Almas de aço
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Almas de aço - Ana Cristina Vargas
Capítulo 1
O som dos violinos voltou a ocupar a mente e a atenção de Luciana assim que desligou o telefone. Aquela música elevava seu espírito, afastava-a de toda tortura que o pensamento desgovernado pode causar. Viver muito pode ser uma grande vantagem quando os anos da vida física correspondem ao amadurecimento e aprendizado espiritual. Acabara de ouvir as queixas da neta. Ah! Como há que se ter paciência com o crescimento! Juliana era tão doce, mas tão frágil! Como gostaria que houvesse uma fórmula mágica que lhe permitisse olhar suas netas e reequilibrar fatores de suas personalidades. Se tivesse esse meio seria a perfeição. Mas era apenas o sonho de um coração de avó. Nada mais.
Com oitenta e oito anos, rendia graças a Deus, pelo muito que a permitira viver. Praticamente varava um século e nele acompanhara muitas transformações. Andar a par delas fora e continuava sendo seu desafio pessoal. Por isso, sabia perfeitamente distinguir seus sonhos e devaneios da realidade da vida. Encarava seus olhos negros todos os dias perante o espelho, o que a ensinara a não ver as coisas nem cor-de-rosa nem negras.
No entanto, apenas como fatos do dia, deixava ao futuro a função de colorir suas memórias. Seja o que for, não é bom nem ruim no momento, isso o tempo decidirá. As piores experiências mostraram-se benéficas quando as olhou à distância, passadas as emoções da hora. Já não as tingia mais com os corantes das emoções descontroladas, aguardava que elas se revelassem. Gostaria que suas filhas e netas compreendessem essa realidade. Sofreriam menos, seriam mais saudáveis.
Os dias seriam tão mais bem aproveitados! Elas repetiam uma frase tipicamente masculina: tempo é dinheiro. Mas as ações delas, por vezes, desmentiam a compreensão de que ele é valioso. Isso a entristecia por alguns instantes, uma pequena névoa encobria rapidamente a luz de seu olhar. Logo se desvanecia. E, pensando bem, nem sempre se valoriza o dinheiro. Joga-se fora — o tempo e o dinheiro — com facilidade.
Por isso, Luciana devaneava sobre uma fórmula mágica que lhe permitisse equilibrar suas meninas. Talvez fosse um devaneio autoritário, talvez um excesso de proteção, de zelo feminino. Coisa de mulher velha! Seria tão bom não precisar afagá-las, ouvi-las com suas dores emocionais, com seus conflitos... mas a conversa recém-terminada com Juliana, lhe dizia que ainda não seria naquele ano que seu sonho seria realidade. Ainda precisaria ouvir os violinos muitas e muitas vezes, aguardando-lhes a visita. Observando e orientando-lhes o florescimento. Renovando-se com aquelas experiências repetidas. Reconhecendo caminhos, lendo o amanhã que se escreve no agora.
Juliana logo estacionaria o carro na frente de sua casa. Adorava suas meninas. Todas tinham algo especial, que as diferenciava. Amava cada uma à sua maneira. A vida lhe dera quatro filhas, e muitas netas. Tantas mulheres eram sua maior riqueza. Quem sabe, ainda viveria, naquele corpo bem usado, mas saudável o bastante para ter no colo uma bisneta? Talvez a causa daquele telefonema aflito fosse ela chegando.
A doce e frágil Juliana, tão diferente e, ao mesmo tempo, tão semelhante à sua caçula. Mãe e filha nem sempre se entendem. Era o caso de Magda, sua filha caçula, e a neta Juliana. Amavam-se e irritavam-se entre si com grande intensidade. Isso na idade adulta dificultava o relacionamento. Eram amigas, sociáveis, cuidavam-se. Mas, desde a adolescência, Juliana corria à procura da avó quando precisava falar. Magda não tinha paciência com a emotividade da filha e apontava esse excesso como causa de seus sofrimentos. Diminuía-os.
E não estava errada. Ao contrário, fora a própria Luciana quem incentivara a lucidez de Magda, mas ainda faltava-lhe burilar a sensibilidade. Faltava-lhe aprender a força exata para vergar o galho que se desvia do crescimento reto para reconduzi-lo sem quebrá-lo. Então, se Juliana ligara aflita avisando-a que precisava visitá-la, de antemão sabia que a filha viria para o jantar ou o almoço do dia seguinte.
Recostou-se nas almofadas da poltrona de vime e observou seu pequeno e bem cuidado jardim. Duas borboletas predominantemente azuis passeavam por ali. Deixou-se encantar por elas enquanto ouvia o som dos violinos que vinha da sala. Fechou os olhos e relaxou. Fossem quais fossem os fatos que viriam — recusava-se sequer a pensar e usar a palavra problema, todos eram fatos e apenas isso — em paz seriam mais bem apreciados e olharia para eles sabendo que não lhe pertenciam.
Luciana cochilou alguns minutos, um quarto de hora aproximadamente, e sobressaltou-se ao ouvir o barulho do portão da frente se abrindo.
Ah, coisas da idade!
, pensou conformada.
E por que brigar com a natureza, a matéria usada cobrava descanso, o cochilo a revigorara. Sorriu feliz ao ver Juliana aproximando-se. Parecia estar diante de Magda anos atrás. Eram fisicamente muito parecidas, mas só fisicamente. Cabelos cacheados, cor de mel, fartos, longos. Olhos castanhos, pele clara pontilhada por algumas sardas, traços finos. Corpo cheinho. Sua Magda, mais jovem, também era assim. A diferença estava na expressão e no olhar. Espíritos diferentes!
— Tudo bem, vó? — cumprimentou Juliana, inclinando-se sobre a poltrona e estalando um beijo na face direita de Luciana.
— Graças a Deus, querida. E com você? Pareceu-me tão aflita ao telefone.
— Ah, vó, nem me fale! Estou muito nervosa. Não sei o que fazer — declarou Juliana soltando a bolsa sobre a mesa circular ao lado de um vaso de violetas brancas e puxando uma cadeira para perto de Luciana.
— Que tal começar pelo óbvio e necessário: acalme-se. Nervosismo só piora qualquer situação, faz você sentir-se mal, não pensar direito. Vamos relaxar um pouco antes de você me contar suas aflições, certo? Pedi a Maria Teresa para fazer um chá de hortelã com abacaxi, deve estar bem gelado, está na geladeira desde cedo. Deve estar no ponto. Amo um chá gelado nesse calor.
Luciana fez menção de levantar-se e a neta prontamente a fez retornar ao encosto da poltrona.
— Eu busco, vó. Quer mais alguma coisa?
— Sabe que sempre tem um bolo nessa casa — completou Luciana sorrindo.
— Eu não quero, não consigo engolir nada hoje. A senhora quer? Eu lhe trago uma fatia.
Luciana suspirou. O sofrimento sem propósito a penalizava mais do que aquele com causas reais, contudo, nada demonstrou. Lamentava a intemperança que era, em última análise, a causa do que quer que fosse a aflição de Juliana. Dela e de centenas de pessoas. Desperdício de vida. Mas, fazer o quê, se o caminho do aprendizado aponta para esse rumo?
Paciência para ensinar uma alma rebelde, é só que posso pedir a Deus
, pensou.
— Eu quero — declarou Luciana. — É de coco, com baba de moça de cobertura fica muito bom, está na geladeira.
Resignada, Juliana avançou pela casa da avó com a intimidade de quem cresceu correndo por aquelas salas amplas, ensolaradas e cheirosas. Chegou à cozinha moderna, retirou os copos de uma cristaleira, um prato e colocou-os na bandeja que descansava sobre o tampo de granito da bancada. Por último, retirou a jarra com o chá e grossas rodelas de abacaxi, depositou-a na bandeja e retornou à varanda onde a avó descansava. Ao servir o chá, o aroma refrescante já a fez sentir-se um pouco melhor. Encheu o copo e bebeu lentamente, ouvindo a avó tagarelar sobre o quanto as flores estavam sentindo o calor do verão. Luciana observava, serenamente, a expressão da neta desarmar-se devagarinho. Mas as linhas de expressão bem marcadas entre os olhos, acima do nariz, região contraída, ainda denunciavam o estado de preocupação interior.
— Sente-se, Juliana — convidou Luciana, com calma. — Parada assim à minha frente, você me faz recordar aqueles pobres guardas de monumentos militares, e eu acho que todos se inspiraram na guarda real do Palácio de Buckingham. Que tragédia! Nem piscam. Alertas, mas não sabem contra o quê. Patético haver isso em pleno século XXI.
Juliana riu, relaxou e olhou a avó com admiração.
Céus! Ela tem quase 90 anos e essa lucidez admirável. Eu não falei, ela enredou-me e aposto que já me leu como se eu fosse um de seus livros
, pensou Juliana segundos antes de acomodar-se na cadeira de vime com alegres almofadas estampadas.
— Bem melhor, querida. O sorriso é um grande facilitador na vida. Jamais subestime seu poder. E o seu é tão bonito! Agora, conte-me, com calma, os fatos que a afligem.
Juliana refletiu por alguns instantes. Sabia que a avó faria aquela pergunta, mesmo assim, pela milionésima vez em sua vida, Luciana a pegava desprevenida.
— Eu estou muito mal, vó. Minha vida está uma confusão. Não consigo me concentrar em algo. Meu peito aperta, não consigo comer há uns dois dias, nem dormir direito. Não sei o que fazer...
— Meu bem, pare. Eu quero saber é: qual o fato que a aflige? O que você está sentindo está estampado em seu rosto. Ou pensa que eu não vi a pele sem brilho, os olhos inchados, meio vermelhos e a tensão louca que você impõe ao seu corpo? Isso não faz bem, meu anjo. Você se tortura e padece demais, o que não é preciso. Para que sofrer tanto, meu Deus! Diga-me: qual é o fato?
Até parece que eu não sei, mas ela precisa falar
, confabulou Luciana consigo mesma. Esse drama todo é por causa do que ela pensa que seja o amor e o amar. Já vi esse filme muitas vezes. Essa é só mais uma releitura da velha história. E eu sonhando com a notícia alegre de um futuro nascimento... Ainda preciso me convencer de que rosas não dão em cardos, neles nascem espinhos.
— A senhora faz tudo parecer tão fácil! Tão simples! A vida não é mais assim, vó — protestou Juliana. — Lá fora, além do seu jardim, o mundo é uma selva. As pessoas não se respeitam. Não respeitam os sentimentos dos outros.
— Hum. Com certeza, meu jardim mudou-se da Terra e eu não vi. Devo estar em Marte. Fui abduzida. Como vocês vêm me visitar, querida?
Juliana sorriu, com tristeza. Era apenas um esgar, um movimento facial. Luciana inclinou-se para o lado de Juliana, encarando-a e falou séria e firme.
— Não complique a vida e verá que ela é simples. Viva a sua vida sem preocupar-se com o que os outros estão fazendo ou deixando de fazer. Não julgue o que os outros pensam ou fazem. É perda de tempo e prova de orgulho. Agora, diga-me logo o fato que a aflige. Tem a ver com o Roberto?
Juliana baixou a cabeça levemente envergonhada e declarou:
— Acho que ele não me ama mais. Acho que nosso casamento está chegando ao fim. E isso está acabando comigo. E o pior é que ele não fala nada. Ontem discutimos. Foi muito ruim. Não sei como vou olhar para ele hoje.
— Ah, você dormiu, de novo, no sofá — lamentou Luciana. — Que coisa infantil, Juliana! Mas, outra vez, vou lhe perguntar: qual é o fato em tudo que está me dizendo?
— Ai, vó. Eu já lhe disse que as coisas não são mais tão simples. A vida está muito difícil!
— Difícil é a sua cabeça, menina! Sabe por que não responde à minha pergunta? É por que não existe fato nenhum. É você que está criando monstros nas sombras.
— Não sou eu, vovó. Ele está diferente comigo.
— Óbvio. Você está agindo de forma diferente, está agindo como uma mulher insegura, desconfiada, rabugenta, ciumenta, enfim, minha filha, como uma velha chata. O que queria que ele fizesse? Você oferece sal e espera que com isso alguém lhe presenteie com um pudim? É dando que se recebe, nunca ouviu isso? E mais: conforme o que se dá é o que se recebe. Acusando-o de montes de achos
, se ele retribuiu com indiferença, ah, minha filha, eu já o considerarei um anjo. Pense, se fosse o contrário: ele atazanando você com mil e uma suspeitas infundadas, dizendo que você não o ama mais, que o relacionamento está chegando ao fim etc... Como você se sentiria, como reagiria? Eu, que sou sua avó, já estou perdendo a paciência com isso. É a quinta ou sexta vez que você vem com essa conversa, Juliana. Será que não é você que quer se separar? Não é você que já não tem interesse no Roberto, mas não quer dizer? Por acaso, você se interessou por outro homem?
— Vovó!!! — indignou-se Juliana. — O que é isso? Eu venho lhe pedir apoio, lhe pedir ajuda, e a senhora me acusa?
— Eu? Não mesmo, não fiz acusações — respondeu Luciana, com o mesmo tom que falara antes. — Eu fiz perguntas. Perguntas que você me deu o direito de fazer, pois veio aqui falar-me dos seus problemas
. E são um problemão, querida, porque não têm fatos, são totalmente imaginários. Não há o que alguém possa fazer ou dizer a respeito. Eles estão todos na sua mente. Você é a única senhora deles. Mas, eu creio que você ainda não é senhora de si mesma, então, na verdade, você é escrava, refém da própria mente. Tortura-se e tortura o Roberto. Pobre homem!
— Vovó!!!
— Ah, vovó! Que vovó, que nada, minha filha. Eu sou uma mulher velha, já tive a sua idade e a idade da sua mãe e fui além. Eu já passei a mão na sua cabeça; já lhe disse palavras de consolo e de esperança; já ouvi calada várias vezes desde então. Sabe por quê? Por que eu estava analisando seu comportamento. E agora quero ajudá-la de fato, fazendo-a pensar. Já que não tem fatos reais externos, as suas queixas apontam para causas internas. Suas causas internas! É você que está aqui se queixando do seu casamento, não o Roberto; logo, é você que está insatisfeita. Qual é a razão da sua insatisfação? Descubra isso, Juliana. Não aponte dedos aos outros, aponte-os para si. Se você não está feliz, mude. Não se torture. Não adoeça. Não infernize a vida dos outros por isso. Você não tem esse direito.
— Ai, vó. Isso que disse é muito duro. Eu não sou má. Não quero mal ao Roberto, ao contrário, faço tudo para a felicidade dele...
— Ah, não! Você não vai dizer para mim — na minha cara enrugada, graças a Deus — que atordoar alguém por suspeitas e minhoquices da sua cabeça, dormir no sofá depois de um bate-boca, é fazer tudo para a felicidade de alguém. Ah, não! Isso não é fazer tudo nem pela sua felicidade, Juliana. Quanto mais pela de quem vive ao seu lado. Querida, eu sou uma mulher velha, se tem algo de que eu entendo é de homem.
Juliana sorriu. Realmente, a vida amorosa da avó fora muito intensa. Não podia contestá-la. Diante do sorriso da neta, Luciana amenizou o tom e confidenciou:
— O segredo é simples, e sempre o mesmo: seja feliz, viva bem consigo mesma, isso é responsabilidade pessoal e, portanto, apenas cada pessoa pode fazer por si mesma. Não existe o que me disse: fazer tudo pela felicidade do outro. É uma frase bonita, soa forte, mas é uma ilusão. Esconde outras verdades, não tão bonitas, mas humanas e por isso compreensíveis. Afinal, já disse Marx nada do que é humano me é estranho. O que é fazer a felicidade do outro, Juliana?
A jovem levantou-se. Não conseguiu sustentar o olhar da avó. Caminhou até o outro lado da varanda que dava para o jardim e fitou as borboletas que voavam sobre os canteiros floridos. Não sabia a resposta à pergunta de Luciana. Tudo que lhe vinha à mente era atender aos compromissos de compartilhar a casa, os cuidados para que não faltassem as coisas que o marido gostava; acompanhá-lo no que o divertia; agradá-lo. Mas, agora, diante do questionamento seco da avó, se perguntava se aquela era a resposta.
Luciana a observava, serenamente, igual a um predador ao avistar sua caça: calma, firme, pronta para agir. Aos seus olhos, os pensamentos da neta quase tinham voz: a voz triste e cavernosa dos séculos. Juliana repetia um padrão de comportamento antigo, mítico.
— Há quantos séculos aquele ser arrastaria essas ilusões? — indagou-se Luciana, ainda à espera da resposta que não lhe traria nenhuma novidade; queria apenas que fosse verbalizada para que Juliana ouvisse a si mesma e refletisse. Mas ela calou-se.
Capítulo 2
Maria Teresa, amiga de Luciana e sua empregada havia décadas, apareceu no vão da porta-janela de correr que dava acesso à varanda onde elas conversavam.
— Juliana! Que bom ver você, querida — cumprimentou-a, aproximando-se com a familiaridade construída pelos anos que transcende os laços profissionais, para beijar-lhe a face. Juliana correspondeu com o mesmo carinho.
— De vez em quando, escapo do trabalho e venho ver vocês. A saudade me empurra, não posso ficar muito tempo longe da sua cozinha, Teresa. Você sabe disso.
— Ahã, eu sei que isso pode ser uma deslavada mentira — retrucou Teresa, rindo. — Mas é bom de ouvir.
Luciana balançou a cabeça ainda envolta nos pensamentos despertados pelo diálogo anterior e mentalmente aduziu:
E como tem deslavadas mentiras que aceitamos porque são boas de ouvir. Falam às nossas imperfeições humanas. Um dia teremos que mudar isso.
— Luciana, vim combinar o jantar. Tenho que sair para ir ao mercado. Hoje é o dia do peixe, eu gosto de comprá-lo pela manhã. Mas tínhamos médico agendado e não deu. Irei agora, talvez ainda consiga algo fresco — disse Teresa a Luciana.
— Hum. Escolha você, Teresa. Surpreenda-me.
— Não se queixe depois, Luciana. Esse é o momento do fale agora ou cale-se para sempre.
— Eu sei. Esse momento acompanha toda escolha, ou pelo menos deveríamos ter essa noção. Eu escolho abdicar da decisão do cardápio, Teresa. Faça o que quiser. Prometo que serei responsável e, mesmo que a surpresa não me agrade, eu ficarei quieta. Juliana é testemunha.
Maria Teresa sorriu. Acostumada ao cotidiano de Luciana, conhecia-lhe o modo de ser e pensar. Foi fácil perceber que a resposta ao cardápio do jantar tinha sido transformada em algo mais. Juliana deveria estar se queixando do marido, sua vítima número um nos últimos meses. Não seria a primeira vez. E se não era do marido, era do trabalho, da saúde, do trânsito, da economia, da política, do que tinha e do que não tinha também. Melhor deixá-las, mas antes de partir perguntou:
— Ficará para jantar conosco, Juliana?
— Não, Teresa. Roberto e eu temos um compromisso — consultou o relógio, e completou: — Não me demorarei, está quase na minha hora. Sabe como está o trânsito, dizem que é engarrafamento eu penso que é enlatamento. Tem lata demais. É lata nova, lata velha, para todo lado. E o povo abusa, nem para ir à padaria se vai a pé, tem que ser de carro.
— É verdade! — concordou Teresa, segurando as chaves do carro popular que usava para atender às necessidades da casa e de Luciana, pois era também sua motorista.
Maria Teresa despediu-se de Juliana de maneira efusiva com um abraço e saiu, faceira, cruzando o jardim em direção à garagem.
Luciana observava-as com os olhos brilhantes e um sorriso irônico, debochado no rosto.
— Que foi, vó?
— Nada, querida. Apenas constatando que no século XXI, até o momento, o macaco ainda não conseguiu ver o próprio rabo. Estou esperando a evolução, só isso.
Sem entender o que a avó dizia, pois às vezes tinha dificuldade de compreender-lhe o pensamento, embora adorasse conversar com ela, Juliana balançou a cabeça e aproveitando a interrupção mudou o rumo da conversa para banalidades. Considerou que a fala da avó estava manifestando um pouco de senilidade. Precisava conversar com a mãe a respeito. Talvez algo tivesse que ser feito, um medicamento poderia ajudar e, quanto antes, melhor. Essa linha de raciocínio a fez recordar que precisava ir à farmácia comprar seus ansiolíticos, os comprimidos estavam quase no final. Tinha apenas duas cartelas. Imediatamente, levantou-se e pegou a bolsa.
— Já vai, Juliana?
— Sim, vó. Acabei de me lembrar de que preciso passar na farmácia. Meu remédio está no fim e não vivo sem ele.
Luciana sentiu-se murchar ao ouvir a declaração da neta.
Que tristeza! Por que abdicar assim do próprio poder? Eu não entendo
, pensou.
Conhecia a neta desde o nascimento, acompanhara sua vida e, como era seu hábito, analisou como ela experimentava o viver. Aprende-se muito desenvolvendo esse olhar. Aprende-se que existem mil e uma formas de experimentar o viver, algumas melhores, outras piores do que as próprias. Recolhem-se ensinamentos valiosos do que fazer e do que não fazer em determinadas situações. Compreende-se o ser humano, ou melhor, ampliamos a nossa compreensão, já que essa é uma construção infinita considerando-se a evolução. Tema que Luciana presava sobremaneira. Toda sua alegria e confiança repousavam calmamente, placidamente, na firme convicção de que tudo sobre a Terra evolui constantemente. Não há razão para desesperança, e sim para a paciência, o trabalho e a perseverança. Eram as virtudes que mais admirava na sua concepção pessoal da divindade e procurava desenvolver em si.
— Que foi, vó? Por que essa cara triste? Eu voltarei na sexta-feira. Prometo.
— Claro, querida. Vou esperá-la. A Cristina virá passar o fim de semana comigo.
— Puxa! Faz tempo que não vejo a Cristina. Onde ela anda agora? Canadá?
— Ela está trabalhando no Reino Unido, e agora foi transferida para a Escócia. Está de férias e veio nos visitar. Estou com muita saudade dela. É uma capetinha! Sempre foi. Deus do céu, como era inquieta e curiosa quando criança. Mas ninguém resistia ao sorriso dela, ao olhar interessado nas coisas.
— É. Cristina sempre foi muito inteligente — comentou Juliana e aduziu com uma ponta de inveja: — A melhor em tudo, não é, vó?
— Vocês todas são diferentes. Não se compare, nem compare suas primas entre si. A grande igualdade da vida é que somos todos diferentes. É um pensamento louco, mas há uns setenta e cinco anos lembro-me de refletir a respeito e experimentar as vivências do meu pensar. Entendi isso há muitas décadas, Juliana, e isso foi e continua sendo libertador. Cristina é o que é, o que está construindo como si mesma. Assim é para todos. E ela sempre gostou de você. Lembra-se de como a protegia quando vocês aprontavam as traquinices?
Juliana riu e pensou: Velhos vivem sempre recordando o passado. Há quantos anos não tinha mais aquela alegria espontânea da infância? Ah, a vida é tão complicada! É até bom os velhos que não veem isso, como a vovó, assim não se deprimem. A maioria vê e adoece. Melhor deixá-la com essa visão cor-de-rosa da vida.
— Certo. Sim, senhora. Sem comparações — concordou Juliana abraçando a avó com tolerância. — Preciso ir. Fica com Deus!
— Ai Dele que me abandone, criou o mundo e tudo que existe, inclusive eu. Estamos grudados, eu e Ele — brincou Luciana. — Eu não dou trégua, se Ele não ficar comigo, irei atrás. Sem chance de não ficarmos juntos, querida. Vá tranquila. Seja feliz!
Juliana riu, passou a mão pelos cabelos, ajeitou a bolsa no ombro e foi em direção ao portão. Luciana entrou em casa, apanhou o controle remoto do portão e acionou o destravamento à distância.
— Ah, céus, como seria bom se houvesse um controle remoto capaz de destravar algumas mentes! Eu adoraria. Seria muito divertido e saudável ver umas criaturas como a minha neta destravando pra vida. São uns portões fechados no que se refere ao viver. Nada entra, nada sai dessas criaturas. Que triste!
Luciana guardou o controle, respirou fundo e respondeu a um pensamento.
— Ok! Calma. As orelhas da vovó estão velhas. Não puxe com força, meu bem. Eu sei, eu sei. Ela ainda não aprendeu a amar. Ok! Ela aprenderá, também sei. Preciso ser paciente. É, não basta ter paciência, é preciso usar. Sim, eu entendo. Estou tentando, há oitenta e oito anos, quase nove, estou exercitando esse músculo da alma. Estou quase saradona, como diz o neto da Teresa. Ah, não diga, é um exercício infinito. Tenha paciência comigo, seja paciente! Essa notícia exige muita calma. Então, não adiantaria nada eu ter um controle destravador de mentes fechadas? Ah, céus! Um pouco de ilusão faz bem. Não sou