Caminha Entre As Palavras

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 141

Luciano Ramos Mendes

CAMINHA ENTRE AS PALAVRAS COMO NUM CAMPO


MINADO:
[comentário acerca da poesia de Abraham Sutskever, com
tradução]

Dissertação submetida ao Programa


de pós-graduação em Literatura da
Universidade Federal de Santa
Catarina para a obtenção do Grau de
Mestre em Literatura.
Orientadora: Profa. Dra. Maria
Aparecida Barbosa

Florianópolis
2017
Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor,
através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.

Mendes, Luciano
Caminha entre as palavras como num campo minado
: [comentário acerca da poesia de Abraham
Sutskever, com tradução] / Luciano Mendes ;
orientadora, Maria Aparecida Barbosa, 2017.
140 p.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de


Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão,
Programa de Pós-Graduação em Literatura,
Florianópolis, 2017.

Inclui referências.

1. Literatura. 2. Poesia iídiche. 3. Estudos


judaicos. I. Barbosa, Maria Aparecida. II.
Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de
Pós-Graduação em Literatura. III. Título.
Scanned by CamScanner
A todos aqueles que tiveram sua
língua
silenciada, sua existência apagada.
AGRADECIMENTOS

Fazer agradecimentos é sempre arriscar-se. Escolher palavras,


citar pessoas. Sempre demasiado fácil deixar alguém – ou alguma
palavra – de fora e, com isso, incorrer em erro. É inevitável, também,
incorrer no kitsch. Aviso, portanto, que serão apenas alguns parciais
agradecimentos – mas todos aqueles que ajudaram a construir meu
caminho, antes e durante a feitura dessa dissertação, seriam dignos de
figurarem aqui. As eventuais incorreções ou omissões são fruto da
inglória inexatidão da memória, em especial ao fazer essa espécie de
catálogo.
Gostaria de iniciar esses agradecimentos com uma menção à
minha família. Meus pais, Luciana e Antônio, sempre foram grandes
incentivadores dos meus estudos, de minhas leituras. Não foram poucos
os sacrifícios que fizeram, a professora e o ourives, para que eu visse a
atividade dela com o brilho das joias deste. Eu não faria isso se não
tivessem obtido sucesso.
Há, também, meu irmão, Lucas, amigo descoberto tardiamente:
do companheiro de brincadeiras da infância ao adolescente distante,
acabou redescoberto e tornado peça mais importante em minha vida do
que talvez ele mesmo imagine.
Preciso agradecer meus professores, todos, e, de modo especial,
minha orientadora durante o atribulado processo que deu origem a essa
dissertação: Maria Aparecida Barbosa. Ela colaborou com
conhecimentos, correções e cobranças para este trabalho. É preciso,
ainda, lembrar dos meus colegas discentes.
Hanna, ex-companheira e eterna amiga, sem a qual eu nunca
teria ido até minha querida Varsóvia para estudar iídiche. Sem a qual eu
jamais teria tido a coragem de tentar a seleção do mestrado.
Piotr Kilanowski, que começou como um professor na UFPR e
tornou-se um grande e valioso amigo e incentivador.
Aos amigos que, ao longo da vida, se tornaram irmãos: Marcia
Franco, Samuel Rodrigues Teixeira, Semy Monastier, Tiago Guilherme
Pinheiro.
Aos outros amigos, mais recentes, mas não menos importantes:
Akio, Ana Carolina, Ana Elisa (Anilisi), Ananda, Daniel Falkemback,
Débora (Dex), Eduardo (Dudão), Enaiê Azambuja, Érica Ignácio (Sula),
Fabiano Calixto, Guilherme Bernardes, Haluana, Hugo Simões, Lucas
Fernandes (Nandes), Luciane Alves, Maria Elisa (Mariel), Maria
Thereza, Priscila Merizzio, Raquel Pontes, Rosângela (Rozão), Sérgio
Maciel (Ernesto).
Aos colegas que, ao redor do mundo, lutam pela sobrevivência
do iídiche. Em especial, meus professores em Varsóvia: Agata Kondrat,
Karolina Szymaniak e Kobi Weitzner.
Para Getúlio Zagreu, por ser meu primeiro amigo na cidade de
Fortaleza e pela interlocução e afirmação na hora em que tive mais
dúvidas a respeito de mim e desse texto.
Aos amigos não humanos: Flora (in memoriam), Tutti (in
memoriam), Joca (in memoriam), Mucha, Batatinha, Banguela,
Manteiguinha, Preta, Cabeluda, Tereza, Frederico e Loli.
Aos camaradas de esperança utópica: Bea, Bia, Bruno, Carla,
Carol, Chico (e, para ele, um agradecimento especial, por me ajudar a
caminhar no labirinto do pensamento de Adorno), Dante, Dias, Dinny,
Felipe, Kal, Karyn, Leandro, Mundico, Paulo, Tarsila, Thainan, Tomé e
outros tantos.
E, por fim, para as duas pessoas que habitam minha vida e a
fazem plena de sentido, um sentido intraduzível em palavras: Natália e
Catarina.
There was a reason for that, I think, as there is
now for allowing my uncle’s khurbn to speak
through me. The poems that I first began to hear
at Treblinka are the clearest message I have ever
gotten about why I write poetry. They are an
answer also to the proposition — raised by
Adorno & others — that poetry cannot or should
not be written after Auschwitz. Our search since
then has been for the origins of poetry, not only as
a willful desire to wipe the slate clean but as a
recognition of those other voices & the scraps of
poems they left behind them in the mud.

Havia uma razão para isso, eu acho, assim como


agora há uma para deixar o khurbn de meu tio
falar através de mim. Os poemas que comecei a
ouvir pela primeira vez em Treblinka são a
mensagem mais clara que eu já recebi sobre o
motivo de eu escrever poesia. Eles também são
uma resposta à ideia – levantada por Adorno &
outros – de que a poesia não pode ou não deve
ser escrita depois de Auschwitz. Nossa busca
desde então foi pelas origens da poesia, não
apenas como um desejo obstinado de limpar a
lousa, mas como um reconhecimento dessas
outras vozes & migalhas de poemas que eles
deixaram atrás de si na lama.

(ROTHENBERG, Triptych, p. 153-154)


. ‫עֵ ז‬6 ‫ מֵ עַ ם‬,‫ מִ מִּ צְ ָריִם ;בֵּ ית יַעֲ ק ֹב‬,‫בְּ צֵ את יִשְׂ ָראֵ ל‬
.‫ מַ מְ שְׁ לוֹתָ י‬,‫הָ יְתָ ה יְהוּדָ ה לְ קָדְ שׁוֹ; יִשְׂ ָראֵ ל‬

(Quando Israel saiu do Egito, e a casa de Jacó de


um povo de língua estranha,
Judá foi seu santuário, e Israel, seu domínio.)

Salmo 114: 1,2


RESUMO

A poesia de Abraham Sutskever é frequentemente apontada como uma


obra de teor testemunhal, cantando os horrores e a sobrevivência ao
khurbn (“destruição” em iídiche, nome dado ao holocausto nesse
idioma). O presente trabalho busca, para além de uma introdução da
obra de Sutskever ao universo letrado em língua portuguesa do Brasil,
utilizar três de seus poemas (griner akvarium, tsu poyln, e in midbor
sinay – respectivamente “Aquário verde”, “Para a Polônia” e “No
deserto do Sinai”), para apontar outra leitura de sua obra escrita após a
Segunda Guerra Mundial. É uma leitura em que, através de uma espécie
de nostalgia reflexiva, conforme definida por Svetlana Boym, e de uma
postura “mística” ante a história e a poesia, dentro dos termos definidos
por Gerschom Sholem, o mundo do pós-guerra é reavaliado, e uma nova
relação com o tempo e o espaço judaicos no pré e pós-guerra surge
numa poética da relação. Essa poética relacional e rizomática dá
continuidade à yidishland (literalmente “País Iídiche”), o império
cultural sem fronteiras em que a língua iídiche era falada. Essa
continuidade é um ato de resistência à destruição e ao apagamento e é
uma forma de enfrentamento da reificação não apenas do khurbn, mas
também dos modos de vida judaicos na diáspora.

Palavras-chave: Abraham Sutskever. Poesia em língua iídiche. Poética


da relação. Nostalgia. Reificação. Resistência.
ABSTRACT

Abraham Sutskever's poetry is usually seen as a work of testimony,


singing about the horrors and the survival thought the khurbn (literally
'destruction' in Yiddish, name given to the holocaust in the language).
This paper aims to use three of Sutskever's post-war poems (griner
akvarium, tsu poyln, e in midbor sinay – respectively 'Green Aquarium',
'To Poland' and 'In the desert of Sinay') in order to unveil another
reading of his work. A reading in which though the lenses of reflective
nostalgia, as defined by Svetlana Boym, all of his work is a continuum
and a struggle in order to keep the world that was apparently destroyed
alive. For this he will incur in a 'mystical' posture, similar to the one
read in Gershon Scholem. Sutskever's fight is one to keep both
yidishland and the khurbn from being reified, using them to build a
poetic of relation – more or less like what Edouard Glissant sees in the
work of Caribbean writers.

Keywords: Abraham Sutskever. Yiddish poetry. Poetics of relation.


Nostalgia. Reification. Resistance.
‫אבסטראַקט‬

‫די פּאָעזיע פֿאן אַבֿרהם סוצקעווער איז בטבֿע בבֿחינת ווי אַ עדות‪-‬לידער‪ ,‬וועגן דעם‬
‫חורבן און קיום‪ .‬דאָס פּ ַאפּיר צילט צו אַנהילן אַן אַנדער אינטערפּרעטאַציע‪ .‬מיט דרי ִי ִ‬
‫לידער‪ :‬׳גרינער אַקוואַריאם׳‪ ,‬׳צו פּוילן׳ און ׳אין מידבאָר סיני׳‪ .‬די גירסא איז שזע די‬
‫ווערקע זענען נישטאָ בלויז עדות‪-‬לידער‪ ,‬אָבער אַ אופֿן פֿון תּקומה פֿאַר יידיש קאלטור‪,‬‬
‫ווען עס איז געווען פֿאַראיבעריקטע‪ .‬איך באַניצ זיוך מיט די קאָנצעפּטן פֿון רעפֿלעקסיווע‬
‫בענקשאַפֿט‪ ,‬כּפֿי סוועטלאַנאַ בוים‪ ,‬און דער מיסטיציזם פֿון גערשאָמ שלום‪ .‬די צוויי‬
‫זענען שליסען פֿאַר דער הבֿנה אויף ווי סוצקעווער האָט צעפּאָטשט זיך מיט חפֿצשאַפֿט‬
‫‪.‬פֿאן סיִי ִ חורבן און די יידישלאַנד‬

‫שליסוואָרטע‪ :‬אַבֿרהם סוצקעווער‪ ,‬נאָסטאַלגיאַ‪ ,‬יידיש פּאָעזיע‬


SUMÁRIO

PRELIMINARMENTE ................................................................................... 12!


1. AQUÁRIO VERDE ..................................................................................... 29
2. PARA A POLÔNIA ..................................................................................... 39
3. NO DESERTO DO SINAI .......................................................................... 56
EPÍLOGO ......................................................................................................... 66
REFERÊNCIAS ............................................................................................... 69
APÊNDICE 1 - Algumas palavras sobre o ato de traduzir Sutskever ........ 77
APÊNDICE 2 - Poemas traduzidos ................................................................ 79
Aquário verde ................................................................................................... 79
Iídiche ................................................................................................................ 88
Ode à pomba ..................................................................................................... 91
Num lugarejo .................................................................................................... 92
Quem vai restar, o que vai restar? Vento vai restar. .................................... 96
Explicar? Como se pode explicar? ................................................................. 98
Para a Polônia ................................................................................................ 100
O caminho do escorpião ................................................................................ 119
No deserto do Sinai ........................................................................................ 121
12

PRELIMINARMENTE

– Caminha entre as palavras como num campo


minado: um passo em falso, um movimento em
falso e todas as palavras, que você passou a vida
toda costurando em suas veias rebentarão contigo
junto -
Assim me sussurrou minha própria sombra,
quando ambos, cegados por moinhos-refletores,
avançávamos durante noite por um sangrento
campo minado e cada passo meu posicionava-se
na morte ou na vida, fazia uma cicatriz no
coração, como um prego num violino.
(SUTSKEVER, 1963, p. 227).

O título desta dissertação é um trecho do poema “Aquário


verde” (griner akvarium). No poema, o narrador é instado a caminhar
por entre as palavras do mesmo modo que o poeta Abraham Sutskever,
ao fugir do gueto de Vilna, avançou num campo minado real. As
palavras tanto são sua chance de sobrevivência quanto algo com que
acautelar-se. Exigem escolha a cada passo, a cada instante, relacionada
ao posicionamento entre elas – e essa escolha exige sutileza. Cada
escolha é uma ferida, cada palavra utilizada é uma miríade de outras que
são abandonadas, renúncia que acaba por deixar marcas. Tal é o ofício
do poeta.
A partir disso, levantam-se muitas questões. Se a escolha das
palavras é cuidadosa, ela não pode ser aleatória. Muito pelo contrário:
desde seu ponto mais elementar, ela obedece a uma série de imperativos.
A começar pela intensidade com que Sutskever aferrou-se a um idioma
“moribundo” – no caso, o iídiche, que, depois da Segunda Guerra
Mundial e do khurbn1, perdeu grande parte de seus falantes e foi

1 Palavra iídiche cujo significado literal é 'destruição', o nome dado ao que,


em português, se convencionou chamar de 'holocausto'. Escolho usar essa
palavra de forma consistente em detrimento do termo em português ou,
ainda, do termo hebraico shoah. Refiro-me justamente à destruição dos
judeus do leste europeu, majoritariamente falantes de iídiche, de seus
corpos, memórias e língua, de seus espíritos. Concordando com a citação de
Jerome Rothenberg que uso como epígrafe à dissertação, nenhum outro
13

abandonado pela grande maioria dos sobreviventes, pois, como explica


Benjamin Harshav:

[…] em Israel corria um ódio extremamente


emocional contra o iídiche – a “língua batata” dos
pobres, encarnando os traços mais fracos da
subserviente e parasitária “mentalidade da
Diáspora” - reforçado pelos sentimentos de culpa
de uma sociedade criada por moços que haviam
abandonado seus pais e seu mundo na Europa
Oriental a fim de proceder à reconstrução de suas
vidas mesmas, da imagem do judeu e da própria
sociedade humana […]. (HARSHAV, 1994, p.
93).

Ou seja, o recém-fundado Estado não tinha, ou pelo menos não


desejava ter espaço para a vida judaica “de antes”. Esse passado
europeu, diaspórico, era visto como um passado de fraqueza, de
submissão, no qual os judeus postavam-se sempre como inferiores aos
outros povos, sendo, através de sua passividade, os próprios
responsáveis pelas tragédias que lhes acometiam – como os pogroms2 e
o khurbn.
Portanto, procedeu-se essa reconstrução de vidas judaicas como
israelenses. Isso configura-se como um nomadismo “em flecha”: não é
uma errância verdadeira, mas, sim, algo derivado de um desejo de
conquista, de posse da terra e de formação de uma nação ao redor de
uma ideia de poder – ou seja, um Estado (GLISSANT, 2006). E é das
tensões entre essa espécie de pensamento sionista e as escolhas de
Sutskever que surgem os questionamentos que ambiciono levantar.
Não à toa o Estado de Israel, ao nascer, elege para si um único

nome me parece adequado. Utilizar um nome que não seja o que me parece
mais acertado apenas por motivos de convenção ou estilo me parece fazer
uma crítica apolítica e não engajada, portanto, inadequada do meu ponto de
vista.
2 Pogrom era um ataque das multidões gentias aos judeus, de forma mais ou
menos espontânea. São uma das mais antigas e violentas manifestações de
antissemitismo. Pintores judeus radicados nas Américas, entre os quais
Lasar Segall e José Gurvich, pintaram cenas de pogroms.
14

idioma, o hebraico. Ora, se, por um lado, faz-se necessária a eleição de


um idioma nacional que possa ser utilizado como lingua franca pelos
indivíduos que, embora judeus, tinham origens e idiomas distintos, por
outro, isso ocorre de modo um tanto quanto intransigente, buscando
criar uma cultura plenamente hebraica ensimesmada, em detrimento de
séculos de história em iídiche, russo, ladino, judeu-grego, judeu-persa,
judeu-árabe, etc., séculos de falares múltiplos e relacionais – falares que,
ao mesmo tempo que são indiscutivelmente judaicos, incorporam
elementos que um dia foram estrangeiros. Israel funda-se como uma
nação ocidental, pois baseia-se na intransigência linguística
(GLISSANT, 2010, p. 15). Uma intransigência, é certo, pontuada por
uma tolerância em múltiplas instâncias – que não se caracterizava por
uma “ideologia multilingual”, mas por uma aceitação relutante de uma
realidade multilingual (HELMAN, 2014, p. 34).
Ou, melhor: para fundamentar-se como nação, nos moldes das
grandes nações europeias, naquilo que Glissant define como uma “raiz
total”, Israel precisava impor o hebraico como seu idioma veicular,
como um aspecto central da vida judaica – o idioma tornaria-se sua
metrópole (GLISSANT, 2010, p. 18). Isso se torna explícito quando
David Ben-Gurion, primeiro governante do país, reclama a respeito da
narrativa de Rozka Korczak sobre o khurbn, em iídiche (que fora o
idioma nativo do próprio Ben-Gurion), que o idioma lhe “irritava os
ouvidos” (KAVON, 2014), ou quando, alguns anos mais tarde, disse que
o hebraico deveria substituir o iídiche também na diáspora (JEWISH
TELEGRAPHIC AGENCY, 1969).
Seria impossível fundar-se um Estado nacional baseado num
idioma sem aspiração à terra, num idioma que não se baseava no espaço,
mas no tempo. Os judeus deveriam ter uma ligação com o Estado de
Israel e deviam constituir-se, onde quer que estivessem, numa nação que
pudesse olhar para aquela terra como sua. Israel, como qualquer outro
Estado, tinha a pretensão “de ser imagem interiorizada de uma ordem do
mundo e enraizar o homem” (DELEUZE, GUATTARI, 1995, p. 37).
O iídiche, por sua vez, já era o idioma de escolha dos socialistas
seculares do Algemeyner Yidisher Arbeter Bund in Lite, Poyln un
Rusland (Partido Geral dos Trabalhadores Judeus da Lituânia, Polônia e
Rússia, conhecido simplesmente como Bund) e dos religiosos
15

hassídicos3 - os primeiros por ser a língua das massas, os últimos não


apenas por isso, mas também por considerarem que o hebraico, a língua
sagrada, não deveria ser utilizada para assuntos terrenos. Nenhum dos
grupos encontraram necessidade de definir-se no espaço, pois definiam-
se temporalmente através da visão de uma iminente e inevitável
revolução, social ou espiritual.
Obviamente que, ante a tudo isso, a escolha de Sutskever, que
então vivia em Israel, de continuar a escrever em iídiche é crucial para
sua obra poética. Foi estimulado por outros poetas a abandonar o idioma
e a adotar o hebraico. Foi o que muitos fizeram, a exemplo de Uri Tsvi
Grinberg. Sutskever não apenas se recusa veementemente a fazê-lo, mas
também se coloca em posição de enfrentamento, como escreve no
poema intulado “Iídiche” (Yidish):

É preciso que eu comece do princípio?


É preciso que eu,
como Abraão,
destrua todos os ídolos,
como um irmão?
É preciso que eu me permita ser traduzido vivo?
É preciso que eu plante minha língua
e espere até que se transforme
nas amêndoas com passas
dos ancestrais?
que engraçada
piada
prega meu irmão de poesia, o de costeletas,
enquanto minha língua-mãe se põe?
(SUTSKEVER, 1963, p. 33)

O projeto poético de Sutskever depois do khurbn apresenta-se


como um projeto de preservação amplo, que abrange todo o modo de

3 O hassidismo é um movimento religioso judaico surgido no que hoje é a


Ucrânia oriental, durante o século XVIII. Fundado por Baal Shem Tov,
enfatiza o sentimento religioso e a vivência, possibilitando uma
espiritualidade mais inclusiva, em oposição a um judaísmo excessivamente
legalista e intelectualizado que vinha se desenvolvendo, afastado das
populações mais simples.
16

existência judaica na diáspora – toda a existência falante de iídiche. É


através da escritura em iídiche que Sutskever ressuscita a “Jerusalém da
Lituânia”, a Vilna do período entreguerras, espaço e tempo em que a
cultura iídiche moderna atingiu seu ápice.
À primeira vista, esse gesto está carregado de nostalgia. A
palavra nostalgia vem do grego, ou, como sugere Svetlana Boym (2007,
p. 7), pseudogrego, grego nostálgico: é a união das raízes gregas nostos,
retorno para o lar, e algia, dor, e surgiu na literatura médica do século
XVII, inicialmente descrita em 1688 na dissertação do médico suíço
Johanes Hofer. Ele reconhecia a pré-existência da entidade, porém
acreditava que faltavam-lhe rigor e uma nomenclatura científica,
universal (BOYM, 2007; NATALI, 2006).
Era uma doença como as outras, e Hofer deu-lhe causas que
variavam desde a desnutrição (causada pela falta dos alimentos
habituais) até afecções de ordem neurológica. Os sintomas eram febre,
insônia, suspiros frequentes, palpitações, astenia e anorexia (HARDER;
HOFER, 1688), e essa lista seria ampliada em trabalhos posteriores ao
do médico suíço (NATALI, 2006). Propunha alguns tratamentos: em
primeiro lugar, a purgação; no caso de falha desse método, a sangria
através da abertura das veias braquiais maiores; e, no caso de falha desse
outro método, o médico deveria dar ao doente uma esperança de retorno
para casa, mesmo que falsa (HARDER; HOFER, 1688).
A doença teve seu apogeu no século XIX, desaparecendo no
início do século XX. Isso, porém, não quer dizer que ninguém tenha
sentido seus efeitos, apenas que a medicina, agora mais rigorosa e mais
fria, buscando assumir ares científicos, descartou-a como entidade
nosológica.
Sobreviveu, porém, como um sentimento, uma forma de pensar.
A nostalgia só pode existir no pensamento moderno, dentro do qual é
considerada um problema. Ela deixou de referir-se, como no caso dos
primeiros pacientes de Hofer, a um apego ao lar distante, passando a
designar um apego ao tempo passado É uma forma de relacionar-se com
o passado e com os mortos, uma recusa em abandoná-los. É, e empresto
aqui as palavras de Walter Benjamin, a “a acedia, que desespera de
apropriar-se da verdadeira imagem histórica, em seu relampejar fugaz”
(1987, p. 225). Isso, numa sociedade marcada pelo desejo de progresso e
pela celebração do novo, é visto como negativo; é impensável que se
17

prefira o passado ao futuro, que há sempre de ser melhor (NATALI,


2006).
Fica claro, então, que, na recém-nascida Israel, que elegera para
si o hebraico moderno como idioma, continuar com o iídiche era uma
espécie de aceitação da vida da diáspora como válida – e não poderia
ser, pois o judeu diaspórico era fraco e havia, nas palavras de Khayim
Nakhman Bialik, se deixado levar para a “cidade da matança”:

Vem, agora, e eu te levo às suas tocas,


As casinhas, privadas e chiqueiros donde
Estão os herdeiros dos Asmoneus, tremendo
de medo, cheios de medo – os filhos dos
Macabeus!
A semente dos santos, crias dos leões4
(BIALIK, 1922, p. 14).

Dentro da nova nascente mentalidade israelense, o iídiche


figurava como parte de um passado a ser abandonado, em que os judeus
viviam submissos entre outros povos e eram fracos, passivos. O futuro
se faria em Israel e não teria nenhuma ligação com a vida judaica na
Europa – por mais que esse futuro fosse, em última análise, uma
emulação das vidas europeias na Europa. O futuro se faria em hebraico,
idioma semítico, herdeiro genuíno da tradição que remontava aos
tempos bíblicos5. Qualquer coisa que fosse a intuito diferente disso –
como o constante rememorar a Polônia do entreguerras e a persistência
do iídiche na poética de Sutskever, por exemplo – seria nostalgia, em
seu sentido mais negativo, ou seja, a negação do presente e de um futuro
necessariamente melhores (pois o sentido da história seria,
supostamente, uma via de mão única em direção ao progresso), em
função de um apego a um passado idealizado.
Mas, por mais que no campo político e ideológico a fundação

4 Poema escrito originalmente em hebraico, e traduzido para o iídiche pelo


próprio Bialik. Traduzi, aqui, a partir da versão iídiche – originalmente
publicada em 1906. Retirei o texto original de uma publicação de 1922.
5 Isso, é claro, na narrativa adotada pelo sionismo. O hebraico moderno, na
verdade, foi reconstruído de modo artificial, com claro intuito nacionalista
durante o Haskalah, a “iluminação judaica”.
18

do Estado de Israel tenha simbolizado a vitória do sionismo ante as


outras correntes políticas judaicas surgidas a partir do século XIX, como
o bundismo, isso não se resolveu de modo tão simples. É bastante
evidente, nos primeiros anos da literatura israelense, que se apresentava
sem cessar uma tensão entre o dever e a vontade de homenagear os
mortos e a necessidade de criar esse novo paradigma, tanto na escritura
hebraica quanto iídiche – e ainda mais presente na segunda, justamente
por ter sido preterida na construção dessas novas formas de existência.
Lado a lado com a ideia de nostalgia, caminha, ao menos no
caso em questão, o trauma, “uma memória de um passado que não
passa” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 69), que permeia o todo a
respeito do qual se escreve aqui. O khurbn foi algo tão monumental, tão
gigantesco que se torna inescapável para seus objetos. E justamente esse
trauma cria uma “carência absoluta” do narrar, gerando o testemunho
como ato elementar para o sobrevivente, para efetivamente colocá-lo em
contato com os outros, os que não estiveram lá onde ele esteve e não
viram o que ele viu.
Apesar da proximidade entre os termos (trauma e nostalgia), há
uma diferença fundamental. Na nostalgia, há uma romantização de um
período ou lugar, uma recusa em abandoná-los. O trauma, por sua vez,
caminha no sentido oposto – a tragédia é tão pujante, tão imensa, que o
sobrevivente se vê impossibilitado de sair dela, de mover-se para o
presente. Em ambos, há uma fixação em algum ponto do passado. Na
nostalgia, isso acontece porque o passado, de alguma forma, era mais
atraente. No espectro oposto, o trauma causa essa fixação não pela
atratividade desse passado, mas por sua monstruosidade.
Relacionam-se intimamente no sentido de que, talvez,
impossibilitado de seguir em frente o sobrevivente, o traumatizado
encontre um caminho para trás, para o passado anterior à tragédia – que
lhe parecerá idílico. A nostalgia, então, pode ser encarada como um
modelo melancólico de enfrentamento do trauma: escapa-se de um
passado traumático em direção ao passado, até que se torne agradável. O
trauma concretiza-se numa obrigatoriedade da nostalgia.
Pode-se encontrar esse modelo na obra de Sutskever através de
um constante reavivamento, não apenas dos fatos e dos mortos do
khurbn, mas também do mundo que florescera antes que acontecesse,
como quando, em “Aquário verde”, Sutskever pede para ver os mortos.
19

Contudo, seria demasiado simples inserir aquilo que Sutskever


escreveu no período do pós-guerra nessa lógica, considerando sua
escritura meramente uma obra testemunhal, ainda que acrescida de
inegável valor estético. A hipótese desta pesquisa é que as escolhas e a
poética de Sutskever não são meramente nostálgicas ou de teor
traumático (por mais que transitem ao longo e através desse espectro),
mas que elas obedecem também a outro tipo de ordenação: a da criação
de uma narrativa alternativa, contra-histórica, que enfrenta a narrativa
oficial – uma narrativa de resistência que, ainda que a posteriori, se
contrapõe à desintegração que Miłosz nos diz que períodos
tempestuosos da história trazem (2012, p. 113).
Apesar de me referir aqui a uma resistência a posteriori, quase
toda a biografia de Sutskever é uma história de resistência: durante a
Primeira Guerra Mundial, sua família refugiou-se na Sibéria, retornando
para Vilna depois da morte de seu patriarca. Na Segunda Guerra,
Sutskever, que acabara de casar-se com seu amor de adolescência,
Freydke, e de publicar seu segundo volume de poemas, será prisioneiro
no gueto de Vilna – onde será integrado à “brigada do papel”, um grupo
de estudiosos e intelectuais judeus escolhidos pelos nazistas para
escolher “tesouros” que, após a eliminação dos judeus europeus, iriam
para um museu. Ao invés disso, eles enterraram tudo o que puderam,
retornando depois da guerra para recuperá-los. Ao escapar do gueto,
Sutskever une-se aos partisans, tomando parte da resistência armada, e
logo é levado para a URSS, por intercessão de Ilya Ehrenburg, que
escreve a seu respeito no Pravda, fazendo de Sutskever um símbolo da
resistência judaica contra o nazismo.
Trata-se, além disso, da introdução dessa poesia e do poeta, com
algumas de suas preocupações éticas e estéticas, ao público leitor da
língua portuguesa brasileira. A poesia de Sutskever recebeu, aqui, umas
poucas traduções na coletânea de poesia judaica reunida por Jacob
Guinsburg, Quatro mil anos de poesia (1969)6.

6 A recepção da obra de Sutskever, ao redor do mundo, apesar de mais


ampla, ainda fica aquém do status do poeta. Foi amplamente traduzido
par ao inglês e para o hebraico, além do francês, italiano, dinamarquês,
polonês e alemão. Em todos esses idiomas, no entanto, Sutskever é
traduzido quase que exclusivamente através da chave memorialística da
sua obra, seja através do testemunho do khurbn ou das reminiscências da
20

Em alguns momentos, a nostalgia e a melancolia dominam sua


poética. Ao invés da estagnação, contudo, o que sucede é um trabalho
positivo do luto e da superação do trauma, ainda que a necessidade do
rememorar não desapareça – poder-se-ia dizer que a memória do
khurbn, para Sutskever, é um imperativo ético e estético. O que aparenta
ser nostálgico em Sutskever é, na verdade, parte desse enfrentamento do
trauma, que se dá na forma de um rizoma, ou seja, de uma relação não
dual, que se forma não a partir de oposições dialéticas ou hierárquicas,
mas de múltiplos pontos de entrada e saída. Isso significa que nesse
enfrentamento do trauma que Sutskever busca fazer com sua poesia não
existe uma dualidade, mas sim uma multiplicidade. Borram-se as
fronteiras entre os opostos, cá e lá, antes e depois; diáspora e não
diáspora acabam, em muitos momentos, sendo superpostos.
Cabe lembrar que, antes de 1948, quando foi fundado o Estado
de Israel, os judeus eram um povo sem território, cuja lembrança de um
lar ancestral mítico (a terra de Israel) convivia lado a lado com a
errância e o diasporismo, existindo ao lado e no meio de outros povos,
cujos costumes, literaturas e falares eram incorporados e assimilados em
maior ou menor grau.
Existia um impulso de modernidade que era, no entanto,
imbuído de qualquer coisa ligada a uma ancestralidade. Concorriam à
esperança de algo novo, seja a emancipação judaica, a revolução
proletária ou a fundação de um Estado nacional judaico (coincidindo
com a localização dos reinos judaicos da antiguidade bíblica ou, mesmo,
algures), e uma tradição que era traçada até os textos bíblicos e
talmúdicos, ou, mais exatamente, através deles.
Esse amálgama entre passado e futuro, entre tradição e
revolução não era algo novo na história judaica. Gerschom Scholem
(2004) aponta para a existência dessas características no misticismo
judaico (e nos misticismos de modo geral) e para a importância que esse
misticismo teve para o desenvolvimento das linhas de força dominantes
na modernidade judaica.
Jordan D. Finkin (2015) dá a essa característica da modernidade
judaica o nome de doikayt (aqui-cidade) – termo que empresta do
programa político do Bund: um sentimento de pertença dos judeus aos

infância.
21

locais em que habitassem, sem, no entanto, que precisassem ser


assimilados. Inscreviam as vidas judaicas a uma cultura secular e
centrada no idioma. Com isso buscavam enfatizar “o valor e o direito de
os judeus viver onde quer que se encontrassem” (SHANDLER, 2003, p.
128-129). Amarrado a esse mesmo conceito, andava a ideia da
yidishland (literalmente, país iídiche) – uma nação sem fronteiras, que
se estendia através dos falantes do iídiche. Finkin estende o doikayt a
um sentimento de pertencimento a algo maior que as fronteiras definidas
no espaço e no tempo, a capacidade de percorrer o tempo como espaço e
vice-versa, e deixava-se aberta ao que viesse da alteridade, borrando as
fronteiras entre novo e antigo, entre o próprio e o do outro, entre o
próximo e o distante e o universal.

Conexões naturais, reflexivas e orgânicas aos


lugares são parte de ser humano. A autorreflexão
judaica, no entanto, tende a delinear tensões sobre
esse terreno. Os judeus são um povo diaspórico e
o pensamento diaspórico, para o bem ou par ao
mal, tem uma afinidade para com o portativo.
Mas, diferentemente do pequeno pedaço de terra
possuído pelo pai de Boris em A última noite de
Boris Grushenko, de Woody Allen, que ele
carrega consigo sob o casaco, o território não é
portátil. O tempo, no entanto, e com ele uma
percepção da história, uma conexão para com um
sentimento de missão e de significado
historicamente orientados, são todos
transmissíveis. (FINKIN, 2015, p. 89).

Essa citação aponta para o fato de que os judeus, incapazes de


herdarem através das gerações um território espacial, transmitiram aos
seus uma espécie de território temporal – as noções de tempo e um
determinado modo de encarar a história, bem como seu lugar dentro
dela. E, “além disso, o 'narrador' do tempo judaico e do espaço judaico
não é apenas o rabino ou o historiador, o líder político ou o intelectual
público, mas de fato também o escritor e o poeta” (FINKIN, 2015, p.
89).
Porém, com o khurbn e a fundação do estado de Israel, os
limites de tempo e espaço podem ser mais bem definidos, pois esses
22

eventos são marcos, pontos de partida. Há uma ruptura da continuidade


histórica judaica, como havia acontecido na história ocidental através do
advento da Revolução Francesa. Os judeus agora passam a ter um
território físico para o qual olhar, bem como um futuro ligado ao destino
dessa terra.
No entanto, a obra de Sutskever ignora essa delimitação, sendo
que sua poética é, antes de mais nada, uma “poética da relação”: seu
mistério fundamental está no outro e no modo com que ele o articula
com o que é próprio a partir dessa construção rizomática, acêntrica.
Dialoga com várias poesias europeias – os poetas poloneses são os
primeiros e mais marcante desses interlocutores, mas também outros,
como Paul Valéry e William Blake, estarão presentes como vozes que o
poeta ouve e ecoa –, e com a literatura hebraica e iídiche, tanto em suas
formas modernas quanto na forma da tradição. Ele continua, apesar de
tudo, um indivíduo diaspórico. Ainda que abrace o sionismo e o Estado
de Israel, é como se, depois de tantos séculos na diáspora dos judeus na
diáspora, a ideia de um lar nacional não pudesse ser inteiramente
assimilada.
Theodor Adorno (1962) afirmou que escrever poesia depois de
Auschwitz tornara-se algo bárbaro, que chegava ao ponto de corroer até
mesmo o conhecimento de porque se tornara impossível escrever
poemas. Apesar da preocupação primeira de Adorno ser relativa a
questões da indústria da crítica cultural, esse trecho pode ser lido como
uma indicação de uma ruptura da continuidade poética de modo
dialético depois do khurbn. Para Adorno, continuar a escrever (e a
inscrever) a poesia no mesmo local de outrora tornara-se impossível.
Isso, em parte, acontecera porque o capitalismo industrial e a lógica de
mercado impossibilitavam a aceitação natural de uma “totalidade
subjetiva”, haja vista que a “problematização da constituição da
subjetividade é um problema fundamentado historicamente nas
condições hostis e desumanas de existência propostas pelo capitalismo
industrial” (GINZBURG, 2003, p. 64-65). Considerando o khurbn,
porém, isso vai além: a experiência que se baseia em “uma experiência
coletiva, histórica, de aniquilação” (GINZBURG, 2003, p. 66) que não
permitiria, para Adorno, a constituição de um sujeito lírico pleno.
Isso não significa uma impossibilidade, em termos absolutos, da
escritura poética. É, antes, uma percepção da necessidade de renovação
23

da poesia. Poéticas como a de Paul Celan (citado como exemplo por


Adorno), Tadeusz Różewicz e Abraham Sutskever não apenas dão
continuidade às poéticas pré-existentes, mas também reexaminam o
lugar de origem da poesia e a retiram do campo da reificação que
Adorno enxerga como barbárico.
Celan e Różewicz voltaram-se, em sua poesia, para o silêncio,
para a negatividade e para uma certa insustentabilidade da linguagem
humana para isso. Sutskever, por sua vez, insere a poesia num lugar
divino, que advém da irracionalidade criativa – é algo que permeia toda
a existência, a começar pelas palavras, mas a partir delas, chegando até a
própria matéria e ao espírito. Essa relação de Sutskever com a poesia,
em especial no pós-guerra, é muito similar à que, para Gerschom
Scholem (2004), os místicos judaicos mantinham com a escritura e com
a revelação.
Essa relação se pauta sobretudo no paradoxo: a experiência
mística, o contato direto entre o indivíduo e o divido ou com a realidade
metafísica, é inapreensível para a racionalidade, para as línguas
humanas e, portanto, deve ser expressa a partir de paradoxos
(SCHOLEM, 1995, p.60). Ao mesmo tempo o místico situa-se num
determinado ponto histórico da história das religiões e precisa de uma
tradição religiosa a que se referir, precisa aderir a uma escritura sagrada.
(p. 63) Do mesmo modo constitui-se o paradoxo da poesia de Sutskever,
em que a própria poesia é a escritura e a divindade, mas cuja revelação
pura e simples, tornou-se impossível a partir do khurbn. Assim como
toda experiência mística nasce, em primeiro lugar, de uma percepção
imediata da proximidade com Deus, mas num contexto em que há um
abismo entre este e o homem, a poesia de Sutskever nasce de uma
percepção imediata do poeta de sua proximidade com a língua e a
poesia, num contexto em que a história lhes impôs um abismo.

Abraham Sutskever descobriu a literatura iídiche, que


inicialmente ignorava, depois de ter escrito seus primeiros versos em
hebraico. O iídiche por muito tempo teve um estatuto de língua menor,
não cultivada, sua literatura não-religiosa e moderna havia se
desenvolvido apenas a partir das últimas décadas do século XIX.
Abandonou, porém, a escrita hebraica de modo ritualizado, queimando
os textos (CAMMY, 2007, p. 306). Assumiu o iídiche como idioma
24

literário com determinação que permaneceu mesmo em tempos difíceis


para a língua, por exemplo, ao editar a primeira e mais importante
revista de literatura iídiche de Israel, Di Goldene Keyt (“A corrente
dourada”), até meados dos anos 1990. Escreveu aqueles que são
considerados os mais sionistas dos poemas em iídiche (CAMMY, 2004),
nos quais exalta a nova terra judaica como a terra do renascimento do
povo assassinado – a mesma terra onde arbitrariamente se decidiu que o
poeta deveria cantar noutra língua:

Seria esta a pequena grande terra sem medida?


Seria esta a terra, de que se fala no Sidur?
[…] seria a terra das visões e transes
em que nem mesmo a morte é real?
(SUTSKEVER, 1961, p. 43).

Mas, ao invés de dividir-se em diferentes partes, não


relacionadas ou contraditórias entre si, a obra de Sutskever forma um
todo organizado em que há uma continuidade da narrativa histórica
iídiche: a vivacidade do período entre guerras, os anos do khurbn e a
sobrevivência da língua, literatura e cultura depois da Segunda Guerra
Mundial e da Guerra de Independência de Israel.
Faz isso, porém, de forma subterrânea, não sendo parte da
narrativa oficial: em Israel se fala e se escreve em hebraico, não em
iídiche. Existe uma cultura israelense, sabra, que só se relaciona com a
cultura iídiche no grande panorama do judaísmo.
Aliás, através da escrita de Sutskever, é possível apontar para a
continuidade não apenas da história iídiche, mas de toda a tradição
judaica, uma tradição que sobrevive graças às palavras e ao textual, e no
que se insere junto com tudo aquilo que era produzido em hebraico (e,
na diáspora, em outros idiomas, como o inglês de Saul Bellow, o
polonês de Julian Tuwim e até mesmo o português de Moacyr Scliar):
“A continuidade judaica sempre se articulou em palavras proferidas ou
escritas, num sempre expansível labirinto de interpretações, debates e
discordâncias, e numa interação humana única.” (OZ; OZ-
SALZBERGER, 2015, p. 15).
A obra de Sutskever se insere nesse contexto, dando
continuidade não apenas à cultura iídiche de Mendele Mokher Sforim,
25

Sholem Aleykhem e Y. L. Perets, mas também remontando à bíblia e a


escritores hebraicos como Bialik e Agnon. A única coisa que essa obra
nega é justamente a quebra dessa continuidade, seja a partir do khurbn,
seja a partir da fundação do Estado de Israel.
É paradoxal, então, que, ao negar a narrativa que o sionismo
cria para si mesmo, Sutskever assuma, ele próprio, as vestes de um
escritor que poderia ser considerado sionista. Mas, ele não vê, na “nova
criação”, corporificada no país judeu, uma nova vida, mas a continuação
da vida anterior que, assim como ele e sua poesia, sobreviveu a tudo.
Considerando que a obra do poeta é bastante extensa, para efeito
de uma análise mais detida, a dissertação elenca três poemas – sem, no
entanto, excluir a possibilidade de mencionar ou citar outros –, “Aquário
verde” (griner akvarium, 1955), “Para a Polônia” (tsu poyln, 1946) e
“No deserto do Sinai” (in midbor sinay, 1975). A escolha desses
poemas se deve ao fato de terem sido escritos depois do khurbn, ao fato
de serem poemas longos e bastante significativos não só do escopo
geral, mas por se referirem a diferentes forças estéticas presentes em sua
escritura: a memória, o trauma, o luto entrincheirados em um (ou mais)
lado indefinido de uma batalha entre as preocupações éticas e estéticas.
A evocação do belo, do poético caminha nesses poemas lado a lado –
mas não de forma livre de tensões – com o dever da memória, através da
continuidade, da ressurreição ou do renascimento.
“Aquário verde” foi publicado em 1955, como parte do volume
Ode à pomba (Ode tsu der toyb). O volume contém três seções: uma
homônima que consiste num longo poema de configuração neoclássica;
outra em versos brancos modernistas, sobre o continente africano,
intitulada “Elefantes à noite” (Helfandn bay nakht); e “Aquário verde”,
contendo fragmentos de prosa poética, chamados por Sutskever de
“pequenas descrições”. Essa seção dividia-se em duas seções menores, a
primeira sendo “Aquário verde” propriamente dita, e a segunda chamada
“O diário do Messias” (meshiakh togbukh).
As “pequenas descrições” são textos de tamanho variável, de
duas a quinze páginas, de teor descritivo e memorialístico, no qual,
porém, intromete-se uma atmosfera surrealista. Sutskever cria cenas
que, ao mesmo tempo que remetem ao seu passado em Vilna e ao
período da Guerra, são oníricas, fantásticas. O poema “Aquário verde”
aponta a uma tendência nostálgica e testemunhal. As descrições não
26

apenas remetem ao passado, mas tentam insistentemente trazer os


mortos de volta. O desenvolvimento da análise do poema consistirá no
tema do primeiro capítulo da dissertação.
“Para a Polônia” é um poema cronologicamente anterior, escrito
em 1946, mas cujas preocupações e tensões serão mais bem percebidas
depois da leitura detalhada de “Aquário verde”, por isso é analisado no
segundo capítulo. Foi escrito quando, logo após o fim da guerra e os
Tribunais de Nuremberg, o poeta tentou estabelecer-se na Polônia, mais
especificamente na cidade de Łódż. A crescente atmosfera de
hostilidade aos judeus restantes, cujo ponto culminante foi o pogrom de
Kielce, fez com que ele e sua esposa decidissem abandonar o país. “Para
a Polônia” é uma despedida: uma ode na qual o poeta elenca os motivos
– especialmente literários, mas também históricos e culturais – que
justificavam o seu amor pela Polônia, mas, não obstante, ele dá seu
adeus ao país.
Ainda que o poema se inicie de forma nostálgica, apresentando
uma versão romantizada e idealizada da Polônia, exaltando a história e
literatura do país, suas benfeitorias aos judeus, essa visão idílica, porém,
logo dá lugar a um sentimento mais amargo. Tal guinada mostra uma
clara evolução da nostalgia e melancolia para um luto devidamente
trabalhado: o objeto de amor do eu lírico, aquilo que, extrapolando os
termos de Sigmund Freud (2014), foi o depositário de uma libido e que
foi perdido começa a ser percebido como tal, deixa de ser idealizado,
permitindo que esse desejo seja movido para um novo objeto.
Esse objeto vem apontado no poema, quando o eu lírico carrega
o túmulo de Perets7, um dos pais da literatura iídiche, para a Palestina.
Retornará em mais detalhes no poema analisado no capítulo terceiro da
dissertação, in midbor sinay ('No deserto do Sinai'), publicado em 1975,
pouco depois da Guerra do Yom Kippur. Esse é um dos poemas que
rendeu a Sutskever a fama de ter escrito os mais sionistas dos poemas
em iídiche. É, de fato, a aceitação e a libertação e transferência da libido
para um novo objeto, a nova terra agora é constituída não de florestas,
mas de desertos. O trabalho de luto aqui foi levado a cabo de modo

7 Yitskhok Leybush Peretz (comumente I. L. Perets) (1852-1915): escritor e


dramaturgo judeu polonês, considerado um dos três grandes clássicos da
literatura iídiche moderna, junto com Sholem Aleikhem e Mendele Mokher
Seforim.
27

efetivo.
Isso, porém, não quer dizer que a ruptura com o passado foi
total. Muito pelo contrário, é agora o ponto mais maduro dessa poética,
em que se torna rizoma. A poesia de Sutskever é agora, mais do que
nunca, uma escritura desterritorializada, localizada entre as coisas:

Entre as coisas não designa uma correlação


localizável que vai de uma para outra e
reciprocamente, mas uma direção perpendicular,
um movimento transversal que as carrega uma e
outra, riacho sem início nem fim, que rói suas
duas margens e adquire velocidade no meio.
(DELEUZE, GUATTARI, 1995, p. 37).

Isso acontece simultaneamente entre o tempo e o espaço que se


confundem: entre Vilna e a Sibéria e o Negev e a África, entre a Guerra
de Independência e o khurbn, entre os partisans e os rabinos, entre a
modernidade e a tradição, etc. É uma poética cartográfica que,
mapeando os acontecimentos, tempos e locais envolvidos na história
judaica, na história iídiche, enfrenta a máquina do esquecimento, assim
como Kafka, para Deleuze e Guattari (1995), enfrentava a máquina
burocrática.
Ambas, a máquina burocrática e a máquina do esquecimento são
duas faces da mesma moeda, a da reificação, pois transformam aquilo
sobre o qual agem em produtos, em objetos não passíveis de
contemplação e de recriação. Fazem isso através de múltiplos devires, os
devires da continuidade e da sobrevivência do iídiche, que se
manifestam através da memória, através da tradição, mas também
através do anseio pelo novo. Isso acontece mesmo (na verdade, talvez
especialmente por isso) que seja de forma subterrânea, contra-histórica.
Essa poesia desterritorializada, que não se prende a um lugar ou
tempo específico, mas que lança suas raízes na multiplicidade, faz-se,
então, poética da relação: aberta, explosiva, horizontal. Não há um
cerne, mas muitos. Se, a partir de um paradigma freudiano, pode-se
dizer que o luto foi resolvido e a libido, liberada, ela não recai somente
sob essa nova terra, mas sobre uma miríade, uma infinitude de objetos,
lugares e tempos, de forma não apenas a manter viva uma tradição, mas
também a questioná-la e reinventá-la a partir da linguagem. E talvez o
28

que seja ainda mais importante: combater a reificação e a objetificação


da tragédia e das vidas por ela tocadas.
29

1. AQUÁRIO VERDE

– Seus dentes são barras de osso. Atrás deles,


numa cela de cristal, suas palavras agrilhoadas.
Lembre-se dos conselhos de um ancião: as
palavras vis, as que colocaram em sua taça pérolas
venenosas, a elas dê a liberdade. Como
agradecimento por sua misericórdia, elas
construirão a eternidade para você; mas as outras,
as inocentes, elas, que gorjeiam falsas como um
rouxinol sobre um túmulo – não as deve poupar.
Enforque-as, como se fosse o carrasco delas! Pois
assim que você as deixa sair de tua boca ou de tua
pena – elas se transformam em demônios. As
estrelas não cairão, pois eu falo a verdade!
(SUTSKEVER, 1963, p. 227).
-

Assim se inicia o poema em prosa, ou “pequena descrição”


segundo Sutskever, chamado “Aquário verde”. O poema foi retirado da
seção homônima, parte final do livro Ode à pomba (ode tsu der toyb),
publicado em 1955. Compõem, também, “Ode à pomba” e “Elefantes à
noite” (helfandn bay nakht). Respectivamente, esses poemas constituem
um longo poema neoclássico em que o poeta busca um equilíbrio entre
sua vocação estética e o tratamento ético de seu testemunho e da
memória dos que pereceram no khurbn (MENDES, 2015) e uma
coletânea de poemas modernistas em que o poeta experimenta as formas
do mesmo modo como desbrava novas terras.
As palavras, por mais que surjam diante do poeta apenas quando
do ato criativo poético, são, à sua maneira, inerentes, não somente
devido à língua, mas também à forma da tradição e da memória que ele
carrega. Essas palavras podem ser de vários tipos. Existem palavras
inocentes, inócuas. E existem palavras cruéis, dolorosas, até mesmo
assassinas. São justamente essas segundas que devem ser libertas na
forma de poemas. As outras, as inocentes, não devem persistir – são as
palavras que pertencem a outro ordenamento da realidade, um
ordenamento mundano, prosaico. No fazer poético, nada passa
despercebido, nada no fazer do poeta é inconsequente ou isento de
30

potência – nada pode ser inocente, pois o mundo não o é. E, se isso é


verdade de modo geral, torna-se uma afirmação ainda mais veemente
para o poeta que canta a morte e a (sobre)vida dos assassinados no
khurbn.
E “Aquário verde” é isso, uma espécie de kadish – a oração que o
judeu religioso recita em nome dos mortos que lhe eram próximos – em
que o poeta relembra as pessoas e coisas que perdeu com o khurbn.
Essa rememoração acontece de forma bastante poderosa, os
mortos, nessa poesia, são trazidos de volta de maneira quase tão brusca
quanto foram, anteriormente, levados. Isso, sob a visão do modo de
pensar a história e literatura judaicas hegemônico depois da Segunda
Guerra Mundial, pode gerar uma leitura do poema como um poema de
nostalgia.
A nostalgia pode, sob uma perspectiva de leitura dominante na
modernidade, ser vista como negação do progresso e um aferrar-se a um
passado perdido (NATALI, 2006). No mundo moderno em que a
história passou a ser encarada como um processo, como um movimento,
a ordem seria seguir em frente – o progresso.
O progresso dos judeus deveria ser abandonar a diáspora, em que
foram perseguidos e humilhados, em que eram fracos, e ir para o Estado
de Israel. O judeu israelense não seria mais o mesmo da diáspora; ele
jamais se deixaria levar para a cidade da matança. Ele ergueria sua
cabeça e resistiria, contra tudo e todos – fossem os ingleses, os árabes ou
as dificuldades impostas pela terra. Abunda na literatura e na história
israelenses a figura dos pioneiros judeus na Palestina, os halutzim, que
drenavam pântanos e irrigavam o deserto, tudo isso com o fuzil na mão
(NEUMANN, 2011).
E, para que se fizesse isso, para que esse desejo de conquista se
concretizasse, deveria eliminar-se toda e qualquer ligação com o
passado. O khurbn e a fundação do Estado de Israel configuram-se como
uma revolução: um ponto de ruptura com o passado, a partir de quando
se inicia uma nova história para os judeus. Uma história feita em
hebraico, uma história em que o passado na diáspora era apenas lamento
e dor. A narrativa oficial é de que o povo judeu esperou por dois mil
anos para o retorno à terra, esses dois mil anos foram uma interrupção
do curso de sua história, do curso de seu progresso. Para que isso se
tornasse real, a vida da diáspora deveria ser apagada ou, pelo menos,
31

relegada a um papel subalterno. Não à toa que o iídiche se tornaria, em


Israel, a língua das avós, “a língua batata dos pobres” (HARSHAV,
1994, p. 93).
Persistir escrevendo em iídiche – quando praticamente exigia-se
que adotasse o hebraico, idioma do novo país, idioma eleito para o
renascimento dos judeus – pode ser encarado como nostalgia, em seu
sentido mais negativo. Conforme essa chave de leitura nos diz, ao
escrever em iídiche ao invés de fazê-lo em hebraico, Abraham Sutskever
se recusa a integrar-se de modo pleno a Israel. Através da leitura de
alguns de seus poemas, repletos de rememorações das paisagens e
personagens da diáspora, poderiam atestar isso. Aparentemente, é o que
acontece em “Aquário verde”, em que o narrador pede para ver
novamente os mortos, alegra-se de reconhecer seus rostos e tenta, por
fim, tocá-los:

[...]
- Certo. Eu dou a minha palavra. Só sem frases
longas. Pois o sol se torna ao ramo azul e num
instante cairá no abismo...
- Eu quero ver os mortos!
- Que desejo... Nu, que seja. Minha palavra me é
preciosa... Veja!
[...] Eu olho pra dentro: pessoas nadam lá como
peixes. Inúmeros rostos fosforescentes. Jovens.
Velhos. E jovensvelhos de uma só vez. Todos os
que eu vi a vida inteira e que a morte ungiu com
uma existência verde; eles todos nadam em um
aquário verde, numa suave e sedosa música aérea.
Aqui vivem os mortos!
(SUTSKEVER, 1963, p. 228).

O eu lírico aqui pede, claramente, para ver os mortos e sente-se


bem ao lado deles, no mundo deles. O mundo presente é esquecido, em
detrimento desse passado. Poderia buscar explicar-se essa nostalgia
como sendo causada pelo trauma do khurbn, que “é caracterizado por
ser uma memória de um passado que não passa” (SELIGMANN-
SILVA, 2008).
Nesse sentido, o teor memorialístico de “Aquário verde” torna
possível pensar o poema dentro do panorama da narrativa do trauma,
32

como de fato boa parte da obra de Sutskever é tradicionalmente


encarada pela crítica. Nesse caso, a própria forma do poema corrobora
as dificuldades inerentes ao gênero. Afeito às formas clássicas,
Sutskever parece incapaz de abarcar nelas o trauma que evoca no texto.
Isso implicaria uma imposição à memória. Por conseguinte, o poema se
apresenta em forma de prosa; em uma metarreferência narrativa, as
palavras vencem o eu lírico e lhe escapam selvagens, incontroláveis,
violentamente. Nesse debordamento, as palavras conquistam locais
antes inauditos e realizam o que quer que desejem:

Aha, eis minhas palavras prestes a sair...


conseguiram uma vitória sobre alguém e,
aparentemente, decidiram conquistar fortalezas
nas quais nenhuma palavra até então conseguira
entrar. Em homens, em anjos e, por que não, nas
estrelas? Bêbedas com as flores de papoula
d'outro mundo, elas realizam suas fantasias.
(SUTSKEVER, 1963, p. 228).

Essa narrativa do trauma, esse testemunho, no entanto,


apresenta-se de modo indireto, haja vista que não é narrado o momento
do trauma, mas o mundo pré-lapsário. Parece haver aqui uma qualquer
coisa de lutuosa, um lamento pelo mundo que foi destruído.
O testemunho, ou seja, a narrativa do trauma, pode ser encarado
como parte essencial do processo de luto, sem a possibilidade dessa
narrativa, o trauma jamais seria trabalhado, acarretando uma falha
naquilo que Sigmund Freud denomina “economia do luto” e
condenando o indivíduo à melancolia (FREUD, 2014).
Alguns aspectos estéticos de “Aquário verde” apontam de forma
sutil, porém mais direta, para esse processo de luto, de um processo
curativo que decorre do período de luto, um antídoto à melancolia
causada pelo trauma do khurbn. A cor verde é tomada como um símbolo
para isso – a cor da vida e da esperança, sendo, no universo imagético de
Sutskever, representativa da natureza e da poesia.
As duas forças, natureza e poesia, são dois pilares da construção
de mundo do poeta. Abraham Sutskever não era um judeu religioso. Era
influenciado por um panteísmo derivado de Espinosa – que, a propósito,
é mencionado no poema intitulado “Uma conversa com Espinosa” (a
33

redn mit shpinoze, 1948). Em seus sistemas ético e estético, as duas


feições (natureza e poesia) correspondem aos dois principais
repositórios da divindade. Essas crenças eram aparentes desde seus
primeiros poemas, como o ciclo “Estrelas na neve” (shtern in shney,
1936) e não desparece completamente nem mesmo em seus poemas do
gueto, em que a poesia e a natureza representam uma chance de
ressurreição ou sobrevivência – como em “A primeira noite no gueto”
(di ershte nakht in geto, 1941).
Ao contrário, a proximidade com a morte só aproxima mais esse
tema. Em “A mulher de chapéu Panamá” (di froy in der stroyener
paname), segundo texto do ciclo de “Aquário verde”, ele evoca o “anjo
da poesia” como seu protetor:

Num dia da Era da Carnificina eu estava sentado


num quarto escuro escrevendo. Como se o Anjo
das Canções me dissesse: Em suas próprias mãos
está a escolha. Se sua canção me inspirar, eu te
protegerei com uma espada flamejante, mas se
não – você não deve reclamar... minha
consciência permanecerá limpa. (SUTSKEVER,
1963, p. 231).

Ao mesmo tempo, no entanto, a cor verde aponta para algo de


rançoso, de venenoso, à atmosfera sufocante do gueto (“[…] O verde
dos abetos sombrios através da neblina;/ o verde de uma nuvem com a
vesícula rota; [...]” ) e a ressurreição depois da tragédia (“[…] o verde
que se revela num bambolê girado por uma criança de sete anos; /o
verde das folhas de repolho sob gotas de orvalho que ensanguentam os
dedos; / o primeiro verde sob a neve que derrete numa dança ao redor de
uma florzinha azul; [...]”) – ressurreição que, assim como a
sobrevivência, se tornaria possível apenas através da natureza e da
poesia.
Esse poder regenerativo da poesia e da natureza, ao qual a cor
verde faz referência, aparece não apenas em griner akvarium (“Aquário
verde”), mas em outros poemas, como, por exemplo, vos vet blaybn (“O
que vai restar”) em que Sutskever escreve: “Quem vai restar, o que vai
restar? Uma expiração / Que fará brotar a grama de uma nova Criação/
Um violino-rosa, talvez, por si só vá resistir/ E sete folhas de grama
34

poderão discernir”. Na verdade, quase toda a obra de Sutskever escrita a


partir do khurbn é permeada por essa ideia da poesia como força de
salvação e fonte de proteção, pois “(a poesia) serve como testemunha
das poucas ações humanas durante a violência que representam a
habilidade da vida de reafirmar-se e negar a esmagadora influência da
morte e da destruição” (LEAMAN, 2002).
O eu lírico encontra-se deslocado no lugar tal em que se encontra,
no presente da narrativa. Mostra-se desejoso de dar continuidade a um
passado – com o qual aparentemente se relaciona com muito mais
intensidade do que com seu presente. O eu lírico de “O aquário verde”
crê pertencer (ou gostaria de crer que pertence) ao lado interno do
aquário. É o nostálgico de que Svetlana Boym fala, pois ele “está
procurando um destinatário espiritual. Ao encontrar o silêncio, ele busca
sinais memoráveis, desesperadamente errando ao lê-los” (2007, p. 12).
O erro de leitura se evidencia quando o eu lírico, como Orfeu proibido
de olhar para trás em busca de Eurídice, descobre que nada pode ser
tocado, por mais que possa enxergar o mundo perdido, nada lá pode ser
efetivamente alcançado. Ao tentar romper a parede de vidro do aquário,
esta parede de vidro se rompe e tudo o que lá estava desaparece,
sobrando apenas a percepção da morte, um teste de realidade concluído
sem sucesso: “E os mortos, os mortos – eles morreram?”
Ainda assim, parece ser daquele outro lado irremediavelmente
perdido que provêm as palavras de seus poemas. Esse lugar é o mesmo
local que serve de fonte para tudo em sua poética: a métrica estrita de
seus poemas, bem como o próprio idioma iídiche a as memórias e
imagens que constroem esses poemas. Essas palavras são, ao mesmo
tempo, tudo o que lhe resta desse mundo e elas são as responsáveis por
recriá-lo. Foi, afinal, uma palavra – a soberana dentre elas – que atendeu
ao seu pedido para ver os mortos. Até então, o poema parecia encontrar-
se no campo que Svetlana Boym (2007, p. 13) define como “nostalgia
restauradora”, que busca um retorno do passado, mesmo que não se trate
de um passado verdadeiro, mas um pretérito que se configura através de
valores considerados tradicionais, um retorno à estase original, ao
momento pré-lapsário; no caso, a Polônia entreguerras (o lapso aqui
seria o khurbn).
A partir de então, no entanto, o poema passa a apontar a outra
direção. A nostalgia persiste, mas é uma “nostalgia reflexiva”. Essa
35

nostalgia, segundo Boym (2007, p. 15), não busca recriar o passado,


pois entende os tempos histórico e individual, percebe a finitude humana
e a irrevogabilidade dos fatos. Não há aqui uma tentativa de restabelecer
o passado, mas sim uma mediação entre o indivíduo, a história e a
memória, resultando na criação de uma estética individual.
Essa divisão, é claro, é fictícia. Ao mesmo tempo que ambas as
espécies de nostalgia estão presentes no poema – e em toda a obra de
Abraham Sutskever escrita a partir do khurbn –, a nostalgia reflexiva é
sempre umas forças motrizes de sua poética. Da mesma forma, parece-
me impossível que, após o trauma, a nostalgia restauradora não esteja
sempre presente, subreptícia. A poesia em iídiche é a forma que
Sutskever encontrou para lidar com ambas as formas de nostalgia e
favorecer a reflexão, que lhe permitiu encontrar um lugar, ou melhor,
um campo por onde movimentar-se, num ponto de contato entre o ético
e o estético, entre o individual e o coletivo, entre o lembrar e o esquecer.
E ferramenta essencial para isso são justamente as palavras,
chaves de compreensão do mundo e de corporificação da realidade.
Nesse sentido, a escritura de Sutskever assume um caráter místico:
carregadas de significado, cada uma das palavras é um veículo do
divino, e, como tal, constroem, desconstroem e reconstroem o mundo. É
apenas perpassando as palavras, com seus pesos e sentidos ocultos, com
sua relação histórica, que o mundo aparentemente perdido pode ter a
continuidade que o poeta lhe quer dar.
Considerando esse caráter místico do poema, pode-se propor uma
segunda forma de leitura do poema, em que ele é visto justamente a
partir dos paradigmas de uma experiência mística, conforme propostos
por Gershom Scholem (2012; BIALE, 2004).
É certo que os poemas de Sutskever não tratam de temas
religiosos, mas quando Scholem (2012, p. 25) fala de experiências
místicas ele cita a possibilidade de que existam místicos desligados da
religião, inclusive citando como exemplos alguns poetas, William Blake
e Arthur Rimbaud. Tampouco creio que o poeta tenha experimentado,
ele próprio, uma experiência desse tipo, mas o poema é a narração de
uma dessas experiências místicas. É a partir de sua inserção numa
tradição altamente textualizada como a tradição (religiosa e cultural)
judaica, em que a irracionalidade da experiência mística muitas vezes
foi traduzida para a forma escrita, que isso se torna possível.
36

É preciso, em primeiro lugar, delinear uma experiência mística e


encontrar suas características no poema. A experiência mística “é por
sua própria natureza indistinta e inarticulada” e “ela não pode simples e
totalmente ser traduzida em imagens ou conceitos agudos, e muitas
vezes desafia qualquer tentativa – mesmo posteriormente – de supri-la
com um conteúdo positivo” (SCHOLEM, 2012, p. 18). Eis que, após
sentir um “movimento na alma” dá vazão as palavras, em um episódio
que remonta às cenas religiosas e que, ao mesmo tempo, é descrito de
forma fragmentária:

Trombetas soam.
Tochas como pássaros flamejantes.
Linhas as acompanham. Quadros de música.
Defronte a uma dessas palavras, que avançava
cavalgando usando uma coroa na qual reluziam
minhas lágrimas, devia ser a soberana, eu caí de
joelhos.

É significativo que a palavra soberana seja apenas descrita


como tal e que ela jamais seja nomeada. Pois nomeá-la a dotaria de um
significado fechado e isso é inadmissível: “a palavra absoluta é, como
tal, insignificativa, mas está prenhe de significado” (SCHOLEM, 2012,
p. 20).
Retorno, novamente, ao modo como as palavras transbordam
desde o narrador. Esse modo poderoso e irrefreável é fruto da
irracionalidade mística, bem como o já citado modo de organização do
texto. A prosa livre, na forma de um fluxo de consciência, vence a
rigidez da forma poética organizada com métrica e rima, destruindo os
moldes previamente concebidos, reorganizando-os. É assim que, para o
eu lírico, as palavras possibilitam a revelação e mantém-se como
autoridade, “na sua infinita capacidade de assumir novas formas”
(SCHOLEM, 2012, p. 21).
A experiência do eu lírico é, portanto, uma experiência mística.
Destruição e criação caminham lado a lado, e há uma revelação. Essa
revelação é profundamente órfica em seu significado:

– Eu quero sentir teu corpo mais uma vez!


– Não se pode aproximar, o vidro, o vidro...
37

– Não, a barreira logo vai desaparecer, eu vou


quebrar o vidro verde com a cabeça –
Depois do décimo-segundo golpe, o aquário
rebentou.
Onde estão os lábios, onde está a voz?
E os mortos, os mortos – eles morreram?
Ninguém. Defronte a mim – grama. E acima – um
galho de laranjeira ou as crianças brincando com
bolhas de sabão douradas.

O passado pode ser enxergado, através do poder das palavras, da


memória. Pode-se reconhecer lugares, pessoas e sentimentos.
Permanecerá, no entanto, sempre intocável, mas a barreira que separa o
presente do passado não é totalmente impermeável, permitindo o
diálogo ou a relação, pois não forma uma oposição dialética, para com o
presente e o futuro, mas relaciona-se com ele através de múltiplas linhas
de força, de múltiplas imagens.
A tentativa, no entanto, de tornar esse passado algo que pode ser
tocado, ou seja, a tentativa de coisificá-lo, apreendê-lo sem pensamento
e reflexão só faz com que se perca. Mais uma ve,z o poema traz um
alerta ao poeta, mostrando que o passado deve ser interpretado e
recriado, a relação com o passado deve ser dinâmica; uma relação
estática – ter o passado tal qual era, tangível em todos seus aspectos – o
destruiria, o afastaria.
Mais uma vez, a poética de Sutskever vai ao encontro das
proposições teóricas de Gershom Scholem (BIALE, 2004). assim como
a modernidade judaica era tributária direta dos movimentos místicos e
de certa irracionalidade. A poesia de Sutskever é tributária dessa
modernidade, é fruto de sua irracionalidade criativa, bem como das
tentativas modernas – e racionais – de lidar com ela, é sua continuadora
direta, ainda que, mais uma vez, subterrânea.
É como se aquilo que, durante os séculos XIX e início do século
XX tivesse vindo à tona, formando a modernidade judaica, fosse
assimilado agora por uma nova cultura. Por ser essa nova cultura, a
cultura israelense, uma cultura judaica – essa assimilação deu-se sem a
rejeição que pairava em torno da assimilação pelas culturas gentias. Era,
porém, tal como as culturas europeias da modernidade, racional e focada
na construção nacional. Ao mesmo tempo, na diáspora (em especial nos
38

EUA), a cultura judaica focou-se na resolução do trauma do khurbn e na


defesa contra o antissemitismo. Isso gera, intencionalmente ou não, um
ponto de ruptura com o período pré-guerra, em que os judeus na
diáspora constituam um povo sem nação, dotado de uma cultura com
alta carga de ‘irracionalidade’- uma ‘irracionalidade criativa’, nas
palavras de Scholem.
Mas isso acontece apenas no nível mais visível, o das narrativas
oficiais. Existe a contrapartida, na narrativa histórico e no modo de ver o
tempo que é criado através da poética de Sutskever, por exemplo, em
que essa modernidade continua sem um ponto de fratura evidente.
Por mais que sua poesia recupere e presentifique um mundo
perdido – a Polônia iídiche do entreguerras –, isso será feito de modo
crítico e antiutópico, isso não será feito de modo a reificar esse mundo e
as relações dele com a história. Não é por acaso que em 'Para a Polônia',
poema que leio no capítulo seguinte, ele se despeça do país de sua
juventude, despindo-o de idealização e o enxergando de modo crítico –
mas sem deixar de levar algo consigo, algo que, como se verá,
relaciona-se de modo íntimo com as palavras.
39

2. PARA A POLÔNIA

Tu, irmã mais velha da terra em que nasci!


Os ciganos andam de novo por aqui.
Outra vez em teus caminhos tão apagados
buscam cheiros de chuvas de tempos passados.
As cores mágicas, fixadas em meus sonhos
e teu céu, que uma vez bebi com olhos risonhos
tal qual a canção do pássaro das histórias.
O que foi que se passou? Na Polônia busco suas
memórias.
Numa silenciosa resposta, tu te calas
mas com olhos cintilantes tu me regalas
com amor primeiro. De Mickiewicz a língua
me recebe agreste. Seu esplendor míngua.
(SUTSKEVER, 1948).

Esses são os primeiros versos de tsu poyln (“Para a Polônia”),


poema em que Abraham Sutskever dá seu adeus à Polônia. É um poema
tão longo quanto complexo, em que sentimentos e pensamentos
aparentemente contraditórios se encontram lado a lado. Por um lado, o
poema aponta para um profundo senso de irmandade entre os judeus e
os poloneses, admiração e apreço pelo país e sua história, e, sobretudo,
por sua literatura. Ao mesmo tempo, entretanto, tudo isso parece ter sido
traído não só com o que aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial,
mas principalmente com o tratamento dado aos judeus depois da guerra.
Desde que Kazimierz III, o Grande (1333-1370), garantiu
privilégios e proteção para os judeus que viessem fixar-se na Polônia, o
país existia no imaginário judaico como uma espécie de oásis, uma ilha
de segurança em meio ao antissemitismo europeu. Isso atraiu tantos
judeus que, à época de Sutskever, Vilna (mais tarde capital da Lituânia)
era conhecida como a “Jerusalém da Europa”. Isso se devia não apenas
ao grande número de judeus que lá viviam (no início do século XX.
estima-se que entre um terço a metade da população de Vilna era judia),
mas também à força que a cultura judaica tinha em seu seio.
Foi justamente na “Jerusalém da Europa” que Sutskever
começou a participar dos círculos literários iídiches e publicou seus
primeiros livros. Tendo crescido na Sibéria e sendo educado em casa em
seus primeiros anos, o poeta desconhecia a existência de uma literatura
40

iídiche moderna e secular – tomando conhecimento dela no começo de


sua adolescência. Antes do khurbn, então, é fácil pensar que a Polônia
tinha qualquer coisa de idílica ou idealizada no imaginário do poeta.
Essa relação é reforçada pela sua intimidade com a poesia polonesa, que
admirava grande e, ao contrário de boa parte dos escritores iídiches do
período, explicitamente.
É óbvio que isso não significa que ele acreditasse piamente que
a Polônia era um lugar imaculado pelo preconceito. É provável que
signifique, isso sim, que, mesmo com os problemas, havia algo positivo
a ser tirado da convivência entre judeus e poloneses – em especial
quando a relação se dava a partir da poesia:

E há Norwid, cujos versos conheci rascantes


na taverna Fukier, agarrados à antiguidade
das paredes purpúreas – com eles me invade
desde esta messiânica noite a chama
que em sua homenagem arde e proclama.
Em cada pogrom esteve sempre ao meu lado
o poema em que o judeu de Varsóvia é
glorificado.

Ou seja, mais uma vez, a escrita assume um lugar central na


criação da realidade, ao menos a partir do ponto de vista de Sutskever –
em consonância com a tradição judaica. Se a Polônia podia ter seus
problemas e ser, muitas vezes, um lugar inóspito para os judeus,
justamente nas obras de alguns dos maiores poetas poloneses, aqueles
que gozam de um lugar de destaque no cânone, os judeus recebem
posição de destaque.
Depois da Segunda Guerra Mundial, quando foi prisioneiro no
gueto de Vilna e lutou como partisan nas florestas da Bielorrússia,
Abraham Sutskever viajou pela Europa e retornou à Polônia, à cidade de
Łodż (Vilna, agora, pertencia ao estado soviético da Lituânia). Durante
o breve período em que lá esteve, entre julho e setembro de 1946,
Sutskever tem a sensação de que aquele não era mais o lugar para um
poeta iídiche ou, ao menos, para si, tendo em vista que: “é impossível
escrever aqui, já que a nossos pés estão os fragmentos alquebrados
daquilo que um dia foi escrito” (SUTSKEVER apud COHEN, 2009, p.
161). De fato, naqueles meses do pós-guerra, apesar de tudo que
41

acontecera, reinava na Polônia um clima hostil aos judeus, cujo ponto


culminante foi um pogrom.
Esse poema, essa ode de despedida, é redundante das
experiências desse período – um período de mudanças extremamente
rápidas, em que praticamente todo o modo vida dos judeus europeus foi
destruído. Svetlana Boym (2007, p. 10) sugere que a nostalgia surja
como consequência inevitável da turbulência histórica. Nada mais
natural, portanto, que esse poema, assim como “Aquário verde”, esteja
embebido em nostalgia. Ela, no entanto, não se apresenta retrospectiva,
pois:

[…] ela pode também ser prospectiva. As


fantasias do passado, determinada pelas
necessidades do presente, têm um impacto direto
nas realidades do futuro. A consideração do futuro
nos faz assumir a responsabilidade por nossos
contos nostálgicos. (BOYM, 2007, p. 8).

A noção de um lar perdido, com o qual o indivíduo não pode


mais reconciliar-se, é o que impera na leitura do poema. O poema não é,
porém, uma idealização ou um desejo de retorno; é justamente a
percepção dessa impossibilidade que desencadeia o poema, uma espécie
de busca por um novo lar, para a qual é necessário, antes de mais nada,
despedir-se e reavaliar não somente o antigo lar, mas a própria relação
com ele e com o que se gostaria de acreditar a seu respeito.
Importante relembrar que aquilo que constituía um sistema
literário e cultural moderno em iídiche era, para todos os efeitos, um
sistema trilíngue – iídiche, hebraico e polonês coexistiam, nem sempre
num sistema organizado. Muitos dos autores judeus escreviam em mais
de uma dessas línguas e, quase sempre, liam o que se publicava em
todas elas (SHMERUK, 1989).
Essa relação, portanto, existia de longa data. E é justamente no
período entreguerras, época em que Sutskever debuta na literatura, que
ela se tornou mais complexa:

Por um lado, os escritores iídiches do período


demonstravam uma forte consciência de sua
diferença cultura e alienação social, conforme
42

eram confrontados com a ascensão do


nacionalismo polonês e suas derivações
antissemitas. Por outro lado, no entanto, seu
contato com a literatura polonesa era mais
acentuado – e mais consciente – do que fora para
seus predecessores; muitos deles buscavam
ativamente na história polonesa por motivos
através dos quais pudesse comunicar a
ambivalência de suas afiliações nacionais e
culturais. (CAMMY; FIGLEROWICZ, 2007, p.
427-428).

Sutskever foi possivelmente um dos autores que melhor


sintetizou essa relação. No período inicial de sua obra sua recusa em
escrever sobre temas especificamente judaicos era marcante, buscava
antes um modo de expressão universal de valores morais, éticos e
estéticos – ao que o jovem poeta encontrava eco justamente no
romantismo polonês, em especial nas obras dos poetas Cyprian Norwid8
e Juliusz Słowacki9.
A poesia de Norwid lhe era tão cara, a ponto de ter sido o único
poeta citado em Poemas (Lider, 1937), primeiro livro de Sutskever.
Havia nesse volume uma série de oito baladas dedicadas ao romântico
polonês. Com isso Sutskever, além de render uma homenagem ao
polonês, colocava-se no papel de seu herdeiro legítimo, e, por
consequência, de toda a cultura literária polonesa, incluindo um anseio
ao universal.
Isso não acontecia por mera afinidade literária ou de gosto. Esse
gesto apontava igualmente para o poder redentor que Sutskever
subscrevia à poesia: ele enxergava nessa proximidade literária a raiz de
uma universalidade da arte, capaz de superar toda e qualquer barreira

8 Cyprian Norwid (1821-1883), poeta, dramaturgo, pintor e escultor polonês


da segunda geração do romantismo. Entre seus poemas mais famosos,
encontram-se “Fortepian Szopena” (O piano de Chopin), “Moja piosnka”
[II] (Minha canção [II]) e “Bema pamięci żałobny-rapsod” (Uma Rapsódia
funeral em memória de Bem).
9 Juliusz Słowacki (1809-1949) outro poeta romântico, considerado o pai do
drama polonês. Junto com Zygmunt Krasyński e Adam Mickiewicz, é
considerado um dos “três bardos” da literatura polonesa.
43

nacional, mesmo que essa arte pudesse servir como uma afirmação de
uma cultura nacional. Numa dessas baladas, escreve:

Deve haver uma luz que todos os homens podem


sentir, ver
um amor, que é beleza; uma beleza, que é amor
só então surgirá uma irmandade, que nunca houve
antes
todos os seres unidos em luminosa celebração

Declarava-se um poeta judeu, um poeta iídiche devido à escolha


do idioma e devido às inúmeras imagens utilizadas em seus poemas.
Acima de tudo, porém, era um poeta, um artista. É possível perceber,
nesse ideal artístico do poeta, certa proximidade àquilo que Édouard
Glissant (2006, p. 92) denomina de échos-monde – “unidades cujas
variações interdependentes unem-se para uma totalidade interativa.
Essas unidades não são modelos, mas échos-monde reveladores. O
pensamento cria música”.
Para Sutskever, a função da arte é a de instituir uma totalidade,
mas nunca a partir somente de si, senão a partir da relação entre as
partes. Em sua obra, a tradição artística judaica e a polonesa confluem.
Duas tradições que, postas lado a lado, não se excluem, mas, ao
contrário, legitimam e incorporam a relação que mantém.
Em “Para a Polônia”, apesar do caráter de despedida, de
justificativa para um autoexílio, Sutskever afirma sua obra tão polonesa
quanto iídiche. Escreve em iídiche e sob o ponto de vista de um poeta
iídiche, partisan e testemunha do khurbn. Suas perdas não foram
meramente as acarretadas pela guerra; elas seriam de uma natureza
completamente diferente caso ele não fosse judeu ou mesmo, caso não
escrevesse em iídiche.
Escreve, no entanto, a partir da Polônia, tanto como espaço físico
quanto imaginário. Leu poetas poloneses, admirou-os, traduziu-os,
deixou-se influenciar por eles. Ao mesmo tempo, porém, indica que essa
relação, agora abalada e contradita pela história, está ameaçada. Por
isso, trata-se de uma ode triste e paradoxal, é a declaração de um amor
tornado impossível pela história e a declaração do abandono desse amor
– é a construção de um processo de superação da perda.
Esse amor e essa impossibilidade permeiam o poema e são
44

retratados de diversas maneiras. Um primeiro aspecto é o da forma. O


poema é bastante longo, são quase 300 versos, e é dividido em cinco
partes. Apesar disso, a regularidade métrica e rítmica é absoluta; com
exceção dos refrões ao fim de cada parte, os versos são todos
dodecassílabos, formados sempre por dois hemistíquios, cada um deles
compostos por dois pés anfíbracos:

du| el|te|re| shwe|ster|| fun| heym|erd| fun|


may|ner
es| vo|glt| oyf| s'nay| dayn|| far|benkter|
tsi|gay|ner.
oyf| s'nay| i|ber| day|ne|| far|lo|she|ne| ve|gn
un| zukh| dem| ge|rukh| fun|| ge|ve|ze|nem|
re|gn.
di| far|bn| far|klept| un|| far|lebt| in| mayn|
kho|lem
dayn| him|l|, vos| ikh| hob|| ge|trun|ken| a|
mol| im
tsu|za|men| mit| fey|gl||-ge|zang| un| le|gen|de.

A utilização de uma forma fixa e rigorosa, característica


recorrente na obra do poeta, pode aqui ser encarada busca por ordem em
meio à destruição, é uma tentativa de ordenação da terra arrasada. Ao
mesmo tempo, no entanto, é importante lembrar que esse verso é
bastante comum na poesia polonesa, em especial em autores românticos
e nos integrantes do movimento Młoda Polska (Jovem Polônia)10,
grandes influências sobre Sutskever – a despedida é feita seguindo as
formas aprendidas com aquele de quem se despede.
Inclusive a forma que Sutskever utiliza em “Para a Polônia” é
muito próxima da que Bolesław Leśmian11 utiliza no poema

10 Młoda Polska, em português “Jovem Polônia”, foi um movimento na arte


polonesa que durou aproximadamente entre 1890 e 1918. Promovia
correntes do decadentismo, neorromantismo, simbolismo, impressionismo e
art nouveau.
11 Bolesław Leśmian (1877-1937) foi um dos mais importantes poetas
poloneses do século XX. Suas obras frequentemente faziam referência ao
folclore e a tradição polonesa. Sustentava a ideia de que poetas são
45

“Mateuzinho” (Matysek), com anfíbraco dodecassílabos dominando o


corpo do poema, apenas com um refrão destoante (decassílabo). A rima
também é semelhante à observada em Matysek, com rimas femininas
emparelhadas:

Grał w| le|sie| Ma|ty|sek|| na |skrzyp|kach| z


je|dli|ny
I| wy|grał|, i| wy|grał|| – płacz| zmar|łej|
dziew|czy|ny.
O,| pła|czu| bez|brzeż|ny,|| dla|cze|go| tak|
pła|czesz?
Dla|cze|go w| pnie| drzew|ne|| jak| we| drzwi|
ko|ła|czesz?
Za|pom|nij| o| klęs|ce||, a| świat| się| od|mie|ni

I| ro|są| spłyń w| zie|leń||, i| spocz|nij w|
zie|le|ni!12

A narrativa do poema, no entanto, é menos organizada do que sua


forma. São cinco partes, cheias de idas e vindas através da história
polonesa e da relação do eu lírico com o país, de forma muitas vezes
redundante. O rigor da forma não consegue ser aplicado ao conteúdo,
apontando para a impossibilidade de uma ordenação completa desse
transbordamento emocional. Isso aponta para o paradoxo de sua poética,
que, ao mesmo tempo que resgata e resguarda o passado, reconhece que
tudo pode acabar como as bolhas de sabão, de modo tão inesperado
como instantâneo.
Na primeira parte, Sutskever evoca poetas poloneses dos quais é
tributário: Adam Mickiewicz, Cyprian Norwid, Juliusz Słowacki,
Bolesław Leśmian e Julian Tuwim – Tuwim, de origem judaica, é

membros de uma humanidade primitiva, sendo as únicas pessoas capazes de


viver, ao mesmo tempo, com a natureza e com a cultura.
12 Tradução do polonês, de minha autoria: “Mateuzinho na floresta tocava seu
violino de abeto/ tocava tão bem – e a menina morta chorando./ Ai, que
choro sem limites, por que é que choras?/ Por que é que bates no tronco,
como se fossem árvores?/ Esquece essa derrota, e o mundo se transforma -/
e orvalhará o verde, descansará no verde.”
46

chamado de Julian ben Tuwim, forma hebraicizada (que, literalmente,


significa Julian filho de Tuwim). Cita, de forma direta, o “O senhor
Tadeu” (Pan Tadeusz), de Mickiewicz, e “Anhielli” (Anhielli,
antropônimo do herói), de Słowacki: “A floresta que deste solo brotou,/
e o povo cuja vida ele estudou/ se curvam de saudade de Jankiel e a
banda,/ minha paixão pelo autor de 'Anhelli' não é branda”.
Ambas as citações trabalham no sentido de unir judeus e
poloneses sob uma tradição compartilhada. Pan Tadeusz é uma espécie
de épico nacional polonês, no qual aparece a figura do cimbalista e
estalajadeiro, Jankiel. Essa é talvez uma das representações mais
positivas que os judeus tiveram na literatura polonesa e, certamente, a
primeira vez que um judeu aparece sob essa luz.
Jankiel não corresponde, de maneira alguma, a um ser humano
real, sendo antes uma personagem altamente simbólica. De dicção
elevada e tom profético, não é uma personagem mundana como as
outras, sendo uma espécie de porta-voz do próprio poeta. A única outra
personagem de Pan Tadeusz a aparecer no mesmo patamar moral de
Jankiel é o general Jan Henryk Dąbrowski, lendário militar polonês que
lutou pela independência do país, durante o levante de Kościuszko13.
Jankiel chega a apresentar-se, junto com sua banda, no casamento de
Dąbrowski, a quem oferece sua “benção judia”, comparando judeus e
poloneses, aproximando a espera dos poloneses pela libertação de sua
nação com a espera dos judeus pelo messias.
Por sua vez, o poema “Anhelli” foi escrito por Slowacki no
exílio, sendo uma espécie de resposta pessimista a “O livro da nação e
da peregrinação polonesa” (Księgi narodu polskiego i pielgrzymstwa
polskiego), de Mickiewicz. O livro de Mickiewicz tem estilo bíblico e é
uma espécie de evangelho apócrifo que proclama o messianismo
polonês e a independência vindoura da Polônia. Utilizando a mesma
espécie de discurso pseudobíblico, Slowacki narra uma história passada
na Sibéria – local para onde muitos poloneses eram exilados e onde
Sutskver passou parte de sua infância. A narrativa fala do herói Anhelli,
que percorre uma jornada que bem poderia ser heroica e libertadora para
seu país, mas que fracassa: o guia de Anhelli é morto, e ele jamais

13 O levante de Kościuszko foi uma revolta polonesa contra o domínio do


Império Russo, em 1794, liderada pelo general Tadeusz Kościuszko, que
lutou, também, na Revolução Americana, ao lado de George Washington.
47

desperta para qualquer chamado nobre.


Ao citar esses poemas Sutskever aponta para um passado comum
– o maior dos poetas poloneses, Mickiewicz, irmanava os dois povos.
Mas o judeu de Mickiewicz não está mais naquela terra, não poderia
mais estar. A seguir, citando “Anhelli”, aponta para a falibilidade desses
grandiosos projetos de salvação. Igualmente, o mundo que surgira e que
Sutskever habitara, brevemente, no período entre-guerras fora destruído.
A esperança de conciliação e convivência pacífica falhara.
Pouco depois, há um trecho sobre Cyprian Norwid, em que
Sutskever menciona a taverna Fukier – uma taverna na praça central da
cidade de Varsóvia, que Norwid costumava frequentar – e, através de
uma menção aos “judeus de Varsóvia”, o poema “Judeus poloneses”
(Żydowie polscy):

E há Norwid, cujos versos conheci rascantes


na taverna Fukier, agarrados à antiguidade
das paredes purpúreas – com eles me invade
desde esta messiânica noite a chama
que em sua homenagem arde e proclama.
Em cada pogrom esteve sempre ao meu lado
o poema em que o judeu de Varsóvia é
glorificado.

O poema de Norwid, significativamente, celebra os judeus


massacrados ao lado dos poloneses em Varsóvia em 1861, quando
sucederam demonstrações contra a dominação russa na praça do castelo
da cidade. Judeus e poloneses, no poema, aparecem semelhantes a
nações irmanadas pela perda de sua pátria, ligadas pelo patriotismo e
pela capacidade para o heroísmo. São justamente essas características
comuns à literatura de Norwid, aquelas que animam o espírito do eu
lírico de Sutskever apesar dos pogroms.
Nesse aspecto a poesia adquire o caráter supranacional e
espiritual que tanto Sutskever quanto Norwid lhe conferem. Importante
destacar que Sutskever, o judeu confrontado com a violência levada a
cabo pelos poloneses (os pogroms, os casos de colaboracionismo com os
alemães, a satisfação ante o extermínio dos judeus ou a derrota do
Levante do Gueto de Varsóvia, etc.), sorve a força necessária à sua
sobrevivência justamente da leitura da poesia polonesa: “Teus poetas,
48

até hoje não deixo de admirar;/ Pan Tadeusz não me abandona à


tristeza/ os versos impedem que eu seja reles presa”.
Os próximos poetas a serem citados por Sutskever no poema
"Para a Polônia" são Bolesław Leśmian e Julian Tuwim. Ambos
pertencem a gerações mais próximas à de Sutskever, ou seja, ainda
viviam quando Sutskever nasceu. Além disso, ambos tinham
ascendência judaica, não obstante empregassem o polonês como idioma
de escrita e se identificassem nacionalmente como poloneses. Não
consideravam o povo judeu como constituintes de uma nação separada.
Tampouco tratavam temas judaicos em suas respectivas obras. Tuwim,
no entanto, é apresentado no poema como “Julian ben Tuwim”, uma
versão hebraicizada, judaizante do nome. Isso, quiçá, já aponte na
direção de uma intenção de transferência da cultura judaica da Polônia
para um novo espaço, plenamente judaico – algo que se concretizará no
final do poema. É, talvez, um primeiro indício do sionismo que se
manifestaria na poesia de Sutskever em décadas seguintes, e também um
primeiro movimento no sentido de resistência, de salvamento da cultura
judaica da Polônia do apagamento.
Mickiewicz volta a ser citado, agora como “o teu profeta” (da
Polônia) que, “no exílio” “forjou legiões/ de judeus com a bandeira
polonesa?” Mickiewicz não somente apoiava a amizade entre judeus e
poloneses, como via a libertação da Polônia dependente dessa aliança.
Em seus últimos anos, passados em Constantinopla, ele inclusive tentou
formar um exército de judeus para lutar pela independência polonesa. A
visão de Mickiewicz, porém, falhou, e o eu lírico indaga os motivos
desse fracasso, antes de lamentar com o refrão de Słowacki: Smutno mi,
Boże! (“Deus, estou triste!”).
Há, aqui, o momento imediatamente posterior ao teste de
realidade. Sutskever rememorou as razões de seu amor pela Polônia e
acabou percebendo, então o que é que fora perdido. É apenas a partir
deste motivo que ele torna-se capaz de superar a perda, de afastar-se de
certa nostalgia restauradora e da melancolia – que, aliás, encontram-se
intimamente relacionadas em sua recusa de seguir em frente. Essa
“superação”, no entanto, não é completa, não se efetiva verdadeiramente
num nível emocional – apenas em um âmbito racional: assim como o
contraste entre os alfabetos iídiche e polonês (presente no refrão,
repetido em todas as quatro partes do poema, exceto e mui
49

significativamente na última) é claro, também é uma incompatibilidade


entre o judeu e o gentio. Isso, porém, não torna a separação menos
dolorosa, menos indesejada.
Na segunda parte do poema, ele distancia-se do campo pessoal,
que se materializara na primeira parte através de sua apreciação e sua
ligação com os poetas poloneses, e mostra a questão da convivência
através do prisma mais universal, da história. Começa invocando o
Vístula e a história da Polônia como refúgio para os judeus na Europa,
lembrando a amizade e a convivência entre os dois povos. Aponta, aqui,
para a Polônia como o local idealizado do idílio judaico numa Europa
que os perseguia e oprimia. Esse é o estatuto mítico do país entre os
judeus asquenazitas, para os quais o nome do país viria do hebraico,
significando “descanse aqui” (Po-lin).
Conquanto esse trecho do poema venha carregado dessa
atmosfera de nostalgia, em que persevera o desejo de uma Polônia, lar
imaginário e utópico – no qual os judeus não eram perseguidos pelos
poloneses, no qual as diversas violências antissemíticas não tinham
lugar; mas, ao contrário, um lugar no qual os judeus encontravam
refúgio da violência, a Polônia, uma espécie de nova terra prometida –,
concorre aqui a realidade dos pogroms e do isolamento cultural. O
utópico e o distópico encontram-se lado a lado, ou melhor, ocupam um
único espaço, e, mais importante, ao mesmo tempo.
Mas, é a relação social e cultural entre os dois povos o que
prepondera. Apesar de, ou talvez justamente por causa de, todas as
tensões presentes nessa convivência, algo de judaico permeou as vidas
polonesas e a Polônia tornou-se quase tão judaica quanto polonesa (e
vice-versa): sem que se apercebam as avós polonesas acendem as velas
do shabes, sem que se apercebam as canções iídiches e polonesas se
misturam.
A história, porém, faz com que a impiedade pareça triunfar. Nem
os poetas, nem as paisagens e nem a história conjunta pode salvaguardar
os judeus e, no fim, tudo o que o poeta pode fazer é lançar mais uma vez
a melancólica pergunta a respeito do que aconteceu com essa relação, e
com as esperanças que tinha, antes de responder com o mesmo refrão
que termina a primeira parte do poema – o poema se desenvolve num
processo de uma nostalgia reflexiva:
50

Eu acreditava: com a guerra acabada


a treva da intolerância dissipada.
Uma rosa de mil pétalas, dos fragmentos
outra vez vai florescer, num fresco advento.
O leão judaico e tua águia – os vizinhos
forjados na menorá de cobre unidos,
certamente no futuro brilharão
juntos sobre os tristes mortos sob o chão.
Nós reuniremos vontade com vontade,
pedra por pedra renascerá a cidade
e nossa dor o Vístula curará.
Uma janela, qual asa, ruflará.
Logo verá a luz uma nova geração.
Pode haver tal esperança em meu coração?
O que foi que aconteceu com a fraternidade?
Smuto mi, Boże!

Na terceira parte do poema, apresentam-se os acontecimentos da


Segunda Guerra Mundial. A Alemanha invadiu a Polônia, em primeiro
lugar, mas a Polônia não se posicionou ao lado dos judeus, de seus
judeus poloneses, como eles gostariam (e, em muitos casos,
acreditavam) que acontecesse:

Eu sei, não és culpada, as odiosas hordas


que te atacaram, disso ninguém discorda.
Por tua velha nêmesis foste ofendida -
lutaste e a teus cidadãos deste guarida
em Westerplatte, em Kutno. Que importa
se as casas têm a mezuzá na porta?
Ou na parede a cruz? Não pode ser assim!
Eles tombaram, a tua águia se orgulha!
Mas tão logo eles chegaram, foste pulha -
das vinhas e das ruas tiraste os judeus
compraste liberdade com sangue hebreu
alimentando as fogueiras com azeite.

O eu lírico assume o papel múltiplo de acusador e defensor, não


de indivíduos isolados, mas do povo polonês. Constitui-se uma espécie
de tribunal. É a poesia a arma retórica ao exortar os justos:
51

O pastor que a pequena Sarah escondia,


a filha dos Royznvald, que amoras comia
sob as estrelas quando saia do buraco,
ouvia ao longe ainda o pastor assobiar, fraco –
tentava lhe dar um lar mesmo no inferno
(hoje ela já lhe escreveu, em tom terno).
O virtuoso zelador num sótão enfiava
um miniam, a Gestapo não os achava.
A freira Amália, um coração singelo,
enviou ao gueto o presente mais belo:
um saco de pólvora. O herói camponês
morto à entrada da vila pelo que fez
pende o corpo co'a placa: ajudou um judeu.
Nosso honrado Watsek, o que escondeu
no canil em que era um apanhador,
três meninos. Sem titubear, mas com temor.
Por detrás dos cachorros capturados,
os judeuzinhos foram escamoteados.
Cada um dos heróis, dos justos, dos virtuosos
cujos nomes e histórias não são famosos
os guardo na mente, e rezo em seu proveito:
pros vivos a felicidade dê seu jeito;
e para os santos mártires dessa terra
o jardim do Éden é o que lhes espera!

A defesa não se limita a meramente citar os atos desses poloneses


heroicos, que ajudaram os judeus a escapar do massacre, mas traz as
vozes dos sobreviventes para mostrar sua efetividade. Mostra, além
disso, que nem sempre esses indivíduos obtiveram sucesso – a única
resposta que a freira obteve foi o Levante, fracassado, e ao camponês
apenas a placa restou. Evoca, através da menção aos salvadores sem
nome, o fato de que atos pequeninos, muitas vezes não memoráveis,
eram já heroicos sob tais circunstâncias. A defesa coroa-se com o desejo
da felicidade aos vivos e o Éden aos mortos – um argumento filosófico e
teológico a favor deles.
Há, também, a acusação. Para isso um único exemplo basta – a
satisfação ao ver o gueto queimando. Soma-se a isso a imputação de
uma falência ética dos poloneses após a Guerra, por conta de suas
atitudes para com os judeus, depois de tudo o que acontecera:
52

Se pelos heróis tens um amor gritante,


guardas na memória o incêndio de Varsóvia?
O que foi que aprendeste com esta história?
Smutno mi, boże!

A quarta parte narra justamente essas atitudes, apontando para


uma conclusão negativa – a de que a tentativa de convivência, pelo
menos como fora até então, naufragara. As tentativas de civilidade
carregavam em si o germe da barbárie. É uma espécie de justificativa
para o que havia sido dito no fim da parte anterior:

Como te abençoar? Assisti furioso


os teus pogroms contra crianças e idosos.
Eu vi tua turba com pedras e pauladas
na rua judia -minha gente massacrada.
Depois ainda vi teus filhos reunidos
mudo séquito de estandartes sanguíneos
do longo rito funeral, lento, novo.

Se há aqui a percepção e o sublinhar das violências cometidas,


isso não é o suficiente para eliminar toda e qualquer ambiguidade e
potencialidade. Faz-se necessária, no entanto, uma mudança na forma de
perceber o tempo judaico na Polônia. É esse o momento em que surge,
efetivamente, um esforço nostálgico prospectivo, uma nostalgia
permeada de reflexão. Ao mesmo tempo que, otimista, percebe um
futuro judaico, sente a dor da impossibilidade de restauração da
“Jerusalém da Europa”, da existência desse futuro naquele que, até
então, fora seu lar:

Como uma pá de terra é a verdade


cai num túmulo, cobre-me com saudade,
enquanto isso, um violino se lamuria.
E mais da dor e profunda agonia
de ver como o Sol é purificado
meu amigo, teus crimes são minorados -
corrói-me a gasta mudez da desgraça
que depois da guerra cresce, sem ameaça,
confortável por debaixo do teu teto
profana a Polônia, peçonhento inseto.
53

E esses são versos difíceis de compor


teu futuro – não há dúvida a se impor
qualquer o destino, não há esperança
que o passado torne em bem-aventurança.

Essa percepção nasce justamente da realidade, da análise dos


fatos: quiçá, agora, o eu lírico mostre ao poeta a ingenuidade de suas
crenças românticas anteriores, derivadas de suas leituras de Norwid e
Mickiewicz. Enterra-se, assim, a saudade da Polônia, ou melhor,
enterra-se assim a própria Polônia que o poeta conhecera. O que resta
não é o país, não é o mundo que Sutskever conhecera antes da guerra, é
perdido assim qualquer sentido na tentativa de restauração: o pogrom
mostra que essa é uma possibilidade que já não há. Aqui, cristalizam-se
as linhas escritas por Sutskever a Cohen. Mas, é a narrativa dessa
impossibilidade a maior força para o enfrentamento do trauma gerado
por ela própria.
Isso, no entanto, não significa que o passado será simplesmente
apagado ou esquecido e, muito menos reificado. O passado, como o
poeta ressalta no início da quinta parte do poema, deve ser lembrado,
mesmo que aquilo que outrora fora a “Jerusalém da Europa” – agora um
enorme cemitério – deva ser abandonado:

Que tristeza, meu Deus! Como abandonar


o Vale de Lágrimas, uma tumba, um lar?
Como fazer do vazio, um monumento
que alcance os netos de meus netos, seu tempo?
O que fazer, o passado revelado
ao amanhã? Os ecos serão capturados
das orações destruídas? Como beber do odre
no qual os mortos se saciaram? [...]

O eu lírico se pergunta como manter essa memória, como manter-


se ligado aos mortos ao mesmo tempo em que é preciso abandoná-los.
Ele mesmo responde: “[...] Dou nomes/ tentando marcar os túmulos sem
fim/ com poemas”, indicando que a poesia é sua ferramenta nessa
empreitada, do mesmo modo que antes fora sua arma e sua defesa.
Isso significa que, no universo poético de Sutskever, abandonar a
Polônia se faz possível justamente porque é possível escrever a respeito
54

dela. Não se trata pura e simplesmente de um double-blind entre o


lembrar e o esquecer o khurbn, mas da necessidade imperativa de dar
continuidade à história sem, no entanto, deixar que o passado seja
perdido. Não são apenas as mortes que deseja lembrar, mas os nomes
dos mortos. Ele busca elevar sua voz acima do trauma, acima da
nostalgia pura e simples, para que possa ressignificar o passado, do
mesmo modo que o místico dota os símbolos tradicionais de novos
significados. Ao fazê-lo, reconstrói também o presente e o futuro.
Por um lado, a ruptura efetivou-se, o que era melancolia e
nostalgia efetiva-se num luto levado a cabo em que a libido se desliga
do objeto que foi perdido. Os judeus sobreviventes, o poeta entre eles,
deixaram o país, emigraram para vários lugares do mundo, em especial
para os EUA e para Israel. A Polônia do pós-guerra não terá, jamais, a
vibrante cultura judaica que tinha antes. O iídiche e o hebraico se
tornariam cada vez mais raros nela.
Mas, ao mesmo tempo, a Polônia não deixaria, porém, jamais de
fazer parte do imaginário e da identidade dos judeus asquenazi. Essa
persistência da Polônia se dá de forma bastante paradoxal: ao mesmo
tempo, a terra da morte, o sítio dos campos de concentração e das
execuções em massa e a terra da vida, onde os judeus floresceram em
segurança durante séculos e onde boa parte da cultura judaica asquenazi
se originara. Ocupa, ao mesmo tempo, o lugar do abatedouro e do
paraíso perdido.
Era, ao mesmo tempo, Jerusalém e o Egito. Assim como, no livro
bíblico do Êxodo, Moisés carregou os ossos de José através do deserto,
o eu lírico do poema de Sutskever carrega os ossos – na verdade, todo o
túmulo – de Perets, um dos poucos monumentos judaicos de Varsóvia a
saírem ilesos da ocupação alemã durante a Segunda Guerra Mundial.
E é justamente essa relação dúbia que persiste na poesia de
Sutskever, já a partir daqui. Por mais que assuma, como será visto no
próximo capítulo, uma forma particular de sionismo, nem o Estado de
Israel e nem a Polônia pós-guerra são seu lar. Ele é a Polônia do
entreguerras, a Vilna que chegou a ser considerada a Jerusalém da
Europa, coração da yidishland, agora perdida para sempre, exceto nas
reminiscências do poeta. Seu lar não é algo físico, não encontra-se no
espaço, mas no tempo. É antes um modo de perceber e relacionar-se
com o tempo (e, consequentemente, com o espaço) e que é construído
55

não mais a partir da realidade como tal, mas a partir das palavras.
É a partir dessa relação deslocada, paradoxal, que funda-se o que
chamei de dortkayt (lá-ismo), a relação íntima com esse lugar diaspórico
e imaginário que se encontra distante não apenas no espaço, mas
também no tempo. Apesar de tudo, Sutskever jamais dá um verdadeiro
adeus à Polônia, ele funda uma outra Polônia imaginária, nostálgica, que
carregou consigo para Israel.
Se o doikayt valorizava as vidas dos judeus na diáspora, o
dortkayt não lhe faz oposição. Valida e valoriza as vidas judaicas da
diáspora, afirmando sua existência e seu lugar nas vidas judaicas mesmo
que a diáspora pertença a um mundo já em ruínas, feito de memórias.
Abre-se, também, a possibilidade para que um novo objeto ocupe
seu lugar. Isso se dará pela gradual adoção das paisagens de Israel na
poesia de Abraham Sutskever. Passará a existir uma dupla nostalgia, que
aponta para o passado e para o futuro. O ápice disso são os poemas
celebrando o deserto como local do renascimento, em especial o ciclo
“No deserto do Sinai”, que leio no capítulo a seguir.
56

3. NO DESERTO DO SINAI

O sionismo é um nacionalismo. Como tal, fundamenta-se sobre


uma série de premissas, e uma delas é a de uma ideia da fixação, do
enraizamento. Associada à existência de uma raiz única que abarque a
totalidade, está a ideia de poder. Disso surge uma dualidade entre
cultura e barbárie, ou seja, entre o que é próprio e o que pertence a um
outro (GLISSANT, 2005). Essa dualidade exclui de si o outro e tem por
consequência a reificação das identidades. A partir do momento que
categorias como o próprio e o outro tornam-se definidas e fechadas em
si mesmas, tornam-se coisas. Foi o que o sionismo fez, já, em seus
primórdios, no século XIX, antes ainda que tivesse aspirações concretas
a um território.
O que torna o sionismo, porém, “único entre movimentos
nacionais” é que “[...] pode-se dizer que foi concebido na linguagem”
(CHAVER, 2004, p. 2). Isso, segundo Rabkin (2010), deve-se à ênfase
da tradição judaica nas palavras, mais do que à inexistência de um
território ao qual definir como próprio.
Os ideólogos do sionismo clamavam o idioma hebraico como sua
herança e, no início do século XX, este deveria ser usado pra construir
um “novo homem hebreu”. Esse “novo homem” seria viril, produtivo e
moderno, em oposição ao “judeu da diáspora”, ainda cheio de costumes
obscuros e atrasados, fraco, submisso. E o iídiche, como um dos idiomas
desse “judeu da diáspora”, deveria também ser descartado.
O “descarte” e a desvalorização o iídiche obedecia, também, ao
imperativo de eliminar uma ameaça. Os pioneiros sionistas, ao
migrarem para a Palestina, a enxergavam como uma terra vazia de
cultura, convencidos de sua natural superioridade (RABKIN, 2010, p.
138) – haja vista que carregavam consigo uma cultura de matriz
europeia. O árabe, falado pelos judeus, árabes e cristãos que já estavam
na Palestina quando eles chegaram, no início do século XX, podia ser
ignorado. Era, muitas vezes, visto como um sinal de primitivismo, assim
como um obstáculo ao projeto cultural hegemônico, voltado ao ocidente
(HELMAN, 2014, p. 37). O iídiche, pese tudo o que a propaganda
sionista dizia a seu respeito, ainda era de origem europeia, além de ser o
idioma de parte substancial das massas de novos imigrantes, e, portanto,
poderia oferecer uma ameaça à hegemonia do hebraico. Com a criação
57

do Estado de Israel, isso acabou por ser traduzido no ordenamento


jurídico, pois as regulações israelenses:

[…] tornaram ilegal estabelecer um teatro iídiche,


publicar um jornal em idioma iídiche, abrir
escolas em iídiche, bem como outras instituições
iídiches. Considerações políticas e ideológicas
suplantavam quaisquer outras. O iídiche deveria
ser combatido de forma mais vigorosa do que
qualquer outra língua, pela simples razão de que
ameaçava a hegemonia do hebraico. (RABKIN,
2010, p. 139).

O iídiche acabou associado, ao mesmo tempo, com a vida da


diáspora, aquela vida judaica fracassada e vitimada no khurbn, e com
uma série de estereótipos antisemíticos. Associava-se intimamente com
os “seres humanos inferiores, que foram como cordeiros para o
abatedouro” (PORAT, 1990, p. 239).
Que um escritor, que um poeta iídiche permanecesse em Israel e,
ainda mais, que abraçasse e acolhesse o sionismo parece surpreendente.
Que um poeta como Sutskever, antes imbuído de ideais de
universalidade e de apreço à tradição poética como algo cosmopolita,
não apenas judaico, o faça é quase contraditório.
Mas, foi exatamente isso o que aconteceu, e o objetivo neste
capítulo é justamente apontar que essa contradição é apenas aparente e
que a assimilação de uma temática sionista à poética de Sutskever, antes
de corroborar a reificação das vidas judaicas da diáspora, é uma forma
de defender essas vidas.
Os dois capítulos anteriores discorrem a respeito de poemas em
que o objeto é, de alguma forma, a diáspora. Em “Aquário verde”, há
um rememorar místico do mundo que existia antes do khurbn,
resultando na percepção de destruição dessa vida, mas, ao mesmo
tempo, da persistência dela através das palavras. Já em “Para a Polônia”,
o tom é mais amargo, tanto que se chegou a afirmar que nesse poema
“ele repudiou o mito da simbiose cultural polono-judaica que ele ajudara
a alimentar” (CAMMY, 2004, p. 240). No entanto, por mais que o
poema tenha esse teor de despedida, a crença da universalidade da
poesia se mantém e, junto com os restos mortais de Perets, o eu lírico
58

não carrega apenas a cultura judaica, mas também a polonesa – e isso


lhe serviria como matéria-prima não para mera recriação do passado,
mas para a reflexão criativa a respeito deste.
O presente capítulo apresenta, então, uma espécie de contraponto
a eles. Nos dez poemas que compõem o ciclo “in midbor sinay” (“No
deserto do Sinai”), bem como em outros poemas do período, a vocação
de Sutskever para a defesa da cultura iídiche, da cultura judaica da
diáspora, é confirmada – ao mesmo tempo, essa cultura retorna ao local
de sua origem mítica.
Em primeiro lugar, é preciso entender que a narrativa sionista,
como já dito, combatia a vida da diáspora como indigna e como
atrasada. Com a consolidação de Israel como um Estado Nacional e,
mais ainda, como o Estado Nacional Judaico, essa tônica é enfatizada. A
historiografia sionista ganha força e profissionaliza-se.
Isso mostra-se problemático. Problemático no sentido de que essa
historiografia “subscreve a uma combinação impossível de
aproximações positivistas e ideológicas à história: os fatos, considerados
como podendo ser encontrados exclusivamente em arquivos políticos,
são tratados como a base para validar a narrativa ideológica sionista”
(PAPPE, 1995, p. 67). Foi, de fato, uma historiografia que pode ser
considerada bastante parcial, sendo alvo de críticas a partir do final dos
anos 1970. Seus pesquisadores, afirma Pappe (1995), eram
particularmente atraídos pelo conceito de E. H. Carr da “história dos
vitoriosos”, ignorando, porém, os apelos de Carr à objetividade.
Isso geraria algo que, hoje, talvez nos pareça contraditório, mas
as primeiras décadas depois da Segunda Guerra Mundial, durante os
primeiros anos do Estado de Israel, foram:

[…] um período durante o qual a memória do


Holocausto foi suprimida na consciência nacional
israelense. Clamou-se que, durante esse período, o
Holocausto não teve um papel mais do que
marginal na formação da identidade nacional
israelense, que ele nunca esteve no centro do
discurso público, que não era internalizado pelo
sistema educacional. As pessoas não queriam
ouvir sobre o Holocausto. A luta que precedeu a
fundação do Estado e, depois, a Guerra da
59

Independência, suprimiram o choque do


Holocausto e o impacto que teve. Não havia
espaço no novo e heroico estado para exibições de
fraqueza e humilhação. (SHAPIRA, 1998, p.40).

Desta forma, não apenas o khurbn, mas tudo que se associasse a


ele – como o iídiche e toda a vida judaica da diáspora – era deixado em
segundo plano, passava por um processo de apagamento, de reificação:
naturalizados como pertencentes a um passado já esquecido e
abandonado, que nada ou pouco teria a ver com a vida do “novo homem
israelense”. Narrativas do trauma, narrativas da memória não deveriam
ter lugar ou, então, deveriam ter um lugar meramente marginal.
Sutskever, no entanto, tentaria conciliar as duas coisas.
Continuaria a escrever sobre o que fora perdido mas, paulatinamente,
incorporaria Erets Isroel em sua cartografia poética, ainda que não sem
tensões. No volume intitulado Em carruagens flamejantes (In fayer
vogn, 1952), por exemplo, o êxtase do retorno dos judeus à sua terra
ancestral se alterna com a ansiedade da separação e medo do
esquecimento do que havia ocorrido na Europa – não apenas do khurbn,
mas do heroísmo dos que a enfrentaram. É esse volume, por exemplo,
que integra o poema intitulado “Iídiche” (Yidish), no qual pergunta
carregado de ironia e desafio, se:

É preciso que eu plante minha língua


e espere até que se transforme
nas amêndoas com passas
dos ancestrais?
que graciosa
piada
prega meu irmão de poesia, o de costeletas,
enquanto minha língua mãe se põe?

Lembra, em outro poema, que o passado não pode, jamais, ser


apagado, substituído por uma nova narrativa:

E vais pintar por sobre a imagem da rua judia,


com um pincel imerso em tua ensolarada, nova
paleta,-
saiba: as cores do presente vão descascar.
60

A imagem anterior com um machado irá te atacar


e então
ferir de tal modo, que o novo jamais irá se curar.

Ao mesmo tempo, porém, o volume contém uma série de poemas


em que a terra de Israel e, sobretudo, o deserto é exaltado como o lar
judaico. Lar ao qual agora os judeus retornam, depois de longo exílio,
retomando muito do que aquilo que tinham deixado para trás, desde os
tempos bíblicos. O ponto culminante dessa integração de Israel à poética
de Sutskever, se dará no poema “No deserto do Sinai” (In midbor sinay,
1956).
Em 29 de outubro de 1956, a escalada das tensões no conflito
árabe-israelense resultaria na segunda guerra entre Israel e Egito, a
Guerra do Sinai. As forças israelenses tomariam a península do Sinai e,
muito rapidamente, derrotariam os egípcios. Durante este conflito
Sutskever serviria como correspondente do exército israelense, e dessa
experiência redundariam os poemas de No deserto do Sinai (In midbor
sinay, 1957).
É a partir desse poema que os receios e reservas de Sutskever
com relação ao sionismo e ao Estado de Israel, seu temor do
apagamento parecem deixar de existir, ou, ao menos, diminuem em
grande medida. Em vez de dividir a poética de Sutskever e dois
momentos distintos, esse momento marca o ápice de sua maturidade
poética e do equilíbrio entre os diferentes compromissos éticos e
estéticos do poeta.
Pode-se afirmar, porém que, se em momentos como os de
“Aquário verde” e “Para a Polônia” sua poética constrói-se como
poética da relação, portanto rizomática, desterritorializada, uma poética
que aceite Israel e o sionismo de modo livre de dúvidas aponta para uma
direção simetricamente oposta – ligando-se a um território.
A ligação de Sutskever com o Oriente Médio, porém, não é uma
ligação nacionalista pura e simples e, ao invés de contradizer, o
sionismo de Sutskever, acaba por confirmar a universalidade de sua
poesia, reforça seu caráter diaspórico. Israel surge não a partir da criação
do Estado Nacional, mas como uma força que presentifica e une o
passado bíblico e a vida em Vilna. O deserto é, assim como a Polônia,
um lugar de memória, de saudade:
61

A lágrima, a saudade em minha face,


é velha como tu. É cria do deserto.
Ela é um elogio cuja honra nasce
ao ver outra ardendo em tua memória -
essa, que é granito reluzente.

Esta, porém, é uma saudade menos amarga do que aquela que


permearia poemas como os escritos no gueto ou 'Para a Polônia”. Não
que haja aqui uma nostalgia restauradora, que “sublinha nostos (lar) e
busca uma reconstrução transhistórica do lar perdido” (BOYM, 2005, p.
13), mas há justamente um sentimento de continuidade, que une
distintos passados, aquele vivido e aquele transmitido pela tradição, para
a criação de um presente satisfatório e imbuído de traços heroicos.
Se, à primeira vista, isso se insere perfeitamente na narrativa
sionista, que constrói seus mitos seculares a partir do passado bíblico, há
qualquer ruído quando Sutskever insiste em lembrar os mortos do
khurbn, em lembrar as aflições e perdas pelas quais os judeus há pouco
haviam passado:

No deserto do Sinai sua jovem nação se fará.


Teus mandamentos e tábuas de pedra, teus
registros
gravados com um dedo flamejante
pelos esqueletos dos guetos e de Treblinka!

O tempo todo, também, o poema lembra a origem diaspórica do


eu lírico (e do poeta). Isso obedece justamente ao imperativo de não
deixar que o passado caia em esquecimento, falando em diversos
momentos a respeito (e tornando-se parte) dos “filhos da diáspora”. E
não deixa, em momento algum, de olhar para Israel sem ter a sua vida na
Polônia como lente. Se, nos capítulos anteriores, escrevi que Sutskever
ressignificava o passado visando construir um futuro, este é o futuro que
constrói.
Ele deixa de temer ser assimilado e apagado para ser um
assimilador: é o poeta iídiche que assimila seu novo lar, e não o
contrário. Metaforicamente, não se deixa traduzir ao hebraico, mas
traduz Israel para o iídiche, criando uma continuidade para a história dos
judeus europeus. Isso se dá através de dois eixos principais: o da
62

conciliação de diferentes tempos e o da absorção das paisagens do


deserto, resultando na elaboração de uma cartografia poética e
emocional que passa, necessariamente, por uma intersecção com a
tradição.
Assim como os sionistas viam no hebraico sua herança maior,
Sutskever encontra na tradição judaica, na forma da bíblia e do talmude
seu elo com a terra na qual se encontra, o único que lhe permite dizer
que está “retornando”. Ao mesmo tempo que retorna ao misticismo
panteísta de sua juventude, colorindo e ressignificando as paisagens
naturais, Sutskever adota o misticismo religioso, criando um texto
repleto de camadas – em que muitas delas aludem justamente à tradição
religiosa erudita do judaísmo.
Isso surge já a partir da forma: são dez poemas, o traz à tona os
dez mandamentos recebidos por Moisés justamente no monte Sinai, de
doze estrofes cada, aludindo às Doze Tribos de Israel. Mas, está
presente, também, no conteúdo, como no exemplo, em que existem
menções a diversos trechos da bíblia, como ao Salmo 94 (Senhor da
Vingança) e às profecias de Ezequiel – a montanha de ossos:

Despertou no Sinai, Senhor da Vingança


quando ao teu cume elevaste
teu povo morto, a montanha de ossos-
uma montanha de lamentos, dos pombos
inocentes!
E clandestinamente aqueceu com vozes animadas
o sangue de crianças espirrado
as veias em teu granito e na pederneira
e revelaste tua segunda marca:
esmagados como brinquedos sob a sola -
esmagados no Sinai a morte e o medo.
E nos lábios brilham teus projéteis
enquanto permaneces ao lado de teus filhos.

Coexistem, no entanto, menções ao khurbn: quando a montanha


torna-se uma montanha de lamentos e as crianças mortas, os brinquedos
esmagados. Mas são, também, no Sinai esmagados a morte e o medo, e
o futuro judaico se abre com a coragem dos que, no momento, lutavam.
E essa luta, acima de tudo, era feita de heroísmo. Ali, no mesmo
lugar onde outrora ocorrera o matam toyre, a revelação da lei divina,
63

agora acontecia o matam gvuyre, a revelação da coragem:

Tire os sapatos e entre em formação


Tire os sapatos e deixe que a areia te limpe
Aqui é o momento da revelação da coragem
O silêncio é um abismo. Um abismo da saudade.

O mesmo poema termina evocando a esperança de que,


finalmente, os judeus possam parar de ser perseguidos e encontrar a paz:

Uma oração clama da mesma profundeza


que ela poderia no coração, ao som das cornetas,
lapidar-se num diamante sem diamante:
que possam tu e tua paz chegar de uma só vez.
Desde o monte Sinai sopra pra longe o ódio
Firma com teus filhos uma nova aliança
e torna verdes as areias vermelhas.

A fundação e as guerras pelas quais Israel passou não servem, na


poética de Sutskever, para apagar a vida judaica na diáspora, antes
passam a ser sua continuidade histórica. Os partisans de outrora agora
vão ao deserto lutar por seu novo país.
Um povo que foi perseguido e morto tem, em seus poemas, como
única opção de sobrevivência esse renascimento heroico. Renascer, no
entanto, não implica abandonar o passado, transformando-o em histórias
a serem repetidas sem nenhuma reflexão, mas, ao contrário, conciliá-lo e
integrá-lo com o presente.
Ao contrário do que aconteceu em “Para a Polônia”, no poema
“No deserto do Sinai” não há mais nenhuma tentativa de divórcio do
passado. A despedida da Polônia torna-se desimportante, deixa de ser
um aspecto central da vida, tanto individual quanto coletiva. A luta pela
continuidade é a tônica: desde os tempos bíblicos, da travessia do
deserto do Sinai até o khurbn e para além dela, na Israel renascida.
E o deserto apresenta-se como uma nova paisagem, como uma
nova geografia da poética de Sutskever. Junto com a Sibéria, com Vilna,
com o gueto as florestas polonesas, o deserto e os contornos do litoral
israelense passam a ser parte integrante de seus versos, como se vê na
segunda parte de “No deserto do Sinai”:
64

Ao lado de Sanafir, ilha de coral


a coroa estrelada defronte à baía de Salomão
Tua sombra no mar flutua, com o sol por beira
e rumoreja sobre eles, com uma própria demanda.
Tenho uma mão imersa no mar:
– Um estilhaço vem, a mão não ficará vazia
No Mar Vermelho, purpúreo séquito
derrama em meus dedos amor e liberdade.
E mais longe, mais longe ele me leva
até a amorosa fonte desse rumor
A Rainha de Sabá, com olhos de chama,
desvela o peito, vinda da abissínia.

Toda essa geografia será retomada várias vezes durante o poema,


num misto de uma geografia factual, com a geografia mítica da bíblia.
Dentre toda essa cartografia, é o deserto que ocupa um lugar central. E,
assim como fizera anteriormente com a Sibéria, dando-lhe luzes e cores
(em contraste à imagem da imensidão branca e estéril), o deserto de
Sutskever é colorido, luminoso.
Sutskever, com esses poemas, evoca um sionismo que diferia
daquele dominante – tanto na Israel dos anos 1950 quanto na de hoje.
Não negava a necessidade da existência do Estado de Israel e nem sua
centralidade na vida judaica, a jovem nação significava para ele um
porto seguro para os judeus, um lugar onde não seriam mais sujeitos às
agressões sofridas na Europa. Combatia, no entanto, o apagamento das
vidas da diáspora, ou sua condenação como fracas ou inválidas. E, sua
maior arma nesse processo era justamente a língua iídiche – que, em sua
visão, poderia conviver perfeitamente lado a lado com o hebraico.
Há aqui um ponto de tensão, no entanto: como poderia sua
poética, ao mesmo tempo, abraçar o sionismo – uma ideologia
nacionalista, marcada por um nomadismo em flecha e com pretensões
de poder sobre um território – e defender a pluralidade linguística, coisa
excluída de si pelo nacionalismo?
A poética de Sutskever em “No deserto do Sinai” é uma poética
da relação, de um poeta e um povo que foram, forçosamente,
“desenraizados”. O khurbn é, sem dúvida, a experiência definidora de
uma cultura iídiche na segunda metade do século XX: é em iídiche que
se expressam os sobreviventes e os mortos. Os sobreviventes que, no
65

fim, foram exilados e tiveram de se recriar. Os sobreviventes que, ao


contrário dos sabras, não acreditavam criar nenhuma força moderna. O
renascimento do povo judeu na poética de Sutskever não cria nenhum
“novo homem”, mas é feito pelo desenraizar dos partisans e dos
sobreviventes que tiveram que deixar a Europa, em busca de um novo
lar.
Édouard Glissant (2005, p. 08) escreve que “a relação não é feita
de coisas que são estrangeiras, mas de conhecimento compartilhado. A
experiência do abismo pode agora ser dita como o melhor elemento de
troca”. A experiência do abismo, no caso, é justamente o khurbn: é
através dos mortos, ou seja, através da memória que a relação pode
estabelecer-se e, efetivamente, se estabelece: com o exército israelense,
com o passado bíblico e com os judeus sabras.
Justamente por terem tido, em primeira mão, a experiência do
“abismo”, no entanto, a identidade dos sobreviventes não pode ser
contida totalmente na “raiz” sionista – ela existe em relação com essa
raiz, mas também com outras, como a poética de Sutskever
consistentemente demonstra em sua abertura.
66

EPÍLOGO

A poesia é, quase sempre, um vetor de perguntas. Mesmo que, na


maior parte do tempo, não haja um ponto de interrogação claro, os
questionamentos estão lá. Muitas vezes, a própria linguagem está em
questão. Em outras tantas, outros tipos de dúvidas se somam.
A poesia de Sutskever não é diferente. É a poesia de um
sobrevivente, de um “filho da diáspora” que precisa reencontrar seu
lugar no mundo. Reencontrar o lugar da própria poesia, pois a vida que
tinha terminou, de modo cruel, de modo brutal. É um sobrevivente que
se encontra sozinho, sem um interlocutor.
Conquanto a Alemanha Nazista tenha sido derrotada na guerra, os
campos e guetos liberados, os judeus europeus foram os grandes
perdedores. Sua memória, sua cultura, tornou-se, em grande parte, peça
de museu. Foram esquecidos e, quando lembrados, sua existência foi
posta à margem pelos próprios judeus, pelos próprios sobreviventes.
Em seu livro Becoming Israeli, Anat Helman nos traz uma triste
anedota a respeito do destino da língua iídiche e da cultura judaica de
modo geral. Um professor pergunta a uma menina de seis anos, numa
classe primária em Israel, nos anos 1950, se ela gostaria de viver nos
Estados Unidos. A resposta da menina é exemplar: “Não, pois eu não
quero ser uma nova imigrante e ter de falar iídiche. Eu sou sabra, minha
língua é o hebraico”.
A poesia de Sutskever, então, lança a pergunta: qual é o lugar do
iídiche depois do khurbn? Sobrevivemos realmente? Quem é o judeu
que vive a partir da segunda metade do século XX? Qual é o lugar dos
ideais judaicos de outrora em Israel? Qual é o lugar da diáspora em
Israel?
Não há uma resposta fácil para essas perguntas. Talvez nem haja
uma resposta que não seja na forma de outra pergunta. E isso não é um
problema. Muito pelo contrário: não existe nada de mais judaico do que
responder uma pergunta com outra.
Mas, acredito, após essa pesquisa, que a poesia de Sutskever
também é feita de respostas. Não respostas fechadas, absolutas, mas
respostas abertas, simbólicas. Antes revelações do que verdades
absolutas.
E, parece-me, ele responde duas grandes questões. Uma delas é o
67

triste poema de Bialik, a respeito da cidade da matança. A continuidade


que Sutskever dá às vidas da diáspora, ao mundo da yidishland é o
rugido leonino que ele proclama, em seu poema “Iídiche”. É a recusa da
morte de um povo assassinado. É a recusa da morte de uma língua.
Sutskever continuou escrevendo em iídiche até as portas do
século XX. Continuou lembrando seus mortos. Escreve, já idoso, a
respeito de seu pai. Escreve a respeito de sua mãe e da criança morta no
gueto de Vilna. Escreve sobre os partisans. Escreve sobre os
sobreviventes e sobre aquilo que nem “o mestre da Alemanha” e as
narrativas israelenses puderam tocar, afinal, em seu êxtase renovador,
acabaram, por vezes, carregadas de um desprezo cruel pelas vítimas:

Eu venho da Cidade da Matança até você, poeta


da Cidade da Matança. Meu Sol lá se pôs.
Não pode o inimigo eliminar
a única coisa que não precisa de um corpo para
viver – minha língua.

Há, ainda, outra resposta que Sutskever nos oferece. Ele responde
a enunciação de Adorno sobre o lugar da poesia. É certo que o filósofo
não ousaria proclamar a impossibilidade absoluta da poesia – creio que
ele era mais sábio que isso. Mas seu enunciado clássico nos diz que a
poesia, que a arte em geral, não podia ficar no mesmo lugar que tinha
antes. A poesia não poderia permanecer sendo a musa intocável de
antes, não podia pertencer a um mundo mais elevado. Uma determinada
espécie de poesia encontrara seu fim e, faz-se necessário buscar
novamente as fontes da poesia.

O que Sutskever faz – e, em retrospecto, pode-se dizer que fazia


desde seus primeiros poemas – é trazer a poesia para o mesmo mundo
em que habitamos, nós e os mortos. A poesia deixa de ser, em
Sutskever, verdade e passa a ser uma experiência mística,
profundamente pessoal. Como nas narrativas do misticismo judaico,
cada palavra passa a ser um receptáculo da essência divina, sendo assim
constituinte da realidade – não apenas espiritual mas, e talvez
especialmente, física. Sutskever, afinal, subscreve sua sobrevivência à
poesia.
É uma poesia de caráter essencialmente místico, em que a
68

natureza e a própria poesia ocupam um lugar de destaque, o lugar do


receptáculo divino. E é através desse profundo misticismo que se
configura a resistência à reificação, à assimilação.
E, de modo similar aos místicos hassídicos, Sutskever delineia
com sua poesia, uma contra-história para os judeus. Uma história em
que, ao contrário das narrativas oficiais, os judeus europeus não
deixaram de existir para dar lugar aos judeus israelenses, ao “novo
homem hebreu” dos sonhos sionistas.
Mesmo ao abraçar o sionismo e o Estado de Israel como seu lar, a
poética de Sutskever permaneceu uma poética da relação, carregando
consigo aonde quer que fosse traços de universalidade. Não é à toa que
cria uma cartografia particular, em que a Sibéria, Vilna, as florestas da
Bielorrússia estão lado a lado com o deserto do Sinai e com as savanas
da África. Não é à toa que, nos versos de Sutskever, John Milton,
Cyprian Norwid e Shabatai Tsvi encontram-se com Jean Amery,
Khayim Nakhman Bialik, Borukh Spinoza e com o profeta Elias. Isso
acontece, pois, a poesia de Sutskever é uma poesia feita de
multiplicidades, é uma poesia em que tempo e espaço são dois eixos a
serem navegados de modo libertador.
Sutskever não é, no entanto, isento de críticas. Em sua construção
de um renascimento judaico, ele, muitas vezes, comete um erro parecido
com o dos sionistas. Ele equipara judeu e asquenazita, ignorando as
formas de vida judaica que jamais pertenceram à sua diáspora europeia.
Talvez não coubesse a ele a continuidade das vidas dos judeus
árabes, dos judeus sefarditas. Mas em seus poemas está impressa uma
“normatividade asquenazi” subreptícia, da qual, no entanto, ele
dificilmente seria capaz de escapar, especialmente em se tratando de um
poeta iídiche.
De toda forma, seu trabalho como poeta é louvável e digno de
mais atenção do que recebeu até o momento, não apenas no universo
letrado brasileiro, mas no mundo como um todo. Quiçá a ressurgência
do interesse pela língua e cultura iídiche ao redor do mundo seja uma
oportunidade para que o poeta se torne tão conhecido e celebrado como
outros sobreviventes e, mais ainda, para que essa narrativa alternativa
que ele oferece se fortaleça, permitindo, assim, que os modos de
pensamento hegemônicos a respeito de Israel, do sionismo e do
judaísmo sejam desafiados, de modo livre de antissemitismo.
69

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor. La crítica de la cultura y la sociedad. In:


ADORNO, Theodor. Prismas: La crítica de la cultura y la sociedad..
Barcelona: Ariel, 1962. p. 9-29. Tradução ao espanhol de Manuel
Sacristán.

AARON, Frieda. In the beginning. In: _____. Bearing the unbearable:


Yiddish and Polish poetry in Ghettos and Concentration Camps.
Albany: State Of New York University Press, 1990. cap. 1, p. 19-38.

______. Yiddish and Polish Poetry in the Ghettos and Camps. Modern
Languages Studies. Selinsgrove, p. 72-87, dez. 1989. Disponível em:
<http://www.jstor.org/stable/3195268>. Acesso em: 04 jul. 2014.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN,


Walter. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. 3. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1987. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. p. 222-234

BERGER, Joseph. Yiddish poet celebrates life with his writings. The
New York Times. Nova Iorque, p. 1-14, 17 março 1985. Disponível
em: <http://www.nytimes.com/1985/03/17/nyregion/yiddish-poet-
celebrates-life-with-his-language.html>. Acesso em: 04 ago. 2016.

BIALE, David. Gershom Scholem: Cabala e contra-história. São Paulo:


Perspectiva, 2004. Tradução de Jacob Guinsburg.

BIALIK, Khayim. Fun tsar un tsorn in shkhite-shtot: dos letste vort.


Berlin: Verlag, 1922.

BOYM, Svetlana. Nostalgia and its discontents. The Hedgehog


Review, Charlottesville, v. 9, n. 2, p.7-18, verão de 2007.
Quadrimestral.

CAMMY, Justin Daniel. Abraham Sutzkever (Avrom Sutzkever). In:


SHERMAN, Joseph (Ed.). Writers in Yiddish. Columbia: Bruccoli
Clark Layman Publishing, 1996. p. 303-313. (Dictionary of Literary
70

Biography).

______. Vision and redemption: Abraham Sutzkever's poems of


Zion(ism). In: SHERMAN, Joseph (Ed.). Yiddish after the Holocaust.
Verlag: Boulevard Books, 2004. p. 240-265.

COMBE, Dominique. A referência desdobrada: O sujeito lírico entre a


ficção e a autobiografia. Revista Usp, São Paulo, v. 29, n. 84, p.112-
128, dez./fev. 2009/2010. Trimestral. Tradução de Isilde Mesquita e
Vagner Camilo. Disponível em:
<http://grad.letras.ufmg.br/arquivos/monitoria/13790-16766-1-PB.pdf>.
Acesso em: 10 jun. 2017.

COHEN, Arthur. God, the implausible kinsman. The New York Times.
Nova Iorque, p. 1-2. 17 junho 1984. Disponível em:
<http://goo.gl/9cBdve>. Acesso em: 27 set. 2014.

COHEN, Nathan. Motives for emigration of Yiddish writers from


Poland. In: RUTA, Magdalena; GRÖZINGER, Elvira. Under the red
banner: Yiddish Culture in the Communist Countries in the Postwar
Era. Wiesbaden: Harassowitz Verlag, 2009. Cap. 8, p. 157-184. (Judisch
Kultur (livro 20)).

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil platôs: Capitalismo e


esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1995. Cap. 1, p. 11-37.

FINKIN, Jordan. An inch or two of time: time and space in jewish


modernisms. University Park, Pennsylvania: Pennsylvania State
University Press, 2015. (Dimyonot: Jews and the Cultural Imagination).
Edição Kindle.

FIRESTONE, Andrew. Abraham Sutskever. 2011. Disponível em:


<http://www.yiddishpoetry.org/postwar/Sutskever.html>. Acesso em: 27
set. 2014.

FLORES, Guilherme Gontijo. GONÇALVES, Rodrigo Tadeu. Algo


infiel : corpo performance tradução. São Paulo : Cultura e Barbárie,
71

2017.

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. São Paulo: Cosac Naify, 2014.


Tradução, introdução e notas de Marilene Carone.

______. O mal-estar da civilização. São Paulo: Companhia das Letras,


2011. Tradução de Paulo César de Souza.

GELLER, Aleksandra. "Di Ufgabn Fun Yidishizm": Debates on Modern


Yiddish Culture in Interwar Poland. Colloquia Humanistica, Varsóvia,
v. 8, n. 2, p. 59-78, 13 jun. 2015. Institute of Slavic Studies Polish
Academy of Sciences. Disponível em:
<https://ispan.waw.pl/journals/index.php/ch/article/view/ch.2013.008>.
Acesso em: 03 ago. 2016.

GINZBURG, Jaime. Theodor Adorno e a poesia em tempos sombrios.


Alea: Estudos Neolatinos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 61-69, jul. 2003.
Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/s1517-
106x2003000100005>. Acesso em 16 jun. 2017.

GLISSANT, Edouard. Poetics of Relation. Ann Arbor, Michigan:


University Of Michigan Press, 2006. Tradução para o inglês de Betsy
Wing.

GLETI, Heidi. Israel's Yiddish Romance. Eretz Magazine, Tel Aviv, v.


1, n. 106, dez. 2006. Disponível em: <http://goo.gl/vMWSJ7>. Acesso
em: 18 nov. 2014.

GOLDSMITH, Emanuel S. The poetry of beauty and jewish eternity. In:


SUTZKEVER, Abraham. Laughter Beneath the Forest: poems from
old an recent notebooks. Hoboken: Ktav Publishing House, 1996. p. 11-
19. Tradução do iídiche de Barnet Zumoff.

HARSHAV, Benjamin. O significado do iídiche. São Paulo:


Perspectiva, 1994. (Estudos). Tradução de Jacob Guinsburg.

HARDER, Johann Jakob; HOFER, Johan. Dissertatio Medica De


72

Nostalgia, Oder Heimwehe. Basileae: Bertschius, 1688. 22 p.


Disponível em: <https://goo.gl/CdwrSb>. Acesso em: 20 jun. 2017.

JEWISH TELEGRAPHIC AGENCY (Tel Aviv). Hebraist Zealots


Attack Yiddishists in Telaviv; Several Injured. Jewish Telegraphic
Agency, Tel Aviv. 09 out. 1928. Disponível em:
<http://goo.gl/tTYqAf>. Acesso em: 22 out. 2014.

______. Ben Gurion Tells British That Hebrew Must Replace Yiddish
As Jewish Language. Jewish Telegraphic Agency, Tel Aviv, 10 jun.
1969. Disponível em: <http://goo.gl/nMC1Ar>. Acesso em: 04 jul.
2016.

KAC, Daniel. Wilno Jerozolimą było: Rzecz o Abrahamie


Sutzkeverze. Sejny: Fundacja Pogranicze, 2003. (Ex oriente).

KAVON, Eli. When Zionism feared Yiddish. The Jerusalem Post,


Jerusalem, 05 nov. 2014. Disponível em: <http://goo.gl/PcYeUV>.
Acesso em: 18 nov. 2014.

LANG, Avi. The Politics of Hebrew and Yiddish: Zionism and


Transnationalism. The Federalist Debate, Torino, v. 38, n. 2, p.1-1, jul.
2015. Trimestral. Disponível em: <https://goo.gl/xfsTn5>. Acesso em:
03 maio 2017.

LEAMAN, Oliver. Green aquarium (Griner akvarium). In: Reference


Guide to Holocaust Literature. Encyclopedia.com 2002. Disponível
em: <http://www.encyclopedia.com>. Acesso em. 29 aug. 2016.

LIPHARDT, Anna. Yiddish after the holocaust: A case study. Europa


Ethnica: Zeitschrift für Minderheitenfragen, Verlag, v. 4, n. 3, p.80-
87, abr. 2011. Disponível em: <https://goo.gl/RR9vMS>. Acesso em: 24
nov. 2014.

LITVINE, Mordkhe. Der driter period in Avrom Sutzkevers poezie. In:


DOV, Sadan. Yikhes fun lid lekoved Avraham Sutzkever. Tel Aviv:
Yoivl Komitet, 1983. p. 122-146.
73

MENDELSOHN, Ezra. The Jews of East Central Europe between


the World Wars. Bloomington: Indiana University Press, 1987.

MENDES, Luciano Ramos. Poética, ética e estética em ode tsu der toyb,
de Abraham Sutskever. Revista Vértices, São Paulo, v. 1, n. 18, p.43-
49, 2015. Disponível em: <https://goo.gl/RCng3j>. Acesso em: 20 jun.
2017.

MESCHONNIC, Henri. Poetica do traduzir. São Paulo: Perspectiva,


2010. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich.

MIŁOSZ, Czesław. O testemunho da poesia: seis conferências sobre as


aflições de nosso século. Curitiba: Ed. UFPR 2012. Tradução,
introdução e notas de Marcelo Paiva de Souza.

NATALI, Marcos. A política da nostalgia: um estudo das formas do


passado. São Paulo: Nankin, 2006.

NEUMANN, Boaz. Land and desire in early zionism. Walthan:


Brandeis University Press, 2011.

OZ, Amos; SALZBERGER-OZ, Fania. Os judeus e as palavras. São


Paulo: Editora Companhia das Letras, 2015. Tradução de George
Schlesinger.

PAPPE, Ilan. Critique and agenda: The Post-Zionist Scholars in Israel.


History And Memory, Bloomington, v. 7, n. 1, p.66-90, mar. 1995.
Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/25618680>. Acesso em: 18
abr. 2017

RABKIN, Yakov M. Language in nationalism: Modern Hebrew in the


Zionist Project. Holy Land Studies, Edinburgh, v. 9, n. 2, p. 129-145,
2010. Disponível em: <http://docplayer.net/29047440-Language-in-
nationalism-modern-hebrew-in-the-zionist-project.html>. Acesso em: 16
abr. 2017.
74

ROTHENBERG, Jerome. Triptych. Nova Iorque: New Directions,


2007.

______. A tradução total: uma experiência na apresentação de poesia


ameríndia. Curitiba, 2007. Tradução de Guilherme Gontijo Flores.
Disponível em:
<https://escamandro.wordpress.com/2016/04/15/traducao-total-de-
jerome-rothenberg/>. Acesso em: 03 mar. 2017.

ROWLAND, Antony. Re-reading 'Impossibility' and 'Barbarism':


Adorno and Post-Holocaust Poetics. Critical Survey. Hatfield, p. 57-69.
jan. 1997. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/41556053>.
Acesso em: 28 out. 2014.

SHAPIRA, Anita. The Holocaust: Private Memories, Public Memory.


Jewish Social Studies, Vol. 4, No. 2, pp. 40-58, 1998.

SCHOLEM, Gerschom. A cabala e seu simbolismo. Tradução de Hans


Borger. São Paulo: Perspectiva, 1997.

________. Major trends in jewish mysticism. Nova Iorque: Schocken


Books, 1995.

SCHWARZ, Jan. Survivors and Exiles: Yiddish Culture after the


Holocaust.. Detroit, Michigan: Wayne State University Press, 2015. 360
p. Edição Kindle.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. Globalização, Tradução e Memória.


Cadernos de Tradução, Florianópolis, v. 1, n. 4, p.151-165, 1999.

______ (Org.). História Memória Literatura: o testemunho na Era das


Catástrofes. Campinas: Ed. Unicamp, 2003.

SHANDLER, Jeffrey. Imagining Yidishland: Language, Place and


Memory. History and Memory, Bloomington, v. 15, n. 1. p. 123-149.
mar 2003. Disponível em <https://muse.jhu.edu/article/45242>. Acesso
em: 18 abr. 2017.
75

SHMERUK, Khone. Hebrew-Yiddish-Polish: A trilingual jewish


culture. In: GUTMAN, Ysrael; MENDELSON, Ezra; SHMERUK,
Khone (Ed.). The Jews of Poland Between Two World Wars.
Brandeis: University Press Of New England, 1989. p. 286-311. (The
Tauber Institute Series for the Study of European Jewry).

SHREIBER, Maera. The End of Exile: Jewish Identity and Its Diasporic
Poetics. Critical Inquiry. Chicago, 1993. v. 19, n. 4, p. 693-725.
Disponível em <http://www.jstor.org/stable/1343903>. Acesso em 24 de
novembro de 2014.

SLUCKI, DAVID. Theorizing Doikayt: towards a history of the


Melbourne Bund, Australian Jewish Historical Society Journal,
Melbourne, 2008. v. 19, n 2. p. 259-268 Disponível em
<https://goo.gl/vmWsr8>. Acesso em: 04 jul. 2016.

SUTSKEVER, Abraham. Selected poetry and prose. Berkeley:


University Of California Press, 1991. Tradução para o inglês por
Barbara e Benjamin Harshav.

______. Gaystike erd. Nova Iorque: Der kval, 1961.

______. Poetishe Verk. Ahmerst: National Yiddish Book Center, 1963.

______. Lider fun togbukh. Tel Aviv: di Goldene Keyt, 1977.

______. Sibir: poeme. Jerusalem: Yerusholaim, 1951. Ilustrações de


Marc Chagall.

TAUBER, Zvi. Herbert Marcuse on Jewish Identity, the Holocaust and


Israel. Telos, Candor, v. 2013, n. 165, p. 115-135, 2013.

VERSCHIK, Anna. The Jewish Lithuanian periodical Apžvalga (1935–


1940): towards a new cultural polysystem. Central and Eastern
European Review, v. 4, p. 01-17, 2010.
76

WHITE, Angela. Jewish lives in the Polish language: The Polish


Jewish press, 1918-1939. Ann Arbor: ProQuest, 2007.
77

APÊNDICE 1 - Algumas palavras sobre o ato de traduzir Sutskever

Traduzir é um contínuo fazer, um eterno devir. Traduzir é


lembrar, traduzir é um gerúndio sem fim. Estou traduzindo Sutskever.
Jamais chegará o momento em que, efetivamente, terei traduzido
Sutskever.
Em meio a esse fazer contínuo, infinito, há sempre uma tomada
de posição. Impossível ser neutro: a partir do momento que escolho o
que traduzir, há nisso um ato político. A partir do momento que decido
como traduzir, há nisso um ato político.
Escolho, ao traduzir poesia iídiche, tanto de modo geral quanto
especificamente a poesia de Sutskever, a nostalgia. Escolho, também, a
memória: Imre Kertesz Z'' L'', escritor húngaro de origem judaica,
perguntou em certa ocasião quem herdará o khurbn. Quem escolherá
carregar esse fardo sobre os ombros, para que as futuras gerações não o
esqueçam, pois o tempo está levando os últimos sobreviventes. Esta
pesquisa e, principalmente, estas traduções são o meu tímido erguer a
mão, o meu titubeante gesto de aceitação desse fardo e dessa tarefa que,
porém, sei ser grande demais para mim.
Entretanto, não é por isso que o faço com menos afinco, com
menos paixão. Não é por isso que meu traduzir é menos rigoroso. Não
me importa um traduzir fiel, no sentido que o senso comum e a tradição
dão à palavra. A tradução aqui é encarada “não como metempsicose,
que trocam por uma alma pura imutável eternamente idêntica a si
mesma.” (GONTIJO; GONÇALVES, 2017, p. 23), mas uma
ressurreição “de um todo novo, de coorpo e alma. O barco [de Caronte]
valeria por si mesmo, enquanto mudança. A tradução pensável como um
dom dos corpos”. (ibid.). Herdar a memória do khurbn através da
tradução, nesse caso, é “incorporar a obra no seu próprio mundo, dar um
corpo à obra, dar seu corpo à obra, enfim, assumir o lugar do poeta,
bardo, xamã, como intérprete (ou inter-pres, inter-pretium – mediação,
comércio, mensagem) da música.” (ibid., p 24). Assim a tradução deve
configurar-se como um pensamento místico, uma espécie de profecia
que aponta ao mesmo tempo para o futuro e o passado.
Para tanto, tenho como norte as teorias tradutórias de Henri
Meschonnic e de Jerome Rothenberg.
Henri Meschonnic (2010) trata da poética do traduzir e de como o
78

traduzir se deve ao ritmo. E é isso que tento, acima de tudo, capturar. Os


ritmos da poesia de Abraham Sutskever. Esses ritmos se encontram na
métrica dos poemas, em suas rimas, é certo. Por isso, tentei buscar
manter a rigidez formal de Sutskever:

Tu,/ ir/mã/ mais/ ve/lha/ da/ ter/ra/ em/ que/


nasci!
Os/ ci/ga/nos/ an/dam /de /no/vo/ por/ a/qui.
Ou/tra/ vez /em /teus/ ca/mi/nhos/ tão/
a/pa/gados
Bus/cam/ chei/ros/ de/ chu/vas/ de/ tem/pos/
pas/sados.

Mas, também são construídos pela narrativa que eles constroem,


nas referências ali inseridas. Manter, por em exemplo, as referências àa
escritores poloneses em “Para a Polônia”, ainda que essas referências
possam ser desconhecidas da maioria dos leitores brasileiros, é parte
disso. Cabe lembrar que, fora do círculo dos judeus poloneses letrados,
essa literatura também era desconhecida da maior parte do público leitor
iídiche.
Ao passo que Rothenberg fala da “tradução total”, ao traduzir
cantos indígenas norte-americanos ao inglês, mas acho que a ideia
essencial, de criar uma tradução que fique “tão longe quanto possível da
palavra escrita” (ROTHERBERG, 2016), que possa ser trabalhada.
Isso implica que, mesmo buscando métrica e rima semelhantes ou
equivalentes aos que Sutskever utiliza, bem como o aspecto semântico,
primei pela leitura. Explico: não foi tanto ao texto escrito do original a
que me referi, mas às declamações do próprio Sutskever para estes e
outros poemas. Busquei uma tradução que eu pudesse ler em voz alta e
causasse, em mim, algo semelhante à leitura em iídiche do poema.
Resulta num traduzir que incorpora o processo de leitura em voz alta,
certo modo de declamação dos poemas, para um aproveitamento da
música intrínseca ao idioma iídiche e à obra de Abraham Sutskever.
Busquei o tempo todo “estar numa situação em que a poesia estaria me
conduzindo a uma (nova) música que ela estava gerando”
(ROTHENBERG, 2016).
79

APÊNDICE 2 - Poemas traduzidos

O aquário verde

– Seus dentes são barras de osso. Atrás deles, numa cela de


cristal, suas palavras agrilhoadas. Lembre-se dos conselhos de um
ancião: as palavras vis, as que colocaram em sua taça pérolas venenosas,
a elas dê a liberdade. Como agradecimento por sua misericórdia, elas
construirão a eternidade para você; mas as outras, as inocentes, elas, que
gorjeiam falsas como um rouxinol sobre um túmulo – não as deve
poupar. Enforque-as, como se fosse o carrasco delas! Pois assim que
você as deixa sair de tua boca ou de tua pena – elas se transformam em
demônios. As estrelas não cairão, pois eu falo a verdade! –
Esse testamento me foi deixado lá na cidade tão viva onde eu
nasci, por um velho solteirão, um poeta perturbado, com um rabo-de-
cavalo longo como uma vassoura de bétula. Ninguém conhecia seu
nome, nem de onde vinha. Eu só sabia que ele escrevia na língua do
targum, cartas rimadas para deus, e as jogava numa caixa de correio
vermelha perto da ponte verde, e com prudência e calma ele caminhava
ao longo do Vilija esperando o carteiro do céu lhe trazer uma resposta.

– Caminha por entre as palavras como num campo minado: um


passo em falso, um movimento em falso e todas as palavras, que você
passou a vida toda costurando em suas veias rebentarão contigo junto –
Assim me sussurrou minha própria sombra, quando ambos,
cegados por moinhos-refletores, avançávamos durante noite por um
sangrento campo minado e cada passo meu posicionava-se na morte ou
na vida, fazia uma cicatriz no coração, como um prego num violino.

3
Ninguém me disse para ser cauteloso, que eu deveria tomar
cuidado com as palavras que estão bêbedas com as flores de papoula
d'outro mundo. Assim, tornei-me escravo de suas vontades. E suas
80

vontades eu não consigo entender. Certamente, não o segredo, se elas


me têm amor ou ódio. Elas fazem guerra em meu crânio como cupins no
deserto. Seus campos de batalha brotam de meus olhos com o brilho de
rubis. E crianças se tornam cinzentas de pavor quando lhes digo: bons-
sonhos...
Recentemente, no meio de um dia claro, quando eu estava deitado
no jardim, e acima de mim um galho de laranjeira ou as crianças
brincando com bolhas de sabão douradas – eu senti um movimento na
alma. Aha, eis que minhas palavras estão prestes a sair... Conseguiram
uma vitória sobre alguém e, aparentemente, decidiram conquistar
fortalezas onde nenhuma palavra até então conseguira. Em homens, em
anjos e, por que não, nas estrelas? Bêbedas com as flores de papoula
d'outro mundo, elas realizam suas fantasias.
Trombetas soam.
Tochas como pássaros flamejantes.
Linhas as acompanham. Quadros de música.
Defronte a uma dessas palavras, que avançava cavalgando usando
uma coroa na qual reluziam minhas lágrimas, devia ser a soberana, eu
caí de joelhos.
– Assim me deixa, sem um adeus, sem um até breve, sem nada?
Por anos, caminhamos juntos, de meu tempo você comeu, antes de se
separar de mim, antes que vá conquistar mundos – um pedido! Só me
prometa não recusar...
– Certo. Eu dou a minha palavra. Só sem frases longas. Pois o sol
se torna ao ramo azul e num instante cairá no abismo...
– Eu quero ver os mortos!
– Que desejo... Nu, que seja. Minha palavra me é preciosa... Veja!
Uma faca verde fendeu a terra.
Tornou-se verde.
Verde.
Verde.
O verde dos abetos sombrios através da neblina;
o verde de uma nuvem com a vesícula rota;
o verde de uma pedra musguenta sob a chuva;
o verde que se revela num bambolê girado por uma criança de
sete anos;
o verde das folhas de repolho sob gotas de orvalho que
81

ensanguentam os dedos;
o primeiro verde sob a neve que derrete numa dança ao redor de
uma florzinha azul;
o verde de uma meia-lua, vista com olhos verdes de sob uma
onda;
e o verde solene da grama aparada ao redor de um túmulo.
Verde flui em verde. Corpo em corpo. E aqui a terra se
transforma num aquário verde.
Mais perto, mais perto do enxame verde.
Eu olho pra dentro: pessoas nadam lá como peixes. Inúmeros
rostos fosforescentes. Jovens. Velhos. E jovensvelhos de uma só vez.
Todos os que eu vi a vida inteira e que a morte ungiu com uma
existência verde; eles todos nadam em um aquário verde, numa suave e
sedosa música aérea.
Aqui vivem os mortos!
Debaixo deles, o rio, a floresta, a cidade – um enorme mapa
plástico, e acima paira o sol, com a forma de um homem ígneo.
Eu reconheço conhecidos, amigos, vizinhos e tiro meu chapéu de
palha para eles:
– Bom dia!
Eles respondem com um sorriso verde, como um poço responde
uma pedra com aros quebrados.
Meus olhos remam com remos de prata, correm, nadam por entre
as faces. Eles buscam, procuram por um rosto.
Encontrei, encontrei! Aqui está o sonho de meu sonho –
– Sou eu, minha querida, eu, eu. As rugas são só um ninho da
minha saudade.
Meus lábios, rubros de sangue, gravitam em direção aos dela.
Mas, ai, eles ficam presos no vidro do aquário.
E os lábios dela nadam até os meus. Eu sinto o sopro de ponche
ardente. O aquário é como uma fria lâmina ritual entre nós.
– Eu quero ler um poema, sobre você... Escuta!
– Meu amor, eu conheço esse poema de cor, fui eu mesma quem
te deu as palavras.
– Eu quero sentir teu corpo mais uma vez!
– Não se pode aproximar, o vidro, o vidro...
– Não, a barreira logo vai desaparecer, eu vou quebrar o vidro
82

verde com a cabeça –


Depois do décimo segundo golpe o aquário rebentou.
Onde estão os lábios, onde está a voz?
E os mortos, os mortos – eles morreram?
Ninguém. Defronte a mim – grama. E acima – um galho de
laranjeira ou as crianças brincando com bolhas de sabão douradas.
83
84
85
86
87
88

Iídiche

É preciso que eu comece do princípio?


É preciso que eu, como Abraão,
destrua todos os ídolos, como um irmão?
É preciso que eu me permita ser traduzido vivo?
É preciso que eu plante minha língua
e espere até que se transforme
nas amêndoas com passas
dos ancestrais?
que graciosa
piada
prega meu irmão de poesia, o de costeletas,
enquanto minha língua mãe se põe?
daqui a exatos cem anos sentaremos bem aqui
no Jordão e discutiremos.
pois uma pergunta não cala nunca:
se ele sabe exatamente por onde
a oração de Berditshever,
os versos de Yehoash
e de Kulbak
erram
até seu crepúsculo -
será que ele podia me mostrar,
onde o ocaso da língua vai dar?
Talvez no Muro das Lamentações?
Se for eu volto pra lá, eu volto
para abrir a boca
e como um leão,
vestido em fogo ardente,
engolirei a língua que se põe,
engolirei e num rugido despertarei todas as gerações!
89
90
91

Ode à pomba

1.
Coisa rara, na infância, uma vez aparece
sob o céu um anjo, em cores próprias resplandece.
Logo desaparece, eterna a cantilena.
Na chaminé seu rastro – uma única pena.

Não era um anjo comum, pois pensou no menino.


A pena na neve, pomba – ímã vespertino.
Rufla pomba neonata, aprende – um momento
em círculos prateados despenca ao relento.

Ela beija o ninho de dedos que a acalenta.


A penugem de neve, radiante arrulho alenta,
ele a ensina a voar, como um grão bicar neblina.
– Você me salvou – diz, e a cabeça inclina –

Seja breve na escolha, um dom lhe concedo!


A neve eterna? Da alvura minha o segredo?
Ébrio, ele demanda: “Se você me ama
venha sempre, na chuva, neve e chama.”
92

Num lugarejo

1.
O pôr do Sol numa estrada da cor do gelo.
Doces colorações oníricas em tu'alma.
Uma choça cintila no vale tão belo
brilha no crepúsculo com hibernal calma.
Lenha-maravilha que pende das janelas,
trenós mágicos ressoam incansavelmente.
No ático turturinam as pombas singelas,
cantam em minha face. Gelo transparente
atravessado pelo brilho cristalino
o Irtich semirreal, serpenteante rio invernal.
Debaixo dum domo de silente fascínio
uma criança conhece o mundo primordial.

2.
No claro-escuro do vilarejo enevoado,
lá donde foi minha infância, na Sibéria,
das pupilas-de-sombra flores hão floreado,
infinitas flores de mercúria matéria.
Pelas frestas de ângulos gastos e pálidos
a lua sopra em nós seu hálito radiante.
Meu pai, branco como a lua, semblante cálido
em suas mãos – um níveo silêncio congelante.
Ele corta o pão preto com iluminada
faca piedosa. Seu rosto torna azulino.
Eu, agora com ideia recém-cortada
dou ao pão de meu pai um manto salino.

3.
A faca. Papai. Uma tocha fumarenta.
Infância. Criança. A sombra pega o violino
da parede. Sobre mia cabeça rebenta
o som da neve, fino, cada vez mais fino.
Silêncio. O pai está tocando. E no vento
ele inscreve sua música. Como o prateado
93

espelho, pende cianótico alento


por todo lado, na neve luar esmaltado.
Por detrás da janela de gelo vestida
um lobo fareja a carne musical.
Silêncio. Bica uma pomba recém-nascida,
rompe a casca de ovo, em nosso pombal.
94
95
96

Quem vai restar, o que vai restar? Vento vai restar.


A cegueira restará, de quem não pode enxergar.
Uma linha de espuma, quem sabe, do mar o rastro
Frágil nuvem, talvez, uma árvore como lastro.

Quem vai restar, o que vai restar? Uma expiração


Que fará brotar a grama de uma nova Criação
Um violino-rosa, talvez, por si só vá resistir
E sete folhas de grama poderão discernir.

E das estrelas ao norte, em longínquo recanto


A estrela que persistirá é a de maior pranto
Resta uma gota de vinho no odre, gota rociante
Quem vai restar, Deus vai restar, será o bastante?
97
98

Explicar? Como se pode explicar?


O Sol em momento algum arrefece
Mas lágrima não pode desgelar
e só a infância jamais envelhece.

Sua irmã, a juventude, foi pisoteada


qual uvas de vinho depois da messe
a cabeça de prata já sombreada
e só a infância jamais envelhece.

Por suas neves e flores, dinheiro


não há que baste, a troca não apetece.
Envelheceram o rei e todo o reino
e só a infância jamais envelhece.
99
100

Para a Polônia

1.

Tu, irmã mais velha da terra em que nasci!


Os ciganos andam de novo por aqui.
Outra vez em teus caminhos tão apagados
buscam cheiros de chuvas de tempos passados.
As cores mágicas, fixadas em meus sonhos
e teu céu, que uma vez bebi com olhos risonhos
tal qual a canção do pássaro das histórias.
O que foi que se passou? Na Polônia busco suas memórias.
Numa silenciosa resposta, te calas,
mas com olhos cintilantes me regalas
co'amor primeiro. De Mickiewicz a língua
me recebe agreste. Seu esplendor míngua.
Não se repete a música de outrora
quando com o iídiche, a toda hora
o polonês se ouvia, todos a saudar.
Teus poetas, até hoje não deixo de admirar;
Pan Tadeusz não me abandona à tristeza
os versos impedem que eu seja reles presa.

A floresta que deste solo brotou,


e o povo cuja vida ele estudou
se curvam de saudade de Jankiel a banda,
minha paixão pelo autor de “Anhelli” não é branda,
seu corpo – um emaranhado de flautas mágicas
que tal como o bater das correntes soam trágicas,
como os grilhões dos irmãos no norte distante.
E há Norwid, cujos versos conheci rascantes
na taverna Fukier, presos à antiguidade
das paredes purpúreas – com eles me invade
a partir dessa messiânica noite a chama
que em sua homenagem arde e proclama.
Em cada pogrom esteve sempre ao meu lado
101

o poema do judeu de Varsóvia honrado.


Eu posso perdoar, sem desejos de vingança
teus bardos, com quem divido fraterna herança;
enamorados de seu horror e beleza
tal qual cães entre lobos rosnam com firmeza.
Não foi só um que exausto, lobo se tornou
mas não adiantou, mas isso não o salvou.
Perdão! Se um poeta como Lesmian, então,
cantasse invés das tuas flores, teu bufão?
O teu Sol, que o entardecer pinta com chamas,
um campo afogado em ondas de verde grama,
bétulas dançam em sonhos qual querubins?
Terias outro mais, como Julian ben Tuwim?

Quem respondeu a dolorosa contradição?


Recém-libertos encontraram salvação
mas foram abandonados. Agora vagam
amargurados, e nos pórticos notam
como seus lares são velhos. (São perseguidos
assim há eras, desde perto ou longínquo
correm até a Arca, d'ouro do Reno forjada,
às margens do altar nova fé declarada).
Substituindo os irmãos e irmãs, espinhos
crescem em seus destruídos e queimados ninhos.
Mas ao invés de ser com pão, sal e o coração,
permaneço até o dia de hoje sem a razão
dessa recepção com quinhão tão amargoso
logo do polonês, tido como grandioso.
Já faz uma centena de anos teu profeta
qual mocho sob o sol, foi cego, puro esteta:
forjou legiões judaicas no exílio,
sob polonesa águia lutando em auxílio.
Então o que foi que aconteceu com seus netos, o quê?
Smutno mi, Boże!
102

2.

De nossos olhos, a menina era o Vístula!


E quantas lágrimas fluíram do Vístula
enquanto as gerações na água afundavam.
E acima barcos dourados navegavam.
Ó, praia fluvial, colorida e tumultuosa
onde Asch casou, uma cerimônia ruidosa,
e nas velas da avó a brachá permaneceu,
onde o sopro gói tem hálito judeu!
Minha linhagem com fé raízes lançou
e dentro de teu corpo frutificou.
Trabalhou e amealhou, em teu nome
nos anos de servidão – alegre, sublime.
O amor pela terra natal, misturado
com amor por ti, amor em dor baseado.
Enquanto parecia se isolar numa ilha
ela arrastou milagres por tantas milhas
desde o Sinai, pelo deserto, os profetas -
talvez foi por isso que escapou ilesa
quando eleita te tornaste orgulhosa
quando a czarina quis teu fim, rancorosa.
E os que te construíram e que te moldaram,
escondidos nas sombras permaneceram, -
a única honra as lápides de madeira.
Tuas cidades erguidas dessa maneira.

Precisa-se então dum fraterno obrigado?


Nas canções os dois idiomas abraçados:
o iídiche e o eslavo polonês afinados.
E embora a voz católica tenha hesitado -
em uníssono como uma voz em prece,
dois ramos, a origem distinta aparece,
ao crepúsculo se unem, mesmo que opostos.
Meu avô, porém, errou em seus pressupostos
e eu também. Será que tu ouves minha fala?
103

Será que as razões todas, vais me explicá-las?

Tu, coroa, cujo noturno diamante


antes refletia alheia luz flamejante.
A fonte de Baal Shem Tov, de rebeldia.
Como a sede da geração se saciaria?
Eu acreditava: com a guerra acabada
a treva da intolerância dissipada.
Uma rosa de mil pétalas, dos fragmentos
outra vez vai florescer, num fresco advento.
O leão judaico e tua águia- os vizinhos
forjados na menorá de cobre unidos,
certamente no futuro brilharão
juntos sobre os tristes mortos sob o chão.
Nós reuniremos vontade com vontade,
pedra por pedra renascerá a cidade
e nossa dor o Vístula vai curará.
Uma janela, qual asa, ruflará.
Logo verá a luz uma nova geração.
Pode haver tal esperança em meu coração?
O que foi que aconteceu com a fraternidade?
Smutno mi, Boże!
104

3.

Eu sei, não és culpada, as odiosas hordas


que te atacaram, disso ninguém discorda.
Por tua velha nêmese, foste ofendida -
lutaste e a teus cidadãos deste guarida
em Westerplatte, em Kutno. Que importa
se as casas têm a mezuzá na porta?
Ou na parede a cruz? Não pode ser assim!
Eles tombaram, a tua águia se orgulha!
Mas tão logo eles chegaram, foste pulha -
das vinhas e das ruas tiraste os judeus
compraste liberdade com sangue hebreu,
alimentando as fogueiras com azeite.
Então, sozinho eu tentei prevalecer,
os fatos eu não deveria enaltecer:
para cada um dos poucos que nos salvaram
mil nos delataram, nos assassinaram.
Foi por esses poucos justos que voltei,
pronto a retomar o amor que antes te dei:

O pastor que a pequena Sarah escondia,


a filha dos Royznvald, que amoras comia
sob as estrelas quando saia do buraco,
ouvia ao longe ainda o pastor assobiar, fraco -
tentava lhe dar um lar mesmo no inferno
(hoje ela já lhe escreveu, em tom terno).
O virtuoso zelador num sótão enfiava
um miniam, a Gestapo não os achava.
A freira Amália, um coração singelo,
enviou ao gueto o presente mais belo:
um saco de pólvora. O herói camponês
morto à entrada da vila pelo que fez
pende o corpo co'a placa: ajudou um judeu.
Nosso honrado Watsek, o que escondeu
no canil em que era um apanhador,
três meninos. Sem titubear, mas com temor.
105

Por detrás dos cachorros capturados,


os judeuzinhos foram escamoteados.
Cada um dos heróis, dos justos, dos virtuosos
cujos nomes e histórias não são famosos
os guardo na mente, e rezo em seu proveito:
pros vivos a felicidade dê seu jeito;
e para os santos mártires dessa terra
o jardim do Éden é o que lhes espera!

Varsóvia em ruínas é tudo o que vejo


em nossos corações do desespero o ensejo -
e me lembro também de como acorreram
os do lado ariano, como ébrios zombaram
quando no gueto, como leões flamejantes,
meus irmãos lutaram, atendendo confiantes
ao chamado de asquenaz, ao qual iremos
peregrinos aos seus restos. “Que fogueira!”
Exclamou a mocinha pueril, zombeteira,
que com binóculo de ópera via o fogo
Agora, as palavras me traem de novo:
dez poloneses que são como irmãos
vieram ajudar, o coração na mão
e como heróis, morreram na fortaleza.
O Senhor do Tempo, em radiante grandeza
os cravará na memória qual diamante.
Se pelos heróis tens um amor gritante,
guardas na memória o incêndio de Varsóvia?
O que foi que aprendeste com esta história?
Smutno mi, boże!
106

4.

Como te abençoar? Assisti furioso


os teus pogroms contra crianças e idosos.
Eu vi tua turba com pedras e pauladas
na rua judia – minha gente massacrada.
Depois ainda vi teus filhos reunidos
mudo séquito de estandartes sanguíneos
do longo rito funeral, lento, novo.
No cortejo, o próprio Chopin guiava o povo.
E no alto – as bandeiras, pássaros cativos,
dos mastros queriam se soltar, altivos.
------------------
Como uma pá de terra é a verdade
cai num túmulo, cobre-me com saudade,
enquanto isso um violino se lamuria.
E mais da dor e profunda agonia
de ver como o Sol é purificado
meu amigo, teus crimes são minorados –
corrói-me a gasta mudez da desgraça
que depois da guerra cresce, sem ameaça,
confortável por debaixo do teu teto
profana a Polônia, peçonhento inseto.
E esses são versos difíceis de compor
teu futuro – não há dúvida a se impor
qualquer o destino, não há esperança
que o passado torne em bem-aventurança.

E tu pensas que digo isso como ameaça,


mas rogo: com raiva não se satisfaça
deixe os judeus retornarem ao teu bem.
Nessa terra, eu não seria senhor de ninguém!
Pesadas as coisas todas outra vez
sou só tremulante ramo que se fez.
Ramo que de todo modo irá brotar!
------------------
107

Avanço, Varshe um deserto, até chegar


ao Vístula, um outro, e possa a correnteza
levar meu nome eslavo pra profundeza.
Acompanha-me um verbo, uma canção sagrada,
uma Torá num rolo de cobre enrolada,
uma a uma as velas do Shabes é incensa
no túmulo de Anielewicz a pedra descansa,
será a marca da próxima geração.
Como eslavos em hinos cheios de paixão
pelo crepúsculo – o som dos grous do agora
prenhes com as minhas lágrimas da hora
do declínio. Para a Polônia, a ave seguiu
enquanto me afasto do que me destruiu.
Ave tristonha, me dá a resposta: por quê?
Smutno mi, Boże!
108

5.

Que tristeza, meu deus! Como abandonar


o Vale de Lágrimas, uma tumba, um lar?
Como fazer do vazio, um monumento
que alcance os netos de meus netos, seu tempo?
O que fazer, o passado revelado
ao amanhã? Os ecos serão capturados
das orações destruídas? Como beber do odre
no qual os mortos se saciaram? Dou nomes
tentando marcar os túmulos sem fim
com poemas. Em Cracóvia e em Lublin,
eu avanço por entre os templos de mármore
fico parado em silêncio, atrás de uma árvore
e imagino: se eu estivesse de novo
às vésperas de a serpente sair do ovo.
Saúdam-me com os nomes dos ressuscitados
e os seus rostos se erguem, todos enlameados,
tomam-me nos braços, e logo me erguem
num momento... a grama de antes revém,
verde outra vez pelos vales se espalha.
E sob a grama um rumor não se cala,
como se uma Betar os mortos clamassem
e numa trombeta negra eles tocassem
suas vidas. E as copas dos carvalhos
marcam a passagem do tempo em seus galhos
douram lápides caídas com outono
– Cemitério, ao seu salvador eu rogo!
Onde está a matéria-prima dos gigantes
que nos ombros te carregam tão pujantes,
atravessando a noite como um encanto
para te plantar num novo recanto
onde um yeshuv vingará!
O, vey mir, o, vey mir!
Rompe o silêncio das árvores o cantar!
Já não há um espelho para se encontrar.
Noite de Yom Kipur, a tumba do Profeta
109

de Lublin, só os bêbados, nenhum crente.


Um bode vagando nessa sombra pálida
dando algumas mordidas na relva cálida
enquanto com seu casco, quebra um galho.
E lá na rua Genshe, o salvador foi falho.
De asas curvadas, de Perets o jazigo,
rútilo pó de poeta tem seu abrigo,
após a treva dos guetos clarear.
Armas velhas, é preciso acreditar.
Ao lado da tumba vejo o mármore puído,
esse esconderijo – um velho conhecido.
Um judeu do gueto, de medo ele mesmo
ergueu sua casa, escapando ileso
de um pogrom. A corrente dourada é forte
salvando os últimos de sua fé da morte:
creem na eternidade de Perets, o poeta.
De dia fica deitado de forma discreta,
cheio de vermes estudando a cabala.
Quando a lua os ossudos dedos estrala
e lhe chama ele se torna mais leve.
Sair do eterno esconderijo ele se atreve,
diz com voz enlameada qual seu colega
da cripta ao lado: “Vamos, se entrega
ao canto e à dança...” E desse modo liberto
o espírito se eleva, está coberto
de alegria, a fome saciada com ardor.

Eu, que vim aqui para a despedida –


logo tenho a tumba nos ombros erguida
parto, levo-a comigo, e sua melodia
me faz guardar no coração os velhos dias,
no amanhã cultivando essa jornada:

E assim nós vamos


nossas almas – chamas!
110
111
112
113
114
115
116
117
118
119

O caminho do escorpião

Eis aqui o ateliê de toda a criação.


Como um aprendiz, faça a inscrição.
A eternidade quem irá lhe pagar
a seu modo, se o trabalho a agradar.

Chegou agora ao caminho do escorpião?


Aqui o gênesis é o próprio artesão:
O pilar de nuvens beija sua amada
ela uma torre, de chamas formada.

É simples, não há nenhum milagre.


Quiçá o criador na areia você flagre,
em cidades, no ar vive a profecia,
nem velha, nem nova – assim permanecia.
120
121

No deserto do Sinai

1.

A lágrima, a saudade em minha face


é velha como tu. É cria do deserto.
Ela é um elogio cuja honra nasce
de ver outra ardendo em tua memória –
essa que é granito reluzente.
Tua opulência, chama tão sequiosa.
Como antes me ajoelhei onde cruzam rios
e bebi a forte eternidade do agora.
Ó, deus meu deus, contigo serei digno
quando eu, coa'lma cheia de exílio,
devo atender meu próprio clamor
e ir até onde ruflam tuas asas.
122
123

2.

Em Sanafir, a ilha de coral,


a coroa estrelada defronte a baia de Salomão
tua sombra flutua no mar, limitada pela luz
e sob ela rumoreja, uma demanda própria.
Tenho uma mão imersa nas ondas :
- Uma lasca, a mão não ficará vazia.
No Mar Vermelho, um séquito púrpura
derramou em meus dedos amor e liberdade.
E me levou cada vez mais longe
até a viva fonte do clamor no horizonte
E a rainha de Sabá, com pérolas nos olhos,
desnuda o peito, vinda da Abissínia.
124
125

3.

Eu subi junto com o jovem exército.


A barba cor de coral. O cantil empoeirado.
– Enquanto você se demora um momento em todo lugar
esperará a ordem por quarenta anos.
– Alcançará seus pés como as ondas –
Eles estão longe de ti, a distância de um olhar, um grito
E blim-blém, soa um sino dourado, blim-blém.
Um camelo chama seu beduíno morto.
Uma tamareira. Uma serpente em meio ao silêncio.
Brilha só pra mim uma pegada do dono.
O camelo se levanta. E nós, nós nos erguemos,
e um pilar de nuvens guia o exército.
126
127

4.

A reunião das Doze Tribos de Israel.


As tribos que se dividiram em tribos.
Com teus filhos trocaram de lugar.
Por ossos secos sopra teu hálito.
Em areias vermelhas flutuam cidades e países.
Uma criança. Uma mãe. Lenha cálida.
E como o vento, sem sombra, sem vestes,
é transparente o tempo de todos os tempos.
No deserto do Sinai, tua jovem nação se formará.
E teus mandamentos, em folhas de pedra – os registros
feitos com um dedo de chamas
esqueletos dos guetos e de Treblinka.
128
129

5.

Os escritos gravados restarão pela eternidade


selados em granito com poder e autoridade.
E como uma leoa rugirá forte
desde Ras al-Naqf até Qadesh Barnea.
Um tal canto nasce nos foguetes
como explosões o cantariam em nós!
O Sol em zênite. Uma noite por debaixo.
E os jovens parecem cervos rubros.
Esse é o vale de Firan. Um lamaçal molhado
é a terra. Uma amendoeira. O gado muge.
E o Sol cai dum terraço,
e ela carrega a criança nos ombros.
130
131

6.
Despertaste no Sinai, Senhor da Vingança,
quanto ao teu pico elevaste
teu povo morto, a montanha de ossos -
Uma montanha de lamentos de pombos inocentes!
E sangue de criança clandestinamente derramado
aqueceu com vozes animadas
as veias em granito e pedra
e revelaste tua segunda marca :
esmagados como brinquedos sob a sola –
esmagados no Sinai a morte e o medo.
E nos lábios brilham teus projéteis
enquanto fica sozinho com teus filhos.
132
133

7.
Lhe demos um nome: Serbal, Jebel Musa...
Eu preencho a montanha. De todas, a mais bela.
Tu permaneces alinhado nos campos de cobre –
uma gota de sangue que revela : és outro, outro.
Então, eu já ouvira a mesma nota,
Ó, cegamente eu me feriria por ti!
Uma gota de sangue que revela: és outor, outro,
Como as agulhas das bússolas apontam o norte.
Ficava longe do Sol. Ele não descia.
E num altar de pedra, aos teus pés,
um filho da diáspora, um soltado, um místico,
que envia desde ti, o último cumprimento pra casa.
134
135

8.
O monte! O monte! O silêncio floresce com especiarias
de todas as gerações. Diamantina pureza.
O monte! O monte! O Sol lhe dá um mar de luz.
Seu poder derreterá em beleza.
E sobre ele duas escadas radiantes –
e passos, que só sentíamos nos degraus.
Um barulho... só as cornetas de cobre.
Um barulho... e as sarças ardentes voltam os olhos.
O gelo prateado rasteja em seus recessos,
assim os espíritos em campos secretos
nos tocaram com a recomendação do senhor.
136
137

9.
Tire os sapatos e entre em formação,
tire os sapatos, que a areia te faça puro.
Aqui é o momento da revelação da coragem.
O silêncio é um abismo. Um abismo da saudade.
E acima, nas escadas radiantes,
uma oração clama da mesma profundeza
que ela poderia no coração, ao som das cornetas,
lapidar-se num diamante sem diamante:
que possam tu e a tua paz chegarem de uma vez.
Do monta Sinai, soprar pra longe o ódio,
firmar uma nova aliança com teus filhos,
tornar verdes as areias vermelhas.
138
139

10.
E, de repente, as estrelas no monte,
como nós da diáspora, tribo errante.
Com medo da luz, vemos no horizonte:
homens e constelações, união flamejante.
E no Sinai, em meio ao rútilo horror,
um jovem com a bandeira. A toma
uma mão, que num misterioso clamor,
consagra o eterno, abençoa ao herói.
E aquele que viu a noite no Sinai
lembrará do Sinai e também seu nome.
E aquele que viu o esplendor no Sinai
poderá narrar mil anos. Amém.
140

Você também pode gostar