0% acharam este documento útil (0 voto)
174 visualizações

A Árvore de Ossos

Enviado por

kapyvara
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
0% acharam este documento útil (0 voto)
174 visualizações

A Árvore de Ossos

Enviado por

kapyvara
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
Você está na página 1/ 8

A árvore de ossos

Não aguento mais o meu corpo. Não aguento mais as suas limitações, as suas
falhas, as suas dores. Não aguento mais viver nessa prisão de carne e osso. Não
aguento mais ser eu. Queria ser outra coisa, outra pessoa. Queria ser livre, leve, feliz.
Queria ser forte, ter beleza, admiração, medo. Queria ser diferente, singular, especial.
Queria ser tudo o que eu não sou. Mas eu sou só isso. Um corpo comum.
Mas quando eu me deixar ser livre, quando o chão se encharcar de meu sangue. . .
Engraçado, eu não imaginei que a perda de sangue me traria tanta alucinação, quase
consigo escutar os passos se aproximando, mas não tem ninguém aqui. Ninguém viria
aqui. Ninguém sabe que eu estou aqui. Por que eu estou com medo? Eu sempre quis
me encontrar com o diabo, mas agora que eu escuto os passos dele, eu tenho medo.

Eu abri meus olhos em um susto, estava debruçada sobre minha mesa, minha
bochecha estava coberta por uma camada vermelha seca, tinta. Eu havia adormecido
no lugar errado, como sempre, um caos estava presente em meu quarto, algumas tintas
derrubadas, materiais espalhados por todo canto, janelas fechadas, uma vela apagada,
e por fim, uma tela de pintura, completamente em branco.
Já foi-se o tempo onde pintar era prazeroso para mim. por inúmeras vezes desejei
nunca ter começado com isso pra começo de conversa, eu deveria ter ficado em casa,
vivido uma vida normal. Com a minha aparência eu certamente poderia encontrar um
bom noivo, maldito seja o dia em que eu me rendi aos meus desejos, aos meus sonhos.
Lembro-me perfeitamente do dia em que ele apareceu na minha vida. Eu estava
debaixo de uma macieira com uma tábua de madeira lisa e tinta preta, feita a base de
carvão e óleo, despretensiosa, eu passava os dedos por cima da tábua, formava
contrastes, desenhava formas, mas ainda não era arte.
Ele chegou sem que eu notasse. Ele era tão encantador, como se seu rosto fora
esculpido por deus em pessoa, cabelos escuros, diferentemente de seus olhos azuis
como o céu, mas sua beleza não foi o que mais me encantou, não, o que me encantou
foi a maneira com que ele falava, e assim aquela bagunça que eu fazia se tornou arte,
tudo porque ele acreditou em mim, aquilo, que pra mim era só um pedaço de madeira
sujo, pra ele era algo belo o suficiente para ser “egoísmo manter só para si”.
Me prometeu um mundo novo, longe da sombra do desconhecimento. Não estava
mentindo, ele realmente me mostrou um mundo novo, mas não era como imaginei. Lá
estava eu, enquanto pessoas passavam e admiravam a pintura na parede, eu fazia meu
melhor para não ser notada, mal eles sabiam que, o nome logo abaixo e a pintura em si
não pertenciam a mesma pessoa.
Eu criava as pinturas, enquanto ele criava uma pessoa, que só existia nas nossas
mentiras e na boca das pessoas, que não faziam ideia de que, o tão famoso artista
exótico era na verdade uma mulher, que nunca recebera aula alguma com os grandes
mestres em nossos templos chiques.
Essa maldita pintura foi o resultado de meu pequeno problema com sono. Não sei
dizer quando começou, só sei que eu vinha sonhando com essa figura, uma árvore
enorme de casca branca, folhas vermelhas e frutos dourados, apesar que o resultado
final ficou mais um acobreado, já que eu não achei prudente usar ouro de verdade.
De tempos em tempos eu vinha aqui, olhar pra ela, como se não bastasse vê-la em
meus sonhos, eu ouvia as pessoas falando coisas belas sobre a pintura, interpretações
realmente lindas, isso me dava raiva, não era nada disso, aquela árvore me dava medo.
Eu não conseguia fazer nada além de encarar apavorada.
Eu quase podia sentir-me dentro daquele sonho de novo, todos os detalhes que eu
não pude transmitir com a tinta, alí na minha frente, tão reais quanto eu, me
convidando a chegar mais próximo, e eu sempre o faço, como se fosse uma mariposa
indo em direção ao fogo, eu podia sentir meus pés descalços tocando aquele líquido
vermelho grosso a cada passo, e então, eu me via de frente aquele gigante e sentia os
galhos a perfurar minha pele, fechei meus olhos como sempre, esperando a dor chegar
no meu coração, mas dessa vez eu não senti dor alguma.
Olhei para o lado, lá estava alguém que eu nunca tinha visto antes com a mão no
meu ombro. Cabelos loiros, olhos verdes, alto, portava uma espada em sua cintura. Ele
parecia preocupado, só aí eu percebi que eu provavelmente não estava com uma
expressão muito boa também.
Ele disse que me vira ao longe e decidiu conversar comigo, ver se eu estava bem,
“Eu conheço a morte de perto, sei a expressão de alguém que está pronto para
morrer.” e ri nervosa, ele pediu perdão algumas vezes por ser intrometido, mas eu
disse que estava tudo bem.
Meu francês ainda era um pouco falho nessa época, então foi bom conversar com
alguém que não fez cara feia pra mim, não só isso, ele realmente era muito gentil. nós
conversamos por um bom tempo, mesmo após dos sinos tocarem, nós ainda estávamos
lá, como se nos conhecessemos a tempos.
Eventualmente tivemos que nos despedir, nós nos separamos, mas ele me fez
prometer que nos veríamos de novo na noite seguinte, no lago, próximo a igreja. “Eu
vou te esperar lá até a última badalada dos sinos, por favor venha me ver.” Eu assenti
com a cabeça, algo nele me fez sentir calma, eu confiei naquele desconhecido mais
que qualquer pessoa nessa terra.
A noite seguinte chegou, e cá estava eu, toda suja de tinta em um quarto
bagunçado. me arrumei às pressas, prendi o cabelo, limpei a tinta do corpo, usei meus
melhores óleos perfumados e coloquei um bom vestido, um que não atrapalhasse de
mais os movimentos, já que eu teria que sair de casa sem ser notada.
Eu corri pelas ruas evitando encontrar com pessoas o máximo possível. A noite
estava muito bonita, a água brilhava conforme a luz do luar batia nas ondas, estava
frio, o vento assobiava alto. Eu esperei por ele, esperei até a lua chegar no ponto mais
alto do céu, eu ouvi os sinos anunciaram cruelmente, ele não veio. Eu chorei como
uma criança, me sentia uma idiota.
Eu estava sentada debaixo de uma macieira. Ele chegou sem que eu notasse,
estava tão encantador como sempre foi, como se seu rosto fosse esculpido por deus
em pessoa, cabelos escuros, diferentemente de seus olhos azuis como o céu diurno, ele
colocou seu casaco sobre meus ombros, estendeu a mão para que eu levantasse, e
abriu os braços.
Eu o abracei com toda a força que eu tinha, entre as lágrimas eu perguntei como
havia me encontrado, ele disse que havia me seguido até aqui, me viu saindo de casa,
mas não falou nada, decidiu me seguir e estava ali ao longe o tempo todo, até me ver
começar a chorar.
“Eu não queria que você chorasse, eu deveria ter aparecido antes.” ele me trouxe
pra mais próximo, era muito mais intimidade do que eu estava acostumada, dava pra
sentir a pele gelada do queixo dele apoiado no meu ombro. O cheiro do perfume dele
era doce, quase tão forte quanto o cheiro de ferro que ele tinha.
E começou, foi a primeira vez que aconteceu tão sem conexão, eu vi aquele
pesadelo na minha frente, mas não como das outras vezes, eu não estava em um outro
lugar, eu estava ali, e a árvore também. eu tentei me desvencilhar dele, mas ele era
mais forte que eu. “Você vai ser quem você quer, não vai mais ficar sozinha, eu
prometo.” eu senti aqueles galhos passando e se enrolando em nós dois, depois, uma
dor no pescoço, seguida por um prazer.
A próxima coisa que eu me lembro depois disso, foi de me sentir em um corpo
que não era o meu, seja lá como meu corpo era.
Eu estava cada vez mais inquieto, a medida com que eu caminhava pelas ruas, eu
podia sentir, quem quer que estivesse me seguindo, chegando mais próximo, me
espreitando como se eu fosse sua presa. Tamanha audácia! Apoiei minha mão no cabo
da espada, “Quem quer que seja, se arrependerá se tentasse me atrapalhar agora.” foi
o'que passou pela minha cabeça, hoje seria uma noite importante, eu não queria que
nada saísse errado.
Há algum tempo que vinha me sentido monótono, por anos, eu me encontrava
nessa posição, eu sempre fui o mais eficiente, muito mais que meus irmãos e colegas,
mesmo assim, eu nunca sou aquele a receber os louros da vitória, se pelo menos
metade desses velhos tivessem um pingo de respeito e bom senso sobre o que é justo,
eu arrisco dizer, essa cidade seria minha.
São poucas as coisas que podem me tirar do meu caminho, eu faço o'que tem que
ser feito, sem distrações, sem linhas tortas, mas ela . . .ela me roubou qualquer chance
de permanecer consistente. Ela tentava não chamar atenção, mas eu não pude tirar os
olhos dela. Cabelos castanhos, ondulados que escapavam do capuz e escorriam pelos
ombros como cascata, lábios vermelhos, mas seu olhar era algo difícil de descrever.
Eu sentia vontade de abraçar ela, dizer que vai ficar tudo bem, eu queria fazer ela
se sentir bem, se sentir segura.Quando me dei conta, eu estava com a mão em seu
ombro. Nossos olhos se encontraram e minhas suspeitas foram confirmadas, essa
mulher, ela tinha o mesmo olhar que o meu, de alguém que está pronto para morrer.
Para a surpresa de ninguém, ela não ficou muito confortável quando eu apontei
esse fato, não me pergunte o'que eu esperava com isso, eu não vou saber te responder,
eu não estava no meu melhor juízo. Ainda assim, mesmo com toda minha falta de
decoro, ela não recuou, nem tentou desconversar.
A conversa durou horas. Ela era uma pintora, mas não pintava nada que vendesse
a um tempo, perguntei se teria sido ela a autora da pintura ao nosso lado, ela pareceu
incomodada, abriu a boca para responder, foi quando aquela pessoa apareceu, ele
parecia bem mais incomodado que ela, cabelo escuro, olhos claros,rosto angular,
quase tão alto quanto eu, mas bem menos atlético.
Eu me coloquei entre os dois, eu pude ver os olhos claros dele se encherem de
raiva, que rapidamente deu lugar a um sorriso amarelo “Querida, acredito que eu não
fui apresentado a esse senhor. O que. . .Milorde teria a tratar com minha noiva?” Olhei
para ela, sem me tirar do caminho, ela parecia confusa, ergui uma das sobrancelhas, e,
de maneira um pouco mais natural que a dele, ela pôs um sorriso no rosto.
De fato ela não parecia com medo, nem nervosa, no máximo surpresa, mas a
situação não era exatamente natural, nenhum dos dois tinha aliança nos dedos
anelares, mesmo que o homem não parecesse um lorde, ele tão pouco parecia não ter
dinheiro algum a ponto de não externar essa união com um anel por mais simples que
fosse.
Estranhei essa antinomia. “Ah. . .eu o conheci agora a pouco.” Disse ela com sua
voz tranquila, sendo seguida pela frase dele. “Bem, então acredito que deveríamos ir,
não?” Ela o olhou um pouco triste e então me olhou, peguei sua mão delicadamente,
me pus de costas para o homem,levei sua mão até meus lábios, a beijei fazendo
questão de estar próximo a ela e sussurrei. “Eu vou te esperar lá até a última badalada
dos sinos, por favor venha me ver.”
A noite seguinte chegou, e cá estava eu, com minha espada na cintura, uma meia
armadura que não protegia tanto quanto era bela. Eu corri pelas ruas evitando
encontrar com pessoas o máximo possível, não foi tão difícil, já era noite, seria
comum esperar que não houvesse muitas pessoas fora de casa, ainda assim, não podia
deixar de me sentir observado.
Eu virei uma esquina, coloquei o'que estava carregando no chão e me pus a
esperar, eu precisava mudar o rumo do jogo. esperei por alguns segundos, na intenção
de que meu perseguidor pudesse ser pego de surpresa, ao invés disso, senti os braços
envolverem minha cintura em um abraço, minha primeira reação foi de segurar essa
pessoa e a colocar na minha frente, era uma mulher, cabelos escuros e lisos.
Antes que eu a questionasse ouvi uma voz familiar, vindo da mesma direção de
onde recebi o abraço, isso me acalmou um pouco, mas não pôs um sorriso no meu
rosto, era meu irmão, ele estava acompanhado de mais duas moças. “Ei, pra que isso
tudo? Ela não morde, não paguei ela pra morder.”
Eu ainda segurava seu braço quando a olhei de cima a baixo, não era feia, mas não
me interessava nem um pouco, esse tipo de serviço nunca me foi muito atrativo, ele
sabia disso, mesmo assim insistia em fazer essas brincadeira de vez em quando. Com
um sorriso canastrão meu irmão disse “Pra quê essa cara séria? Tem tanto medo de
mulher assim? Eu começo a pensar que você gosta de outro tipo de coisa.”
“Por conversas assim que eu evito manter mais contato que o necessário com
você.” eu respondi já soltando o braço da moça e pegando do chão o arranjo de flores
que eu trazia, ao ver isso ele deu um sorriso malicioso, mas antes que ele tivesse
tempo de pensar em algo idiota para dizer, uma das garotas me perguntou se eu teria
fo feito por conta propria, respondi que sim, ela olhou surpresa.
“O que tem de tão impressionante nisso?” Ao me ouvir isso ela ficou confusa e
perguntou “você não sabe o'que essas querem dizer?” Neguei balançando a cabeça, ela
sorriu como se achasse graça “a mulher que receber essas flores vai ficar muito feliz,
tenho certeza.” Por mais que eu tenha ficado curioso, eu precisava ir, não podia
arriscar me atrasar.
Parti em direção ao lago. A noite estava muito bonita, a água brilhava conforme a
luz do luar batia nas ondas, estava frio, o vento assobiava alto. Eu sentei debaixo de
uma macieira e esperei por ela, esperei até a lua chegar no ponto mais alto do céu, eu
ouvi os sinos anunciaram cruelmente, ela não veio.
Não sei até hoje o porquê de eu ter ficado tão esperançoso, uma mulher sensata,
noiva ou não, não iria atender a um compromisso com um estranho, não conseguia
parar de pensar o quanto eu fui um idiota por agir tão impulsivamente, me senti
envergonhado, esse é o tipo de comportamento que pertencia a tolos como meu irmão,
não a mim.
Fui até o lago, me abaixei na margem, coloquei as flores sobre a água e as
empurrei para que boiasse para longe, vi elas afundarem não muito distante da
beirada. Me senti estranho, a mesma sensação de estar sendo observado, me virei para
olhar para trás, já com a mão na espada.
Só ouvia o farfalhar das folhas e sentia o vento passando em minha pele,
permaneci ainda sim em guarda, mas nada se mostrou, pelo menos não onde eu
pudesse ver. Alguém. Não. Alguma coisa me agarrou pela cintura e me puxou para
dentro da água, eu senti os dentes da criatura perfurarem meu corpo, entre meu
pescoço e o ombro.
A próxima coisa que eu me lembro depois disso, foi de me sentir em um corpo
que não era o meu, seja lá como meu corpo era.
Recordação da promessa de um amor puro e eterno

Você também pode gostar