A Boca da Noite: Colectânea de Contos
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Sobre este e-book
"Os dias passam negros e mudos, os dias, as semanas, os meses, os anos, as décadas e os séculos são negros e mudos. Por vezes chego a pensar que o tempo avança no sentido inverso, dia após dia, ano após ano, século após século até chegar à origem do Mundo."
Tatiana Pereira
"Uma criança pequenina, violada pelas raízes da terra e amordaçada no silêncio negro do céu."
André Consciência
"...observou Mary, não muito longe do sítio em que estava, aproximar-se da margem do rio e, com um punhal na mão, agarrar uma pequena corça, degolando-a de imediato e arrastando-a para a densa floresta."
Emanuel R. Marques
"O buraco no chão da sala por onde todos sairam continua aberto mas tiveram o cuidado de colocar uma vedação vertical em torno dele para que ninguém caia para o seu interior."
Nuno Bastos
"O astro brilhava majestoso nos céus do poente, quieto, qual sentinela. Avançaram por entre as ruelas sombrias e fétidas, Melichior, o que falava com o astro, conduzia-os."
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A Boca da Noite - André Consciência
Título: A Boca da Noite
Copyright © Abismo Humano 2012
Ilustração da Capa
Babalith
Autores Participantes
Tatiana Pereira
André Consciência
Emanuel R. Marques
Nuno Bastos
Jesus Carlos
A Morte dos Sentidos
Tatiana Pereira
I
Não há muito que eu saiba. E cada vez mais a minha memória torna tudo mais incerto. Sinto o frio da pedra e da morte, as trevas da solidão e do medo… os suores frios que escorrem pela minha pele angulada.
Sei que existem quatro paredes que me rodeiam e que numa delas existe uma porta de ferro. Sei quantos passos são ao longo de cada parede e os passos de uma volta completa. Sei quantos passos são da porta a cada canto e que, para tal, tive de caminhar curvado… soube então que o tecto é demasiado baixo. Já contei as pedras existentes nas paredes mas já não me recordo. Arrastando os pés, de braços esticados utilizando a ponta dos dedos como antenas, descobri tudo isto pelo tacto.
Não me lembro do dia em que me levaram para uma sala e me arrancaram os olhos e a língua com tenazes ao rubro. Não me lembro do dia em que me arrastaram violentamente para uma sala e me furaram os tímpanos nem de nada antes disso.
Estou despido e sou um homem. Sei que toquei o sexo e descobri que sou um homem, se o que faz um homem for o pedaço de carne imunda que tenho entre as pernas. A cela fede a urina e a fezes e a podre. Céus, o que eu não dava por um palmo de solo onde repousar a cabeça, que não estivesse coberto de esterco...
Os dias passam negros e mudos, os dias, as semanas, os meses, os anos, as décadas e os séculos são negros e mudos. Por vezes chego a pensar que o tempo avança no sentido inverso, dia após dia, ano após ano, século após século até chegar à origem do Mundo.
Chego a sentir-me muito pequeno e passo momentos incalculáveis muito quieto a ser uma bactéria ou qualquer microrganismo. Chego a ser a serpente que tentou Eva ou o sangue derramado nas batalhas ao longo dos milénios. Preso na cela, isolado, vou a todas as épocas e estou em todas as coisas. Sou a Terra e a Água, sou o Ar e o Fogo. Sou todos os elementos e o Sol e a Lua e as Estrelas.
Mas a realidade, essa sempre chega, sorrateiramente, sob a forma de vergastadas.
Alheio a tudo e a nada, o meu corpo ou o que resta dele reage maquinalmente a impulsos que não são meus. As minhas mãos, débeis, tocam o prato da minha última refeição. Está vazio, embora tenha decidido deixar de comer. Passar de pouco a nada não requer grande esforço, e é curioso como no auge da fraqueza as entranhas cessam de protestar.
Os Sombra são aqueles que me forçam a fazer coisas. Os Sombra foram aqueles que me obrigaram a comer, talvez homens talvez demónios, obrigaram-me a comer mesmo depois de eu ter vomitado para o prato a medíocre quantidade de comida rançosa que me haviam trazido.
Já tentei suster a respiração tempo suficiente para morrer ou algo parecido. Já me deitei na pedra coberta de excrementos a sentir-lhe o frio, sem me mexer um milímetro que fosse, deixando que a dormência me percorresse os membros e o tronco, e lentamente, o crânio, até que todo eu me transformasse em pedra também.
Quando tudo o que vemos são trevas torna-se difícil de distinguir quando estamos a dormir ou acordados, e tudo o que existe são os fantasiosos momentos de luz dos sonhos mais reais que qualquer mundo que se me apresente. Talvez por esse motivo tenha dormido durante muitos dias ou anos seguidos na esperança de nunca mais acordar.
Quando os Sombra me vêm buscar e me torturam eu sei que ainda existo.
II
Ainda lhes vejo os vultos, altos e encorpados. Não tive sequer oportunidade de lhes escapar. No silêncio das lembranças ainda os ouço, gritos apenas, abafados de angústia, no remoinho negro de memórias isoladas no subconsciente.
Quantos anos terão passado? Vi o meu corpo crescer nas sombras; as coxas, os seios… longos cabelos emaranhados que me chegam até à cintura.
Durante muito tempo