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Jorge Sand, ''Aldo o Rimador''

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ALDO O RIMADOR


I


Jorge Sand — a loura — com seu viver desvairoso, aquelle poetar negro a ir ter na descrença, na desillusão das abusões mais doces, ao zombar de tudo quanto ahi ha mais santo, até do casamento, de tudo quanto ha ahi mais consagrado pelo longo correr da humanidade, as formulas da propriedade, naquella sua thcoria ardente balanceada entre o socialismo e o communismo, entre Platão e Fourier, assombrada daquelle S. Simonismo que delirára tanto á França inteira as cabeças mais ricas de poesia, desde Lerminier o neophito e o renegado até Pierre Leroux o anti-eclectico, Felix Pyat o dramaturgo, Eug. Sue o romancista dos Mysterios do povo... A fé que aquella mulher que n um dia splenetico pisou as sedas com que o homem decorou a íraqueza feminil, talvez como o paganismo de flôres as suas hecatombas, merece attenção daquelle, embora humilde espectador da riqueza do crepusculo brilhante de poesia acordado no bello periodo de glorias litterarias e liberalismo revolucionário. que tão bem o Sr. Capefigue caracterisou na sua Historia da Restauração, ido de Carlos X que enfraquecia e ameaçára cahir ao futuro das barricadas de 1830 até Luiz Philippe o rei-cidadão, a quem ehamárào o Napoleão da paz, e a França chamou também trahidor de um futuro onde o rei só ia ser o garante da liberdade republicana, e que, dizião-no ao menos, e o povo assim o cria, elle jurára aos emissários de Julho.

Sand, a duellista, a romancista fogosa que percorrêra a sós as ruinas dessa Italia, onde Byron fizera estacar Childe Harold sobre a cinza de tantas glorias, inda sonoras como aquelles rochedos que assombrão o viajor, ás margens do Orenóco, onde o frio da noite coando nas camadas inda quentes do dia, acorda melodias estranhas, como o vento do deserto ao raiar do sol nos labios do Memnon Egypciaco — Sand a peregrina que se apossara tanto de seu caracter viril, que nem ha (senão ás vezes, na febre de seus delirios feminis, no seu sentimentalismo apurado) clarear-lhe ao fundo a idéa da mulher — Sand, passada apenas do seu papel de Byron para o leito de amante daquelle cuja voz prophetica corrêra susurrosa de augurios como um vendaval pelo ameaçar ruinôso do Christianismo que parecia desboroar-se, o poeta das Palavras de um Crente —, é certo um dos bellos themas da civilisação, talvez do estudo da febre progressista e dissoluta que lavra por essa França além-mar.

Bofé, que fôra bello estudar-lhe um a um os elementos philosopho-litterarios, ir buscar-lhe as inspirações na vida aventureira, no enthusiasmo excitado ás insomnias do poeta-rei, desse lord Byron, cujo ardente scepticisino calára no seculo como as lymphas calcáreas a reverem, suadas pelas estalactites gigantescas das grutas dos Andes, naquelles lagos negros onde o som da lagrima da abobada rebôa como um tombar grão a grão das arêas da ampulheta da eternidade. Áquelle que foi buscar nos elementos dos poemas de Musset a origem no Childe (que, se sobrarem-lhe horas irá indagá-los em alguns laureados da litteratura modernissima) não será inutil estudo a relembrança do poeta inglez nas harmonias selvagens de madame Dudevant.

Comtudo Sand não está tanto para Byron como Musset. Se lhe falta aquella melodia Lamartiniana, ha nella mais fogo, c aquella idea funda que fazia dizer a Alphonse Karr na sua sêde de originalidade : « É preciosa cousa a individualidade. Fôra melhor nada ser e ser si proprio, que resumbrar a caricatura, ou a prova pallida de um grande homem : fôra desperança parecer com Voltaire, Napoleão ou Byron. »

Lavater, no retrato de Henrique Fuessil o pintor, talvez entrevio J. Sand; por ventura não foi uma illusão dessa mulher o ver naquellas paginas o seu retrato. Lede Lelia, Consuelo, Jacques, o Secretario intimo; repassai vossa imaginação de algumas daquellas phantasias que lhe inspirárão o Orco; vêde após o retrato delia; comparai-lhe as faces cheias, onde a côr se perde na pallidez branca, ao perfil emmagrecido do pintor Allemão — pensareis que J. Sand não se enganou com sua imagem. Vêde :


« A curva do perfil... indica um caracter energico e sem peias.— A fronte, por seus contornos e postura vai melhor ao poeta que ao pensador — ha hi mais força que doçura, mais fogos de imaginação que o sangue frio da razão. O nariz semelha séde de um espirito audaz. A bocca promette um espirito de applicação e precisão : e comtudo custa-lhe o dar a derradeira mão á obra. A grande vivacidade leva-lhe de vencida sobre a attenção e exactidão de que o doou natura, e que se lhe vè inda nas partes dc suas obras. As vezes mesmo se lhe topão lugares de um acabado de lavor, que singularmente lhe contrasta com o deleixo do todo.

…………… ……………

É-lhe mister commoção porque o arroubem... sua imaginação visa sempre ao sublime, e se embebe nos prodígios... É de ver-lhe nas figuras capitaes de seus painéis uma qual tensão, que na verdade não é vulgar, mas que elle alça frequente até a exagerar, inda a mal da razão. Ninguém amára com mais terneza : o sentir do amor se lhe pinta no olhar; mas a fórma e o systema ossoso do rosto assellão nelle pendor ás scenas terríveis, e aos actos de poder e energia que ellas exigem. — A natureza fè-lo para poeta, pintor ou orador...» Eis o que basta. Juntai-lhe toda a influencia do genio de Shakspeare e o da realidade de Lara, o mysticismo que o levava ao genio de Listz, Weber e Meyerbeer, aos estudos de analyse profunda de Lavater, aquelle caracter singular repassado inda em seu scepticismo de visões, de crenças no mesmerismo, do somnambulisrno magnético ao ponto em que Cagliostro talvez o cria o desregrado daquelle viver passado entre o ebrioso do latakia, nos cachimbos turcos, as inspirações da musica de Listz, aquella fronte calva e bella de Everard surcada das incisões perpendiculares que Lavater só leu nas altas capacidades, e o amor de Lamennais — e após as longas noites a só (bemvindos sonhos onde corrião bemvindas as sombras de Raphael e Tebaldèo os lindos) — o passado do valle negro — os salgueiraes do rio — as leituras ebriosas de Corinna, Atala, Millevoye e a Iliada — aquellas tantas mulheres de seus romances onde ella incarnou, nà sua poesia italiana, sua alma de Arabe : ligai tudo isso n’uma idéa, n'uma individualidade — tereis J. Sand.


II


A Revista de Edimburgo anathematisou J. Sand. Po¬ bre Revista de Edimburgo! depois de Ryron — como o Vaticano após Luthero — teus raios que são? Ali já não é o romance que o jornal ataca; a critica vai além a vida, a honra da pobre mulher é rojada ao leito de lama que o successor de Jeffrey lhe cavára com as mãos. Sand é ahi uma perdida; só lhe faltou a palavra Shakspeariana — o cinismo de Othello abafando Desdemona— chama-la a whore...

O Sr. Nisard coneneeu-se mais do seu ministério. Se a critica se ala nobre é quando homens daquelles a tratão, quando nas mãos de Sainte-Beuve, Th. Gautier, Chateaubriand, V. Hugo é ella o treslado de idéas philosophicas, e não a diatribe a rasgar com mãos impias o véo de vestal das creações da poesia. Embalde a resposta do romancista a Nisard, a expressão delle é verdadeira : a synthese dos livros da autora de Valentin e Leonia é o egoismo dos sentidos, a metaphysica da matéria; o amante é o rei nos livros delia, o marido se azumbra, sublimado apenas quando se sacrifica, como Jacques, aos prazeres de sua mulher com seu amante,- e seja-nos licito aqui estender mais uma idéa do Sr. E. de Girardin no seu livro de Estudos Dramaticos — aquelle Jacques que veio dar o quarto desenlace ao romance dos amores cubiçosos de um estranho pela mulher casada (após Rousseau que o findára com a morte de Julia de Woldemar, Goethe com o suicidio de Werther, Dumas com o assassinato de Adèle e a devoção de Anlony o bastardo) com a morte voluntaria do marido. Ahi nesses volumes o casamento é um escarneo. Que importa Simon finde por um casamento nem mais nem menos que um conto de Perrault ou de Mme d’Aulnoy, como o diz espirituosamente Mme Dudevant, e no André o pleito não vá mais pelo amor conjugal que pelo adúltero? que importa? já não é bastante ir contra o casamento, igualar-lhe o sacrosanto com o amor adúltero?

Não sou comtudo daquelles que se arripião com a desenvoltura de Sand —, Tartufo que suma virtuosa¬ mente a face nas mãos ante os thesouros da belleza. A poesia é a belleza : desde que o poeta se não enxurde no lodo da obscenidade, desde que o assumpto se lhe não desflóre em mãos torpes, seja embora a sua inspiração essa metaphysica da matéria que mana de Don Juan e Lelia — que importa?

III

Aldo é um livrinho de poucas paginas. Para nós comtudo é — senão o primor de Sand — ao menos um prisma onde se lhe iríão os raios mais bellos da luz de seu genio.

Aldo é como Chatterton — um poeta que se acabrunha na miséria. Até ahi a idéa de Sand se funde na de Alfredo de Vigny; comtudo, na justa entre o melodioso cantor de Elòa, o suavissimo traductor do Othello (que na sua sobejidão de doçura resfriou porventura a belleza selvagem da creaçâo, senão a mais sublime de Shakspeare — talvez lhe anteponhamos a tragédia dos amores de Hamlet o sombrio e Opheha a ensandecida, — ao menos a que mais influencia teve na litteratura do seculo XIX pelo acordar da theoria dos contrastes que o Sr. V. Hugo creu adivinhar entre Branca e Triboulet, Quasímodo e Esmeralda, Lucrecia Borgia a dissoluta e Lucrecia Borgia a mãi, — depois que Hoffmann a relembrára entre o anão de seus contos e a Bohemia linda[1]; como diziamos, na lide entre Vigny, melodioso ainda no sombrio e fatal de seu ideal de Chatterton, e Sand ardente, a esta devia caber o laurel. O Chatterton que teve quarenta representações seguidas apezar de seu nenhum interesse dramático, áquelle primor do conde Vigny, bello no seu lugubre lyrismo ao genero.dos cantos dialogados de Job, precioso como a Ode do poeta que morre no hymuo de Gilbert — é comtudo uma sombra ante a riqueza de imaginativa da creação do Aldo.

O prefacio do Chatterton é tão bello quasi como o drama; o do Aldo entrevê-se na VIII das Cartas de um Viajante e na carta seguinte a Malgache. A idéa é a mesma — é o poeta que se debate na luta de Jacob com o anjo nas trevas. A alma zumbio áquelle enlace ferreo, e a arca estalou ao gladiador. Sc no beijo de morte de suas illusões ella regelou-se como aquella mulher pallida que esmorece e se engelha de lividez de morte nos braços do espectro no painel de Grienwald em Berne — eis- ahi o suicídio. Despair and die — eis a divisa do conde de Vigny : essa a lenda que se pudéra gravar aos diálogos do Rimador.

O enredo é um poeta de 18 annos que soffre; — uma atmosphera que o abafa; — uma mulher que ama sem saber, talvez sem querê-lo; — um marido brutal que se tornou duro como os engenhos de suas machinas a vapor; — um quaker que leva consolações a Chatterton; — a Ketty Bell que mitiga a dureza d’alma de John Bell, e que abençoa sobre o cadaver de um moço e de uma pobre mulher, amante e pura a um tempo, as núpcias do céo.

IV

É simplíssimo o enredo. —Inda mais simples se abstrahirmos delle o fabricante brutal que só entra para soltar o impeto de sua alma bronzeada, e serve de contraste ao suave da idéa de Ketty, molhando de lagrimas em segredo as faces de seus filhos. 0 primeiro acto é uma simples exposição — Ketty que chora junto ao santo Quaker — John Bell em furor que augmenta o trabalho, como se augmenta o fogo nas fornalhas de um vapor, sem lembrar-se que póde o engenho estourar — o homem de dinheiro que no seu orgulho inglez lá naquella constituição anachronica equilibra á aristocracia e reune-se com ella para esmagar aquelle povo que o orgulho daquella nação aristocrata maldisse na palavra mob — e lamenta na ferida do braço de um operário o damiio que o entalamento causou á machina.

Após do fabricante barbaro, é o marido brutal e grosseiro — o relevo está completo. De mais, é um quadro só, é uma medalha sem verso.

Depois é Chatterton. — Pallido, abatido, submisso ante os olhares da mulher que ama, ardente e enthusiasta ao cantar de seus poemas de Harold, á ironia que lhe remorde nos labios. A scena entre o Quaker e o moço é bella.

O segundo acto é o bafo da turba que dóe ao poeta.— É o hosanna do ebrio, louco Lord Talbot, e o sarcasmo do poeta. Depois é ainda a scena de amor, ainda as aspirações por aquella moça pallida

Pobre lyrio açoutado pelo vento!

e a febre que volta, e o delirio, a loucura, a risada estridula do doudo entre as lagrimas quentes. O dialogo que fecha o acto é soberbo. — E quando o Quaker falia no suicidio que Chatterton intenta :

KETTY BELL.

...Oh! não quero que morra! Que fez elle? que quer? Um homem tão moço! que alma celeste! a bondade dos anjos! a candura tão infantil! uma alma tão clara de purezas cahir assim no crime dos crimes, naquelle que Deos hesitara perdoar! Não, elle não se matará! Que lhe falta? Dinheiro? Pois bem, eu tê-lo-hei — acha-lo-hemos algures! Tomai, tomai, eis joias que nunca ousei trazer — tomai-as, vendei-as. Matar-se! ali! diante de meus filhos!...

……………

Quando todo aquelle amor de mulher rola até a idéa do sacrifício da honra pela vida delle, dizei : não é sublime aquella alma de anjo, que desceria do céo por aquelle pallido moço? — não vos alembrais ante ella do mysticismo da Eloa sacrificando-se por Satan o perdido — como Klopstock a entrevio, como Vigny joven sonhou no seu poema?

O acto 3º é o primor da peça — É na alcová de Chatterton «sombria, estreita, pobre, sem fogo — a enxerga miserável e o leito em desordem. »

O monologo é rico — desse acto —; traduzirei duas amostras dos dous monologos de Chatterton. Á primeira representação dessa peça, na Revista dos Dous Mundos sahio um bello artigo que lhe analysa o enredo e o desenvolvimento. Para o mais lá reenviamos ; — toda a vez que o leitor passar os olhos por aquelle tombo de bellos escriptos, certo lucrará.


SCENA I

CHATTERTON.

Certo ella me não ama... e eu? nem quero mais pensa-lo. Tenho as mãos em gelo, e a cabeça me queima. — Eis-me só em frente do meu trabalho. Não se trata de sorrir e parecer bom! saudar e apertar mãos alheias —- toda essa comedia representei: começo outra a sós eomigo. Preciso agora que minha vontade seja valente assaz, porque me empolgue a alma, e a leve do eadaver resurgido de meus heróes evocados, ao phantasma daquelles que invento ! E ante Chatterton doentio, ante Chatterton que tem frio e fome, minha vontade assente um outro Chatterton a esmero ornado pelo prazer do publico, e que esse desereva o outro; o trovador pelo mendigo. Eis duas poesias possiveis, nem mais longe que isso! Acordar - lhes sorriso ou piedade — fazer brincar miseráveis bonecos, ou sê-lo mesmo, e fazer trafico desse arremedo! Abrir o coração por expô-lo á venda num balcão! Se avermelhão ehagas, melhor! mais lhe sobe o preço : quanto mais mutilado, mais lhe pagão!

(Ergue-se.)

Ergue-te, creatura de Deos feita á sua imagem! e admira-te ainda nessa eondição!

(Ri e assenta-se. Um velho relogio sôa meia hora.)

Não! não!

A hora adverte : senta-te, trabalha, desgraçado!

Perdes o tempo imaginando; não ha scismu por idear senão que és um pobre. — Ouves-lo bem? um pobre!

Cada minuto de recolhimento é um roubo que faço, é uru minuto esteril.— Que importa a idéa, grande Deos! o que vai é a palavra. Ha tal palavra que póde subir até um shilling : o pensamento não corre na praea.

Oh! além! além! desanimo gelado, eu t’o peço.

Desdem de mim proprio, não me acimes á perdição! Volta- te, volta-te! pois agora meu nome, minha alcova — tudo é sabido; e se amanhãa esse livro não fòr eomprado, estarei perdido — perdido! — e sem esperança! Preso, julgado, condemnado, e lançado na masmorra! Degradação! vergonhoso trabalho!

(Escreve.)

É certo que essa moça nunca me amará. — E não posso eu deixar de pensar nisso?

(Longo silencio.)

Pouco orgulho tenho em lembra-la ainda.— Mas, digão-me : de que terei orgulho? Não tenho lugar nenhum em classe alguma. — É certo que a soberba nativa é que me aviventa. Ella me brada sempre aos ouvidos que não dobre nem tenha visos desgraçados. — E para que se finge a ventura quando ella é morta? Creio que para mulheres. Representamos todos ante ellas.— Pobres creaturas! Sonhão-te um solio, ó publicidade! vil publicidade! tu o pelourinho onde o profano que passa nos esbofetêa! — As mulheres amão aquelle que se não curva ante ninguém. E, pelo céo! tem razão! — Ao menos aquella que tem olhos sobre mim me não verá abaixar a cabeça. — Oh! se ella me amára...

(Entrega-se a longo scismar — de que sáe violento.)

Escreve pois, desgraçado, acorda tua vontade! —-Porque fraquêa-te ? Não havê-lo podido arrojar ainda, esse espirito rebelde que ella esporêa e que estaca? Humilhação nova para mim! Té aqui eu a vira despear-se ante o Senhor; até hoje era-lhe mister o bridão, esta noite é o acicate. — Ah! ah! immortal! Ah! ah! o duro senhor do corpo! Espirito soberbo, engéla-te por ventura esse miserável nevoeiro que penetra no quarto destruido? basta-te, orgulhoso, um pouco de vapor frio para vencer-te? —

(Lança sobre os hombros a coberta do leito.)

Que espessa nevoa! Estende-se fóra de minha janella cotno uma cortina branca — ou um sudário. — Pendia assim da janella de meu pai na noite de sua morte!

(O relógio dá tres quartos.) Ainda! e o tempo corre! e nada escripto!

(Lê.)

Harold! Harold!... 6 Christo! Harold!... o duque Guilher¬ me... E que me importa esse Harold, eu vo-lo pergunto? Nem posso entender como escrevi isto !

(Rompe o manuscripto ao fallar. — Descahe no delírio.)

Fingi-me catholico : menti. Se eu fosse catholico, eu me fizera monge e cartuxo. Um cartuxo tem por leito um ataúde, mas ahi ao menos dorme. Todos os homens tem um leito onde durmão — eu tenho um onde trabalho por dinheiro.

(Leva a mão á cabeça.)

Onde vou? onde vou? A palavra leva de rojo a idéa á força... Ó céo! a loucura não lavra assim ? Eis com que assustar os mais valentes... Eia! calma-te...— Eu relia isto... sim... Este poema não é bello de certo... Escripto muito a correr... escripto para viver!... oh! supplicio! A batalha de Hastings! os velhos Saxões!... os jovens Normandos!... Interessei-me eu nisso? não. Porque pois fallei-o? Quando tanto havia a dizer sobre o que vejo !

(Ergue-se e passêa a passos largos.)

Ir acordar cinzas frias, quando tudo treme e soffre ao pé de mim! quando a Virtude chama a si em soccorro, e esperéce ás lagrimas; quando o pallido trabalho paga-se a desdem : quando a Esperança perdeu sua ancora, a Fé seu calix, a Caridade seus pobres filhos; quando a lei é athéa e corrupta como a manceba; quando a terra grita e pede justiça ao poeta contra aquelles que a escavão por ouro, e dizem-lhe que ella póde viver sem o céo!

E eu! eu que o sinto, não responderei? Sim, pelo céo? responderei! Zurzirei com o latego os máos e os hypocritas! Rasgarei o véo a Jeremiah, Miles e Warton. Ah! miserável! Mus... éa satyra! tornas-te mao!

(Chora com desanimo.)

Escreve antes sobre essa bruma que ahi te estaca á janella como á de teu pai.

(Pára. Toma uma caixa de rapé na mesa.)

Ei-lo, meu pai! — Eis-vos! Bom e velho marinheiro! Livre capitão de alto-bordo, dormieis á noite vós! e de dia pelejáveis! — não ereis um Pariá intelligente como vosso pobre filho se lez. Vèdes? vêdes esse papel branco? Se não estiver cheio amauhãa, irei preso, meu pai; e não tenho na cabeça uma palavra para ennegrecê-lo, porque tenho fome ! — Vendi, para comer, o diamante que estava aqui, sobre essa caixa, como uma estrella em vossa fronte bella E agora não o tenho mais — e tenho fome. E tenho tambem vosso orgulho, meu pai, que faz que não confesso a mingua. Mas vós que creis velho, e sabieis que é mister dinheiro para viver, e que não o tínheis para herdar-mo, para que me creastes?

(Atira a caixa. — Vai-lhe após, ajoelha-se e chora.)

Ah! perdão! perdão, meu pai! meu velho pai de cabellos brancos! Tantas vezes me beijastes sobre vossos joelhos! Foi minha culpa; mas eu vo-lo asseguro, meu nome não irá á prisão! Eu vo-lo juro, men velho pai! Eia! eia! aqui está opio! Se tenho fome demais... não comerei, beberei. (Arrasa-se em lagrimas sobre a caixa do retrato.) Alguem sóbe pesadamente minha escada de pão. Escondamos esse thesouro.

(Esconde o opio.)

E porque? Então não sou livre? mais livre que nunca? — Catão não escondeu a espada. Fica-te como és, Romano, colha de frente.

(Põe o opio sobre a mesa.) O 2° monologo é o canto do suicida — sombrio vai o accento nos labios do moço. São dezoito annos é uma aurora da vida que se mergulha — uma lua de ouro que por ventura ergueu-se bella, mas que a sombra da tempestade veio obumbrar...

...Salve! Primeira hora de repouso que provei na vida! Ultima da minlia vida, aurora do dia eterno! salve! — Adeos humilhações, odios, trabalhos degradantes, incertezas, angustias, misérias, torturas do coração ,— adeos! Se soubessem! se soubessem a felicidade que tenho, não duvidarião muito...


A ultima scena, como toda a peça, não tem nenhum interesse dramatico. Ha comtudo ahi aquelle pairar de uma nuvem que se ensombra e ennegrece pouco e pouco e baixa mais medonha — como na tragédia grega. Não é o lyrismo brilhante ao geito do scintdhar da poesia de Victor Hugo, aquelle fervor que lhe corre nos diálogos, não — é a agonia do suicida que o opio repassa — é ainda a melodia.


V


ALDO.


O que no drama de Vigny fôrão quellas scenas 3ª do 2º; 4ª, 5ª, 6ª do 5º acto para Chatterton — aquelle contacto do mundo que lhe electrisa um escarneo — é o preludio da phantasia de Sand. Tickle o anão é o symbolo epigrammatico do mundo — aquelle Demos caricáto que Parrhasio o Grego expuzéra como um sarcasmo, talvez como uma vingança, ao povo de sua patria.

A scena 2ª é o monologo de Aldo. — É a sensibilidade de Vigny a fundir-se no gosto de sensações fortes, daquella que bebêra em Lara e Corsário as brilhantes idéas. Se não fosse tão longa, eu aqui traduziria toda essa scena de solidão. Darei ahi algumas idéas que mais sobresahem — ...


Tenho n’alma só a dôr; é preeiso que dè pastío ás minhas dôres... Rir-te-lias talvez! Se o alaúde molhado e solto por minhas lagrimas dér o som mais fraeo, dirás que todas as minhas eordas desaíinão, que não sinto o meu mal!... Quando eu sinto a fome devorar-me as entranhas! a fome — a tortura dos lobos!...

……………

Aquelle que naseeu filho de rei, histrião ou algoz, é força que siga a voeação hereditária?...

……………

Vinde, eia, eorvos avidos de meu sangue! abutres carniceiros! Eis Aldo que fallece de afan, de tedio, de miséria e opprobrio. Vinde cavar-lhe as viseeras, e saber o que ha de soffrer num homem — vou ensinar-vo-lo, porque jante amanhãa... oh miséria — antes, infamia!

(Senta-se diante da mesa — prosegue.)

……………

Aqui estão estancias á minha amante... Vendi por tres guinéos um romance sobre a rainha Titania; isto vale mais, o publico nem o verá... Mas posso vendê-lo por tres guiuéos! O duque de York prometteu-me sua cadêa de ouro se eu lhe fizesse versos para a amante... Sim — Lady Matliilde e morena, esbelta : esses versos pudérão ter sido feitos para ella; tem dezoito annos — a idade de Jane — Jane ! vou vender teu retrato eseripto por mim, trahir-te os mysterios da belleza, revelados a mim só, confiados á minha lealdade, a meu respeito; vou contar as volupias com que me embriagaste, vender a bella roupagem de amor e poesia que te fizera, para que vão cobrir seios de unfoutra. Esses elogios á santa pureza de tua alma subiráõ como vã fumaça sobre o altar de deosa estranha : e essa mulher a quem terei dado teu rubor de faces, a alvura de tuas mãos, vão idolo que eu adornara com teus eabellos castanhos, e o diadema de ouro cinzelado por meu genio, — essa mulher, que lerá sem pejo a seus amantes, a suas confidentes as estancias escriplas para ti, é uma mulher sem brio, a femea de um cortezão, o que se chama uma cortezã! Não, não te venderei as joias, e os enfeites, oh minha Jane! Singela moça que me amáras por meu amor, e nem sabes o que é um poeta. Não tc orgulhaste de meus louvores, não entendeste meus versos : pois bem! guarda-los-hei!—Um dia talvez..; no céo — fallarás a lingua dos deoses — e me responderás, pobre Jane!...

Que tenho? Nada fiz, e deslalleço! meus olhos, tenho-os turvos... Choraria? a barba es está humida... Sim, ha lagrimas nas estancias a Jane... Chorei inda agora pensando nella — nem o percebera. Ah ! choraste, pobre cobarde? amollecido em contar a tua dôr quando podias escrevê-la, e comprar o pão de tua mãi — eis-te exhausto como a lampada á manhãa, pallido como a lua ao seu poente.

…………………………

Frio maldito! Céo de gelo !... Se eu pudesse escrever alguma cousa! Algum bom remoque ao inverno e aos friorentos, (A voz lhe enfraquece.) Uma satyra sobre os narizes vermelhos... (Pausaá Um epigramma sobre o nariz do arcebispo sempre rôxo após da ceia... (rausa.) Uma canção, isto me acordará; se eu puder rir, eis-me salvo... Ah ! o maldito manto de gelo que a meia noite me gruda nos hombros ! Rimemos... encantador vento de Dezembro, que me assopras nas fontes, inspira-me...

Monsenhor de Cantuaria...
(Pausa.)
E vermelho apoz do vinho...

Vermelho não me agrada...


Sempre bello...
E sublime após do vinho...
(Dorme e falia dormindo com voz confusa.)
Monsenhor de Cantuaria...

O moço adormece. Meg (a velha) nas trevas entra no quarto tiritando, a meio envolta nas cobertas do leito, e arrasta-se ao longo dos muros, tacteando. A scena entre a velha surda e Aldo adormecido e fallando é muito original—lembra aquelle genio sublime de Shakspeareque lhe inspirára a noite horrivel de somnambulismo de lady Macbeth.

Aquella velha mulher no escuro, tremendo de frio, pendendo as faces resequidas sob as melenas brancas a se lhe espalharem no collo assuéto e mirrado, batendo as gengivas rôxas e desdentadas, aquelle olhar turvo, os pés nús e frios, a fraqueza que se lhe apossa d’alma, sentindo os joelhos que vão quebrar-se n'um passo mais, apalpando com as mãos de esqueleto um lugar onde sentar-se nas trevas... «Frio, noite, silencio, solidão, velhice, que tristes que sois ! » Ao gemido da velha que morre de frio nos tijolos regelados do chão — cuja ultima palavra é ainda « Aldo», elle acorda.

É no escuro. 0 delírio vai-lhe cada vez mais intenso. Elle lembra como n’um sonho um espectro que roçou por elle, vozes que parecião echoar do tumulo — então a agonia se requinta,e elle amaldiçoa-se pelo seu dormir...


Não pudeste lutar uma hora... Como os discípulos do Christo, mal velaste o horto das oliveiras! Bebes emvão o eterno calix das dôres humanas : teu pai eterno é surdo, teu irmão o Espirito Santo perdeu as azas de fogo. O cerebro do poeta é arido como a terra, e o coração dos ricos bôto e insensivel como o céo!...


Naquella febre lembra ir abraçar sua mãi e talvez lhe dê isso ventura. Mas não achou a mãi no sobrado — procura-a ancioso — e lá a topa debaixo da escada. Esse pedaço todo é bello.

Ah! minha mãi é morta? Deos pois me dá tambem que morra emfim? Como! morreste, minha mãi?

(Levanta-se e olha-a.)

— Sim! bem morta! fria como a pedra, inteiriçada como uma espada!

(Ri ás gargalhadas e cahe em convulsões. — Depois de longo silencio. Mas porque sois já morta ? Era-vos muito afan em dar eabo á miséria? Não vos tratava eu bem? Descontentava-vos eu? Pensáveis que eu poupava trabalho e cerebro? Aehaveis-lo aeaso máos os meus versos; as eriticas de meus invejosos vos coravão tanto de ser a mãi de um tão máo rimador?... Ereis uma litterata outrora em nossa aldeia!... Hoje apenas um pobre esqueleto de pernas núas. Pobres pernas! velhos ossos! Inda esta noite eu vos rebueára com meu gibão! É eulpa minha se o forro esgarçou e o estofo era leve? É como a fazenda de que me fizeste, ó velha Meg! Eu era vosso filho setimo; todos erão bellos e altos, museulosos e eheios de ardor, excepto eu o mais moço. Erão robustos mantanhezes, atrevidos caçadores de corças pardas : e comtudo, desde Dougal o Negro até Ryno o Ruivo, todos morrerão sem pensar em levar-vos ao cemiterio. Só ficou-vos o pobre Aldo, o pallido filho de vossa velhice, frueto debil de vossos últimos amores, fi que pudera elle fazer ainda por vós, que não fizesse? Porque lhe não déstes como aos outros um peito largo e liombros másculos? Esta breve mão de mulher poderia manejar as armas do bandido ou a clavina do eaeador? Poderia soerguer o remo do pescador e porfiar o pugilato com o sòlho? Nada esperaste de mim, e, ao ver-me tão raehytico, nem vos dignareis mandar-me ensinar a ler! E quando faltarão todos e fieastes a sós com o vosso aborto, não vos sorprendeu o ver que uma voz no fundo do cerebro lhe decorara e commentava os cantos dos nossos bardos? Quando aquella voz fraea fez ouvir melodias selvagens, que moverão aos homens embotados das cidades, que lhes acordarão idéas perdidas, sentimentos esquecidos de ha tanto, beijaste o filho na fronte, sanetuario de um gemo gerado sem o saberdes.

…………………………

Quanto a mim, nada me resta. A tarefa está finda. Todas as hervas de Inisfail-a-verde podem brotar-me no cerebro agora — deixei-o de pousio... É tempo que descanso : bastante soffri por ti, velha mulher, espectro macilento, cuja sagrada lembrança me fez realisar tão rudes lavores, aprender tanta cousa ardua, passar tanta noite gelada sem somno e sem manto! Sem ti, sem o amor que tc sagrei, eu jámais seria nada. — Porque me abandonares quando eu ia ser alguma cousa? Tiras- me um premio que eu mereci; — era ver-te feliz, e morres no mais feio dia de nossa miséria, na mais aspera de nossas fadigas! Mãi ingrata! que te fiz, para que me desfolhes meu unico desejo de gloria, minha só esperança na vida, o honesto orgulho de ser um bom filho!... Velho seio resequido que aleitaste seis homens e meio, recebe esse beijo de exprobração, de dôr e amor !...

(Lança-se sobre ella em soluços.)

Ai de mim! minha mãi morreu!...


Até aqui J. Sand mostrou duas cousas — o poeta e o filho : o poeta, na sua luta corpo a corpo com a socie¬ dade escoroavel; o filho, na sua desesperança junto ao cadaver da velha Meg. Depois vem o amor — Jane e Agandecca; Jane, o primeiro amor, a primeira illusão que finda num descrer no amor da mulher, ao sentir-lhe estatuado áquelle collo de anjo.


Mulher! mentira! não existe»! és apenas uma palavra, sombra ou sonho. —- Creárão-te poetas, teu phantasma dorme no céo talvez. Cri-o ás vezes passar por mim em minhas nuvens. Louco que fui, porque desci-me á terra a busca-la?

Entre o cadaver de sua mãi e a desillusão do que tanto lhe corrêra de bello em sua poesia moça, da porta do quarto miserável elle pende ás bordas do abysmo. Assaz tardei, meu Deos! ha muito que balanccio á bocca do sorvedouro sem fundo da eternidade! Porque tremi? tremi! Foi pavor que te deteve, Aldo?... Não, o dever. E comtudo, agora ainda porque oravas áquella donzella porque te conservasse a .ida, dando-te a sna? Nada devias a ningnem, e querias viver! cobarde criança ! pedias o amor com lagrimas ! Pedias- lo a uma camponeza imbecil, quando é n’um mundo desco¬ nhecido que deves busca-lo! Quem te sustem? a duvida? e não mais vale a duvida que o desespero? Lá emcima a incerteza, aqui a realidade. A escolha póde ser duvidosa? Vai pois, Aldo! desce a essas vagas profundezas, ou remonta a esses espaços inapprehensiveis. Deos te proteja, se lhe vales a pena; dè-te ao nada, se tua alma é um sopro do nada !... Adeos, leito onde tão mal dormi! Adeos, mesa dura e fria onde conheci versos ardentes! adeos, fronte livida de minha mãi, onde tantas vezes investiguei com ancia os estragos do soffrimento e as ultimas lutas da vida prestes a apagar-se! Adeos, esperanças de gloria! adeos, esperanças de amor que me mentieis! rebento as malhas da rede onde tao longo me foi o captiveiro ridiculo! Vou alevantar-me a vossos olhos, quebrar um jugo que me envermelhece de pejo... Adeos!...


Dizei-me, vós que vistes passar ante vós n’alguma noite dê febre aquellas visões de Agandecca na barca magica, e a fronte pallida e bella do mancebo sobre o peito da rainha —e aquelle afastar de uma gondola pe¬ las aguas — e aquella solidão de um cadaver insepulto no chão do quarto deserto ; vós que talvez então lem¬ brastes as phantasias de Shakspeare no conto da «Noite de inverno» e no sonho da «Noite de Verão», aquelles risos de Titania a fada e a voz de Oberon e as melodias de Ariel : — não é sublime aquella creação dos amores do poeta e da soberana, aquelle amor languido do mancebo e aquelle sentimento da mysteriosa rainha?

Ah! o amor do poeta é o perfume das rosas húmidas da vallada, é o sanctuario mysterioso onde a lampada santa não descora nas sombras do nicho. — «O amor é nellcs o principio da vida; cmpallidecem, soffrem, morrem,- se vão ferir-lhes a sensitiva da ternura delicada e tímida. — Uma palavra,um olhar—e o seio lhes bate de gozo. Que importa que a lyra do amante só tenha uma corda e um som, e o pobre poeta seja bello e monotono como a lua da meia noite ? »

ALDO.

A lua é melancoliea : faeil vos é cerrar as janellas e aecender os lustres quando sua claridão macilenta vos importuna. Porque ir sonhar pelas veigas á noite? Fieai no baile : a bruma e o raio frio das estrellas não vos irão entristecer nos salões delirantes de rumor e luz.

AGANDECCA.

…………………………

Ficai-vos pois com vosso genio, meu caro poeta. As estrellas se ateião no céo : brisa da noite vagueia mansa por entre flores: sonhai, cantai, suspirai. A fachada do meu palacio se illumina, e o som dos instrumentos preludia o banquete nocturno. Vou brindar-vos entre meus convivas com a taça de ouro, e fallar de vós a homens que vos admirão. Permanecei aqui, debruçai- vos sobre esse balaustre, e conversai com as sylphides — se não me acharem indigna de uma lembrança, fallai-lhes de mim Masque!... Beijastes tristemente a minha mão, e rolou sobre ella uma lagrima... Vinde — que vos beije essa fronte bella : — seccai as lagrimas e tornai cêdo a mim.


Chatterton morria ao desespero; — aquelle ar mephytico da velha Inglaterra, aquelle organismo desvernado pela febre mais ardente de dezoito annos de mancebo, todos aquelles ardores de um peito envelhentado á erosão da moléstia sombria que á fome e á miséria descora pelas faces a ethiguidade que preludia a morte .... — Quando Aldo por aquella fria noite de inverno curvava a sua cabeça no abysmo do suicidio, e ia reviver de sua febre no mergulhar dos cabellos naquellas ondas negras, a idéa de morte que lhe vagava pela fronte era uma idéa de desesperança como a de Chatterton; porém quando elle só, nos terraços do palacio da rainha se prepara á morte, quando elle titubêa entre sua sêde de sonhos e seu tedio de vida, em meio áquellas sombras vem ainda o hymno da saudade.


E comtudo eu tomára meu partido pela ultima vez! Venturas que eu não achára nem no ouro, nem nas glorias, busquei-as no coração de uma mulher e esperei. — Aquella, disse eu, veio tomar-me pela mão, da ribanceira do rio onde eu ia morrer; levou-me em seu magico batél, deu comigo no mundo de prestígios que deslumbrou-me, enganou-me — mas ao menos ella revelou-me alguma cousa de verdadeiro e bello, o seu proprio coração. Se os inanidos phantasmas de meu sonho breve esvaecêrão-se, é que ella era uma fada, e seu condão sabia evocar mentiras e maravilhas... E ao cabo da viagem acha-la-hci a verdade após sua nuvem de fogo — belleza núa que indaguei sublime, que adorei ati avéz de todas as íalsias da vida e cujo raio esclarecia o trilho em meio dos recifes onde os outros cstalavão o crystal puro de sua virtude. Fantasmas que nos illudis, sombras celestes que seguimos nas nuvens, que nos fazeis correr após vós sem olhar onde assentamos os pés, — porque revestir fôrmas sensíveis, disfarçar-vos em mulheres? Chamai-vos a verdade, a belleza, a poesia, — e não Jane, Agandecca, o amor.


E apôs o enthusiasmo o somno marasmado do sarcasmo que delira — se entremeia a todo aquelle queimôr de um coração que espalha em versos candentes aos threnos do anjo melodioso das inspirações — afoga tudo que nos banha os olhos em lagrimas, tudo que nos perfuma de harmonia com os orvalhos das azas tremulas, tudo aquillo emfim que faz que « a poesia não é o mero empyrismo de ajuntar palavras.»

ALDO.

…………………………

Morre pois, cobarde! É tempo de acabar com isso. Assaz corcoeaste aos acicates da necessidade : os llancos te sangrarão — e nem um passo além !... Ai de mim! ai de mim! Morrer, é horrivel! Se fosse só desangrar, desfallecer, tombar — mas não é isto! Se fosse levar a cabeça ao machado, penar a tortura, emparedar-se vivo no frio do tumulo!... Mas é pcior ainda, é renegar das esperanças, renegar do amor, pronunciar a sentença do nada sobre todos aquellcs sonhos ebrios qne nos illudião! renunciar aos raros instantes de voluptuosidadc que fazião presentir a ventura e erão-na quiçá!

E na verdade um dia, uma hora da vida, não é bastante, uào é de sobra? Agandecca! Tu me disseste palavras que valião um anuo de glorias, tu me déste transportes que valião mais que nm seeulo de descanso. Essa noite, amanhãa tu me darias um beijo que apagaria todas as torturas da minha vida e fizera de mim o rei da terra e do céo.

…………………………

Lua... brisa da noite... Cala-te, poeta; és um louco. — Quem te vale um adeos? Quem te dará uma saudade?


A ultima scena é a passagem de mysterio, é a nevoa que abraça nos seus seios o arcano do drama. É o Dr. Acroceronius que passa pelos pomares de palacio : a noite deslisava bella, e da montanba de Lego ia o ancião contemplar o eclypse da lua. 0 astrologo e o poeta caminhão juntos pela senda da vallada; ha um iman de altracção que enlaça a sciencia e a poesia. A poesia é a analyse - a sciencia é a synthese; a poesia o prisma — a sciencia a belleza núa. A poesia e a sciencia abraçadas são a vida e a luz — a taça bella onde o vinho do saber se aroma dos méis do sentimento...

Talvez a critica achasse que morder no desenlace daquella idéa; talvez que um riso lhe viesse ao desvairado dàquella imaginação terminando seu mystico drama como Alexandre Dumas tinha de lindar o conde de Monte-Christo — por um mysterio... Aldo o bardo perdendo-se na sombra do arvoredo na conversa do velho ledor de vaticinios pelas deshoras da noite no livro das estrellas, é como aquella figura pallida de Edmundo Dantes o amante, o prisioneiro de If que rompera sua mortalha pela solidão do mar alto — o conde de Monte-Christo vingativo adormecendo no collo de Haydéa Grega como o corsário com aquella têz pallida ás suas idéas sanguentas, requeimada aos sóes do mar da Grecia — nas fórmas voluptuosas e núas, na vertigem dos beijos de Medora ardente.

5 de maio de 1850.

  1. Questões ahi vão e muitas. Quanto á imitação pallida de Vigny, áquillo que Victor Hugo — de certo por complacência — chamou o Othello em toda a sua nudez africana, em outro artigo fallaremos della.