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Para sempre teu, Caio F.: Cartas, conversas, memórias de Caio Fernando Adreu
Para sempre teu, Caio F.: Cartas, conversas, memórias de Caio Fernando Adreu
Para sempre teu, Caio F.: Cartas, conversas, memórias de Caio Fernando Adreu
E-book717 páginas10 horas

Para sempre teu, Caio F.: Cartas, conversas, memórias de Caio Fernando Adreu

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Sobre este e-book

Caio Fernando Abreu foi uma das mais importantes figuras da literatura brasileira contemporânea. Jornalista polêmico, intenso, sarcástico e genial em seus escritos, foi grande amigo de Paula Dip, com quem conviveu durante 20 anos e a quem dedicou um conto no seu clássico Morangos mofados. A autora reúne cartas, bilhetes e particularidades que dividiu com o escritor, além de depoimentos de pessoas importantes na vida de Caio, como Cazuza, Ney Matogrosso, entre outros. O resultado é um emocionante relato de quem acompanhou de perto o mundo do "Escritor da Paixão" (como o definiu Lygia Fagundes Telles) até sua morte precoce, aos 47 anos, vítima de aids.
IdiomaPortuguês
EditoraRecord
Data de lançamento21 de mar. de 2014
ISBN9788501098405
Para sempre teu, Caio F.: Cartas, conversas, memórias de Caio Fernando Adreu

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    Para sempre teu, Caio F. - Paula Dip

    Paula Dip

    Para sempre teu,

    Caio F.

    CARTAS, CONVERSAS, MEMÓRIAS

    DE CAIO FERNANDO ABREU

    3ª EDIÇÃO

    2014

    CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE.

    SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    Dip, Paula

    D627p

    Para sempre teu, Caio F. – cartas, memórias, conversas de Caio Fernando Abreu/Paula Dip. - 3ª ed. - Rio de Janeiro: Record, 2014.

    recurso digital

    Formato: ePub

    Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions

    Modo de acesso: World Wide Web

    ISBN 978-85-01-09840-5

    1. Dip, Paula - Correspondência. 2. Abreu, Caio Fernando, 1948-1996 - Correspondência. I. Título.

    09-0078

    CDD: 869.96

    CDU: 821.134.3(81)-6

    Copyright © Paula Dip, 2009

    PROJETO GRÁFICO E COMPOSIÇÃO DE MIOLO DA VERSÃO IMPRESSA:

    inc.design editorial

    FOTO DE CAPA:

    Claudio Etges

    Texto revisado segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

    Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.

    Direitos desta edição adquiridos pela

    EDITORA RECORD LTDA.

    Rua Argentina 171 - 20921-380 - Rio de Janeiro, RJ - Tel.: 2585-2000

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    [email protected] ou (21) 2585-2002

    Produzido no Brasil

    2014

    À Laura, com amor

    Tenho pena das pessoas que não escrevem cartas.

    ELIZABETH BISHOP

    A gente não deve permitir que as cartas se tornem obsoletas, mesmo que, talvez, já tenham se tornado.

    CAIO FERNANDO ABREU

    INTRODUÇÃO

    PREFÁCIO

    PRÓLOGO

    1. VÉSPERA DOS ANOS 80

    2. PELA PASSAGEM DE UMA GRANDE DOR

    3. FLASHBACK

    4. ON THE ROAD

    5. OS ANOS AROUND

    6. CAIO QUER SER UM MAGO

    7. LONDON, LONDON: SILENT PAIN AND HAPPINESS

    8. SER OU NÃO SER, EIS A QUESTÃO

    9. TODA BENEDITA TEM SEU DIA DE LADY DI

    10. SEM TEMPO PARA MORRER

    11. DE VOLTA AO MENINO DEUS

    BIBLIOGRAFIA

    DEPOIMENTOS, REFERÊNCIAS, CRÉDITOS, CARTAS E FOTOS

    ÍNDICE ONOMÁSTICO

    INTRODUÇÃO

    Para sempre teu

    Para sempre teu: era assim que Caio Fernando Abreu assinava certas cartas e foi a partir do nosso trato de publicá-las que nasceu este livro. Hoje, ninguém mais escreve cartas, escreve? E nossa correspondência é tão saborosa que imaginei ser o bastante para contar esta história. Mas Caio era maior que as epístolas, um autor que vivia seus amigos, desenhava-os em seus textos, transformava-se neles; inventava-nos em personagens, anjos ou demônios, e em suas mãos transcendíamos uma existência banal em imagens incandescentes ou sombrias, como num filme. Ele tinha esse dom.

    Durante os vinte anos que durou nossa amizade, eu o vi publicar, ganhar prêmios, viajar, ir ao cinema, amar, sofrer por amor, chorar de alegria e rir da tristeza, ouvir música, tomar chá, fazer piadas e ironias; trabalhar como ator, escritor, astrólogo, jornalista, roteirista, dramaturgo. E sempre esteve claro para nós, que o amávamos tanto, que escrever era a sua vida. A morte dele, em 1996, nos deixou tão sós, que, no meu caso, foram precisos dez anos para que pudesse reler as cartas que trocamos e decidir que deviam ser compartilhadas com leitores cada vez mais jovens e ávidos de suas palavras. Era isto mesmo que o Caio queria: deixar um testamento do seu tempo como um apóstolo do novo mundo cujo amor à escrita foi uma chama que iluminou nossa geração.

    Éramos jovens nos anos 80: barra difícil de segurar, como se dizia então. Além daquelas ombreiras horríveis, convivemos com a ditadura militar que demorou a se recolher à caserna de onde nunca deveria ter saído. Mas como nem tudo é só enchimento de ombro e escuridão, tivemos o privilégio de experimentar, em primeira mão, o alvorecer da revolução global que se deu em meados do século XX.

    Com esses olhos que a terra há de comer, como diria Caio, vimos o desabrochar do Flower Power, o advento do computador, a chegada do homem à Lua e os primeiros sinais do aquecimento global. Ele mergulhou em todas as ondas, foi fundo nas águas lisérgicas do movimento hippie e se jogou na noite preta do punk, apavorado viajante, como disse certa vez. Conferiu tudo a que tinha direito e morreu jovem, vítima da Aids, como se morria de tuberculose no século XIX, e virou um escritor emblemático do nosso fin de siècle.

    "Parole, parole, parole, martelava aquela canção de Dalida que ele adorava: e as dele brotavam tão generosas que mal nos dávamos conta de que, bem diante do nosso nariz, nascia um escritor. Às vezes sacávamos que podia ser relevante aquela mania que ele tinha de registrar a vida e prometíamos preservar seus escritos e um dia revelar ao mundo suas memórias. Mas não é por rigor histórico que cumpro a promessa, é por amor, para mais tarde — e acho que mais tarde é agora —, sentada numa cadeira de balanço, correndo os dedos por um colar de pérolas amareladas, eu pudesse brincar de pescar memórias no meu baú de prata: Ah, aquela tarde... ah, aquele moço, ah, aquele beijo no convés", como ele me sugeriu certa vez, numa carta.

    Joguei anzóis e reencontrei pessoas cujas lembranças, fotos, cartas, conversas, revelaram um novo Caio a cada encontro. Pescando memórias, visitei Porto Alegre e fui presenteada com recuerdos do filho, irmão, cunhado e tio que ele foi. Cláudia, irmã mais moça, que ele chamava de brava Cláudia, pela sabedoria com que abraça a vida, me abriu a casa e o coração. Sem a generosidade dela e de sua família, este livro não teria nascido. Num movimento inverso, fui procurada por estudantes e pesquisadores que não conheceram Caio, mas se debruçaram sobre seus textos em trabalhos de conclusão de curso e pós-graduação. Quando este livro entrou no prelo havia cerca de 40 teses sobre a obra dele em universidades brasileiras e estrangeiras; e outras tantas estão por vir.

    É importante dizer que este livro não é uma biografia, Caio não cabia numa vida, mas sim uma tentativa de registrar nossa amizade, em velhas cartas e textos que não descansam nas estantes e que, a cada releitura, ficam mais atuais. Neles, Caio vive, jovem e eterno, como sempre sonhou.

    Amigo, aqui está o nosso livro. Peço licença para dedicá-lo à memória do meu pai, que me deu asas, à minha mãe, que me deu a liberdade do espírito, e ao Luiz, que me ensinou a voar. Mas nada disso teria sido suficiente sem a presença de nossa filha Laura, que iluminou meus dias durante a aventura que foi escrever este livro.

    PREFÁCIO

    Caio F. forever

    Era agosto de 1979. Ainda usávamos batas indianas e fumávamos muito. Trabalhávamos na Editora Abril, no tempo em que a maior parte das redações ficava em três edifícios contíguos, na horrenda (e saudosa) rua do Curtume, na Lapa de Baixo. Eu trabalhava na Divisão Cultural, na descontraída e ruidosa redação de Todos os jogos (na época todas eram mais ou menos assim), quando o Caio entrou com Celsinho Curi e veio na minha direção. Ele era magro, longo, triste e intenso, como uma figura de Modigliani.

    Adelaide, Caio, Caio, Adelaide. Estão apresentados — decretou o Celso.

    Mais do que apresentados, aquele encontro era o início de uma grande amizade. Caio me pegou ao colo e eu era tão magra que ele, embora magro, podia me levantar do chão.

    — Como você é levinha! — ele disse, selando o modo como a partir de então se dirigiria a mim. No ano anterior tinha feito minha estreia no teatro. Ele já era um escritor conhecido e consumado. Trocamos impressões e figurinhas. De quem você gosta? De quem você não gosta? Quem é fundamental? O que você acha de...?

    Tantas perguntas, tão rápidas respostas, tão formidáveis coincidências. Mas não existem coincidências (Caio foi uma das primeiras pessoas de quem ouvi essa frase). Porém existem afinidades eletivas. E dessas tínhamos de montão. Virginia Woolf, Katherine Mansfield, John Fante, Adélia Prado, Clarice, Lygia, Pessoa, Bandeira e Drummond. Gossipers, adorávamos biografias e diários para depois conversar sobre a luz e a sombra das pessoas como duas comadres. Lembro-me de quando interrompeu o Diário de Virginia Woolf, ao se deparar com a quase satisfação de Mrs. Woolf ao ser informada da morte da Katherine Mansfield.

    — Fechei o livro e nunca mais. Ela era uma naja, Levinha — disse ele indignado.

    E Mlle. de Beauvoir tinha nos enganado a todos, aquela disfarçada Amélia, comendo o fígado com as aventuras amorosas de Sartre, enquanto pregava feminismos radicais. Mas também como é que uma capricorniana pode segurar um geminiano? Signo duplo, sabe lidar às maravilhas com a ambiguidade. Caio falava sobre astrologia com o conhecimento de um astrólogo profissional. Sabia o signo, o ascendente, o domicílio da Lua e do Sol, de Marte e Mercúrio, as conjunções, as oposições, as quadraturas e os trígonos dos seus amigos e dos escritores que admirava. Foi ele que disse, naquele agosto de 1979, ao analisar meu mapa, que eu seria famosa. E com aquele Urano bem aspectado em Gêmeos fatalmente iria escrever para a televisão. Na época, isso não me passava pela cabeça. Queria continuar escrevendo peças de teatro. Caio, porém, não tinha preconceitos. Gostava de assistir às telenovelas, especialmente as de Gilberto Braga.

    — Você viu aquela cena em que a Tônia rasga o livro ao meio para ver o que o Reginaldo Farias? — comentava, fazendo piada, sobre Água viva, na qual Isabela Garcia interpretava uma menina que vivia fazendo perguntas chatas, e que o Caio adorava imitar: — Tia Stela, o que é sexo oral, hein?

    Saudades do Caio, muitas saudades, dos cafés, dos papos, dos nossos jantares, da crítica sensível que fazia das minhas peças. A que mais o tocou foi De braços abertos, a respeito da qual escreveu longa carta falando dessa coisa perversa que é o desencontro amoroso. Ele tinha chorado muito durante o espetáculo, de compreensão meio estúpida pela perdição humana, pela nossa fragmentação, pelas nossas tentativas frequentemente tão inábeis, mas também tão sinceras de acertar, de fazer as coisas do melhor jeito... O que acontece comigo é que eu tinha andado de braços fechados. Sem perceber.

    Mas quando ele abria os braços não havia o que realmente abraçar. Nunca consegui, diz Caio F. numa carta a Sérgio K. Apenas uns vislumbres, visões de esplendor. Me pergunto se até a morte — será? Será amor essa carência e essa procura de amor, nunca encontrar a coisa?

    "Hay cuerpos que no deben repetirse en la aurora", ele repetia, citando Lorca, sobre relações eventuais. Não era o que ele queria. Mas no terreno amoroso não teve muito mais. Daquele agosto de 1979 e ao longo dos anos que se seguiram, acompanhei cada esperança que se fazia e se desfazia, e cada epifania — a revelação enfim do afeto esperado que, porém, se esfumava. Da sua dor e desaponto resultaram belas crônicas e grandes contos e romances.

    É tão grandiosa e universal a sua obra que ela sobreviverá ao longo dos séculos, amém. Uma das coisas que o Caio costumava dizer era que sua notoriedade seria muito maior depois de morto. De fato, nunca se publicou tanto sobre sua vida e obra. Peças de teatro montadas, poemas, textos de sua juventude recuperados, sua caudalosa correspondência publicada ratificam a sua permanência e importância.

    Como este livro, que lança sobre sua biografia um olhar privilegiado. O olhar afetuoso e competente de Paula Dip, que conviveu com ele e conheceu seu mundo e seus amigos muito de perto.

    MARIA ADELAIDE AMARAL

    MARCOS SANTILLI

    Queria tanto que alguém me amasse por alguma coisa que escrevi.

    CAIO FERNANDO ABREU

    PRÓLOGO

    Estou numa locadora de vídeo. O garoto lê meu nome na tela: Paula Dip? Levanta os olhos, entre incrédulo e extasiado: Paula Dip? Aquela do Caio Fernando Abreu? Distraída, digo: Sim, eu mesma, você conheceu o Caio? Pergunto sem me dar conta de que ele não tem idade para isso. O menino: VOCÊ conheceu o Caio, ao vivo e em cores, e nem imagina como te invejo por isso.

    Ah, legal, eu digo, entre apressada e desatenta, e vou saindo com o filme debaixo do braço. Tudo o que eu quero é ir para casa, ver o filme, e, alívio, o domingo terminou. Mas não, ele sai atrás de mim e me conta que está escrevendo uma peça de teatro, inspirada nas personagens femininas de Caio, e me olha embevecido, como se eu fosse uma delas, e talvez eu seja mesmo.

    É claro que o fato de ter sido amiga do Caio me transforma numa pessoa especial. Ele dedicou um conto a você, um privilégio, insiste Rodolfo, olhos brilhantes, cabelos cacheados, vinte e poucos anos e não para de falar. Ele está apaixonado por Caio, pela ideia do Caio, pelo texto dele. Sua devoção é tocante. Preciso ir. Prometo que vamos nos ver outro dia, me liga, a gente marca uma conversa.

    Entro em casa: a mesma sala onde tantas vezes conversamos, rimos, fumamos, bebemos conhaque, dançamos, lírios brancos nos vasos, pés descalços. No ar, uma velha canção de Rita Lee.

    Passei muito tempo fugindo da saudade que sentia do Caio, amigo impossível de se perder, e de repente aquela pontada no coração. Esqueço o vídeo sobre a mesa, abro meu baú de prata sob a luz do luar, releio as cartas que trocamos. E decido escrever a nossa história.

    1. VÉSPERA DOS ANOS 80

    Escrevendo, eu falo pra caralho, não é?

    CAIO FERNANDO ABREU

    Parece que foi ontem: ele era alto, magro, pernas longas, pés descalços e caminhava pelos corredores da Editora Abril, num ritmo quase baiano, não fosse gaúcho. Jeans, camiseta, óculos redondinhos, lembrava John Lennon. Fumava sem parar, roía as unhas e passava a mão nos cabelos semilongos, um misto de príncipe Valente com cantor de rock. Tinha voz grave e lânguida, articulava as palavras, saboreando-as lentamente. Sua risada era solta e cheia de notas agudas, resquício dos tempos em que tinha voz fina e muita vergonha de falar. Diz a lenda que Caio demorou a engrossar a voz, bem mais tarde que os meninos de sua idade, a maior saia justa. Mas no auge dos 30 anos, quando nos encontramos, ele já havia superado isso.

    Éramos jovens jornalistas ganhando a vida nas redações. A Abril parecia repartição pública: ficava num velho armazém da rua do Curtume, bairro fabril da Lapa de Baixo, zona oeste de São Paulo. Carpete barato, desbotado, o teto escuro; tudo em tons de preto, cinza e verde, tipo camuflagem de guerrilha, algo entre Cuba e Vietnã. Lá fora o céu paulistano, sempre gris, por entre frestas de persianas amassadas e meio capengas, penduradas nas janelas duras de poluição. Atrás, na rua dos Trilhos, ainda passava o trem, como num velho faroeste de Nicholas Ray.

    Vizinhos: ele redator da Pop — a primeira revista jovem de que se tem notícia — e eu recém-contratada pela Nova — a revista da mulher moderna. Eu era tecnicamente foca (principiante, em gíria jornalística): só havia trabalhado antes na divisão de fascículos, também da Editora Abril. Caio tinha muitos anos de estrada: integrou a primeira equipe de jornalistas da revista Veja, tinha livros publicados e premiados, havia morado na Europa. Ainda não assinava Caio F. e escrevia os contos de Morangos mofados.

    As redações não eram informatizadas. Batucávamos nossos suados caracteres em máquinas Olivetti tão velhinhas que viviam dando alteração e eram retiradas pelo pessoal da manutenção. Algumas desapareciam para sempre. Máquina boa era artigo de luxo: quem encontrava uma máquina mais ou menos razoável na redação personalizava o visual da dita-cuja com talho de canivete, rabisco, durex colorido e ameaçava de morte os vizinhos de redação: Essa é minha, ninguém tasca!, dizíamos. Velhos e bons tempos: nada de enigmáticas telas azuis de cristal líquido, nem mouses ópticos, ou teclados ergonômicos. Uma incessante artilharia de máquinas de escrever de tipos metálicos ricocheteava em nossos tímpanos até o anoitecer. Em compensação, havia o romantismo do papel: escrevíamos em laudas, que vinham da gráfica embaladas em resmas e eram feitas de um papel barato, macio e amarelado, divididas em colunas verticais, com o número de toques impresso na primeira linha horizontal. Estampado no cabeçalho, o inconfundível logo da Abril — uma arvorezinha azul. Muitas daquelas laudas foram vítimas de um gesto dramático, hoje obsoleto, de serem arrancadas furiosamente dos cilindros de borracha da máquina, amassadas com raiva, jogadas na lixeira e nervosamente substituídas por outras, sugadas pelo rolo compressor, para que a nova ideia não se perdesse. Tais rompantes, hoje inverossímeis, eram sinais de furor criativo. Ou de total falta de inspiração.

    Trabalhávamos em revistas mensais. Havia uma pausa entre uma edição e outra, para elucubrações com os diretores de redação. Ao fim das reuniões de pauta, sobrava um tempo para sair mais cedo e ir ao dentista, pegar um cinema, namorar ou, na falta de algo melhor, ficar enfurnado nas redações e arranjar o que fazer.

    Era nessas ocasiões, entre um fechamento e outro, que fazíamos pequenas excursões ao café, nome dado a uns cubículos meio sujinhos, estrategicamente criados em cantos roubados entre as redações, onde ficavam garrafas térmicas, nem sempre cheias de um café pífio. Maquininhas de café expresso com opções elegantes tipo moka cappuccino, nem pensar.

    Fazer cooper, uma alusão ao médico norte-americano que descobriu que o gasto de energia através da corrida podia ser benéfico à saúde, era uma novidade que ninguém praticava, não se falava em aeróbica, musculação, ioga, pilates. A gente estava com tudo em cima, bicho, e o barato era caminhar devagar. A calma era saudável e necessária à cabeça e ao coração. E os tours ao café eram apenas mais um pretexto para a gente jogar conversa fora e esticar as pernas enquanto os dias se arrastavam, infinitos.

    Vivíamos a véspera dos anos 80, aqueles que Cazuza chamaria de exagerados.

    Em dias de algazarra, quando o trabalho estava manso — ou enlouquecido —, as laudas viravam planadores e nossos melhores origamis eram feitos de bilhetinhos para recados urgentes, rodados num papel branco fosco de melhor qualidade e bem menores que as laudas, com a arvorezinha e uma tarja azul em toda a borda. Eles eram a matéria-prima perfeita para pequenos foguetes aerodinâmicos que voavam por sobre as baias das redações e serviam de veículo para recados, cantadas, textos, poemas. Torpedos.

    Foi justamente um desses torpedos que, certo dia, caiu na mesa de uma jornalista da redação vizinha. Alguém do outro lado da baia gritou:

    — Tem recado para a Paula Dip.

    Era meu aniversário. Organizei uma festa de arromba — de acordo, é claro, com os padrões alternativos da época. Enviei convites, avisei pessoas, e o Caio, justo ele, foi ficando para trás. Sempre fui meio distraída com essa coisa de juntar pessoas para fazer uma celebração; não era a primeira e nem a última vez que eu esquecia de convidar alguém. Mas neste caso não foi esquecimento e sim uma espécie de cautela. Adiei o convite ao Caio porque ele me intimidava. E eu não era a única: Carlos Alberto Fernandes, o Caloca, diretor da revista Pop, também se sentia assim.

    REPRODUÇÃO

    Ele relembra suas primeiras impressões:

    Eu não percebi direito quando foi que o Caio começou a fazer parte da redação da Pop, uma revista para jovens que eu dirigia com prazer, na alegria dos meus quarenta anos, depois de ter dirigido, com igual alegria, uma revista para senhoras pouco menos jovens. Era um descanso, uma verdadeira festa lidar com aquela juventude cuja criatividade era preciso controlar com rédea curta. Quando vi, o Caio estava sentado perto da janela, cabelos ralos, quase pretos, longos e escorridos, olhos indianos gigantescos, úmidos e de pupilas boiando e que olhavam com tristeza os telhados trágicos da rua do Curtume, na Lapa de Baixo, um bairro industrial da cidade de São Paulo. Quando me viu abriu um sorriso muito amplo na mesma dimensão da sua tristeza.

    Valdir Zwetsch, o talentoso redator-chefe, nos apresentou, explicando que havia escolhido o Caio para a vaga não sei de quem, que era a pessoa ideal, pois era escritor e seria muito útil para a seção de contos que estávamos introduzindo na revista. A voz do Caio era impressionante: profunda, aveludada, o primeiro termo que me veio à cabeça foi voz cavernosa, que assim só não era porque não se tratava de um indivíduo aterrorizante. Era até divertido. Sarcasmo sim, sua voz tinha de sobra. Tenho a impressão de que fiquei meio intimidado com a presença dele. Tenho a impressão nada. Senti-me intimidado mesmo. Ele olhava a gente de cima a baixo, varava-nos com a profundidade do seu dito olhar indiano. Aquele olhar perturbava. Era gaúcho, como gaúcho era o redator-chefe. As redações sempre foram ilhas de migrantes intelectuais: mineiro chama mineiro, gaúcho chama gaúcho, paraibano chama paraibano, e lá vão eles formando os seus guetos, achando as suas graças, formando as suas casas. E assim, lá deixei os gaúchos que se entendessem, contanto que a revista corresse bem. Babado forrrrrrte, dizia ele, puxando um erre carioca, todas as vezes que se referia a um acontecimento importante, observado ou vivido pessoalmente. E olhava com seu sorriso triste escorrendo de malícia. Muito forrrrte. Podia ser uma reunião de pauta em que alguém olhava para alguém, uma festa em que alguém havia dado para alguém... Tudo poderia ser forrrrte. O importante era o olhar e o sorriso maliciosos.

    ACERVO PESSOAL / BOB WOLFENSON

    Paula Dip na revista Nova.

    Valdir Zwetsch, à direita, na redação da Pop, em foto de Bob Wolfenson.

    Convivi pouco com ele. Ficava no seu canto gauchesco e eu não estava nem um pouco interessado em saber dos mistérios que suas atitudes escondiam. Num Natal ele foi o meu amigo-secreto e ofereceu-me um livro com a arte erótica de Picasso. Presente forrrrte... A festa foi na minha casa, para toda a redação, e ele ficava assim com seu jeito distante, triste e ligeiramente acima dos outros, observando, à procura de um motivo que pintasse, forte o bastante para os seus comentários no dia seguinte.

    Um dia a Pop acabou, a redação se desfez como se desfaz uma adolescência. Os meninos viraram homens de outras redações, alguns foram para a televisão, outros para revistas importantes, e o Caio nem me lembro onde foi parar. Sumiu da minha vida. Reapareceu com o lançamento dos Morangos mofados, o primeiro livro que me lembro de ter visto dele. Não li. Mas creio que deverá contar alguns bons momentos fortes.

    De todos os rapazes que eu conhecera até então, Caio era o primeiro que eu não conseguia decifrar. Ao contrário do Caloca, eu estava interessada em seus mistérios. Afinal, qual era a dele? Cínico, louco, tímido, meigo, Caio tinha um jeito meio David Bowie de ser, e nada ficava muito claro: ele gostava de meninos ou meninas? Queria ser meu bem, meu zen, meu mal, ou nenhuma das anteriores? Levei um tempo para desvendar o enigma daquela figura longilínea de olhos intensos que falava de assuntos seriíssimos com a elegância de um filósofo platônico, e, de repente, soava como uma tia fofoqueira, uma naja venenosa, como ele mesmo dizia, que distribuía apelidos hilários e fazia comentários ferinos sobre tudo e todos.

    E era meio bruxo: fazia horóscopos, interpretava tarôs, tinha pais de santo e orixás, dava conselhos, lia o que escrevíamos, distribuía elogios, ou nem tanto, nos mostrava seus contos, pedia opinião, apontava caminhos. E escrevia sem parar. Acreditava que todo mundo tinha uma estrela, todo mundo devia escrever. Não existia um só fio de egoísmo em Caio quando se tratava da escrita: a literatura era sua religião e ele queria converter todos à sua fé. Valdir Zwetsch, jornalista e escritor gaúcho, redator-chefe da revista Pop, conheceu Caio nos final dos anos 60, em Porto Alegre:

    O Caio teve muita importância na minha vida. Foi ele quem me incentivou a escrever e me encaminhou para a revista Planeta, nos anos 70, onde publiquei minhas primeiras coisas, por intermédio do editor da revista, o Ignácio de Loyola Brandão. Caio, nessa ocasião, estava finalizando seu livro O ovo apunhalado, me mostrava os originais, queria saber o que eu achava, e eu sempre ficava fascinado com a facilidade que ele tinha de se expressar por meio da escrita. Ele sempre foi generoso e me estimulou a escrever. Na época ele trabalhava no Zero Hora e parecia feliz em Porto Alegre, mas, verdade seja dita, Caio vivia de olho no mundo, era um cigano, eu o chamava de blue gipsy, sempre com um pé na estrada. Na verdade, logo depois ele caiu no mundo: foi para Londres, para o Rio, para São Paulo.

    Entre 75 e 76 pintou um tal de um boom da literatura, de novos contistas. O Caio era dessa nova geração de escritores, mas já estava um degrau acima de todos nós, já tinha sido premiado e publicado. Ele organizou, em Porto Alegre, uma antologia chamada Teia, no qual lançou textos meus, e logo depois, em São Paulo, organizou outra, chamada À margem, que dava uma força para a jovem literatura marginal.

    Eu também acabei voltando para São Paulo em 74 (onde já havia morado em 69) e um tempo depois virei editor-chefe da Pop, uma revista jovem, a primeira a falar de skate e de surf no Brasil. Chamei o Caio para vir trabalhar comigo e dar um padrão de texto à revista. Ele sempre foi um excelente redator e editor. Neste período, apesar de estar na Pop, ele viajava muito, e me escrevia sempre contando tudo o que rolava na sua vida. Minha casa em São Paulo sempre foi uma referência para amigos gaúchos independentemente da mulher com quem eu estivesse casado. Ele ficou na minha casa muitas vezes e acabou se tornando um grande amigo de todas elas. Ele se dava superbem com as mulheres. Nestes anos todos nunca deixamos de ser amigos e eu sempre o procurava quando ia a Porto Alegre, ou mesmo no Rio, onde ele morou muitas vezes. Sempre fui heterossexual convicto, e Caio criticava meu lado galinha, namorador, mas ele também teve suas paixões por mulheres, como a Magliani, por exemplo, que, aliás, não foi a única mulher da vida dele. Caio estaria muito melhor hoje do que estava nos anos 80, quando as pessoas ainda eram muito travadas. Ele tinha um jeito peculiar de lidar com essas coisas e enfrentou muito preconceito porque exercia uma sexualidade muito adiante do nosso tempo: ele não cabia apenas na definição de homossexual, eu diria que ele era pansexual.

    Anos mais tarde, o editor e amigo Pedro Paulo de Sena Madureira confirmaria essa impressão:

    Caio era um amante do ser humano. Não conhecia limites nem na sua obra, nem na sua vida pessoal. Não era apenas um bissexual ou um homossexual que tinha recaídas heterossexuais. Ele se apaixonava pelas pessoas: se fosse mulher, mulher, se fosse homem, homem. Ele me dizia: Você, que é de Aquário, entende destas coisas, sua cabeça também não tem fronteiras.

    Quando Caio chegou à Pop era um jornalista experiente, um escritor premiado, dono de um texto impecável, e vinha com a tarefa secreta de profissionalizar a irrequieta redação da revista. Logo fez amizade com uma jovem Mônica Figueiredo, que acabava de chegar de Londres, herdeira de uma tradição no mundo das artes e da comunicação: filha do produtor e diretor de shows Abelardo Figueiredo, e de Laurinha, que tivera uma curta mas bem-sucedida passagem pela televisão como entrevistadora no programa feminino de Maria Teresa Gregory, na TV Tupi, que Abelardo dirigia. Caio e Mônica ficaram amigos imediatamente, como ele costumava fazer. Suas amizades eram sempre paixões à primeira vista:

    Eu era garota, havia entrado na faculdade, mas não cursei, viajei para a Europa e, na volta, a convite do Tomás Souto Correa, diretor da Editora Abril, fui trabalhar na revista Pop, dirigida ao público jovem, onde eu podia fazer de tudo um pouco, inventar pautas, entrevistar pessoas, escrever. Desde o primeiro instante, Caio e eu nos tornamos inseparáveis, e se ele estava lá para dar um jeito nas nossas criancices, foi ele que virou criança com a gente. Ele me chamava de my favorite devil (meu demônio favorito) ou demo, e nos divertíamos muito. Trabalhávamos lado a lado e ainda assim ele me escrevia bilhetes e cartas, que deixava sobre a minha máquina quase que diariamente. Ele adorava escrever, contos, histórias, bilhetes, que até hoje guardo; mas não tinha a menor ideia de que ele se tornaria um escritor famoso. Ele me mostrava os contos que escrevia, lia minhas coisas, uma delícia. A gente fazia guerra de Bis e ele jogava aviãozinho de papel na redação da Nova. Logo ele conheceu meus pais, minha irmã Patrícia, virou parte da família, viajava para o sítio, eu nem precisava estar junto, eles o adoravam. Nessa época eu namorava o fotógrafo Luis Crispino, com quem depois me casei. Lembro-me de que uma noite saímos os três juntos, o Caio morava numa vila da rua Melo Alves e estava deprimido por causa de um namoro que não tinha dado certo, ele era o rei da dor de cotovelo. A gente saiu, se divertiu, bebeu, curtiu, e quando fomos deixá-lo em casa, ele fez uma cena, disse que não queria mais viver, parecia ter encarnado um personagem de Shakespeare ou Nelson Rodrigues, sei lá. E nessas horas, os amigos viravam sua plateia. O Luis acreditou total no texto dele, ficou passado, com medo de ir embora e Caio fazer alguma bobagem. Mas eu logo saquei aquele lado escuro que ele mostrava de vez em quando. Fiquei brava, disse que aquilo não tinha a menor graça, que a gente ia embora sim e ele ia ficar muito bem. Ele ouviu minha bronca: eu sabia que ele precisava ir para a máquina de escrever e colocar seus fantasmas no papel.

    Em novembro de 79 eu também acabara de conhecer o Caio, não sabia nada dele, mas já dava para perceber que o cara era uma figura. O bilhetinho que ele me mandou era uma intimação: queria ser meu amigo e, quando queria, ia à luta. Por falar em luta, diz a lenda que, ao contrário do que sua aparência paz e amor e precocemente zen sugeria, Caio era briguento, não tinha papas na língua e encarava uma briga, saía no braço sem hesitação: às vezes fazia o tipo justiceiro, outras vezes era debochado e encrenqueiro. Nada o intimidava: se rolasse um clima, ele mandava ver, era porrada a torto e a direito. O jornalista gaúcho Ênio Squeff, que o conheceu nos tempos da Veja, me contou que o viu entrar em algumas brigas na noite paulistana. Seu pavio curto também era conhecido em Porto Alegre, e, da mesma forma como cultivava amigos, vivia arranjando inimigos fiéis. Caio adorava falar mal dos outros e tinha a língua afiada para criticar este ou aquele, afeto ou desafeto, especialmente se o outro estivesse em posição de autoridade.

    Mas ele era leve de se conviver, seu humor era irresistível, e mesmo quando entrava numa discussão ferrenha e exagerava nas tintas, era perfeitamente capaz de voltar atrás e pedir desculpas sem pestanejar. Comigo, sempre foi impecável. Tivemos uma única rusga no começo da nossa amizade, bobagem que foi esquecida no dia seguinte, quando me enviou duas dúzias de rosas brancas: Paz, ele pedia. Depois, nunca mais a menor discussão.

    Caio escrevia muitos bilhetes.

    Aqui para Valdir e Mônica. (Reprodução)

    Quando, anos mais tarde, li cartas que ele trocou com outros amigos, observei que muitas vezes criticou minhas atitudes, como fazia com todos, pois era esta a sua natureza, crítica e ferina, mas sua alma era grande: sabia aceitar as diferenças e de certa forma vivia delas, pois criava em suas histórias seres contraditórios, divididos, um pouco como todos nós, perdidos na selva da cidade. Ele tratava com carinho suas personagens, fossem elas malditas ou angelicais, fictícias ou reais. E sabia ser um bom amigo: suas esquisitices nunca fizeram a menor diferença em relação ao afeto que cultivava por cada um de nós.

    Cartão que Caio me enviou, com flores, depois de uma briga.

    Trocávamos figurinhas e favores: quando ele precisava de trabalho eu sempre dava um jeito de chamá-lo para trabalhar comigo, onde quer que fosse, e vice-versa. Em 83, por exemplo, convidei-o para fazer parte da equipe da revista Around, que eu editava com Antonio Bivar, e ele se encantou com Joyce Pascowitch, que dirigia a revista, mas adorava reclamar da patroa, como a chamava. Achava que ganhava pouco e trabalhava demais. Mas quem não acha? Na TV Cultura eu sugeri o nome dele para fazer a apresentação de um programa chamado Leitura livre, em que falava de seu tema favorito: literatura. Em 86, quando eu vivia em Londres e ele editava uma página no Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo, me chamou para fazer uma coluna internacional, a Carta de Londres, que enviava de lá a cada quinzena. Foi uma bênção; eu acabara de perder meu pai, estava precisando escrever, e isso ele sempre sacava. Em 91, foi de novo minha vez de ajudar: ele veio trabalhar comigo na Qualis, uma revista de música que eu dirigia, e então eu virei a patroa, e portanto, a inimiga. Ele confidenciaria a alguns amigos que havia dias em que não suportava ouvir o som da minha VOZ, assim, mesmo, com letras maiúsculas. Esse era o Caio.

    O jornalista Okky de Souza, que também conheceu Caio na redação da revista Pop, lembra:

    Não sei muito bem o que o Caio fazia na revista Pop em 1979. A revista já estava sendo dirigida pelo Caloca Fernandes. Acho que no começo ele era colaborador, depois virou redator. Era amigo do Valdir e se sentava num canto, perto das divisórias de fórmica, com o Celso Curi. De vez em quando, eles faziam guerras de Bis e papel amassado com as jornalistas da Nova. Ele era uma figura marcante e misteriosa, alguns até diziam que ele era meio maldito, mas, na verdade, era apenas um garoto, como todos nós.

    Às vezes saíamos juntos para almoçar, e eu me lembro perfeitamente de que ele odiava cebolas e não podia ver nem sentir o cheiro delas. O menor vestígio de cebola num prato de comida era o suficiente para ele afastar o prato e deixar de comer. Uma vez ele me confidenciou a razão dessa cisma: o pai dele — um militar gaúcho que ele achava muito rígido — comia cebola crua durante as refeições. Eu nunca consegui esquecer aquilo. Chegamos a ficar amigos, lembro-me de que numa ocasião eu e Denise fomos viajar e emprestamos nossa casa para o Caio, ele vivia com problemas de moradia. Imaginamos que seria tranquilo, afinal não é difícil regar as plantas, pagar as contas de luz e água e deixar a casa em ordem na saída. Quando voltamos a casa estava uma zona, contas vencidas, a maior bagunça.

    Um dia nós brigamos feio: depois do fechamento da Pop eu fui trabalhar na revista Veja. Uma noite nos encontramos no Off, um misto de bar e clube noturno que o Celsinho [Curi] inaugurou no Itaim e que fazia muito sucesso, acho que foi o primeiro bar gay cult da cidade. Caio veio tirar satisfações comigo de dedo em riste gritando em alto e bom som, no meio da pista, que eu era um vendido, que escrever na Veja era uma roubada e sei lá mais o quê. Ele tinha bode da Veja e execrava quem trabalhava lá, mas eu não esperava aquele gesto agressivo dele e nunca mais fizemos as pazes.

    Na verdade, acho que o Caio tinha uma espécie de complexo de inferioridade, ele parecia não acreditar no próprio talento e sempre se autossabotou. Parece que até hoje vejo aqueles olhos de estilete e aquele sorriso pontiagudo de quatrocentos dentes a murmurar frases hereges a mando da sofreguidão de delinquir. Frases cheias de magia, astrologia e outras manifestações inferiores e ingênuas da fé. Que romantismo duro e torturado! É Cyrano de Bergerac — o livro, não o filme, bien sûr — em versão GLS. Mas concordo que, exceto Augusto dos Anjos, nenhum escritor da língua portuguesa construiu espirais descendentes tão rápidas e devastadoras rumo aos estados mais depressivos da consciência. Até Clarice sempre, mas sempre mesmo, embutia mensagens de esperança em suas pedradas na condição humana. Se o Caio tivesse sobrevivido aos excessos dos anos 70 e 80 e chegasse à maturidade, que hoje tanto prezamos, provavelmente teria amainado sua fúria contra o establishment, descobriria o prazer das cebolas à mesa e cultivaria a esperança como sua mestra. Continuaria brilhante como escritor? Talvez. São hipóteses.

    Okky e sua mulher, Denise, irmã do roqueiro carioca Julio Barroso, estavam entre os convidados da minha festa de aniversário. Pouco tempo depois eles inventariam a divertida Gang 90 e as Absurdettes, grupo de rock que, como se dizia, abalou Paris com o hit Perdidos na selva, que ganhou um festival de música da TV Globo.

    Eu e minha gata, rolando na selva, rolava de tudo, num covil de piratas pirados, perdidos na selva... — um refrão inesquecível.

    A Gang, comandada pelo inspirado Julio, um dos cérebros de toda aquela história, tinha três musas: a paulistana Mae East, a holandesa Alice Pink Punk e a inimitável Lonita Renaux, nome artístico da carioquíssima Denise Barroso, de saudosa memória. Todos adoravam Denise, inclusive o Caio, que era simplesmente apaixonado por aquele jeito radical e ao mesmo tempo frágil dela. Denise era única: fumava muito e segurava o cigarro como uma estrela de cinema, de forma feminina e delicada, como se fosse cair de entre seus dedos. Lânguida, lembrava Marlene Dietrich, tinha olhos grandes, expressivos e risonhos.

    Lembro-me perfeitamente da última vez em que a encontrei, sempre rouca e divertida, no cafezinho da ponte aérea do velho Santos Dumont. Acho que foi em 1990. Depois de uma varredura visual pelo saguão, detectamos, já às gargalhadas, que a viagem ia ser monótona, uma vez que éramos as únicas celebridades do voo. Bastou dizer isso e adentrou o aeroporto uma triunfante Yoná Magalhães, em tons de rosa-shocking dos pés à cabeça. Chapéu, echarpe, sandálias altíssimas, batom, tudo rosa. Um vinho rosé, como diria o Antonio Bivar. Não dá dois segundos, passa Antonio Fagundes, ágil, com um livro na mão. Vem dar um beijo rápido, tudo bem, Paulinha?. Ainda estamos mudas de espanto quando do outro lado da sala de espera surge José Mayer todo em negro, galã da novela das oito, no auge. Divergimos: Denise quer viajar no colo do José Mayer e eu tento dissuadi-la. Finalmente ela desiste, e vamos nos sentar no fundo do avião. Era um daqueles Electras com uma salinha na cauda, lembra? Acomodadas, olhamos para o lado e, acredite se quiser, lá estava Pelé, impassível, com aquele enorme sorriso branco, de terno e gravata. Ele havia entrado no avião antes de todo mundo, com segurança e tudo. Foi a ponte aérea mais estrelada de todos os tempos. Uma despedida em grande estilo. Denise morreu logo depois.

    LUIS CRISPINO

    Capa do disco Essa tal de Gang 90 e as Absurdettes, com Julio Barroso, de branco, e Denise, ao fundo, com o guitarrista Herman Torres.

    Pelé seria protagonista de outra passagem hilária, da qual Caio participou, relatada por Mônica Figueiredo. No ano em que eles se conheceram, o pai dela, Abelardo, ofereceu um almoço para celebrar o aniversário da filha, no sítio que a família alugava em Águas de Lindoia. Todo o pessoal da redação da revista Pop foi convidado, inclusive amigos e agregados; Caio, José Márcio Penido, Ezequiel Neves (que escrevia na Pop sob o codinome Ângela Dust), Okky de Souza, entre outros. Eles chegaram no sábado, e no domingo, churrasco rolando, caipirinhas circulando, todo mundo em volta da piscina, de repente surge sem avisar um convidado de última hora: o rei Pelé, em pessoa. Amigo de Abelardo de longa data, ele estava ali por perto e decidiu fazer uma surpresa. Era o que faltava para a festa virar um escândalo, como conta a aniversariante:

    A partir daquele momento a festa mudou, nem parecia mais meu aniversário. Todos só tinham olhos para o Pelé, que, como todos os outros convidados, botou um calção e foi para a piscina. Mas ele não era um convidado qualquer, certo? Era o Pelé, e de calção... E como meus convidados também não eram muito normais, pode-se imaginar o sucesso e a loucura que foi: todos ficaram fascinados pelas pernas esculturais do maior jogador de todos os tempos. Não se falava em outra coisa e as coxas de Pelé viraram um assunto, o assunto, um verdadeiro frisson. Até que num dado momento os meninos estavam tão impossíveis que meu pai e minha mãe avisaram o atleta que seus convidados tinham uma fantasia: jogá-lo na piscina. Eles acharam que esse seria o único jeito de acalmar a galera. Tudo bem, Pelé topou, deixou-se jogar n’água, sempre o mais simpático de todos. Nunca mais ninguém esqueceu aquela cena. Acabou entrando para a história como a festa das coxas do Pelé, uma das mais divertidas que já tive.

    Caio nunca tinha ido a uma festa assim, cheia de celebridades. Numa carta à mãe, fez alguns comentários, deslumbrado:

    Tenho que lhe contar umas histórias ótimas: semana passada fui à maior festa da minha vida. Tenho uma colega de redação, Mônica, e grande amiga, que é muito rica e filha de um casal muito famoso na sociedade paulista, Abelardo e Laurinha Figueiredo. Bom, eles deram uma festa de aniversário de três dias para a Mônica, na casa de campo em Águas de Lindoia. Piscinas e mil mordomias. Entre os convidados estavam Stela Splendore (viúva do Denner), Rosemary (a cantora), Marina Montini (aquela mulata lindíssima), Wilson Simonal (...) e — adivinhe quem chegou no domingo? — PELÉ. O próprio. Parecia Hollywood. Tiraram uma foto minha com ele, mas a irmã da Mônica me roubou. Foi incrível, mas às vezes um pouco deprimente. Gente rica é muito entediada e ruim da cabeça.

    Em outra ocasião Mônica foi com Denise Barroso e Caio à casa do pintor Gregório Gruber, famoso

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