A PROTEÇÃO JURÍDICA DOS MIGRANTES INDÍGENAS VENEZUELANOS NO
A PROTEÇÃO JURÍDICA DOS MIGRANTES INDÍGENAS VENEZUELANOS NO
A PROTEÇÃO JURÍDICA DOS MIGRANTES INDÍGENAS VENEZUELANOS NO
BRASIL
Resumo
A partir de 2013 a Venezuela passou a testemunhar um movimento emigratório que tomaria grandes
proporções nos anos subsequentes. Até recentemente, dentre os destinos dos migrantes venezuelanos
o Brasil não figurava entre os mais significativos. No entanto, a partir de 2015 tal conjectura se
modificou e o Estado brasileiro começou a receber um fluxo contínuo e crescente de nacionais
venezuelanos. Este trabalho visa analisar e descrever os aspectos da crise humanitária instaurada na
Venezuela, vislumbrada como o motivo da fuga dos cidadãos venezuelanos para diversos Estados
americanos, bem como discorrer sobre a proteção jurídica internacional e nacional dos migrantes
indígenas venezuelanos no Brasil A pesquisa é justificada por oportunizar o aprofundamento do
estudo sobre a proteção desses migrantes indígenas, sob a ótica do Direito. Para tanto, utiliza-se o
método dedutivo qualitativo em uma pesquisa exploratória de referencial bibliográfico. Por
derradeiro, assevera-se a dificuldade dos órgãos nacionais em implementar políticas públicas que
visem manter a autonomia de tais sujeitos e sua identidade indígena.
1 INTRODUÇÃO
1
Mestrando do Programa Pós-Graduação em Fronteiras e Direitos Humanos da Universidade Federal da Grande
Dourados (UFGD).
2
Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (URGS), Professor do Programa Pós-
Graduação em Fronteiras e Direitos Humanos da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e da Faculdade de
Direito (FADIR) da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
2
repetida no ano de 2017 (SIMÕES, 2017, p. 45-48; CARNEIRO, 2017). Entretanto, se por um lado
esses decretos presidenciais buscaram mitigar os efeitos da crise econômica, por outro lado, também
concederam amplas faculdades ao chefe do Poder Executivo em âmbitos que extrapolam as
justificativas plausíveis para a decretação do estado de exceção, caracterizando-se como uma ação
confiscatória vetada pela Constituição venezuelana (CARNEIRO, 2017; MOREIRA, 2018, p. 395).
Em conformidade com essas afirmações resta evidente que somente a decretação do estado
de exceção e/ou emergência não foi uma solução adequada, pois a situação de crise na Venezuela
continuou a piorar (CIDH, 2017, p. 213). Neste sentido, verifica-se ser indubitável que o Estado
venezuelano esteja vivenciando uma situação de grave e generalizada violação de direitos humanos,
principalmente com relação a garantia de acesso aos direitos econômicos, sociais e culturais à sua
população (SILVA, 2017). Todavia, esse cenário atrelado à perseguição política perpetrada pelo
governo venezuelano contra os seus opositores tem sido vislumbrado como o propulsor do
deslocamento forçado de nacionais venezuelanos para outros Estados (HUMAN RIGHTS WATCH,
2016, p. 6; MOREIRA, 2018, p. 395).
Deste modo, percebe-se que a diáspora venezuelana é formada por deslocamentos
involuntários, em razão da impossibilidade de as pessoas continuarem vivendo em seu Estado de
origem (FRINHANI, 2017, p. 564), conforme o próprio reconhecimento da Comissão Interamericana
de Direitos Humanos, consubstanciado em seu informe temático sobre a situação dos direitos
humanos na Venezuela (CIDH, 2017, p. 248). Assim, tem-se observado o deslocamento forçado dos
nacionais venezuelanos para outros Estados distintos em busca de melhores condições de
sobrevivência. Tais indivíduos têm migrado preferencialmente para os Estados hispânicos próximos
como a Colômbia, o Equador e o Chile e residualmente para o Brasil (MISSÃO DE PAZ;
CONECTAS, 2017).
Nesse sentido, verifica-se que o Brasil já recebeu um fluxo migratório de aproximadamente
30 mil migrantes venezuelanos (MAHLKE; YAMAMOTO, 2017, p. 50), sendo que a maior parte
dessa movimentação de pessoas tem ocorrido na fronteira seca entre Brasil e Venezuela, entre a
cidade brasileira de Pacaraima, situada no estado de Roraima, e a cidade venezuelana de Santa Elena
de Uairén, localizada no estado de Bolívar (SILVA, 2017). A migração venezuelana para o Brasil até
2015 não havia apresentado números expressivos (SILVA, 2017). Porém, de acordo com informações
fornecidas pela Polícia Federal, só no ano de 2016 o saldo de ingressos foi de aproximadamente 10
mil pessoas a mais do que número de nacionais venezuelanos que deixaram o Brasil pela fronteira
seca do estado de Roraima (SILVA, 2018, p. 648).
4
3
Migrantes pendulares nesse fluxo migratório em estudo são aqueles nacionais venezuelanos que cruzam a fronteira seca
entre Brasil e Venezuela apenas para comprar alimentos e remédios antes de regressar para o seu Estado de origem.
4
Segundo Souza (2012, p. 78-79) o território é essencialmente um espaço definido e delimitado por e a partir de relações
de poder. Nesse sentido depreende-se que o território transfronteiriço é o espaço geográfico situado entre dois ou mais
Estados nacionais.
5
Desse modo, esses fluxos migratórios carecem da implementação de soluções de médio e longo prazo,
as quais devem ser diferenciadas para respeitar as identidades indígenas e sob a ótica dos direitos
humanos (OIM, 2018, p. 23-24).
Com base em Trujano (2010) evidencia-se que quando os indígenas migrantes estão fora de
seus Estados de origem, eles não costumam ter um tratamento diferenciado dos demais migrantes
nascidos no mesmo Estado. E, em virtude disso, os governos inclinam-se a não levar em consideração
as suas diferenças étnicas e culturais, ao menos até que os povos ou o movimento indígena ganhem
ou demandem atenção internacional (TRUJANO, 2010). Pesquisas sobre migrações indígenas em
geral denotam que a migração é vislumbrada como uma maneira de suplementar a renda e para prover
melhores oportunidades aos filhos (TRUJANO, 2010).
No entanto, quando se trata de grupos indígenas perseguidos, sem Estado, ou afetados em
seus territórios pela degradação ambiental e pelas mudanças climáticas, verifica-se a busca de
famílias inteiras por abrigo temporário e empregos informais ou subempregos nos locais para os quais
se destinam (YAMADA, et. al, 2018, p. 370). Nesse contexto migratório nacional e internacional,
com especial destaque para caso dos indígenas migrantes venezuelanos, percebe-se que tais povos
não deixam de manter ou de exercer as suas identidades indígenas, pois muitos conservam algum tipo
de vínculo com os seus territórios e comunidades originárias (YAMADA, et. al, 2018, p. 370). E,
também apresentam a mobilidade ou não fixação como uma característica predominante de seu fluxo
migratório (YAMADA, et. al, 2018, p. 370).
Perante ao exposto, observa-se a necessidade de no contexto das migrações se assegurar o
respeito e a liberdade de exercício das identidades indígenas, bem como a manutenção das crenças,
costumes e tradições de tais indivíduos, onde quer que estejam (YAMADA, et. al, 2018, p. 370).
Nesse sentido, constata-se a inserção frequente dos povos indígenas e das minorias étnicas,
linguísticas e religiosas em grupos vulneráveis em processos migratórios, principalmente no contexto
de grandes movimentos. (YAMADA, et. al, 2018, p. 375).
Porém, diante de muitas situações emergenciais, esses indivíduos não são notados ou são
invizibilizados pelo Poder Público (YAMADA, et. al, 2018, p. 375-376). Entretanto, é necessário
salientar que no panorama das migrações a “vulnerabilidade” pode ser conceituada como a
diminuição da capacidade de um indivíduo ou grupo de indivíduos para resistir, enfrentar, ou superar
violências, explorações, abusos e/ou violações de seus direitos (OIM, 2018, p. 25).
Diante disso, a vulnerabilidade vem a ser determinada pela presença, ausência e interação
de fatores ou circunstâncias que aumentem o risco a exposição à violência, exploração, abuso e
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violações de direitos (OIM, 2018, p. 25). Com o escopo de conceder uma atenção especial aos
migrantes em situações de vulnerabilidade a OIM (2018, p. 25) advoga ser preciso aplicar uma
abordagem mais holística, na qual estejam inclusos os fatores de vulnerabilidades e uma análise do
potencial de resiliência dos migrantes perante as suas situações de vulnerabilidades. Isto é, levar em
consideração as capacidades e necessidades de cada migrante e a abordagem estrutural da noção de
vulnerabilidade (OIM, 2018, p. 25).
Com relação ao caso dos migrantes indígenas, o reconhecimento da identidade indígena, de
suas formas de organização e de mobilidade em grupos, bem como a conservação do uso de suas
línguas e a prática de seus costumes e tradições são os elementos centrais para se identificar potenciais
de resiliência (YAMADA, et. al, 2018, p. 376). E, em conformidade com isso afirma-se que as ações
das autoridades migratórias e do Estado na superação e na prevenção dessas vulnerabilidades serão
mais eficazes se considerarem essas capacidades de resiliência dos diferentes grupos migrantes
(YAMADA, et. al, 2018, p. 376).
Neste sentido, a OIM (2018, p. 25) identifica como principais as seguintes formas de
violência, exploração, abuso e violações de direitos no cenário migratório: privações de liberdade
ilegais; violações de direitos trabalhistas e obstáculos para o gozo de condições justas e favoráveis de
trabalho; negação do direito à convivência familiar; detenções arbitrárias; tortura; tratamento cruel,
desumano ou degradante; devolução (refoulement); limitação ilegal ao direito de ir e vir; negação do
direito à nacionalidade (apatridia); escravidão; servidão; limitação ou negação dos direitos de
educação e saúde; exploração e abuso sexual; exploração e abuso de trabalho.
Ademais, em consonância com o Relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre
a promoção e a proteção dos direitos humanos de migrantes no contexto de grandes movimentos,
verifica-se existir uma diversidade de possibilidades migratórias e, em algumas delas encontra-se o
denominado “migrante em situação de vulnerabilidade” (2016). Mediante ao exposto, assevera-se
que nas circunstâncias das grandes migrações, pode-se entender a vulnerabilidade de três maneiras,
as quais em alguns casos estão sobrepostas: a) vulnerabilidade relacionada às razões para a saída de
seu Estado, b) vulnerabilidade relacionada à situação encontrada pelos migrantes no trajeto, nas
fronteiras e no contexto de sua recepção, c) vulnerabilidade relacionada ao aspecto específico da
identidade da pessoa ou da circunstância (ONU, 2016).
Especificamente no caso dos migrantes indígenas venezuelanos advindos ao Brasil, já foram
identificadas situações de vulnerabilidade relacionadas à saúde, ao campo de trabalho, e potenciais
situações de abuso, no tocante à convivência familiar em razão da ausência de entendimento
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intercultural das condições de risco adstritas ao trabalho nas ruas e da venda de artesanatos (OIM,
2018, p. 26). Também foram constatadas situações de violência e discriminação, de obstáculos para
o registro de nascimentos de migrantes indígenas que, consequentemente, impossibilitam o
reconhecimento da nacionalidade, dentre outros (OIM, 2018, p. 26).
Após a apresentação do cenário de vulnerabilidades enfrentado pelos migrantes indígenas
venezuelanos no Brasil, discorrer-se-á sobre os instrumentos jurídicos vigentes no Estado brasileiro
aptos a assegurar a proteção desses indivíduos.
fronteiras, restando ao Estados nacionais a adoção de medidas eficazes para facilitar o exercício e
garantir a aplicação de tal direito (ONU, 1966).
A garantia desse direito ainda é reforçada pelo artigo XX (3) da Declaração da Organização
dos Estados Americanos sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 2016, ao asseverar que, além dos
direitos contidos no artigo 36, do Pacto supracitado, os povos indígenas também têm o direito de
transitar por fronteiras internacionais (OEA, 2016). Nessa mesma linha de raciocínio ainda se invoca
o artigo 2 (5), da Declaração Sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes às Minorias Nacionais ou
Étnicas, Religiosas ou Linguísticas de 1992, o qual estatui que os indivíduos pertencentes à minorias
têm o direito de estabelecer e manter, indiscriminadamente, contatos livres e pacíficos com outros
membros de seu grupo e com indivíduos pertencentes a outras minorias, assim como contatos para
além das fronteiras com cidadãos de outros Estados com os quais estão relacionados por vínculos de
nacionalidade, étnicos, religiosos ou linguísticos (ONU, 1992).
Além disso, enfatiza-se o fato de malgrado os migrantes venezuelanos terem cruzado as
fronteiras entre Brasil e Venezuela, eles não serem atualmente enquadrados no conceito de indígenas
transfonteiriços, compreendido como aqueles indígenas que têm seus territórios inseridos na
jurisdição de mais de um Estado, vizinhos entre si (YAMADA, et. al, 2018, p. 374). Todavia,
conforme as pesquisas e levantamentos realizados pelo Conselho Nacional de Imigração (CNIg) e
pelo Ministério Público Federal (MPF), os indígenas venezuelanos estabelecidos no Brasil conservam
vínculos familiares, socais e culturais com os seus respectivos parentes na Venezuela (SIMÕES,
2017; BRASIL, 2017).
Desse modo, entende-se que a conservação de tais vínculos também seja um direito
diretamente relacionado à identidade indígena, tanto no seu aspecto individual quanto coletivo
(YAMADA, et. al, 2018, p. 374). Segundo Simões (2017, p. 80) existem registros de regresso dos
Waraos para suas comunidades originárias seja para levar parte do que conseguiram acumular
(objetos, roupas, alguns mantimentos) como para trazer mais artesanatos a fim de serem
comercializados no Brasil, denotando, consequentemente, a conservação dos vínculos familiar, social
e cultural para além das fronteiras.
Embora os Waraos não compartilhem território em zonas de fronteiras internacionais, eles
assim como outros indígenas migrantes venezuelanos são membros de povos que hoje se encontram
divididos pelas fronteiras entre a Venezuela e o Brasil (YAMADA, et. al, 2018, p. 374). No tocante
a esse assunto a Convenção nº 169, de 1989, da Organização Internacional do Trabalho (OIT),
preleciona em seu artigo 32 que os governos deverão adotar medias aptas, até mesmo por meio de
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acordos internacionais, para facilitar os contatos e a cooperação entre povos indígenas e tribais,
através das fronteiras, inclusive as atividades nas áreas econômica, social, cultural, espiritual e do
meio ambiente (1989).
Em âmbito brasileiro, além dos instrumentos internacionais supra referidos, evidencia-se que
o direito à livre locomoção se encontra resguardado no artigo 5º, inciso XV, da Constituição Federal
de 1988 (BRASIL, 1988). Além disso, observa-se na Lei nº 13.445/17 e em seu Decreto
regulamentador (Decreto nº 9.199/17) a existência de princípios, diretrizes e classificações que visam
assegurar o direito dos migrantes indígenas de manter a sua identidade, com base em sua auto
identificação, devendo-se garantir a esses indivíduos os mesmos direitos assegurados aos indígenas
nacionais, sem distinções, estando em um contexto rural ou urbano, com exceção ao direito à terra
(OIM, 2018, p. 19).
Porém, é necessário salientar a resistência dos Estados no concernente à garantia ao direito
de livre circulação, os quais arguem a sua soberania e a necessidade de controle das fronteiras em
detrimento da plena implementação de tal direito, visto que hoje ainda lhes é permitido escolher quem
poderá ingressar em seus respectivos territórios, com base nas prescrições do artigo 12 (3) do Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 (ONU, 1966; CAMARGO et. al, 2018, p.428).
Em conformidade com essa concepção, ressalta-se o veto realizado pelo presidente da
República Federativa do Brasil ao § 2º, do artigo 1º, da Lei nº 13.445/17 – Lei de Migração, o qual
garantia expressamente os direitos originários dos povos indígenas e das populações tradicionais, com
especial destaque para o direito à livre circulação em terras tradicionalmente ocupadas (BRASIL,
2017). Esse veto presidencial foi realizado sob a a justificativa de que tal dispositivo violava os artigos
1º, inciso I, 20, § 2º, e 231, da Constituição Federal de 1988, os quais impõem a defesa do território
nacional como elemento de soberania, por meio da atuação das instituições brasileiras nos pontos de
fronteira, no controle da permanência e da saída dos índios e não-índios e a competência da União
em demarcar as terras tradicionalmente ocupadas, proteger e fazer respeitar os bens dos índios
brasileiros (BRASIL, 2017) .
Ou seja, o debate a respeito da segurança nacional foi ressuscitado, sob uma lógica de eterno
retorno com características claramente políticas e favoráveis aos grupos contrários à proteção dos
direitos dos migrantes, em detrimento da lógica de proteção aos direitos de tais sujeitos, consignada
na Lei supracitada (SIMIONI; VEDOVATO, 2018, p. 310) e em flagrante violação ao direito de
manifestação e da própria identidade dos povos originários. No entanto, assevera-se que a migração
indígena não pode ser vislumbrada como indevida, pois além de ser legalmente garantida pela livre
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circulação ela não viola a soberania nacional ou gera riscos à segurança dos Estados nacionais
(CAMARGO et. al., 2018, p. 429).
Tal afirmativa é ratificada pelo Parecer Técnico da Defensoria Pública da União (DPU) a
respeito das novas regulamentações das migrações ao ponderar que os povos indígenas não têm
demonstrado qualquer intenção de constituir Estados independentes, não sendo defensável fazer
alusão à violação de soberania nacional, pois a ameaça à soberania brasileira sobre terras indígenas
advém de brasileiros não-índios com o intuito de explorar economicamente as riquezas existentes em
terras indígenas (2017). Nesse sentido também se suscita o fato de a presença dos indígenas nas
fronteiras na realidade dar segurança e não atentar contra a soberania e a paz nacional, até mesmo
porque existem 178 terras indígenas nas regiões fronteiriças do Estado brasileiro, nas quais os povos
conservam relações familiares com os seus parentes em outros Estados, jamais tendo atentado contra
as distintas soberanias (YAMADA, 2017).
Inobstante essas ponderações, e especificamente no caso do fluxo migratório entre a
Venezuela e o Brasil, constata-se que a migração indígena está adstrita à complicada questão do
combate as violações dos direitos de indígenas em um cenário urbano (OIM, 2017, p. 27). Assim
sendo, vislumbra-se a circunstância de o reconhecimento da presença indígena no âmbito das cidades
contestar a concepção assimilacionista5 que vigeu no Estado brasileiro, anteriormente a promulgação
da Constituição Federal de 1988 e a posterior ratificação da Convenção nº 169 da OIT e das
Declarações das Nações Unidas de 2007 e da Organização dos Estados Americanos sobre os Direitos
dos Povos Indígenas de 2016.
Contudo, ainda se nota, de uma maneira geral, a carência de orientações e de entendimento
das instituições públicas brasileiras no tocante à presença de migrantes indígenas e em um contexto
urbano (OIM, 2017, p. 27). Principalmente ao se pensar em políticas e ações que não imputem a esses
indivíduos a perda de suas identidades indígenas e de seus direitos específicos, restando, então, um
grande desafio com relação a possibilidade de elaboração de ações e políticas públicas em atenção
aos ditames dos instrumentos normativos vigentes, sob uma concepção autonomista de direitos (OIM,
2017, p. 27).
5
Em conformidade com a OIM (2018, p. 27) sob a ótica da visão assimilacionista, os povos indígenas deveriam ser
“civilizados” para ser “integrados” a sociedade dominante, abandonando os seus modos de vida, suas línguas, costumes
e tradições, vislumbrados até então como “selvagens” e “incivilizados”. De acordo com essa concepção os indígenas
deixariam de ser “silvícolas”, abandonariam seus territórios, seus modos de vida e suas culturas e se tornariam
trabalhadores rurais. Isso posto, se conseguissem chegar ao contexto urbano, seria porque já teriam refutado a sua
identidade indígena.
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Outro ponto a ser salientado para análise da situação dos indígenas migrantes é a questão da
mobilidade como um meio de vida (GILBER, 2014 apud YAMADA et. al., 2018, p. 380), uma vez
que tal característica possa ser o elemento essencial para o aperfeiçoamento das tratativas do fluxo
migratório em estudo, tanto sob a perspectiva do acolhimento quanto do encaminhamento de políticas
públicas adequadas (YAMADA et. al., 2018, p. 380). Além disso, destaca-se que tanto a migração
indígena para cenários urbanos como a presença indígena em cidades para a comercialização de
artesanatos, de modo temporário, transitório ou intermitente não ser um fenômeno novo (OIM, 2017,
p. 119).
O que se difere na situação dos Waraos e de outros migrantes indígenas é a circunstância de
tais indivíduos serem inclusos na categoria de “estrangeiros”, com uma característica excêntrica em
geral estranha, ou invizibilizada nos contextos urbanos: o fato de serem falantes de línguas indígenas,
com costumes e culturas, percepções de vida e de mundo diferenciadas, chegando em um Estado que
preconiza a promoção e a proteção a diversidade (OIM, 2017, p. 119). Ademais, ressalta-se a
existência de um contrassenso sobre se a responsabilidade pelo gerenciamento do fluxo migratório
de indígenas venezuelanos deve ficar sob a responsabilidade do governo estadual de Roraima, por
meio de sua Secretaria de Estado do Trabalho e do Bem-Estar Social (SETRABES), ou sob o encargo
do governo federal, a luz das deliberações da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) (OIM, 2017, p.
44-45).
Neste sentido, afirma-se que este cenário de incerteza tem corroborrado para a inexistência
de um plano de ação para a implementação das políticas púbicas de gestão dos abrigos dos migrantes
indígenas venezuelanos em Pacaraima e em Boa Vista (OIM, 2017, p. 44). Todavia, entende-se que
o órgão indigenista oficial, ou seja, a FUNAI deveria amparar esses indivíduos, porém para tanto
seria necessário ações e um planejamento orçamentários específicos, pois tal órgão não dispõe de
provisão orçamentária adicional (YAMADA et. al., 2018, p. 383).
Muito embora, o governo federal tenha tomado algumas medidas para assegurar a
regularização migratória e um certo nível de proteção jurídica aos migrantes venezuelanos de um
modo geral no território brasileiro, notadamente por meio da edição da Resolução Normativa nº
126/17, do Conselho Nacional de Imigração (CNIg) e, pela posterior promulgação da Lei nº
13.684/17, constata-se ainda a necessidade de um maior engajamento das instituições públicas, nas
três esferas federativas, da sociedade civil e da academia em prol da busca por soluções que atendam
as demandas dos migrantes venezuelanos, com especial destaque para os migrantes indígenas a fim
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de lhes garantir uma vida digna sem lhes impor mudanças nas suas formas de organização social e
nos seus modos de vida.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observou-se que a atual crise humanitária venezuelana é o resultado das sucessivas crises
econômica, política, social e sanitária que afetam a Venezuela desde 2013 e que tal cenário se agravou
após a derrota do governo Maduro nas eleições parlamentares de 2015, gerando consequências
catastróficas para a maioria dos nacionais venezuelanos que sofrem em razão da escassez de
alimentos e medicamentos e da hiperinflação.
Em virtude de tais conjecturas fáticas constatou-se que até o primeiro semestre de 2017 o
Brasil já havia recebido um fluxo migratório de cerca de 30 mil migrantes venezuelanos, os quais
buscam regularizar a sua situação migratória em território nacional por meio das solicitações de
refúgio, que contabilizam um total de 17.865 em todo o Estado brasileiro.
Asseverou-se ainda a existência expressiva de migrantes indígenas da etnia Warao nesse
fluxo migratório, os quais ingressam no Brasil por um estado federativo marcado pela conflitividade
entre indígenas e não-indígenas, bem como o fato desses indivíduos apresentarem uma situação de
extrema vulnerabilidade e, muitas vezes, não terem as suas diferenças étnicas e culturais levadas em
consideração pelo Estado brasileiro. Além disso, houve a identificação de algumas situações de
vulnerabilidade a que esses migrantes indígenas já foram submetidos no Brasil.
Destacou-se também os instrumentos jurídicos internacionais e nacionais que conferem
proteção aos direitos desses migrantes indígenas enquanto seres humanos, migrantes e indígenas, com
especial destaque para a sua liberdade de trânsito entre o Estados nacionais. Igualmente, enfatizou-se
que esses indivíduos têm os mesmos direitos assegurados aos indígenas nacionais, bem como a
dificuldade de se combater a violação desses direitos em um contexto urbano.
Por derradeiro, dissertou-se sobre a carência de orientações e de entendimento das
instituições públicas brasileiras no tocante a presença de grupos indígenas migrantes em um contexto
urbano, assim como na elaboração de suas ações e políticas públicas direcionadas a auxiliar esses
indivíduos de forma autonomista sem lhes imputar a perda de sua identidade indígena e também se
afirmou ser a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) o órgão responsável para lidar com os migrantes
indígenas venezuelanos.
6 REFERÊNCIAS
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