturais, que são movidas por “necessidades econômicas” invariáveis e
constantes.
Também o marxismo tradicional tende a transpor para o comportamento
das classes sociais o mesmo economicismo redutor que o liberalismo aplica
ao indivíduo. Assim, a classe trabalhadora é reduzida ao seu aspecto
instrumental e produtivista, o que permite que seus supostos interesses “de
classe” sejam deduzidos externamente pelo intelectual ou pelo partido que
alegam representar seu lugar de fala. Todavia, mesmo grandes historiadores
influenciados pelo marxismo como E. P. Thompson32 e Barrington Moore33
mostraram de modo convincente que as bases motivacionais da revolta da
própria classe trabalhadora e de sua resistência organizada estavam
associadas, desde sempre, à percepção de que expectativas morais ligadas à
noção de honra haviam sido violadas.
De modo similar, as investigações de Florestan Fernandes34 e as minhas
próprias35 relativas aos negros marginalizados e à “ralé brasileira”, já citadas,
mostraram que o sentimento cotidiano de ausência de dignidade e a sensação
de não ser tratado como “gente” têm um papel central na compreensão da
experiência subjetiva da humilhação social entre os marginalizados e
excluídos no Brasil. Não existe nada neste mundo social a que se possa referir
como econômico de modo puro. Só podemos nos referir a algo como
econômico como uma instância autônoma quando esquecemos o conjunto de
avaliações morais que estão por trás desse rótulo em primeiro lugar.
Mas não são apenas a economia ou as supostas necessidades econômicas
que tornam nossa vida moral invisível. Como a necessidade moral precisa ser
articulada e refletida para se tornar um móvel consciente do nosso
comportamento, todas as forças sociais responsáveis pela opressão e a
exploração vão procurar impedir a articulação das demandas morais que
existem em semente em toda sociedade. É esse tipo de reflexão, afinal, que
permite o processo de aprendizado moral que transforma a raiva, ou seja, a
sensação confusa de se sentir agredido moralmente, em indignação, ou seja,
que articula o mero sentimento em uma ideia refletida de injustiça.
Grande parte do trabalho de dominação social, econômica e política
consiste em lutar para que as ideias morais coletivamente compartilhadas
permaneçam inarticuladas e inconscientes. Assim pode-se manipular a raiva
do próprio oprimido contra ele mesmo ou contra outros oprimidos, como
vimos acontecer com o discurso de Trump e de Bolsonaro. Gostaria de
chamar de racismo precisamente esse processo de tornar inarticulado o
mundo moral compartilhado coletivamente de modo a manipular o
sofrimento social para jogar os oprimidos uns contra os outros e convencer as
vítimas da própria inferioridade.
Dessa forma, o que é mais importante para qualquer indivíduo ou
qualquer sociedade tende a não ser percebido enquanto tal. Boa parte do
sofrimento individual e social advém exatamente desse esquecimento, ou
melhor, dessa inarticulação dos valores morais que estão na base do nosso
comportamento. E, quando esses valores permanecem inarticulados e não são
percebidos de modo consciente, eles podem ser ocultados e distorcidos com
relativa facilidade. Por conta disso, toda ciência crítica verdadeira tem que
articular – ou seja, reconstruir e explicitar – as bases morais do
comportamento individual e social, materializadas em concepções de justiça
implícitas e inarticuladas. E em seguida denunciar os vários processos de
ocultação e distorção de que somos vítimas.
Aqui o fundamental é perceber que todos nós já nascemos dentro de um
contexto intersubjetivo repleto de ideias, valores morais e concepções
inarticuladas de justiça que vão orientar todas as nossas decisões. A
moralidade é o que nos habilita a efetuar escolhas, é o que faz com que
sejamos responsáveis pela vida que levamos. Esse é, portanto, o dado humano
por excelência e o aspecto decisivo que nos afasta dos outros animais. Mas,
como o processo de socialização familiar se dá por identificação afetiva com
os pais ou quem quer que ocupe tal função, essa moralidade herdada é, em
grande medida, produzida em tenra idade e, portanto, permanece invisível,
esquecida e inarticulada, posto que tornada inconsciente. Normalmente não
nos lembramos nem temos consciência do que nos aconteceu quando
tínhamos 2 ou 3 anos, quando boa parte dos estímulos morais que nos
guiarão pela vida inteira já estão formados ou em formação.
O mundo social, com toda a sua carga de ocultação e distorção de sentido,
não começa com o nosso nascimento. Ele já existe antes e fora de nós. Assim
sendo, já nascemos, desde sempre, dentro de um contexto prenhe de valores
morais e noções implícitas de justiça e injustiça que nos foram transmitidos
de modo tão direto e afetivo que rigorosamente se confundem com nosso
corpo e com nossas reações mais espontâneas. Portanto a moralidade não está
em nossa cabeça como simples ideia consciente, mas quase sempre se
encontra literalmente “incorporada”, ou seja, expressa afetivamente no nosso
corpo e em suas reações mais imediatas. Do mesmo modo que não
percebemos nossas reações corporais mais imediatas, não percebemos a
realidade moral que as causa nem as concepções implícitas de justiça que nos
guiam.
Se não temos, na vida cotidiana, o distanciamento cognitivo ou afetivo
necessário para enxergar o que nossa socialização familiar fez conosco, temos,
no entanto, uma tradição filosófica e científica vigorosa o bastante para nos
ajudar a apreender o sentido de nossa vida individual e coletiva. Isso não é
pouco. Assim sendo, o que se faz necessário para a adequada compreensão
das lutas sociais de nosso tempo – e dos racismos multidimensionais
brasileiros em particular – é, em primeiro lugar, uma reconstrução do longo
processo de aprendizado moral que marca o Ocidente. Um aprendizado
milenar cujo sentido é a progressiva liberação da força da tradição não
refletida em direção à autonomia individual refletida e consciente. É isso que
significa aprendizado moral, e nada é mais importante, seja na dimensão
individual, seja na dimensão social, do que aprender a ser autônomo e
refletido. Todo racismo vai servir para reprimir e distorcer esse processo de
ganho em autodeterminação e reflexividade. É, portanto, esse processo que
deve ser articulado e tematizado para que as experiências de sofrimento e de
humilhação da maioria silenciosa e silenciada deixem de ser percebidas como
destino privado e sem relevância pública.
Isso é o que faremos a partir de agora. Como sempre, é necessário
compreender tanto o processo de aprendizado que conduz o indivíduo e a
sociedade a graus crescentes de reconhecimento social e reflexividade quanto
o racismo multidimensional que o reprime, oculta e distorce. Um aspecto não
existe sem o outro, e eles não podem ser entendidos separadamente. Para que
entendamos o racismo é necessário entender, antes de tudo, o que ele reprime
e destrói nas pessoas. Sem perceber a lenta formação histórica das
necessidades de reconhecimento social e das demandas por autoestima,
autoconfiança e autorrespeito que estão embutidas nas concepções
inarticuladas de justiça – que são o elemento último de toda luta social e
política por emancipação –, não podemos explicar para que o racismo serve e
muito menos o que ele destrói nas pessoas.
Por fim, é imprescindível que os elementos do aprendizado e da opressão
social sejam reconstruídos primeiro em termos globais para que possamos
compreender a singularidade da situação histórica brasileira. No Brasil, a
enorme maioria dos intelectuais que se dispõem a interpretar essa realidade
pula o primeiro passo, partindo do pressuposto culturalista e falso de que
existe um “planeta verde-amarelo”, supostamente luso-brasileiro, que teria
história e regras próprias. Eu, ao contrário, parto do pressuposto de que é
necessário compreender como a sociedade moderna ocidental funciona, pois
estou convencido de que o Brasil é apenas um dos casos concretos possíveis
de realização desse tipo de sociedade. Um caso particular especialmente
perverso, racista e desigual, mas que, ainda assim, só pode ser entendido a
partir da reconstrução das regras de funcionamento institucional e moral da
sociedade ocidental moderna como um todo.
O judaísmo antigo
Oh, se a gente preta tirada das brenhas da sua Etiópia, e passada ao Brasil,
conhecera bem quanto deve a Deus, e a sua santíssima mãe por este que
pode parecer desterro, cativeiro e desgraça, e não é senão milagre, e grande
milagre!65
As teorias racistas calhavam às elites locais, que as utilizavam para bloquear
as discussões sobre cidadania que decorriam da abolição da escravatura e
das promessas liberais do direito republicano que se implantava. Em nome
da ciência, transformavam a igualdade em um postulado teórico sem
respaldo na realidade biológica da humanidade.73
À primeira vista, o argumento de que existe uma cultura que explica toda a
especificidade da vida social é inatacável. Afinal, hoje em dia todos tendemos
a compreender toda singularidade cultural nos termos do historicismo e do
expressivismo alemão, ou seja, como um todo orgânico, articulado entre si,
com uma memória comum que junta tradições, experiências e ideias
compartilhadas quase sempre por meio de uma língua comum. Essa é a ideia
que nos foi passada de geração em geração nos últimos 250 anos de história.
À primeira vista, portanto, as culturas são percebidas por cada um de nós
como tão únicas quanto seus idiomas. Efetivamente, costumamos
compreender a maior ou menor proximidade cultural em termos linguísticos.
As culturas latinas parecem mais próximas para nós brasileiros do que as
culturas germânicas, por exemplo, do mesmo modo que a língua francesa nos
é mais próxima que a língua alemã. Mas o que é esquecido, afinal, na
construção dessas tradições culturais que parecem tão completamente
singulares quanto as línguas faladas por cada povo? Para mim o que é
esquecido é o principal, ou seja, a “gramática” comum a todas essas culturas.
Assim, do mesmo modo que, no ato da fala, nos concentramos de modo
refletido no conteúdo explícito que queremos transmitir, mas, normalmente,
não temos nenhuma consciência das regras gramaticais que aplicamos e que
permitem a compreensão do que dizemos, com a cultura acontece algo muito
semelhante. O que é esquecido, portanto, no culturalismo é a gramática
comum a todas essas culturas, as quais são percebidas, na superfície, como tão
distintas. Desse modo, nosso desafio aqui é reconstruir a “gramática
profunda” que é esquecida e tornada secundária pelo culturalismo
dominante. No entanto, nosso primeiro passo tem que ser “desconstruir” o
culturalismo e mostrar sua superficialidade.
Vimos que o “protestante ascético”, a partir de certa leitura seletiva da
tese weberiana acerca da origem do espírito do capitalismo, é uma espécie de
substituto para o branco do racismo científico, na medida em que reuniria em
si as mesmas virtudes e a mesma pretensão de superioridade. Como também
já vimos, essa superioridade é, na verdade, uma ideia compartilhada por
todos de diversas maneiras – refletidas e irrefletidas – e remete às virtudes do
espírito, sobretudo o controle e a disciplina dos afetos e o planejamento da
vida a longo prazo. De fato, tudo que é dito acerca da superioridade do
protestante ascético, que é o fundamento da autoimagem do americano como
modelo para o mundo, pode ser resumido na tríade disciplina, autocontrole e
pensamento prospectivo.
Max Weber falava, no entanto, da contribuição dessa atitude
religiosamente motivada para a gênese do capitalismo. Em um contexto
histórico dominado há milênios por uma atitude tradicionalista em relação à
economia, quando as pessoas encaravam o trabalho racionalmente como
satisfação de necessidades, como explicar que em um curto espaço de tempo
tenha surgido uma grande quantidade de pessoas que passaram a encarar o
trabalho irracionalmente, ou seja, como acumulação infinita de riquezas sem
qualquer relação com suas necessidades materiais? É nesse contexto que
adquire importância fundamental o fato de que, em várias seitas importantes
do protestantismo ascético, tenha sido criada uma doutrina específica, a ideia
de um “sinal da salvação” capaz de aplacar o desespero dos crentes
protestantes que não tinham como saber se estavam salvos ou condenados
por toda a eternidade, já que os desígnios de seu Deus não estão ao alcance
dos humanos.
Nesse contexto se desenvolve a ideia do “sinal divino” que proporciona ao
fiel a certeza da salvação. Esse sinal tende a ser percebido como contribuição
para a glória divina na Terra e é cada vez mais interpretado em termos
materiais, como aumento da riqueza material. Desse modo, o interesse ideal
na salvação assume a forma de acumulação infinita de riquezas materiais sem
qualquer vinculação com necessidades concretas. Assim, a mudança da
atitude econômica básica em relação ao mundo pode ser explicada pelo
caminho específico da salvação de todo protestante ascético.
Essa atitude básica certamente não é, como muitos pensam, apenas
econômica. Ela significa, ao contrário, o surgimento de um novo
racionalismo, ou seja, de uma nova forma de avaliar, classificar e se
comportar em relação ao mundo e a nós mesmos em todas as dimensões da
vida.96 Weber chama esse racionalismo específico, diferente de todas as
outras grandes culturas mundiais, de “racionalismo da dominação do
mundo”.97 Essa nova racionalidade implica uma nova forma de perceber o
mundo em todas as esferas, pois, para ter sucesso e dominar o mundo
externo, é necessário compreendê-lo de modo objetivo e científico. Assim, o
mistério do mundo que envolve qualquer atitude religiosa tende a se
enfraquecer a partir da percepção do mundo como um conjunto de inter-
relações objetivas passíveis de compreensão e de controle científico.
É precisamente nesse sentido, como vimos, que Weber percebe o
protestantismo como mediador evanescente do racionalismo capitalista da
dominação do mundo. É que o mundo objetivado, passível de controle e de
conhecimento empírico pela ciência, tende a retirar as bases objetivas de todo
“encantamento do mundo”, que é o pressuposto de qualquer atitude religiosa.
Na leitura weberiana, o protestantismo será substituído pelo utilitarismo, que
troca a noção religiosa de divindade pelo bem comum, mas mantém ainda
um vínculo moral explícito em relação à comunidade como um todo. O
terceiro passo, para Weber, é a passagem ao consumismo e ao hedonismo do
mundo moderno. Na sua visão, nessa última fase o vínculo moral se perde,
criando um mundo de indivíduos amesquinhados. São os “especialistas sem
espírito”, que sabem tudo de seu pequeno mundo profissional e nada do
mundo que os cerca, e os “hedonistas sem coração”, que perderam qualquer
vínculo real com as próprias emoções e são, portanto, condenados ao
consumo desenfreado de pequenas satisfações pontuais.
Mas vejam bem, cara leitora e caro leitor: um diagnóstico ao mesmo
tempo complexo, desencantado e pessimista como este não serve para
legitimar a superioridade inata de uns povos sobre outros nem de algumas
classes sociais sobre outras. Ao contrário, ele se refere a um destino inglório,
quando homens e mulheres, na sua busca pela salvação individual, criaram
um mundo que agora se impõe a todos independentemente da vontade
individual de quem quer seja. O homem mais rico do mundo tem que
obedecer às leis do mercado que ele não criou, senão irá à falência
rapidamente. É claro que, em um contexto de desigualdade, quem não tem
acesso ao mínimo para sobreviver reproduz uma vida indigna desse nome,
mas, a partir dessa leitura weberiana, a vida de todos nós pode ser percebida
como algo sem significado e superficial. É impossível que essa visão crie uma
aura de perfeição, de modelo a ser copiado, muito menos de “fim da história”,
que jura que já teríamos finalmente encontrado a felicidade e os Estados
Unidos refletiriam essa excelência maravilhosa para o mundo.
É necessário usar e manipular o prestígio científico de Max Weber e
falsear completamente sua teoria, transformando-a em uma história de
felicidade e sucesso continuado. Foi isso que Parsons fez com a teoria da
modernização, que é a base da atual teoria da globalização e funciona até hoje
como pano de fundo hegemônico e dominante de qualquer discurso
afirmativo sobre o mundo globalizado. Foi isso que fizeram também Buarque
e Faoro ao imaginar que as classes liberais do mercado no Brasil, ao contrário
do povinho mestiço e corrupto, herdavam também um pouco dessa herança
maravilhosa e divina nos trópicos. Como dizia o próprio Weber, os ricos e
felizes não querem apenas ser ricos e felizes. Eles querem se saber tendo
direito à riqueza e à felicidade. Do mesmo modo, poderíamos acrescentar, é
necessário fazer com que o oprimido se convença de que sua própria opressão
é merecida, senão ela é impossível de se reproduzir no tempo. Mais adiante
veremos como as “identidades nacionais” são construídas precisamente para
atender a essas duas necessidades complementares, justificando um racismo
multidimensional.
Mas esse “conto de fadas” para adultos, criado por meios pretensamente
científicos, não é o único aspecto problemático nem o mais importante do
culturalismo dominante que funciona como um equivalente funcional ao
racismo explícito anterior. O ponto fundamental e esquecido, nesse contexto,
é o fato de que os seres humanos são construídos por instituições impessoais,
que nos fazem ser como somos sem anuência de nossa vontade, como bem
percebeu Max Weber. Se esquecermos por um minuto as fantasias criadas
para legitimar as opressões reais, o que temos são seres humanos mais ou
menos disciplinados para o trabalho e para a vida social. E essas instituições,
como também sabia Weber,98 são agora exportadas “prontas” para o mundo
inteiro, produzindo em todo lugar a mesma “economia emocional” que
caracterizava, antes, o protestante. O protestante do século XVII “escolhia” a
temperança e a autodisciplina como meios de salvação individual; hoje não
temos escolha: ou somos disciplinados como os protestantes de antigamente,
ou estamos fadados ao fracasso e à exclusão social.
Essas instituições disciplinadoras são as mesmas e agem de modo muito
semelhante nos quatro cantos do mundo. São fábricas, escolas, burocracias
públicas e privadas, prisões, empresas e até modelos familiares criados pelo
cinema e por séries de TV ou da Netflix. Como o acesso privilegiado a elas
decidirá as chances relativas de cada classe social e de cada indivíduo, todas as
famílias de todas as classes sociais vão passar a educar seus filhos procurando
socializá-los antecipadamente de acordo com o padrão de disciplina,
autocontrole e pensamento prospectivo que é o que será exigido deles mais
tarde. Boa parte da competição social entre as classes será pré-decidida já
nessa dimensão familiar, seja na transmissão de capital econômico, seja na
transmissão dos pressupostos invisíveis para a reprodução do capital cultural,
o que é ainda mais importante para as classes que não possuem propriedade
econômica efetivamente relevante.
Obviamente, muito pouco nesse processo acontece de maneira consciente
ou refletida. Na verdade, isso pouco importa. As fantasias que temos na
cabeça só são importantes para esclarecer o vínculo genético do nosso
comportamento muito mais como racionalizações e justificativas para a única
vida que temos do que como um esclarecimento real de nosso lugar no
mundo. O que importa é que somos todos socializados, desde tenra idade, de
modo a que incorporemos a mesma economia emocional do protestante
ascético. Esse fato é o decisivo, já que mostra a superficialidade de todo
culturalismo que imagina que apenas algumas culturas do Ocidente teriam
acesso à disciplina necessária para a “dominação do mundo” em todas as suas
dimensões.
No entanto, essa ideologia substitui com vantagens o racismo científico
anterior. Como ela é pseudocientífica e imagina a continuidade e a
transmissão cultural operando por processos conscientes e refletidos, tem que
supor a continuidade de uma religiosidade ética que não existe mais em
nenhum lugar. Nas suas versões mais sofisticadas, a ideologia da supremacia
cultural do Ocidente, fossilizada como continuidade imaginária da revolução
protestante, assume a forma de uma “religião civil”, como reconstruída por
Robert Bellah,99 não por acaso aluno dileto de Talcott Parsons. Caberia a essa
“religião civil”, como o próprio nome indica, operar uma espécie de mediação
entre o antigo contexto religioso e o novo mundo secular, mantendo as
antigas virtudes protestantes vivas e operantes no contexto secular, muito
especialmente vivificando a política participativa e comunitária.100 Em um
contexto de cada vez maior passividade política, fabricação de consenso e
conformismo social, a tese de Bellah – sua sinceridade o obriga, em alguma
medida pelo menos, a ver o mundo real como ele realmente é – assume um
tom crescente de desespero.101
O pior de tudo é que não conheço nenhum autor que faça críticas ao
culturalismo dominante e até hoje hegemônico no mundo inteiro. O
chamado pós-colonialismo opera, em grande medida, no próprio terreno
demarcado pelo opressor, obrigando a uma crítica meramente reativa, que de
resto apenas consolida a dominação cultural. Nesse sentido, a tradição pós-
colonial, pelo menos em sua maior parte, age como Gilberto Freyre agiu com
relação a Boas: simplesmente invertendo os termos do discurso dominador
sem criticar seus pressupostos. A reatividade consiste em aceitar todos os
pressupostos não tematizados do discurso dominante como existentes e
válidos e apenas mudar o sentido da crítica apontando-a contra o próprio
dominador.
Nesse sentido, “provincializar” a Europa equivale a redobrar e reforçar o
próprio discurso culturalista que está longe de ser desconstruído.102 Em
outras vertentes, mesmo as mais conscientes e críticas, como a de Achille
Mbembe,103 os pressupostos não tematizados da dominação simbólica
também nunca são reconstruídos, o que reduz a crítica social a uma mera
metáfora. Como os princípios de classificação e de avaliação do processo
global de dominação não são analisados, seus efeitos podem ser
arbitrariamente “racializados”, a partir de uma gênese histórica também
arbitrária. A metáfora de que muitos passam a ser tratados como negros, ou
seja, como intrinsecamente desvalorizados e desumanizados, acerta o alvo
prático, mas não explica como nem por que essa desumanização para além da
cor e da biologia se produz. E é precisamente essa explicação que é o desafio
real.
Os grandes pensadores críticos do século XX, como Jürgen Habermas ou
Pierre Bourdieu, também não criticaram o culturalismo dominante enquanto
reprodução, por outros meios, do racismo científico. Habermas inclusive joga
água no moinho culturalista ao defender que sua teoria comunicativa está
restrita ao “Ocidente”, percebido do mesmo modo ideológico, produto da
própria eficácia da teoria da modernização no decorrer do tempo, como se
correspondesse ao G7 ou à OTAN.104 Até Bourdieu, normalmente mais
atento à crítica de pressupostos, da mesma forma não apenas reproduz
leituras típicas da teoria da modernização105 como não reconstrói os
fundamentos de uma teoria global das classes sociais, que exigiria a
compreensão da origem de um sistema de classificação e de avaliação único
para todo o globo.106 Isso acontece muito embora ele próprio tenha lançado
as bases, ainda que parciais, de uma análise universal partindo do estudo dos
casos particulares francês e argelino.
Tudo acontece como se, efetivamente, o mundo fosse dividido entre um
Norte moderno e superior e um Sul tradicional e inferior – exatamente como
Parsons e a teoria da modernização defendem desde meados do século
passado –, cada qual com seu critério específico de classificação e avaliação.
Como as formas de sociabilidade culturais se referem ao todo da vida
individual e coletiva, elas assumem a forma totalizante do juízo avaliativo
abertamente racista anterior. Afinal, não são apenas as sociedades que são
“atrasadas”, mas também todos os indivíduos que as compõem. O racismo
implícito evita que a questão real que esclarece o desenvolvimento diferencial,
ou seja, os processos de aprendizado coletivo realizados ou que deixaram de
se realizar, seja devidamente discutida.
Desse modo, a eventual maior produtividade econômica ou a maior
racionalidade da participação política de uma dada sociedade concreta são
normalmente referidas a uma herança cultural comum, e não a processos de
aprendizado históricos e contingentes. O racismo consiste em congelar essas
heranças culturais como causa última de uma superioridade ou inferioridade
inata que tende a se universalizar para todas as dimensões da vida. Isso afasta
a possibilidade de se pensar os processos de aprendizado coletivo cognitivos e
morais como contingência histórica – os quais são, inclusive, passíveis de
regressão.
Ainda que muitos tenham criticado de diversas maneiras as muitas
imprecisões conceituais tanto de Parsons quanto da teoria da modernização, a
tese que defendo neste livro é a de que ninguém reconstruiu o dado principal:
que tanto o Norte quanto o Sul partilham do mesmo esquema de classificação
e de avaliação social, econômica e política e que este é o dado principal. Isso
implica que sejam tratados como sociedades do mesmo tipo, ainda que
sujeitas a processos de aprendizado distintos. São esses processos históricos
de aprendizado, e não a cristalização fetichista de uma suposta cultura
homogênea e comum, que espelham o maior ou menor desenvolvimento
relativo das sociedades. A outra tese, complementar à anterior, é a de que a
manutenção da divisão global entre Norte e Sul, vistos como tipos distintos de
sociedade, equivale à manutenção prática do racismo cultural que essa visão
envolve e torna invisíveis os mecanismos pragmáticos de todo tipo de
dominação material e simbólica.
O que é necessário, portanto, é criticar e desconstruir explicitamente o
racismo científico que se traveste de culturalismo e que sobrevive
precisamente porque ninguém parece ter distanciamento suficiente em
relação a esse racismo primordial para percebê-lo enquanto tal. É isso que me
faz suspeitar que tenha acontecido com a teoria da modernização o mesmo
que aconteceu com o próprio protestantismo: ela “morreu” como teoria
apenas para se tornar realidade prática viva, um pensamento que se
transformou numa emoção sobre a qual não mais se reflete, tornou-se
“corpo”, reflexo automático como o ato de respirar, pressuposto implícito de
tudo que somos, dizemos e pensamos sobre o mundo social. Como o
protestantismo, a teoria da modernização foi um sucesso total.
Por uma teoria crítica e não racista do mundo
contemporâneo
9 Ibid.
10 RIBEIRO, Djamila, 2019, p. 47.
11 Ibid., p. 59.
12 Ibid., p. 48.
13 Ibid., p. 46.
14 Ibid., pp. 58-59.
15 Ibid., p. 49.
16 FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes.
São Paulo: Globo, 1995.
O judaísmo antigo
O nascimento do cristianismo
42 Ibid., p. 134.
43 WEBER, Max. Hinduismus und Buddhismus, Gesammelte Aufsätze zur
Religionssoziologie, vol. II. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1923.
44 ELIAS, Norbert. Über den Prozess der Zivilisation, vol. I e II. Frankfurt:
Suhrkamp, 1991.
A revolução protestante
A moralidade pós-religião
O racismo global
98 WEBER, 1923b.
99 BELLAH, Robert. The Broken Covenant: American Civil Religion in a
Time of Trial. Chicago: University of Chicago Press, 1992.
100 BELLAH, Robert et al. Habits of the Heart: Individualism and
Commitment in American Life. Nova York: Perennial, 1985.
101 Ibid.
102 CHAKRABARTY, Dipesh. Provincializing Europe: Postcolonial Thought
and Historical Difference. Nova Jersey: Princeton Press, 2007.
103 MBEMBE, Achille, 2017.
104 HABERMAS, Jürgen. Theorie des kommunikativen Handelns, vol. I e II.
Frankfurt: Suhrkamp, 1986.
105 BOURDIEU, Pierre. Sociologie de l’Algérie. Paris: Presses Universitaires
de France, 1961.
106 BOURDIEU, Pierre et al., 2011.
107 BOURDIEU, Pierre. La Distinction: Critique sociale du jugement. Paris:
Minuit, 1979.
108 Para uma discussão sobre esse tema em Niklas Luhmann, ver o meu
SOUZA, Jessé, 2015.
109 Ver ZANIN, Cristiano; ZANIN, Valeska e VALIM, Rafael. Lawfare. São
Paulo: Contracorrente, 2019.
110 SOUZA, Jessé. A guerra contra o Brasil. Rio de Janeiro: Estação Brasil,
2019.
111 Ibid.
112 STREECK, Wolfgang. Gekaufte Zeit. Frankfurt: Suhrkamp, 2017.
117 Ver sobre o tema FREYRE, Gilberto. Ordem e progresso. São Paulo:
Global, 2014.
118 SOUZA, Jessé, 2017. Ver, em especial, o capítulo sobre racismo.
119 FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos. São Paulo: Global, 1991.
120 Ibid.
121 Ibid.
122 WEBER, Max, 1923b.
123 Ver DUARTE, Douraci Agostini e MEZZOMO, Frank Antônio. “O
samba enquanto manifestação cultural e sua utilização como símbolo
nacional no Estado Novo (1937-1945)”. In: O professor PDE e os desafios da
escola paranaense. Gov. do Paraná, PDE, 2012. Ver também a tese de Luísa
Alves Pessanha com o título De malandro a nacional: o papel do samba na
propaganda ideológica varguista. Brasília: UnB, 2016.
124 Em parte isso tem a ver com a origem estrangeira da classe de
industriais. Ver sobre isso SOUZA, Jessé, 2018.
125 WEGNER, Robert, 2000.
Conclusão
Escreveu mais de 30 livros e uma centena de artigos e ensaios em vários idiomas. Entre seus
maiores sucessos se destacam A elite do atraso, A classe média no espelho e A guerra contra
o Brasil (Estação Brasil), A tolice da inteligência brasileira, A subcidadania brasileira (LeYa)
e A ralé brasileira (Contracorrente).
A elite do atraso
A guerra contra o Brasil de que trata este livro não é do tipo convencional:
não incendeia cidades nem utiliza bombas e mísseis.
Para o consagrado sociólogo Jessé Souza, as armas dessa guerra são o
racismo, a subserviência da nossa elite econômica, a mentira, o
fundamentalismo religioso e o fascismo latente da nossa tradição autoritária.
Urdida e testada na sociedade americana, a guerra híbrida de que somos
vítimas é uma estratégia baseada na manipulação de informações e na
desestabilização de governos populares.
Jessé defende que, no Brasil, ela encontrou uma organização criminosa
disposta a colocar em prática sua máquina de morte, abrindo caminho para o
assalto às nossas riquezas, o sucateamento da nossa indústria e o ataque aos
direitos mais básicos da população.
Esta não é nenhuma nova teoria conspiratória para explicar a nossa
tragédia, e sim uma análise aguçada e abrangente que revela os detalhes
sombrios de um projeto muito bem-articulado de destruição da arte, da
cultura e da autoestima do povo brasileiro – em nome de Deus, da pátria e do
falso moralismo travestido de combate à corrupção.
Estação Brasil é o ponto de encontro dos leitores que desejam redescobrir o
Brasil. Queremos revisitar e revisar a história, discutir ideias, revelar as nossas
belezas e denunciar as nossas misérias. Os livros da Estação Brasil
misturam-se com o corpo e a alma de nosso país, e apontam para o futuro. E
o nosso futuro será tanto melhor quanto mais e melhor conhecermos o nosso
passado e a nós mesmos.