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O perigo anarquista

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Detenhamo-nos um momento ainda ante as questões vivamente reabertas pelo revólver de Angelo Bressi [1]. Todo o gênero humano tem na sua solução os mais vivos interesses, morais, políticos, internacionais. Nos países mais longínquos dos focos do anarquismo, como o Brasil, elas entendem seriamente com o problema da imigração. Agora mesmo cura a República Argentina de preservar por esse lado a sua tranqüilidade, adotando providências legislativas contra a criminalidade estrangeira, facilmente importada nas aluviões benfazejas do trabalho. Não julguem, pois, os árbitros das nossas coisas políticas malbaratado o tempo, que despenderem, voltando os olhos para este ponto obscuríssimo no governo dos povos modernos. Seria estulto atribuirmo-nos uma imunidade previamente desmentida neste país, onde não foi preciso o socialismo, nem o concurso das fezes da miséria européia, para dotar a república, nos seus primeiros anos, com um tremendo exemplo do nosso adiantamento na prática da eliminação dos chefes de estado a punhal.

Nas atrocidades da perversão que sistematiza o regicídio, há um aspecto ainda mais odioso que a crueldade dos seus crimes: é o perigo de que a sua multiplicação organizada e cínica induza a civilização contemporânea a retroceder do seu álveo cristão, a descrer das instituições liberais, a buscar na lei de talião a resposta aos desvarios desta superstição homicida.

Só a têmpera que o Evangelho deu à sociedade ocidental, com efeito, a poderá livrar de um espantoso eclipse moral nessa luta com as forças hediondas da anarquia, transformada em ideal de uma escola, onde o desprezo da vida humana responde mais logicamente à negação de Deus. A razão clama no homem, enleada: “Nossas leis nos inibem de matar os matadores. Mas os que não matam, ficaram sob a jurisdição deles; e essa alçada implacável só conhece a pena de morte, impendente agora, no Estado, sobre as cabeças mais altas, as mais nobres, as mais amadas”. Realmente nunca a consciência do legislador, a sua serenidade foi submetida a experiência mais embaraçosa. Uma diminuta minoria arvora a lei da morte em sistema de aniquilamento contra a ordem humana. Não tendo exército, arregimenta o terror. Não possuindo meios de arrasar a sociedade, fere-a a repetidos golpes de extermínio nos seus cimos. As nações perderam o direito de estabelecer a sua forma de governo, e eleger os seus chefes. Cada um deles é ipso facto um condenado à expiação inexorável. O regicídio e o presiden­ticídio substituíram a soberania do povo pela do anarquista. De que extraordinário império sobre si mesmos não necessitam, pois, hoje em dia, os governos, para não aceitar o desafio no terreno em que o põe a loucura sanguinária deste horrendo fanatismo!

A solução será muito fácil para os que enxergam na severidade repressiva, num regímen inexorável e truculento, o meio de cortar o mal pela raiz. Resta, porém, sempre saber se a força será com efeito o específico salvador. A nós não nos parece tão simples a tarefa do homem de estado, entre os diferentes caminhos que o empirismo e a ciência lhe deparam. Logo no ponto inicial, de onde eles partem, divorciando-se, defrontam os escrúpulos do legislador com a questão suprema da responsabilidade nos criminosos. Um dos nossos colegas increpava outro dia os juristas de haverem com as suas preocupações fomentado a indulgência dos tribunais a favor desta espécie de monstros. Não tem fundamento a argüição.­

Entre os juristas ainda não encontrou o anarquismo amigos, como tem encontrado entre os homens de letras, entre os sábios, entre os cultores dos estudos positivos. Não são juristas, por exemplo, Ibsen, Réclus e Krapotrine. Não são os penalistas clássicos, não é a escola jurídica, na Itália e na França, é “a nova escola”, a escola da antropologia criminal, a que se pronuncia pela irres­ponsabilidade em muitas das façanhas do anarquismo. Não são juristas Lombroso, Larchi, Ferrero, o Dr. Régis, todos esses escritores, que, nos últimos tempos, têm consagrado à epidemia do anarquismo sob a sua forma de sangue estudos especiais. Com um quadro estampado no seu Delito Político se empenhou em mostrar o primeiro desses autores a verificação do tipo dos criminosos natos nos regicidas, fenianos e anarquistas. Quase todos apresentam nas lesões anatômicas e nos estigmas psicológicos o cunho da predestinação fatal. Ravachol e Pini tinham na fisionomia todas as feições da mais abjeta brutalidade. Noutros a criminalidade congênita se combina com a epilepsia, ou por ela se substitui, determinando esses espécimens da histeria política, em cuja categoria esses escritores classificam Monges, Henry e Vaillant. É a herança epilética, aos olhos dessas autoridades, o que inspirou a Caserio o assassínio de Carnot. Em todos, mais ou menos, descobrem a nevrose hereditária. Nobiling, Booth e Alibaud eram filhos de suicidas. De melancolia suicida padecia Carl Sand, malogrado assassino de Bonaparte. La Sahla, que tentou também contra Napoleão, sofria de acessos epileptóides, e morreu, atáxico, de uma afecção mental caracterizada. Em Guiteau, a cujas mãos pereceu Garfield, reinava a alucinação religiosa. Galeote, depois de condenado, passa da mania ao furor. Otero e Oliva, que tentaram contra Afonso XII, são apontados como loucos. Passananti acabou, descendo, na demência, à mais ignóbil das suas formas: a coprofagia.

Mas as observações apuradas nesse ramo da patologia do espírito vão ainda mais longe. Na sua monografia Dos Anarquistas, escreveu Lombroso um capítulo sobre a influência da exageração do altruísmo nos delitos dessa espécie de malfeitores. Desjardins nota que em muitos deles o crime vem a ser um fruto anômalo da bondade. Segundo Burdeau, que não é nenhum advogado, esses delinqüentes pertencem pela maior parte à família dos assassinos filantropos. Ora, nesses livros escorreitos de juridicismo, se nos consentem a palavra, vemos recordar que Luísa Michel, em Nova Caledônia, era aclamada o anjo rubro, tal a sua caridade com os enfermos e desventurados. Ora se nos chama a atenção para a verdura juvenil de tais desequilibrados, quase todos muito moços: Langs com 20 anos, Sand com 25, Alibaud com 26, Schwabe com 29, Michailoff com 21 e com 21 Caserio Santo.

Vem depois o exame das responsabilidades sociais na tera­togenia do anarquismo: o mal-estar crônico, a discrasia geral (dizem essas autoridades em frase genuinamente médica) dos países onde a anarquia tem a sua base de ação mais produtiva; o caráter malfazejo de uma educação, que se resolve toda “num hino à força brutal”, desde a antiguidade até aos heróis de 1789, “medíocres símios dos heróis de Plutarco”; os exércitos permanentes, a guerra, a miséria, a concentração excessiva do poder, da propriedade e do capital. Na própria França, notam, a revolução de 1789 não fez mais que substituir os grandes feudais pelos grandes proprietá­rios: ao passo que antes dela um quarto do solo pertencia aos lavradores, agora não possuem mais de um oitavo. Considerai os Estados Unidos, acrescentam. Ali 91 por cento da população não abrangem mais que um quinto da riqueza nacional: 9% dos habitantes acumulam em suas mãos as outras quatro quintas partes.

Não é, pois, a sofisteria dos juristas que tem suscitado embaraços à ação dos que enxergam no fogo e na morte o remédio contra esta furiosa depravação contemporânea. É a psicologia científica, a criminologia positiva, a medicina, a sociologia que insistem na delicadeza, na complexidade, na transcendência do assunto, e conspiram em assentar nele o peso de dúvidas tamanhas. Verdade seja que os amigos da ciência do Direito se ensoberbecem de ter dirigido, em toda a parte, esse belo movimento contemporâneo que reformou e extinguiu o draconismo da antiga penalidade nos dois continentes. Na Itália, nomeadamente, a abolição da pena de morte, promovida no ensino de Carrara, triunfou definitivamente pelo código de Zanardelli. Mas também obra mais ou menos sua tem sido toda essa legislação, que especialmente de dez anos para cá, na Itália, na Suíca, na Alemanha, na França, na Espanha se tem levantado contra o anarquismo: na Espanha a lei de 11 de julho de 1894; na França as leis de 18 de dezembro de 1893 e 28 de julho de 1894; no império alemão a de 1894; na Suíça a de 25 de julho do mesmo ano. Mas nenhum governo se armou tão energicamente como o italiano com as três leis excepcionais de segurança pública adotadas em 19 de julho de 1894, que no país e no estrangeiro mereceram a classificação de odiosas.

Nessa experiência legislativa e seus resultados não sabemos se a política encontrará por enquanto elementos suficientes, para se orientar com segurança. Luís XV pensou em reduzir ao cárcere a expiação de Damiens. Bonaparte quis agraciar a Staaps, e comutou em seqüestração a pena de La Sahla. Luís Filipe cogitou em perdoar a Alibaud, e contentou-se de degredar para América a Meunier. Napoleão III tentou salvar da morte a Orsini. Foi Canovas del Castillo quem se opôs ao indulto régio nos casos de Oliva e Otero. Todos esses soberanos acreditaram, ainda que momentanea­mente, na virtude pacificadora da clemência. Os fatos não autorizam a crer que a ela seja muito sensível o anarquismo. Mas, por outro lado, também não levam a supor que a extirpação dessa moléstia caiba com grandes perspectivas de resultado no domínio das leis violentas. Tem-se visto sempre que a anarquia não grassa com intensidade senão nos países menos bem governados, e que, na Rússia, na Espanha, na França, à agravação crescente das penalidades se vão seguindo ordinariamente atentados cada vez mais graves.

Como quer que seja, porém, ao menos para os governos que não dispõem do imenso poder compressivo do império moscovita, ou da coroa germânica, a complicação do problema não é menor que a urgência da sua solução. Nós não estamos fora do âmbito das suas ameaças. E, quando se consideram no anarquismo os casos individuais, cumpre ter em mente que esses atentados, aparentemente esporádicos, representam a dilatação progressiva de uma enfermidade social tamanha, que, há sete anos, só em França, o número de anarquistas se calculava em trinta mil. Temos na espécie, pois, uma diátese social; e as diáteses não se curam cirurgicamente, abandonando o organismo à degenerescência, que os solapa. A dificuldade estará em distribuir a repressão e a profilaxia num regímen ao mesmo tempo humano e severo, que assegure à ordem os seus direitos, sem esquecer os da justiça.

Notas

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  1. O nome correto do assassino do Rei Umberto I da Itália é Gaetano Bresci