Aprender a escrita, aprender com a escrita
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Aprender a escrita, aprender com a escrita - Victoria Wilson
17-48.
Capítulo 1
Aspectos semióticos da aprendizagem inicial da escrita
Cecilia M. A. Goulart
Angela Vidal Gonçalves
Sobre a base teórica do estudo e o objeto de pesquisa
A concepção de linguagem como atividade constitutiva dos sujeitos, com base em Bakhtin, é o ponto de partida deste estudo. A perspectiva filosófica da linguagem é integrada a uma semiologia em que sua marca distintiva é o tratamento simbólico e ideológico da realidade político-social. A linguagem possibilita ao sujeito existir, interagir e refletir, materializando suas experiências, sendo concebida como algo que organiza e tensiona a vida coletiva e individual, dado que organiza aquelas experiências. Bakhtin destaca a ação da linguagem sobre os sujeitos e a ação destes sobre a linguagem e sobre o outro do discurso. Não se trata, portanto, de uma linguagem determinada, com sentidos e formas definidos a priori; ao contrário, os sentidos e as formas se constroem nos espaços mesmos da enunciação.
Que relação podemos estabelecer entre essa concepção de linguagem e os processos de alfabetização? Que tipos de reflexão as crianças realizam no processo de aprender a modalidade escrita da linguagem verbal? Consideramos simplista a ideia de que as crianças aprendam a escrever seguindo os caminhos que levaram à criação do princípio alfabético da língua escrita (a relação entre fonemas e letras) e à explicitação de conhecimentos como a distinção entre vogais e consoantes, de unidades linguísticas como a sílaba e seus diferentes padrões, e à formação de palavras, sem que com isso neguemos a importância de tais conteúdos para a aprendizagem da leitura e da escrita. Muitas questões evidenciadas nesses processos têm ficado sem resposta, têm sido consideradas anômalas em tal aprendizagem ou, ainda, têm sido ignoradas ou omitidas em estudos.
O objetivo deste capítulo é focalizar aspectos do processo de alfabetização, destacando evidências de estratégias semióticas utilizadas por crianças e assim visando contribuir tanto para a melhor compreensão de como elas aprendem a escrever quanto para a formulação de propostas de alfabetização pelos professores. A perspectiva discursiva adotada aqui dá relevo a esse aprendizado como um processo de aprender a significar por escrito. Do ponto de vista linguístico, considera a enunciação como um processo que apresenta determinações e indeterminações.
Em Pacheco (1997, atual Goulart), observamos que a criança, no esforço de aprendizagem da língua escrita, faz uso dos conhecimentos e recursos de que dispõe, utilizando-se do que Halliday (1975)¹ denomina de estratégias semióticas. Essas estratégias permitiriam à criança se utilizar de um sistema pouco ou mal conhecido, enquanto ainda o está construindo, e desenvolvê-lo por intermédio desse uso. As estratégias semióticas são encaradas como procedimentos heurísticos para lidar com as demandas cognitivas que uma situação objetiva de aprendizagem implica. Essa noção está relacionada à atividade criadora do sujeito que aprende e, nesse sentido, orienta e organiza aquela aprendizagem. Ao mesmo tempo, a organização da linguagem escrita e o seu uso social, no caso deste estudo, também devem ser estruturantes daquela aprendizagem, ao funcionar como organizadores de probabilidades para a construção de estratégias pelo sujeito. Como o objeto e o sujeito vão-se transformando, no processo de aprendizagem que se constitui no interior de relações discursivas, orais e escritas, as estratégias também devem ser redesenhadas, em função da organização de esferas de necessidades diferentes² (Pacheco, 1997, atual Goulart).
Retomamos agora a ideia já expressa de que, do ponto de vista da estrutura linguística, o processo de enunciação apresenta determinações e indeterminações. Entender uma língua como sintática e semanticamente indeterminada não implica a impossibilidade de dizer-se o que se quer com precisão, mas significa que as construções linguísticas não dispõem de todas as informações necessárias para a sua interpretação – estas serão completadas por marcas das instâncias concretas de sua enunciação (Possenti, 1993, p. 68-9). O conceito de indeterminação diz respeito à ausência, nas línguas naturais, de uma das propriedades dos sistemas formais: a de que há apenas uma relação biunívoca entre expressões sintáticas e interpretações semânticas (Lahud, 1979, p. 18). Isso não quer dizer, como afirma Possenti (1993, p. 73), que a ordem não exerça nenhum papel, e sim que não é um critério absoluto de interpretação semântica. Ressalvamos então, na mesma direção de Possenti, a noção de forma como o elemento essencial na construção do sentido, que porém não o esgota pela sua indeterminação – os elementos linguísticos não estruturais desempenham um papel importante no condicionamento da própria forma.
A indeterminação pode ser compreendida, ainda conforme Possenti (1993, p. 191-9), com base em quatro instâncias que aludem à insuficiência dos recursos sintáticos para que determinado enunciado seja interpretado, lembrando-nos de que: (a) conhecimentos de naturezas não linguísticas entram na interpretação: conhecimento de mundo, conhecimento da situação de produção do enunciado, entre outros; (b) há possibilidade de uma mesma relação ou função semântica vir expressa por recursos expressivos redundantes num enunciado (exemplos: O pão, eu o comprei ontem. O homem, ele partiu sem deixar rastro.); (c) há possibilidade de mobilização dos mesmos recursos expressivos, segundo diferentes estratégias, para indicar diferentes significações (exemplos: As flores que (= as flores) eu recebi pareciam de plástico de tão perfeitas! O menino que (= o menino) as entregou tinha um quê (= ar) de mistério.); e (d) há possibilidade de uma função ou relação semântica ser expressa por diferentes recursos alternativos (exemplo: Pensei que o memorando tivesse sido encaminhado ontem, mas o documento está na gaveta. Quem adivinha por que o papel está ainda ali?).
Possenti, com base no trabalho de Franchi (1977, p. 13), diz que os falantes trabalham continuamente a relação entre a língua e os mais diversos sistemas de referência existentes
. Dessa maneira, eles ampliam a potencialidade de significação dos recursos expressivos, ao mesmo tempo que estes podem também ser ampliados ou modificados. Investigar como as crianças relacionam esses diversos sistemas de referência no processo de significação por meio da escrita é o que pretendemos com este estudo.
Sobre os sujeitos, o material de pesquisa e os procedimentos metodológicos
As crianças que produziram o material aqui apresentado e analisado fizeram parte da mesma classe de um colégio público da rede federal de ensino do Rio de Janeiro, em 2007 e 2008, cursando, respectivamente, o primeiro e o segundo anos do ensino fundamental, e ingressaram no colégio por meio de sorteio público, aos 5 ou 6 anos de idade. Quase todos os alunos pertencentes a esse grupo iniciaram o período letivo sem conhecer o princípio alfabético do nosso sistema de escrita. Ao longo do primeiro ano, no entanto, compreenderam-no, por intermédio de atividades de leitura e escrita e da realização de análises linguísticas específicas para esse fim. Para garantir a continuidade do processo de alfabetização em 2007-2008, a mesma professora acompanhou o grupo nos dois anos.
No primeiro ano, as atividades propostas pela professora destinaram-se, fundamentalmente, à aquisição do sistema alfabético. As análises linguísticas, embora partissem de situações reais e textos de circulação social (lista de material da turma, cantigas, parlendas, contos etc.), focalizaram, sobretudo no começo do ano letivo, letras e sílabas como unidades linguísticas. Foram realizadas, ainda, várias atividades que visavam ao conhecimento do alfabeto. As atividades de escrita espontânea³ foram introduzidas aos poucos, pois um bom número de crianças não demonstrava familiaridade com essa prática, revelando grande ansiedade e insegurança ao realizá-la (alguns, inclusive, choravam). Conforme as análises linguísticas avançavam, tal prática foi se tornando frequente e sistemática.
Analisando o material produzido pelos alunos, pode-se observar que houve uma gradação nas propostas de escrita espontânea. Primeiro, os alunos foram solicitados a escrever palavras isoladas, do mesmo campo semântico ou diferente; depois, começaram a escrever frases e, por último, textos integrais.
Apesar da ênfase da professora nas atividades de alfabetização, as propostas que visavam ao letramento⁴ não foram deixadas de lado. Desde o início do ano, os alunos conviveram com distintos gêneros orais e escritos, em situações formais de aprendizagem e em seus contextos de produção e circulação. Enquanto os alunos não escreviam ainda textos com autonomia, estes eram produzidos coletivamente e registrados pela professora, ao lado das propostas de produções espontâneas⁵.
Os textos literários tiveram grande destaque na seleção do material textual apresentado à turma. Contar e ouvir histórias eram práticas cotidianas desse grupo. Tão logo os alunos começaram a escrever seus próprios textos, compartilhavam suas produções com os colegas na hora da história. Esse momento era muito esperado e vivenciado com forte entusiasmo por todos. Ao escrever, todos sabiam que seus textos se tornariam conhecidos pela turma, tendo, portanto, destinatários reais. No segundo ano, muito raramente os alunos foram solicitados a escrever palavras soltas, a não ser em atividades específicas para o destaque a aspectos ortográficos do sistema.
Com a finalidade de acompanhar o desenvolvimento da turma como um todo e de cada criança em particular, foram propostas atividades de escrita espontânea a intervalos regulares – mês a mês, aproximadamente. Com base na análise dessas atividades, eram planejadas novas estratégias de ação pedagógica, buscando-se promover a aprendizagem de todas as crianças. Após a realização dessas atividades, a professora providenciava fotocópias das produções dos alunos, já que os originais pertenciam a eles. As cópias referentes ao primeiro ano constituem o material principal da presente pesquisa.
No segundo ano, os alunos arquivavam seus textos em uma pasta cujo título era Minhas produções escritas. Nela encontram-se textos de diferentes tipos, embora predominem os narrativos. Esse material também foi reproduzido para análises posteriores, tendo sido parcialmente utilizado neste estudo.
A pesquisa tem caráter qualitativo, com a sala de aula como fonte de conhecimento e de material, permitindo assim maior proximidade entre os sujeitos pesquisadores e pesquisados em relação a suas experiências e sentidos no/para o mundo, focalizando a realidade pedagógica de forma contextualizada. Neste artigo selecionamos alguns aspectos observados nos processos das crianças, realizando uma análise discursiva da produção escrita, considerando tanto relações intersubjetivas e interdiscursivas quanto restrições estabelecidas pelo sistema linguístico.
Na análise discursiva efetuada, os dados são obtidos e escolhidos no trânsito do pesquisador entre a realidade investigada e a teoria, em contínuo processo de inferências sobre o que os dados significam, o que implicam, para onde levam
(André, 1983, p. 70), para se chegar a uma compreensão do objeto pesquisado. O paradigma indiciário (Ginzburg, 1989) contribui de modo relevante para considerarmos as marcas deixadas pelas crianças nos textos como integrantes de seus processos, levando-nos a compreender algumas questões pouco estudadas. Nesse sentido, destacamos a relevância de voltar o olhar não só para o que está no centro, para o que é verificável de maneira empírica, mas também para o periférico, para o refugo: Partir de dados aparentemente negligenciáveis, [para] remontar a uma realidade complexa não experimentável diretamente
(Ginzburg, 1989, p. 152). As marcas são significativas por caracterizar soluções que as crianças dão às demandas que a elaboração de textos apresenta na dimensão alteritária (Abaurre et al., 1996). A mesma autora propõe, em outro artigo, com base em Lemos (1982, p. 120), que se aceite o desafio de tomar como objeto de estudo a linguagem como atividade do sujeito, enfrentando assim a indeterminação, a mudança e a heterogeneidade desse objeto que se refaz a cada instância do seu uso.
Aprendendo a significar por escrito: aspectos discursivos e semióticos do processo de aprendizagem da linguagem escrita
Nesta seção o material de pesquisa é analisado no sentido de buscar evidências de que as crianças, no processo de aprender a escrever, arregimentam o universo de conhecimentos de variadas naturezas semióticas que possuem para dar conta das demandas da escrita de palavras, frases e textos na escola que frequentam. Entendemos que o plano discursivo envolve os demais planos da língua: morfológico, sintático, fonológico e pragmático. A análise da escrita de palavras, na primeira parte, é realizada no contexto da intencionalidade discursiva da produção. O destaque é importante porque, ao mesmo tempo que achamos essencial a compreensão da base alfabética da língua, não a julgamos suficiente para que a criança seja considerada alfabetizada no sentido político-social do conceito. Ou seja, no sentido freireano de que a aprendizagem da escrita apenas se reveste de valor se contribui para a ampliação da leitura do mundo, para o fortalecimento dos sujeitos como cidadãos. Pressupomos que as crianças tenham possibilidade de aprender a base alfabética da língua no contexto de aprendizagem dos demais conhecimentos implicados na produção escrita, que são muitos, como já foi comentado. O ato de escrever representa um grande desafio para a criança em fase inicial da escrita. Para muito além de aspectos motores envolvidos nesse processo, requisita intensa atividade cognitiva, intrinsecamente relacionada à atividade social, pois ela necessita conjugar o que dizer ao como fazê-lo. Na realidade, esse desafio é inerente a todos os processos de escrita, mas são muitos os conhecimentos que precisam ser elaborados pelo escritor iniciante. A seguir, damos relevo a recursos e modos de composição de produções escritas de algumas crianças, analisando-os.
A utilização de algarismos para escrever palavras ou parte delas se destacou no mês de junho do primeiro ano, na produção de frases relativas ao tema Festa junina
, com base em algumas cenas típicas desenhadas. A aluna Ana escreveu para a cena de um casal, vestido a caráter, dançando quadrilha:
Figura 1
Observa-se o uso do algarismo 1 para escrever os artigos indefinidos uma (1ma) e um (1), estratégia que se repete dois meses depois, em agosto (Figura 2), apontando para um recurso que não é circunstancial, mas algo que se coaduna naquele período com as possibilidades e necessidades da produção escrita da menina. É um numeral ou uma palavra? O que são os numerais, como representá-los, garantindo distinção de gênero? Ao escrever 1ma, Ana não substituiu a palavra uma pelo algarismo 1, mas o utilizou como parte da palavra, para em seguida representar a marcação de gênero feminino alfabeticamente com M e A. Apoiou-se, portanto, no conhecimento de símbolos matemáticos e no conhecimento fonológico, ambos conhecimentos em emergência nesse momento. Aspectos semânticos do discurso parecem ter-se sobreposto aos demais. A aluna já sabe que nosso sistema de escrita representa palavras e não seus significados, embora não tenha aprendido ainda que, para representá-las, usamos em algumas situações letras e, em outras, numerais.
Figura 2
Vale a pena destacar também que, para nomear a menina da cena acima (Figura 2), Ana escolhe o seu próprio nome. Observamos que, em várias atividades, a aluna prefere utilizar palavras já conhecidas, para escrever corretamente, isto é, para não errar. Seu nome, nesse momento, parece ser uma imagem – que a identifica e com o qual se identifica. Apesar de Ana já estabelecer nesse momento relações entre sons e letras, seu nome não parece analisável, decomponível, sendo utilizado em bloco, como um todo.
A intenção de escrever de modo correto evidencia um valor típico da escola, em particular, e da sociedade, de modo geral, situando discursivamente a inserção social da criança, que escreve para outros e deseja garantir o sentido para quem a lê; assim, as convenções sociais são fundamentais. Ana sabe que sua escrita ainda se distancia da convencional, pois nem sempre a professora consegue ler o que ela escreve. Deseja, entretanto, aproximar-se dessa escrita; a escolha de um nome conhecido atende a esse