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https://doi.org/10.1590/1982-3703003263964 Artigo
Abstract: This paper characterizes two moments in the history of Institutional Analysis (IA) in
Brazil, focusing on the city of Rio de Janeiro: the early 21st century, when IA could be considered
a “paradigm without a past”; and the last six years, when it “calls a spade by any other name”,
weaving a network between IA and other discourses and practices, such as those linked to non-
legal conceptions of human rights, to racial and/or gender struggles, decolonial-anticolonial
movements, etc, which revive the paradigm. At the same time, this approach seeks to characterize
the different generations of Brazilian institutionalists, mainly based on experiences in public
universities. The text strives to diagnose the present, and this first experimentation, certainly
partial, seeks to build an ethical-political genealogy of IA in Brazil, in articulation with the paths
of psychology as knowledge and profession.
Keywords: Institutional Analysis, Diagnosis of the Present, Psychology, Ethics, Politics.
Resumen: Este artículo plantea dos momentos de la historia del Análisis Institucional (AI)
en Brasil, con énfasis en el panorama de Río de Janeiro: el del inicio del siglo XXI, cuando
el AI puede considerarse como un “paradigma sin pasado”; y el de los últimos seis años
aproximadamente, cuando “llama las cosas por otro nombre”, tejiendo una red entre el AI y otros
Disponível em www.scielo.br/pcp
Psicologia: Ciência e Profissão 2022 v. 42 (n.spe), e263964, 1-18.
discursos y prácticas, como las luchas relacionadas con las concepciones no jurídicas de los
derechos humanos, las racializadas y/o generizadas, las decoloniales-anticoloniales, etc., que
repotencian el paradigma. Paralelamente, esto se centra en la caracterización de las diferentes
generaciones de institucionalistas brasileños, basándose principalmente en las experiencias
en las universidades públicas. El propósito de este texto es hacer un diagnóstico del presente,
y esta primera experimentación, ciertamente parcial, está orientada hacia la construcción de
una genealogía ético-política de la AI en el país, en articulación con los caminos de la psicología
como saber y profesión.
Palabras clave: Análisis Institucional, Diagnóstico del Presente, Psicología, Ética, Política.
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Souza, A. M. P., & Rodrigues, H. B. C. (2022). Roubando o Nome aos Bois.
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decolonialidade/anticolonialidade etc. – ou melhor quatro focos: Psyché e a mão invisível; Dividindo para
dizendo, incorporada às “esferas da insurreição” reinar; A César o que é de César e Usted preguntará
(Rolnik, 2018). Mediante tal estratégia, “rouba-se o por qué cantamos.
nome aos bois” ao invés de conferi-lo, o que parece
propiciar, no entanto, um aumento de potência.
Psyché e a mão invisível
Como primeiro ensaio nessa direção, o presente
Em um artigo pertencente ao conjunto acima
escrito estará provavelmente sujeito a críticas. Se isso
mencionado, Russo (1999) assim se refere ao encon-
ocorrer, ele terá atingido seu objetivo: o de ampliar o
tro entre os intelectuais do campo psi e a literatura
escopo do que se deseja acoplar ao debate a fim de
socioantropológica:
compor certa história da AI no Brasil.
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funcionou como via privilegiada de acesso dos psicólo- específicos – qual Bohoslavsky – são englobados pelo
gos ao campo da psicopatologia clínica . . ., o que só foi mesmo rótulo, a despeito da variedade das posturas
possibilitado pela intervenção da psicanálise, e de seus teóricas adotadas e da heterogeneidade das alianças
agentes, no campo do asilo” (p. 42). político-institucionais estabelecidas. Por fim, ressal-
Passemos agora às considerações relativas à te-se que o Ibrapsi (Instituto Brasileiro de Psicanálise,
influência dos argentinos. Ao longo da dissertação Grupos e Instituições), fundado em 1978 por um argen-
são subsumidos sob tal rubrica aspectos bastante tino exilado (Gregório Baremblitt) e dois brasileiros
díspares, a saber: presença dos psicanalistas do país (Chaim Katz e Luiz Fernando Mello Campos), é men-
vizinho em seminários e supervisões sobre infância cionado, ao lado da Appia e da PUC/RJ, como simples
e adolescência no começo dos anos 1970; partici- foco de difusão das “influências argentinas”. Portanto,
pação dos mesmos agentes, no mesmo período, em embora diferenças não sejam totalmente ignoradas,
grupos de formação paralelos às sociedades oficiais; iniciativas extremamente díspares são citadas como
repercussão de algumas características da formação tendo “a Psicanálise por suporte comum” (Figueiredo,
argentina sobre a carioca, como maior ênfase na ação 1984, p. 67). Mediante tal procedimento, é rejeitada,
social junto a comunidades e organizações do que em por antecipação, qualquer possibilidade de apreensão
profissionalização sob o modelo do consultório pri- de uma eventual singularidade do institucionalismo,
vado; dissidências políticas, por parte de psicanalis- como se evidencia no seguinte fragmento:
tas de corte socialista e/ou marxista, que culminaram
na ruptura com a Associação Psicanalítica Argentina Os argentinos trazem duas contribuições fun-
(APA) e a IPA, efetuada em 1971 pelos grupos damentais. A primeira é a ampliação e diversifi-
Plataforma e Documento; criação, no ano seguinte, cação das técnicas de intervenção com base na
do Centro de Docência e Investigação (CDI), propi- psicanálise, principalmente as técnicas grupais
ciando uma formação alternativa para trabalhadores . . .; as técnicas focais, terapias breves mais direti-
de saúde mental; presença de psicólogas argentinas vas; e a análise institucional, ainda incipiente no
na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Brasil até o final da década de 70 . . . . A segunda
(PUC/RJ), para realizar um diagnóstico institucional contribuição . . . é o próprio projeto de politização
do Instituto de Psicologia Aplicada em 1971; sucesso e a consequente autonomização da classe dos
da orientação vocacional sob estratégia clínica prati- psicólogos . . . . Mais que nunca a psicanálise vai
cada pelo psicólogo Rodolfo Bohoslavsky, convidado, operar num campo flexível e progressivamente
a partir de 1971, à PUC/RJ; criação da Associação de ampliável que vai desde o investimento nos indi-
Psiquiatria e Psicologia da Infância e da Adolescência víduos ditos normais até as instituições – análise
(Appia), que mostrava fortes vínculos com a Asappia institucional – e isto através de profissionais que
(Associação Argentina de Psiquiatria e Psicologia da poderiam ser definidos, no máximo, como psica-
Infância e Adolescência), no começo dos anos 1970. nalíticos. (Figueiredo, 1984, pp. 78-79).
Essa enumeração faculta perceber que a influ-
ência dos argentinos é situada por Figueiredo (1984) Por um lado, a AI é dita “incipiente no Brasil
notadamente no período inicial (1970-1976)4 do boom até o final da década de 70”; por outro, a prática dos
psicanalítico e que os analistas do país vizinho são tra- psicólogos é percebida como abarcando desde o
tados em bloco, entendidos como amostra da popu- trabalho com os normais até a análise institucional.
lação de agentes de expansão da cultura psi. A bem Aparentemente, há sentidos diferentes designados
da precisão, frise-se que a expressão “os argentinos” pela mesma expressão5, embora todos sejam arras-
emerge pela primeira vez, no texto em apreço, asso- tados pelo redemoinho de uma vocação difusionista
ciada à criação e ao sucesso da Appia. Paralelamente, (confusionista?) da Psicanálise. Quais são, afinal, os
outras organizações – como o CDI –, bem como agentes limites do pensável delimitados por formas determi-
nadas de historicização?
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Para Figueiredo (1984), nesse período se destaca a ampliação do
campo profissional, que passa a se caracterizar por enorme ecle- 5
Na aproximação às instituições, é possível encontrar várias dis-
tismo; já no seguinte (1977-1983), acentua-se a desestabilização da ciplinas – Psicologia Institucional, Sociologia das Organizações,
hegemonia das sociedades psicanalíticas oficiais, pois surgem seis Análise Institucional estrito senso etc. Sobre o tema, consultar
novos grupos de formação, todos organizados por psicólogos. Coimbra (1980).
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interno ao campo profissional. Apesar de sermos parte epistemológica sobre o saber psiquiátrico e a psicaná-
de seus inúmeros leitores, julgamos indispensável expor lise; a segunda parte do escrito, contudo, se inclina a
nossas reticências quanto à delimitação apriorística, uma discussão do modelo proposto pelas Comunidades
em pesquisas históricas, entre um externo e um interno. Terapêuticas no Brasil, fazendo das experiências ocor-
Quando Castel enfatiza a necessidade de adicionar o ridas na Seção Olavo Rocha do Hospital Odilon Gallotti
complemento “primeira versão” ou “segunda versão” a seu campo e problema de pesquisa. Na passagem da
cada menção à Psicoterapia Institucional, não o vemos primeira à segunda parte, o texto ganha um sentido
introduzindo preciosismos. Avaliamos que o sociólogo “descritivo e de registro histórico” em que despontam
nos adverte do risco que corremos quando tomamos respeito e admiração para com os profissionais que
internalidades disciplinares como ponto de partida, des- implantaram as CTs, sem “a intenção de louvar a César
considerando as lutas por hegemonia constituintes de nem a de enterrá-lo” (Teixeira, 1993, p. 13).
tais internalidades; melhor dizendo, quando deixamos Da segunda parte da dissertação jorram miu-
de levar em conta a internalização do interno. dezas-impurezas que se mesclam ao caráter minori-
Vejamos os efeitos produzidos pelo ativo des- tário-molecular das memórias. Desmancham-se os
conhecimento dessa admoestação. Nas práticas em consensos redutores, pois, se algum consenso existia
saúde mental perscrutadas, Figueiredo (1984) encon- nas CTs, dava-se “quanto à denúncia da brutalidade
tra a expansão da Psicanálise, assim como as aspi- dos asilos, da ineficácia dos grandes hospitais, do
rações (psicanalíticas) da categoria dos psicólogos. volume absurdo de internações, da necessidade de
Por nossa parte, pensamos ser tal descoberta inevi- escapar ao modelo biológico estrito”, e não “quanto
tável em razão do ponto de partida adotado por ela: às formulações teóricas, nem quanto às práticas
serão encontradas no campo profissional (interno), assistenciais alternativas prioritárias” (Teixeira, 1993,
como explicação de um processo, aquelas perspecti- p. 146). Em lugar de doutrina, campo ou tendência –
vas e práticas que obtiveram hegemonia como resul- termos idealizados e unificantes –, fala-se de um
tado das lutas, alianças e confrontos constituintes do
próprio processo. A dominância obtida, que deveria . . . conglomerado [a reunir pessoas] com princípios
ser explicada, torna-se explicante devido a uma espe- derivados de diversas modalidades da psiquiatria
rada, por mais que não desejada, “empatia com os dita alternativa: práticas de ação comunitária,
vencedores” (Benjamin,1994, p. 225). epidemiologia, interações sociais, formulações
Quando estudante de psicologia na Universidade da antipsiquiatria, da psiquiatria democrática,
Federal do Rio de Janeiro, a mais velha das autoras compreensão fenomenológica do homem, avan-
deste artigo foi estagiária da CT do Hospital Pinel. ços da psicofarmacologia, terapia ocupacional e,
E é difícil acatar que ela tenha constituído um tran- last but not least, da compreensão psicanalítica do
quilo campo de difusão psicanalítica. Além de ser adoecer mental. (Teixeira, 1993, p. 146).
inseparável dos relâmpagos de maio de 1968, cumpre
também evocar, quanto a essa experiência, faíscas A diversidade das forças que se conjugam na
menos espetaculares, como as críticas permanen- enfermaria de um hospital do subúrbio carioca ganha,
tes à Psiquiatria Asilar, Manicomial, Organicista e em acréscimo, traços sociopolíticos, a saber: projetos
Farmacológica. Quais eram as bases para tais críticas? de penetração na comunidade extra-hospitalar, vin-
Humanistas, marxistas, anti-imperialistas, contracul- culados a uma concepção ampliada (política e socio-
turais, libertárias, antipsiquiátricas e, em uma curiosa antropológica) de Saúde Mental; apostas de que, por
mescla, também psicanalíticas, sem que essa terato- meio da promoção de uma micro-sociedade com carac-
logia político-epistemológica redundasse em domi- terísticas autonomistas e igualitárias, poderiam ser
nâncias definidas. Porém a memória, embora intem- visibilizadas as contradições com a realidade ditatorial
pestivamente resista, sabe-se frágil como justificação. extra-hospitalar; lutas contra a psiquiatria organicista,
Recorre, portanto, a histórias alternativas, à procura armadas de modelos psicodinâmicos, relacionais e/ou
daquela polifonia que a liberte da eventual acusação sociopsicanalíticos; estratégias diversas para preservar
de ser mero monólogo intimista. a existência oficial dos projetos de CTs, já que eram ati-
Cristal de várias faces, a dissertação de Teixeira vidades sobre as quais as instâncias governamentais
(1993) se apresenta, de início, como reflexão exerciam permanente suspeição; criação de serviços
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Se o Brasil teve seu 1968 pontualmente, embora o Outros estudos se esforçam por delimitar campos
país estivesse sob uma ditadura empresarial-militar, as de forças apelando ao conceito de geração (Sirinelli,
lutas contra ela na forma de discursos, conclamações 1996). Cecília Coimbra (1995), por exemplo, distingue
e passeatas logo foram interrompidas. Ao final do ano, duas gerações de argentinos no Brasil:
o Ato Institucional nº 5 e o decreto nº 477 começaram a
esmagar, com braços militares e paramilitares, as bata- A primeira . . . defende a “verdadeira” psicanálise
lhas até então visíveis travadas por parlamentares, inte- e a formação analítica nos moldes da IPA . . . .
lectuais, religiosos, trabalhadores e estudantes. Restou, A segunda . . . chega a partir de 1976, em sua maioria
como recusa, a luta armada – urbana ou rural –, sob a exilada, . . . demonstrando uma expressiva vincula-
inspiração dominante do foquismo guevarista, comba- ção político-social em suas práticas, além de intro-
tida com uma ferocidade de que até hoje são ignorados duzir novas estratégias e táticas de ação. (p. 145).
detalhes sórdidos e protagonismos particulares.
No momento, portanto, em que alguns psicana-
Consciente do novo campo de uniformização pas-
listas argentinos passam a frequentar o solo carioca,
sível de ser introduzido pelo conceito utilizado, apressa-
as inovações propostas, que em seu país são objeto
-se em dizer que, mesmo na “segunda geração”, existem
de um debate acirrado, aqui encontram um milagre
brasileiro a aliar, paradoxalmente, contestação e silen-
. . . os que vêm por questões de mercado, após
ciamento: a categoria dos psicólogos luta contra sua
a implantação da ditadura militar na Argentina,
exclusão da formação psicanalítica; a cultura psi, que
que muito vai “incomodar” os “psi” sem impli-
reivindica a expressão livre, se encontra em franca
cações políticas e . . . os que, mesmo por ques-
expansão; mas os anos são de desaparecimento e tor-
tões de exílio, encontram no Brasil um excelente
tura, e não de plataformas que, embora também com-
“mercado psi”. (Coimbra, 1995, p. 45).
batidas nas terras do Prata, ainda ousam por lá, pelo
menos até o golpe militar de 1976, tornar públicos
certos sonhos de transformação. Nesse sentido, será A distribuição em gerações, porém, não parece
apropriado, em trabalhos sob perspectiva histórica, despropositada quando Coimbra (1995) se refere às
falar, de forma generalizada, no papel dos “psicana- reações dos psicanalistas das sociedades oficiais,
listas argentinos”? inclusive os mais progressistas, entrevistados em sua
A fim de divisar alternativas, tomemos as inda- pesquisa: “…insistem em dizer que a influência dessa
gações formuladas por Baremblitt (1987), um dos ‘segunda geração’ . . . é quase nenhuma”, sendo unâni-
“argentinos” atuantes no Brasil: mes em afirmar que “a mais importante contribuição
vem dos ‘oficiais’ do início dos anos 70” (pp. 150-151).
Creio que cabe perguntarmo-nos, em primeiro Também a mais velha das autoras deste artigo
lugar, se alguma vez existiu ou existe algo como recorre ao polêmico conceito: afirma que na metade
“um grupo de colegas que chegaram da Argen- inicial da década de 1970 uma “primeira geração” de
tina” . . . . Em segundo lugar, nos caberia interro- argentinos – desenvolvimentista, preventivista, gru-
gar se existe ou existiu algo como “Escola Argen- palista em compreensão (bioniana, pichoniano-ble-
tina” ou “os argentinos”. (p. 53). geriana8) e em extensão (mães, gestantes, crianças,
adolescentes, pacientes orgânicos, instituições) – vem
A tais perguntas, ele mesmo contesta: percebe os ao Brasil e logo retorna a seu próprio país, sempre
compatriotas, no Brasil, “comportando-se de forma respondendo às demandas que ajuda a produzir.
feliz ou desafortunadamente heterogênea” e apre- Já na metade final da década, uma “segunda geração”
senta uma extensa relação de referências bibliográfi- também grupalista, mas freudo-marxista, althus-
cas, cujos fundamentos se estendem do kleinismo à seriana, antipsiquiátrica, institucionalista, deleu-
Análise Institucional francesa, passando por vertentes ze-guattariana etc. – plataformista, em suma – vem
do freudo-marxismo e/ou do lacanismo-althusseria- porque é obrigada a deixar a Argentina em razão do
nismo, desestabilizando, assim, qualquer intuito de
afirmar tendências unitárias entre os psicanalistas de 8
O termo conjuga os Grupos Operativos de Enrique Pichon-
seu país (Baremblitt, 1987). -Rivière e a Psicologia Institucional de José Bleger.
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golpe militar e tão cedo não pode retornar a seu país na cena política do país (Sader, 1988), lutas como as
(Rodrigues, 1999b, p. 129). dos movimentos feminista, negro, LGBT (à época,
Enquanto a Argentina vivia um momento de lutas GLBT), ambientalista, sanitarista, antimanicomial e,
nacionais-populares e/ou revolucionárias (1969- claro, o movimento pela anistia dos presos e exilados
1973), o Brasil estava mergulhado no “milagroso” políticos ganharam força. Engendra-se, assim, uma
período dos “anos de chumbo”. Quando ela ingressa versão brasileira e latino-americana para os direi-
na “Guerra Suja” (1974/1976), por aqui se inicia a dis- tos humanos (Coimbra, Lobo, & Nascimento, 2008),
tensão “lenta, gradual” e principalmente “segura” do muito mais popular, encarnada e contestatária do que
Governo Geisel (1974-1979), pois ainda se vive sob a aquela de uma solene declaração a ser alcançada ou
Doutrina de Segurança Nacional. Costuma-se consi- cumprida, aproximando-nos do que Mario Benedetti
derar este último Brasil um estranho país para exílio (2015, como citado em Souza, 2018) viria a chamar de
de plataformistas. Soa bem mais incômodo, todavia, “esquerdos humanos”.
o não-estranhamento das tranquilas visitas de psica- Os psis de viés institucionalista (e já marcados
nalistas argentinos àquele outro Brasil – o dos “anos pelas leituras de Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix
de chumbo” – para ministrar cursos e supervisões. Guattari, Baruch Espinosa, entre outros) não demo-
Há, no caráter constatativo-descritivo da narrativa rariam a ir mais longe e profanar as origens burgue-
dessas visitas, um pressuposto a ser radicalmente sas, europeias e coloniais dos direitos humanos, bem
questionado, pois possui repercussões evidentes como as concepções de sujeito de caráter essencia-
sobre o modo de escrever a história: o da possibili- lista, individualista e transcendental ali subjacentes
dade de analisar o campo psi omitindo a forma como (Coimbra et al., 2008). Logo se daria a aposta em uma
o contexto sociopolítico delimita suas condições de concepção processual, coletiva, ética, anticapitalista e
existência e funcionamento. libertária para tal pauta. Essa concepção e as experi-
ências militantes e epistemológicas daquela geração
marcariam profundamente a formação de parte da
Esquerdos humanos
geração seguinte, bem como a própria categoria pro-
A esta altura, está nítida a afinidade entre o
fissional dos psicólogos, seja interpelando-a em seu
paradigma institucionalista e um grupo, na América
potencial para “guardiã da ordem” – expressão emble-
Latina, crítico aos instituídos de várias ordens. Como
mática cunhada por Cecília Coimbra (1995) –, seja na
vimos, a que pode ser considerada a primeira gera-
direção política tomada pelo Sistema Conselhos nas
ção de analistas institucionais no Brasil – à qual per-
décadas subsequentes.
tence a mais velha das autoras deste artigo –, em sua
Anuncia-se assim uma relação da psicologia com
maior parte feminina e de formação psi, tomou con-
os direitos humanos, via AI, que coloca a primeira em
tato com a AI no final dos anos 1970 e início dos 1980,
análise, problematizando seu mandato social e con-
principalmente por meio da mencionada “segunda
vocando-a a um compromisso ético-político de pro-
geração” de argentinos, assim como pelo encontro
moção e sustentação da multiplicidade e da diferença.
com institucionalistas franceses e expoentes do movi-
mento da Psiquiatria Democrática italiana (Coimbra,
1995; Rodrigues, 2005). Isso se deu tanto em espaços Revoluções moleculares
formativos como institutos – sendo o mais importante ao som de um violino
deles o Ibrapsi – e universidades, ainda que nessas de Mais rigorosamente, para quem começou a estu-
forma incipiente em comparação com o que virá a ser dar e/ou atuar no campo psicológico na primeira
a difusão acadêmica nos anos 1990 e 2000. década dos anos 2000, as práticas desencaminhadas
Parte desse grupo se engajou intensamente na pela AI (Rodrigues, 2005) foram aquelas das e nas
oposição à ditadura empresarial-militar brasileira, políticas: não só as institucionais, clínicas, insurgen-
tendo sido perseguida, presa, torturada, e desapare- tes etc., mas igualmente as políticas públicas, o que
cida e/ou assassinada. Mas também sobreviveu, resis- exigiu uma especial habilidade para caminhar, qual
tiu e inventou outras estratégias de militância pela equilibrista, no “fio da navalha” entre o controle e o
vida e pela liberdade. A partir da segunda metade da cuidado (Neves, 2004). Vejamos como algumas modu-
década de 1970, com a “crise das grandes narrativas” lações e infiltrações se efetuam para essa safra psi e a
(Lyotard, 1979) e a entrada de “novos personagens” que movimentos o institucionalismo se alia.
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Antes de tudo, é preciso dizer que já não fazia sociais e políticas afirmativas; investia-se na edu-
muito sentido, naquele momento, manter a psica- cação, na assistência social, na saúde. A categoria
nálise como alvo central de problematizações, como psi passa a estar em maior número tanto na “ponta”,
ocorrera nos anos 1970 e 1980, já que, no Brasil, ou seja, nas equipes dos serviços, quanto na gestão
“a análise institucional tem sua origem em uma mesti- pública, que absorve, inclusive, vários movimentos
çagem” (Manero, 2022, p. 15) que, como vimos, inclui sociais. Psicólogos institucionalistas participam ativa-
uma psicanálise marginal e crítica. No âmbito episte- mente na formulação de políticas e projetos, a exem-
mológico já estavam nítidas, ademais, as hibridiza- plo do Humaniza SUS, da Reforma Psiquiátrica e das
ções com a filosofia da diferença, a psicologia social e Clínicas do Testemunho.
os grupalismos (Rodrigues & Barros, 2003), o que con- A questão que agora vigora é: como tocar o vio-
fere à AI brasileira um interessante aspecto de apro- lino “canhotamente”, isto é, inventivamente? Ou, para
priação-invenção transdisciplinar (Passos & Barros, quem não está dentro da máquina do Estado, mas
2000). Nessa AI, a relação de lateralidade e amizade – decerto se encontra envolto nas tramas microfísicas
e não de filiação e mestria – com os autores lidos é do poder (Foucault, 1979), como operar, no cotidiano
uma marca constante, impulsionando trabalhos auto- de trabalho, mediante práticas a contrapelo da lógica
rais singulares. De outra parte, o campo macropolítico normatizadora e adoecedora de corpos e subjetivida-
sofria modulações a partir das quais ficava cada vez des? O desafio principal parece ser o de aprender a se
mais difícil extrair purismos. movimentar em meio às impurezas; melhor dizendo,
Muitos dos que nasceram no início dos anos 1980 o de habitar as linhas macropolíticas de maneira vigi-
não sentiram (ao menos não diretamente) o peso das lante quanto aos controles e microfascismos. Cumpre
botas dos anos de chumbo que fora experimentado manter vivas as forças instituintes em meio às instituí-
e desafiado por quem lhes apresentaria, em grande das, mesmo na militância e nos novos ativismos (Asth,
parte nas universidades públicas, o institucionalismo. 2021; Souza, 2018), pois nem toda força contestatária
Ainda assim, viveram – após a “lenta e gradual” aber- fora absorvida pelo Estado.
tura política repleta de acordos que culminaram na Em tais circunstâncias, as ferramentas da AI são
Constituição Cidadã – pouco mais de uma década acionadas recorrentemente, ora transversalizadas nos
entre o liberalismo e a social-democracia de centro- fazeres diários, como antídoto em face de possíveis
-direita. Na virada do milênio, a América Latina expe- cooptações, ora atreladas estrategicamente aos pró-
rimenta uma espécie de guinada “anti-Condor”, com a prios princípios das políticas – afirmando-as, nesse
eleição de Néstor Kirchner na Argentina, Hugo Chávez caso, como mais públicas e coletivas do que como
na Venezuela, Evo Morales na Bolívia e José Mujica no estatais (Barros & Passos, 2005; Monteiro et al, 2006).
Uruguai. Em 2002, o Brasil elege um ex-metalúrgico Faz-se necessário teimar em ser antimanicomial em
nordestino, Luiz Inácio Lula da Silva, e o Partido dos meio à reforma psiquiátrica; em seguir apostando nos
Trabalhadores (PT) estreia na posição máxima do processos de autogestão; em afirmar a política nos dis-
poder executivo federal. positivos clínicos; em escapar das capturas impostas
“Finalmente um governo de esquerda!”, alguns aos direitos humanos, em nome dos quais, por sinal,
bradaram. Mas logo seria lembrada a frase de continuam a vigorar práticas de exclusão e de morte;
Eduardo Galeano (2001): “o poder é como um vio- em deslocar-se à esquerda da esquerda para manter o
lino, toma-se com a esquerda e toca-se com a direita” que talvez possamos chamar de devir revolucionário.
(p. 17). Apesar de suas origens democrático-popula- A propósito, no Sistema Conselhos de Psicologia,
res, o PT fez alianças com o “centrão” para se eleger os direitos humanos tomam um lugar de centralidade.
e passou a governar no lugar, preexistente, do Estado Após a criação da Comissão Federal de Psicologia (CFP)
Democrático de Direito – Estado Moderno, burguês, e das Comissões Regionais de Psicologia (em 1997 e
em um mundo de capitalismo globalizado cuja racio- 1998, respectivamente), com a meta de mobilizar per-
nalidade era (necro)biopolítica e penal (Coimbra manentemente a categoria em sua defesa, os direitos
et al., 2008; Monteiro, Coimbra, & Mendonça, 2006). humanos são incorporados, em 2005, como princí-
A despeito (ou ao lado) das muitas ressalvas que pio fundamental no Código de Ética (CFP, 2005). Será
possam ser feitas, o fato é que, “como nunca antes na também nas comissões federal e regionais que movi-
história desse país”, implementavam-se programas mentos vinculados a temas como HIV/aids, gênero e
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Souza, A. M. P., & Rodrigues, H. B. C. (2022). Roubando o Nome aos Bois.
diversidade sexual, assim como relações étnico-raciais as cotas sociais e raciais9, o Programa Universidade
conquistarão espaço (Schucman & Martins, 2017). para Todos (Prouni) e o Programa de Apoio a Planos
A partir da concepção do direito “como con- de Reestruturação e Expansão das Universidades
quista, datada historicamente, e do humano como Federais (Reuni)10 – políticas estas, vale lembrar,
permanente criação de si e de mundos” (Arantes, fruto da pressão dos movimentos sociais.
2007, p. 7), os direitos humanos são tomados pelos Conforme descrito em trabalho anterior (Souza
institucionalistas – das gerações de ambas as autoras & Szuchman, 2021), as experiências e problemati-
deste artigo – em publicações e intervenções, dentro e zações da nova geração universitária brasileira vêm
fora do Sistema Conselhos. Vale enfatizar, nesse sen- comparecendo nas disciplinas de graduação, nas
tido, sua presença nas salas de aula, como linha ética atividades de extensão, de estágio, nos grupos de
que problematiza, de modo incansável, as práticas pesquisa e na pós-graduação, convocando docentes
psi em sua tradição individualizante, adaptacionista, a destacarem mais os marcadores sociais da dife-
tutelar, racista, capacitista, especista, essencializante, rença nos conteúdos trabalhados, bem como a que
e pretensamente científica nas diversas áreas de atu- se façam presentes, nas bibliografias, autores e epis-
ação. São discutidos em profusão temas como os pro- temologias inauditas ou aniquiladas pela tradição
cessos de medicalização e de judicialização da vida; ocidental do pensamento (Carneiro, 2005). Tal cha-
os especialismos; as práticas de exclusão; a questão mado urgente aparece em numerosas novas escritu-
verdade, memória e justiça nas novas democracias ras – antirracistas, feministas, interseccionais, entre
latino-americanas. Atenta-se, enfim, aos atravessa- outras –, que interrogam autores que antes julgáva-
mentos neoliberais e biopolíticos nas práticas psico- mos intocáveis, inclusive aqueles que ocupam uma
lógicas. No entanto, os marcadores sociais da dife- posição contra-hegemônica na psicologia majoritá-
rença, como raça, etnia, gênero e sexualidade ainda ria. As novas escrituras mencionadas se agenciam,
aparecem pouco no foco das análises – o que, em em acréscimo, à expansão de estudos pós-coloniais,
breve, não mais poderá deixar de ser notado. subalternos e decoloniais (Ballestrin, 2013).
Como marcas das contribuições da AI para uma Essas forças revoltosas se manifestam numa atu-
geração, pode-se dizer que foi importante, certa- alidade brasileira tensa, de conjuntura ultraconserva-
mente, adquirir as destrezas e sagacidades de um dora, de grotescos retrocessos nas políticas públicas,
equilibrista para garantir que o controle não vencesse sob um triste bolsonarismo que ascendeu à presidên-
o cuidado. Mas nada nos havia preparado para o que cia em 2018 e, mais gravemente, alastrou-se no tecido
ainda estava por vir. social naquele mesmo momento, a partir das condi-
ções criadas por um golpe jurídico-institucional sobre
Rejuvenescer o governo de Dilma Rousseff (PT), ocorrido em 2016.
Retomando as interpelações que animam este Trata-se de tempos de aprofundamento de desigual-
texto, talvez as mais candentes (e desejáveis) que dades sociais, raciais e de tantas outras ordens, graças
estejamos vivendo nos últimos anos, presentes a uma tecnologia de exercício de poder brutalista – de
nas salas de aula e nos corredores da universidade tendência mundial, vale dizer –, como vem definindo
pública (em nosso caso, a Universidade do Estado do Achille Mbembe (2021), que conferiu feições genoci-
Rio de Janeiro), sejam aquelas ligadas a relações étni- das à gestão da pandemia de Covid-19 no país. Poder
co-raciais, identidades de gênero, orientação sexual,
territorialidade e colonialidade. Historicamente
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A Lei nº 12.711/2012 garante a reserva de 50% das vagas de Ins-
tituições de Ensino Superior (IES) federais para estudantes que
impossibilitados por longuíssimo tempo de acessar cursaram o ensino médio em escolas públicas, oriundos do Exa-
esses espaços universitários no nosso país, caracte- me Nacional do Ensino Médio (Enem) ou Educação para Jovens
e Adultos (EJA), com renda familiar igual ou menor a 1,5 salário
rizado pelo colonialismo escravocrata, pelo racismo
mínimo; há reservas específicas para pretos, pardos, indígenas
patriarcal cis-heteronormativo (Geledés, 2013) e e pessoas com deficiência. No estado do Rio de Janeiro, a lei de
pelo capitalismo neoliberal, corpos periféricos e cotas nº 3.708 foi aprovada em 2001 e prorrogada por outros dez
anos em 2018, pela lei nº 8.121.
favelados, negros, indígenas e LGBTs passaram a
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O Prouni, instituído pela Lei nº 11.096 de 13 de janeiro de
ocupá-los, como sabemos, notadamente a partir 2005 – e o Reuni, visando a democratização do acesso à Educação
da implementação de políticas afirmativas como Superior, foram criados pelo decreto nº 6.096 de 2007.
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Recebido 10/05/2022
Aceito 10/05/2022
Received 05/10/2022
Approved 05/10/2022
Recibido 10/05/2022
Aceptado 10/05/2022
Como citar: Souza, A. M. P., & Rodrigues, H. B. C. (2022). Roubando o nome aos bois: Gerações e inflexões
na história da análise institucional no Brasil. Psicologia: Ciência e Profissão, 42 (n.spe), 1-18. https://
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How to cite: Souza, A. M. P., & Rodrigues, H. B. C. (2022). To call a spade by any other name: Generations and
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Cómo citar: Souza, A. M. P., & Rodrigues, H. B. C. (2022). Llamar las cosas por otro nombre: Generaciones e
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