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Psicologia: Ciência e Profissão 2022 v. 42 (n.spe), e263964, 1-18.

https://doi.org/10.1590/1982-3703003263964 Artigo

Roubando o Nome aos Bois – Gerações e Inflexões na


História da Análise Institucional no Brasil

Alice De Marchi Pereira de Souza1 Heliana de Barros Conde Rodrigues1


1
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
1

Resumo: O artigo caracteriza dois momentos na história da Análise Institucional (AI) no


Brasil, com ênfase no panorama da cidade do Rio de Janeiro: o do início do século XXI, quando
a AI poderia ser considerada como um “paradigma sem passado”; e o dos últimos seis anos,
aproximadamente, quando se “rouba o nome aos bois”, tecendo uma rede entre a AI e outros
discursos e práticas, como as lutas ligadas a concepções não jurídicas de direitos humanos,
as racializadas e/ou generificadas, as decoloniais-anticoloniais etc., que repotencializam o
paradigma. Em paralelo, essa abordagem se volta para a caracterização das diferentes gerações
de institucionalistas brasileiros, principalmente a partir de experiências em universidades
públicas. O intuito do texto é efetuar um diagnóstico do presente, e esta primeira experimentação,
decerto parcial, está voltada principalmente à construção de uma genealogia ético-política da
AI em nosso país, em articulação com os percursos da psicologia como saber e profissão.
Palavras-chave: Análise Institucional, Diagnóstico do Presente, Psicologia, Ética, Política.

To Call a Spade by Any Other Name: Generations and Inflections


in the History of Institutional Analysis in Brazil

Abstract: This paper characterizes two moments in the history of Institutional Analysis (IA) in
Brazil, focusing on the city of Rio de Janeiro: the early 21st century, when IA could be considered
a “paradigm without a past”; and the last six years, when it “calls a spade by any other name”,
weaving a network between IA and other discourses and practices, such as those linked to non-
legal conceptions of human rights, to racial and/or gender struggles, decolonial-anticolonial
movements, etc, which revive the paradigm. At the same time, this approach seeks to characterize
the different generations of Brazilian institutionalists, mainly based on experiences in public
universities. The text strives to diagnose the present, and this first experimentation, certainly
partial, seeks to build an ethical-political genealogy of IA in Brazil, in articulation with the paths
of psychology as knowledge and profession.
Keywords: Institutional Analysis, Diagnosis of the Present, Psychology, Ethics, Politics.

Llamar las Cosas por Otro Nombre – Generaciones e Inflexiones


en la Historia del Análisis Institucional en Brasil

Resumen: Este artículo plantea dos momentos de la historia del Análisis Institucional (AI)
en Brasil, con énfasis en el panorama de Río de Janeiro: el del inicio del siglo XXI, cuando
el AI puede considerarse como un “paradigma sin pasado”; y el de los últimos seis años
aproximadamente, cuando “llama las cosas por otro nombre”, tejiendo una red entre el AI y otros

Disponível em www.scielo.br/pcp
Psicologia: Ciência e Profissão 2022 v. 42 (n.spe), e263964, 1-18.

discursos y prácticas, como las luchas relacionadas con las concepciones no jurídicas de los
derechos humanos, las racializadas y/o generizadas, las decoloniales-anticoloniales, etc., que
repotencian el paradigma. Paralelamente, esto se centra en la caracterización de las diferentes
generaciones de institucionalistas brasileños, basándose principalmente en las experiencias
en las universidades públicas. El propósito de este texto es hacer un diagnóstico del presente,
y esta primera experimentación, ciertamente parcial, está orientada hacia la construcción de
una genealogía ético-política de la AI en el país, en articulación con los caminos de la psicología
como saber y profesión.
Palabras clave: Análisis Institucional, Diagnóstico del Presente, Psicología, Ética, Política.

Inflexões, guinadas, descontinuidades operamos uma guinada metodológica. Determinadas


A ocasião dos 60 anos da psicologia no Brasil, situações-interpelações do presente nos convocam a
objeto desta edição especial da revista Psicologia, ver e contar a história desses acoplamentos com outras
Ciência e Profissão, poderia nos remeter às consagra- lentes (e mais vozes), visto também sermos impelidas a
das dimensões cronológicas do tempo: passado, pre- transformações de nós mesmas no encontro com nosso
sente e futuro. É clássico, em datas comemorativas campo de análise (Passos & Barros, 2000). Tal circuns-
como esta, recorrer a um conhecido roteiro: revisitar tância, por sua vez, nos faz lançar mais perguntas do que
o passado, celebrando os passos dados até aqui; diag- oferecer respostas quanto a um porvir. Afinal, historici-
nosticar o presente, analisando conquistas e limites; zar o que se passou – mediante a construção de gêneses
projetar o futuro, delineando desafios e tarefas para tanto teóricas quanto sociais e políticas – assume função
as gerações vindouras, na esperança de “algo melhor”. de abertura para a possibilidade de modificação do pre-
No entanto, ao começar a construir este artigo, sente e consequente fabricação de outros futuros.
por nos interessarem os efeitos e implicações ético- Sendo assim, nossa questão-proposta se modula
-políticas da Análise Institucional (AI)1 nesses 60 anos em direção ao que a AI pôde e pode ainda hoje aportar
da psicologia brasileira – e sendo nós mesmas afei- para a psicologia e para o enfrentamento dos desafios
tas ao movimento institucionalista, além de leito- de nosso tempo, mas igualmente se volta ao que o pre-
ras de Michel Foucault –, subverte-se a lógica linear sente faz pensar sobre o movimento institucionalista,
de chronos, instaurando-se outra temporalidade: a seus limites e as possibilidades de contar sua história.
da genealogia (Foucault, 1979) e da pesquisa-inter- Veremos, portanto, que relações singulares se estabe-
venção (Rodrigues & Souza, 1987). Propusemo-nos lecem, atualmente, entre psicologia, política, Análise
então, de início, a analisar quais seriam os impactos Institucional e movimentos de insubordinação.
A primeira das situações-interpelações com
de uma “primeira geração” brasileira de socioanalis-
que nos deparamos recentemente ocorreu durante
tas, formada no final da ditadura empresarial-militar
a participação em uma banca de concurso para pro-
e começo dos anos 1980, caracterizada por uma pos-
fessor adjunto numa universidade pública. Tendo a
tura crítica e libertária sobre a seguinte. Essa última
área do certame – consequentemente, a ementa e
geração estava concluindo a graduação em psico-
a bibliografia – grande proximidade com a Análise
logia no início dos anos 2000, quando o Partido dos
Institucional e apesar de as muitas provas (escri-
Trabalhadores (PT) ascendeu ao governo federal e os
tas e didáticas) dos(as) candidatos(as) mostrarem
espaços de resistência passaram a assumir novas fei-
qualidade conceitual, originalidade e ligação com
ções. Por fim, chegaríamos aos efeitos sobre a juven-
exemplos atuais, percebemos, com preocupação,
tude hoje em formação psi e à sua importância no
o quanto o ato de recorrer a conceitos instituciona-
enfrentamento do árido cenário político e social.
listas pode ser automático, desencarnado, redun-
Porém, diferente desse plano inicial, e entendendo
dando em instituídos, cristalizações e esvaziamen-
que a AI é sempre polifônica e singular (Rodrigues, 2005),
tos. Sem menosprezar impactos de outras ordens,
indagamo-nos o quanto tal circunstância poderia
1
Usaremos alternativamente, neste artigo, Análise Institucional,
institucionalismo e paradigma institucionalista, pois eventuais estar dizendo acerca do tipo de formação de certa
diferenças não são relevantes para a problematização proposta. geração (a da mais jovem das autoras deste artigo),

2
Souza, A. M. P., & Rodrigues, H. B. C. (2022). Roubando o Nome aos Bois.

que começa a ingressar na docência universitária aspectos singulares do institucionalismo – os grupos


ou nela está há poucos anos. Embora associada a (Barros, 2009), a formação (Rossi, 2021), as relações
outros fatores, teria a geração anterior favorecido, com o campo da saúde coletiva (L’Abbate, Mourão,
de alguma maneira, os efeitos mencionados? & Pezzato, 2013), com as clínicas do trabalho (Silva,
Evitando estancar na narcísica pergunta “em que Zamboni, & Barros, 2016) etc. Traduções e coletâneas
erramos?”, fazemos de tais efeitos um analisador. (Altoé, 2004; Altoé & Rodrigues, 2004) tampouco devem
Ele nos desloca para outras prioridades, tais como: ser omitidas como partes desse acervo renovado.
atualizar conexões com as problemáticas de nosso A tese de doutorado da mais jovem das auto-
tempo e do nosso território latino-americano e bra- ras deste artigo, logo transformada em livro (Souza,
sileiro; recuperar o entusiasmo e o prazer na sala de 2018), ao propor uma análise da instituição militância
aula e no processo formativo2 (hooks, 2017); rejuve- em grande medida ancorada em conceitos e disposi-
nescer as palavras, revendo e criando conceitos-fer- tivos da AI, situa-se em um momento-dobradiça: não
ramenta para que o referencial não vire teorização só é uma dessas novas produções sobre/com o para-
etérea e/ou pura reprodução. Afinal, é preciso que digma institucionalista, como faz parte de uma série
os conceitos sirvam, que funcionem (Foucault & de acontecimentos (discursivos e não-discursivos)
Deleuze, 1979). Tudo isso torna urgente que façamos que conduzem tal paradigma, antes “sem passado”,
e refaçamos a pergunta: com que dimensões e práti- para certo passado e certos presente e futuro. Como
cas o institucionalismo se conecta no presente, e qual como sugere Foucault (1980), “ficciona-se a história
a nossa tarefa, hoje, como formadoras (não só no partindo de uma realidade política que a torna verda-
ensino como na pesquisa, na extensão, na militância deira; ficciona-se uma política que ainda não existe
e nas intervenções em geral), em nossas relações com partindo de uma verdade histórica” (p. 75).
a geração ainda mais nova? Por sua vez, tais indaga- A série de acontecimentos a que acima nos refe-
ções nos levam necessariamente a pensar com o que rimos tem duas características principais: a primeira
a AI se conectou no passado. remete à inserção da AI em um conjunto de debates vol-
tados à contestação, à revolta, e à desobediência (Gros,
2018; Rodrigues, 2020). Tais produções estão em busca
Gerações de uma política para o presente que constitua também
Quando a mais velha das autoras deste artigo, uma ética; talvez, mais propriamente, percebam a ética
no começo do século XXI, fez uma tentativa, em como uma política. No plano internacional, depois de
parte frustrada, de forjar uma história da Análise algumas décadas de conflitos internos e de certo iso-
Institucional no Brasil, acabou por dizê-la “um para- lamento, novos trabalhos elaborados na Universidade
digma sem passado” (Rodrigues, 2002). Até aquele de Paris 8 rompem as fronteiras, com frequência para-
momento, esse intuito historicizante, mais do que lisantes, da tradição e ousam relacionar a AI socioana-
dificultado, se achava obstaculizado por um pano- lítica à genealogia foucaultiana (Schaepelynck, 2018),
rama discursivo que aprisionava a AI em configu- a micropolítica de Deleuze e Guattari à promoção do
rações prévias. Entre elas, a de maior capacidade de comum (Nicolas-Le Strat, 2015) etc.
absorção era a Psicanálise. A segunda característica, em cuja descrição pri-
Embora tal panorama vá ser caracterizado vilegiaremos o âmbito nacional, remete, como anteci-
adiante, vale dizer que em muito se modificou desde pamos, a situações ligadas à formação em universida-
então: livros brasileiros de história da psicologia (Jacó- des públicas. Elas vêm mostrando que provavelmente
Vilela, Ferreira, & Portugal, 2005) passaram a dedicar é ética e politicamente desejável, hoje, deixar de pri-
capítulos à AI, assim como pesquisas se voltaram para vilegiar o projeto de construção de uma história sin-
gular da AI no Brasil – “dando nome aos bois”, por
2
bell hooks (2017) problematiza a formação conteudista tradi- assim dizer. Talvez seja preferível, como faremos
cional, vendo-a como modelo que reforça os sistemas de do-
minação, disciplinarização e subalternização. Sua proposta vai
neste artigo, acatar, como positividade, a mistura da
na direção de uma pedagogia anticolonial, crítica e feminista, AI com outras lutas. Porque ela vem sendo, nos últi-
atenta às diferenças e singularidades do corpo discente, enga- mos anos, desejavelmente apropriada por movimen-
jada com o contexto e os desafios da sociedade – aposta revolu-
cionária em que o prazer e o entusiasmo são combustíveis para tos articulados a direitos humanos e, mais recente-
uma educação como prática de liberdade. mente, a gênero, sexualidade, raça, etnia, ecologia,

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Psicologia: Ciência e Profissão 2022 v. 42 (n.spe), e263964, 1-18.

decolonialidade/anticolonialidade etc. – ou melhor quatro focos: Psyché e a mão invisível; Dividindo para
dizendo, incorporada às “esferas da insurreição” reinar; A César o que é de César e Usted preguntará
(Rolnik, 2018). Mediante tal estratégia, “rouba-se o por qué cantamos.
nome aos bois” ao invés de conferi-lo, o que parece
propiciar, no entanto, um aumento de potência.
Psyché e a mão invisível
Como primeiro ensaio nessa direção, o presente
Em um artigo pertencente ao conjunto acima
escrito estará provavelmente sujeito a críticas. Se isso
mencionado, Russo (1999) assim se refere ao encon-
ocorrer, ele terá atingido seu objetivo: o de ampliar o
tro entre os intelectuais do campo psi e a literatura
escopo do que se deseja acoplar ao debate a fim de
socioantropológica:
compor certa história da AI no Brasil.

Dentre as questões que eram problematizadas


Um paradigma sem passado estavam a difusão da psicanálise e outras teorias
O subtítulo se inspira em um filme alemão, Uma ou práticas psi; a medicalização/psiquiatrização
cidade sem passado, dirigido por Michael Verhoeven do social; o atendimento psicológico às classes
(1989). Trata-se da história de uma jovem que desco- populares; a demanda por atendimento psi; de
bre que sua cidade abrigou um campo de concentra- um modo geral, a história das práticas psi. (p. 68).
ção durante a Segunda Guerra Mundial e, ao tentar
saber mais a respeito, se vê boicotada pelos habitan- Segundo a metáfora manejada pela autora, tais
tes que viveram o sinistro episódio. questões criaram uma “lua de mel” entre psis e cien-
No Brasil, ao menos até a passagem do século XX tistas sociais. Porém o casamento se desfez após
ao XXI, a AI era um paradigma sem passado. A des- breve convívio, porque Psyché já obtivera aquilo de
peito de já existirem, por exemplo, trabalhos sobre que precisava. As questões que pouco antes a tinham
as trajetórias das práticas grupais e das organizações fascinado ganham, nesse momento, funções estri-
de formação, dificilmente o institucionalismo era tas: a) afirmar que a International Psychoanalytical
neles abordado como pensamento-prática singu- Association (IPA) tem uma visão limitada a respeito
lar. Defrontada com tal problemática, a mais velha da formação psicanalítica – ao contrário de Psyché,
das autoras deste artigo abriu espaço, em sua tese de que, divorciada, recebera, como herança, signos de
doutorado (Rodrigues, 2002), para analisar algumas distinção; b) concluir que a saída para seus percalços
produções historiográficas. Afora raríssimos traba- anteriores – amara platonicamente a IPA antes de des-
lhos singularizantes (Augusto, 1996; Baremblitt, 1989; posar o cientista social – estaria na Psicanálise, ornada
Moraes, 1994), concluiu que a AI, no Brasil, aparecia por uma refundação lacaniana que, embora nouveau
mergulhada em escritos relativos à expansão da cul- riche se comparada à tradição ipeísta, se capitalizara
tura psicológica ou, mais nitidamente, à difusão da simbolicamente a ponto de relegitimar Psyché, agora
Psicanálise nas grandes cidades brasileiras. crítica radical de adaptacionismos e/ou psicologis-
Durante os anos 1980 e 1990, foi profícuo um tipo mos praticados em seu funesto passado. O pedido
de produção acadêmica ligado à antropologia social de divórcio às ciências sociais se conjuga, pois, com
e/ou à sociologia urbana, dedicado aos processos de um novo romance: refundado por Lacan, o campo
psicologização da realidade em nosso país (Duarte, psicanalítico dispensa Psyché do exercício de outras
2000). Destacavam-se trabalhos que, ao analisar orga- suspeitas – por exemplo, a de que, em suas bem-
nizações e/ou tendências do âmbito psi, recorriam a -intencionadas práticas de atenção à subjetividade,
conceitos sociológicos globalizantes – urbanização, esteja produzindo os (e sendo produzida pelos) alvos
modernização, individualização etc. –, aliados aos de sua terapêutica, seus cuidados, sua investigação.
provenientes da economia das trocas simbólicas de Mas que fiquem os cientistas sociais com sua relati-
Pierre Bourdieu – mercado de bens simbólicos, capital vização e os antipsiquiatras com sua crítica desprofis-
cultural, legitimação, distinção, entre outros. Sem des- sionalizante (e tão anacronicamente contracultural) –
merecer tais trabalhos, cumpre assinalar que redun- Psyché faz novo pacto nupcial e sonha em adquirir
daram, quase invariavelmente, em um indesejável eterna maestria pela e na Psicanálise.
apagamento de diferenças no que tange à nossa pro- A narrativa de Russo (1999) é sedutora, mas algo
blemática. Para justificar tal afirmação, apreciaremos decepcionante: buscávamos uma arena povoada de

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Souza, A. M. P., & Rodrigues, H. B. C. (2022). Roubando o Nome aos Bois.

rivalidades e paixões em torno do saber-poder; ao galopes também é responsável, em grande propor-


fim e ao cabo, encontramos uma feira de produção, ção, um conjunto de agentes chamado de segunda
distribuição e consumo de bens de salvação, mero geração de argentinos.
mercado capitalista.
Será que a memória invariavelmente ilude? Pois
Dividindo para reinar
certas Psychés cariocas forjaram um roteiro mnemô-
A dissertação de mestrado de Figueiredo (1984) é
nico diverso. Qual Eduardo Coutinho (1997), enga-
a primeira pesquisa dedicada ao processo de difusão
jaram-se menos em uma totalizante filmagem da
da Psicanálise, nas décadas de 1970 e 1980, no Rio de
verdade relativa àqueles tempos do que em uma frag-
Janeiro. Esse boom, que faculta falar em uma cultura
mentária verdade da filmagem. E assim os recordam:
psicológica (ou psicanalítica), é apresentado como
produto de dois fatores: a acelerada modernização
A partir daquele momento, encontramos novos
das classes médias urbanas e a pressão exercida pela
personagens . . . . No plano discursivo, os escritos
categoria dos psicólogos, que aspira a uma legitima-
de Foucault, Castel, Deleuze, Guattari, Lourau,
ção até então recusada pelos estabelecimentos ofi-
Lapassade, Goffman . . . bem como aqueles das
ciais de formação (leia-se IPA). Se ativarmos detalhes
vibrantes antropologia urbana e história crítica
relativos ao último fator, encontraremos, no trabalho
da psiquiatria brasileira nos transformaram . . . de
de Figueiredo (1984), dois aspectos de maior relevo:
aspirantes à maestria na “fabricação de interiores”,
a instauração das Comunidades Terapêuticas (CTs) e
em “mestres da suspeita” quanto a nossos próprios
a influência dos argentinos.
dizeres e fazeres, sempre suscetíveis de nos confi-
gurar enquanto “guardiães da ordem”, “empresários Ao lado das terapias grupais, breves ou focais; da
morais”, “alugadores de orelhas” ou . . . “psico-tiras”. estratégia clínica em orientação vocacional; das ações
(Rodrigues, 1999a, p. 41). sobre a infância, a adolescência, os casais, as famí-
lias; das intervenções preventivas e/ou diagnósticas
Nessa verdade da filmagem – a que tenta mostrar em organizações de diversos tipos, as Comunidades
“em que momento ela se dá e todo o aleatório que Terapêuticas3 emergem, na dissertação em pauta,
pode acontecer nela” (Coutinho, 1997, p. 167) – entre- como experiências inegavelmente ligadas à Psicanálise:
veem-se conjugações, em lugar de hierarquizações; “São os próprios psicanalistas que se colocam à frente
descentramentos e devires em que alguém se perde do do movimento e fornecem subsídios teóricos para seu
reto caminho, em vez de estar ortodoxamente casado funcionamento” (Figueiredo, 1984, p. 38). Além dessa
(e dependente) ou divorciado (e autossuficiente). liderança, outros elementos colaboram para que as
Experiência ingênua de acreditar que se está CTs se apresentem como parte de uma irrefreável difu-
fazendo o que se está fazendo e/ou recordando o efe- são psicanalítica, quais sejam: a criação da categoria
tivamente ocorrido, enquanto a mão invisível dos mer- auxiliar psiquiátrico, em geral recrutado entre estu-
cados de bens simbólicos promove tanto as ações como dantes (agora, estagiários) de Psicologia; a ruptura da
as evocações? Deveríamos concluir que as Psychés de polarização saúde-doença, sugerindo a necessidade de
ontem e de hoje a nada mais aspiravam (ou aspiram) um confronto com a própria patologia para desenvol-
do que a um bem-sucedido golpe do baú? ver práticas de cuidado com doentes mentais; a ênfase
No intuito de contraefetuar tais conclusões, na compreensão psicodinâmica das relações que os
avaliamos que, a partir da segunda metade dos pacientes estabelecem com o médico e com a institui-
anos 1970, abrem-se ao menos dois percursos: ção; a reinterpretação das estruturas do hospital com
o primeiro permanece no interior dos limites, por base em conceitos como fantasmática inconsciente
mais que re-hierarquizados, das continuidades psi- e identificações interiorizadas. Apoiada nesses indí-
canalíticas; já o segundo dá a partida aos galopes cios, comenta Figueiredo (1984): “. . . o movimento . . .
dos cavalos do diabo. Com a última expressão, faz-
-se uma referência figurada à visita de Lapassade a 3
As primeiras CTs cariocas se instalam em 1968, no Hospital
nosso país, em 1972, momento em que já se fazia Odilon Gallotti, do Centro Psiquiátrico Pedro II (Engenho de
Dentro), sob a supervisão de Oswaldo dos Santos e Wilson Sim-
o canter – apresentação pública dos concorrentes, plício, e em 1969, no Hospital Pinel (Botafogo), sob a direção de
antes do páreo – do institucionalismo. Por esses Eustachio Portella Nunes e Roberto Quilelli Corrêa.

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Psicologia: Ciência e Profissão 2022 v. 42 (n.spe), e263964, 1-18.

funcionou como via privilegiada de acesso dos psicólo- específicos – qual Bohoslavsky – são englobados pelo
gos ao campo da psicopatologia clínica . . ., o que só foi mesmo rótulo, a despeito da variedade das posturas
possibilitado pela intervenção da psicanálise, e de seus teóricas adotadas e da heterogeneidade das alianças
agentes, no campo do asilo” (p. 42). político-institucionais estabelecidas. Por fim, ressal-
Passemos agora às considerações relativas à te-se que o Ibrapsi (Instituto Brasileiro de Psicanálise,
influência dos argentinos. Ao longo da dissertação Grupos e Instituições), fundado em 1978 por um argen-
são subsumidos sob tal rubrica aspectos bastante tino exilado (Gregório Baremblitt) e dois brasileiros
díspares, a saber: presença dos psicanalistas do país (Chaim Katz e Luiz Fernando Mello Campos), é men-
vizinho em seminários e supervisões sobre infância cionado, ao lado da Appia e da PUC/RJ, como simples
e adolescência no começo dos anos 1970; partici- foco de difusão das “influências argentinas”. Portanto,
pação dos mesmos agentes, no mesmo período, em embora diferenças não sejam totalmente ignoradas,
grupos de formação paralelos às sociedades oficiais; iniciativas extremamente díspares são citadas como
repercussão de algumas características da formação tendo “a Psicanálise por suporte comum” (Figueiredo,
argentina sobre a carioca, como maior ênfase na ação 1984, p. 67). Mediante tal procedimento, é rejeitada,
social junto a comunidades e organizações do que em por antecipação, qualquer possibilidade de apreensão
profissionalização sob o modelo do consultório pri- de uma eventual singularidade do institucionalismo,
vado; dissidências políticas, por parte de psicanalis- como se evidencia no seguinte fragmento:
tas de corte socialista e/ou marxista, que culminaram
na ruptura com a Associação Psicanalítica Argentina Os argentinos trazem duas contribuições fun-
(APA) e a IPA, efetuada em 1971 pelos grupos damentais. A primeira é a ampliação e diversifi-
Plataforma e Documento; criação, no ano seguinte, cação das técnicas de intervenção com base na
do Centro de Docência e Investigação (CDI), propi- psicanálise, principalmente as técnicas grupais
ciando uma formação alternativa para trabalhadores . . .; as técnicas focais, terapias breves mais direti-
de saúde mental; presença de psicólogas argentinas vas; e a análise institucional, ainda incipiente no
na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Brasil até o final da década de 70 . . . . A segunda
(PUC/RJ), para realizar um diagnóstico institucional contribuição . . . é o próprio projeto de politização
do Instituto de Psicologia Aplicada em 1971; sucesso e a consequente autonomização da classe dos
da orientação vocacional sob estratégia clínica prati- psicólogos . . . . Mais que nunca a psicanálise vai
cada pelo psicólogo Rodolfo Bohoslavsky, convidado, operar num campo flexível e progressivamente
a partir de 1971, à PUC/RJ; criação da Associação de ampliável que vai desde o investimento nos indi-
Psiquiatria e Psicologia da Infância e da Adolescência víduos ditos normais até as instituições – análise
(Appia), que mostrava fortes vínculos com a Asappia institucional – e isto através de profissionais que
(Associação Argentina de Psiquiatria e Psicologia da poderiam ser definidos, no máximo, como psica-
Infância e Adolescência), no começo dos anos 1970. nalíticos. (Figueiredo, 1984, pp. 78-79).
Essa enumeração faculta perceber que a influ-
ência dos argentinos é situada por Figueiredo (1984) Por um lado, a AI é dita “incipiente no Brasil
notadamente no período inicial (1970-1976)4 do boom até o final da década de 70”; por outro, a prática dos
psicanalítico e que os analistas do país vizinho são tra- psicólogos é percebida como abarcando desde o
tados em bloco, entendidos como amostra da popu- trabalho com os normais até a análise institucional.
lação de agentes de expansão da cultura psi. A bem Aparentemente, há sentidos diferentes designados
da precisão, frise-se que a expressão “os argentinos” pela mesma expressão5, embora todos sejam arras-
emerge pela primeira vez, no texto em apreço, asso- tados pelo redemoinho de uma vocação difusionista
ciada à criação e ao sucesso da Appia. Paralelamente, (confusionista?) da Psicanálise. Quais são, afinal, os
outras organizações – como o CDI –, bem como agentes limites do pensável delimitados por formas determi-
nadas de historicização?
4
Para Figueiredo (1984), nesse período se destaca a ampliação do
campo profissional, que passa a se caracterizar por enorme ecle- 5
Na aproximação às instituições, é possível encontrar várias dis-
tismo; já no seguinte (1977-1983), acentua-se a desestabilização da ciplinas – Psicologia Institucional, Sociologia das Organizações,
hegemonia das sociedades psicanalíticas oficiais, pois surgem seis Análise Institucional estrito senso etc. Sobre o tema, consultar
novos grupos de formação, todos organizados por psicólogos. Coimbra (1980).

6
Souza, A. M. P., & Rodrigues, H. B. C. (2022). Roubando o Nome aos Bois.

A César o que é de César marxismo: o Partido Comunista Francês (PCF), obe-


O movimento da Psicoterapia Institucional cos- diente a Moscou, condena a Psicanálise como “ideologia
tuma ser considerado a contraparte francesa das reacionária” e passa a exaltar, como verdadeira psico-
CTs inglesas. Mas conquanto ambas possam ser logia materialista, um estranho pavlovismo. Com tudo
retratadas como intervenções sobre o meio hospi- isso, a segunda experiência francesa de Psicoterapia
talar, procurando instaurar um ambiente favorável Institucional – a Clínica de La Borde, criada em 1953
à recuperação dos internados, suas condições histó- por Jean Oury e Félix Guattari – já estará inteiramente
rico-políticas de implantação foram muito diversas. desvinculada do comunismo partidário. Pouco depois,
A respeito disso, sublinha Roudinesco (1988): “. . . a Psicoterapia Institucional, entendida como revolução
visto que ela [a Psicoterapia Institucional francesa] psiquiátrica, será palco de cisões ligadas tanto às rup-
se expande num país onde a ocupação alemã é vivida turas no seio da IPA – com a saída de Lacan e seu grupo
como um ‘grande enclausuramento’, não veicula, da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP) – quanto aos
pelo menos a princípio, os mesmos ideais adaptati- descaminhos do Partido Comunista da União Soviética
vos de sua homóloga” (p. 210). (PCUS) – com a invasão de Berlim Oriental (1953),
Na França ocupada pelos nazistas, sob o o relatório Krushev sobre os crimes do stalinismo (1956)
governo colaboracionista de Vichy e cuja psiquiatria e a ocupação soviética em Budapeste (1956).
ainda se encontrava, nos anos 1940, sob a hegemo- Referindo-se a esse processo, Robert Castel (1978)
nia da doutrina da hereditariedade-degenerescên- ressalta a existência de duas versões da Psicoterapia
cia, os degenerados maiores foram, em sua imensa Institucional em solo francês: enquanto nas primeiras
maioria, abandonados à própria sorte, morrendo experiências de Saint-Alban mesclavam-se materia-
de fome em hospitais concentracionários. Em um lismo – via pavlovismo dos comunistas –, Psicanálise
único asilo as coisas se passaram de outro modo. Ali, e até mesmo Fenomenologia e Psicologia da Gestalt –
paradoxalmente, as peripécias da(s) guerra(s) favo- antigas referências de Tosquelles –, a partir de 1953
receram encontros transformadores. Em 1940 chega essas misturas passam a ser consideradas absurdas
à França, fugido do franquismo triunfante na Guerra de um ponto de vista simultaneamente teórico e polí-
Civil Espanhola, François Tosquelles. A princípio tico. Encerra-se assim o que o sociólogo denomina
em companhia do católico Paul Balvet e, depois de “Psicoterapia Institucional primeira versão” – eclética,
1942, do novo diretor, o comunista Lucien Bonnafé, com dominância da filosofia marxista e forte presença
o psiquiatra catalão cria, no Hospital de Saint-Alban, de militantes comunistas – e se passa à “segunda ver-
a primeira experiência francesa de Psicoterapia são” – muito influenciada pela Psicanálise Lacaniana
Institucional. Durante o conflito mundial ali se mes- e inteiramente desvinculada do PCF. A respeito disso,
clam diversos tipos de resistentes – comunistas, conclui Castel (1978): “Não há razão alguma em mono-
socialistas, anarquistas, cristãos progressistas. Entre polizar para os analistas institucionais [“segunda ver-
eles, surrealistas como Paul Éluard e Georges Sadoul, são”] uma marca surgida com a ‘revolução psiquiátrica’
que incentivam a produção escrita dos pacientes, . . . que nada tinha a ver com a psicanálise” (p. 150).
organizam edições clandestinas, criam oficinas de Por mais que essa apresentação não tenha a
teatro etc. Todos formam um coletivo de ação que, pretensão de encontrar um modelo para nossas CTs,
rompendo as cadeias asilares, sai pelos campos à cumpre notar que Figueiredo (1984) enfatiza seme-
procura de comida e de alianças, o que tanto favo- lhanças: “. . . aqui, de modo análogo à França, o movi-
rece a sobrevivência como desempenha papel de mento das Comunidades Terapêuticas está indis-
destaque na resistência ao nazismo. soluvelmente ligado à Psicanálise” (p. 38). A autora
Finalizada a guerra, entretanto, assiste-se não a conhece o trabalho de Castel, presente na bibliografia
uma radicalização da legitimidade do discurso da lou- de sua dissertação, então qual o motivo da insistên-
cura, mas à tecnologização da Psicoterapia Institucional cia em afirmar um vínculo indissolúvel entre CTs e
via técnicas de grupo, bem como ao ingresso, na psi- Psicanálise, ignorando as advertências do sociólogo
quiatria, de tratamentos ligados ao choque insulínico, sem lhes fazer menção nem objeção?
à eletronarcose e, pouco depois, aos neurolépticos Não obstante Figueiredo (1984) repudie análi-
e antidepressivos. Rompe-se também, por efeito da ses internalistas (epistemológico-metodológicas) da
Guerra Fria, a aliança entre psiquiatria, psicanálise e Psicanálise, opta por circunscrever sua pesquisa ao

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Psicologia: Ciência e Profissão 2022 v. 42 (n.spe), e263964, 1-18.

interno ao campo profissional. Apesar de sermos parte epistemológica sobre o saber psiquiátrico e a psicaná-
de seus inúmeros leitores, julgamos indispensável expor lise; a segunda parte do escrito, contudo, se inclina a
nossas reticências quanto à delimitação apriorística, uma discussão do modelo proposto pelas Comunidades
em pesquisas históricas, entre um externo e um interno. Terapêuticas no Brasil, fazendo das experiências ocor-
Quando Castel enfatiza a necessidade de adicionar o ridas na Seção Olavo Rocha do Hospital Odilon Gallotti
complemento “primeira versão” ou “segunda versão” a seu campo e problema de pesquisa. Na passagem da
cada menção à Psicoterapia Institucional, não o vemos primeira à segunda parte, o texto ganha um sentido
introduzindo preciosismos. Avaliamos que o sociólogo “descritivo e de registro histórico” em que despontam
nos adverte do risco que corremos quando tomamos respeito e admiração para com os profissionais que
internalidades disciplinares como ponto de partida, des- implantaram as CTs, sem “a intenção de louvar a César
considerando as lutas por hegemonia constituintes de nem a de enterrá-lo” (Teixeira, 1993, p. 13).
tais internalidades; melhor dizendo, quando deixamos Da segunda parte da dissertação jorram miu-
de levar em conta a internalização do interno. dezas-impurezas que se mesclam ao caráter minori-
Vejamos os efeitos produzidos pelo ativo des- tário-molecular das memórias. Desmancham-se os
conhecimento dessa admoestação. Nas práticas em consensos redutores, pois, se algum consenso existia
saúde mental perscrutadas, Figueiredo (1984) encon- nas CTs, dava-se “quanto à denúncia da brutalidade
tra a expansão da Psicanálise, assim como as aspi- dos asilos, da ineficácia dos grandes hospitais, do
rações (psicanalíticas) da categoria dos psicólogos. volume absurdo de internações, da necessidade de
Por nossa parte, pensamos ser tal descoberta inevi- escapar ao modelo biológico estrito”, e não “quanto
tável em razão do ponto de partida adotado por ela: às formulações teóricas, nem quanto às práticas
serão encontradas no campo profissional (interno), assistenciais alternativas prioritárias” (Teixeira, 1993,
como explicação de um processo, aquelas perspecti- p. 146). Em lugar de doutrina, campo ou tendência –
vas e práticas que obtiveram hegemonia como resul- termos idealizados e unificantes –, fala-se de um
tado das lutas, alianças e confrontos constituintes do
próprio processo. A dominância obtida, que deveria . . . conglomerado [a reunir pessoas] com princípios
ser explicada, torna-se explicante devido a uma espe- derivados de diversas modalidades da psiquiatria
rada, por mais que não desejada, “empatia com os dita alternativa: práticas de ação comunitária,
vencedores” (Benjamin,1994, p. 225). epidemiologia, interações sociais, formulações
Quando estudante de psicologia na Universidade da antipsiquiatria, da psiquiatria democrática,
Federal do Rio de Janeiro, a mais velha das autoras compreensão fenomenológica do homem, avan-
deste artigo foi estagiária da CT do Hospital Pinel. ços da psicofarmacologia, terapia ocupacional e,
E é difícil acatar que ela tenha constituído um tran- last but not least, da compreensão psicanalítica do
quilo campo de difusão psicanalítica. Além de ser adoecer mental. (Teixeira, 1993, p. 146).
inseparável dos relâmpagos de maio de 1968, cumpre
também evocar, quanto a essa experiência, faíscas A diversidade das forças que se conjugam na
menos espetaculares, como as críticas permanen- enfermaria de um hospital do subúrbio carioca ganha,
tes à Psiquiatria Asilar, Manicomial, Organicista e em acréscimo, traços sociopolíticos, a saber: projetos
Farmacológica. Quais eram as bases para tais críticas? de penetração na comunidade extra-hospitalar, vin-
Humanistas, marxistas, anti-imperialistas, contracul- culados a uma concepção ampliada (política e socio-
turais, libertárias, antipsiquiátricas e, em uma curiosa antropológica) de Saúde Mental; apostas de que, por
mescla, também psicanalíticas, sem que essa terato- meio da promoção de uma micro-sociedade com carac-
logia político-epistemológica redundasse em domi- terísticas autonomistas e igualitárias, poderiam ser
nâncias definidas. Porém a memória, embora intem- visibilizadas as contradições com a realidade ditatorial
pestivamente resista, sabe-se frágil como justificação. extra-hospitalar; lutas contra a psiquiatria organicista,
Recorre, portanto, a histórias alternativas, à procura armadas de modelos psicodinâmicos, relacionais e/ou
daquela polifonia que a liberte da eventual acusação sociopsicanalíticos; estratégias diversas para preservar
de ser mero monólogo intimista. a existência oficial dos projetos de CTs, já que eram ati-
Cristal de várias faces, a dissertação de Teixeira vidades sobre as quais as instâncias governamentais
(1993) se apresenta, de início, como reflexão exerciam permanente suspeição; criação de serviços

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Souza, A. M. P., & Rodrigues, H. B. C. (2022). Roubando o Nome aos Bois.

alternativos – hospitais-dia, hospitais-noite, coopera- sobre a universidade e os trabalhadores associados ao


tivas de trabalho –, contrapondo-se à tutela psiquiá- sindicalismo combativo. Mas se em termos do calen-
trica; redução da pressão colonizadora dos saberes psi dário instituído o período até 1968 transcorre sem que
sobre a cultura da clientela, abrindo brechas, no pró- sejam visíveis as barricadas do desejo (Matos, 1981),
prio hospital, para a preservação de hábitos e símbolos os meses de abril e maio de 1969 se tornam palco de
dos grupos subalternizados; geração de uma espécie atos de protesto. Partindo de Córdoba, multiplicam-se
de escola alternativa de formação profissional, em que as manifestações – apelidadas Cordobazo –, atingindo
os estudantes, na função de auxiliares psiquiátricos, Tucumán, Corrientes, Rosário e Buenos Aires. É decre-
recebiam aulas e material, mas, fundamentalmente, tada uma greve geral para o dia 30 de maio e até mesmo
encontravam um lugar de livre expressão; produção de a APA repudia a violência exercida sobre estudantes e
grande número de comunicações científicas para apre- trabalhadores, publicando uma nota nos jornais e sus-
sentação em Congressos de Psiquiatria, procurando pendendo por um dia as atividades de seus membros
garantir, por essa forma de oficialização, a sobrevivên- (Carpintero & Vainer, 1999).
cia dos autores, em tempos de desaparecimento, tor- Ainda em 1969, realiza-se o XXVI Congresso
tura e morte; valorização da produção científica grupal, Internacional da IPA, em Roma, ocasião em que gru-
aliada a uma ética comunitarista que implicava que os pos descontentes com a política da associação orga-
textos fossem discutidos e aprovados pelo coletivo, nizam um contracongresso para discutir temas como:
incluindo os pacientes. Essa plêiade de ensaios dis- a formação psicanalítica; o significado, função e
ruptivos, ocorrida no auge de um milagre econômico estrutura das sociedades psicanalíticas; o papel social
forjado à base de anos de chumbo, quiçá dê conta do dos psicanalistas; e as relações entre psicanálise e ins-
apelido atribuído à seção Olavo Rocha por alguns pro- tituições. Os debates redundam em uma contundente
fissionais de outros pavilhões, indignados com o que rejeição à postura da psicanálise oficializada e na
ali se implementava: “As pirações de uma comunidade criação de uma comissão internacional encarregada
terapêutica” (Teixeira, 1993, p. 235). de conectar os grupos de diferentes países. Elabora-se
uma pauta de reivindicações, ou plataforma, assim
batizando o movimento: Plataforma Internacional.
Usted preguntará por qué cantamos6
De volta a Buenos Aires, Armando Bauleo e Hernán
Na concretização de um trabalho crítico que favo-
Kesselman – candidatos que haviam participado do
reça um deslocamento quanto ao segundo obstáculo
contracongresso – fundam o Plataforma Argentino.
com que nos defrontamos – a denominação “os argen-
Dois anos depois, no XXVII Congresso Internacional
tinos” –, recorreremos a uma ampliação do olhar em
da IPA, em Viena, Plataforma Internacional volta a se reu-
direção ao panorama internacional e latino-ameri-
nir, firmando posições que vão muito além de contesta-
cano, e a um manejo nuançado do conceito de geração.
ções organizacionais: ressalta que sua atitude não passa
Ao final dos anos 1960, assiste-se à eclosão da tur-
por meras revoltas internas, mas “pelo compromisso dos
bulência mundial sintetizada na expressão maio de
psicanalistas com os povos empenhados em suas lutas
68: assembleias, passeatas e barricadas selam alianças
de libertação” (Kesselman, 1973, p. 248). Com efeito, em
entre estudantes, intelectuais, artistas e trabalhadores
4 de novembro de 1971, os 18 membros7 do Plataforma
para contestar a autoridade em toda a parte. A cen-
Argentino renunciam formalmente à APA/IPA por meio
tralização do poder, a tecnocracia, o consumismo, o
de uma declaração pública, em que denunciam a ide-
cientificismo, entre outros são recusados em todas
ologia burguesa da instituição nos níveis teórico, téc-
as suas manifestações, do Estado à vida cotidiana.
nico, investigativo, didático e econômico. Pouco depois,
Na Argentina, contudo, a segunda metade da década
os analistas ligados ao grupo Documento, também
começa sob o signo de tudo o que será contestado.
questionadores do presumido apoliticismo da APA,
Em 1966, o presidente eleito Arturo Illia é deposto,
abandonam a psicanálise oficializada.
alvo de uma conspiração militar-sindical. Instala-se a
autodenominada Revolução Argentina, sob a presidên-
cia do general Onganía, que exerce violenta repressão 7
Entre eles, Emilio Rodrigué (didata) e Gregório Baremblitt (can-
didato), que buscarão exílio no Brasil. Rodrigué faleceu em 21 de
fevereiro de 2008, em Salvador, Bahia, onde vivia desde 1974. Já Ba-
remblitt faleceu em 4 de outubro de 2021, em Belo Horizonte, onde
6
Verso de Porque cantamos, de Mario Benedetti (1989). passara a residir nos anos 1980, após período no Rio de Janeiro.

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Psicologia: Ciência e Profissão 2022 v. 42 (n.spe), e263964, 1-18.

Se o Brasil teve seu 1968 pontualmente, embora o Outros estudos se esforçam por delimitar campos
país estivesse sob uma ditadura empresarial-militar, as de forças apelando ao conceito de geração (Sirinelli,
lutas contra ela na forma de discursos, conclamações 1996). Cecília Coimbra (1995), por exemplo, distingue
e passeatas logo foram interrompidas. Ao final do ano, duas gerações de argentinos no Brasil:
o Ato Institucional nº 5 e o decreto nº 477 começaram a
esmagar, com braços militares e paramilitares, as bata- A primeira . . . defende a “verdadeira” psicanálise
lhas até então visíveis travadas por parlamentares, inte- e a formação analítica nos moldes da IPA . . . .
lectuais, religiosos, trabalhadores e estudantes. Restou, A segunda . . . chega a partir de 1976, em sua maioria
como recusa, a luta armada – urbana ou rural –, sob a exilada, . . . demonstrando uma expressiva vincula-
inspiração dominante do foquismo guevarista, comba- ção político-social em suas práticas, além de intro-
tida com uma ferocidade de que até hoje são ignorados duzir novas estratégias e táticas de ação. (p. 145).
detalhes sórdidos e protagonismos particulares.
No momento, portanto, em que alguns psicana-
Consciente do novo campo de uniformização pas-
listas argentinos passam a frequentar o solo carioca,
sível de ser introduzido pelo conceito utilizado, apressa-
as inovações propostas, que em seu país são objeto
-se em dizer que, mesmo na “segunda geração”, existem
de um debate acirrado, aqui encontram um milagre
brasileiro a aliar, paradoxalmente, contestação e silen-
. . . os que vêm por questões de mercado, após
ciamento: a categoria dos psicólogos luta contra sua
a implantação da ditadura militar na Argentina,
exclusão da formação psicanalítica; a cultura psi, que
que muito vai “incomodar” os “psi” sem impli-
reivindica a expressão livre, se encontra em franca
cações políticas e . . . os que, mesmo por ques-
expansão; mas os anos são de desaparecimento e tor-
tões de exílio, encontram no Brasil um excelente
tura, e não de plataformas que, embora também com-
“mercado psi”. (Coimbra, 1995, p. 45).
batidas nas terras do Prata, ainda ousam por lá, pelo
menos até o golpe militar de 1976, tornar públicos
certos sonhos de transformação. Nesse sentido, será A distribuição em gerações, porém, não parece
apropriado, em trabalhos sob perspectiva histórica, despropositada quando Coimbra (1995) se refere às
falar, de forma generalizada, no papel dos “psicana- reações dos psicanalistas das sociedades oficiais,
listas argentinos”? inclusive os mais progressistas, entrevistados em sua
A fim de divisar alternativas, tomemos as inda- pesquisa: “…insistem em dizer que a influência dessa
gações formuladas por Baremblitt (1987), um dos ‘segunda geração’ . . . é quase nenhuma”, sendo unâni-
“argentinos” atuantes no Brasil: mes em afirmar que “a mais importante contribuição
vem dos ‘oficiais’ do início dos anos 70” (pp. 150-151).
Creio que cabe perguntarmo-nos, em primeiro Também a mais velha das autoras deste artigo
lugar, se alguma vez existiu ou existe algo como recorre ao polêmico conceito: afirma que na metade
“um grupo de colegas que chegaram da Argen- inicial da década de 1970 uma “primeira geração” de
tina” . . . . Em segundo lugar, nos caberia interro- argentinos – desenvolvimentista, preventivista, gru-
gar se existe ou existiu algo como “Escola Argen- palista em compreensão (bioniana, pichoniano-ble-
tina” ou “os argentinos”. (p. 53). geriana8) e em extensão (mães, gestantes, crianças,
adolescentes, pacientes orgânicos, instituições) – vem
A tais perguntas, ele mesmo contesta: percebe os ao Brasil e logo retorna a seu próprio país, sempre
compatriotas, no Brasil, “comportando-se de forma respondendo às demandas que ajuda a produzir.
feliz ou desafortunadamente heterogênea” e apre- Já na metade final da década, uma “segunda geração”
senta uma extensa relação de referências bibliográfi- também grupalista, mas freudo-marxista, althus-
cas, cujos fundamentos se estendem do kleinismo à seriana, antipsiquiátrica, institucionalista, deleu-
Análise Institucional francesa, passando por vertentes ze-guattariana etc. – plataformista, em suma – vem
do freudo-marxismo e/ou do lacanismo-althusseria- porque é obrigada a deixar a Argentina em razão do
nismo, desestabilizando, assim, qualquer intuito de
afirmar tendências unitárias entre os psicanalistas de 8
O termo conjuga os Grupos Operativos de Enrique Pichon-
seu país (Baremblitt, 1987). -Rivière e a Psicologia Institucional de José Bleger.

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Souza, A. M. P., & Rodrigues, H. B. C. (2022). Roubando o Nome aos Bois.

golpe militar e tão cedo não pode retornar a seu país na cena política do país (Sader, 1988), lutas como as
(Rodrigues, 1999b, p. 129). dos movimentos feminista, negro, LGBT (à época,
Enquanto a Argentina vivia um momento de lutas GLBT), ambientalista, sanitarista, antimanicomial e,
nacionais-populares e/ou revolucionárias (1969- claro, o movimento pela anistia dos presos e exilados
1973), o Brasil estava mergulhado no “milagroso” políticos ganharam força. Engendra-se, assim, uma
período dos “anos de chumbo”. Quando ela ingressa versão brasileira e latino-americana para os direi-
na “Guerra Suja” (1974/1976), por aqui se inicia a dis- tos humanos (Coimbra, Lobo, & Nascimento, 2008),
tensão “lenta, gradual” e principalmente “segura” do muito mais popular, encarnada e contestatária do que
Governo Geisel (1974-1979), pois ainda se vive sob a aquela de uma solene declaração a ser alcançada ou
Doutrina de Segurança Nacional. Costuma-se consi- cumprida, aproximando-nos do que Mario Benedetti
derar este último Brasil um estranho país para exílio (2015, como citado em Souza, 2018) viria a chamar de
de plataformistas. Soa bem mais incômodo, todavia, “esquerdos humanos”.
o não-estranhamento das tranquilas visitas de psica- Os psis de viés institucionalista (e já marcados
nalistas argentinos àquele outro Brasil – o dos “anos pelas leituras de Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix
de chumbo” – para ministrar cursos e supervisões. Guattari, Baruch Espinosa, entre outros) não demo-
Há, no caráter constatativo-descritivo da narrativa rariam a ir mais longe e profanar as origens burgue-
dessas visitas, um pressuposto a ser radicalmente sas, europeias e coloniais dos direitos humanos, bem
questionado, pois possui repercussões evidentes como as concepções de sujeito de caráter essencia-
sobre o modo de escrever a história: o da possibili- lista, individualista e transcendental ali subjacentes
dade de analisar o campo psi omitindo a forma como (Coimbra et al., 2008). Logo se daria a aposta em uma
o contexto sociopolítico delimita suas condições de concepção processual, coletiva, ética, anticapitalista e
existência e funcionamento. libertária para tal pauta. Essa concepção e as experi-
ências militantes e epistemológicas daquela geração
marcariam profundamente a formação de parte da
Esquerdos humanos
geração seguinte, bem como a própria categoria pro-
A esta altura, está nítida a afinidade entre o
fissional dos psicólogos, seja interpelando-a em seu
paradigma institucionalista e um grupo, na América
potencial para “guardiã da ordem” – expressão emble-
Latina, crítico aos instituídos de várias ordens. Como
mática cunhada por Cecília Coimbra (1995) –, seja na
vimos, a que pode ser considerada a primeira gera-
direção política tomada pelo Sistema Conselhos nas
ção de analistas institucionais no Brasil – à qual per-
décadas subsequentes.
tence a mais velha das autoras deste artigo –, em sua
Anuncia-se assim uma relação da psicologia com
maior parte feminina e de formação psi, tomou con-
os direitos humanos, via AI, que coloca a primeira em
tato com a AI no final dos anos 1970 e início dos 1980,
análise, problematizando seu mandato social e con-
principalmente por meio da mencionada “segunda
vocando-a a um compromisso ético-político de pro-
geração” de argentinos, assim como pelo encontro
moção e sustentação da multiplicidade e da diferença.
com institucionalistas franceses e expoentes do movi-
mento da Psiquiatria Democrática italiana (Coimbra,
1995; Rodrigues, 2005). Isso se deu tanto em espaços Revoluções moleculares
formativos como institutos – sendo o mais importante ao som de um violino
deles o Ibrapsi – e universidades, ainda que nessas de Mais rigorosamente, para quem começou a estu-
forma incipiente em comparação com o que virá a ser dar e/ou atuar no campo psicológico na primeira
a difusão acadêmica nos anos 1990 e 2000. década dos anos 2000, as práticas desencaminhadas
Parte desse grupo se engajou intensamente na pela AI (Rodrigues, 2005) foram aquelas das e nas
oposição à ditadura empresarial-militar brasileira, políticas: não só as institucionais, clínicas, insurgen-
tendo sido perseguida, presa, torturada, e desapare- tes etc., mas igualmente as políticas públicas, o que
cida e/ou assassinada. Mas também sobreviveu, resis- exigiu uma especial habilidade para caminhar, qual
tiu e inventou outras estratégias de militância pela equilibrista, no “fio da navalha” entre o controle e o
vida e pela liberdade. A partir da segunda metade da cuidado (Neves, 2004). Vejamos como algumas modu-
década de 1970, com a “crise das grandes narrativas” lações e infiltrações se efetuam para essa safra psi e a
(Lyotard, 1979) e a entrada de “novos personagens” que movimentos o institucionalismo se alia.

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Psicologia: Ciência e Profissão 2022 v. 42 (n.spe), e263964, 1-18.

Antes de tudo, é preciso dizer que já não fazia sociais e políticas afirmativas; investia-se na edu-
muito sentido, naquele momento, manter a psica- cação, na assistência social, na saúde. A categoria
nálise como alvo central de problematizações, como psi passa a estar em maior número tanto na “ponta”,
ocorrera nos anos 1970 e 1980, já que, no Brasil, ou seja, nas equipes dos serviços, quanto na gestão
“a análise institucional tem sua origem em uma mesti- pública, que absorve, inclusive, vários movimentos
çagem” (Manero, 2022, p. 15) que, como vimos, inclui sociais. Psicólogos institucionalistas participam ativa-
uma psicanálise marginal e crítica. No âmbito episte- mente na formulação de políticas e projetos, a exem-
mológico já estavam nítidas, ademais, as hibridiza- plo do Humaniza SUS, da Reforma Psiquiátrica e das
ções com a filosofia da diferença, a psicologia social e Clínicas do Testemunho.
os grupalismos (Rodrigues & Barros, 2003), o que con- A questão que agora vigora é: como tocar o vio-
fere à AI brasileira um interessante aspecto de apro- lino “canhotamente”, isto é, inventivamente? Ou, para
priação-invenção transdisciplinar (Passos & Barros, quem não está dentro da máquina do Estado, mas
2000). Nessa AI, a relação de lateralidade e amizade – decerto se encontra envolto nas tramas microfísicas
e não de filiação e mestria – com os autores lidos é do poder (Foucault, 1979), como operar, no cotidiano
uma marca constante, impulsionando trabalhos auto- de trabalho, mediante práticas a contrapelo da lógica
rais singulares. De outra parte, o campo macropolítico normatizadora e adoecedora de corpos e subjetivida-
sofria modulações a partir das quais ficava cada vez des? O desafio principal parece ser o de aprender a se
mais difícil extrair purismos. movimentar em meio às impurezas; melhor dizendo,
Muitos dos que nasceram no início dos anos 1980 o de habitar as linhas macropolíticas de maneira vigi-
não sentiram (ao menos não diretamente) o peso das lante quanto aos controles e microfascismos. Cumpre
botas dos anos de chumbo que fora experimentado manter vivas as forças instituintes em meio às instituí-
e desafiado por quem lhes apresentaria, em grande das, mesmo na militância e nos novos ativismos (Asth,
parte nas universidades públicas, o institucionalismo. 2021; Souza, 2018), pois nem toda força contestatária
Ainda assim, viveram – após a “lenta e gradual” aber- fora absorvida pelo Estado.
tura política repleta de acordos que culminaram na Em tais circunstâncias, as ferramentas da AI são
Constituição Cidadã – pouco mais de uma década acionadas recorrentemente, ora transversalizadas nos
entre o liberalismo e a social-democracia de centro- fazeres diários, como antídoto em face de possíveis
-direita. Na virada do milênio, a América Latina expe- cooptações, ora atreladas estrategicamente aos pró-
rimenta uma espécie de guinada “anti-Condor”, com a prios princípios das políticas – afirmando-as, nesse
eleição de Néstor Kirchner na Argentina, Hugo Chávez caso, como mais públicas e coletivas do que como
na Venezuela, Evo Morales na Bolívia e José Mujica no estatais (Barros & Passos, 2005; Monteiro et al, 2006).
Uruguai. Em 2002, o Brasil elege um ex-metalúrgico Faz-se necessário teimar em ser antimanicomial em
nordestino, Luiz Inácio Lula da Silva, e o Partido dos meio à reforma psiquiátrica; em seguir apostando nos
Trabalhadores (PT) estreia na posição máxima do processos de autogestão; em afirmar a política nos dis-
poder executivo federal. positivos clínicos; em escapar das capturas impostas
“Finalmente um governo de esquerda!”, alguns aos direitos humanos, em nome dos quais, por sinal,
bradaram. Mas logo seria lembrada a frase de continuam a vigorar práticas de exclusão e de morte;
Eduardo Galeano (2001): “o poder é como um vio- em deslocar-se à esquerda da esquerda para manter o
lino, toma-se com a esquerda e toca-se com a direita” que talvez possamos chamar de devir revolucionário.
(p. 17). Apesar de suas origens democrático-popula- A propósito, no Sistema Conselhos de Psicologia,
res, o PT fez alianças com o “centrão” para se eleger os direitos humanos tomam um lugar de centralidade.
e passou a governar no lugar, preexistente, do Estado Após a criação da Comissão Federal de Psicologia (CFP)
Democrático de Direito – Estado Moderno, burguês, e das Comissões Regionais de Psicologia (em 1997 e
em um mundo de capitalismo globalizado cuja racio- 1998, respectivamente), com a meta de mobilizar per-
nalidade era (necro)biopolítica e penal (Coimbra manentemente a categoria em sua defesa, os direitos
et al., 2008; Monteiro, Coimbra, & Mendonça, 2006). humanos são incorporados, em 2005, como princí-
A despeito (ou ao lado) das muitas ressalvas que pio fundamental no Código de Ética (CFP, 2005). Será
possam ser feitas, o fato é que, “como nunca antes na também nas comissões federal e regionais que movi-
história desse país”, implementavam-se programas mentos vinculados a temas como HIV/aids, gênero e

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Souza, A. M. P., & Rodrigues, H. B. C. (2022). Roubando o Nome aos Bois.

diversidade sexual, assim como relações étnico-raciais as cotas sociais e raciais9, o Programa Universidade
conquistarão espaço (Schucman & Martins, 2017). para Todos (Prouni) e o Programa de Apoio a Planos
A partir da concepção do direito “como con- de Reestruturação e Expansão das Universidades
quista, datada historicamente, e do humano como Federais (Reuni)10 – políticas estas, vale lembrar,
permanente criação de si e de mundos” (Arantes, fruto da pressão dos movimentos sociais.
2007, p. 7), os direitos humanos são tomados pelos Conforme descrito em trabalho anterior (Souza
institucionalistas – das gerações de ambas as autoras & Szuchman, 2021), as experiências e problemati-
deste artigo – em publicações e intervenções, dentro e zações da nova geração universitária brasileira vêm
fora do Sistema Conselhos. Vale enfatizar, nesse sen- comparecendo nas disciplinas de graduação, nas
tido, sua presença nas salas de aula, como linha ética atividades de extensão, de estágio, nos grupos de
que problematiza, de modo incansável, as práticas pesquisa e na pós-graduação, convocando docentes
psi em sua tradição individualizante, adaptacionista, a destacarem mais os marcadores sociais da dife-
tutelar, racista, capacitista, especista, essencializante, rença nos conteúdos trabalhados, bem como a que
e pretensamente científica nas diversas áreas de atu- se façam presentes, nas bibliografias, autores e epis-
ação. São discutidos em profusão temas como os pro- temologias inauditas ou aniquiladas pela tradição
cessos de medicalização e de judicialização da vida; ocidental do pensamento (Carneiro, 2005). Tal cha-
os especialismos; as práticas de exclusão; a questão mado urgente aparece em numerosas novas escritu-
verdade, memória e justiça nas novas democracias ras – antirracistas, feministas, interseccionais, entre
latino-americanas. Atenta-se, enfim, aos atravessa- outras –, que interrogam autores que antes julgáva-
mentos neoliberais e biopolíticos nas práticas psico- mos intocáveis, inclusive aqueles que ocupam uma
lógicas. No entanto, os marcadores sociais da dife- posição contra-hegemônica na psicologia majoritá-
rença, como raça, etnia, gênero e sexualidade ainda ria. As novas escrituras mencionadas se agenciam,
aparecem pouco no foco das análises – o que, em em acréscimo, à expansão de estudos pós-coloniais,
breve, não mais poderá deixar de ser notado. subalternos e decoloniais (Ballestrin, 2013).
Como marcas das contribuições da AI para uma Essas forças revoltosas se manifestam numa atu-
geração, pode-se dizer que foi importante, certa- alidade brasileira tensa, de conjuntura ultraconserva-
mente, adquirir as destrezas e sagacidades de um dora, de grotescos retrocessos nas políticas públicas,
equilibrista para garantir que o controle não vencesse sob um triste bolsonarismo que ascendeu à presidên-
o cuidado. Mas nada nos havia preparado para o que cia em 2018 e, mais gravemente, alastrou-se no tecido
ainda estava por vir. social naquele mesmo momento, a partir das condi-
ções criadas por um golpe jurídico-institucional sobre
Rejuvenescer o governo de Dilma Rousseff (PT), ocorrido em 2016.
Retomando as interpelações que animam este Trata-se de tempos de aprofundamento de desigual-
texto, talvez as mais candentes (e desejáveis) que dades sociais, raciais e de tantas outras ordens, graças
estejamos vivendo nos últimos anos, presentes a uma tecnologia de exercício de poder brutalista – de
nas salas de aula e nos corredores da universidade tendência mundial, vale dizer –, como vem definindo
pública (em nosso caso, a Universidade do Estado do Achille Mbembe (2021), que conferiu feições genoci-
Rio de Janeiro), sejam aquelas ligadas a relações étni- das à gestão da pandemia de Covid-19 no país. Poder
co-raciais, identidades de gênero, orientação sexual,
territorialidade e colonialidade. Historicamente
9
A Lei nº 12.711/2012 garante a reserva de 50% das vagas de Ins-
tituições de Ensino Superior (IES) federais para estudantes que
impossibilitados por longuíssimo tempo de acessar cursaram o ensino médio em escolas públicas, oriundos do Exa-
esses espaços universitários no nosso país, caracte- me Nacional do Ensino Médio (Enem) ou Educação para Jovens
e Adultos (EJA), com renda familiar igual ou menor a 1,5 salário
rizado pelo colonialismo escravocrata, pelo racismo
mínimo; há reservas específicas para pretos, pardos, indígenas
patriarcal cis-heteronormativo (Geledés, 2013) e e pessoas com deficiência. No estado do Rio de Janeiro, a lei de
pelo capitalismo neoliberal, corpos periféricos e cotas nº 3.708 foi aprovada em 2001 e prorrogada por outros dez
anos em 2018, pela lei nº 8.121.
favelados, negros, indígenas e LGBTs passaram a
10
O Prouni, instituído pela Lei nº 11.096 de 13 de janeiro de
ocupá-los, como sabemos, notadamente a partir 2005 – e o Reuni, visando a democratização do acesso à Educação
da implementação de políticas afirmativas como Superior, foram criados pelo decreto nº 6.096 de 2007.

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Psicologia: Ciência e Profissão 2022 v. 42 (n.spe), e263964, 1-18.

de racionalidade necropolítica, reacionário e repres- direção mais…institucionalista! Alguns trabalhos


sivo sem qualquer constrangimento, que odeia a alte- recentes relatam esse percurso, como os de Faustino
ridade, o minoritário, os movimentos indisciplinados, (2015, 2018). Por sua vez, Rachel Passos (2018) chama
libertários e alegres. Poder, talvez sobretudo, que é pro- atenção para a influência de Fanon sobre Basaglia e a
longamento de forças fascistas que constituem uma Reforma Psiquiátrica italiana: é Fanon quem aponta
reação às já descritas grandes transformações macro e para a violência colonial e racista que atravessa psi-
micropolíticas ocorridas na primeira década dos anos quiatria e sociedade, e que concretiza, com o próprio
2000, no Brasil e na América Latina. Nesse sentido, é corpo, a radicalidade daquilo que pensava e defendia,
imprescindível lembrar quão perturbadora foi a execu- ao se demitir publicamente do manicômio de Argel,
ção de Marielle Franco, vereadora preta, mulher, LGBT, em que trabalhava como médico-chefe, para se juntar
defensora de direitos humanos e socialista, em 14 de à Frente de Libertação Nacional na revolução argelina.
março de 2018, demonstrando o modo como alguns Talvez também devêssemos ressaltar que a pri-
(ou muitos?) lidariam com a insuportabilidade da dife- meira geração de institucionalistas brasileiros tem
rença, expressa não apenas nas resistências como sim- gênero: a presença de mulheres é expressiva e ine-
plesmente em determinadas existências. gável, bem como notável a originalidade de suas
Como pensar os impactos das nossas gerações, formulações. Para percebê-lo, basta correr os olhos
os impactos do movimento institucionalista e de pelos capítulos contidos nos livros da coleção “Análise
suas alianças com as lutas por direitos humanos, Institucional” (Kamkhagi & Saidon, 1987; Rodrigues,
sobre a juventude de hoje, em tal cenário? Não seria Leitão, & Barros, 1992).
já insuficiente preocuparmo-nos apenas com as pro- Já afirmamos várias vezes que a AI brasileira é algo
duções de sofrimento psíquico do/no capitalismo bem diferente de uma replicação ou continuidade da
neoliberal financeirizado, armado com psicologias AI francesa. Em publicação atualíssima, o instituciona-
pretensamente neutras, positivistas e docilizantes, lista mexicano Roberto Manero (2022), apesar de fazer
com Édipos familistas? Como rejuvenescer nos- ponderações sobre os riscos de uma “regionalização do
sas questões, referenciais e ferramentas (é preciso pensamento” que poderiam veicular certas perspecti-
que funcionem!), de forma a fazer justiça ao que a vas decoloniais, vai além dessa advertência e defende
própria AI nos ensinou, reconhecendo limites, mas que o que existe efetivamente é um institucionalismo
fazendo novas conexões e parcerias? latino-americano singular. Ele nos convida, com isso,
É preciso, primeiro, admitir que somos também à tarefa de nos reconhecermos, investindo em trocas
impactadas por essa geração e sua resistência visceral de experiências e saberes, bem como na ampliação de
(Mbembe, 2019) – que se faz presente de forma cor- redes de formação e de debate (não apenas de comuni-
poral, física, visível nos espaços, capaz de fazer frente cação) entre os países da região.
ao brutal –, para então perscrutar os movimentos e Além dessa lente decolonial, negra e feminista
produções disparados por tal encontro. Apontaremos sobre a história da AI, avaliamos que evocar os direi-
brevemente, a seguir, efeitos que passam a operar tos humanos, mesmo que de modo desessenciali-
sobre nossas maneiras de pensar, de pesquisar, de zado, possivelmente não baste. Outrora linha proble-
preparar cursos, de intervir, enfim, de lutar. Alguns, matizadora da psicologia, uma pauta a que se aliou
é claro, ainda em estado incipiente. a AI, parece importante, hoje, submeter os direitos
O primeiro deles quiçá seja a necessidade de humanos a uma nova dimensão de leitura, raciali-
recontar criticamente o percurso de um movimento/ zada e generificada, para além daquela atenta quase
referencial que é, ele próprio, marginal no cenário que exclusivamente às produções do capitalismo. Por
da psicologia – lembremos a expressão “paradigma outro lado, utilizar a categoria dos direitos humanos
sem passado” aplicada à AI no Brasil –, mas que, para demarcar um tipo de atuação ainda faz algum
ainda assim, também produziu certos apagamentos. sentido e é estratégico, sim, pela sua potencialidade
Cumpre olhar para a AI com olhos mais atentos a per- de alcance no debate público diante do presente
sonagens usualmente pouco referidos, como Frantz ultraconservador e necrobiopolítico; pela sua capaci-
Fanon em seu importante trabalho com François dade de articular diferentes frentes de luta; e pela sua
Tosquelles, em Saint-Alban, e sua posterior ruptura importância histórica nas lutas populares no Brasil e
com a Psicoterapia Institucional em favor de uma no Sistema Conselhos de Psicologia.

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Souza, A. M. P., & Rodrigues, H. B. C. (2022). Roubando o Nome aos Bois.

Para recomeçar as análises e práticas no campo psi; a escrita de diários


Alguém pode perguntar, a esta altura: mas então como instrumento que situa e dá rosto ao(à) pesqui-
de que ainda serve a AI, o que ela nos ensina, o que sador(a); a autogestão e a pesquisa-intervenção como
manter dela? Diríamos que um muito, ainda que cum- fundamentais para a des-hierarquização e descoloni-
pra não se iludir com fantasias de completude. A AI zação dos saberes; a relação de lateralidade e agen-
nos oferece princípios e nos equipa para atuar num ciamento – e não de mestria – para pensar ao lado de
presente atroz, que exige enorme sagacidade e cora- autores(as) e conceitos; a abertura para o não saber,
gem para empreender intervenções que não se con- antídoto aos automatismos e às palavras de ordem no
formem com poderes e desigualdades estabelecidos. mundo hiperconectado.
É recomendável saber usá-la não como um A Análise Institucional brasileira, nessa perspec-
“pacote fechado”, com roteiro pronto, e sim, mais tiva, de certa forma se singulariza pela sua “não sin-
do que nunca, como caixa de ferramentas, aberta às gularização”: enquanto continuarmos a tecer redes
hibridizações do hoje, quais sejam: a análise de impli- entre ela e outros discursos e práticas insubmissos,
cações como operador de visibilidade para os marca- roubando-se com isso o nome aos bois, repotenciali-
dores sociais da diferença e suas consequências para zações recíprocas continuarão a acontecer.

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Alice de Marchi Pereira de Souza


Professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro – RJ. Brasil.
E-mail: [email protected]
https://orcid.org/0000-0002-7606-9966

Heliana de Barros Conde Rodrigues


Professora associada e procientista da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro – RJ. Brasil.
E-mail: [email protected]
https://orcid.org/0000-0002-4687-3646

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Psicologia: Ciência e Profissão 2022 v. 42 (n.spe), e263964, 1-18.

Endereço para envio de correspondência:


Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rua São Francisco Xavier, 524, bloco F, sala 10.016, Maracanã. CEP:
20550-011. Rio de Janeiro – RJ. Brasil.

Recebido 10/05/2022
Aceito 10/05/2022

Received 05/10/2022
Approved 05/10/2022

Recibido 10/05/2022
Aceptado 10/05/2022

Como citar: Souza, A. M. P., & Rodrigues, H. B. C. (2022). Roubando o nome aos bois: Gerações e inflexões
na história da análise institucional no Brasil. Psicologia: Ciência e Profissão, 42 (n.spe), 1-18. https://
doi.org/10.1590/1982-3703003263964

How to cite: Souza, A. M. P., & Rodrigues, H. B. C. (2022). To call a spade by any other name: Generations and
inflections in the history of institutional analysis in Brazil. Psicologia: Ciência e Profissão, 42 (n.spe), 1-18. https://
doi.org/10.1590/1982-3703003263964

Cómo citar: Souza, A. M. P., & Rodrigues, H. B. C. (2022). Llamar las cosas por otro nombre: Generaciones e
inflexiones en la historia del análisis institucional en Brasil. Psicologia: Ciência e Profissão, 42 (n.spe), 1-18. https://
doi.org/10.1590/1982-3703003263964

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