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Cartas: Caio Fernando Abreu
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E-book596 páginas8 horas

Cartas: Caio Fernando Abreu

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Sobre este e-book

Devolvemos ao público este volume de correspondência de Caio Fernando Abreu, esgotado havia vários anos, depois da pioneira edição pela editora Aeroplano, de 2002, uma iniciativa de Heloisa Buarque de Hollanda, composta por cartas enviadas por Caio a Maria Adelaide Amaral, Hilda Hilst, Flora Süssekind, Cida Moreira, Gilberto Gawronski, Jacqueline Cantore, João Silvério Trevisan, Mario Prata, entre outros.

A presente edição das cartas de Caio marca os vinte anos de sua morte, ocorrida em 1996, e vem atualizada e enriquecida pelo acréscimo de cartas e cartões.

Com prefácio e organização de Italo Moriconi, a edição sai exclusivamente em e-book.
IdiomaPortuguês
EditoraHB
Data de lançamento8 de dez. de 2016
ISBN9788584741441
Cartas: Caio Fernando Abreu

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    Cartas - Caio Fernando Abreu

    Sumário

    Apresentação

    Prefácio à primeira edição

    Todas as horas do fim (1980-1996)

    Começo: o escritor (1965-1979)

    Sobre os destinatários

    Agradecimentos

    Créditos

    Apresentação

    É com muita alegria que devolvemos ao público este volume de correspondência de Caio Fernando Abreu, esgotado havia vários anos, depois da pioneira edição pela ed. Aeroplano, de 2002, uma iniciativa de Heloisa Buarque de Hollanda. A presente edição marca os vinte anos da morte do escritor, ocorrida em 1996, e vem atualizada, enriquecida pelo acréscimo de três cartas e um cartão, gentilmente cedidos, respectivamente, por Marcos Breda e Stella Miranda. A eles, nossa gratidão, minha e da editora, assim como aos demais destinatários que nos cederam material. É um conjunto de pessoas, todas ligadas às letras e às artes, que sabe do valor e da delícia que é a leitura de cartas escritas por protagonistas da cena cultural. Ainda mais quando escritas por um contumaz praticante do gênero. Com esta nova edição não só atendemos a uma demanda da legião de fãs da literatura de Caio como pretendemos contribuir para o registro histórico da vida literária brasileira nas últimas quatro décadas. A obra de Caio Fernando Abreu situa-se no limiar de nossa contemporaneidade, como inspiração e modelo.

    Nosso autor morreu cedo, aos 47 anos de idade, em pleno apogeu de uma carreira exemplar de ficcionista. Exemplar pelo lado bom, pela dedicação permanente a seu destino e vocação, contra todas as adversidades oferecidas pelo meio circundante. Mas exemplar também pelo lado das adversidades. Sua trajetória de vida fornece um bom retrato da conspiração permanente da sociedade brasileira para impedir ou dificultar a profissionalização do escritor-artista. Como diz Caio numa das cartas, a cada dia que levanta da cama, o escritor e a escritora brasileiros são convidados a desistir de sua vocação, seu desejo, sua vontade. É bem verdade que, passados vinte anos de sua morte e quatorze desde a primeira edição das cartas aqui apresentadas, ampliaram-se um pouco as possibilidades de profissionalização, mas não desapareceram as angústias e dificuldades vividas por quem, não sendo rico por nascimento ou herança, optou por viver de escrever ficção.

    Pela linha do tempo das histórias literárias, Caio pode ser classificado como autor representativo da geração 70 do século passado em nossa literatura, tendo começado a escrever ainda quase adolescente nos anos 60. Sua obra faz a ponte entre as instigações pop contraculturais e malditas ou marginais dos anos 70 e a pasteurização dos 90, quando tornam-se dominantes uma literatura de autoajuda, uma linha de cunho místico ou religioso e um robusto mercado para literatura jovem, depois de certa disseminação, nos anos 80, dos modelos baseados na literatura policial. Caio situou-se nesse contexto da única maneira que o artista competente e antenado com seu tempo pode fazer: incorporando-os e transcendendo-os em seu próprio texto.

    A formação pop contracultural está em todos os seus livros. A linguagem juvenil está em Morangos mofados, tratando porém de assuntos muito sérios, adultos, transgressivos. O molde da narrativa policial e a busca de uma religiosidade alternativa, pós hippie, estão em Onde andará Dulce Veiga?, um dos melhores romances brasileiros dos anos 90. Através destas cartas, o leitor e a leitora aficcionados de literatura brasileira terão acesso a tudo de vida que havia por trás da criação artística de Caio: dificuldades financeiras, embates pessoais, momento de internacionalização da carreira, adoecimento e morte causada pelo hiv-aids.

    ***

    Para alguns escritores brasileiros da geração de Caio, a internacionalização foi um caminho para certo upgrade na carreira, abrindo oportunidades que de outra forma não se colocariam. Hoje vivemos novo momento de internacionalização, com um número crescente de obras contemporâneas sendo traduzidas lá fora. Quando adoeceu de Aids em 1994, Caio vivia plenamente esse processo. Em 1991, Caio está em Londres para os lançamentos das traduções inglesa e francesa de Os dragões não conhecem o paraíso, que contaram com excelente repercussão crítica, particularmente na França, para onde Caio volta em 1992, beneficiando-se de uma bolsa para escritores concedida por uma instituição daquele país. Em 1993, pôde retornar à amada Europa para fazer leituras na Alemanha e na Holanda, participando também de um Congresso Internacional sobre Literatura e Homossexualidade.

    No ano seguinte, a explosão. Três lançamentos no Salão do Livro de Paris — o romance Dulce Veiga, a noveleta Bem longe de Marienbad (que Caio escrevera durante os três meses da bolsa de dois anos antes) e a coletânea de contos L ‘autre voix. O sucesso foi tanto que Dulce Veiga acabou entre os finalistas indicados para o Prêmio Laura Battaglion de melhor romance traduzido. No mesmo ano, acontece uma sequência de traduções de seus livros em outras praças europeias — Holanda, Alemanha, Itália. Pois foi no meio desse roldão que se deu o adoecimento, experiência que Caio compartilhou com seus leitores do Estadão nas famosas Cartas para além dos muros, ao revelar estar internado com Aids num hospital de São Paulo. Daí por diante foi uma vertigem só, até a morte, em fevereiro de 1996. Caio enfrentou a barra da doença e da morte como aventura, expressão por ele utilizada numa das cartas incluídas no presente volume, escrita dias após a internação e o diagnóstico.

    Voltando para Porto Alegre, para a casa dos pais, lutou bravamente para manter o ritmo de trabalho próprio àquele momento de pique profissional, ao mesmo tempo que administrava as oscilações de seu estado físico, em que se alternavam momentos de relativa estabilidade e brabeiras inenarráveis em matéria de males e sofrimentos. Nos intervalos entre os períodos dolorosos de internação, Caio passou seu ano e meio final de vida fazendo passeios de bicicleta pela beira do Guaíba, cuidando do jardim da casa dos pais, escrevendo cartas sem parar (como sempre fizera ao longo da vida), preparando o livro-testamento-memória Ovelhas negras (uma coletânea de dispersos), viajando, tanto para o exterior (esteve na Feira de Frankfurt de 1994) como para São Paulo (para lançamentos e entrevistas na TV), traduzindo Susan Sontag (a bela narrativa sobre Aids O modo como vivemos hoje), e, last but not least, começando a receber simpáticos e regulares royalties pelas edições estrangeiras de seus livros. E dedicando-se, como sempre, a esoterismos e astrologias, paixões de vida toda que eram presença constante em seu cotidiano e moldaram tantos de seus textos, seja por fornecer o simples mote inspirador seja por constituir a estrutura mesma das narrativas, como no livro Triângulo das águas.

    ***

    Assim como os poetas Cazuza e Renato Russo, que considero almas irmãs de Caio em matéria de destino e expressão artística, ele, o prosador, viu-se na contingência de ter mesclada a tarefa da criação com o drama da morte anunciada, drama que num primeiro momento colocou em foco exclusivamente os homossexuais, até então vivendo um processo intenso de liberação em nível mundial e nacional. No final do século XX, apesar de ser uma epidemia de largo alcance, a Aids vinculou-se à existência artística de maneira tão decisiva quanto tinha ocorrido com a tuberculose desde o início do século XIX até meados do XX e também, em menor escala, com a própria sífilis.

    Em decorrência disso, surgiu entre meados dos anos 80 e 90 do século passado toda uma vasta produção de textos ficcionais, documentais, biográficos e autobiográficos ligados à temática da Aids, tanto em escala global quanto no Brasil. Panorama belamente estudado por Marcelo Secron Bessa, no livro Os perigosos – Autobiografia e Aids (também publicado pela Aeroplano). Ele mostra que o discurso da Aids, em torno da Aids, pautado pela Aids, já estava presente na obra de Caio desde o início da epidemia, na primeira metade da década de 80. Diante da possibilidade de também tornar-se vítima, tal como já ocorria a todo instante com tantos e tantos de seus amigos próximos e distantes, sua postura foi idêntica a de muitos no Brasil, cheia de contradições, idas e vindas, já que a epidemia colocava no centro do debate algo que havia começado a se tornar simples e que de repente ficara complicado de novo — a vivência da condição homossexual masculina.

    A leitora e o leitor de Caio sabem que em sua ficção ele enfrentou de frente essas questões, a um só tempo delicadas e brutais. Estamos diante do autor de algumas obras-primas da literatura gay no Brasil, como os contos Sargento Garcia e Aqueles dois, assim como a notável narrativa de Pela noite, a mais completa tradução literária, em nossa ficção finissecular, de uma típica noitada urbana em versão périplo-gay-pelos-bares-e-clubes-em-busca-de-sexo-amor. Poucas obras em nossa literatura gay expõem tão bem quanto a de Caio o paradoxo da questão homossexual, como questão simultaneamente lateral e central na constituição da subjetividade. Lateral do ponto de vista social. Central do ponto de vista afetivo.

    Hoje vivemos outro momento, de criminalização da homofobia, de aceitação do casamento gay ou união homoafetiva, do coquetel de medicamentos que transforma a Aids em condição crônica assintomática. No Brasil, muito da percepção atual resulta da força simbólica de trajetórias de vida-morte exemplares como foram as de Cazuza, Renato Russo e Caio Fernando Abreu, entre muitas outras menos visíveis. As cartas aqui apresentadas trazem um documento pungente disso tudo, embora ultrapassem em muito essa problemática. A escrita de Caio, ficcional ou não, é cheia de vida, de som e fúria, girassol em busca do facho de luz renovadora.

    ***

    A seleção das cartas de Caio agora reeditadas nunca se pretendeu exaustiva. Ao organizá-la, eu tinha plena consciência de que nosso autor escrevia cartas compulsivamente, diariamente, para múltiplos destinatários. Sabia que na verdade, este livro seria provavelmente o primeiro de uma série. Como é comum ocorrer com a fortuna póstuma de grandes escritores, as gavetas dos entes queridos em vida de Caio não param de expandir, postumamente, a sua obra.

    Sim, obra. As cartas são parte da obra literária. Corresponder-se com amigos, com companheiros escritores e com gente de teatro, TV e música era pois parte integrante do cotidiano de Caio, tanto quanto falar ao telefone, trabalhar, e cumprir as microtarefas caseiras do dia a dia. Na medida em que seu trabalho era escrever, as cartas faziam parte do mesmo movimento produtivo de que brotavam suas crônicas, suas ficções, suas peças teatrais, sua poesia, suas resenhas e matérias jornalísticas. Tudo produto de um mesmo processo de vida se fazendo na escrita, enunciação e enunciado condicionando-se mutuamente, escrita alimentando-se de vida, vida transcendida pelo simbólico. Antes de serem um documento da biografia de Caio, elas são literatura. Puro cult literário. No ritmo trepidante da máquina de escrever.

    As cartas selecionadas para publicação foram organizadas em ordem cronológica, em lugar de separadas por destinatários, pois eram muito diferentes as quantidades que tínhamos de cada destinatário. Com a ordem cronológica, busquei também recuperar o romance fragmentado de uma vida.

    No romance de uma vida, mais por ser romance do que por ser vida simplesmente, tudo que é relatado adquire sentido, sendo o sentido maior dado pelo próprio fim da vida, ponto final do romance, mas não necessariamente fim do escritor, já que escritor e escritora são aqueles indivíduos que sobrevivem a si próprios através de carta deixada aos pósteros, sua obra escrita. Diante dos dois limites, o começo e o fim, o que acontece no meio adquire características de verdadeiro épico do cotidiano. A carta faz com que cada momento desse desenrolar épico configure um clímax, visando ao sublime histérico (cf. Fredric Jameson) que nosso tempo hedonista-consumista oferece em migalhas, no contexto de uma narrativa cujo final (a morte por Aids) Caio previu desde os 35 anos de idade, mas não quis roteirizar por antecedência. Por nada antecipar na narrativa é que cada carta se toma tão importante, epifania instantânea, porém repetível.

    Já os muitos começos voltam como fantasmas em cada entrelinha. O começo da vida física e imaginária, em Santiago, cidade da fronteira gaúcha. O começo da vida solitária e artística, no internato onde foi fazer o colegial, em Porto Alegre. O começo das andanças profissionais como jornalista. O começo carioca em 1969. O definitivo recomeço paulista em 1978. Caio é escritor gaúcho ou paulista? Há também o começo de uma sensibilidade, no desbunde dos anos 70, através da clássica viagem riponga pela Europa, cabelos longos feito John Lennon, magreza e viagens lisérgicas.

    Para dar conta dessa lógica de eterno retorno do começo dividi o livro em duas seções, invertendo, no caso delas, a ordem cronológica. A primeira seção contém as cartas escritas nos anos 80 e 90, a segunda volta no tempo, apresentando desde as cartas adolescentes escritas para os pais até cartas escritas no final da década de 70, passando pelas cartas para Hilda Hilst, que nos fornecem um poderoso documento do começo da voz real e ficcional de Caio.

    Para além do romance de uma vida, este livro de cartas traz um painel fragmentário da vida literária nos anos 70, 80 e 90 no Brasil. A rede de relações de Caio traça o perfil de um escritor de fim de século cujo trabalho de criação literária anda par a par com o mundo do entretenimento, do espetáculo e do jornal, contrastando, de um lado, com outros autores mais canônicos, cuja sorte dependeu e depende do aval universitário e, de outro, com aqueles que conseguiram construir carreiras bem-sucedidas através da penetração no mercado paradidático e infanto-juvenil. Caio construiu seu próprio lugar. Um lugar de resistência, retomado por cada leitor que se debruça sobre sua obra, para simplesmente lê-la de maneira apaixonada e mesmo fervorosa ou para desenvolver um trabalho artístico a partir dela, em teatro, cinema, dança, artes plásticas.

    ***

    Cabe uma explicação, por assim dizer técnica, sobre a edição destas cartas. A pedido dos destinatários que as cederam, ou por decisão editorial, alguns trechos foram suprimidos¹, assim como nomes modificados, suprimidos ou substituídos por iniciais, como forma de preservação das pessoas mencionadas. Na presente edição, no caso de Ivan Matos, as iniciais foram substituídas pelo nome da pessoa, na medida em que sua relação com Caio já foi por ele aberta, como atestado obras biográficas escritas por Jeanne Callegari (Caio Fernando Abreu, Inventário de um escritor irremediável, 2008) e Paula Dip (Para sempre teu, Caio, 1ª. Ed. 2009). Em seu livro, belo conjunto de depoimentos e memórias, Dip deu a público muitas outras cartas de Caio, até então inéditas.

    Quanto às notas de rodapé, foram redigidas tendo em vista principalmente o interesse literário das cartas. Sei que mais notas poderiam ter sido feitas, pautadas por outros interesses, inclusive o interesse estritamente biográfico, anedótico. Mas não quis sobrecarregar o texto. Ao redigi-las, focalizei um tipo de interlocutor: leitores de gerações posteriores à minha (que é a mesma de Caio) interessados em informação sobre o contexto da vida literária no fim do século passado. As notas, assim como a simples publicação de cartas, não deixam de ser um esforço contra o esquecimento.

    Italo Moriconi

    Rio de Janeiro, outubro de 2016


    1 Eles estão indicados no texto pela marcação [...]

    Prefácio à primeira edição

    Mais de 20 anos atrás, dei um disco de presente para Caio. Era o primeiro ou o segundo LP da mineira Sueli Costa e trazia no repertório uma música que eu achava a cara dele, aquela que falava de um anjo que tinha as unhas pintadas. Há poucos meses, conheci Juiz de Fora, cidade natal da compositora, também em função de Caio. Fui assistir à (ótima) montagem local de Pela noite, que trazia ao palco, com fidelidade, todo o universo luminosamente claustrofóbico do meu amigo. Me dei conta de que, passados todos esses anos, o reconhecimento e o amor à sua literatura estão mais vivos que antes. Há, já, uma geração que não o conheceu, mas que o lê avidamente, e se identifica completamente com suas perguntas e procuras.

    Uma das razões é que, como muito poucos dos nossos autores, Caio conseguiu chegar ao nervo do coração urbano brasileiro. Para esse coração, felicidade é artigo raro, e amor é sentimento em extinção. Prisioneiros da inteligência contemporânea, habitantes de um país sempre à beira do abismo, eternamente aturdidos, sentimos (muita) gratidão por aqueles que, como Caio, nos fazem ainda acreditar que não podemos entregar os pontos antes do final da partida.

    Por isso a publicação dessas cartas me parece tão oportuna. Porque, generosamente, o autor nos ajuda a compreender e atravessar melhor esses tempos brasileiros, os sonhos e as ansiedades de quem não abdicou de reivindicar urgência de felicidade no e para o país, enquanto estamos vivos e lúcidos. Muito bem organizada, diante da quantidade do material a ser selecionado, esta publicação é um tesouro — que, como todo tesouro real, oferece a quem dele se aproxima peças de intenso brilho e surpresas inesperadas. Cada carta é joia burilada pela mão do exigente ourives. Tanto para os que conviveram com Caio como para aqueles que não o puderam conhecer, este livro-documento é importante, porque nele estão presentes, intactas, a palavra implacável e a real estatura do grande escritor. E se, como penso, a literatura brasileira anda tão oficial e acomodada, esta edição aparece como sacudida necessária e bem-vinda.

    Eu, que acompanhei a gestação deste livro desde o início, quero registrar meu agradecimento a Heloisa Buarque de Hollanda, que, com humor e perseverança, não deixou morrer a ideia desta publicação. Sem ela, e sem o excelente trabalho de Italo Moriconi, perderíamos todos.

    Que estas cartas sejam lidas com atenção sincera e proveito, é o que espero.

    Luciano Alabarse

    Todas as horas do fim

    (1980-1996)

    A Zaél Abreu

    São Paulo, 15 de maio de 1980.

    Querido pai,

    fazia tempo que queria escrever para o senhor, desde que voltei daí, no final de fevereiro. Acontece que foi uma correria danada, com o novo trabalho, a nova casa, a complicação toda com os documentos, a vinda de Simone — enfim, mil coisas me roubando tempo e disposição. Agora está tudo mais calmo. Já me adaptei ao trabalho, estou sozinho em casa. Tudo corre melhor, mais solto.

    Fiquei um pouco preocupado com o senhor quando estive aí. E o senhor vai me permitir ser franco: tenho a impressão de que o senhor está levando uma vida muito amarga. Ficou na minha cabeça uma frase que o senhor disse logo ao voltar daquela viagem a Santiago, algo como Eu já morri e não sei. Ô pai, que é isso? Entendo — e mais profundamente do que o senhor possa imaginar — o quanto a mudança de Santiago para Porto Alegre, a reforma no quartel o abandono da Maçonaria devem ter agido dentro do senhor para que fosse acontecendo esse sentimento de distanciamento da vida. Mas acontece que o senhor não colocou outras coisas para substituir essas. E eu não entendo por quê. O senhor abandonou até mesmo a leitura, parou de ir ao cinema, de sair. Quer dizer, deliberadamente foi-se afastando de tudo. Num velho, eu até entenderia essa atitude. Mas o senhor não é um velho.

    Imagino que existam razões fortes, ou complexas, dentro do senhor para provocar essa atitude. Mas há de concordar comigo que, fora do senhor, essas razões não existem. Tenho andado bastante por aí, conhecido muita gente e, honestamente, pouquíssimas vezes (ou quase nunca) encontrei uma família como a nossa. Unidos, amigos, solidários — com essa mãe fantástica que é a Dona Nair segurando a barra de todos. Amigos meus que os conhecem — como, por exemplo, o José Márcio — ficam muito impressionados, Mas como — eles dizem — é que vocês conseguem se manter assim quando todas as famílias por aí estão desmoronando? E eu não sei explicar. Acho que é uma questão de amor.

    Fiquei preocupado também com a mãe, quando estive aí. Ela está cansada, pai. É muita seguração de barra. Há anos, meu Deus, ela só trabalha, sem descanso, quase sem diversão. Achei-a triste.

    Mas não pense, por favor, que esta carta é para recriminá-lo por alguma coisa. Não se trata disso. Apenas gostaria de compreendê-lo melhor e, se possível, de ajudá-lo — como o senhor e a mãe me ajudaram (e ainda ajudam) durante muito tempo. Eu gostaria de convidá-lo para vir, com a mãe, passar um tempo comigo. Acho que julho é uma boa época, porque coincide com as férias da mãe e tal. A casinha é realmente ótima e, como estou sozinho agora (e por muito tempo), há bastante espaço. Tem dois quartos em cima, um deles seria de vocês, Por enquanto, ela está um pouco vazia. Como estou comprando o telefone (saiu 50 mil), este mês me sobrou pouquíssimo dinheiro. Mas acabo de pagá-lo no final de maio, portanto em junho ela deve estar pronta.

    Fora a alegria que me dariam, acho que faria muito bem ao senhor sair um pouco. Tem tanta coisa aqui por cima, pai. São Paulo é uma cidade fascinante, cheia de vida. Depois, lembro que Tia Ninica ofereceu o apartamento dela, no Rio — vocês poderiam estender a viagem até lá — uma cidade linda demais. Pense nisso. Gostaria tanto que o senhor e a mãe conhecessem o lugar onde vivo. E não me venham com desculpas tipo dinheiro. A passagem de ônibus custa tanto quanto de Porto Alegre a Itaqui, e de avião pode ser feito um crediário que sai ainda mais barato. Eu não vejo problemas.

    Talvez o senhor não tenha vontade de sair — mas será que não vale a pena um esforço? Às vezes a gente vai-se fechando dentro da própria cabeça, e tudo começa a parecer muito mais difícil do que realmente é. Eu acho que a gente não deve perder a curiosidade pelas coisas: há muitos lugares para serem vistos, muitas pessoas para serem conhecidas. Tudo isso estimula a gente, clareia a cabeça, refresca. Por que não?

    Quanto a mim, acho que estou muito bem. Poucas vezes tenho me sentido assim. Pela primeira vez, estou comandando completamente a minha própria vida. Morar só é uma experiência fantástica. Tenho uma empregada ótima, Renilda, uma baiana flor de boa vida, mas muito bom caráter (e como isso é raro por aqui, o resto não importa muito). A casa tem um jardinzinho nos fundos, um pequeno pátio, que tenho cuidado muito, principalmente nos fins de semana.

    Terça-feira aconteceu uma coisa ótima. Como o senhor sabe, há quatro anos eu fazia psicoterapia. Primeiro aí, dois anos, com o Dr. Mário Bertoni, que morreu naquele desastre. Depois continuei aqui, em grupo. E há alguns meses eu vinha pensando em parar. Não sentia mais grandes problemas para discutir. Nesse tempo todo, aprendi a me conhecer, a conviver comigo mesmo, me tornei muito mais tranquilo, muito mais seguro. Falei nisso às outras pessoas do grupo, ao Dr. Domingos, o psicanalista, e à Suzana, a psicóloga assistente dele. Foram ótimos comigo: acham que eu estou realmente bem, que tenho mesmo condições de segurar a minha barra sozinho. Enfim, ganhei alta — o que é uma coisa rara em terapia. Às vezes as pessoas ficam dez, quinze anos em tratamento. Isso me deixa ainda mais confiante.

    No trabalho, tudo vai bem. Tenho um chefe excelente — Caloca, tinha sido meu chefe na Pop, e me protegeu durante muito tempo. Ontem consegui terminar um trabalho que vinha fazendo desde março, um livrão de mais de 500 páginas sobre educação de bebês. Continuo fazendo as críticas de livros para Veja e, de vez em quando, algumas matérias para a Nova. Como meu salário aqui é de 52 mil, às vezes tiro 60/65 por mês. Dá para levar, apesar do Delfim Neto...

    Agora que tudo está mais ou menos em ordem, quero começar a aprontar um novo livro. Estou transando com uma editora do Rio (a Nova Fronteira, que pertencia ao Carlos Lacerda) para publicá-lo. No momento, creio que é a melhor editora do Brasil. Acho que tudo vai dar certo e — quem sabe? — no começo do próximo ano talvez esteja com um livro novo à venda por aí.

    Insisto mais uma vez: gostaria profundamente que o senhor e a mãe pudessem vir. Por favor, vão pensando nisso desde agora. Vamos passear muito. Há lugares ótimos para conhecer.

    Espero que estejam todos bem. Um beijo para a mãe, Cláudia e Márcia. Um abraço para o Felipe. Sei que o senhor não gosta de escrever cartas, mas se quisesse responder eu gostaria muito. Cuide bem de sua saúde.

    Um grande abraço do seu filho

    Caio

    PS — Minha erva mate acabou completamente — tenho procurado em mil lugares e não encontro. O senhor podia me mandar um ou dois pacotes de Madrugada Amarga?

    A Bruna Lombardi

    Sampa, 16 de fevereiro de 1981.

    Bruna,

    amei seu livro¹. Estive doente, há umas duas semanas (um vírus misterioso, pestes soltas no ar, na água desta cidade infernal), e aproveitei para ler uma porção de coisas guardadas há tempo. Acho corajoso, bonito, forte. Principalmente quando você solta o emocional. Várias vezes, me comovi, li em voz alta para amigos, para mim mesmo. Gostava, e muito, do primeiro, mas acho que você cresceu ainda mais. E na direção certa.

    Queria dizer isso a você. Por favor, não se abale com as maldades tipo Léo Gilson². Não deixe que esse tipo de comentário, mesquinho e destrutivo, bloqueie a sua criatividade. Está tudo muito ruim, e nós precisamos mais do que nunca ser solidários uns com os outros. Trocar estímulos. Assim: olha, eu sei que o barco tá furado e sei que você também sabe, mas queria te dizer pra não parar de remar, porque te ver remando me dá vontade de não querer parar de remar também.

    Tá me entendendo? Eu sei que sim.

    Qualquer coisa, conte comigo. Sem conhecê-la profundamente — mas mais pelo que você escreve e menos pela sua imagem pública — te quero muito bem. Estou com você e não abro.

    Receba um beijo grande.

    Seu amigo

    Caio Fernando Abreu


    1 Caio refere-se ao livro Gaia (Ed. Codecri, 1980).

    2 Jornalista e escritor Léo Gilson Ribeiro, que escrevia sobre livros e autores em diversos jornais e revistas brasileiras.

    A Jacqueline Cantore

    Sampa, 24 de junho de 1981.

    Viva São João, viva Xangô, viva a refazenda, viva qualquer coisa!

    Jacqueline,

    Finalmente ontem consegui enviar (para o endereço de Yedda) uma carta que era também para você, uma carta fria e meio boba, além de atrasada no mínimo uma semana. Houve um acúmulo de produções, não há correio por perto e, enfim, os dias foram se passando. Hoje é um dia bonito. Ontem também foi. Acordei cedo, dei uma volta lenta pela Lorena, Consolação, Oscar Freire. Comprei duas coisas que tinha vontade de ter, fazia tempo: uma garrafa térmica (tomo muito café, e já estava cansado daquele negócio de subir/descer escada toda hora) e uma sandália chinesa, daquelas cheias de bolinhas de plástico que massageiam os pés (e os órgãos internos) enquanto você caminha. Procurei inutilmente uma vela branca de sete dias pra acender pra São João, não encontrei, comprei azul, ele deve gostar também. Trouxe um pacotinho de incenso, outro de gin-seng. De uma papelaria (uma das minhas fantasias é ser, um dia, dono de uma papelaria que se chamaria Virginia Woolf, onde seriam vendidos principalmente aqueles pesos de papel de cristal — naturalmente que iria à falência em menos de um mês), trouxe dois bloquinhos para recados telefônicos, já tinha dois, nem há tantos recados assim, mas são tão bonitos.

    A foto de Lidinha com as crianças vai para a porta-galeria, onde estão as caras de alguns amigos, de alguns tempos, de velhos e novos carnavais. Fica logo na entrada: você entra e, de cara, já sente aquele astral de amizade bonita. A propósito: você manda uma fotografia sua e pede pra Yedda mandar uma também, para a mesma porta?

    Mandamos pintar a frente da casa.³ Enquanto escrevo aqui, num canto de meu quarto, atrás dos vidros da janela o pintor raspa raspa raspa as paredes. Acordei hoje cedo com uma coisa lixando a minha cabeça. Fiquei uns cinco minutos sem entender: eram os pintores. Em geral coloco o rádio para despertar às 8h45m, para assistir ao Bolinha na TV-Mulher, mas ontem fui estendendo e estendendo e estendendo a noite, acabei dormindo quase às quatro, depois de assistir na TV My fair lady, na verdade só pra ver Audrey Hepburn (azul, azul, era uma mulher inteiramente azul, azul clarinho, quase transparente, azul de água clara com pedrinhas no fundo) e ler quase inteiro o jornal de classificados que tem aqui chamado Primeira Mão.

    Foi um dia tão bonito ontem, já disse isso, mas repito: foi um dia tão bonito ontem. Precisei ir na Abril, à tarde, entregar umas matérias, e de repente chegando lá me deu uma CERTEZA muito forte de que tinha sido ótimo pedir demissão, que eu realmente não suportava mais os carpetes verdes, os tetos pretos, as caras — principalmente as caras, ai as caras cinzas. Revi pessoas que eu gosto, nem são muitas, na verdade só Maria Adelaide Amaral (pequenina, feiticeira) e Juan, meu amigo uruguaio. Depois fui visitar Zé Márcio Penido, imobilizado durante 10 dias, com um negócio chamado lombalgia aguda, segundo o médico por falta de movimentos, de exercícios. Zé passa a vida sentado, fumando muitos hollywoods e bebendo vodka com coca-cola. Falei pra ele que o bode de corpo era um toque, você precisa cuidar bem do seu barco, senão como vai navegar por aí? Saí para a aula de dança quase de tardezinha, ô Jacqueline, como São Paulo pode ser bonito às vezes, com uns crepúsculos cor de pêssego querendo amadurecer, demoradíssimos, tão lentos quanto um acorde de Erik Satie. Dancei, dancei: eu estava tão claro que algumas pessoas que nunca tinham falado comigo vieram conversar. Eu estava entendendo tanto todas as coisas, e tudo principalmente que é de dentro das pessoas — assim como uma piedade amorosa, uma piedade cúmplice e também parceira de pequenas dores (ou grandes talvez), procuras, tentativas, quedas, quebras.

    Raramente saio à noite, praticamente nunca vou a lançamentos literários: — tenho medo e desgosto do astral competitivo, fofoqueiro. Mas tinha ontem duas pessoas que gosto muito: Márcia Denser, lançando O animal dos motéis (você ficou assustada com o título? a Márcia é assim, meio atrevida, mas no fundo uma Luluzinha querendo fingir de Messalina — como me dirijo mais a Luluzinha e ignoro as messalinices dela, costumo dizer que temos um relacionamento muito especial). Aí conheci sabe quem? Cassan-dra-Ri-os⁴. Fiquei paralisado. Afinal, é um mito. Nada de casacos de couro, pulseiras grossas ou correntes: traços muito bonitos, um nariz fino, uma testa ampla, uma voz baixa, mansa. Não consegui dizer nada além de um besta muito prazer. Aí fiquei olhando as figuras: Marcos Rey, parecendo uma daquelas figuras fellinianas do Satyricon, Raduan Nassar, um iraquiano traficando petróleo (ou urânio?), Olga Savary com seus longos vestidos indianos, Massao Ohno, o editor chinês com jeito de traficante de ópio.⁵ Tudo, todos, estranhamente obsoletos. Carlos Emílio Correia Lima, irônico e agressivo desde que escrevi uma resenha criticando um romance dele chamado A cachoeira das eras. Perguntou como vai o conde? , respondi agora ganhei um título de marquês e fiquei exausto de ter que segurar esse tipo de astral. Foi então que apareceu uma cara muito limpa e disse vi sua fotografia na fazenda de Hilda Hilst". Ficamos sorrindo um pro outro no meio daquela bobagem. Aí ele disse que era poeta e me deu o livro dele, chama-se Quem se debate é afogado. Escreveu assim: para o Caio, por esse brinco de calypso no convés da sua caravela/ saludos del Mar/ R./ hora de tudo. Abri o livro à toa, e encontrei um poema assim:

    "eu sou a pedra vermelha na víscera do caranguejo procurando a maré alta do dia no dente do chocolate o espelho denso girando em seu quarto de sol o beijo escorrendo na boca do mar

    miles davis ecoando no ventre da caverna"

    Foi então que comecei a me apaixonar violenta, profunda e imediatamente. Eu não podia suportar ninguém em volta suportaria. Comecei a não saber onde colocar nem os olhos, nem as mãos, nem os pés, falei desculpa, tenho que ir, não me sinto bem nesses lugares. E quando vi já estava na rua fria, caminhando sobre um viaduto enorme, onde não passavam táxis. Eu tinha deixado a moto em casa (está até com os faróis queimados) e já tinha sido assaltado, há um ano, num lugar muito próximo dali. Uma paranoia leve pairou, mas segurei a guia de Ogum (era terça-feira) e fui em frente. Um táxi, outra livraria, o lançamento de Horácio, quentão e pipoca. Ignácio de Loyola, um beijo carinhoso. Juan, meu amigo uruguaio escondido atrás de Gê, [...] que se eriça toda quando alguém se aproxima dele. De repente encontrei Kátia Adamo, magra, alta, triste, escorpião de ascendente escorpião, mas surpreendentemente doce, e uma amiga dela apaixonada por Audrey Hepburn, ficamos horas falando, sustentei que Audrey era belga, ela que Audrey era holandesa, depois chegaram Tania e Paulo Afonso, com quem morei na Europa, o tempo foi andando e uma porção de lembranças antigas foi tomando corpo ali no meio da rua Pinheiros. Véspera de São João, e a minha cabeça deu uma volta até as fogueiras que nós fazíamos em Santiago do Boqueirão, eu, Nairzinha, minha irmã de criação, Beco, meu primo, o negrinho Jorge, afilhado de minha mãe, meu irmão Gringo, os vizinhos Iso e Marilusa, que eram desbocados e me contaram tudo sobre como os bebês nasciam, minha mãe só permitia que a gente andasse com eles em ocasiões especiais como essa, e Altamir, da casa branca em frente, e Jacira e Celanira, as gêmeas da esquina em frente, e Rubens, filho de dona Tuta. Nairzinha todo ano dizia que tinha uma sorte forte que era olhar no poço meia-noite com uma vela na mão. Se você visse na água lá embaixo um vestido de noiva, era casamento; um caixão de defunto, morte, e assim por diante. Ninguém tinha coragem de fazer essa sorte. Mas a gente pingava vinte e um pingos de vela numa bacia para formar a inicial do nome da pessoa com quem você ia casar, e colava papeizinhos nas bordas da bacia com nomes das namoradas e soltava um barquinho pra ver onde ele ia aportar, e pingava tinta em papeizinhos dobrados, deixava no sereno pra abrir na manhã seguinte, e pulava a fogueira três vezes, fazendo três pedidos, eu sempre pedia pra morar na Suécia um dia, todo mundo achava um absurdo, mas acabei morando. A perda foi ficando tão pesada, Jacqueline, que fui comer um sanduíche no Posto 6 e vim embora. Antes de dormir, anotei no diário, em letras bem grandes, SAUDADES DE AUDREY HEPBURN⁶.

    Pausa. Orlando ligou, não vem almoçar, que eu escolha a cor da casa: um amarelo bem fraquinho, quase branco. Se tenho convite para festa dos sete anos da Status, hoje à noite. Não tenho. CBS ligando do Rio: Deus, o release do Thadeu Matias, tinha esquecido. Fica pronto amanhã? Fica, esta é uma tarefa para o Super-Caio. Thadeu fala um pouco: se vou ao Rio assisti-lo cantar no MPB da Globo dia 10 de julho. Vou. Assista aí: a música tem um refrão assim:

    "Ai essa geração

    não pode viver não sem amor

    sem saber de coração"

    Tenho amigos tão bonitos. Ninguém suspeita, mas sou uma pessoa muito rica. O release me espera. Queria escrever mais, mas já exagerei. Vou ver se consigo colocar no correio amanhã. Hoje de manhã chegou uma carta da Yedda. Ela também fala no amigo de vocês que careteou. Deixa ele: às vezes o que parece um descaminho na verdade é um caminho inaparente que conduz a outro caminho melhor. Às vezes não. O que a gente pode fazer é dar crédito ou não à pessoa. Frequentemente não vale a pena. Frequentemente, vale.

    Leio no jornal que Deu pra ti anos-70⁷ estreia hoje à noite aqui. Quero muito ver. Um beijo para Yedda. Outro pra você. Por favor, me mande da próxima vez uma folha de plátano bem amarelada, da Redenção. Aqui não tem plátano.


    3 Nessa época, Caio divide urna casa de vila na Meio Alves (região dos Jardins) com Orlando Bemardes (cf. adiante carta a Maria Lídia Magliani de 25/01/ 1991), que se muda em fins de 1981. Meses depois, em maio de 1982, transfere- se Jacqueline Cantore, passando a dividir moradia com Caio. Tinha um telefone gigante grafitado na frente da casa, lembra Cantore.

    4 Cassandra Rios — autora de inúmeros best-sellers nos anos 50 e 60, considerados pornográficos na época.

    5 Marcos Rey e Raduan Nassar, consagrados ficcionistas; Olga Savary, a poeta e contista; Massao Ohno, editor de livros em São Paulo; Carlos Emilio Correia Lima, escritor e crítico literário com atuação na imprensa.

    6 Saudades de Audrey Hepburn tornou-se título de um conto integrante do livro Os dragões não conhecem o paraíso (Cia. das Letras, 1991, 2 ed.).

    7 Considerado um marco na história do cinema gaúcho, Deu pra ti anos 70 é um filme dirigido por Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti.

    A Maria Adelaide Amaral

    Sampa, 15.02.82

    Levíssima⁸:

    Taí o Strindberg. Olha: o tamanho é por volta de 40 linhas de 70 toques, portanto duas laudas. Claaaro que pode ser duas e meia. Espero que te guste. Para que eu não enlouqueça muito, gostaria que você me entregasse lá pelo dia 22 (próxima quinta, após o feriado de quarta). Ou então 26, que é a segunda seguinte.

    Esqueci de te falar ontem que vi o Bastidores, tava lá em Campinas, chez Hilda Hilst. Gostamos mucho. Guria, como tu é segura, chê! Parece que nunca fez outra coisa na vida a não ser dar entrevistas na tevê. Maravilha.

    Uma novidade boa: meus Morangos mofados tão saindo mês que vem (o das noivas, maio). Aguarde breve convite para ti-ti-ti de lançamento. Ia te mandar o livro hoje de manhã, mas acabei não vindo trabalhar. Ontem à noite fui ver A mulher do lado, de Truffaut, dei umas boas choradas (é liiiindo e amaaaaargo), saí meio down e acabei tomando uns vinhos talvez além da conta.

    Sinto saudade docê, todos os dias. Vai um cheirinho de alecrim e muito carinho. Seu,

    Caio, o Fernando Abreu


    8 Os apelidos Levinha e Levísisma vêm dos 42 quilos que Maria Adelaide pesava quando Caio a conheceu. Nas palavras de Maria Adelaide, ele era muito magro, mas um dia a pegou ao colo e descobriu que ela não era magra, era levíssima.

    9 De novembro de 1981 a junho de 1982, Caio foi editor do periódico literário Leia Livros, de São Paulo. Aqui ele encomenda a Maria Adelaide uma resenha sobre Inferno, do dramaturgo sueco Strindberg.

    A Sonia Coutinho

    Sampa 17, digo 18.05.82

    Sonia,

    Que grande alegria, que grande prazer reencontrar o seu texto, ontem à noite, na antologia da Márcia Denser¹⁰. Adorei o Hipólito¹¹. Acho que já disse isso a você — se já disse, não custa repetir, se não disse, lá vai: tenho uma estranha empatia com o seu texto. Leio como se eu mesmo tivesse escrito (num momento de inspiração muito grande, claro) ou, no mínimo, com vontade de ter escrito o seu texto. (Quanto texto nesse parágrafo...) Mas é isso. Aí embalei numa de Sonia Coutinho e reli algumas das histórias de Os venenos de Lucrécia¹². Ô, Sônia, quero um livro novo seu tipo já. E direto nas veias.

    Sem saber de você, faz tempo. Eu tô aqui segurando esta barra do Leia desde outubro passado. Já fiz seis números (te mando o último, que acho que é o mais bonito que já fiz). É uma barrinha fazer. Patrão pão-duríssimo, na redação sou praticamente só eu — o que tem o lado gostoso, do trabalho artesanal, quase de recortar figurinha, mas tem também o lado do massacre mesmo. Tem dias que piro com coisa demais para fazer, dá vontade de ser três ou quatro ao mesmo tempo. Vou levando da melhor maneira possível (não fosse Oxalá e Oxum não sei o que seria...).

    Me disseram ontem aqui que meu livro fica pronto HOJE (já fumei três maços). Esse livro foi uma novela de Janete Clair. Ficou DOIS anos na Nova Fronteira com contrato assinado e promessas de sair, sempre, o mês que vem. Até que me baixou o terceiro santo (Ogum), pedi que rasgassem o contrato, devolvessem os originais e — enfim — tá saindo aqui pela Brasiliense. Chama-se Morangos mofados. Eu já achei genial, já achei medonho, já achei insípido, já achei violento: agora estou em plena síndrome de pré-lançamento, não sei mais o que sinto. Mando um procê assim que sair.

    O mais são algumas quadraturas emocionais, mas tudo bem. Abandonei a psicanálise, ou melhor: troquei pela dança. Há dois anos que bailo, bailo, bailo. Moro sozinho com Zelda Fitzgerald, minha gata (adora gim), e às vezes sinto muita saudade de você. Me dá notícias qualquer hora, de repente. Te gosto sempre.

    Muito carinho. Um beijo do

    Caio Fernando Abreu


    10 Muito prazer, coletânea de contos eróticos femininos, organizada por Márcia Denser, primeira edição em

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