A sobrancelha é o bigode do olho: Uma autobiografia inventada do Barão de Itararé
De Ivan Jaf e Orlando Pedroso
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Sobre este e-book
Esta biografia inventada do Barão de Itararé — alter ego do jornalista Apparício Torelly — é uma intrincada criação do autor Ivan Jaf, narrada pelo próprio Barão!
Com humor e ironia, Jaf retoma cenas e frases do Barão que se tornaram célebres, fazendo um mosaico ao mesmo tempo literário e histórico dos períodos vividos pelo Barão, que acompanhou um momento importante da história brasileira: a ditadura da Era Vargas.
As ilustrações de Orlando, inspiradas no também cartunista Guevara, recriam o visual do jornal A Manha, liderado pelo Barão nos anos 1926 a 1935.
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A sobrancelha é o bigode do olho - Ivan Jaf
caricatura.
passarinho não canta sem alpiste
EM TODA PARTE, em todos os tempos, para todas as pessoas, só há um jeito de sobreviver: trata-se de ganhar alguns trocados. E é para ganhar alguns trocados que se fazem quase todas as coisas, inclusive escrever autobiografias. A culpa? A culpa é de quem? A culpa é de Deus! Chegamos ao mundo sem nada, nus. Daí surge essa nossa luta contínua, essa combatividade incessante para a manutenção deste protoplasma, que é a base física da vida. E é por isso que eu, sinceramente, eu, artista, matemático, biólogo, político, diplomata, poeta, escritor, um homem sem segredos, cuja vida pública é uma continuação da privada, eu, um grande herói que a pátria chora em vida e há de sorrir, incrédula, quando me souber morto, eu, portanto, um verdadeiro especialista na arte de empinar papagaios, que não tenho apenas o título de Barão, mas muitos outros, todos protestados na praça, eu, que me acabei no trabalho feito sabão de lavadeira, enfim, eu, confesso, passei a vida toda com problemas financeiros.
A chave para a tranquilidade é ter o necessário para pagar e receber o necessário para viver, no entanto eu nunca cheguei ao equilíbrio dessa equação. Em geral não tive o necessário para pagar e nunca me contentei com o necessário para viver. Quando, porém, conseguia o suficiente para pagar, deixava de pagar, porque não achava necessário.
Isso me causou muitos problemas. Vou dar um exemplo. De 1926 até 1935 fui proprietário do jornal A Manha, um semanário que saía às quintas-feiras, mas que só era publicado aos sábados. Havia mesmo quem afirmasse não compreender um quinta-ferino que não fosse publicado às quintas-feiras. Por um dever de lealdade, devo confessar que assim deveria ser. Sucede, porém, que A Manha era um jornal independente e, se fosse obrigado a ser publicado às quintas-feiras, perderia essa independência, que era uma das características inalienáveis de seu programa. Por isso, A Manha não se publicava em dias certos, mas em certos dias.
A incompreensão humana é tremenda e muitas vezes chega às raias da violência. Um dia um grupo de quatro indivíduos suspeitíssimos penetrou no jornal com o preconcebido intuito de cobrar contas violentamente. Não queriam desistir, mesmo sendo prontamente comunicados de que os pagamentos estavam suspensos, por ordem superior. Se tristezas pagassem dívidas eu estaria chorando compulsivamente. Eu mesmo expliquei a eles que A Manha era uma Sociedade Anfíbia de Irresponsabilidade Ilimitada, integralizada por ações entre amigos e constituída por dois poderes harmônicos e independentes: o Poder Marítimo, encarregado de criar e manter uma dívida flutuante, e o Poder Terrestre, cuja função primordial era colocar a empresa a salvo de qualquer naufrágio, proporcionando-lhe ao mesmo tempo uma vida rigorosamente desafogada, envidando, para isso, o máximo de esforço a fim de transformar a dívida flutuante em fundo de reserva.
Eles alegaram não ter entendido nada e eu expliquei melhor. Eu dava o nome de dívida flutuante às contas a pagar que estavam em mãos de cobradores. Volte amanhã
, passe depois
, apareça na segunda
eram as frases clássicas para despachá-los. E tinham sorte. Se estivéssemos em um dos polos da Terra, onde a noite dura seis meses, aí sim passar amanhã
seria protelar demais. Aqui nos trópicos não, era só eles virem e voltarem durante algumas semanas, depois irem espaçando as visitas até que, passados três ou quatro meses, se convenceriam de que aquilo era um caso perdido.
Não foi esse, porém, o caso daqueles quatro. Não arredaram o pé. E olha que eu fui bem claro:
— Efetivamente, se os senhores credores tentarem receber desse modo violento os seus saldos, a empresa irá à falência e, então, não receberão nada. Os senhores credores, portanto, a esta altura, já não têm conveniência em cobrar suas contas, compreendem? Essas cobranças não são convenientes para nenhuma das partes. As dívidas da nossa empresa, assim, são por si só a melhor garantia para a existência da nossa sociedade, e, portanto, longe de extingui-las, o nosso interesse comum está em aumentá-las. Sempre! Para, dessa maneira, mantermos nossos vínculos e garantir os sagrados interesses dos senhores, nossos credores.
Um homem de bem nunca deve mentir a seus semelhantes, a não ser a seus credores, porque os credores não são semelhantes aos homens de bem.
Eles tinham vindo determinados e muito impacientes, e eu também, por me livrar deles, então fui taxativo:
— Meus senhores, tempo é dinheiro. Pagarei, portanto, com o tempo.
Não aceitaram, e organizaram um meticuloso quebra-quebra, desrespeitando inclusive a placa ENTRE SEM BATER. Porém o que mais me incomodou nesse triste episódio foi ver desrespeitados meus princípios. Afinal, todos me conhecem. Sempre fui um adversário do sistema capitalista. Comunista, embora educado dentro dos sãos princípios da moral cristã, pratico a caridade e sou, em tese, contra todos os castigos. Como o que vale é a intenção, contribuo mentalmente com dezenas de instituições de caridade. Sou um filantropo sem dinheiro. Sou um cristão devoto de São José, um santo que, como carpinteiro, pregou mais do que Cristo ou que qualquer apóstolo. Sou sempre pelo perdão e contra o castigo. Pagar para mim sempre foi um castigo. Castigos, além de não adiantar, atrasam. Para mim a parte mais simpática do padre-nosso é a que ensina a perdoar nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores.
Minha vida foi baseada em dois princípios fundamentais: emprestando, não cobro; se cobrado, não pago. E não ajo assim apenas com pessoas físicas. Também ponho porta afora muitos cobradores do governo. Taxas, impostos e outras obrigações absolutamente não são do meu costume pagar. Sempre fui da opinião de que o governo me traz muito mais prejuízos que benefícios. O morcego é menos cruel que o governo. Seus doadores involuntários de sangue são devidamente anestesiados e nem desconfiam que foram sugados.
Fui um homem de esquerda, mas muito mais à esquerda do que o normal. Eu não pregava, por exemplo, o cancelamento da dívida externa, mas também, e principalmente, das dívidas internas e das particulares. O que era preciso acabar, antes de tudo, era a dívida individual, porque essa sim era vexatória e iníqua! Também não me contentava com a desapropriação das grandes indústrias, dos grandes bancos, dos grandes latifúndios. Por que só desapropriar os grandes? Por que não os pequenos também? Por que essa desigualdade? E ninguém faz nada para acabar com essa injustiça! Parece mentira que neste formoso país onde nascemos e vivemos, chamado Brasil, onde tudo está por fazer, só se trate de explorar a boa-fé e a santa ingenuidade de seu povo mestiço, o povo mais mestiço do planeta. País vastíssimo, brindado por uma prodigiosa natureza, com enormes extensões de terras ubérrimas, com uma variedade infinita de metais preciosos e pedras de alto valor estimativo. País imenso, coberto de matas virgens onde vicejam exemplares frondosos e gigantescos da flora mais rica do mundo e onde se abrigam os mais lindos e apreciados espécimes da fauna universal. País prodigioso, cortado por uma magnífica rede de rios navegáveis com quedas-d’água capazes de iluminar o mundo. País colossal, do café, da soja, do trigo, das carnes, da mandioca! Que chega a espantar o mundo que ainda não tenha se transformado numa formidável potência, temida e respeitada por todos os povos do planeta! E escrevo isso tudo, leitor, unicamente para provar como é fácil se bancar o indignado, sem fazer absolutamente nada para mudar as coisas!
Para enganar os outros, basta ter convicção. A melhor maneira, portanto, de um cidadão ganhar importância consiste em dizer as coisas em tom inapelável. Com energia! Se um sujeito afirmar com toda a segurança:
— Está provado que um elefante vive quatrocentos anos!
Ninguém será capaz de protestar. Todos concordarão e vão achar muito natural. Mas se o mesmo indivíduo disser timidamente, com ar de modéstia:
— Eu desconfio que um elefante até seja capaz de viver talvez uns quatro séculos...
Todos protestarão, e o acusarão de mentiroso e ignorante.
Para subir na vida então o sujeito precisa ter convicção. A convicção exaltada de um político, por exemplo. Confesso que eu mesmo fiz muitos discursos exaltados assim na década de 1940, quando me elegi vereador pelo Partido Comunista na cidade do Rio de Janeiro. Subia na tribuna, ou num caixote na calçada, e expunha minha indignação cívica com veemência, mostrava meu inconformismo com vigor apoplético, numa fúria tremenda contra o espalhafato cinecarnavalesco hitlerista que não morre na alma dos porcos