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Seria a psicanálise uma destruidora de ilusões?

Reflexões psicanalíticas acerca da noção de ilusão


Would psychoanalysis be a destructor of illusions?
Reflections on the psychoanalytic notion of illusion

Ramon Souza1
UNIT

Resumo: Este artigo aborda a noção freudiana de ilusão, cujo modelo


exclusivo está longe de ser o da religião. Além das ilusões defensivas e
sintomáticas, teríamos uma espécie de ilusão que se reconhece como tal,
mais próxima da lucidez trágica do processo sublimatório. Desse modo, a
arte, o humor e o brincar irrompem como modos criativos de apreensão da
realidade, sendo o reconhecimento do desamparo elemento constituinte
dessas produções.
Palavras-chave: ilusão, psicanálise, criação, sublimação, desamparo.

Abstract: This article aims to address the Freudian notion of illusion. Such
conception has an exclusive model which is far from that of religion. In
addition to the defensive and symptomatic illusions, we would have a kind
of illusion that is recognized as such, closer to the lucidity of the
sublimating process. Thus, art, humor and play erupt as creative ways of
apprehending reality, whose recognition of helplessness is a constituent
element of this production.
Keywords: illusion, psychoanalysis, creating, sublimation, helplessness.

Porque destruímos ilusões, somos


acusados de comprometer os ideais
(Sigmund Freud, “As perspectivas
futuras da terapêutica psicanalítica”)

No texto sobre As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica, Freud explica


porque a psicanálise seria uma destruidora de ilusões:

A sociedade não terá pressa em conferir-nos autoridade. Está determinada


a oferecer-nos resistência, porque adotamos em relação a ela uma atitude
crítica; assinalamos-lhe que ela própria desempenha o papel importante
em causar neuroses. Da mesma maneira que fazemos de um indivíduo
nosso inimigo pela descoberta do que nele está reprimido, do mesmo
modo a sociedade não pode responder com simpatia a uma implacável
exposição dos seus efeitos danosos e deficientes (Freud, 1996/1910a,
p.153).

1
Professor Titular I do Curso de Psicologia da Universidade Tiradentes, Psicanalista, Doutor em
Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP. Lattes de Ramon Souza. E-mail:
[email protected].

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O que está em jogo nessa premissa freudiana é o caráter destrutivo do próprio


método da psicanálise: desvelar o que está oculto por trás do fenômeno aparente. Os
ideais, erguidos sob a égide da inautenticidade (para não dizer falsidade) necessitam ser
escancarados a partir de seu modo de funcionamento: o modo do conflito propriamente
dito.
Nesse sentido, além das ilusões impostas pelos ideais civilizatórios, a psicanálise
também cuidaria de demolir as ilusões defensivas e sintomáticas do indivíduo,
implicações falhas do mecanismo do recalque. Após resistências, interesses feridos e
emoções exauridas, as “verdades indesejáveis” pronunciadas pela psicanálise
encontrariam aceitação e reconhecimento. “Apenas não acontecerá muito depressa;
devemos ser capazes de esperar”, complementa Freud (p.153) no mesmo texto.
A ideia de uma sociedade neurotizadora, já exposta no contexto do artigo sobre a
Moral sexual civilizada e a doença nervosa moderna (1996/1908), permite a
compreensão clínico-sintomática a partir dos ecos de uma civilização erguida sob “a
supressão das pulsões”. É nesse contexto que se pode falar em um “combate freudiano
às ilusões” (Loureiro, 2002, p.315), uma vez que a ilusão é concebida como o véu que
ofusca a verdade pulsional, em nome de uma realidade fictícia aparentemente mais
confortável2.
É certo que o tema da ilusão acompanha o embate entre mundo real e mundo
aparente ao longo de praticamente toda história da filosofia. No entanto, este artigo
situa-se no campo psicanalítico e, por mais que a psicanálise compartilhe com a
filosofia algumas constatações epistemológicas acerca da relação entre o Ser e a
Realidade, há na proposta de Freud um claro objetivo terapêutico para além dessas
constatações. A cura é possível, diz ele, mas somente ao preço de destruirmos as
ilusões, lançando assim o sujeito em uma espécie de existência desidealizada.
É preciso destacar que a obra freudiana carrega certa ambiguidade ao conceber as
formas (saudáveis ou patológicas) de se relacionar com a realidade. Como observa
Coelho Junior (1995, pp.68-69), se por um lado parece que é preciso “aceitar a realidade
como ela é”, por outro a realidade se apresenta como “fonte de sofrimento e desprazer”.
Resta apenas “encontrar, de forma ‘saudável’ (através da sublimação, por exemplo),
técnicas de vida que lhe permitam transformar esta realidade, ou ao menos fazer com
que ela seja ‘capaz’ de acolher alguns desejos”. Acredito, porém, que é justamente a
manutenção desse paradoxo – aceitar e repudiar o sofrimento ao mesmo tempo (através
do triunfo, por exemplo) – que permite vias mais saudáveis, típicas do processo
sublimatório. No fundo, o que está em jogo parece ser o fato de fazer com que a
realidade “seja capaz de acolher alguns desejos” (Coelho Junior, p.69).
Antes de sermos engolfados pela temática da sublimação, proponho abordarmos
inicialmente a acepção defensiva da noção de ilusão em Freud.

2
Loureiro (2002, pp.316-320) acredita que “Freud investe contra alguns valores altamente estimados
pelos românticos”, tais como: a idealização do passado, do futuro, dos povos.

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Ilusões defensivas

Transportando a relação entre ilusão e sonho para a obra de Freud, temos em A


interpretação dos sonhos a afirmação, inspirada em Wundt, de que os estímulos
sensoriais gerados durante o sono são responsáveis por representações que aparecem
sob a forma de ilusões (Freud, 1999/1900, pp.93-94). Para além do plano sensório-
perceptivo, cujo momento reflete a intenção freudiana em encontrar fundamentos para
sustentar a sua teoria dos sonhos, vale ressaltar aqui a equivalência entre fenômenos
ilusórios e oníricos. Isto nos leva a crer que o elemento desejo, responsável pela
formação dos sonhos, está presente nessa abordagem inicial da noção de ilusão.
Vinte e sete anos depois, em O Futuro de uma Ilusão, Freud define ilusão.
Vejamos a passagem:

Uma ilusão não é a mesma coisa que um erro; tampouco é


necessariamente um erro (...) O que é característico das ilusões é o fato de
derivarem de desejos humanos. Com respeito a isso, aproximam-se dos
delírios psiquiátricos, mas deles diferem também, à parte a estrutura mais
complicada dos delírios. No caso destes, enfatizamos como essencial o
fato de eles se acharem em contradição com a realidade. As ilusões não
precisam ser necessariamente falsas, ou seja, irrealizáveis ou em
contradição com a realidade. (...) Podemos, portanto, chamar uma crença
de ilusão quando uma realização de desejo constitui fator proeminente em
sua motivação e, assim procedendo, desprezamos suas relações com a
realidade, tal como a própria ilusão não dá valor à verificação (Freud,
1996/1927a, pp.39-40).

O elemento desejo aparece com intensidade na formulação do conceito


freudiano de ilusão. Nas palavras de Mezan (2006, p.548), “a ilusão é indiferente ao
Princípio de Realidade”, consistindo em “uma categoria intermediária entre a verdade e
o erro”. O desejo que orienta a crença religiosa remete ao pai, facilitando a submissão a
seu representante imaginário. Assim, na ilusão religiosa, por exemplo, a raiz é a
“nostalgia do pai, e desse ponto de vista – como nota Freud no primeiro diálogo de O
futuro de uma ilusão – a gênese da religião a partir da impotência infantil e do crime
primordial são uma só e mesma coisa, porque este não é mais do que uma reação
àquela” (Mezan, 2006, pp. 580-581).
A religião parece ser o modelo de ilusão em Freud, como o artigo de 1927 propõe.
Encontramos, no entanto, alguns outros modelos no artigo sobre o mal-estar, publicado
três anos depois. Freud afirma que para enfrentar o sofrimento inerente ao conflito entre
pulsões e civilização, o homem necessita fazer uso de defesas, que vão desde a tentativa
de controlar ou aniquilar totalmente as pulsões (como, por exemplo, a Ioga3 e o
isolamento), bem como formas mais ilusórias como a intoxicação e a religião. Ao lado
da ilusão religiosa, Freud também situa a filosofia que, ao contrário da ciência, apega-se
“à ilusão de ser capaz de apresentar um quadro do universo que seja sem falhas e
coerente, embora tal quadro esteja fadado a ruir ante cada novo avanço em nosso

3
Para o budismo e o hinduísmo, assim como na psicanálise, o desejo causa sofrimento. Na psicanálise,
contudo, não é preciso aniquilar esse desejo através das práticas de meditação.

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conhecimento” (Freud, 1996/1933, p.157). Ou seja, a ilusão filosófica é da ordem da


onipotência do pensamento4.
É curioso perceber que Freud não coloca a ciência ao lado da filosofia na tentativa
de conceber a realidade de modo onipotente. Aliás, a própria ciência é considerada uma
anti-ilusão, uma espécie de antídoto contra a ilusão religiosa, como sugere Freud
(1996/1927a, p. 47) ao ressaltar as consequências do espírito científico na diminuição
do “valor probatório dos documentos religiosos”. No final do texto, em tom
apaixonado, Freud proclama: “Não, nossa ciência não é uma ilusão. Ilusão seria
imaginar que aquilo que a ciência não nos pode dar, podemos conseguir em outro lugar”
(1996/1927a, p. 63).
Mesmo a ciência (ou melhor, a ciência natural) é pensada no Mal-estar na
civilização com uma ênfase menor devido ao seu “controle sobre a natureza de uma
maneira jamais imaginada” (Freud, 1996/1930, p.94). A ideia de progresso, embutida
muitas vezes em algumas concepções científicas, promove uma espécie de ilusão ao
atrelar a felicidade ao poder humano de dominar a natureza. Nesse sentido, podemos
presumir que essa concepção de ciência também é da ordem da ilusão de onipotência de
pensamento por promover um ideal impossível de ser alcançado.
No entanto, ao tratar de ciência, nos lembra Joel Birman (1997, p. 74), “Freud
tem como referência efetiva o saber psicanalítico”. Em seu livro Estilo e modernidade
em psicanálise, Birman afirma que “a ciência seria o outro da religião”, ressaltando o
reconhecimento do desamparo e da falibilidade da concepção de ciência em Freud,
“condição de possibilidade do desejo de saber”:

A pretensão da ciência seria a de realizar sempre uma leitura parcial do


real, restrita a campos experimentais e fenomênicos bem delimitados.
Estaria implícito no discurso científico o reconhecimento da
impossibilidade de uma interpretação totalizante do real, sendo pois um
contra-senso uma concepção totalizante da ciência (Birman, 1997, p. 79).

Tratando do reconhecimento do acaso, não poderia deixar de recordar o final do


texto sobre Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância. Após uma série de
hipóteses interpretativas sobre a infância de Leonardo, e suas implicações na
constituição do pintor, Freud reconhece que quase sempre esquecemos o que realmente
“influi em nossa vida”: o acaso. De acordo com ele, o acaso está presente “desde nossa
gênese a partir do encontro de um espermatozoide com um óvulo – acaso que, no
entanto, participa das leis e necessidades da natureza, faltando-lhe apenas qualquer
ligação com nossos desejos e ilusões” (Freud, 1996/1910b, p.141).
Assim, para Freud, é impossível alcançar a verdadeira e plena felicidade, a não ser
que houvesse a possibilidade de uma satisfação direta das pulsões. O processo
civilizatório, entretanto, se coloca diante dessa empreitada e, nesse embate, é muito
mais fácil o caminho da infelicidade. Só resta tornar a “não-satisfação” menos penosa,

4
Tal crítica de Freud à filosofia é questionada por Mezan: “A catilinária de Freud contra a filosofia , pois,
parece ser também adequada para apostrofar a psicanálise. E cabe perguntar se tal desprezo não recobre
uma intenção defensiva, como se a filosofia reenviasse, como um espelho, certos elementos da obra
freudiana que seu autor prefere desconhecer” (Mezan, 2006, p.669).

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recorrendo às ilusões do sintoma, da droga, da religião e das vontades de verdade:


ilusões defensivas que desconhecem tanto seu caráter mediador da realidade quanto a
realidade do desejo a que estão submetidas.
A questão que se coloca é: no cardápio das ilusões, não há espaço para outras
formas ilusórias, mais criativas em lugar de resignação e defesa?

Ilusões criativas

A pergunta anterior nos conduz diretamente ao quarto destino pulsional, o da


sublimação. Trata-se, segundo Freud, do destino mais “refinado” e “elevado”, uma vez
que não promove um retorno ao inconsciente como acontece com o recalque. Na
sublimação, “a qualidade neurótica está ausente” e “a pulsão pode agir livremente a
serviço do interesse intelectual” (Freud, 1996/1910b, p.88). O ponto frágil desse destino
está no fato de que “só é acessível a poucas pessoas”, ou seja, “pressupõe a posse de
dotes e disposições especiais que, para qualquer fim prático, estão longe de serem
comuns” (Freud, 1996/1930, p.87).
É certo que, considerando os paradoxos em torno da noção de sublimação na obra
de Freud, podemos questionar esse caráter de nobreza atribuído aqueles que sublimam:
basta evocarmos a faceta constitutiva que a sublimação adquire em alguns momentos.
No artigo dos Três ensaios, por exemplo (momento em que Freud utiliza o termo
sublimação pela primeira vez em uma publicação), nos deparamos com a premissa de
que esse processo “entra em jogo no desenvolvimento de cada indivíduo” (1996/1905,
p.168) e tem como momento inaugural o período de latência sexual da infância. Outro
indício desse caráter constitutivo da sublimação aparece na ideia de que, mediada pelo
Eu, ela atua no processo de identificação. O próprio supereu surge, nos lembra Freud
(2011/1923, p.71), “de uma identificação com o pai tomado como modelo. Toda
identificação desse tipo tem a natureza de uma dessexualização ou mesmo de uma
sublimação”. É importante marcar, aliás, que apesar da sublimação estar inicialmente
associada à dessexualização – no contexto do paradigma do recalque que rege a
primeira tópica – a noção ganha contornos mais abrangentes com a segunda tópica,
especificamente vinculada às noções de desinvestimento e reinvestimento libidinal
presentes na criação de novos objetos, como encontramos no artigo sobre O Eu e o Id
(2011/1923). Essa ideia permite que a sublimação também seja entendida como um
processo de criação erotizado – sentido oposto da concepção inicial de dessexualização.
O paradoxo se estende ao tomarmos a noção de desfusão pulsional e o consequente
risco de destrutividade presente no ato criador, ou seja, de destino sadio associado à
criação, a sublimação também tem o poder de liberar forças destrutivas pertencentes ao
domínio da pulsão de morte. A aparente instabilidade dessa ambiguidade conceitual é, a
meu ver, o elemento mais fértil da constituição desse conceito metapsicológico.
Não pretendemos ingressar mais detidamente na complexa temática da
sublimação. Lembramos que a noção nos interessa na medida em que evoca a sua
relação com a ilusão. Assim, é importante destacar a peculiaridade em relação ao
vínculo com a realidade, como Freud expõe:

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Nele, a distensão do vínculo com a realidade vai mais longe; a satisfação


é obtida através de ilusões, reconhecidas como tais, sem que se verifique
permissão para que a discrepância entre elas e a realidade interfira na sua
fruição. A região onde essas ilusões se originam é a vida da imaginação;
na época em que o desenvolvimento do senso de realidade se efetuou,
essa região foi expressamente isentada das exigências do teste de
realidade e posta de lado a fim de realizar objetivos difíceis de serem
levados a termo. À frente das satisfações obtidas através da fantasia
ergue-se a fruição das obras de arte, fruição que, por intermédio do artista,
é tornada acessível inclusive àqueles que não são criadores (Freud,
1996/1930, p.88, grifo nosso).

Freud chama atenção para o caráter de reflexividade na sublimação, ou seja,


continua se tratando de um processo ilusório, porém, com uma lucidez particular5.
Lucidez que permite “o sujeito realizar a renúncia pulsional, aceitar o impacto da
interdição, sem que isso implique abrir mão da posição desejante”. (Birman, 1997,
p.93). Assim, a criação artística aparentemente assegura o desejo do sujeito, o que não
acontece com a religião e a filosofia, onde o sujeito é “engolido pelo Outro”. Eis talvez
a “verdade” a que Freud se refere no artigo sobre As perspectivas futuras da terapêutica
psicanalítica: a verdade do desejo. Contudo, é importante frisar que a partir da segunda
tópica, mais especificamente com as noções de mal-estar, pulsão de morte, compulsão à
repetição e, principalmente, com o resgate da noção de desamparo, a psicanálise se
aproxima ainda mais da filosofia trágica ao sublinhar o caráter irremediável da luta do
sujeito com a civilização (Birman 1997, 2003). Assim, podemos inferir que já não há
tanta possibilidade de uma cura baseada na destruição das ilusões. Se antes Freud
expunha de um modo quase iluminista a crença na potência desveladora e eficaz do seu
método, agora são expostos de um modo trágico empecilhos constitutivos que o fazem
pensar, por exemplo, nas limitações do processo terapêutico (Freud, 1996/1937). Diante
disso, aparentemente só nos restam as ilusões.
Se para Freud a religião é modelo de ilusão defensiva, a arte parece ser o de ilusão
criativa. Não é à toa que são várias as referências presentes ao longo de sua obra, além
das identificações do próprio com os artistas e escritores. Contudo, a arte não é a única
via possível em direção a uma criação sublimatória6. Encontramos no humor outra via
de lucidez criativa diante da tragicidade. Em sua teoria de 1927, Freud afirma que a
essência do humor está na economia dos afetos penosos e na conseqüente produção de
prazer, em lugar do sofrimento. É o caso da piada do condenado que ilustra a obra: em
plena segunda-feira, ao dirigir-se para a execução, o prisioneiro exclama “Bem, a
semana está começando otimamente”. Rir de si mesmo ou daquilo que provoca
sofrimento, para Freud, está longe de representar desespero ou uma fuga maníaca: “O
humor não é resignado, mas rebelde” (Freud, 1996/1927b, p.166). O riso, então,
consiste em uma forma de suportar essa condição humana. Como nos lembra Daniel

5
Birman (1997, p.89) chama atenção para a hierarquia existente entre os saberes freudiano, de acordo
com os valores do desamparo e do desejo. Nesse sentido, o autor opta por distinguir as “formações
ilusórias” das “formações sublimatórias”.
6
“Criação sublimatória” é um modo de ampliar a compreensão do processo sublimatório, condensando-o
à noção winnicottiana (1989) de criação.

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Kupermann (2003, p. 231), “o humor freudiano, com a sua mescla de lucidez e


ludicidade, é a mais perfeita expressão da alegria que se impõe como necessária ao
pensamento trágico no campo filosófico”.
Tal rebeldia do humor lembra a concepção de riso trágico de Clemént Rosset
(1989). O filósofo nietzschiano, em sua obra A Lógica do Pior, defende o riso trágico
em oposição ao que chama de riso clássico, cuja origem está no contraste de sentidos. A
partir do naufrágio do Titanic em 1912, Rosset constrói suas premissas fundamentais.
Segundo o autor, o acidente com o inabalável navio gerou algumas situações
tragicômicas: a estranha ordem de ir à máxima velocidade ao encontro dos icebergs; o
repouso do comandante em sua cabine pouco tempo antes do acontecido; o contraste do
cenário local (mar calmo, céu estrelado, visibilidade perfeita etc.); o alerta de iceberg
dado somente depois do choque; os músicos embalando os últimos momentos com
hinos religiosos. Porém, o riso trágico a que Rosset se refere é suscitado pelo
desaparecimento completo do navio em pouco tempo: “Riso que nasce quando algo
vem a desaparecer sem razão – talvez porque o incongruente da desaparição revele a
posteriori o insólito da aparição que a precedia: ou seja, o acaso de toda a existência.”
(Rosset, 1989, p. 191).
Além de tudo, o humor consiste também em uma produção ilusória diante do real,
como o próprio Freud (1996/1927b, p.169) afirma: “também é verdade que,
ocasionando a atitude humorística, o superego está realmente repudiando a realidade e
servindo a uma ilusão”. A recusa é em prol do triunfo narcísico, ou seja, “o ego se
recusa a ser afligido pelas provocações da realidade, a permitir que seja compelido a
sofrer”, insistindo “que não pode ser afetado pelos traumas do mundo externo;
demonstra, na verdade, que esses traumas para ele não passam de ocasiões para obter
prazer” (Freud, 1996/1927b, p.166). Eis uma ilusão que aparentemente se distingue dos
métodos clássicos de fuga ‘da compulsão para sofrer’: a neurose, a loucura, a
intoxicação, a religião.
Longe de tornar-se inoperante ou desativado, o caráter trágico da realidade suscita
o humor, ao mesmo tempo em que se torna alvo dele. A parcela inoperante é o próprio
sofrimento, atualizado pelo prazer da produção humorística. Como reconhece o próprio
Freud, o humor continua sendo uma ilusão, juntamente com “a extensa série de métodos
que a mente humana construiu a fim de fugir à compulsão para sofrer – uma série que
começa com a neurose e culmina na loucura, incluindo a intoxicação, a auto-absorção e
o êxtase” (1996/1927b, pp.168-169). Entretanto, a ilusão libertadora do humor “possui
uma dignidade” (1996/1927b, p.167) ao afirmar o trágico. Esse reconhecimento, nas
palavras de Freud, não é paralisador, pelo contrário, “aponta a direção para a nossa
atividade. Se não podemos afastar todo sofrimento, podemos afastar um pouco dele e
mitigar outro tanto: a experiência de muitos milhares de anos nos convenceu disso”
(Freud, 1996/1930, p.93).
Como é destacado por Freud (1996/1930, p.88), “essas ilusões” se originam na
vida da imaginação e da fantasia, “na época em que o senso de realidade se efetuou”.
Em seu artigo Escritores criativos e devaneios (1996/1908) referindo-se particularmente
ao aspecto da fantasia, Freud compara o trabalho de um escritor ao brincar de uma
criança. Para ele, ambos criam e levam a sério um mundo de fantasia no qual investem

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uma grande quantidade de emoção, enquanto mantêm uma separação nítida entre o
mesmo e a realidade (Freud, 1996/1908). Somente no mundo imaginativo, do artista ou
da criança, os excitamentos penosos da vida real são transformados em fontes de prazer
por um processo de elaboração. A metáfora do carretel, relatada por Freud em 1920,
ilustra claramente esse aspecto: o menino, na ausência da mãe, transforma a sua
experiência em jogo, exercendo um papel ativo diante da situação de desamparo (Freud,
1996/1920, pp.25-28). Eis o motivo pelo qual Freud sublinha a seriedade do brincar: “A
antítese de brincar não é o sério, mas o que é real” (Freud, 1996/1908, p.135). O brincar
em suas diversas formas (inclusive artísticas e humorísticas) inaugura um campo
ilusório trágico-criativo. Trata-se, assim, da marca da plasticidade do desejo e da
exuberância da potência do homem diante da condição trágica. Isso nos leva a crer que
o caminho do desilusionamento parece não consistir no abandono ou destruição em si
das ilusões (o que talvez seja da ordem do impossível), mas em sua apropriação ético-
estética. Em outros termos, o desilusionamento estaria mais próximo de uma ilusão que
se reconhece como tal, como sugere o processo sublimatório.

Submissão: set/2012
Aceite: nov/2012

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