Características Do Paulismo
Características Do Paulismo
Características Do Paulismo
O prprio paulismo (termo que deriva do poema que comea Pauis de roarem nsias pela minh' alma em oiro, atrs aludido) uma inveno de Pessoa que consiste num refinamento dos processos simbolistas. Como observou Gaspar Simes, Pauis ilustra, bem melhor que a poesia saudosista, os caracteres que Pessoa atribura a esta num artigo d' A guia: o vago, o complexo, o subtil [...] O estilo palico define-se pela voluntria confuso do subjetivo e do objetivo, pela associao de ideias desconexas, pelas frases nominais, exclamativas, pelas aberraes da sintaxe (transparente de Foi, oco de ter-se), pelo vocabulrio expressivo de tdio, do vazio da alma, do anseio de outra coisa, um vago alm (ouro, azul, Mistrio, pelo uso de maisculas que traduzem a profundidade espiritual de certas palavras (Outros Sinos, Hora).
Coelho, Jacinto do Prado, DICIONRIO DE LITERATURA (in Modernismo), 3. edio, 2. volume, Porto, Figueirinhas, 1979
De entre os escassos textos do poeta escritos por altura da criao do Paulismo, um, aparecido postumamente, tem para ns significao muito especial (1). Nele, Pessoa postula o carcter de sonho da literatura moderna. A nova literatura forosamente arte de sonho, segundoPessoa, porque o pensamento e a ao, na poca moderna, se separaram irremediavelmente. Na Idade Mdia e na Renascena, um sonhador, como o Infante D. Henrique, punha o seu sonho em prtica. Bastava que com intensidade o sonhasse. Hoje, 0 pequeno mundo fechado de outrora rebentou. A democracia parcelou o poder em vrias partes, a poca dos Descobrimentos alargou a nossa viso do mundo, introduzindo o imperialismo. No mundo da realidade, as possibilidades de aventura atrofiaram-se; mesmo as mais audazes expedies ao Plo e as mais temerrias experincias dos pioneiros do voo j no esbarram com mistrios, mas sempre com factos, j conhecidos da Cincia ou, pelo menos, facilmente integrveis na sua viso das coisas. Por tudo isto, que a Arte teve de abandonar o mundo exterior, desvendado e vazio, e refugiar-se nos mistrios do mundo interior que tende ...para o sonho crescente, cada vez mais para o sonho. O poeta destes sonhos deve deixar-se conduzir pelas impresses visuais, mais do que pelo ouvido ou pelo tato. E o quadro, a paisagem, de sonho, na sua essncia, porque esttica, negadora do continuamente dinmico, que o mundo exterior. (Quanto mais rpida e turva a vida moderna, mais lento, quieto e claro sonho.) Sob o signo do Paulismo e do Intersecionismo, Pessoa escreve poesias deliberadamente estticas [...] S se pode julgar o Simbolismo com justia, se se reconhecer a sua tripla natureza: : 1) uma decadncia do Romantismo; 2) um movimento de reao contra o cientismo; 3) um estdio na evoluo (ou princpio duma evoluo) de uma nova arte. Ao escritor moderno restam trs caminhos, podendo: 1) entregar-se ao mundo exterior e, na peugada de Whitman e Verhaeren, tornar-se no cantor da civilizao moderna - papel que Pessoa atribui em primeiro lugar ao seu heternimo lvaro de Campos; 2) pr-se margem, fechando-se num sonho todo individual, seguindo o exemplo de Poe, Baudelaire, Rossetti e outros - caminho que Pessoa escolheu nas poesias em ingls agrupadas sob o ttulo The Mad Fiddler; 3) fugir da realidade e refugiar-se no sonho, mas procurando levar consigo o ruidosomundo exterior. O ltimo caminho o que Pessoa considera o mais tipicamente portugus, determinante da poesia portuguesa j desde Antero de Quental. [...] pois de notar a mudana de atitude em relao ao Simbolismo, pelo qual Pessoa, nos artigos para A guia, mostrara a mais total averso. O Simbolismo j no lhe parece o canto-de-cisne duma poca literria, mas sim um possvel comeo para qualquer coisa de diferente, de novo. Com isto fica o caminho livre para as teorias paulista como interseccionista. Esta atitude tambm explica a razo de ambas as doutrinas, apesar da polmica de Pessoa contra uma arte subjetiva, serem afinal prolongamentos da
escola simbolista. Para alm de ambas as tentativas, paira a convico de que o maior poeta da poca moderna ser o que tiver mais capacidade de sonho. De modo que ambas as escolas so tidas desde o princpio como estdios intermdios, como solues provisrias, como a transio entre dois estdios da evoluo civilizacional, isto , entre o Romantismo e uma poca nova da arte, ainda no claramente definvel. A designao de Paulismo para a arte de sonho moderna provm de uma poesia datada de 29-3-1913, que comea com a palavra pauis. Paulismo significa, pois, poesia de paul ou pntano. O poema apareceu em 1914, no nmero nico da revista A Renascena, e documenta a primeira vinda a pblico de Pessoa como poeta portugus. De Paris, Mrio de S-Carneiro, de quem Pessoa se tornara recentemente amigo, prodigaliza-lhe um acolhimento entusiasta. Numa carta de 6-5-1913, S-Carneiro escreve extasiado: Quanto aos PAUIS... Eu sinto-os, eu compreendo-os, e acho-os simplesmente uma coisa maravilhosa... lcool doirado, chama louca, perfume de ilhas misteriosas o que voc ps nesse excerto admirvel, onde abundam as garras... (2) A admirao de S-Carneiro e de outros escritores amigos mostra claramente que o programa contido no poema correspondia expectativa dos autores jovens. Muito justamente, J. G. Simes chama a ateno para o facto de Pessoa ter aplicado no poema programtico Pauis aqueles princpios, precisamente, que tinha descrito nos artigos para a revista dos saudosistas, como sendo os caractersticos da nova poesia portuguesa (3). O vago, a subtileza e a complexidade, qualidades que atribura nos artigos aos versos de Pascoaes e de Mrio Beiro, transfereas Pessoaagora, de forma programtica, para a sua prpria poesia: IMPRESSES DO CREPSCULO Pauis de roarem nsias pela minh' alma em ouro... Dobre longnquo de Outros Sinos... Empalidece o louro Trigo na cinza do poente... Corre um frio carnal por minh' alma... To sempre a mesma, a Hora!... Balouar de cimos de palma! Silncio que as folhas fitam em ns... Outono delgado Oh que mudo grito de nsia pe garras na Hora! Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora! Estendo as mos para alm, mas ao estend-las j vejo Que no aquilo que quero aquilo que desejo... Cmbalos de Imperfeio... to antiguidade A Hora expulsa de si-Tempo! Onda de recuo que invade O meu abandonar-se a mim prprio at desfalecer, E recordar tanto o Eu presente que me sinto esquecer!... Fluido de aurola, transparente de Foi, oco de ter-se. O Mistrio sabe-me a eu ser outro... Luar sobre o no conter-se... A sentinela hirta - a lana que finca no cho mais alta do que ela... Para que tudo isto.... Dia cho... Trepadeiras de despropsitos lambendo de Hora os Alns... Horizontes fechando os olhos ao espao em que so elos de ferro... Fanfarras de pios de silncios futuros... Longes trens... Portes vistos longe... atravs de rvores... to de ferro! (4) No centro do poema que concretiza a conceo de Pessoa da arte de sonho esttica, aparece o meioverso: To sempre a mesma, a Hora!, meio-verso este que caracteriza o tema: o tdio de viver. Expresses do vago aparecem com frequncia extrema e propositada: Pauis de roarem nsias, o soar do dobre longnquo, as folhas que fitam o silncio da alma e, at o canto da alma se confunde no indefinido das coisas; no estremecimento perante o tdio da hora, o poeta anseia pelo inatingvel: por outra coisa que o que chora. O impulso para um Alm, quanto aos seus prprios fins. o Eu do poeta deixa-se atrair para este redemoinho de coisas vagas e sonhadas, alheando-se de si mesmo at se reduzir a uma simples recordao e cair finalmente no esquecimento. Uma alienao total de si mesmo substitui-se-lhe: O Mistrio sabe-me a eu ser outro... Esta nsia indefinida de Ideal e a alienao de si mesmo canalizam-se para a pergunta: Para que tudo isto... Dia cho. O mundo no fornece resposta nsia de ideal, fechando-se a qualquer tentativa de escape para alm dos limites do mundo de sonho por ns mesmo construdo. Imagens desta nossa limitao concluem o poema: primeiro horizontes, depois portes numa indiferena de ferro - impondo barreiras ao poeta e ao seu mundo de sonho, para alm das quais ele no consegue escapar.
A subtileza tambm facilmente detetvel. Segundo os artigos de Pessoa para A guia, uma sensao simples ter de ser traduzida por uma expresso que a torne vivida, minuciosa, detalhada [...], sem contudo lhe acrescentar elemento que se no encontre na direta sensao inicial. Isto verifica-se atravs da utilizao de imagens intensificadoras. A inquietao da alma torna-se mais ntida atravs da imagem pauis de roarem nsias de minh' alma em ouro.... A uniformidade deprimente da Hora exterioriza-se no balouar de cimos de palma. O sentimento de insuficincia caracterizado pelos cmbalos de Imperfeio. A imobilidade do tempo traduz-se na imagem da sentinela hirta que finca a lana no cho. As trepadeiras de despropsitos exprimem a nsia v de Ideal Aliada subtileza, por vezes quase se no distinguindo dela, encontramos a complexidade. A complexidade consiste, tal como fora definida nos artigos sobre o Saudosismo, na traduo duma impresso ou sensao simples por uma expresso que a complica, acrescentando-lhe um elemento explicativo que, extrado dela, lhe d um novo sentido. Como exemplo desta complexidade podemos considerar a imagem alma em ouro; a emoo da alma ao contemplar o pr do Sol alia-se nsia de Ideal; a palavra ouro utilizada neste seu sentido extremo tanto por Pessoa como por S-Carneiro. A j mencionada alienao de si mesmo complica-se por meio da referncia a novas qualidades: fluido, transparente, oco. Um exemplo de complexidade particularmente arrojado o da expresso fanfarras de pios. Paradoxalmente, as fanfarras anunciam silncios futuros; o pio associa-se ideia de silncio, por isso a aposio de imagens fanfarras de pios. E, por fim, encontramos no verso corre um frio carnal pela minh' alma, simultaneamente, um exemplo da materializao do esprito e espiritualizao da matria que Pessoa atribura poesia de Pascoaes. Os Pauis arquitetam, igualmente, um reino de sonho completamente subjetivo. Do mundo exterior s chegam ao poema fragmentos, todos eles em relao estreita com a disposio do poeta: pauis, sinos, trigo, palmas, o azul do cu, luar, portes. Sem valor prprio, aparecem como sinais dum mundo exterior transferido, todo ele na sua totalidade, para o mistrio do sonho. J. G. Simes chamou ao Paulismo um saudosismo intelectualizado. Pascoaes e Mrio Beiro tinham sido vagos na sua poesia por intuio, porque ser vago correspondia conceo que tinham da espiritualidade da Natureza; Pessoa, pelo contrrio, utiliza o vago com propsitos programticos. J. G. Simes comenta a este respeito: O elemento intelectual que no comparecia na obra dos saudosistas, todos emoo e instinto, o trao distintivo do paulismo. (5) Apesar de assim ser, n<o devemos passar por cima a proximidade em que os Pauis tambm se encontram do Simbolismo [...] Nela [uma carta ao Dirio de Notcias] Pessoa instruiu os adversrios da arte moderna: O paulismo pertence corrente cuja primeira manifestao ntida foi o simbolismo [...] o paulismo um enorme progresso sobre todo o simbolismo e o neo-simbolismo de l-fora. (6
Caractersticas do Intersecioniso
Processo tpico da poesia do Modernismo, paralelo s sobreposies dinmicas da pintura futurista, e de que Fernando Pessoa nos deu exemplos acabados nas seis partes de Chuva Oblqua (in Orpheu n. 2, 1915) - demonstrao brilhante de inteligncia esttica e de capacidade inovadora. Cruzam-se a a paisagem presente e a ausente, o atual e o pretrito, o real e o onrico: Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito / E a cor das flores transparente de as velas de grandes navios / Que largam do cais.... A alma est lucidamente dividida, a hora dupla, o autor capta subtis correspondncias de sensaes: Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia, / E cada vela que se acende mais chuva a bater na vidraa... Mas F. Pessoa cedo poria de lado esta experincia ldica, dos arredores da sua sinceridade.
Coelho, Jacinto do Prado, DICIONRIO DE LITERATURA (in Modernismo), 3. edio, 2. volume, Porto, Figueirinhas, 1979
As teorias esttico-literrias elaboradas por Pessoa depois do Paulismo servem essencialmente para justificar os heternimos e fundamentar a produo deles, pelo menos na sua primeira fase. De certa maneira exceo , apenas, o Intersecionismo que coexiste com a criao dos heternimos. Mas como j notmos, o Intersecionismo manteve-se desde o princpio muito prximo do Sensacionismo, acabando por se fundir com ele. Se, no obstante, o consideramos separadamente, isto deve-se ao facto de o Intersecionismo, tal como o Paulismo, poder ser interpretado mais facilmente base dos poemas que lhes servem de modelo. Deve-se, pois, considerar conjuntamente a poesia programtica Chuva Oblqua e as passagens das cartas relacionadas com o Intersecionismo, se quisermos definir tanto quanto possvel com exatido a fase de transio entre o Paulismo e as teorias dos heternimos. Na data 4-10-1914 - meio ano depois da criao de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e lvaro de Campos , Pessoa escreve a Cortes-Rodrigues: Verdade seja que descobri um novo gnero de paulismo. Mas preciso completar o feito. (1) Com a sua habitual paixo pelas ideias, caratteristica dei pigri fantasiosi e complessati (2) (Luciana Stegagno Picchio), Pessoa comea logo vasta ao de propaganda para divulgao da nova corrente. H que sair com uma revista intersecionista, ou melhor ainda, com uma antologia do Intersecionismo e, para colaboradores, so mais uma vez convocados todos os amigos que, h pouco ainda ligados ao Paulismo, de ora em diante passam a assinar-se de intersecionistas: SCarneiro, A. P. Guisado e Cortes-Rodrigues. Para os espritos inferiores prev-se o auxlio por meio de grficos ou desenhos em que o Intersecionismo aparea como cruzamento ou interseco de todas as correntes anteriores. O projeto no se chega a concretizar, tal como acontecer com a antologia do Sensacionismo em 1916. Parece, porm, ter existido um manifesto do Intersecionismo, pelo menos em fragmento, pois que Pessoa se lhe refere numa carta a Cortes-Rodrigues a 4-1-1915, na qual declara: No publicarei o Manifesto escandaloso. Tratava-se talvez dum texto precursor do Ultimatum publicado por lvaro de Campos em 1917 na revista Portugal Futurista? O carcter escandaloso do Ultimatum poderia justificar esta conjetura, tanto mais que um facto no ter aparecido no esplio, onde de resto se encontram todos os apontamentos manuscritos do autor, qualquer manifesto intersecionista. De qualquer maneira, certo que Pessoa quis, no seu primeiro entusiasmo, interpretar o Intersecionismo como Paulismo a srio e que considerou o Orpheu do seu amigo S-Carneiro como o rgo prprio para dar a ressonncia devida nova escola. J. G. Simes (3) sustenta esta opinio e afirma, noutro local, que o Intersecionismo representa na obra de Pessoa a transposio do Cubismo e do Futurismopara a literatura (4). O prprio Pessoa, porm, defende-se, como mostraremos, categoricamente contra a confuso do Intersecionismo com oFuturismo. Simes sugere, mas injustamente com certeza, que Pessoa tivesse sido encaminhado para as suas novas teorias atravs das cartas de S-Carneiro, vindas de Paris. Mas as cartas de S-carneiro dos anos de 1913 a 1914, embora contenham de facto aluses ao Cubismo, ao fascnio de Picasso e aos teoremas loucos do futurista Santa Rita Pintor, no fornecem quaisquer pontos de referncia a partir dos quais Pessoa pudesse ter feito derivar o seu Intersecionismo. S em 13-8-1915, muito depois do aparecimento do poema programtico do Intersecionismo, que S-Carneiro participa ao amigo a compra dum volume com poemas futuristas de Marinetti, Btuda e Altomare, elogiando as exclamaes a contidas Fu, fu, cri, cri e corcuruco como muito recomendveis adentro da nova poesia. [...] Chuva Oblqua uma amostra de virtuosismo potico e como tal, para demonstrar as variaes do novo programa, desdobra-se em seis partes [...]. Para exemplo, tomemos dois excertos especialmente
caractersticos. O poema na sua totalidade data de junho de 1914, seguindo-se aos primeiros versos de Caeiro, e foi publicado em 1915, no segundo nmero de Orpheu. CHUVA OBLQUA
I
Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito E a cor das flores transparente de as velas de grandes navios Que largam do cais arrastando nas guas por sombra Os vultos ao sol daquelas rvores antigas... O porto que sonho sombrio e plido E esta paisagem cheia de sol deste lado... Mas no meu esprito o sol deste dia porto sombrio E os navios que saem do porto so estas rvores ao sol... Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo... O vulto do cais a estrada ntida e calma Que se levanta e se ergue como um muro, E os navios passam por dentro dos troncos das rvores Com uma horizontalidade vertical, E deixam cair amarras na gua pelas folhas uma a uma dentro... No sei quem me sonho... Sbito toda a gua do mar do porto transparente E vejo no fundo, como uma estampa enorme que l estivesse desdobrada, Esta paisagem toda, renque de rvores, estrada a arder em aquele porto, E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem E chega ao p de mim, e entra por mim dentro, E passa para o outro lado da minha alma... Se chamamos a este poema paradigma da corrente intersecionista porque a sua estrutura segue com uma nitidez geomtrica uma nica diretriz fundamental: a interseco de duas superfcies, ou sejam, uma paisagem vivida e um porto imaginado. Desta interseco resulta uma sequncia imagtica de grande nitidez plstica. [...] O poema muito mais, de princpio a fim, uma montagem em dois planos e os efeitos de contraste so produzidos pela sobreposio de dois todos, o sonhado e o vivido. Com tudo isto pode dizer-se que nos encontramos ainda em terreno romntico; pois que, como no Paulismo, o sonho mais forte do que a realidade exterior. O porto imaginrio liberta o poeta da realidade (liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...). Na segunda metade do poema processa-se abertamente uma permuta entre o sonho e a realidade: o porto imaginrio ganha supremacia, usurpando o lugar paisagem real que, por sua vez, assume a forma imaginria, emergindo diante dos nossos olhos como fico, como estampa no fundo das guas do porto imaginrio. Desta dupla paisagem esttica solta-se a imagem mtica da nau ou caravela que, apesar do seu carcter imaginrio, adquire tais foros de realidade que o poeta a distingue ou perceciona em ambos os planos simultaneamente, e sente que entra por ele dentro. Este fenmeno - a entrada da caravela na alma do poeta - sublinha mais uma vez a duplicidade da vivncia, duplicidade esta provocada pela interseco do sonho com a realidade. Se nos lembrarmos de que o que os pintores cubistas pretendiam era representar simultaneamente as vrias superfcies dum objeto, as visveis e as encobertas, -nos fcil descobrir que o Intersecionismo nada tem a ver com a tcnica dos cubistas. O processo da interseco de superfcies no pode ter derivado do cubismo nem pode, legitimamente, ser relacionado com ele. A primazia dada ao sonho no final do poema mostra muito mais que a desvalorizao paulista do mundo exterior, em favor dum mundo fictcio criado pela imaginao do poeta, continua a existir tambm no Intersecionismo. O novo estilo de Pessoa est mais prximo do Paulismo do que o querem admitir crticos como J. G. Simes. A que efeitos requintados pode conduzir a tcnica da interseco, quando aplicada rigorosa e consequentemente, podemos avali-lo numa outra passagem de Chuva Oblqua:
III
A Grande Esfinge do Egipto sonha pr este papel dentro... Escrevo - e ela aparece-me atravs da minha mo transparente E ao canto do papel erguem-se as pirmides... Escrevo - perturbo-me de ver o bico da minha pena Ser o perfil do rei Quops... De repente paro... Escureceu tudo... Caio por um abismo feito de tempo... Estou soterrado sob as pirmides a escrever versos luz clara deste candeeiro E todo o Egipto me esmaga de alto atravs dos traos que fao com a pena... Ouo a Esfinge rir por dentro O som da minha pena a correr no papel... Atravessa o eu no poder v-la uma mo enorme, Varre tudo para o canto do tecto que fica por detrs de mim, E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve Jaz o cadver do rei Quops, olhando-me com olhos muito abertos, E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo E uma alegria de barcos embandeirados erra Numa diagonal difusa Entre mim e o que eu penso... Funerais do rei Quops em ouro velho e Mim!... A tcnica intersecionista - alis caracterizada em ambas as passagens por termos geomtricos, aqui atravs da diagonal difusa, na primeira parte atravs da horizontal vertical - faz com que se entrecruzem aqui os planos do presente e do passado. Nos trs primeiros versos o presente real e o passado imaginrio comeam por se apresentar desligados um do outro. O poeta ao escrever est a pensar no Egipto, e as imagens da esfinge e das pirmides surgem diante dele. A viso e a realidade encadeiam-se. A juno das duas conduz ao desfecho quase humorstico da imagem seguinte: no bico da pena do poeta aparece o perfil do rei Quops. A tcnica da intercalao, como vemos, utilizada a rigor. Feita a advertncia (de repente paro... Escureceu tudo...), consuma-se a permuta dos dois planos: o sonho ganha a primazia e o poeta deixa-se dominar pelas imagens que ele prprio criou ao ponto de, neste caso, se sentir esmagado pelas pirmides. De novo se entrecruzam os dois planos: o bico da caneta transforma-se no riso da esfinge. Ao contrrio do primeiro exemplo que transcrevemos, parece-nos aqui evidente a existncia dum maior requinte na aplicao da tcnica intersecionista: o perfil do rei Quops transforma-se em cadver, cadver sete que, como convm a um sonho, fita de olhos abertos o poeta, iniciando com ele uma espcie de dilogo mudo do qual resultam novas imagens: o Nilo, barcos embandeirados, preparativos para os funerais. O ouro velho do verso final, metfora predileta no s de S-Carneiro mas tambm de Pessoa na fase paulista, indica-nos que a viso acontece numa esfera ideal; os funerais do rei tm lugar simultaneamente no passado e no presente do Eu sensvel. Como principal inovao em relao ao Paulismo assinalam-se, alm da nitidez plstica de cada uma das imagens, nitidez esta j antecipada em poemas como o Ela canta, pobre ceifeira, a transio da mtrica tradicional para o verso livre e sem rima. Para o que oMarine de Rimbaud poderia bem ter servido de exemplo. Tambm o Intersecionismo permanece ainda preso nas malhas da poesia simbolista e subjetiva. Ningum o soube ver mais claramente que o prprio Pessoa. Na carta ao Dirio de Notcias de 4-61915 temo-lo a protestar contra a confuso que os jornalistas daquele dirio, dada a sua ignorncia, praticam, entre Futurismo e Intersecionismo; Pessoa explica: A atitude principal do futurismo a Objetividade Absoluta, a eliminao, da arte, de tudo quanto ALMA, quanto sentimento, emoo, lirismo, subjetividade em suma. O futurismo dinmico e analtico por excelncia. Ora se h cousa que [seja] tpica do Intersecionismo (tal o nome do movimento portugus) a subjetividade excessiva, a sntese levada ao mximo, o exagero da atitude esttica. (5) Se procurmos dar uma ideia da tcnica intersecionista base do exemplo de Chuva Oblqua, porque a estrutura deste ciclo de poemas no de modo algum compreensvel sem a teoria que lhe est por detrs. De resto o nmero de poemas claramente derivados do Intersecionismo muito reduzido. Isto provm do facto, com certeza, de Pessoa ter esboado num perodo de tempo relativamente curto vrias teorias totalmente diferentes; no , pois para admirar que cada uma das teorias de per si s se possa encontrar, em estado puro, em poucos poemas padro. [...]
Pessoa tinha, alis, todos os motivos para se opor confuso entre Intersecionismo e Futurismo. Logo que a palavra de ordem das tendncias modernistas na arte europeia comeara a circular, todas as outras teorias estavam em risco de serem classificadas sob a mesma etiqueta. O Intersecionismo de Pessoa no era, de resto, uma doutrina cuidadosamente formulada, como o futurismo de Marinetti, mas apenas uma tcnica de composio, cujas caractersticas peculiares s se podiam avaliar pelos poemas que lhe serviam de exemplo. Quem observasse de fora podia imputar ao Intersecionismo tudo aquilo que, pessoalmente, tinha por modernista. Da a confuso do Intersecionismo com o Futurismo ter sido acatada, inadvertidamente, mesmo pelo amigo mais chegado de Pessoa, Mrio de S-Carneiro, como no-lo mostra o seu poema Manicure. [...] Os vrios planos caoticamente agrupados no poema e a referncia expressa a inmeras interseces (em vez do entrecruzar de dois planos apenas, utilizado por Pessoa), afastam o poema para perto do Simultanesmo e do Sensacionismo.