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Uma Campanha Alegre/II/I

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I

Janeiro 1872

Querido publico, eis-te deante de um anno novo — o anno de 1872.

Aí o tens defronte de ti, mudo, impenetrável, com o seu largo chapéu de feltro escondendo a face, a capa cor de mistério traçada à Lindor, e altas botas de pregas reluzentes. A ponta da sua espada ergue de leve, por trás, uma prega subtil, a orla do manto escuro. O traidor! — vem armado!

Como será o seu rosto — claro e pacífico ou sombrio e batalhador? E os seus cabelos — grisalhos e acamados como os de um musgoso conservador, ou negros e revoltos como os de um revolucionário impaciente? E a palma da sua mão — macia e fácil como a do que espalha dinheiro, ou adunca e áspera como a do avaro ganchoso?

«Quem o sabe? Quem o saberá?» diz o cuco da lenda.

Que te trará ele a ti, fiel camarada das Farpas e da sua campanha irónica? Um acesso no teu emprego? A herança de um velho tio? Uma noiva de cinta airosa? Uma bela viagem por conta do Estado? Um pequerrucho guloso de leite?

«Quem o sabe? Quem o saberá?» diz o cuco da lenda. Que ele, o Ano Novo amável, te conserve a cabeça serena, o estômago são, o bolso sonoro, e a mão decidida.

Eis o bom e o positivo na vida. E também que faça penetrar em ti como um calor reconfortante a estima das Farpas — ou, pelo seu nome genérico, a estima do Bom senso.

E que trará ele à Pátria? É justo que pensemos um pouco na Pátria. Porque enfim, temos uma pátria. Temos pelo menos — um sítio. Um sítio verdadeiramente é que temos: isto é — uma língua de terra onde construímos as nossas casas e plantamos os nossos trigos. O nosso sítio é Portugal. Não é propriamente uma nação, é um sítio. Já não achamos mau! A Lapónia nem um sítio é: apenas unia dispersão de cabanas na vaga extensão da neve. Podemos pelo menos desdenhar a Lapónia. A miserável Lapónia!

Como a nossa organização é mais rica, a nossa raça mais digna! Nós ao menos temos um sítio!

O que vai trazer à nossa terra, debaixo da sua capa, o digno Ano de 1872?

Trar-lhe-á a paz, como um folhetim monótono continuado da véspera?

Trar-lhe-á a guerra, como uma aventura emovente a marche-marche?

Trar-lhe-á, embrulhada num cartucho, a revolução?

Trar-lhe-á, no meio de um espantado oh! universal — uma ideia?

Trar-lhe-á entre os braços, para lhe depositar no colo, uma nova dinastia — de mama?

Trar-lhe-á, como um noivo para a fecundar, o exímio prelado de Viseu que recua e cora de pudor?

Atirar-lhe-á aos pés, como um mimo de Céu, Melício, melhor que os favos?

«Quem o sabe, quem o saberá?» diz o cuco da lenda.

Nem ele mesmo o sabe talvez, o Ano Novo! Os anos chegam desprevenidos, sem plano, e começam por tomar informações com os anos que saem. E então, pelas notas colhidas, como um dramaturgo, preparam os seus episódios! Ah! que diria o Ano

Velho, ao partir com as suas malas e as suas rugas, a este Novo Ano que chegava, inex-periente e curioso? Que confidências trocaram, ao encontrar-se nessa misteriosa estrada por onde caminham os dias e os anos, pacientes transeuntes da Eternidade?... Pois nós,

Querido público, eis-te diante de um Ano Novo — o ano de 1872. os feiticeiros das Farpas, por grande maravilha o sabemos! Ano Velho e Ano Novo cruzaram-se na fronteira, em Badajoz. O Ano Velho estivera trezentos e sessenta e cinco dias em Portugal; recolhia enfastiado e embrutecido; tinha os dedos queimados do cigarro; levava o estômago estragado da mesa do hotel; ia ressequido da falta de banhos; palitava os dentes com as unhas; sabia ajudar à missa; assoava-se a um lenço vermelho; perguntava a todo o propósito que há de novo? — e era reformista. Estava aportuguesado. Ano Novo, esse, saía da frescura do Céu.

Cumprimentaram-se, risonhamente.

E no silêncio da noite, à sombra dos muros de Elvas, de onde nós escutávamos, palpitou entre os dois, vivo e rápido, este diálogo:

Ano Novo (preparando a carteira e o lápis):

— Este país em que vou entrar é uma monarquia ou uma república?

Ano Velho (gravemente):

— As geografias dizem que é uma monarquia... Pelo que vi pareceu-me que nem era uma monarquia, nem uma república — e que era apenas um chinfrim.

— Mas, Ano Velho, pelo menos há um rei?

— Há um, Ano Novo. Os jornais revelam de vez em quando a sua existência — contando que fora fotografar-se! É quanto se sabe da sua vida pública.

— Mas, esse rei reina?

— Reina — como quando se diz na descrição de uma sala: «no alto, ao pé da cornija, reina um friso dourado...

— E por onde se governa esse país?

— Este país tem a Carta, que se manifesta todos os meses nas músicas regimentais

— em hinos; e actua nas repartições de ano a ano — em suetos... É tudo o que o país sabe dela.

— E de que vive o país? Tem rendimentos, tem orçamento?

— Tem de menos, todos os anos, para pagar as despesas da casa — uns cinco ou seis mil contos. É a isto que eles chamam — as finanças. Cada ministério...

— Um momento! Eu sou um simples, um ingénuo, chego... O que é um ministério?

— É uma colecção de doze homens que se encarregam (seis trotando a cavalo atrás dos outros seis) de governar o País — isto é, de ter a mão na chave da despensa. Quando se pertence a um partido...

— Pertencer a um partido, caro colega, vem a ser?...

— É meter-se a gente num ónibus que leva aos empregos — e a que puxa o chefe do partido, sempre com o freio nos dentes!

— Mas a questão da fazenda, dizia...

— É uma espécie de nó que todos, um por um, são chamados a desatar — e que cada um aperta mais.

— Sem nunca entalar os dedos?

— Bem ao contrário! A alguns fica-lhes na mão o pó da corda. Ora é com esse pó que se compram os melões.

— E o País, em que se emprega?...

— Nas secretarias. São salas onde homens tristes escrevem em papel almaço «Il.mo e Ex. mo Sr.» — para poderem jantar, e ter este acesso: aos 20 anos semi-inúteis, aos 30 inúteis, e aos 45 inúteis e semi.

— E de onde saem esses homens?

— Do liceu, que é um lugar com bancos, onde em rapaz se decoram bocados de livros — para ter o direito de não se tornar a ler um livro inteiro depois de homem.

— Perdão, mas há uma Universidade, parece...

— Há. Mas é apenas um edifício histórico para se provar que existiu D. Dinis, seu fundador.

— Mas aí, Santo Deus, não se estuda?

— Sim, estudam-se ciências que levam cinco anos a estudar — e que estão atrasadas vinte anos; — com excepção de uma, a teologia, que acabou há um século.

— E como é a organização dos estudos?

— O aluno, ao entrar, faz uma cortesia profunda ao lente; lê lá dentro um romance que traz na algibeira; e sai fazendo ao lente outra cortesia profunda. Se não fizer isto é reprovado.

— E tudo isso para quê?

— Para se ser bacharel — unia qualidade que se exige para tudo, e que se não respeita para coisa nenhuma.

— E a que chama a política, meu amigo? Tenho-lhe ouvido...

— A política é a ocupação dos ociosos, a ciência dos ignorantes, e a riqueza dos pobres.

— Reside em S. Bento...

— Um santo do calendário?

— Uma sala que a Carta instituiu para perpetuamente se discutir quem há-de organizar o País definitivamente.

— E qual é a posição dos deputados?...

— Na aparência sentados, por dentro de cócoras.

— Perdão...

— Ah sim! a posição para com o Governo? Empregados de confiança do Governo, nomeados pelo Governo; — consentindo-se ao povo, para o contentar, que assine o decreto!

— Explique-me uma palavra dos meus apontamentos: — «eloquência parlamentar?»

— É a série de palavras sabidas que vai de Barros e Cunha a Osório de

Vasconcelos — passando por Santos e Silva.

— Quem são esses homens?

— São eles mesmos — e têm um trabalho imenso para serem tanto.

— Há ainda, ao que parece, outra câmara

— A dos pares. É um forno apagado onde cada Governo mete lenha nova — para poder cozer o seu pão.

— Estranhos casos! E há um partido antidinástico?...

— Perfeitamente: há um partido que se ri do rei por ter tão pouco poder sobre o seu povo — e lastima o povo por sofrer tanto poder do seu rei.

— Fale-me da aristocracia...

— É uma colecção de capacetes, vazios das velhas cabeças, as quais iam cair ao chão, e onde se metem, para os sustentar, cabeças novas de merceeiros, que pagam para isso ao Governo.

— Ainda bem! fale-me agora do povo...

— É um boi que em Portugal se julga um animal muito livre, porque lhe não montam na anca;

— e o desgraçado não se lembra da canga!

— E a burguesia?

— Chuta! Mais baixo! Esse é o nome de desprezo com que os tendeiros enriquecidos que já descansam, fulminam os tendeiros pobres que ainda trabalham.

— E este País, que crédito tem entre os outros, para além dos Pirenéus?

— Portugal, lá fora, é estimado pela laranja.

— E a diplomacia?...

— Cada Governo, meu amigo, costuma mandar como embaixadores para fora, aqueles que não quer ver dentro como chefes da oposição. Na realidade os diplomatas são como os criados que os companheiros mandam espreitar para a sala — para eles comerem mais à vontade na cozinha.

— Tem viajado decerto, amigo. Fale-me das cidades... Há boas estradas?

— Há: mas estão todas na secretaria das obras públicas, para não se deteriorarem.

— E o caminho de ferro?

— É novo em Portugal, gatinha ainda.

— Mas... E o Porto o que é?

— Uma terra onde se é negociante para ter os meios de fingir que se é aristocrata.

— E Coimbra?

— Uma cidade onde o município não varre as ruas para não perturbar os que estudam — enquanto os que estudam, com o barulho que fazem na rua, não deixam dormir o município.

— E Lisboa, enfim?

— Lisboa é a cidade onde Melício habita. De resto uma burguesa que desejaria parecer-se com uma cocotte — se pudesse costumar-se a lavar os dentes.

— Mas então os Portugueses não são escrupulosos no asseio?

— Outrora, colega, quando os criados inexperientes dos hotéis viam chegar o viajante português, traziam-lhe, como a todos, uma tina cheia e fresca. E o Português respondia invariavelmente: «obrigado, não tenho sede!»

— Mas a vida elegante de Lisboa?

— É não ser cigarreiro da fábrica de Xabregas. Tudo o mais é elegante.

— E os Portugueses são inteligentes ao menos?

— Foi o ABC que espalhou isso — vaidoso de que o tivessem compreendido!

— E a família?...

— É um grupo de egoísmos — que janta de chinelas.

— Mas as mulheres?

— Pessoas excelentes, que têm a doçura de fingir que não têm espírito — só para não humilharem os maridos!

— E são bonitas?

— São bonitas — nos intervalos da cuja.

— E honestas?

— Muito mais do que os maridos dão a entender.

— E ternas?

— Aprenderam a ternura de cor — mas recitam-na mal.

— Que tal conversam?

— Não se sabe. Nunca tiveram com quem.

— E amorosas?...

— Diz o Sr. Vidal que sim.

— E femininas?

— Meu amigo, são utilitárias. Acham em tudo o que acharam na própria valsa — uma utilidade.

— Na valsa? qual é?

— O meio de suar com elegância em sociedade.

— Oh! bom Deus, voltemos às generalidades! O País é rico?

— Portugal é um país que todos dizem que é rico, povoado por gente que todos sabem que é pobre.

— Mas a agricultura?

— A agricultura aqui é a arte de assistir impassível ao trabalho da Natureza.

— E as colónias?

— Velhas salvas de família, que se enferrujam ao seu canto.

— Mas este País tem um exército...

— Pode-se permitir essa formalidade — porque tem segura a paz.

— E polícia?

— A polícia é uma instituição que passeia aparatosamente em certas ruas — para prevenir os malfeitores que vão para outras.

— Falou de malfeitores. Como são as cadeias?...

— São latrinas — onde também se guardam presos.

— Mas a Câmara Municipal, ao menos vela pela cidade?

— Zelosamente. Por uma das suas posturas, por exemplo, é proibido a qualquer cidadão, sob pena de uma grave multa, ter em sua casa, mais de seis meses — um lobo danado!

— É extraordinário! E o bom senso, não o há?

— Evita-se: porque tê-lo chama-se pedantismo, e publicá-lo chama-se insulto.

— Mas esse povo nunca se revolta?

— O povo às vezes tem-se revoltado por conta alheia. Por conta própria — nunca.

— Em resumo, qual é a sua opinião sobre Portugal?

— Um país geralmente corrompido — em que aqueles mesmos que sofrem não se indignam por sofrer. De resto a Pátria do grande Afonso de Albuquerque e de outros.

— E não há um protesto? Agora me lembro! As Farpas? fale-me delas...

— Um jornal que tem um só merecimento — sentir-se com bom senso e não aspirar

à ditadura.

Mas tendo percebido que os escutavam (éramos nós) o Ano Novo e o Velho Ano separaram-se, com grandes shake-hands. E o Novo Ano, senhor de uma série de definições que o habilitavam a conhecer o País, entrou a fronteira, ao repicar dos sinos.

Bem-vindo! E Boas-Festas!