Documento sem nome
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Uma das saídas, talvez a mais procurada pela maioria dos poetas, é se instalar como um
saudoso dos tempos antigos o caminho da evasão romântica. O individualismo burguês,
atomizando a antiga unidade, é traduzido, pelo poeta romântico, por agudo subjetivismo
emocional: a fuga para o mundo interior é um meio de autodefesa.
Por esse caminho a poesia romântica pode correr o risco de transformar-se num mero
balbucio emotivo, sufocado na esfera pessoal, e o texto seria apenas expressão dessa
emotividade (a função emotiva da linguagem).
Quando Edgar Allan Poe se declara "out of space/ out of time", sua resposta, sendo a de
um poeta que reflete sobre a criação poética, enfrenta o desafio feito pelas novas técnicas
de reprodução e novas tecnologias, capazes de multiplicar as linguagens. Era preciso
procurar atentamente, no próprio material verbal, as potencialidades de uma expressão que,
na trilha da antiga aliança entre palavra e som, desde sempre valorizada pelos bons poetas,
pudesse dar novo perfil à linguagem da poesia.
O poeta romântico, de um modo geral, ainda tenta manter o antigo mito literário que exalta a
figura do poeta. A lucidez de um Edgar Allan Poe não contagia a maioria dos poetas
românticos, que prefere tratar a crise que se anuncia como uma questão de foro íntimo,
lamentando a profunda solidão do "eu". Esse "eu", assim como o próprio artista na
sociedade, pretende manter seu lugar assegurado, e o faz através da valorização do
sentimento e da emoção individual.
Com o advento do Romantismo, a poesia não se justifica mais como imitação (o conceito
neoclássico da "mimesis" aristotélica), mas como expressão inspirada de uma alma. O
poeta será comparado a um organismo vivo: está, portanto, delineada uma verdadeira
revolução no conceito de poesia e, dentro da nova ordem de valores, a poesia lírica terá
lugar de destaque nas produções e reflexões estéticas.
Entre os críticos que mais contribuíram para o novo rumo do pensamento crítico está o
pré-romântico alemão Johann Gottfried Herder (1744-1803), considerado como o primeiro
que rompeu com o pensamento neoclássico europeu. Herder repele a classificação por
gêneros e, quando fala em epopéia, drama e poesia lírica, é capaz de fundir o que, em
Aristóteles, estava rigidamente separado.
Mas o mais interessante para a nova ideia de lirismo é a modernidade de sua concepção da
poesia como linguagem de sons, tons e metro: uma concepção que, embora moderna,
acaba sendo uma recuperação da unidade original de poesia e música. Além do aspecto da
eufonia da linguagem, Herder aponta a importância da imagem, da analogia, e sua
convivência, na poesia, com a fábula e o mito. Atente-se para o fato de que som, tom e
metro é que são os elementos propriamente líricos do poema.
O alemão Novalis (1772-1801), poeta romântico mal compreendido em seu próprio século,
lançou reflexões teóricas extremamente próximas de uma poética moderna, na medida em
que, como mineralogista, estendia seu encanto pelos processos químicos para as
combinações verbais. Para Novalis a poesia lírica seria a pura expressão do poético, do
mundo da magia, embora, nesse mundo mágico, entrasse o dado da construção
matemática a organizar fragmentos do mundo.
Goethe (1749-1832) também discutiu bastante a questão dos gêneros e não aprovava que
fossem misturados. Mas ao desaprovar o princípio da subjetividade poética que dominava a
seu tempo, chamando-o de "doença geral da época", deu um passo decisivo no
entendimento da verdadeira função do sujeito da poesia, o sujeito lírico, acreditando numa
identidade entre sujeito e objeto, espírito e natureza ou, enfim, homem e natureza.
Durante o século XIX, no entanto, a teoria do crítico francês Brunetière (1849-1906) lembra
ainda a visão clássica dos gêneros, embora com tintas modernas. A visão de Brunetière,
aparentemente legado das teorias evolucionistas em moda nos fins do século XIX, é ainda
normativa, considerando os gêneros literários como entidades em si mesmas, sem levar em
conta o processo criativo de produção dos textos.
Benedetto Croce (1866-1952), por exemplo, diretamente inspirado pelo espírito romântico,
desprezava qualquer abordagem científica e, ao invés da idéia de gêneros como modelos,
colocava em primeiro lugar a concepção de cada obra de arte como expressão única e
insubstituível: interessavam os objetos reais, os textos, o gosto do leitor e não os conceitos
de gêneros, suportáveis apenas enquanto instrumentais empíricos.
Um novo tempo. Uma nova poesia?
Do ponto de vista das conquistas técnicas da linguagem poética, o Romantismo dará lugar
de destaque ao ritmo, no projeto de organizar analogicamente por traços de semelhança ou
diferenças a imagem do mundo no poema. A rebelião romântica contra a versificação
silábica irá casar-se com sua própria aventura de pensamento, já liberto do racionalismo
anterior. Ritmo e analogia: eis os princípios românticos.
Se é possível falar num "estilo lírico", talvez ele encontre em alguns poetas românticos seus
momentos mais exemplares, naqueles casos em que o dado subjetivo consegue ultrapassar
o estágio da mera confissão para encontrar até mesmo seu oposto os limites da própria
{expressão subjetiva -,dando o salto para o coletivo e o universal.
Sobre os picos
paz
nos cimos
quase
nenhum sopro.
Calam aves nos ramos.
Logo, vamos,
virá o repouso.
(Tradução de Haroldo de Campos)*
{ 24 A leitura que desse texto fez Emil Staiger destaca a tessitura sonora e as suspensões
de frases modulando a entonação da voz como um dos modos de falar sobre o silêncio e a
espera. Adorno, ao referir-se a esse mesmo poema, mostra como ele presentifica um
instante: depois de sonhar com a paz de uma natureza já perdida, vem a percepção de que
essa paz é apenas uma promessa, talvez definitivamente adiada.
O poema se faz sob o signo da negatividade sem alardes e, por isso mesmo, dolorosa,
ecoando profundamente na alma melancólica e nostálgica do sujeito lírico.
1
As relações entre imagens, ritmos e sonoridades prevalecem sobre a lógica de uma sintaxe
submetida à versificação: é esse o caminho mais fecundo do Romantismo.
Num país orgulhoso de afirmar-se como personalidade social e poética, num momento de
autodescoberta, o lirismo romântico brasileiro acabou superpondo afirmação nacionalista,
personalidade literária e eloqüência retórica. Nesse contexto, o verso de dez sílabas, por
exemplo, tornou-se apenas um molde repetitivo e empobrecedor. Nesses casos, a estética
aliou-se à retórica: mesmo flagrando, aparentemente, a "mais autêntica" expressão da
emoção pessoal e suas relações com a natureza, essa poesia romântica apenas respondia
a códigos e expectativas de linguagem já previstos.
Não podemos nos esquecer de que a persuasão e indução retóricas hoje chamadas
consenso e manipulação podem incluir no seu projeto de aceitação uma "retórica do afeto",
para facilitar a adesão do leitor à mensagem.
Não sendo a regra, no entanto, o lirismo romântico brasileiro também conseguiu, em muitos
momentos, integrar "eu" e "natureza" na linguagem do poema. O poema de Gonçalves Dias
(1823-1864) que vem abaixo, tematizando o próprio decorrer do tempo no decorrer do texto,
é um belo exemplo de como a expressão lírica pode alcançar um estatuto amplo e
contundente.
1
1. O texto original é: "Über allen Gipfeln/Ist Ruh/In allen Wipfeln/ /Spürest du/Kaum einen
Hauch/Die Vögelein schweigen im Walde/Warte nur, balde/Ruhest du auch".
Entre os românticos que foram capazes de levar as sugestões de sua época a ponto de
reverter radicalmente modelos e expectativas estéticas, está o brasileiro Sousândrade
(1832-1902). O Guesa errante, longo poema dividido em cantos, publicado em Nova Iorque
em 1876, traz uma introdução à edição americana onde o próprio poeta já sente
dificuldades de encaixar seu texto nas classificações de épico, lírico ou dramático, talvez
pelo caráter de invenção melódica que ultrapassava a concepção tradicional de melódica
romântica.
"O Guesa nada tendo do dramático, do lírico ou do épico, mas simplesmente da narrativa,
adotei para ele o metro que menos canta, e como se até fosse necessária, a monotonia dos
sons de uma só corda."
Em outros poemas do mesmo autor, que não pertencem ao Guesa, observa-se também a
opção moderníssima por uma lógica analógica que, sem precisar ficar amarrada ao modo
da subordinação estabelece, entre as imagens colhidas, verdadeiras relações de
montagem.
Dá meia-noite
Alb..........