2 - Aquisição de Língua Materna - Tema 1
2 - Aquisição de Língua Materna - Tema 1
2 - Aquisição de Língua Materna - Tema 1
339-362
Karen Pupp Spinassé*
*
A autora é bolsista Pós-Doc do CNPq na Universidade Federal do Rio Grande
do Sul.
1. Introdução
A língua materna (L1) exerce influência inquestionável no aprendizado de
línguas estrangeiras (LE). Muitas vezes, os alunos “transferem” elementos
da língua materna para a língua-alvo. Esses elementos transferidos podem
trazer vantagens e desvantagens no processo de aprendizado. A língua
materna, entretanto, não desempenha esse papel sozinha. Durante muito
tempo ela foi vista como o único fator influente no processo de aquisição
de línguas estrangeiras ou de segundas línguas (L2). Contudo, elementos de
outros sistemas lingüísticos já adquiridos, ou anteriormente estudados, bem
como elementos da própria língua-alvo, também são levados em considera-
1
O presente artigo tem como ponto de partida a tese de doutoramento da auto-
ra, defendida em fevereiro de 2005 e publicada em livro em junho de 2005
(PUPP SPINASSÉ 2005).
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Como o hunsrückisch é considerado um sistema lingüístico independente, por
mais que existam muitas semelhanças com o alemão-padrão e, ao mesmo tem-
po, muitos empréstimos do português, tratamo-lo aqui também dessa forma.
Os alunos pesquisados no contexto sulino preenchem vários pré-requisitos que
os caracterizem como falantes nativos do hunsrückisch (como domínio total do
hunsrückisch, primeira língua na ordem de aquisição, ou aquisição após o por-
tuguês, mas ainda na infância, língua com a qual se identificam, língua dos pais,
de casa, da comunidade, etc.), além de possuírem também o português dentro
dessas mesmas condições. Por isso, consideramos esses alunos como bilíngües.
Em poucas linhas torna-se difícil definir bem e fazer clara a denominação, mas
algumas fontes ajudam a entender melhor a situação de nativos e de bilíngües
desses falantes, como ALTENHOFEN 1996, 2001, 2002; PUPP SPINASSÉ 2006;
ALTENHOFEN & PUPP SPINASSÉ no prelo; ZIEGLER 1996 entre outros. Nesse sen-
tido, os projetos ALMA-H, ESCRITHU e EAMHP, da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, trabalham para legitimar esse caráter, produzindo tam-
bém considerações a respeito (vide PUPP SPINASSÉ no prelo)
3
Cabe aqui talvez discorrer brevemente sobre a motivação da escolha bibliográ-
fica. Apesar de haver pesquisas mais atuais a respeito da aquisição de L2 (por
exemplo, GRIESSHABER 2002), essas trazem como novidade, geralmente, apenas
novas aplicações empíricas – como faremos também no presente artigo. A teo-
ria, contudo, costuma ser reproduzida, ou seja, os autores atuais citam, em gran-
de parte, as mesmas fontes originais, sem acrescentar novos dados. Por isso,
sem haver grandes mudanças significantes na discussão teórica, e por visarmos
uma caracterização diacrônica, consideramos válido citar quem o disse primeiro.
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Chomsky já havia se posicionado contra Skinner, defensor da Hipótese
Contrastiva, e contra as idéias behavioristas (cf. CHOMSKY 1959).
5
Para a descrição das lacunas dos estudos de DULAY & BURT e críticas à Hipótese
de Identidade, vide HATCH (1983) e MCLAUGHLIN (1987).
3. O Conceito “Interferência”
“Interferência” não deve ser entendida como o termo principal para o apren-
dizado de línguas estrangeiras; é, porém, sem dúvidas, de grande importân-
cia, e por isso será cuidadosamente definida e discutida.
O termo Interferência, com o mesmo significado, tem (no mínimo)
três diferentes aplicações na lingüística. No que concerne ao contato
lingüístico, interferência denota o contato intenso entre duas ou mais lín-
guas, que ao longo do tempo e devido ao uso concorrente e alternado,
acabam se misturando (vide WEINREICH 1967 e WANDRUSZKA 1979). Na
Hipótese Contrastiva, acredita-se que toda a expressão errada na língua
estrangeira seja uma interferência. Na Hipótese de Interlíngua, contudo,
interferência significa, ao contrário das outras definições, um processo mais
complexo e diversificado de influência sobre a língua a ser aprendida, sem
ser tão vaga como na Hipótese Contrastiva – é apenas um fenômeno den-
tre outros.
Nos três casos, o termo carrega o significado de influência lingüísti-
ca, entretanto em processos diferentes e com características diferentes, ou
seja, eles são levados em consideração de formas variadas. Com o termo
“interferência” entende-se, primeiramente, influência, trazida através de um
processo de transferência. Transfer, por sua vez, denota a transferência de
unidades de uma língua. Por isso, muitos teóricos costumam denominar
transfer como um processo e interferência como seu resultado (cf. EHNERT
1989; WEINREICH 1967; WODE 1985). Com isso, todo o tipo de influência
interlingual (bem como intralingual) pode ser classificado como interferên-
cia, independente de ser “positiva” ou “negativa”, ou de trazer benefícios
ou malefícios ao aprendizado.
alemão como língua estrangeira (ou seja, elas oferecem a língua alemã como
primeira língua estrangeira no currículo obrigatório, na maioria das vezes já
a partir do jardim da infância), têm um grande número de alunos e são
ótimas escolas, de renome em seus contextos específicos. Trata-se de esco-
las privadas, cujos professores tiveram uma formação semelhante e utiliza-
vam na época o mesmo material escolar (Wer, Wie, Was) – sendo o método
também semelhante (método comunicativo com perguntas indutoras, ên-
fase na gramática, aulas alternando entre o alemão e o português).
A pesquisa contou com a participação de 382 alunos. Foram feitas
entrevistas, que visavam a traçar o perfil dos alunos de cada escola (infor-
mações pessoais, atitudes, crenças e sentimentos lingüísticos) e realizados
testes para avaliar os conhecimentos nas quatro habilidades e averiguar os
elementos da interlíngua.
Depois de uma entrevista com os alunos, pudemos averiguar ainda,
que todos eles são brasileiros, que começaram a aprender o alemão-padrão
na escola, sem manter qualquer outro contato com essa variedade da língua
fora da escola. Eles gostam de aprender a língua por motivos diferentes,
mas nunca estiveram na Alemanha.
O único fator, que à primeira vista pôde ser analisado como diferença
entre as três escolas, foi a situação bilíngüe desses alunos das escolas do Rio
Grande do Sul, em comparação com os alunos do contexto do Rio de
Janeiro, que possuíam apenas o português como língua materna. Claro que
há a já citada diferença de contextos (cidade grande – cidade interiorana),
mas como a análise não queria julgar comportamento ou mentalidade, mas
sim propriedades pessoais de aprendizado de língua estrangeira, não de-
mos peso a esse fato. A diferença de contexto justamente nos possibilitava
a diferença de status lingüístico bilíngüe x monolíngüe. Se analisássemos
uma escola como o Centro de Ensino Pastor Dohms, de Porto Alegre, não
teríamos as mesmas diferenças em comparação com os alunos do Rio de
Janeiro. No interior, as línguas de imigração estão mais conservadas. Por
isso escolhemos escolas que tivessem perfis muito semelhantes, apesar dos
contextos diversos, para que o fator bilingüismo fosse praticamente o úni-
co diferencial relevante nesta análise.
Os testes comprovaram, porém, que as interferências não são oriun-
das apenas da L1 e que, mesmo provenientes da língua materna, elas não se
5. Análise prática
Como dito, foram feitas entrevistas e testes escritos com os 382 alunos.
Esses testes foram analisados, buscando reconhecer e tentar identificar a
possível influência da língua materna. Essa, porém, nem sempre se deixa
perceber de forma clara. Partíamos, portanto, de argumentos prós e con-
tras (imparcialmente), procurando ver qual teria mais plausibilidade. Como
afirma KIELHÖFER (1975: 78), as análises de interferências devem ser feitas
aliadas a conceitos como “menos provável”, “provável”, “mais provável” e
“quase certo”, já que a causa de um desvio (ou de um acerto), só se identi-
fica hipoteticamente. Portanto, utilizamo-nos também de comparações entre
os resultados do contexto monolíngüe e do bilíngüe. Entretanto, temos
que ressaltar que não se trata de comprovações e verdades absolutas. Pro-
curamos apenas fazer uma análise que levasse vários fatores em considera-
ção.
Nosso objetivo, como descrito na introdução, não é negar as interfe-
rências, mas sim tentar analisá-las de uma forma diferente. Não vemos
problemas em trabalhar com interferências, só acreditamos que o puro con-
traste, a pura comparação com a língua-alvo não seja totalmente satisfatório.
Relatamos aqui, então, os passos de nossa análise, que tentava sair do pon-
to comum de “se a língua materna é diferente, ocorrerá erro” e que ao
mesmo tempo não queria ignorar o fato de a L1 também influenciar. Por
isso, nossa crença se assemelha à Hipótese de Interlíngua que, mesmo ten-
do idéias chomskyanas e traçando algumas comparações, busca ser dife-
rente por aceitar mais possibilidades de análise.
Nossas análises são, com isso, apenas uma das possibilidades, levan-
do em consideração os fatores internos (aspectos cognitivos, empatia, sen-
timentos, motivação) e externos (aspectos sociais, todas as formas de input,
tais como livros didáticos, professores e aulas, e a interação prática com a
língua-alvo), averiguados através de observações de aula, entrevistas, estu-
a) Mein Hobby ist tv *olhieren (Mein Hobby ist fernsehen / Fernsehen gucken)
Sie haben *brigiert (Sie haben gestritten)
O fenômeno que ocorre com esse exemplo, porém, é outro. O verbo gucken
não é encontrado em material didático. Nos livros didáticos “sieht man fern”
ou, no máximo, “sieht man Fernsehen”. Contudo, Fernsehen schauen e Fernsehen
gucken são formas raras em livros didáticos escolares de ensino de DaF,
apesar de fazerem parte do uso diário normal na Alemanha. Com isso, os
alunos que só têm contato com a língua alemã em sala de aula desconhe-
cem o verbo.
Em contrapartida, os alunos do contexto bilíngüe estudado utiliza-
ram freqüentemente essa forma em seus testes. Na análise, pudemos averi-
guar, então, que aqui deve se tratar de um fenômeno de interferência da
língua materna hunsrückisch, já que essa forma está no seu paradigma de
vocabulário a ser utilizado no “alemão”.6 Eles conhecem o verbo através
da L1 semelhante à LE.
Essa interferência da língua materna pode se tornar mais provável
quando reparamos que o fenômeno não ocorre com os alunos do contexto
monolíngüe, ou seja, se usarmos essa comparação como parâmetro. Ele
pertence exclusivamente à interlíngua desses alunos bilíngües, e só por eles
é utilizado como estratégia lingüística. O processo de transfer já se dá, na
6
Lembramos aqui que, para os falantes de hunsrückisch, o que eles falam é “ale-
mão”.
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Na verdade, a língua portuguesa até possui uma estrutura semelhante à alemã
para expressar passado, como “ter feito” (além de outras formas analíticas, como
para o Pretérito mais que Perfeito, o Futuro do Presente e o Futuro do Pretéri-
to). A semântica, no entanto, é outra.
6. Considerações finais
Com os exemplos apresentados, vimos que a língua materna não é o único
fator que influencia o aprendizado de uma língua – diferentemente do que
prega a Hipótese da Análise Contrastiva. É muito interessante observar,
porém, como a língua materna, mesmo não agindo sozinha, exerce influên-
cia, de diversas maneiras, no aprendizado de uma língua estrangeira – ao
contrário do que afirmava a Hipótese de Identidade. Também outras lín-
guas já dominadas e a própria língua-alvo contribuem para a formação da
interlíngua dos alunos e, conseqüentemente, para a paulatina aquisição da
nova língua. Com isso, através dos exemplos expostos, apesar do número
reduzido para o presente artigo, pôde-se confirmar a maior validade da
Hipótese de Interlíngua em comparação com as outras teses apresentadas
para esse tipo de análise que nós desenvolvemos.
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Trata-se de uma frase gramaticalmente correta, por isso reforçamos: interferên-
cia não significa apenas influências negativas. No citado caso, porém, tem-se o
agravante de que a forma com o haben, apesar de correta, não é comumente
usada pelos alemães, o que a torna um desvio estilístico. Segundo a gramática,
contudo, o Perfekt de schwimmen (nadar) em alemão alterna entre haben e sein,
dependendo do foco do movimento (Duden 4 2005: 472), ou da conotação de
deslocamento para um objetivo x movimento em um determinado lugar, sem
um alvo (DREYER/SCHMITT 2004: 63).
Referências bibliográficas
ALTENHOFEN, Cléo Vilson. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul: Ein Beitrag zur
Beschreibung einer deutschbrasilianischen Dialektvarietät im Kontakt mit dem Por-
tugiesischen. Stuttgart, Steiner 1996.