Caminha Entre As Palavras
Caminha Entre As Palavras
Caminha Entre As Palavras
Florianópolis
2017
Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor,
através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.
Mendes, Luciano
Caminha entre as palavras como num campo minado
: [comentário acerca da poesia de Abraham
Sutskever, com tradução] / Luciano Mendes ;
orientadora, Maria Aparecida Barbosa, 2017.
140 p.
Inclui referências.
די פּאָעזיע פֿאן אַבֿרהם סוצקעווער איז בטבֿע בבֿחינת ווי אַ עדות-לידער ,וועגן דעם
חורבן און קיום .דאָס פּ ַאפּיר צילט צו אַנהילן אַן אַנדער אינטערפּרעטאַציע .מיט דרי ִי ִ
לידער :׳גרינער אַקוואַריאם׳ ,׳צו פּוילן׳ און ׳אין מידבאָר סיני׳ .די גירסא איז שזע די
ווערקע זענען נישטאָ בלויז עדות-לידער ,אָבער אַ אופֿן פֿון תּקומה פֿאַר יידיש קאלטור,
ווען עס איז געווען פֿאַראיבעריקטע .איך באַניצ זיוך מיט די קאָנצעפּטן פֿון רעפֿלעקסיווע
בענקשאַפֿט ,כּפֿי סוועטלאַנאַ בוים ,און דער מיסטיציזם פֿון גערשאָמ שלום .די צוויי
זענען שליסען פֿאַר דער הבֿנה אויף ווי סוצקעווער האָט צעפּאָטשט זיך מיט חפֿצשאַפֿט
.פֿאן סיִי ִ חורבן און די יידישלאַנד
PRELIMINARMENTE
nome me parece adequado. Utilizar um nome que não seja o que me parece
mais acertado apenas por motivos de convenção ou estilo me parece fazer
uma crítica apolítica e não engajada, portanto, inadequada do meu ponto de
vista.
2 Pogrom era um ataque das multidões gentias aos judeus, de forma mais ou
menos espontânea. São uma das mais antigas e violentas manifestações de
antissemitismo. Pintores judeus radicados nas Américas, entre os quais
Lasar Segall e José Gurvich, pintaram cenas de pogroms.
14
infância.
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efetivo.
Isso, porém, não quer dizer que a ruptura com o passado foi
total. Muito pelo contrário, é agora o ponto mais maduro dessa poética,
em que se torna rizoma. A poesia de Sutskever é agora, mais do que
nunca, uma escritura desterritorializada, localizada entre as coisas:
1. AQUÁRIO VERDE
[...]
- Certo. Eu dou a minha palavra. Só sem frases
longas. Pois o sol se torna ao ramo azul e num
instante cairá no abismo...
- Eu quero ver os mortos!
- Que desejo... Nu, que seja. Minha palavra me é
preciosa... Veja!
[...] Eu olho pra dentro: pessoas nadam lá como
peixes. Inúmeros rostos fosforescentes. Jovens.
Velhos. E jovensvelhos de uma só vez. Todos os
que eu vi a vida inteira e que a morte ungiu com
uma existência verde; eles todos nadam em um
aquário verde, numa suave e sedosa música aérea.
Aqui vivem os mortos!
(SUTSKEVER, 1963, p. 228).
Trombetas soam.
Tochas como pássaros flamejantes.
Linhas as acompanham. Quadros de música.
Defronte a uma dessas palavras, que avançava
cavalgando usando uma coroa na qual reluziam
minhas lágrimas, devia ser a soberana, eu caí de
joelhos.
2. PARA A POLÔNIA
nacional, mesmo que essa arte pudesse servir como uma afirmação de
uma cultura nacional. Numa dessas baladas, escreve:
não mais a partir da realidade como tal, mas a partir das palavras.
É a partir dessa relação deslocada, paradoxal, que funda-se o que
chamei de dortkayt (lá-ismo), a relação íntima com esse lugar diaspórico
e imaginário que se encontra distante não apenas no espaço, mas
também no tempo. Apesar de tudo, Sutskever jamais dá um verdadeiro
adeus à Polônia, ele funda uma outra Polônia imaginária, nostálgica, que
carregou consigo para Israel.
Se o doikayt valorizava as vidas dos judeus na diáspora, o
dortkayt não lhe faz oposição. Valida e valoriza as vidas judaicas da
diáspora, afirmando sua existência e seu lugar nas vidas judaicas mesmo
que a diáspora pertença a um mundo já em ruínas, feito de memórias.
Abre-se, também, a possibilidade para que um novo objeto ocupe
seu lugar. Isso se dará pela gradual adoção das paisagens de Israel na
poesia de Abraham Sutskever. Passará a existir uma dupla nostalgia, que
aponta para o passado e para o futuro. O ápice disso são os poemas
celebrando o deserto como local do renascimento, em especial o ciclo
“No deserto do Sinai”, que leio no capítulo a seguir.
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3. NO DESERTO DO SINAI
EPÍLOGO
Há, ainda, outra resposta que Sutskever nos oferece. Ele responde
a enunciação de Adorno sobre o lugar da poesia. É certo que o filósofo
não ousaria proclamar a impossibilidade absoluta da poesia – creio que
ele era mais sábio que isso. Mas seu enunciado clássico nos diz que a
poesia, que a arte em geral, não podia ficar no mesmo lugar que tinha
antes. A poesia não poderia permanecer sendo a musa intocável de
antes, não podia pertencer a um mundo mais elevado. Uma determinada
espécie de poesia encontrara seu fim e, faz-se necessário buscar
novamente as fontes da poesia.
REFERÊNCIAS
______. Yiddish and Polish Poetry in the Ghettos and Camps. Modern
Languages Studies. Selinsgrove, p. 72-87, dez. 1989. Disponível em:
<http://www.jstor.org/stable/3195268>. Acesso em: 04 jul. 2014.
BERGER, Joseph. Yiddish poet celebrates life with his writings. The
New York Times. Nova Iorque, p. 1-14, 17 março 1985. Disponível
em: <http://www.nytimes.com/1985/03/17/nyregion/yiddish-poet-
celebrates-life-with-his-language.html>. Acesso em: 04 ago. 2016.
Biography).
COHEN, Arthur. God, the implausible kinsman. The New York Times.
Nova Iorque, p. 1-2. 17 junho 1984. Disponível em:
<http://goo.gl/9cBdve>. Acesso em: 27 set. 2014.
2017.
______. Ben Gurion Tells British That Hebrew Must Replace Yiddish
As Jewish Language. Jewish Telegraphic Agency, Tel Aviv, 10 jun.
1969. Disponível em: <http://goo.gl/nMC1Ar>. Acesso em: 04 jul.
2016.
MENDES, Luciano Ramos. Poética, ética e estética em ode tsu der toyb,
de Abraham Sutskever. Revista Vértices, São Paulo, v. 1, n. 18, p.43-
49, 2015. Disponível em: <https://goo.gl/RCng3j>. Acesso em: 20 jun.
2017.
SHREIBER, Maera. The End of Exile: Jewish Identity and Its Diasporic
Poetics. Critical Inquiry. Chicago, 1993. v. 19, n. 4, p. 693-725.
Disponível em <http://www.jstor.org/stable/1343903>. Acesso em 24 de
novembro de 2014.
O aquário verde
3
Ninguém me disse para ser cauteloso, que eu deveria tomar
cuidado com as palavras que estão bêbedas com as flores de papoula
d'outro mundo. Assim, tornei-me escravo de suas vontades. E suas
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ensanguentam os dedos;
o primeiro verde sob a neve que derrete numa dança ao redor de
uma florzinha azul;
o verde de uma meia-lua, vista com olhos verdes de sob uma
onda;
e o verde solene da grama aparada ao redor de um túmulo.
Verde flui em verde. Corpo em corpo. E aqui a terra se
transforma num aquário verde.
Mais perto, mais perto do enxame verde.
Eu olho pra dentro: pessoas nadam lá como peixes. Inúmeros
rostos fosforescentes. Jovens. Velhos. E jovensvelhos de uma só vez.
Todos os que eu vi a vida inteira e que a morte ungiu com uma
existência verde; eles todos nadam em um aquário verde, numa suave e
sedosa música aérea.
Aqui vivem os mortos!
Debaixo deles, o rio, a floresta, a cidade – um enorme mapa
plástico, e acima paira o sol, com a forma de um homem ígneo.
Eu reconheço conhecidos, amigos, vizinhos e tiro meu chapéu de
palha para eles:
– Bom dia!
Eles respondem com um sorriso verde, como um poço responde
uma pedra com aros quebrados.
Meus olhos remam com remos de prata, correm, nadam por entre
as faces. Eles buscam, procuram por um rosto.
Encontrei, encontrei! Aqui está o sonho de meu sonho –
– Sou eu, minha querida, eu, eu. As rugas são só um ninho da
minha saudade.
Meus lábios, rubros de sangue, gravitam em direção aos dela.
Mas, ai, eles ficam presos no vidro do aquário.
E os lábios dela nadam até os meus. Eu sinto o sopro de ponche
ardente. O aquário é como uma fria lâmina ritual entre nós.
– Eu quero ler um poema, sobre você... Escuta!
– Meu amor, eu conheço esse poema de cor, fui eu mesma quem
te deu as palavras.
– Eu quero sentir teu corpo mais uma vez!
– Não se pode aproximar, o vidro, o vidro...
– Não, a barreira logo vai desaparecer, eu vou quebrar o vidro
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Iídiche
Ode à pomba
1.
Coisa rara, na infância, uma vez aparece
sob o céu um anjo, em cores próprias resplandece.
Logo desaparece, eterna a cantilena.
Na chaminé seu rastro – uma única pena.
Num lugarejo
1.
O pôr do Sol numa estrada da cor do gelo.
Doces colorações oníricas em tu'alma.
Uma choça cintila no vale tão belo
brilha no crepúsculo com hibernal calma.
Lenha-maravilha que pende das janelas,
trenós mágicos ressoam incansavelmente.
No ático turturinam as pombas singelas,
cantam em minha face. Gelo transparente
atravessado pelo brilho cristalino
o Irtich semirreal, serpenteante rio invernal.
Debaixo dum domo de silente fascínio
uma criança conhece o mundo primordial.
2.
No claro-escuro do vilarejo enevoado,
lá donde foi minha infância, na Sibéria,
das pupilas-de-sombra flores hão floreado,
infinitas flores de mercúria matéria.
Pelas frestas de ângulos gastos e pálidos
a lua sopra em nós seu hálito radiante.
Meu pai, branco como a lua, semblante cálido
em suas mãos – um níveo silêncio congelante.
Ele corta o pão preto com iluminada
faca piedosa. Seu rosto torna azulino.
Eu, agora com ideia recém-cortada
dou ao pão de meu pai um manto salino.
3.
A faca. Papai. Uma tocha fumarenta.
Infância. Criança. A sombra pega o violino
da parede. Sobre mia cabeça rebenta
o som da neve, fino, cada vez mais fino.
Silêncio. O pai está tocando. E no vento
ele inscreve sua música. Como o prateado
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Para a Polônia
1.
2.
3.
4.
5.
O caminho do escorpião
No deserto do Sinai
1.
2.
3.
4.
5.
6.
Despertaste no Sinai, Senhor da Vingança,
quanto ao teu pico elevaste
teu povo morto, a montanha de ossos -
Uma montanha de lamentos de pombos inocentes!
E sangue de criança clandestinamente derramado
aqueceu com vozes animadas
as veias em granito e pedra
e revelaste tua segunda marca :
esmagados como brinquedos sob a sola –
esmagados no Sinai a morte e o medo.
E nos lábios brilham teus projéteis
enquanto fica sozinho com teus filhos.
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133
7.
Lhe demos um nome: Serbal, Jebel Musa...
Eu preencho a montanha. De todas, a mais bela.
Tu permaneces alinhado nos campos de cobre –
uma gota de sangue que revela : és outro, outro.
Então, eu já ouvira a mesma nota,
Ó, cegamente eu me feriria por ti!
Uma gota de sangue que revela: és outor, outro,
Como as agulhas das bússolas apontam o norte.
Ficava longe do Sol. Ele não descia.
E num altar de pedra, aos teus pés,
um filho da diáspora, um soltado, um místico,
que envia desde ti, o último cumprimento pra casa.
134
135
8.
O monte! O monte! O silêncio floresce com especiarias
de todas as gerações. Diamantina pureza.
O monte! O monte! O Sol lhe dá um mar de luz.
Seu poder derreterá em beleza.
E sobre ele duas escadas radiantes –
e passos, que só sentíamos nos degraus.
Um barulho... só as cornetas de cobre.
Um barulho... e as sarças ardentes voltam os olhos.
O gelo prateado rasteja em seus recessos,
assim os espíritos em campos secretos
nos tocaram com a recomendação do senhor.
136
137
9.
Tire os sapatos e entre em formação,
tire os sapatos, que a areia te faça puro.
Aqui é o momento da revelação da coragem.
O silêncio é um abismo. Um abismo da saudade.
E acima, nas escadas radiantes,
uma oração clama da mesma profundeza
que ela poderia no coração, ao som das cornetas,
lapidar-se num diamante sem diamante:
que possam tu e a tua paz chegarem de uma vez.
Do monta Sinai, soprar pra longe o ódio,
firmar uma nova aliança com teus filhos,
tornar verdes as areias vermelhas.
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10.
E, de repente, as estrelas no monte,
como nós da diáspora, tribo errante.
Com medo da luz, vemos no horizonte:
homens e constelações, união flamejante.
E no Sinai, em meio ao rútilo horror,
um jovem com a bandeira. A toma
uma mão, que num misterioso clamor,
consagra o eterno, abençoa ao herói.
E aquele que viu a noite no Sinai
lembrará do Sinai e também seu nome.
E aquele que viu o esplendor no Sinai
poderá narrar mil anos. Amém.
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