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Contos do mar sem fim
Contos do mar sem fim
Contos do mar sem fim
E-book248 páginas4 horas

Contos do mar sem fim

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Sobre este e-book

Cinco autores de Angola, quatro de Guiné-Bissau e sete escritores do Brasil, entre eles dois de nossos maiores, Machado de Assis e Lima Barreto, estão reunidos na coletânea Contos do mar sem fim, que chega agora às prateleiras. O título remete aos célebres versos de Fernando Pessoa: "O mar sem fim é português". Nas entrelinhas, o convite para deixar a mente percorrer as imagens que fazem parte do cotidiano dos três povos... E, de fato, os 16 contos selecionados têm em comum o idioma e suas particularidades em cada nação no qual é falado. "A rota de navegação escolhida para atravessarmos esse mar imaginário é instigante em todos os sentidos", explica, na orelha, a professora Laura Cavalcanti Padilha.
"Não nos podemos esquecer — e os textos, eles próprios, nos impedem — que a África é um múltiplo e só assim pode ser pensada", avança Padilha na apresentação. Dessa concepção fazem parte os modos dos angolanos e guineenses de viver e se organizar social e simbolicamente. Tudo isso sem falar no intercâmbio de experiências entre os países, seja na dor provocada pela guerra, seja na mancha de sangue dos escravos, que tingiu os oceanos no tempo da escravidão e continua a permear as lembranças dos seus descendentes em Angola, Guiné-Bissau ou no Brasil.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento11 de ago. de 2015
ISBN9788534705929
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    Contos do mar sem fim - Andrea Fernandes

    1.

    A SENHORA DOS PASSARINHOS

    DARIO DE MELO

    1

    Devo dizer que eu não sou propriamente um coveiro. Ou melhor: não era propriamente um coveiro.

    Fui funcionário, camarário que, sim, senhor, tinha de minha conta o cemitério e os coveiros. Mandava neles. Com a guerra eles foram-se. Ninguém lhes pagava para fazer o serviço. A Câmara também já era: fugiu presidente, fugiram funcionários, ficaram alguns de cá na esperança de melhores dias, até que isto aconteceu.

    Das propriedades da Câmara só ficou o cemitério e eu, que passei a morar aqui na casa da secretaria quando rebentaram com a minha. Agora o coveiro sou eu, até porque já não existe Câmara para ter funcionários.

    Nunca mais fui à cidade, mas dizem que ficou tudo no chão: edifícios, pastas, papéis, tudo a voar com o vento da guerra. Limpa-se o rabo aos despachos do Presidente, embrulham-se gingubas nas folhas daqueles calhamaços antigos, livros de honra e quê, todos muito encadernados, com assinaturas de ministros, presidentes da república e parece que até de um rei que andou por aqui.

    A mulher?…

    Por que é que você quer saber da mulher? É sua família, sua parente? Não é. Realmente os seus olhos não são os olhos dela. Os olhos dela eram assim, um céu de cacimbo que não tem nuvens. A cor dela? Tem piada que uns dias era escura de preto, outros dias era clara de mulato, às vezes parecia de branco. Nunca pensei muito nisso, só agora que você pergunta.

    Só Deus é que consegue uma coisa destas. Quando lhe enterrei não lhe vi a cor. Era só assim uma pessoa coitada que se escapou da guerra e acabou por morrer à toa, quando a paz chegou.

    Vale a pena a gente morrer desta maneira? Tiros, bombas (pú, pú, pú) e, quando chega a paz, uafa!… Enfim, é o milagre da sorte. É o gozo de Deus, que a Ele também às vezes lhe parece rir. E está no seu direito, coitado!

    Demais, meu amigo, com a paz a velha não tinha nada que fazer. Passou a guerra inteira no perigo: vai buscar milho, vai buscar mandioca, vai buscar o quê e o quê, anda só assim nas lavras, nos capins, senta, caga, tira comida — minas é com os outros, com os pés dela nunca se rebentam.

    E então, quando chega a paz, vai morrer de mansinho, como quem adormece… Tinha comida: eu mesmo lhe arranjei. Deilhe um jazigo só com dois caixões onde ela podia dormir à sua vontade fora do frio e da chuva. Agora que estava bem, aconchegada, morreu por quê, afinal?

    Se morre na guerra, ninguém lhe pergunta se morreste de quê, ou de quê. Se você morreu na paz, a gente admira — faz de conta que fizeste uma coisa impossível — morreste na hora que ninguém já não morre mais. Foi assim: eu próprio lhe enterrei.

    2

    Se todos foram embora, por que é que só eu fiquei?

    Pois olhe que é fácil de adivinhar: eu estou aqui há 37 anos. Depois que saído do seminário, sempre aqui, nesta terra. Há pouco mais de 20 — funcionário camarário. Tenho sete filhos. Os dois mais velhos na capital: a menina Doutora. Sim, senhor, Doutora e é como vê. O rapaz que era um bom mecânico. Trabalhou para aguentar a irmã e hoje é engenheiro. Quando ela começou a trabalhar, ele foi estudar, é como lhe digo. É assim a minha família.

    Comigo tenho os três mais novos, fora os outros dois que me morreram, ainda agora aqui, sim, senhor. Então diga-me lá: para onde é que eu vou fugir? Para a capital, sobrecarregar os filhos com mais cinco bocas, porque está claro que eu não nomeei a minha companheira que é a mãe deles. Companheira de esposa, casada e assinada na Missão que ainda deve estar aí a palavra escrita do Padre Francisco, que era François ou coisa assim por ser alsaciano. Que ainda me lembro dele nas minhas orações quando ele me disse: Não quiseste servir a Deus como sacerdote. Serve-o agora como homem casado. E aqui estou eu servindo a Deus, enterrando os seus mortos. Rezando por eles, quando os enterro, e depois, senão nem Deus mais se lembra deles, que isto aqui é como vê — o fim do mundo. Quem me dá então emprego lá na cidade grande? Eu também o que é que eu sei fazer, senão este ofício de cemitério?

    Claro que eu não sou coveiro. Sou empregado camarário colocado no cemitério. Mas se já nem há Câmara, como raio é que eu sou empregado camarário? E que raio de ofício é esse de empregado camarário num cemitério?

    3

    Como é que a mulher apareceu aí, não sei. Só que apareceu. No princípio, pensei: é uma qualquer que vem ver sua falecida que está aqui enterrada. Depois, comecei todos os dias a ver.

    Se desconfiei? Desconfiei de quê? Com os tiros nos ouvidos, quem que desconfiava o quê? Eu próprio vinha todos os dias e era só o hábito do meu trabalho. Ela podia ter lá com ela o hábito da sua tristeza. Cada um vive de conforme com o seu coração: uns gostam de rir, outros preferem chorar. Quanto mais estar a reparar nos outros. A velha não chateava nem fazia sombra. Pelo contrário… à sua maneira era uma mulher muito útil. Quem estava com ela, estava com Deus. É isto, como lhe digo…

    A princípio, eu era muito preciso — tinha muitos mortos. Todos os dias enterrava mais de 30 ou 20. Cada um cavava no seu próprio enterro, está claro. E eu estava a ganhar uma boa receita. Mesmo com os tiros. Uns pagam em dinheiro, outros, que não tinham nada, davam coisas… Depois, a poucos e poucos (ou de repente, nem sei…) a guerra ficou com tudo, nem se podia nem sair na rua.

    Quando a água acabou, trazer um balde é de correr e pedir a Deus. Um tiro pode-te derrubar. Eu mesmo fiquei mais de um mês na minha própria casa. Aquilo era um inferno dos diabos: quem tem morto na casa, enterra no quintal, enterra no jardim, na cacimba d’água, agora seca, que é mesmo um bom buraco de enterrar os mortos. Se ainda tens gasolina, petróleo não, que faz falta à noite, deita-lhe o fogo na entrada da porta. Custa. Dói que nem gritar alivia, mas pensa que enquanto és tu que deitas fogo, não são os outros que te deitam a ti.

    Pois, como lhe digo, fiquei um mês dentro de casa. Só no quartinho sobrante. O resto no chão. Andaram os obuses ali a correr e a cruzar, uns atrás dos outros. Pus-me a pensar: largo isto e vou para a secretaria. Lá tenho casa melhor, tenho água (naquele tempo, a água ainda dava nas torneiras do cemitério) escuso andar para lá e para cá, sujeito a levar um tiro. E mal a guerra ficou acalmada fui com tudo que tinha para o cemitério, para ver as coisas da minha responsabilidade. Um homem precisa de responsabilidades para continuar a viver. Se não tem, morre. Ou é já um morto que está aí de pé.

    Pensava eu: este ofício é o único que eu tenho, e este governo, ou outro governo que venha, ninguém me chateia. A tua segurança é esta: as pessoas às vezes estão com a cabeça quente e dão um tiro num gajo sem mais nem ontem. Mas agora, quando é virar a arma contra um coveiro, não há cabeça quente que não fique fria. No fim, ninguém te quer o ofício, ninguém te chateia, todos te precisam. Ninguém te mata. É como se um gajo tivesse feitiço.

    É como lhe digo — então é assim: ao fim desse tempo todo, eu entrei e a velha estava lá. Fui falar com ela de curiosidade.

    — Como é, mamã? Hoje está a vir muito cedo…

    Os olhos dela eram muito cegos. Azuis e quê. Era assim como se visse e não te visse. Como quem tem olhos, mas não tem vistas. Como se te estivesse a olhar para dentro de ti. Custou a responder.

    — Estou a vir faz muito tempo. Quando a guerra começou, você foste na tua casa, eu sentei na minha. Aqui tem minha filha — e apontando para campa: é na casa dela que é a minha casa.

    A fome já era muita naquele tempo: esta mulher estará a comer quê?

    — Está a comer quê então, sempre aqui no cemitério?

    — Deus é que está a dar. É só assim que eu como.

    Nessa hora fiquei com medo. Que raio de ideias me passaram pela cabeça! Mulher que fala que Deus é que está a dar a comida e de mais a mais dentro do cemitério, o que é que a gente vai pensar?… tem coisas que o melhor é se retirar. Me retirei… E ia vigiando, agora que a minha residência se mudara para a secretaria. Via-a de longe. Cumprimentava e mais nada.

    — Bom dia, mamã.

    Ela, uns dias, que sim, bom dia; outros dias, não tinha palavras, mas os olhos cegos me seguiam nas costas, me estavam a ver por dentro das costas, no sítio do coração. Você nunca sentiu faltar a respiração do ar, quando os olhos te estão a lhe furar mesmo nas tuas próprias costas?…

    Claro que eu não acredito nessas coisas de feitiço e quê, mas tenho respeito. Sessenta e sete anos de olhos abertos, dá para ver muita coisa. Podia lhe contar…

    4

    Mas é como lhe dizia: eu cá do sítio da secretaria estava a ver. O trabalho também não era muito, podia ver à vontade. Quem morreu já morreu na guerra, está enterrado no jardim ou na cacimba. Quem está vivo, nem são dois nem três, os que morrem por dia. Pensava comigo que a fome e a doença é o melhor, porque é natural e não mata tanto quanto a guerra.

    Lá está você a perguntar porque continuo. Primeiro porque não tenho outro ofício nem outra casa. Depois, porque ainda sou a autoridade camarária aqui. Sem autoridade, o cemitério vira lixeira. Preciso é manter a ordem como nos outros tempos.

    Eles chegam com o caixão (que ninguém tem e é só uma tipoia de lençol metido num pau ou uma porta arrancada de casa) e eu vou ao terreno e digo é aqui. Registro no livro. Eu próprio pergunto: nome, pai, mãe, idade, natural, morreu de quê? De paludismo. Se é criança a gente olha e vê logo: sarampo; se é recém-nascido, o mais certo é você apontar: tétano pré-natal. Se é adulto, se eles dizem que morreu de cagar, você escreve: diarreia aguda, enquanto não começam a surgir mais casos, porque então você já sabe que é cólera. Certidão de óbito, quem é que vai passar? Eles cavam, enterram, às vezes pagam.

    Se só os ricos é que pagam? Não, senhor. Na guerra, quem é rico não tem mais que aquele que é pobre. Quem paga é quem passou com o seu enterro aqui e aqui e viu uma coisa que estava lá e aproveitou pegar. Roubou nada — o que está no abandono é de quem lhe agarra. Podem te dar uma cadeira com três pernas — não presta para sentar, serve para lenha. Tenho até uma dessas coisas que se usavam para pôr na mesa com flores que parece prata. Guardo, que ninguém sabe o futuro. Um pano que é só um bocado — se calha lhe buscaram num morto qualquer que estava ali na rua. Ninguém tem mais coisas que a vida e a fome.

    5

    Os tropas gostavam dela. Quem tem a velha tem a sorte. Às vezes ela passava para o inimigo e era desgraça certa na gente. Como é que eu sei quem é o inimigo?! Olhe: eu cá no cemitério não tenho inimigo, está a ver? Morto nem é amigo nem é inimigo, é só assim um gajo deitado e pronto!

    Inimigo, a gente fala, é aquele que está a atirar os tiros de contra nós. Um dia, se esses vierem parar aqui, ficaremos amigos. Agora se matam um e massacram outro, e pegam na mulher deste, e obrigam a mulher daquele, então a gente entra na mata e vai procurar os nossos amigos de antigamente.

    Estava eu ainda a dizer que para a velha não sair para o outro lado em procura de comida, os tropas todos os dias lhe começaram a levar comida ao cemitério. Porque ela o que comia era nada, mas tinha sempre lá dez ou quinze garotos a quem dava de comer. Por isso tinham de aguentar: ia à lavra, pedia à tropa deste lado, pedia à tropa do outro…

    Então, os de cá resolveram que ela devia ficar no cemitério para lhes dar sorte e traziam a comida para ela e para os garotos.

    — Mamã. Tua comida está aqui.

    Ela se levantava: Obrigada e ia buscar. Respeitoso, o tropa lhe dava na mão.

    — Desculpa, mamã. Hoje comida é pouco.

    E ela que tinha um sorriso de fazer quê no coração:

    — Não tem mal, filho, Deus dá o resto que falta. Você já comeste?

    E ele com medo:

    — Sim, senhora, já comi mesmo.

    É que a comida dela não podes comer. Nos olhos dela, não podes olhar. Assim tens sorte e a vida te continua. Às vezes um que vai levar a comida morre. Toda gente sabe: ou estava com inveja da comida da velha ou lhe roubou um bocado.

    6

    A velha o que fazia? Nada. Falava só com ela mesma e com a filha que estava embaixo da terra. De manhã se levantava, ainda noite, e ia à lavra, nos sítios onde Deus semeara a sua comida. Depois, quando vinha, cantava. Para a filha se dormir. E os meninos que estavam lá dormiam também: cada qual na sua sombra, cada qual na pedra da sua campa pequenina, porque ali era o sítio do cemitério das crianças. Depois, na hora de acordar a filha, os pássaros vinham todos voar e cantar em cima da pedra. Ela dava migalhas, não sei s’é milho, s’é batata, s’é mandioca, e os pássaros trepavam nas costas dela: subiam, andavam nas mãos, punham o pé na cabeça dela.

    Um dia vi: o passarinho estava na mão dela, fez uma festa, e pronto! Já estava morto e sem cabeça. Depois vinha outro e outro e mais outro e zás! Era a unha grande que ela tinha no dedo, cortava como faca. Olhei e percebi. Depenava, cozinhava numa lata com um quê de fogo embaixo, e bebia — ela e os meninos — a canja que Deus dava naquele dia.

    Percebi então como Deus mandava coisas na cozinha dela. O fogo vinha d’aonde, não sei. Os restos enterrava tudo, à volta da campa, com os bicos virados para a cama da menina. Tudo a cantar para a filha. Quando lhe descobri, já estava a enterrar à volta de outras quatro campas.

    Pensei: são esses meninos que estão a brincar com a filha nas escolas do céu. Se o céu tem escolas? Deve ter: escolas, creches que é onde tratam as crianças que são órfãs, porque os pais ainda estão neste Mundo.

    7

    Com a graça de Deus, a minha vida tem sido muito normal. Só lamentei dois filhos que morreram: um de guerra, um na doença. O com 12 anos, lhe levaram na tropa. Não vale a pena refilares ou levas um tiro. Mesmo coveiro, levas. Falta de respeito, militar não admite. Dizer não leva o miúdo, ainda não tem idade, é ouvir, já os olhos liambados de raiva: E qual é a idade que a gente tem de morrer? Mesmo tu, já velho não morreste ainda por quê? Te falta idade de morrer? Morre então que chegou a tua idade.

    O outro tinha só seis meses e não aguentou a doença da fome nos peitos secos da mãe. Este, enterrei-o mesmo num sítio de rico, com uma pedra própria que fui buscar, guardada lá, ainda do tempo do colono. Era p’ra pôr não sei aonde. Como veio a outra guerra, o dono fugiu e a pedra ficou minha, que mereço de a ter na sorte da minha desgraça.

    Desgraça?! A mulher diz que a nossa desgraça é normal. Nos morreram só dois filhos, ficamos ainda com cinco. Tem uns que ficaram com nada: filho, mulher, mãe, tio — tudo foi e ficou nada… Ela tem razão: Deus foi boa gente com nós. Graças que Ele mesmo só precisou os nossos dois filhos.

    8

    No cemitério as bombas não entram. Nunca entraram. Toda gente sabe que, com aquela mulher, Deus fechou o cemitério. Até os pássaros conhecem isso. Você passeia lá fora, espreita nas árvores (algumas muito arrebentadas) não vê nenhum pássaro. Chega aqui no cemitério e vê todos — árvores, ninhos e logo pela manhã uma festa que entra no coração da gente.

    Aqui no cemitério (eu penso assim) logo de manhã se faz festa para acordar no céu os mortos que estão enterrados aqui. Lhes estamos a lembrar. Nenhum

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