Literatura e Müsica
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Literatura e Müsica
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira da Livro, SP, Brasil) Literatura e msica / Solange Ribeiro de Oliveira.. [et ai.] . So Paulo Editora Senac So Paulo : Instituto Ita Cultural, 2003. Outros autores: Carlos Reottd, Paulo Freire, Maria Alice Amorim, Janaina Rocha. Bibliografia. ISRN 85-7359-342 3 (Editora Senac So Paulo] ISRN 85-85294-43-5 (Instituto Ita Cultura] 4. Msica e literatura 1. Oliveira, Solange Ribeiro de. II. Reond, Carlos. III. Freire, Paulo. IV. Amorim, Maria Alice.V . Rocha, Janaina. ndices para catlogo sistemtico: 4. Literatura e msica 780.08 2. Msica e literatura 780.08 Todos os direitos desta edio reservados Editora Senac So Paulo Rua Rui Rarbosa, 377 10 andar Reis Vista CEP 01328-040 Caixa Postal 3S95 CEP 02090-970 So Paulo SP Ibl. (11) 3284-4322 Fax (11) 289 9634 E-mail: [email protected] Home page: http://www.editoraedssp.com.br 02-5316 e ao Ita Cultural 000-780.08 Avenida Paulista, 149 ORP 01311 000So Paulo SP Tel. (41] 3268-1700 Home page :http ://www itaucultural.org.br Dos autores, 2003
LITERATURA E MSICA
Solange Ribeiro de Oliveira Carlos Renn Paulo Freire Maria Alice Amorim Janaina Rocha Ita cultural editora
ADMINISTRAO REGIONAL DO SENAC NO ESTADO DE SO PAULO Presidente do Conselho Regional: Abram Szajman Diretor do Departamento Regional: Luiz Francisco de Assis Salgado Superintendente de Operaes: Darcio Sayad Maia EDITORA SENAC SO PAULO Conselho Editorial: Luiz Francisco de Assis Salgado Clairton Martins Luiz Carlos Dourado Darcio Sayad Maia Marcus Vinicius Barili Alves Editor: Marcos Vinicius Barili Alves ([email protected]) Coordenao de Prospeco Editorial: Isabel M. M. Alexandre ([email protected]) Coordenao de Produo Editorial: Antonio Roberto BerleIli ([email protected]) Superviso de Produo Editorial: Izilda de Oliveira Pereira ([email protected]) Preparao de Texto: Beth Griffi Reviso de Texto: Adalberto Luis de Oliveira, Kimie Imai, Lucina Ges Editora o Eletrnica: Antonio Carlos De Angelo Capa: Moema Cavalcanti Impresso e Acabamento: Cromosete Grfica e Editora Ltda. Gerncia Comercial: Marcus Vinicius Barili Alves ([email protected]) Administrao e Vendas: Rubens Gonalves Folha ([email protected]) ITA CULTURAL Presidente de Honra Superintendente Administrativo Olavo Egydio Setubal Walter Feltran Presidente Superintendente de Atividades Culturais Mil Villela Eduardo Saron Vice-Presidentes Seniores Joaquim Falco
Jorge da Cunha Lima Vice-Presidentes Executivos NCLEO DE LITERATURA Alfredo Egydio Setubal Ronaldo Bianchi Consultor de Equipe Claudiney Ferreira Diretores Executivos Antonio Carlos Barbosa Oliveira Lvia Perran Antonio Jacinto Matias Luciana Den Jlio Cludio Salvador Lembo Renata Amaral T. Correia Mal Pereira de Almeida Renata Sarmento Renato Roberto Cuoco Sara Marta Farias Shirlene Amsaa
SUMRIO Nota dos editores Apresentao - Lus Camargo Introduo melopotica: a msica na literatura brasileira - Solange Ribeiro de Oliveira Poesia literria e poesia de msica: convergncias - Carlos Renn A msica dos causos - Paulo Freire Improviso: tradio potica da oralidade - Maria Alice Amorim Repensando - Janaina Rocha Sobre os autores 07 08 12 28 39 52 72 84
Mais uma vez o Senac So Paulo e o Ita Cultural lanam uma coletnea de ensaios temticos maneira de Rumos da crtica, Outras leituras e Literatura, cinema e televiso. A exemplo daqueles, cinco autores especializados em literatura e/ou msica analisam aqui a musicalidade do texto, as relaes dessas artes que , no dizer da professora de literatura comparada Solange Ribeiro de Oliveira, so evidentes na prosa e na poesia de grandes escritores. Ela pergunta e conclui com elegncia: Como negar a musicalidade dominante no poema [de Manuel Bandeira]? Mais que o sentido, a msica das palavras puxa a linha do verso, fazendo que a dimenso semntica brote, como Vnus das ondas, do borbulhar sonoro. Acreditamos que a leitura deste livro apura o ouvido e o senso crtico dos que apreciam literatura e msica, desvendando em uma e outra arte perspectivas cuja identificao as enriquece.
APRESENTAO O remo abre o rio. O rio murmura. Cecilia Meireles As vogais e as consoantes do a cada palavra uma sonoridade particular. As palavras tambm podem imitar os sons aos quais se referem: zumbir, tilintar, farfalhar. A disposio das slabas, fracas e fortes, d a cada palavra um ritmo. Por uma espcie de economia fontica, esses ritmos so recorrentes, assim como cada lngua utiliza um nmero reduzido de fonemas. A sonoridade e o ritmo, que esto presentes em cada palavra, so, assim, o ponto de partida para a musicalidade da poesia e, por extenso, da literatura. Essas propriedades musicais da palavra vm sendo estudadas desde a retrica clssica, incluindo a peiformance do orador, especialmente o cuidado com a fala: a entonao, a intensidade, a velocidade, as pausas, etc. H registros de que Demstenes, o maior orador da Grcia antiga, teve aulas com um ator, visando aprimorar sua peiformance. Com respeito a estudos sobre a declamao de poemas, Aristteles menciona Glauco de Teos, cujo texto no chegou at ns. O dilogo on, de Plato, embora enveredando por uma outra abordagem, sugere a importncia dos rapsodos, que declamavam os poemas de Homero. Na Antiguidade, os estudos mais detalhados sobre a peiformance so os de Quintiliano, na Institutio oratoria (A educao oratria, ou, mais livremente, A educao do orador). Nosso conceito de literatura, por outro lado, foi se afastando da oralidade e est intimamente associado ao suporte livro e lei tura silenciosa e solitria. Dessa forma, a musicalidade das palavras tornou-se, para ns, principalmente uma possibilidade, uma virtualidade. Uma possibilidade do texto que atualizada em geral, apenas mentalmente a cada leitura. Essa musicalidade realmente concretizada pela leitura em voz alta e pela declamao. Existe, assim, uma msica de palavras. Nos versos de Cecilia Meireles, na epgrafe acima, a palavra murmura imita o barulho da guas, enquanto a repetio dos erres sugere o barulho do remo: O remo abre o rio. Outra interao da msica com a literatura a msica verbal espcie de descrio de uma composio musical, especialmente seus efeitos sobre o ouvinte. Nesses casos, o autor freqentemente expressa suas sensaes ou as de um personagem a partir da audio de uma msica real ou fictcia , o que nos faz enveredar pela recepo musical. Uma outra interao a imitao de estruturas musicais pelo texto literrio como, por exemplo, tema e variao, contraponto, rapsdia e sonata. Essas interaes so alguns dos tpicos abordados pela professora de literatura Solange Ribeiro de Oliveira. Seus conhecimentos de literatura e de msica permitem-lhe transitar com facilidade por esses dois campos, oferecendo-nos uma viso bastante clara da melopotica, campo de estudos interartes rnsica/ literatura. A poesia lirica, como o nome sugere, era acompanhada pela lira. Na Grcia havia outras formas de acompanhamento da poesia, como a flauta, alm de poemas feitos para serem apresentados com msica e dana, o hiporquema. Por outro lado, a msica tambm nasce associada poesia. A msica instrumental desenvolveu-se posteriormente. Essa hibridao de linguagens no difcil de entender se pensarmos na cano popular contempornea, cujos shows associam poesia, canto, msica e dana. A cano popular, como o nome sugere, visa o grande pblico, a fcil recepo. Pode ocorrer, entretanto, uma poetizao da cano, quando a letra atinge o plano da letra-arte: poesia.
Esse o tema que o letrista Carlos Renn aborda em seu ensaio, destacando um dos grandes momentos de associao de msica e poesia na tradio ocidental, a poesia trovadoresca, dando um salto para falar da cano popular norte-americana e brasileira. Ele comenta procedimentos sonoros e rtmicos, como rimas entre estrofes diferentes, quase rimas ou pseudo-rirnas, alm do apelo imagtico, exemplificando com Cho de estrelas, de Orestes Barbosa, e alguns versos de Prince. Graas sua experincia como tradutor de canes, ele oferece exemplos concretos de desafios e solues. Em sua viso que retoma a de Pound e a dos poetas concretistas brasileiros , no se trata de traduzir apenas o que se diz, mas tambm o como se diz. Alm de procurar recriar os efeitos estticos, ele tambm busca a melhor cantabilidade possvel para as palavras em portugus. Esse conceito cantabilidade parece abrir perspectivas minto frteis para o estudo da poesia e da cano. Outro procedimento utilizado por Carlos Renn a transposio para um contexto brasileiro, procedimento que poderia ser denominado transculturao e que poderia, talvez, ser colocado como um outro tipo de traduo, ao lado dos trs tipos identificados por Jakobson: traduo dentro da mesma lngua, de uma lngua para outra e da linguagem verbal para a no verbal ou vice-versa. Entre vrias solues to criativas, cito uma das estrofes da traduo de Carlos Renn para A Picture of Me Without You (1935) (A imagem de mim sem voc), de Cole Porter:
Imagine Kant sem a razo, Imagine Guirnares sem o serto, Imagine Tyson sem um cruzado, Imagine Marylin Monroe sem um pecado, Imagine Kraus sem um desdito, Imagine Dom Pedro sem um grito, Junte tudo isso e a voc tem A imagem de mim sem voc.
O violeiro Paulo Freire junta seus interesses pela msica, especialmente pela viola (acstica, eltrica, de cocho, sem preconceitos), e pela literatura (de Guimares Rosa s letras de Angelino de Oliveira) com o interesse pelo outro, pelo convvio, pelo partilhar de histrias, experincias e emoes. Esse interesse pelo outro faz com que ele veja nos causos todo um imaginrio coletivo, criador de laos entre as pessoas. Essas pontes so criadas tambm pela msica especial do falar, especialmente a musicalidade da fala do caipira. Nesse universo, surgem diferentes interaes entre literatura e msica, alm da msica da fala: os toques de viola, que so um tipo de msica instrumental, que geralmente contam uma histria, o que leva Paulo Freire a falar em arte de transformar causo em msica, alm do estilo falar e cantar, de Raul Torres e Florncio, que declamam um poema e depois seguiam com a msica desenvolvendo o caso contado no poema. Na tradio popular, as interaes entre literatura e msica fazem parte de manifestaes culturais formadas por um conjunto complexo de artes em que os limites entre artista e pblico no so rgidos. Na prosa gostosa de Paulo, o leitor introduzido nas tradies da Folia de Reis. Tradies que tm suas regras e suas surpresas, como o leitor ver. A jornalista e pesquisadora Maria Alice Amorim fala sobre uma das vrias manifestaes da literatura oral: a poesia improvisada, especialmente a de repentistas e a de mestres de maracatu rural. Embora improvisada, a poesia segue certos padres de organizao estrfica, rtmica e rmica, configurando mais de setenta gneros poticos, dos quais cerca de cinqenta encontram-se em uso. Graas a uma farta bibliografia, que oferece uma perspectiva histrica, alm de pesquisa de campo, o ensaio traz vrios exemplos dessa diversidade. A literatura popular no esttica, afirma Maria Alice. Isso fica plenamente documentado por sua referncia organizao de congressos, lanamentos de CDs, etc.
Outro ponto a destacar a mudana no perfil cultural dos criadores, que tanto podem ter pouca escolaridade como ser ps-graduados. A nomenclatura popular diferente da erudita a estrofe, por exemplo, denominada verso; o verso, linha ou p , podendo criar certo estranhamento. H denominaes saborosas, como quadro, para oitava. Aprendemos que o repentista tem que ter baio e sonora. Baio refere-se ao toque de viola e, assim, ao talento como instrumentista, enquanto sonora refere-se voz. Embora rapidamente, Maria Alice tambm fala sobre a formao do repentista e da presena feminina, completando o quadro sobre manifestaes tradicionais to ricas, ainda to atuantes e com grande receptividade seria melhor dizer particzao do pblico. Da passamos ao rap. O rap um gnero musical, um tipo de cano, mais do que uma poesia para ser cantada, uma poesia para ser declamada, com nfase no ritmo e com acompanhamento musical. Isso est sugerido no termo rap, abreviatura de rhjthm and poetrj, ritmo e poesia. O rap um dos elementos de uma manifestao cultural mais ampla, o hiphop, cultura de rua constituda por uma msica (rap), uma dana (break), uma manifestao visual (grafite) e dois atores indispensveis: o DJ e o MC. Os nomes e as siglas j sugerem a origem norte-americana. Manifestao de resistncia cultural e de protesto, em sua origem, vai ganhando outras funes, ao espalharse pelo mundo. Na Frana, por exemplo, assume um carter mais literrio. No Brasil, so ainda bastante recentes os estudos sobre o rap. A jornalista Janaina Rocha vale-se de pesquisas realizadas por ela mesma para a elaborao de livro e de vdeo, alm do referencial da teoria literria que ela busca em Antonio Candido eJonathan Cuiler. Em Candido, ela se apropria do conceito de sistema literrio composto pela trade autor-obra-pblico formando uma tradio para procurar entender a produo, circulao e recepo do rap, sem esquecer que ele uma espcie de subsistema dentro da indstria cultural. Como lembra Bosi, citado por Janaina, na sociedade capitalista avanada, no h nenhuma obra que, publicada, se possa dizer inteiramente marginal. Cuiler fornece a Janama elementos para refletir sobre alguns aspectos bastante caractersticos do rap, como a reciclagem musical, fenmeno que tem sua contraparte literria na intertextua/idade. No processo de legitimao e reconhecimento do rap no Brasil, Janaina destaca a publicao Literatura marginal, organizada por Ferrz, que rene escritores, rappers e grafiteiros. O Manifesto de abertura, assinado p or Ferrz, com referncias a Joo Antnio e ao cordel, serve para Janaina mostrar a construo das imagens de literatura marginal e de literatura popular, visando construo de uma tradio e buscando reconhecimento. Ela tambm estabelece uma aproximao com um texto fundamental para se compreender a potica de Joo Antnio, Corpo -a-corpo com a vida. Sem dvida uma aproximao que oferece pistas muito ricas para a compreenso da potica do rap. Os ensaios aqui reunidos so resultado de cinco minicursos oferecidos no Ita Cultural, em So Paulo, em julho de 2002. Esses cursos fazem parte de uma srie, iniciada em 1999, que j resultou em trs livros publicados em co-edio com a Editora Senac So Paulo: Rumos da crtica, Outras leituras e Literatura, cinema e te/ento. O livro Literatura e msica reafirma a crena de que os estudos literrios podem se enriquecer com abordagens feitas por profissionais de outros campos do conhecimento, como os aqui reunidos, alm da necessidade de se abordar as relaes da literatura com outras artes e mdias, em um momento em que so tantas e to Intensas essas interaes. O pblico grego e o medieval tinham e o nordestino ainda tem uma recepo oral, mas tambm visual e presencial, pois tratava-se ou ainda se trata de ouvir e ver o rapsodo, jogral ou repentista diante de si. Hoje, obras, personagens e temas literrios apresentam-se
freqentemente em meios audiovisuais e eletrnicos. A audio e a viso parecem, assim, preceder a leitura, O que no significa, obviamen te, uma morte da leitura, mas uma alterao significativa em sua natureza. Outro ponto a destacar na alterao da natureza da leitura a multiplicao de sites literrios, especialmente em lingua inglesa, com transcries de obras literrias geralmente de domnio pblico , inclusive em verses fac-similares, sites de pesquisa, que permitem a comparao de textos originais, diferentes tradues e recriaes (como as fbulas de Esopo, recriadas por Fedro, La Fontaine, etc.). Literatura e msica abre, assim, uma janela sobre uma vasta paisagem. Sua leitura certamente amplia nosso hori2onte de expectativas em relao ao texto literrio, ao mesmo tempo que amplia nosso conceito de literatura, ao mostrar as interaes do literrio com outros sistemas culturais. Sua releitura e a conseqente familiaridade com os vrios conceitos aqui expostos modificam nosso modo de ler e de ouvir, a comear por uma percepo mais acurada do estrato sonoro dos textos, abrindo-se, em seguida, para as vrias interaes entre literatura e msica aqui abordadas. Lus Camargo Coordenador dos cursos que deram origem a este livro
longa e venervel a histria das relaes entre a msica e a literatura, objeto de estudo da melopotica (do grego, meios = canto + potica), sugestiva designao cunhada por Steven Paul Scher para essa disciplina indisciplinada. Filiada antiga tradio que associa a literatura e as outras artes, remonta citao, feita por Plutarco 1, de uma afirmao atribuida a Simnides de Ceos, que, cerca de quinhentos anos antes de Cristo, referia-se poesia como pintura falante e pintura como poesia muda. Para a arquitetura, podemos acrescentar a expresso msica congelada, usada por Goethe e por Schelling. Ut pictura poesis (A poesia deve ser como um quadro), verso inicial da Arte potica de Horcio, retoma a analogia de Ceos, passando a nomear emblematicamente a linha crtica voltada para as referncias mtuas entre as artes. Inserida nessa tradio, a melopotica afrrma-se gradativamente a partir do sculo XVI, at atingir, em nossos dias, o prestigio que lhe conferem a literatura comparada e a inclinao ps-moderna pela fuso entre os vrios sistemas artsticos. O estudo da contribuio da musicologia para as anlises interdisciplinares encontra adeptos ilustres no sculo XX. Lvi-Strauss2 aponta na teoria musical, ou, mais precisamente, na concepo de acordes proposta por Rameau, uma precursora da anlise estrutural nas cincias humanas, alcanando tambm a literatura. Uma incurso nesse terreno, que poderamos denominar ulmusica joesis, conduz a questes tericas muito gerais, como a fundamentao para as ligaes entre as artes e os contrastes entre as respectivas linguagens. Nesse sentido, perguntas instigantes, formuladas atravs dos tempos, vm sendo retomadas por tericos contemporneos como Eugne Souriau, Steven Paul Scher, Calvin Brown, Susanne Langer, Michel Butor, Roland Barthes, Nancy Anne Cluck, Ulrich Weisstein, L. e H. Rice-Sayre, Jon de Green e, no Brasil, Mrio de Andrade, Jos Miguel Wisnik e outros. De modos diversos, voltam baila antigas indagaes. Como justificar a prtica ininterrupta das leituras intersemiticas? Haveria uma vinculao essencial entre as artes, testemunhada pelo registro histrico, sugerindo um passado remoto, quando dana, canto e poesia constituiriam uma obra de arte global, ainda testemunhadas, nos dias de hoje, pela inseparabilidade entre msica, dana e poesia em culturas da oralidade? Outra hiptese, endossada por Robert Jourdain, prope que a possibilidade de aproximaes interartes repousa numa fundamental unidade emprico-psicolgica, origem do entrelaamento, no crebro humano, de diferentes percepes sensrias e estticas. Susanne Langer oferece mais uma explicao, implcita nas anlises comparativas, para a essencial unidade dos vrios sistemas artsticos. Segundo a filsofa, cada arte projeta uma viso particular da experincia, uma apario primria, que pode se manifestar secundariamente em outro sistema, possibilitando os paralelos entre eles. No caso da msica e da literatura, a aproximao seria ainda mais justificada, j que, alm de partilharem o mesmo material bsico o som , ambas tm o tempo virtual como sua apario primria. Trilhando outro caminho, a anlise semiolgica representada por JeanLouis Scheffer, Louis Marin, Michel Butor e Roland Barthes, entre outros, postula que todo objeto artstico constitui um texto, convidando a uma leitura, ou seja, a uma
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Plutarco, Were the Athenians More Famous in War or in Wisdom, em Plutarchs Moralia, trad. Frank Cole Babbitt, vol. 4 (Cambridge/Londres: Harvard University Press. Heinemann, 1972), p. 501 2 Claude Lvi-Strauss, Olhar, escutar, ler (So Paulo: Cia. das Letras, 1993), p. 35
interpretao vazada em linguagem verbal. Mediando a recepo de todas as criaes artisticas, a verbalizao, consciente ou no, justificaria as anlises intertextuais. Valida-se, assirri, a perspectiva semitica, que toma as artes como diferentes tipos de linguagem, interligados por equivalncias estruturais as chamadas homologias confluentes no contexto social. Oferecendo denominadores comuns para sua abordagem, as homologias aproximam as artes, incluindo, evidentemente, literatura e msica. Trabalhando o mesmo tipo de material blocos sonoros em movimento, embora de diferente qualidade acstica , as duas artes englobam sistemas sgnicos rivais. Dentro dessa concepo, a msica, segundo Langer, constitui um sistema de signos sui generis, integrado por simbolos noconsumados, j que lhes falta o elemento referencial, de alguma forma presente na linguagem verb ai. Discusses tericas como essas so complementadas pela crtica e historiografla literrias. Em tempos relativamente recentes, o florescimento do romantismo e do simbolismo destaca momentos cruciais para o entrelaamento de literatura e msica, evidente no interesse dos romnticos pelas relaes entre as artes em geral. A data aproximada de 1800 assinala o auge do clima em que crticos e artistas afirmam, simultaneamente, a supremacia da criao esttica na hierarquia das realizaes humanas. Sinestesia a palavra de ordem de muitos desses romnticos, partindo do famoso conceito de arquitetura como msica congelada, citado por Schelling 3 em suas conferncias de Jena-Wrsburg sobre a filosofia da arte. Crticos e artistas utilizam noes metafricas como msica verbal, pintura tonal, orquestrao de cores e planos sonoros, visando anulao das fronteiras entre a pintura, a poesia e a msica. Expande se, assim, a conhecida literatizao da pintura e da msica durante todo o sculo XIX, ao lado do destaque concedido s artes visuais por Ludwig Tieck, E. T. A. Hoffmann e pelos pr-rafaelitas. No se restringindo a motivos e temas, o impacto da msica sobre a literatura mais profundo e abrangente que o das artes plsticas. As qualidades acsticas de slabas, palavras e frases, as propriedades sonoras de locues verbais passam a ser cada vez mais apreciadas como fenmenos essencialmente musicais. O que os romnticos iniciaram os simbolistas terminaram, comenta Edmund Wilson. Emular o carter indefinido da msica tornou-se um dos principais objetivos do novo movimento. Wilson menciona o formidvel impacto da teoria e da msica de Wagner sobre os simbolistas, bem como o pronunciamento de Poe sobre o carter vago da verdadeira msica da poesia. A obsesso pela instrumentalizao sonora faz-se presente em Verlaine e em Ren Ghil; a partitura musical e espacializada comparece no texto analgico de Mallarm, sem esquecer o que o crtico brasileiro Antonio Manoel 4, em importante estudo sobre a msica na potica de Mrio de Andrade 5, denomina a vidncia rfica de Rimbaud. Na Alemanha, a tripla constelao constituda por Schopenhauer, Difundidas na Europa por Mme. de Stel e por Byron, as conferncias s foram publicadas pela Wagner e Nietzsche introduz a preocupao com a msica na formulao de sua teoria crtica e metafsica. Wagner pode no ter obtido o sucesso desejado na criao da Gesamtkunstwerk, a obra de arte total, mas conseguiu tornar mais aceitvel a tese, de Schopenhauer, para quem a msica constitui a expresso imediata da vontade. Friedrich Schler tambm interessou-se pelo carter musical da poesia. Suas consideraes envolvem trs tpicos: o aspecto meramente sonoro do texto, a questo da msica como expresso
Germanic Review, n 19, Nova York, 1944, pp. 284-308. Edmund Wilson, Axes Caste (Nova York: Charles Scribners Sons, 1943), p. 13. 4 Antonio Manoel, A msica na primeira potica de Mrio de Andrade, em Carlos Daghlian (org.) 5 Poesia e msica, Coleo Debates, n 195 (So Paulo: Perspectiva, 1985), p. 18. 20
direta, imediata e exclusiva da emoo, e a ordenao artstica da sucesso temporal na criao literria e musical6. De um modo geral, as associaes invocadas pelos poetas simbolistas dizem respeito maneira pela qual a msica, em sua preciso formal, afeta o ouvinte: como experincia imanente, transfiguradora, recepo sensria difcil de identificar com uma idia ou emoo precisa. Em termos tcnicos, a insistncia dos simbolistas sobre a hesitao entre o som e o sentido na produo potica, resumida pela fra se de Verlaine, de la musique avant toute chose, traduz-se principalmente na explorao de estruturas fonmicas e tonais. A Chanson grise do poeta francs inspirou um vasto nmero de poemas visando a efeitos de instrumentos musicais, da flauta de Mallarm em Laprs-midi dinfame a harpas, clarins, sinos e guitarras, cada um com seu timbre particular. Por volta de 1895, busca-se estabelecer uma conveno de simbolos e poesia lrica simulando efeitos musicais. Ren Ghil, freqentador do circulo de Mallarm, chega a redigir um ensaio terico, Le trait dii verbe, buscando uma base cientfica para a correlao entre som instrumental e combinaes sonoras na poesia. Outros, como Gustavo Kahn, concentram-se na versificao, visando a liberar a prosdia francesa da tirania secular do alexandrino7. De certa forma, a proposta sirnbolista enfatiza aquilo que, em maior ou menor grau, sempre esteve presente na poesia de todos os tempos: a explorao de recursos fnicos e acsticos. Prprios da linguagem verbal e da musical, explicam a milenar proximidade entre literatura e msica, artes irms, geradas pelo enlace entre som e dimenso temporal. No estrato sonoro da literatura, destacam-se imagens acsticas como assonncia, consonncia, aliterao, onomatopia, variaes tmbricas e distribuies fonemticas, alm de elementos relacionais, essncia do ritmo e da mtrica, que incluem acentuao tnica, rima, enjambement e pausas expressivas8. A sonoridade destacada na linguagem potica no se restringe, evidentemente, vaga musicalidade de romnticos e simbolistas. Prolongando-se na modernidade, faz pensar tambm naquilo que W. K. Winsatt chama de orquestrao verbal ou relao homofnica9, mais audvel, imediata e ntida. No Brasil, a relao entre literatura e msica exemplarmente ilustrada pela poesia de Manuel Bandeira, o mais musical de nossos poetas do sculo XX, autor de Os sapos, hino oficial do modernismo, notvel pelo apelo de seu estrato fnico. No fica atrs o jogo de assonncias, consonncias e aliteraes de Berimbau, em O ritmo dissoluto:
Os aguaps dos aguaais Nos igaps dos Japuts
Cf. H. A. Basilius, Thomas Manns Use 01 Musical Structure and Techniques in Tonio Krger, em Nancy Anne Cluck, Literature and Music: Essays on Form (Provo: Brigham Young University Press, 1981), pp. 153-174. 7 Ver a respeito AIex Preminger et ai., Symbolism, em The New Princetori Encyclopedia of Poetry and Poetics, edio de Earl Miner (Princeton: Princeton University Press, 1993), pp. 1256-1257. 8 Ver Maria Luza Ramos, O estrato tnico, em Fenomenologia da obra literria (38 ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitria, 1974), pp. 38-57. 9 Ct. Franklin de Oliveira, Nota preliminar, em Manuel Bandeira, Poesia completa e prosa (4 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986), p 30.
Bolem, bolem, bolem. Chama o saci: Si si si si! Ui ui ui ui iii! uiva a Iara A mameluca uma maluca. Saiu sozinha da maloca. Como negar a musicalidade dominante no poema? Mais que o sentido, a msica das palavras puxa a linha do verso, fazendo que a dimenso semntica brote, como Vnus das ondas, do borbulhar sonoro. Coerente com o predomnio do estrato acstico sobre o semntico, o texto inteiro reverbera com a explorao de assonncias, consonncias e aliteraes estrategicamente situadas. O chamado do saci evoca a ltima nota da escala de d. A interjeio ui! gera a forma verbal uiva. O adjetivo maluca nasce do nome mameluca, que o contm, denunciando o jogo de palavra puxa palavra, que Me lquior surpreende na poesia de Drummond e que perpassa todo o poema de Bandeira10. Ao fim e ao cabo, que toda essa pirotecnia sonora contribua para evocar a paisagem da Amaznia, com suas figuras lendrias, parece esse um dos segredos da grande arte resultar da mgica mo do acaso, celebrada pelo soneto de Keats11. Do ponto de vista da melopotica, sobram razes para lembrar a obra de Bandeira. Como vimos, a explorao da musicalidade intrnseca linguagem verbal, de suas propriedades sonoras e rtmicas, visando a um efeito conativo-afetivo semelhante ao da obra musical, exemplarmente ilustrada por sua potica. Ademais, o poeta demonstrava amar e estudar a msica, tendo contribudo com resenhas crticas de concertos para a revista Idia Ilustrada, editada por Lus Anbal Falco. Seu Itinerrio de Pasrgada volta repetidas vezes ao tema do vnculo essencial entre a linguagem potica e a musicalidade 12. Falando da influncia da msica sobre sua arte, discute o efeito encantatrio e a atrao exercida por certas palavras, cuja funo no texto , no raro, puramente musical. Menciona os valores plsticos e musicais dos fonemas, creditando a efeitos meldicos a peculiar sensao de surpresa criada pela boa rima. Pensando, certamente, no emprego musical de tema e variao, o poeta atribu msica, e no imitao de qualquer modelo literrio, a repetio de um ou dois versos, s vezes de uma estrofe inteira, em muitos poemas de A cinta das horas e de Carnaval. Informa que, poca da publicao do primeiro, estava to impregnado dos lieder de Schubert que quase usou como epgrafe a frase inicial do itied Der Leiermann. Sobre Carnaval, Bandeira acrescenta que, lembrando o famoso Opus 9 de Schumann, imaginou fazer algo do mesmo gnero em poesia, ou seja, combinar ritmos diferentes. No poema Evocao do Recife, destaca a inteno musical no uso das duas formas Capiberibe Capibaribe: a primeira vez com e, e a segunda com a, me dava a impresso de um acidente, como se a palavra fosse uma frase meldica dita na segunda vez com bemol na terceira nota. De igual modo, em Neologismo, o verso Teadoro, Teodora leva a mesma inteno, mais do que de jogo verbal. Bandeira vivenciou ainda outros tipos de colaborao com a msica. Muitos dc seus poemas foram escolhidos livremente para ser musicados; alguns, como Trem de ferro, Berimbau, Azulo e Dentro da noite, vrias vezes, por diferentes compositores. Jaime Ovaile e Vila-Lobos tambm ofereceram melodias para que Bandeira compusesse o texto. Citando as consideraes de crticos musicais sobre a marcada preferncia por seus poemas como
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Manuel Bandeira, O ritmo dissoluto, em Poesia completa e prosa, cit., p. 196. When 1 have fears that 1 may cease to be[...] And think that 1 may never live to trace Their shadows, with the magic hand of chance, John Keats, em Arthur Quilter-Couch (org.), The Oxford Book of English Verse 1250-1900 (Nova York: Bartleby.com, 1999), soneto de 1818. 12 12 Manuel Bandeira, Itinerrio de Pasrgada, em Poesia completa e prosa, cit., pp. 33-111; em especial pp. 34, 41, 42, 45, 50-53, 56-57, 68-74 e 85.
letras para canes, Bandeira discute a relao entre a musicalidade possvel na poesia e a msica propriamente dita, cuja acstica especfica no pode ser reproduzida pela linguagem verbal: paradoxalmente, um fosso intransponvel convive com as afinidades entre literatura e msica. Nesse sentido, a teorizao de Itinerrio de Pasrgada, bem como a composio dos poemas citados, concentra-se num tipo de relao que Steven Paul Scher, tratando da dimenso musical embutida na literatura, chama de msica de palavras. Na tipologia qu e prope para o estudo da melopotica, Scher define msica de palavras como a imitao, pela linguagem verbal, da qualidade acstica de sons musicais exemplificada pela onomatopia. Na poesia brasileira, para exemplificar essa imitao, escolho a ldica explorao do estrato fnico na poesia de Bandeira. A msica de palavras, segundo Scher, contrasta com a imitao de estruturas e tcnicas musicais no texto literrio, e tambm com msica verbal, equivalente literrio de partituras existentes ou imagin rias, constitudo pela apresentao literria (em poesia ou prosa), de composies musicais, reais ou fictcias13. A construo semelhante empregada na composio musical tambm se faz representar na obra de Bandeira. Mestre na criao de msica de palavras, Bandeira recorre a modelos musicais para a estruturao de alguns de seus poemas, particularmente tcnica denominada tema e variao, constante na maioria das formas musicais, como tambm na poesia e at na prosa. Na fico, a tcnica chega a ser explicitada no ttulo de Missa do galo, variaes sobre o mesmo tema, srie de reescritas do conto de Machado de Assis por seis autores contemporneos14. No por acaso, Tema e variaes precisamente o nome de um poema de Bandeira em Opus 10, outro ttulo claramente indicativo de inspirao musical:
Sonhei ter sonhado Que havia sonhado. Em sonho lembrei-me De um sonho passado O de ter sonhado Que estava sonhando Sonhei ter sonhado Ter sonhado o qu? Estar com voc. Estar? Ter estado, Que tempo passado. Um sonho presente Um dia sonhei. Chorei de repente, Que vi, despertado Que tinha sonhado.15
O ncleo semntico do poema o paradoxal sentimento de simultnea perda e preservao de uma experincia passada, cuja veracidade questionada pela persona lrica introduzido por uma espcie de mote constitudo pela linha inicial, Sonhei ter sonhado. Esse verso, instituindo-se como um tema semelhante ao de composio musical, sofre uma srie de acrscimos e reformulaes, que constituem as
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Cf. Steven Paul Scher, Literature and Music, em Jean-Pierre Barricelil, Interrelations ofLiferature, edio de Joseph Gibaldi (Nova York: MLA, 1982), pp. 225-250. 14 Reescrevem o conto Antnio Caliado, Autran Dourado, Julieta de Godoy Ladeira, Lygia Fagundes TelIes, Nlida Pion e Osman Lins (So Paulo: Summus, 1977). 15 Manuel Bandeira, OPUS 10, em Poesia completa e prosa, cit., pp. 298-299.
variaes. Elas surgem inicial- mente nas doze linhas que contm uma forma cognata de sonhei, primeira palavra do poema. A variao consiste geralmente na mudana do tempo verbal ou do significado da palavra-chave tempo. Dos cinco versos restantes, dois ligam-se gramaticalmente aos anteriores por conter igualmente uma variao de forma verbal (Estar com voc. /Estar? Ter estado), enquanto outro verso (Que tempo passado) gera um trocadilho com os dois sentidos da expresso tempo passado: o sentido gramatical de forma verbal pretrita e a significao genrica de espao cronolgico anterior ao momento atual. Remetendo tambm ao duplo sentido, o gramatical e o cronolgico, da palavra presente, o verso Um sonho presente resume a perfeita integrao do conjunto forma-contedo que constitui o texto. Ficam assim enfatizadas tanto a natureza evanescente da temporalidade como a dvida sobre a possibilidade de se recuperar, pela memria, a experincia humana, condicionada por essa temporalidade. A temtica da vida como mltiplo questionamento da realidade srie de sonhos dentro de outros sonhos emerge da tcnica utilizada. Como outro exemplo da utilizao de tema e variao na literatura brasileira, cito Drama de Brbara Heliodora. Esse poema de Henriqueta Lisboa em Madrinha lua expande, com inmeras variaes, um tema constitudo por versos de Alvarenga Peixoto, que descrevem e comentam os destinos da esposa e da filha do inconfidente:
Brbara bela do norte estrela que o meu destino sabes guiar. Quem que assim canta como quem est chorando? Suas faces encovaram, seus olhos se amorteceram, sobre seus cabelos negros cai uma chuva de cinza. Ah! E havia tanta brasa em torno de seus cabelos, tanto sol na sua ilharga, tanto ouro nas suas minas, tanto potro galopando Em suas terras sem fim. [...] Tu entre os braos temos abraos da filha amada podes gozar. [...] deveras a Princesa do Brasil, essa menina de madeixas escorridas, de lbios esmaecidos, de tnica mal vestida? Essa, a mesma por quem vinham da Corte os melhores mestres de dana e lngua estrangeira? A de damascos e aurolas a quem brotavam nos dedos tbios ramos de coral? [...]16
16
Henriqueta Lisboa, Madrinha lua, em Obras completas (So Paulo: Duas Cidades, 1985), pp. 211-214.
Com procedimentos to inequvocos, Bandeira e Henriqueta tinham certamente em vista o significado tcnico dos termos tema e variao. Para a teoria musical, tema a idia musical que serve de ponto de partida para uma composio, como sonata, sinfonia, quarteto de cordas, fuga, ou ainda as chamadas formas variacionais, a chacona, a passaca,g/ia e o basso ostinato, enquanto a variao consiste na reiterao do tema, com alguma alterao, de qualquer natureza, incluindo ritmo, tonalidade, acompanhamento, orquestrao, etc17. Os conceitos de tema e variao, bsicos para a teoria musical, tm sido amplamente utilizados tambm na anlise literria. Calvin Brown defme a variao como uma verso do tema, coerentemente reconhecvel como tal18. No entender de Brown, o uso de tema e seu reaparecimento nas variaes tm a mesma importncia para a literatura e para a msica: toda mtrica depende de repetio e variao, embora, na literatura, a repetio exija mais cautela. Um poema de mtrica totalmente regular seria to mortalmente cansativo como uma composio musical em tempo quaternrio com quatro semnimas em cada compasso. Brown enumera outras dificuldades inerentes ao uso de tema e variao na literatura, que no pode duplicar totalmente o modelo musical. H problemas tcnicos, como a extenso do tema e das variaes. Na msica, o compositor usa muitas vezes o que os elisabetanos chamavam de divises: o compasso bsico se divide em notas de duraes decrescentes, como no Andante da Quinta sinfonia de Beethoven. O recurso no pode ser utilizado na poesia, em que a velocidade das sila A teoria musical distingue diferentes tipos de variaes, tais como variaes seccionais e variaes contnuas. A variao pode ocorrer na harmonia, na melodia, em ambas, ou, composies modernas, de modo inteiramente livre, podendo at chegar a dificultar o reconhecimento dos contornos estruturais do tema. Slabas variam muito menos que a das notas musicais e escapa inteiramente ao controle do poeta. Ademais, se as variaes literrias se afastarem muito do tema, no sero reconhecidas pelo leitor: muito mais fcil lembrar um elemento musical, como a melodia, que a letra de uma cano. O escritor enfrenta ainda outro problema: cada variao deve atingir um efeito de novidade, pois a redundncia, prazerosa na msica, dificilmente o ser na literatura. Para evit-la, os poetas recorrem a artifcios prprios, como variar a imagem usada ou, no caso de mant-la, sugerir uma interpretao diferente a cada vez que uma imagem reaparece. O emprego de tema e variaes, conhecido desde o sculo XVIII, persiste nos sculos XIX e XX, em iniciativas independentes, geralmente de poetas menores. Brown aponta possibilidades diversas exploradas na literatura (algumas raramente usadas): variao de mtrica, de tom, de ponto de vista, ou na estrutura sonora global. Exemplifica o uso de variaes na fico com Une page darnour, de Zola, esclarecendo que o paralelo no exato, pois as variaes no aparecem em seqncia, como no tema e variaes musicais, mas distribudas igualmente por todo o texto. O romance dividido em cinco partes, todas com cinco sees. Cada parte se encerra com um captulo de dez a doze pginas caracterizado pela descrio de uma vista de Paris. As cinco descries funcionam como cinco variaes de um mesmo tema: so descritos sempre os mesmos monumentos, mas vistos sob iluminaes diferentes e em diferentes meses do ano. Curiosamente, os textos surgem cerca de vinte anos antes que Monet pintasse suas Catedrais, sries de representaes da catedral de Rouen vista em circunstncias diferentes e sob condies variveis de luz. Zola antecipa assim, em forma literria, a prtica do pintor, exemplificada tambm pelas diferentes verses de seus Montes defino e de Nernfares.
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Cf. Willi Apel, Harvard Dictionary of Music (Cambridge: Harvard University Press, 1972), pp. 843 e 892. Calvin Brown, Theme and Variations as a Literary Form, em Nancy Anne Cluck, Literature and Music: Essays on Form, cit, pp. 70-82.
A tcnica de tema e variao, entendida como uma repetio mais ou menos alterada de material j conhecido, faz-se presente em quase todos os gneros musicais, ensejando a criao de formas como passacaglia, rapsdia, contraponto e fuga. Tambm para essas formas existem equivalentes literrios. Em A morte em Venea, novela de Thomas Mann na obra desse autor o elemento musical to importante que s o romance Doutor Fausto j inspirou mais de mil trabalhos na linha da melopotica , Vernon Venable aponta o equivalente literrio de uma passacaglia, que integra uma variao continuamente repetida, identificada, na narrativa de Mann, com o motivo da morte19. Outros trabalhos investigam a possibilidade de transposio literria do contraponto no qual duas ou mais linhas meldicas soam simultaneamente e de sua forma mais desenvolvida, a fuga. Nem todos os crticos concordam com a possibilidade de emulao literria desse tipo de criao musical. H. A. Basilius traz baila a objeo de Reginald Peacock: a imitao exata do contraponto impossvel na literatura, cuja linguagem, forosamente Imear, incapaz de fazer soar ao mesmo tempo dois pontos contrastantes, como na polifonia e no contraponto musical. No Brasil, Mrio de Andrade tenta, sem muito sucesso, enxergar a simultaneidade, ou combinao harmnica, exigida pelo contraponto, em frases de natureza nominal, semanticamente disjuntivas e sucessivamente apostas sem formas nexivas20. Basilius vai mais longe. Alega que a expressividade musical contrapontstica pode ser obtida na literatura por meio de temas contrastantes, mesmo que dispostos em forma seqencial. Argumentando no mesmo sentido, Jean-Louis Cupers acrescenta que o contraponto literrio no contempla, evidentemente, a simultaneidade sonora de vrias partes, mas o jogo temtico, acompanhando, ao mesmo tempo, a articulao sinttica do texto e os jogos metafricos que comandam sua decodificao. Afirma-se, assim, na literatura, uma estranha presena/ausncia da arte irm 21. Numa linha semelhante, William Freedman analisa o romance de Laurence Sterne, Tristram Shandj, como uma forma de contraponto literrio, que antecipa, em quase dois sculos, a musicalizao da fico espetacularmente tentada por Aldous Huxley no romance musical Point Counter Point (Contraponto), de 1928, e reiterada em Themes and Variations, de 195022. No Brasil, estudos comparveis ao de Freedman contemplam obras construdas semelhana de tema e variaes, que podem ser associados a formas como fuga e contraponto, mas tambm a construes mais livres, como a rapsdia. Destaco duas anlises do romance Macunama, de Mrio de Andrade, cujo subttulo exatamente uma rapsdia. Em edio crtica do texto, Tel Porto Ancona Lopez menciona brevemente sua construo musical, remetendo a observaes de Mrio sobre a questo 23. Em O tupi e o alade, analisando o mesmo romance, Gilda de Meio e Souza demonstra minuciosamente a transposio para Macunama de duas formas bsicas da msica ocidental, comuns criao erudita e popular: o princpio rapsdico da sute e o princpio da variao, este ltimo presente, de modo muito peculiar, no improviso do cantador nordestino. Meio e Souza estuda longamente a utilizao, por Mrio de Andrade, do processo da sute a tcnica de construir recheando o ncleo bsico com temas subsidirios, com vrias peas de forma
19 20
Cf. H. A. Basilius, Thomas Manns Use to Musical Structure and Techniques in Tonio Krger, cit. Antonio Manoel, A msica na primeira potica de Mrio de Andrade, cit., p. 31. 21 Ver a respeito Jean-Louis Cupers, Euterpe et Harpocrate ou/e dfi Iittraire dela musique: aspects mthodologiques de lapproche musico-littraire (Bruxelas: Publications des Facults Universitaires Saint-Louis, 1988), pp. 63-64. 22 Cf. William Freedman, Tristam Shandy: the Art ot Literary Counterpoint, em Nancy Anne Cluck, Literature and Music: Essays on Form, cit. pp. 26-35. 23 Tel Porto Ancona Lopez, Rapsdia e resistncia, em Mrio de Andrade, Macunama, o heri sem nenhum carter, edio crtica coordenada por TeI Porto Ancona Lopez, Coleo Arquivos (Florianpolis: UFSC, 1988), pp. 266-277.
e carter distintos24, nas personagens e na dubiedade das aes. Silviano Santiago que tambm cita o trabalho de Meio e Souza faz uma anlise semelhante de Clarissa, demostrando que, como Macunama, o romance de Erico Verssimo exibe uma estrutura musical equivalente da rapsdia, visando a combinar em harmonia elementos hetercitos, de tal forma que exista uma composio do todo que no seja mero produto de acmulo25. Como modelo ou analogia para a estruturao do texto verbal, nenhuma forma musical se compara, entretanto, sonata, se considerarmos o nmero e o alcance dos trabalhos que tem inspirado. Constituindo, talvez, a mais importante das configuraes musicais eruditas, tem sido usada continuamente desde Haydn e Mozart, embora, a partir de 1900, venha recebendo um tratamento cada vez mais livre. Antes de abordar sua relao com a obra literria, preciso lembrar que o termo sonata pode referir -se a composies complexas para um nico instrumento como uma sonata para piano, geralmente com trs movimentos , mas tambm a uma forma de construo tpica do primeiro movimento de composio complexa, como, por exemplo, uma sinfonia. Nesse ltimo sentido, que o que aqui interessa, a sonata tambm chamada de forma sonata ou forma de primeiro movimento. Em sua estruturao clssica, consiste em uma introduo opcional, uma exposio de material bsico, um desenvolvimento desse material e uma recapitulao, ocasionalmente seguida por uma corda26. Para alguns musiclogos, a principal caracterstica da forma sonata a presena, na exposio, de dois temas contrastantes. No desenvolvimento, os dois temas entram em conflito, sendo retrabalhados para que criem uma tenso, que resolvida na recapitulao. Para outros tericos, a questo central o conflito, no de temas, mas entre reas tonais. Consciente ou inconscientemente, romancistas e poetas tm- se deixado seduzir pela forma sonata representao musical de um mundo inparvo, um microcosmo, que projeta a impresso de um todo perfeitamente integrado27. Bandeira, includo entre os seduzidos, narra o resultado de sua tentativa de como um poema modelado na forma sonata poema que, insatisfeito, destruiu28. Entre os crticos brasileiros, Maria Luza Ramos aponta em Mara, de Darci Ribeiro, uma estruturao modelada na forma sonata. Segundo a autora, o romance desenvolve dois temas a cultura indgena e a chamada civilizao contrapostos por tonalidades distintas. Diferenciando-se do contexto indgena, o contexto civilizado marcado por um discurso referencial, pontuado, s vezes, por cichs burocrticos do registro policial. Nesse discurso, diz a autora: [...] no h lugar para a reflexo, pois o que importa informar, devendo, pois, a linguagem acompanhar a rapidez com que se sucedem os fatos. Por outro lado, espelhando logo depois a atemporalidade do mundo mtico, que caracteriza o segundo tema, o discurso lento e potico. As pausas e as freqentes repeties instauram na recursividade da linguagem, voltada sobre si mesma, a densidade dos ritos no mundo fechado das sociedades primitivas. Como se d na forma sonata, h um contraste entre as
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Ver Gilda de Meio e Souza, O tupi e o alade: uma interpretao de Macunama (So Paulo: Duas Cidades, 1979), p. 37; Siviano Santiago, A estrutura musical do romance: o caso Erico Verssimo, em Jlio Csar 25 Machado Pinto & Eneida Maria de Souza (orgs.), Anais do Simpsio de Literatura Comparada, 2, 1986 (Belo Horizonte: UFMG, 1987), pp. 164-165. 26 Sobre as diferentes definies da forma sonata, ver WilIi Apel, Harvard Dictionary of Music, cit: e Peter J. Rabinowitz, Chord and Discourse, em Steven Paul Scher, Music and Text: Critical Inquiries (Cambridge: Cambridge University Press, 1992), pp. 49-51 27 Cf. Arnold Hauser, Histria social da literatura e da arte, trad. Walter H. Geenen, vol. 2 (So Paulo: Mestre Jou, 1982). 28 Manuel Bandeira, Itinerrio de Pasrgada, cit., pp. 50-51.
duas linguagens, desde uma diferena tonal at um diversificado tratamento rtmico 29. Ao lado de outros exemplos de estruturao textual semelhante da forma sonata, a literatura brasileira tambm registra a utilizao do que Scher caracteriza como msica verbal ou apresentao literria (em poesia ou prosa) de composies musicais, reais ou fictcias. Alm de equivalentes verbais de partituras reais ou imaginrias , esses textos podem sugerir uma execuo musical ou uma reao subjetiva do autor in-iplicito ou de uma personagem. Bolero de Ravel, de Drummond, em Sentimento do mundo, ilustra essa msica verbal:
A alma cativa e obcecada enrola-se indefinidamente numa espiral de desejo e melancolia. Infinita, infinitamente... [] Os olhos, magnetizados, escutam e no crculo ardente nossa vida para sempre est presa, est presa... Os tambores abafam a morte do Imperador30.
No se trata, aqui, de imitao sonora, semelhante que se encontra em efeitos fnicos como a onomatopia, a aliterao ou a assonncia. O texto de Drummond corresponde a uma descrio literria da composio de Ravel, criada inicialmente como estudo para orquestrao e ensaio para execuo de crescendo. O tema do Bolero, uma lnguida msica de dana espanhola, constituda por duas melodias entrelaadas, objeto de insistente repetio, enriquecida pela variedade do colorido instrumental. De incio, um tambor estabelece o ritmo, que se afirma inexoravelmente. Contra esse fundo, projeta-se uma melodia, executada por diferentes instrumentos, isolados a princpio, depois em grupos, crescendo em volume e efeitos eletrizantes, at o frentico climax final. O poema constitui uma transcrio potica do efeito desses fatos musicais sobre a sensibilidade do ouvinte inscrito no texto, a persona potica. Os termos enrola-se, espiral e crculo, relativos melodia, assinalam a percepo da dimen5o espacial projetada na temporal, prpria da msia, segundo a acepo de Susanne Langer. O obsessivo contorno meldico interpretado como uma curva, que, desenrolando-se, afasta-se gradativamente de um ponto inicial. O brusco e surdo final parece imitar o som de um tiro, sugerindo a execuo de uma personagem imperial. Como se v, o texto no tenta imitar as caractersticas acsticas da composio, apenas registra a impresso que desperta no eu-lrico. A msica verbal comparece tambm na fico brasileira. Reflexos do baile, de Antnio Caliado, oferece um exemplo muito ilustrativo, representando a reao de Carvalhaes, embaixador portugus em visita a uma escola brasileira, quando por acaso ouve um choro, executado a distncia. O trecho que contm essa msica verbal, alm da aluso a elementos rtmicos, meldicos e compositivos, destaca a percepo dos traos subversivos vislumbrados nessa forma musical, resultante histrica da recriao transgressora de modelos europeus. Eis como a personagem descreve sua audio da msica sedutora, povoada de perigosos, dissolventes anjos:
[...] notas musicais puseram-se a estalar e crepitar como gomos do bambu deitados nas chamas. Uma toada amorosa, cheia de requebros, mas enquadrada em composio sonora de to alarmante rigor que perguntei ao meu descompassado corao se afinal c existem dementes a tentar tudo comear de novo. Franziu o cenho o diretor da escola diante dos perigosos, dissolventes anjos que a msica soltava entre as crianas de uniforme31.
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Maria Luiza Ramos, Mara: leitura/escritura, em Interfaces: literatura, mito, inconsciente, Cognio Belo Horizonte: UFMG, 2000), p. 142. 30 Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do mundo, em Nova reunio: 19 livros de poesia, vol 1 (2 ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1985), p. 74. 31 Antnio Calado, Reflexos do baile (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976), pp. 18-19
No mesmo romance, outro exemplo de msica verbal a descrio do efeito da audio de um choro sobre o narrador assinala mais uma vez a percepo dos elementos revolucionrios dessa criao musical, considerada a matriz mais importante da msica brasileira, em sua deformao irreverente e criativa de modelos europeus: as notas da melodia maldita, que comearam a soar sojigadas, entranhadas nas vsceras do disco como diabos nas dobras e pregas do negro ventre de quem os engendra, voaram em densos rolos pelas janelas da casa, pelas portas da Capela e at pela grimpa assanhada de abetos e choupos. Eram agudos punhais de msica, [...] verrumas amarelas32. Msica de palavras, msica verbal ou estruturao literria inspirada em modelos musicais tipos de incrustao de msica na literatura revelam-se rtulos teis para os interessados na melopotica, mas, evidentemente, no esgotam as mltiplas possibilidades de contribuio da msica para a criao literria. Em Reflexos do baile, as contnuas referncias ao choro, alm de exemplificar a msica verbal, tm tambm um carter emblemtico. A evoluo histrica do choro, gnero transgressor de modelos europeus impostos pela colonizao, torna esse gnero musical uma metfora muito adequada para a postura revolucionria assumida pelas personagens do romance. A transgresso esttica prenuncia, assim, a resistncia politica. O uso metafrico da referncia musical, sem eliminar outras funes possveis, pode, como no texto de Cailado, constituir uma entrada para a leitura. o caso tambm do Lundu do escritor difcil, em A costela do gro co, de Mrio de Andrade:
Eu sou um escritor difcil Que a muita gente enquizila Porm essa culpa fcil De se acabar de uma vez: s tirar a cortina Que entra luz nesta escurez. [] Eu sou um escritor difcil, Porm culpa de quem !... Todo difcil fcil, Abasta a gente saber. Bag, pich, chu, xavi, De to fcil virou fssil, O difcil aprender! [] Voc sabe o francs singe Mas no sabe o que guanba? Pois macaco, seu mano, Que s sabe o que da estranja33.
O ttulo do poema um designador bvio, pista transparente, mas indispensvel para a leitura. Remete definio de lundu, canto e dana populares provavelmente introduzidos por escravos angolanos no Brasil do sculo XVIII. Em 1895, Nina Rodrigues descreve o lundu como dana de pretos, muito indecente, na qual se fazem mil espcies dc movimentos com o corpo34. A referncia forma musical e coreogrfica afro-brasileira aponta diretamente para o carter hbrido da cultura nacional, poderosamente influenciada pelo elemento africano. No texto de Mrio, a voz potica identifica-se com esse elemento, que passa a indicar, metonirnicamente, as vrias etnias que contriburam para a construo da cultura nacional, sobretudo cm suas manifestaes populares. E o que sugere a persona potica, quando convida adoo da fala brasileira,
32 33
Ibid., pp. 129-130. Mrio de Andrade, A costela do gro co, em Poesias completas (53 ed. So Paulo/Belo Horizonte: Martins/ltatiaia, 1980), pp. 242-243. 34 Apud Mrio de Andrade, em OneydaAlvarenga & Flvia Camargo Toni, Dicionrio musical brasileiro (Belo Horzonte: Itatiaia, 1989), p. 291.
com suas variantes regionais, incluindo construes sintticas tpicas do linguajar popular (No carece vestir tanga), pronncias banidas da linguagem culta (ruim, xavi), alm de itens lxicos, cuja origem africana e indigena reflete os diferentes elementos tnicos fundidos na cultura nacional (urubutinga, caipora, gupiara, guariba, angu, caruru). Inseparveis da referncia ao lundu, esses fatores sublinham a proposta nacionalista do modernismo, bem como sua condenao subservincia cultural, responsvel pela admirao acrtica do elemento estrangeiro (Voc sabe o francs singe ) e pela ignorncia do nacional (Mas no sabe o que guariba?). Por constituir um a exceo regra e conhecer e explorar artisticamente a prpria cultura, desconhecida de seus compatriotas, que a voz potica paradoxalmente se confessa um escritor difcil. O conjunto das propostas implicitas no poema constitui, assim, o lundu, simbolicamente executado para o ouvinte implcito no texto: o brasileiro europeizado, indiferente lngua e aos costumes de seu pas. A aluso musical potencializa os vrios constituintes textuais, indispensveis leitura, ilustrando a importncia da imagem musical para os estudos literrios. Remetendo ao contexto cultural, a referncia musical denuncia a dependncia cultural, lembrando que, como a prpria msica, a metfora nela inspirada nunca inocente dos contedos ideolgicos. A referncia a formas musicais pode exercer ainda outras funes, nem sempre rotulveis, dependendo do efeito sobre a sensibilidade do ouvinte. O ttulo Cantiguinha, poema de Drummond em Boitempo 135, alude a composies populares musicadas, com vercurtos, geralmente heptassilabos. Eis o texto:
CANTIGUINHA Era um brinquedo Maria era uma estria Maria [] era uma vez era um dia Maria.
O estrato fnico do texto, comeando pelo ttulo, insiste no fonema /i/, convencionalmente associado aos conceitos de pequenez e de ternura, em razo de sua presena em diminutivos, talvez por ser a vogal /i/ pronunciada com menor abertura da boca que as demais. A idia do pequeno, evocando a do humilde, convm a essa Cantiguinha, celebrao de uma Maria annima, mulher comum, indicada pela minscula, cuja vida, dos jogos infantis maturidade amorosa e morte, simbolicamente rememorada. Com sua insistncia numa mesma construo (Era um..), espcie de rima sinttica, o poema lembra tambm o princpio da repetio, que a msica partilha com a literatura, alm de sugerir efeitos de crescendo e de diminuendo. Evidentemente, esses efeitos dependem da interpretao e da inflexo dadas pela leitura, lembrando a crtica da recepo, segundo a qual cabe ao leitor executar os elementos latentes na composio artstica. A funo exercida pela referncia musical no texto no esgota as questes que interessam melopotica, especialmente em seus aspectos tericos. Pode-se indagar, por exemplo, se o elemento musical resulta sempre de uma inteno consciente do artista. Nesse caso, o fato de um poeta declarar no ser amante da msica eliminaria a presena dela em seu texto? Seria esse o caso de Joo Cabral de Melo Neto? No o que parece. Em primeiro lugar, no h como eliminar o ritmo e os aspectos acsticos, que a composio potica inapelavelmente partilha com a msica. Ademais, a criao de Cabral, inversamente ao que faria supor a propalada indiferena do autor pela msica, revela interesse por ela, como se v em ttulos como Noturno e Cano, p oemas de Pedra do sono. No ltimo, a referncia parece ser cano conceituada como espcie de poesia lrica de estilo refinado,
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Carlos Drummond de Andrade, Boitempo 1, em Nova reunio: 19 livros de poesia., vol. 2, cit., pp. 585-586.
cantada por trovadores, com acompanhamento musical. o que sugerem, alm do ritmo e da melodia, as vagas aluses a uma figura imperial, associada a uma histria trgica, espelhada na emoo do poeta:
CANO Demorada demoradamente nenhuma voz me falou. Eu vi o espectro do rei no sei em que porta ele entrou. [] Mas por detrs da cortina que gesto meu se apagou?36
E que dizer sobre a musicalidade do verso branco? indubitvel que nele, como tambm na prosa, pode haver msica, em qualquer de suas manifestaes literrias msica de palavras, msica verbal, construo modelada em formas musicais, metfora musical, etc. Um poema de Abgar Renault anuncia essa presena j no ttulo, Sofotulafai (referncia emblemtica a uma cidade asitica, equivalente Pasrgada de Bandeira), com a sugesto diagramtica de trs notas musicais: sol, f, l. O texto, longa reflexo filosfica sobre o papel do tempo e da mente na criao do mundo, comea com a sugesto do momento em que, adormecido o poeta e afrouxado o domnio da conscincia sobre a criao literria, libera-se a criao inconsciente, representada por objetos associados escrita livros, lpis, mquina de escrever. Com a recm-adquirida autonomia, esses objetos entregam-se ao fazer potico, usando as armas de seu ofcio: palavras, soberbos significantes, com peso e vida prpria, a princpio indiferentes ao significado. O sentido brota, entretanto, espontaneamente, do pipocar de termos esdrxulos (outrossim, adimplir, pastifcio, radagzio, nenhures, istopos), explodindo, fmalmente, numa srie de aliteraes, at resultar numa rima inusitada, que fere um ponto nevrlgico da sensibilidade do eu-lrico adormecido: a lembrana de Belo Horizonte, cidade vista atravs de um horizonte, onde o poeta viveu sua juventude:
SOFOTULAFAI s vezes temo que, na minha ausncia, as cousas no mais sejam o que so, e o acontecido, quando estou ausente, seja diverso do acontecimento em que, at sem querer e sem saber, a inocente presena do meu ser se misturasse, tal como gua e vento no ar se fundem inconscientemente e criam tempestade e furaco. Abrem-se de repente dicionrios, vocbulos saltando vo em fieiras, e, cleres, ordenam-se em fileiras, e vo compondo versos arbitrrios, palavras setas rpidas, certeiras: Destilo sem o mnimo artifcio e mando a todo aquele que no me ame outrossim, adimplir e pastifcio, Radagzio, nenhures e vexame. Aglimos istopos pulavam os carrilhes unvocos ladravam as noites sob as luas caminhavam
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Joo Cabral de Melo Neto, Pedra do sono, em Marly de Oliveira (org.), Obra completa (Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994), p. 47.
as aliteraes levavam lmpada para alumiar a antiga estampa da cidade vista atrs de um horizonte37.
O territrio comum entre msica e literatura parece, assim, inesgotvel. Poderamos considerar ainda, entre vrias estratgias partilhadas pelas duas artes, processos como o da reescrita e o da colagem. Tal como na literatura, a msica recorre freqentemente a citaes, aluses intertextuais a outras composies. Nesse caso, como em textos literrios pardicos, a reescrita musical pode servir a variegados objetivos, incluindo a denncia social e politica. pera do malandro, comdia musical de Chico Buarque, transcriao da comdia musical setecentista de John Gay, The Beggar Opera (A pera do mendigo), e da Opera dos trs vintns, composta por Bertolt Brecht e Kurt Weil em 1928, ilustra exemplarmente esse processo38. Na pera de Chico, destaco a cano Teresinha, pardia elevada ensima potncia, j que remete s duas outras peras, elas prprias inicialmente pardicas (conforme documenta a longa trajetria compositiva dos musicais de Gay e Brecht/Weil). No se contentando em parodiar essas pardias, a pera de Cbico parodia tambm canes isoladas, como faz com a cano de roda Teresinha de Jesus. Em nosso cancioneiro popular, a letra dessa espcie de balada resume o destino reservado mulher na sociedade patriarcal: a frgil protagonista, tendo sofrido urna queda, mostra-se incapaz de levantar-se por si prpria. Agarra-se sucessivamente mo de trs personagens masculinos, tradicionais detentores de poder sobre seu destino: o pai, o irmo, o marido. Ao contrrio, a Teresinha de Chico desdenha da predeterminao patriarcal. Acertada ou no, sua a escolha do pretendente ao qual finalmente se entrega:
O primeiro me chegou Como quem vem do florista Trouxe um bicho de pelcia Trouxe um broche de ametista [] Mas no me negava nada E assustada eu disse no O segundo me chegou Como quem chega do bar Trouxe um litro de aguardente To amarga de tragar [] Mas no me entregava nada E assustada eu disse no O terceiro me chegou Como quem chega do nada Ele no me trouxe nada Tambm nada perguntou [] Foi chegando sorrateiro E antes que eu dissesse no Se instalou feito um posseiro Dentro do meu corao.39
A pardia na letra dessa cano duplicada pela melodia. Os compassos iniciais contm claras citaes meldicas da cantiga de roda. Ao contrrio, entretanto, da
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Abgar Renault, Sofotulafai, em Obra potica (Rio de Janeiro: Record, 1 990), pp. 137-138 e 141. Cf. Solange Ribeiro de Oliveira, De mendigos e malandros. Chico Buarque, Bertolt Brecht, John Gay: uma leitura transcultural (Ouro Preto: UFOP-MG, 1999). 39 Chico Buarque, pera do malandro, apresentao de Luiz Werneck Vianna (So Paulo: Cultura, 1978), pp. 83-84.
repetitiva melodia tradicional, que espelha o destino cclico da mulher submetida ao jugo patriarcal, incapaz de construir a prpria histria, a melodia de Chico tem desenvolvimentos e resolues inesperadas. A construo musical o inesperado da letra, como convm personagem, determinada a construir seu prprio destino. O conjunto verbivocomusical funde, assim, as associaes ingnuas inicialmente evocadas pela melodia com o inesperado de seu desenvolvimento, refletido na letra, que explicita a caracterizao da personagem. Na pera de Chico, a mocinha submissa da cano de roda cede o passo a outra Teresinha, que no de Jesus. Dura herdeira de uma cadeia de meretrcio, ela aperfeioa os mtodos do pai e do marido, servindo stira da explorao capitalista, emblemada pela prostituio40. pera do malandro exemplifica, assim, no apenas a presena da msica em sua dimenso acstica, rtmica, estrutural ou metafrica, mas aquela em que o verbal e o musical, fundidos na forma imemorial da cano, municiam a denncia social. Uma outra forma de associao entre as duas artes, explorada por Scher, aquela em que a literatura constitui o suporte para a composio musical, como ocorre na msica programtica ou poema sinfnico. Em terreno afim, Dcio Pignatari proporciona um exemplo curioso, quando traduz o poema de Mallarm, Laprs-midi dunfaune, que foi musicado por Debussy. A traduo de Pignatari que oferece trs versos distintos para cada linha do poema francs fora o leitor a fundir, em uma nica imagem, a trplice viso oferecida pela traduo de cada linha do poema francs, conferindo ao conjunto algo semelhante indistino de contornos (visuais ou tonais) do impressionismo pictrico ou musical. Tal o mtodo antiestocstico, caracterizado, segundo Pignatari, por meticulosa preciso na busca do impreciso. Referindo-se ao texto de Mallarm, o tradutor brasileiro usa palavras que, em sua mltipla ressonncia, poderiam igualmente remeter relao literaturamsica: so ninfas e a poesia; uma flauta dupla pripica, duas n infas: so canetas, tinteiro pntano...41. Para mim, a caneta citada por Pignatari inclui a usada pelo compositor, quando confia ao papel a sua partitura, podendo ainda simbolizar a batuta do maestro, que, como o instrumentista, extrai da notao musical o milagre de sua arte. De qualquer forma, com suas rimas hologrmicas, grandes assonncias e ressonncias, harmonia vria e aleatria de amostragem, o poeta/tradutor proporciona mais um exemplo das muitas formas, limitadas apenas pela criatividade individual, da interpenetrao de msica e literatura. O texto extremamente interessante, como registro da experincia pessoal de um poeta em sua relao com a msica. Bandeira 42 comea por admitir que, no sentido estrito, a poesia no pode reproduzir os efeitos acsticos da composio musical. Detm-se longamente, entretanto, nos efeitos sonoros ao alcance da linguagem literria. O poeta discorre, evidentemente, sobre os efeitos de imitao sonora ao alcance do discurso verbal, mas destaca sobretudo a organizao do texto de modo semelhante ao explorado pela msica, em formas como polifonia, tema e variao e sonata. especialmente interessante o relato de uma tentativa juvenil de construir um poema calcado no modelo da forma sonata. Descontente com o resultado, o poeta terminou por destruir a sua sonata, fato que veio depois a lamentar.
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Vale lembrar o comentrio de Luiz Werneck Vianna na apresentao Opera do malandro, cit., p. 14. Referindo-se ao comportamento empresarial da personagem durante a era Vargas, Vianna declara: tu Teresinha [...] aparenta maturidade e domnio de si para enfrentar riscos e situaes ainda no vividos, impondo ao seu pai e ao marido novos padres de conduta. 41 Dcio Pignatari, A tarde de vero de um fauno, em Augusto de Campos et ai., Mallarm (So Paulo: Perspectiva, 1991), p. 85 42 Bibliografia Comentada Bandeira, Manuel. Itinerrio de Pasrgada. Em Poesia completa e prosa. 4R cd. Rio de janeiro: Nova Aguilar, 1986.
Trata-se de texto clssico, um dos estudos mais abrangentes sobre as relaes entre a sociedade, a literatura e a arte. Partindo da Pr-histria, o autor, acompanhando as vrias fases da evoluo dos fenmenos artsticos e literrios, chega contemporaneidade, que ele denomina A era do filme. O estudo enfatiza a relao da produo artstica com as respectivas circunstncias histrico-sociais, que, na linguagem dos estruturalistas de Praga, constituem sries paralelas, indissociveis da dimenso esttica. A ttulo de ilustrao, menciono o impressionismo: na pintura como na msica, pode ser associado, sugere Hauser 43, noo do objeto evanescente, anunciando a cultura do efmero e do descartvel, tpica de nossos dias. Extremamente pertinente como ilustrao da anlise melopotica aplicada fico, o texto complementa o de Manuel Bandeira, que focaliza a poesia. A autora estuda Macunama, de Mrio de Andrade, luz de seu subttulo, Uma rapsdia 44. Demonstra, de forma convincente, que o romance corresponde realmente a essa forma musical, caracterizada pela inspirao popular, pela irregularidade compositiva e pela improvisao. A autora demonstra que, tendo uma linha principal, a narrativa deixa que ela seja obscurecida, como na composio musical, por desenvolvimentos laterais. Adota, assim, o processo de construir recheando o ncleo central com temas subsidirios procedimento corrente tanto na msica romntica europla como no teatro de revista e nas danas dramticas brasileiras, cuja expresso mais perfeita o bumba-meu boi. Introduo atualizada melopotica, disciplina que focaliza as relaes entre a literatura e a msica, o livro contm urna introduo tenca, voltada para a natureza da msica, sua relao com a literatura, a evoluo histrica dos estudos msico-literrios, abordagens adotadas, etc. Examina tambm as contnbuies dos estudos hternos para a anlise musical e, em contrapartida, as da musicologia para a critica literria. Examina ainda a estruturao do discurso literrio segundo modelos musicais, como tema e variao, contraponto e forma sonata. Segue-se a anlise de textos literrios contemporneos, em que metforas musicais, derivadas de formas hbridas, como o choro, o lundu e o calipso, remetem experincia da colonizao, literal ou simblica, incluindo questes de gnero, raa ou grupo social. Literatura e msica45 um estudo paralelo a Literatura e artes plsticas (IJFOPMG, 1994), da mesma autora. Importante antologia de ensaios sobre a relao msica/literatura, contempla aspectos pouco estudados, como a contribuio da crtica ps-estruturalista, da criticada recepo, da critica cultural e da etnografia para a anlise decomposies musicais. So especialmente inovadores alguns ensaios evidenciando que nem mesmo a msica, considerada a mais pura das artes, escapa ao conluio com a ideologia. Um ensaio feminista evidencia, por exemplo, que a concepo patriarcal da funo social da mulher se faz presente at em composies aparentemente inocentes, como liedsde Schumann ou criaco, de Haydn46.
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HAUSER, Arnold. Histria social da literatura e da arte. Trad. Walter H. Geenen. 2 vols. 45 ed. So Paulo: Mestre Lou, 1982. 44 MELLO E SOUZA, Gilda de. O tupi e o alinde: uma interpretao de Macunama. So Paulo: Duas Cidades, 1979. 45 Oliveira, Solange Ribeiro de. Literatura e msica: modulaes ps-coloniais. Coleo Debates, 286. So Paulo: Perspectiva, 2002.
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Scher, Steven Paul (org.). Music and Text: Critical inquiries. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.
POESIA LITERRIA E POESIA DE MSICA: CONVERGNCIAS CARLOS RENN Poesia no literatura, decretou Ezra Pound, um dos maiores poetas e tericos de poesia do sculo passado, autor do clebre e ainda hoje, por tantas razes, atual e, por isso mesmo, utiIssimo (como neste texto mesmo veremos) ABC ofReadin,g ABC da literatura, tal como foi traduzido entre ns por Augusto de Campos e Jos Paulo Paes. Para esse cone do modernismo literrio europeu, norte-americano de nascimento, a poesia seria uma arte mais prxima da msica e at da pintura e da escultura do que da literatura propriamente dita, tal a diferena substancial, de natureza estrutural, existente entre ela e a prosa1. As ideias de Pound a respeito das relaes de proximidade e afinidade entre a msica e a poesia e, por extenso, acerca da relevncia de elementos musicais para a arte potica desenvolveram-se a partir de uma base muito slida, apoiadas na experincia do artista. Durante sua vida e o desenrolar da construo de sua obra, o poeta manteve uma ligao profunda no s com o gnero de poesia de carter essencialmente musical, a trovadoresca, como tambm, em certos perodos, com a prpria msica. De um lado, ele foi um dos maiores responsveis pelo resgate, no sculo passado, do legado dos trovadores provenais, que introduziu e traduziu para seus contemporneos e para as geraes posteriores. De outro, ele mesmo se envolveu, primeiro indireta, em seguida diretamente, com a chamada arte dos sons. Assim, depois de patrocinar o trabalho do pianista e compositor americano George Antheil, cm sua primeira fase, de carter largamente experimental, Pound, ento, se dedicou composio, criando uma espcie de pera de vanguarda chamada Le testament (baseada em baladas de Vilion). Para completar, ainda teve uma mulher violinista. De acordo com um outro grande poeta do sculo XX, o francs Paul Valry, a poesia seria uma hesitao entre som e sentido definio a que chegou tambm por levar em alta conta a importncia que tem a msica para a arte potica, considerando-se a sonoridade como uma das principais propriedades musicais da poesia, ao lado do ritmo. O universalmente reconhecido O corvo, de Edgar Allan Poe, oferece uma interessante demonstrao da idia expressa por Valry, servindo de ilustrao do que representa o som para a poesia. O Iingista russo Roman Jakobson foi quem apontou a relao de afinidade, do ponto de vista sonoro, entre o ttulo do poema, The Raven, e seu estribilho, nevermore, mais exatamente entre raven e never, termos quase completamente anagrmicos (fato que, surpreendentemente, passou despercebido pelo prprio Poe, na conhecida dissecao que fez do processo de criao de sua obra-prima, intitulada Filosofia da composio). Ao mesmo tempo, uma leitura do poema em ingls e de sua traduo para o portugus realizada por Fernando Pessoa, desde que feita com ouvidos sensveis, pode servir modelarmente de exemplo do que seja o ritmo para a poesia. Observar como Pessoa, mantendo a mesma mtrica definida no original, no apenas restitui os significados mais essenciais dos versos em ingls (uma lngua minto mais sinttica que a nossa), como, ainda por cima, o faz reproduzindo em portugus a mesmssima msica que o poema apresenta
Segundo Pound, se a poesia mesmo parte da literatura coisa de que, por vezes, me sinto propenso a duvidar, porque a verdadeira poesia est em relao muito mais estreita com o que de melhor h na msica, na pintura e na escultura, do que com qualquer parte da literatura que no seja verdadeira poesia [...]. Ezra Pound, A arte da poesia: ensaios escolhidos, trads. Heloysa de Lima Dantas & Jos Paulo Paes (3 ed. So Paulo. Cultrix, 1991), p. 149. 1 Edgar Alian Poe, em Ivo Barroso (org.), O corvo e suas tradues (Rio de Janeiro: Lacerda, 1998).
em seu idioma de partida. simplesmente notvel: o ritmo que ouvimos idntico! Comparar essa traduo com outras j realizadas para o portugus do mesmo poema s notabilizar ainda mais o trabalho do genial poeta portugus, por causa principalmente do seu senso musical. Cotej-la com a feita por outro gnio mas da prosa... em nossa lngua, Machado de Assis, traduo que tambm mostra suas qualidades, s que do ponto de vista mais estritamente literrio, pode servir para dar uma viso do que seja uma poesia contaminada de msica e outra nem tanto) A traduo de outro poeta, Augusto de Campos, para Canson do ili mot son plan e prim (Cano de amor cantar eu vim), de um grande trovador provenal, Arnaut Daniel, tambm um primor de poesia sob o ponto de vista da musicalidade. Sob o aspecto sonoro, por exemplo, Augusto reproduz com o som mais aproximado em portugus trs (em im, or e oifla olha) das quatro rimas usadas em sistema de rodzio em cada uma das seis estrofes e uma coda do poema. No tocante cantabiiidade, a operao tradutria se mostra igualmente bem-sucedida. Como se pode comprovar ouvindo a gravao existente da cano (j que desta a notao musical no se perdeu), os versos de Augusto so perfeitamente cantveis sobre suas frases meldicas, slaba por slaba sobre nota por nota, sem que a prosdia do poema no idioma de chegada seja jamais prejudicada2. De fato, a poesia no toda, mas boa parte dela apresenta propriedades musicais que lhe parecem intrnsecas. J a podemos localizar um primeiro aspecto a associar as duas artes ou linguagens de naturezas to distintas, uma verbal, outra sonora, e por isso mesmo passveis de ser classificadas, pelo carter, como dspares e op ostas. A associao entre elas, no entanto, remonta prpria origem da poesia (da poesia ocidental, pelo menos), que, na Antiguidade, como sabemos, era cantada. Depois, muito tempo depois, na Alta Idade Mdia, a chamada poesia trovadoresca veio a promover uma ampliao da aplicao dessa propriedade primordialmente caracterstica da poesia. Como igualmente se sabe, tambm os poemas criados pelos trovadores ou menestris eram todos cantados, a cada um correspondendo invariavelmente uma melodia. No toa vieram a ser chamados de canes. Infelizmente, grande parte das notaes que poderiam indicar as msicas correspondentes a essas letras se perderam. Os poucos exemplos de linhas de canto sugeridas para os versos desses poemas que permaneceram at hoje, no entanto, so, por sua fora expressiva e notvel beleza, mais do que suficientes para provar por que tais poemas recebiam a denominao de canes. As canes trovadorescas constituem efetivamente o caso mais evidente de poesia literria em ponto de convergncia com a msica. Situada ao sul do territrio que viria a ser posteriormente o da nao francesa, a regio de Provena foi o lugar em que, por nela inaugurar-se e crescer, durante os sculos XI a XIII, uma tradio de trovadores dos mais inventivos, a arte da poesia trovadoresca prosperou mais gloriosamente. A msica popular ou talvez seja mais exato dizer a cano popular , que ganhou imensa difuso no sculo XX, tornando-se uma expresso do esprito dos tempos modernos, e que continua florescendo com grande esplendor nos Estados Unidos e no Brasil, vem realizando, por sua vez, em seus momentos culminantes, uma espcie de retomada, no plano da produo artstica de consumo, da arte potica erudita dos trovadores medievais. Destes, j se disse que os maiores son,gwriters dos ltimos cem anos podem ser vistos como continuadores ou sucessores. Os Cole Porters, os George e Ira Gershwins, os Bob Dylans, os John Lennons e os Princes; os Nois, os Caetanos, os Chicos e Gils; os Jacques Brels e Alfredos Marceneiros
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Augusto de Campos. Mais provenais (2 ed. rev. e ampi. So Paulo: Cia. das Letras, 1987), pp. 59-61.
todos esses, e outros mais, seriam assim os trovadores da modernidade, os sucessores de Arnaut Daniel, Bernart de Ventadorn, Raimbaut dAurenga e Bertran de Bom (para me referir a alguns dos principais praticantes da linha mais inventiva das canes trovadorescas provenais) dos tempos modernos. Isso, levando em considerao o enorme engenho-earte do conjunto de suas letras e msicas (de suas poemsicas, digamos assim) ou particularmente da poro mais engenhosa e artstica, do ponto de vista potico, especialmente, de seus repertrios. Ocorre que, quando a letra de msica se sofistica, extrapolando os limites entre alta e baixa cultura e confundindo as distines usualmente feitas entre cultura erudita e popular, ela alcana um plano esteticamente superior e pode, ento, ser tomada como uma modalidade de poesia: poesia cantada (uma forma de poesia de msica, em contraposio poesia literria, de livro). A propsito disso, Augusto de Campos, o mais msico dos poetas brasileiros, escreveu:
Esses cruzamentos da linguagem popular e impopular, que rompem fronteiras estilsticas, sinalizam o que se poderia denominar poetizao da cano o momento em que a letra de msica, por vezes banal ou vulgar, sem qualquer valor intrnseco, mas eficaz porque perfeitamente aderente melodia, ou valorizada pela interpretao, se sobreleva e atinge o plano da letra arte: poesia.3
Augusto de Campos j cresceu num ambiente musical. Seu pai, Eurico de Campos, era compositor de sambas (um deles, Caiu a noite, ganhou registro do prprio poeta, includo no CD Poesia risco, de Augusto em parceria com o filho Cid, que msico profissional), O gosto por msica popular nasceu, portanto, em casa. A familiarizao com o repertrio erudito, de vanguarda, porm, no tardou a ser cultivada. Mais tarde, como I\lallarm em relao a Um lance de dados (cuja inovadora configurao espacial dos versos devia ser vista, segundo o grande poeta francs, como uma partitura), Augusto incorporou a msica estrutura de seus poemas. Assim, a srie dc seus poetamenos, publicada nos anos 1950, procurou assimilar, por meio do uso de uma variao de cores nas letras, a melodia de timbres pioneiramente empregada por Anton Webern, o criador do serialismo dodecafnico. Tal apropriao inseriu-se no prprio projeto concretista, de uma poesia de natureza verbivocovisual procurando atuar, portanto, no s nas dimenses verbal e visual, mas tambm vocal. Paralelamente a isso, Augusto vem, desde a dcada de 1960, desenvolvendo um brilhante trabalho de interveno crtica, dedicando-se divulgao de trabalhos e obras de msicos que considera importantes e que, no raro, foram marginalizados. J naquela poca, desempenharam papel importante, no cenrio da msica popular brasileira, seus textos em defesa da produo de vanguarda, principalmente a dos tropicalistas. De l para c, tornaram-se comuns suas publicaes, na imprensa, de artigos sobre compositores da msica contempornea de inveno, dos mais (Pierre Boulez a John Cage) aos menos afamados (Henry Cowell a Nancarrow), a maioria deles muito pouco reconhecida. Muitos desses textos esto reunidos em seu livro Musica de inveno4. No de surpreender que um poeta assim tenha feito amizades e parcerias no meio musical brasileiro, em que segue sendo admirado pelas novas geraes. S Caetano musicou dois poemas seus: Dias dias dias e Pulsar. Alm disso, Augusto exibe uma notvel musicalidade em outros trabalhos, como atestam suas tradues todas perfeitamente cantveis do texto de Pierr lunar; a pera de Arnold Schoenberg, e de vrias canes de trovadores provenais, como Arnaut Daniel (o melhor artfice, na opinio de Dante Alighieri).
Augusto de Campos, Beba Cole, em Carlos Renn, Cole Poder: canes, verses, participao de Augusto de Campos, Caetano Veloso, Cludio Leal Ferreira (So Paulo: Paulicia, 1991), p. 31. 4 Augusto de Campos, Msica de inveno, Coleo Signos-Msica, n 5 (So Paulo: Perspectiva, 1998)
Alguns autores muito especiais j ergueram, outros (os que ainda esto vivos e em atividade) vm erguendo obras que ilustram magnificamente bem a poetizao da cano popular apontada por Augusto. No panorama mundial, para comear pelos norte-americanos, isso fica patente nos trabalhos de compositores-letristas da estirpe de Cole Porter, Irving Berlin, Jerome Kern e Johnny Mercer, alm das clebres duplas formadas pelos irmos George e Ira Gershwin e por Richard Rodgers e Lorena Hart (ou seu substituto, Oscar Hanimerstein), para nos determos nos autores da cano americana clssica, que viveu seu apogeu dos anos 1920 aos 1940. Uma outra analogia pode aqui muito bem ser feita. Porter, Berlin, os irmos Gershwin, Rodgers e Hart ou Hammerstein, Mercer, Kern, alm de Harold Arlen, Hoagy Carrnichael, Vernon Duke, Victor Young e Vincent Youmans. Esses songwriters vm a ser, de fato, os Bachs, os Beethovens, os Mozarts, os Wagners, os Tchaikovskis da histria da cano popular no apenas americana, mas mundial, do sculo XX e deste incio de sculo. Numa palavra, os clssicos da cano moderna. Depois, obedecendo a uma ordem cronolgica de aparecimento na histria da arte da cano, um desfile, no tempo, das obras de maior inventividade, de uma perspectiva que priorizasse o aspecto potico da conjugao de msica e poesia, naturalmente apresentaria, na seqncia, com enorme destaque, os nomes de cones do pop e do rock como Bob Dylan, John Lennon, Mick Jagger (estes dois, britnicos), Jim Morrison e Lou Reed, entre outros da safra da dcada de 1960, seguidos por Stevie Wonder, Michael Jackson e, sobretudo, Prince, alm de David Byrne, surgidos j nos anos 1970 e 1980, respectivamente. Uma seleo internacional dos principais cancionistas do sculo XX no poderia, ainda, deixar de incluir nomes como Jacques Brel, o rei da cano francesa clssica, Alfredo Marceneiro, representante mximo do fado portugus tradicional, e provavelmente Discpolo, como o maior compositor-letrista de tangos. Entre outros autores e gneros... Quanto a ns, brasileiros, que em matria de cano popular no ficamos atrs dos americanos que so os primeiros , temos igualmente nos mostrado prdigos em msicos-poetas dessa mais alta linhagem. No panorama de nossa cano, h mais de uma dzia de criadores existe, solidamente estabelecida, uma tradio deles entre ns que se distinguem por alcanar patamares estticos normalmente no atingidos no cenrio dessa arte em outros contextos nacionais. Apesar das profundas diferenas de estilo, procedimento, formao e contexto em que atuaram, os integrantes desse cl especial se do as mos, como artistas, num plano situado acima do tempo. Para efeito de simplificao, eles poderiam ser divididos segundo as geraes a que pertenceram. Assim, uma das mais antigas delas, reunida nos anos 1930, a chamada poca de ouro de nossa msica popular, produziu Orestes Barbosa, Lamartine Babo e Noel Rosa, merecendo lembrana ainda o nome de Assis Valente. Despontando no fmal daquela dcada e consolidando suas obras nas seguintes, tivemos DorivalCaymmi e Lupicnio Rodrigues, valendo uma meno honrosssima para Nlson Cavaquinho e Cartola. A terceira, na segunda metade dos 1950, nos deu Vincius de Morais. Na quarta, uma das mais concentradamente fecundas, datada dos fervilhantes 1960, vieram Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil e Jorge Ben Jor. Da dcada de 1970, poderamos destacar Rita Lee e Raul Seixas. E da de 1980, Cazuza e Arnaldo Antunes. LETRA-ARTE, LETRA-POEMA Cho de estrelas constitui o que se pode chamar de um belo caso de fanopia em poesia de msica popular. Fanopia uma das trs modalidades de poesia (as outras duas so a melopia e a logopia) classificadas por Pound em seu ABC da literatura; consiste,
segundo ele, num lance de imagens sobre a imaginao visual 5. Trata-se, portanto, de qualquer texto potico de forte apelo imagtico. O carioca Orestes Barbosa foi, entre nossos letristas, um dos maiores cultores da fanopia. Os versos de Cho de estrelas, de sua autoria, receberam msica de Silvio Caldas, e a cano tornou-se um clssico do gnero seresta, instaurado pela dupla nos anos 1930. Composta integralmente de decassilabos, a letra, a exemplo da quase totalidade das letras que Orestes escreveu, apresenta um sistema estrfico e rmico fixo, sendo formada de quatro estrofes de seis versos cada, as rimas ocorrendo segundo o esquema aabccb. Esse procedimento, freqente em sua obra, j sugere a aspirao literria do autor. Em cho de estrelas, a fora das associaes de imagens crescente. Na terceira estrofe, Orestes j compara as roupas comuns dependuradas no varal a bandeiras agitadas e a um estranho festival, onde se d a festa dos nossos trapos coloridos. O climax, porm, ocorre na ltima estrofe, em que, depois de dizer que a lua salpicava de estrelas o cho do barraco, ele nos brinda como famoso tu pisavas os astros, distrada. O verso fez a msica cair na preferncia de alguns poetas de renome cm nossa literatura. Primeiro foi Guilherme de Almeida, a quem Silvio e Orestes mostraram a composio ainda indita e que lhes sugeriu a feliz expresso-titulo. Depois, outro modernista, Manuel Bandeira, o considerou talvez o mais bonito da lingua portuguesa.C Por fim, Augusto de Campos lhe dedicou (em Beba Cole, aqui citado) todo um pargrafo, no qual o coteja com outros versos renascentistas e barrocos em que tambm aparece a imagem pisar estrelas, empregada por Cames e Gngora. Por causa do efeito paronomstico contido em astros, distrada, o poeta concretista d vantagem ao criado pelo letrista. Caetano Veloso o parafraseia em sua cano Livros, da mesma maneira composta inteiramente de decassilabos e iniciada com a linha: Tropeavas nos astros, desastrada. Interessante observar que Caetano se referiu ao verso orestiano, que poderia figurar num poema de livro, depois de ler o que e por causa do que Augusto escreveu sobre esse verso em um livro (Cole Porter: canes, verses) a que fez referncia numa composio chamada Livros (em que recorda o papel da cultura literria em sua formao mais exatamente desde os primeiros tempos dela), contida num CD de nome Livro, lanado pouco depois de ter escrito um livro de reminiscncias dos anos 1960, mais exatamente do movimento tropicalista (Verdade tropical)7.
A mesma porta sem trinco E o mesmo teto E a mesma lua a furar nosso zinco
Orestes Barbosa, que era jornalista, veio a ser o primeiro compositor da msica popular brasileira a destacar-se tambm como intelectual e o primeiro a escrever e lanar livros. Foram trs, dois deles de poesia. O terceiro, de prosa. (intitulado Samba) , porm, o mais atraente, devido linguagem gil, telegrfica, cheia de cortes, pioneiramente modernista (a publicao antecedeu a ecloso do movimento em So Paulo), no entender de outro jornalista, o tambm poeta alm de crtico de msica Jos Lino Grnewald. No panorama musical internacional dos ltimos quarenta anos, Bob Dylan tornou-se um
Ezra Pound, ABC da literatura, trads. Augusto de Campos & Jos Pauto Paes (So Paulo: Cultrix, 1990), pp. 11,41 e 45. Orestes Barbosa, Samba: sua histria, seus msicos e seus cantores (Rio de Janeiro: MEC/ Funarte, 1933). Essa obra foi reeditada pela Funarte em 1978. 7 Caetano, alis, j havia citado o Cho de estrelas no incio dos anos 1970, em Como dois e dois, composta para Roberto Carlos cantar: Manuel Bandeira, Orestes, em Poesia e prosa, vol. 2, introduo de Srgio Buarque de Holanda e Francisco de Assis Barbosa (Rio de Janeiro: J. Aguilar, 1958), pp. 409-410. Caetano Veloso, Verdade tropical (So Paulo: Cia. das Letras, 1997).
dos principais cultivadores de uma poesia pop com uma incidncia muito acima da mdia de elementos imagticos (tantas vezes responsveis pela valorizao potica de um texto). Entre os maiores songwriters norte-americanos das geraes posteriores de Dylan, o grande Prince, genial no apenas como compositor mas igualmente como letrista, pode no ser um assduo praticante de versos que privilegiam o emprego da fonopsia, mas dele podemos colher duas passagens antolgicas dessa categoria potica no campo da cano em When Two Are In Love. A primeira ocorre ao final da primeira estrofe, em trecho em que a letra expe, uma logo em seguida outra, duas imagens particularmente felizes e contrastantes, ricas de sugestes de ritmos (um devagar, outro veloz) e atmosferas (a primeira, romntica e onrica; a segunda, sexual e selvagem) completamente distintas, Os versos dizem:
When two are in love, Falling leaves will appear to them like slow motion rain. When two are in love, The speed of their hips can be faster than a runaway tram. Numa traduo livre, algo como: Quando duas pessoas esto apaixonadas, Folhas caindo vo lhes parecer como chuva em cmara lenta. Quando duas pessoas esto apaixonadas, A velocidade de seus quadris pode ser maior do que a de um trem em disparada.
Momentos depois, quase ao trmino da estrofe derradeira da cano, ele nos vem com essa:
When two are in love, The thought of his tongue in the V of her love in bis mad, This thought, it leads the pack. Aproximadamente: Quando duas pessoas esto apaixonadas, O pensamento da lngua dele no V do amor dela na cabea dele, Este pensamento, o que move.
Para no dizer vagina (provavelmente por no se tratar de um termo potico o bastante para uma cano de amor, mesmo sendo essa uma de suas canes de intensa carga ertica), Prince opta por um V que ele afirma ser do (of) her love. Ora, a letra v est no meio da palavra love... Alm disso, como no pensar no fato de que ela pode (aqui, arrisco dizer que deve) ser vista como uma representao fisionmica de um par de pernas abertas condio necessria para que se d aquilo que os versos esto insinuando? A riqueza de sugestes faz enriquecer um poema. Literatura linguagem carregada de significado, como sugere Pound8. Prince, que ningum se engane, , sim, um verdadeiro poeta. E vrias passagens de letras suas atestam isso. A propsito, quantas vezes uma letra j no nos levou a dizer que ela era um poema!? H versos de canes que so de uma fora, de uma intuio e de uma construo potica invulgares, chegando a fazer pensar que poderiam ter sido escritos por grandes nomes da literatura. Augusto j sugeriu quo shakespearianas so estas memorveis linhas de Lupicnio Rodrigues, o fantstico criador da dor-decotovelo, em sua antolgica Nervos de ao:
Eu no sei se o que trago no peito cime, despeito, amizade ou horror. Eu s sei que quando eu a vejo Me d um desejo de morte ou de dor
Ser que, da mesma forma, no poderiam ter sido escritos por Oswald de Andrade os versos de uma marchinha carnavalesca do carioqussimo Lamartine Babo, que, coincidncia ou no, leva o nome de uma srie de poemas integrados ao livro Pau-Brasil, do genial e bem-humorado poeta modernista de So Paulo, no por acaso um apologista do carnaval brasileiro, em seu Manifesto Antropofgico? Vejamos:
HISTRIA DO BRASIL Quem foi que inventou o Brasil? Foi seu Cabral, foi seu Cabral No dia 21 de abril Dois meses depois do carnaval Depois Ceci amou Peri Peri beijou Ceci Ao som do Guarani Do Guarani ao guaran Surgiu a feijoada E mais tarde o parati
E o que dizer da segunda quadra do lindo fado Fria claridade (de Jos Marques do Amaral e Pedro Homem de Meio)?
Ento passaram por mim Dois olhos lindos depois; Julguei sonhar vendo enfim Dois olhos como h s dois
Acaso no lembraria certos trechos de Fernando Pessoa? Ou seriam certos trechos de Fernando Pessoa que lembrariam isso? A alta voltagem potico-literria de determinadas letras de msica nos surpreende particularmente quando sabemos que seus autores no eram artistas cultos, mas intuitivos, provenientes no raro de camadas humildes da populao. Essa voltagem o que faz com que certas letras apresentem uma sustentabilidade potica no papel. Ou seja, que se mostrem bons poemas no apenas no espao da melodia, isto , ao ser cantadas, mas tambm no espao branco da pgina. Cinco Buarque e Caetano Veloso, entre os brasileiros, so os compositores-letristas cujas obras dispem do maior nmero de letras dessa categoria. Antecedendo-os como criador dessa classe de letras-poemas, h Noel Rosa, na primeira metade do sculo XX. Antnio Ccero, Waly Salomo e Arnaldo Antunes (considerem-se determinados textos seus para canes que manifestam um inequvoco experimentalismo, como Macha fmeo e Inclassficveis esto entre os que, dos anos 1980 para c, tambm chamam a ateno por algumas letras localizveis no liniite com a poesia propriamente dita. De Caetano, chega a ser espantoso que um samba como Sampa tenha conquistado tamanha popularidade, a ponto de vir a transformar-se praticamente num hino da cidade de So Paulo. Caetano desenvolve um estilo que, com muita naturalidade, lana mo de um grande nmero de citaes e referncias provindas das mais variadas fontes, seja da cultura popular, seja da erudita. Sampa, contudo, uma das suas canes em que esse carter alusivo de seu trabalho se amplia, como se depreende de uma anlise detida muito interessante de se fazer, diga-se , verso por verso, do que diz o seu texto, marcado pelo
hermetismo de certas passagens de difcil compreenso, pelo menos para o chamado grande pblico. Por que, ento, esse fez da cano um clssico, se nela h frases como porque s o avesso do avesso do avesso do avesso (referncia ao poeta concretista Dcio Pignatari), por exemplo? Ou, ento: Pan-amricas de fricas utpicas, tmulo do samba / Mas possvel novo quiombo de Zumbi (em aluses ao escritor e cineasta Jos Agripino de Paula, a Vincius de Morais e ao incio do movimento dos operrios siderrgicos do ABC, no final dos anos 1970)? Afinal de contas, uma cano, para ver facilitado seu caminho rumo popularizao, deve comunicar de imediato o seu recado...9 A mesma sugesto de relao feita aqui entre Histria do Brasi/, de Lamartine Babo, e a poesia Pau-brasil, de Oswald de Andrade, pode ser igualmente estendida a Yes, ns temos banana, da dupla Joo de Barro e Alberto Ribeiro, e o modernismo oswaldiano, sendo ainda a marchinha carnavalesca de Braguinha passvel de ser apontada como uma cano pr tropicalista (no toa foi regravada por Caetano Veloso em plena ecloso do movimento, em 1967, logo depois de o cantor-compositor ouvi-la na pea O rei da vela, montada por Jos Celso Martinez Correia, do Teatro Oficina, em montagem que significou um marco na histria do tropicalismo). Exemplo de absoro criativa (provavelmente inconsciente, intuitiva) do surrealismo, podemos lembrar aqui tambm a Cano pra ingls ver, outra de Lamartine. No campo das assimilaes inventivas de procedimentos literrios por compositores populares, h que se citarem alguns casos mais modernos, a comear pelo de Batmakumba, mais uma pea tropicalista, composio de Caetano e Gilberto Gil, em que a letra, de fatura concretista, apresenta uma configurao de grande apelo visual (um enorme K), ao mesmo tempo que se utiliza do recurso da montagem de vocbulos. O mesmo procedimento uso de palavras-valise, empregadas pioneiramente por Lewis Carroil e posteriormente, com maior radicalidade ainda, por James Joyce, em seu romance para acabar com todos os romances, Finnegans Wake seria reuti]izado por Caetano nos anos 1980 em Outras palavras e, uma dcada depois, por Arnaldo Antunes em Inclasscveis. Em msica popular, no entanto, o primeiro a utilizar-se dele parece ter sido John Lennon (que j havia publicado um pequeno livro escrito em palavras-valise, inspirado em James Joyce; a obra foi traduzida entre ns pelo poeta Paulo Leminski, sob o ttulo Um atrapalho no trabalho), mais exatamente na surrealista I Am the Walrus, uma cano dos Beaties, que cita at personagens de Alice no pas dos espelhos Entre as vrias invenes formais apresentadas por Arnaut Daniel em suas canes, est o complexo sistema rmico presente em LAura Amara, em que as rimas tm sua ocorrncia de estrofe a estrofe e no necessariamente dentro de cada estrofe. E no so poucas: doze rimas interestrficas contra (apenas) trs intraestrficas (Augusto as reproduziu todas, em sua bela traduo do poema, includa originalmente em seu Verso reverso controverso)10 Rimas sutis, remotas, difceis de ser percebidas primeira audio, rimas (que Pound denominava polifnicas) feitas par a ouvidos sensveis, sofisticados. Cole Porter, o genial cancionista norte-americano, exercita-se nessa rima em alguns de seus clssicos, as antolgicas canes de amor 1 Get a Kick Out of You e 1 Concentrate on You. Sem o mesmo arrojo e requinte, verdade (no nos esqueamos de que estamos aqui no campo da cano popular, um terreno em que a simplicidade e a singeleza so naturalmente maiores), mas elas esto l: uma na primeira e trs na segunda, em letras relativamente curtas, se comparadas, por exemplo, extenso do poema LAura Amara. Nenhum desses casos patterianos de polifonia rmica, no entanto, se compara ao que Chico Buarque, um dos mais inventivos compositores-letristas do Brasil e do mundo nos ltimos
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John Lennon, em Um atrapalho no trabalho, Coleo Circo de Letras, 28, transcrio e posfcio Paulo Leminski, apresentao Paul McCartney (So Paulo: Brasiliense, 1985). 10 Augusto de Campos, Verso reverso controverso (So Paulo: Perspectiva, 1979).
cinqenta anos, nos oferece em O futebol. A letra se dispe em trs estrofes de catorze versos cada, nas quais o fenmeno da coincidncia fnica no acontece somente nos finais dos versos dcimo e ltimo. At o oitavo verso, as rimas so cruzadas (intra-estrficas, portanto); do nono ao dcimo terceiro, parecem no ocorrer... quando, na verdade, se do interestroficamente, de modo quase imperceptvel. E de perceptividade tambm bastante difcil (mais difcil at) o evento sonoro que Chico faz ocorrer em outra letra extraordinria de sua autoria, escrita sobre msica de Edu Lobo, Bancarrota blues. Nas quatro estrofes correspondentes primeira parte meldica, sempre entre os finais do terceiro e do sexto verso se d uma quase- rima, ou pseudo-rima, entre termos cujas duas ltimas silabas possum exatamente, ou quase exatamente, as mesmas letras (e que, por isso, em princpio terminariam com a mesma sonoridade) mas que, por serem respectivamente uma palavra paroxtona e outra oxtona, acabam tendo sua acentuao forte deslocada. So eles: varanda/jacarand, fresca/pescar, poeira! cheirar e aoites / oitis. Jamais um outro compositor veio com uma inveno dessas eu, pelo menos, nunca vi. Caetano Veloso musicou Escapulrio, de Oswaid de Andrade; Pulsar e Dias dias dias, de Augusto de Campos, e Circulad de Ful, trecho de Galxias, de Haroldo de Campos. Arrigo Barnab musicou um trecho de O jaguadarte, traduo de Augusto para o poema de Lewis Carroil. Pricles Cavalcanti tambm ps msica em Elegia, poema de John Donne na transposio de Augusto, e em passagem do Panorama do Finnegans Wa/ee, livro dos irmos Campos a partir do original de Joyce 11. Chico Buarque musicalizou Funeral de um lavrador, de Morte e vida seperina, de Joo Cabral de Meio Neto. Cano amlga, de Carlos Drummond de Andrade, recebeu meiodizao de Milton Nascimento. Fernando Pessoa e Manuel Bandeira foram dois poetas que ganharam cada um todo um disco contendo musicalizaes de poemas por grandes compositores brasileiros de MPB. No chore mais (para No Woman, No Cry, o grande sucesso de Bob Marley) e S chamei porque te amo (para 1 Just Called to Saj 1 Love You, de Stevie Wonder), por Gilberto Gil. Negro amor (para It Ali OverNow, Babjy Blue, de Bob Dylan), por Caetano Veloso e Pricles Cavalcanti. O malandro (para Mack the Kn/e, de Kurt Weill e Bertolt Brecht), por Chico Buarque. Modelos de verso em portugus de canes originalmente compostas em outras Lnguas (ingls, sobretudo). Em meu trabalho de versionista, procuro pr em prtica critrios de verso especficos, aplicados em meu livro Cole Porter: canes, verses. De acordo com essa viso, busca-se traduzir no apenas o sentido e o esprito das letras originais, mas tambm a forma e o estilo nelas exercidos alm, naturalmente, de obter-se a melhor cantabilidade possvel para as palavras em portugus. Tendo pela frente versos de letristas sofisticados como Cole Porter e Ira Gershwin, que verti, a aplicao de um rigor literrio ao trabalho se faz necessria. Assim, para enfrentar o desafio, procuro tratar as letras de Porter e Ira como uma modalidade de poesia cantada. Os recursos que adoto decorrem das idias de traduo inventiva proposta por Ezra Pound para verter grandes poetas da literatura universal para o ingls. As lies deixadas por Pound nesse terreno inspiraram a obra de traduo de poesia desenvolvida pelos poetas do concretismo (movimento de vanguarda brasileiro surgido nos anos 1950). Essa obra se tornou uma das produes mais importantes da poesia brasileira da segunda metade do sculo XX. Em meu trabalho como versionista ela tomada como modelo. Eis alguns exemplos de procedimentos que expressam os parmetros que orientam minhas verses (includas no disco Cole Porter e George Gershwin Canes, verses): 1. No final de ue delfindo (a verso de 1tv De-/ovey) reconfigurada em portugus a enumerao aliterativa de nove termos iniciados por dei ou dii (Que deleite, que
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Augusto de Campos & Haroldo de Campos, Panorama do FinneganS Wake, Coleo Signos, r 1 (3 ed. So Paulo: Perspectiva, 1986).
deicia, que deliquio, que delrio, que delito, que dilema, que dilvio, que de-lindo!) exemplo de traduo nos nveis semntico, formal e fontico. Outro dado: a exemplo de de-lovey, o termo de-lindo, do ttulo, tambm constitui um neologismo. 2. Em Eu S me ligo em voc (a verso de 1 Get a Kic/e Out of You), o trecho que diz:
Im sure that if One took even one sniff that would bore me terrifically too.
vertido para: que porre, oh, eu no posso com p, coca s me provoca depr Em que o fonema P (gria para cocana) se imiscui entre as palavras e versos, assim como IF no original. Ao final da letra, a seqncia de sons em Y (de sky) flYing too hIGH with some gUY in the skY is mY Idea of nothing to do respondida por uma srie em U (de cu, em portugus): saltar ao lU de asa-dELta no cU O que EU nunca penso em fazer 3. A Fogy Dqy (In London Town) virou Um dia de garoa (em So Paulo), porque garoa (uma espcie de chuva fma e persistente) um fenmeno climtico tpico e assim como o fog em relao a Londres tradicionalmente associado cidade de So Paulo. Um caso de transposio cultural para uma ambincia local, tal como propugnava Pound. 4. Faamos, verso de Let Do 14 outro exemplo de busca de restituio de uma atmosfera e de um humor essenciais, como forma de fidelidade ao esprito do original. Nela, expresses como picantes pica-paus, tico-ticos no fub e muitas outras transpem o sentido geral da letra em ingls para um contexto tipicamente brasileiro. Por outro lado, no ficam sem resposta todos os efeitos estilsticos produzidos por Cole Porter: paronomsias, trocadilhos, duplos sentidos... Ojsters down in Ojster Bqy do it, por exemplo, virou Camares em Camares fazem (traduo do jogo de palavras); Sentimenalcentipedes do it se transformou em Centopias sem tabu fazem (traduo paronomstica), etc. 5. Um detalhe em ruem tome conta de mim (Someone to Watch Over Me), que teve a co-autoria de Nlson Ascher: a aliterao em trs Ls de oveLhinha ao Lu sem Lar sem ningum correspondendo aos igualmente trs Ls de Im a Little Lamb whose Lost in the wood, do mesmo verso no original. 6. Outro, em dama, tem d (Oh Ladji, Be Good), que Charles Perrone verteu comigo: quero aCHAR MOA CHARMOSA como soluo para o anagrama contido no verso 1 must fl7N SOME TVINSOME mis?. E, no estribilho, a aliterao de quatro Ds de 6 Doce amaDa Dama, tem D procura responder de trs Ls de LoueLy Latif. Palavra cantada palavra voando, escreveu James Joyce. CAMPOS, Augusto de. Balano da bossa e outras bossas. Coleo Debates, n 4. 4 ed. So Paulo: Perspectiva, 1986 O grande poeta concretista colige aqui uma srie de suas intervenes crticas, especialmente no campo da msica popular. Essa brindada, por exemplo, com artigos histricos escritos nos anos 1960 em defesa do tropicalismo, da jovem guarda e da bossa
nova, e do resgate da obra de Lupicnio Rodrigues e da valorizao do legado de Torquato Neto. Importantes textos de Gilberto Mendes, Jlio Medaglia e Brasil Rocha Brito tambm so includos. Uma obra antolgica no gnero. Verso reverso controverso. So Paulo: Perspectiva, 1979. O poeta-tradutor-crtico viaja por vrias pocas da histria da poesia, detendo-se especialmente no perodo ureo da poesia trovadoresca provenal, brindando- nos a com brilhantes verses em transcries bilnges de poemas de Arnaut Daniel, Bernart de Ventadorn, Bertran de Bom, Cardenal, Marcabru. Mas h tambm John Donne, Hopkins, Marino e os simbolistas franceses Laforgue, Corbire, Rimbaud. Traduo que no parece traduo traduo que poesia. POE, Edgar Allan. Em BARROSO, Ivo (org.), O corvo e suas tradues. 2 ed. ampi. Rio deJaneiro: Lacerda, 2000. O clebre poema de Edgar Allan Poe o tema desse saboroso hvrinho organizado por Ivo Barroso, que rene no menos que onze tradues de O corvo. Entre os tradutores (trs) para o francs, esto simplesmente Baudelaire e Mallarm, mas o maior destaque fica mesmo para Fernando Pessoa, o principal tradutor da pea para o portugus (J\Iachado de Assis inclui-se entre os outros sete). Muito importante: o livro traz o tambm famoso A filosofia da composio, texto em que o poeta norte-americano discorre sobre o processo de criao que engendrou O corvo. POUND, Ezra. Em CAMPOS, Augusto de (org.),ABCda literatura. Trad. Augusto dc Campos & Jos Paulo Paes. So Paulo: Cultrix, 1990. Nessa sua edio brasileira, oABCtraz as polmicas e originais idias de Pound sobre a arte da poesia, sobre arte e literatura em geral e sobre linguagem. Um longo captulo reservad ao famoso paideuma (espcie de seleo bastante rigorosa) poundiano, do qual apresentada uma pequena antologia (de poemas das mais variadas pocas). Em um captulo, o poeta chega a propor testes e exerccios de composio. RENN, Carlos. Co/e Porter: canes, verses. Participao de Augusto de Campos, Caetano Veloso, Cludio Leal Ferreira. So Paulo: Paulieia, 1991. Reunio de dezessete verses incluindo quatro do autor e trs de Augusto de Campos de canes do compositor americano, alm das suas respectivas partituras, trazendo ainda textos do autor, de Augusto, de Caetano Veloso e do maestro Cludao Leal Ferretra sobre a obra de Porter. O livro, de edio j esgotada (e editora no mais existente), pode ser adquirido a partir de pedido pelo e-mail carlosrenno@uol,com.br.
A MSICA DOS CAUSOS PAULO FREIRE Ei, moo, voc mesmo que estou chamando. Dona, eu preciso falar com a senhora. Apeiem do cavalo que nossa prosa carece de tempo. Vo ouvindo... Desde o dia em que acreditei que pontear uma violinha tambm era trabalho e sa andando por a mais meu instrumento, tocando num tanto de lugar de fazer gosto, fui percebendo uns sistemas muito especiais no falar e cantar das pessoas de cada regio. A musicalidade existente na fala do caipira, ou sertanejo, carrega dentro de si toda a histria do lugar. Muitas vezes no conseguimos entender o que eles dizem, parecendo tratar-se de outra lngua. Um dos maiores contadores de causo do Brasil, Geraldinho Nogueira, que agora pode ser ouvido at em CD, um bom exemplo. necessrio escutar vrias vezes, para poder entender tudo o que ele diz, para ver a maneira pela qual conduz a narrativa, e, fmalmente, deliciar-se com a msica do causo. Nesta oportunidade que tive para desenvolver o assunto em um curso no Ita Cultural, em julho de 2002, aprendi um tanto de coisa. Dois anos atrs havia realizado um trabalho semelhante no Festival de Inverno, em Diamantina, Minas Gerais, e percebido a importncia de manter esse tipo de prosa. Pois l em Diamantina ouvi entre os muitos causos das tecedeiras, de So Gonalo (padroeiro dos violeiros, casamenteiro, patrono da fecundidade humana e protetor das prostitutas), a incrvel histria dos gmeos Pedro e Paulo. Quando se levanta esse tipo de discusso, as histrias comeam a surgir naturalmente. Um dos bons ingredientes para isso a provocao. Contei que meu mestre de viola, seu Manelim, l do serto do Urucuia, Minas Gerais, veio visitar-me em So Paulo e levei-o para conhecer a avenida Paulista. Ah, moo, dona, vo ouvindo. Era poca de Natal e havia em um banco uma exposio sobre o Papai Noel. Era um monte de bonecos em tamanho natural, vestidos de Papai Noel, que ficavam se movendo e fazendo diversas atividades: tocando msica, lendo jornal em frente da lareira, a Mame Noel costurando, etc. Quando o mestre viu, foi logo me per guntando: Quem esse velhinho?. Respondi ligeiro: Ora, o Papai Noel!. A lembrei que l no serto no existe esse ser que leva presente no Natal e enche de gente os shopping centers no fim de ano. Fui tentar explicar, e s ouvia as reaes espantadas do mestre. Papai Noel um velhinho que mora no plo norte, e o mestre respondeu: plo o qu?, desce pela chamin da lareira, lareira?, , e veste esse tanto de roupa por causa da neve, neve?, e vem voando num tren, tre... o qu?, puxado por renas voadoras, mas que diabo isso de rena?, ah, sei l, um tipo de veado, veado que voa?, , e, se a criana e comporta bem o ano inteiro, o bom velhinho d presente... Parei por a, vendo o absurdo da situao. E difcil achar um ser mais brasileiro que meu mestre, seu Manellm. Penso que sua histria se confunde com a trajetria da prpria viola dentro do Brasil. O instrumento chegou com os colonos e jesutas portugueses, correu para dentro do pas e, assim como o homem brasileiro, foi se misturando aos povos negro e ndio. Dessa forma, ganhou um monte de assunto: os diferentes ponteados, as msicas relacionadas natureza, a tcnica e afinaes, como tambm o famoso pacto com o diabo. Volteando para o assunto do mestre, seu Manelim viveu a vida inteira em Porto de Manga, hoje uma cidade chamada Urucuia, com pouqussimo contato com os outros centros. A cultura da regio foi evoluindo concentrada nela mesma, atravs dos anos, dentro do ritmo e tempo do serto,
do riozinho correndo, a poca de chuva e seca, os causos de cangaceiros, a Coluna Prestes, conhecida como os revoltosos, a receita de corpo fechado, os pais ensinando para os filhos, netos, bisnetos... Da que digo uma verdade para o senhor e a senhora, ah, tenham certeza de que esse tal de Papai Noel no existe, inventaram o homem porque as crianas l desse plo norte eram muito danadas, O que existe aqui caboclo-dgua, saci, capeta, bicho da noite, curupira, um tanto de histria que s vendo. A puxei o mestre daquele monte de Papai Noel. Ele estava gostando, claro, os bonecos se movimentavam sozinhos, uma banda de Papais Nois tocava um charleston, pendurados em um tipo de bar destes de faroeste (putz...). Dali passeamos um pouco mais, assunto puxa assunto, e falamos das folias, que seria o equivalente ao Papai Noel do serto. A senhora vai dizer, com toda razo, que isso de folia de Reis e Jesus tambm importado, no nasceu no Brasil. Ah, mas em nosso pas as folias se transformaram em um mundo extraordinrio. Quer ver? Pegando o assunto pelo outro lado, fiquei com muita raiva de um padre alemo que viveu um tempo no Urucuia e no deixava os sertanejos entrarem com as folias dentro da igreja para saudar a Lapinha, pois ele dizia que essa era uma festa profana, que ia contra toda a tradio catlica e que os trs Reis Magos estavam enterrados na Alemanha. Pode parecer que s vezes falo um pouco atrapalhado, mas acredito na evoluo dos costumes, at gosto de Papai Noel e coelho da Pscoa, mas tem um tanto de ser rondando em volta da gente, nascido e criado em nosso quintal, que a gente enxerga cada vez menos. Pois, se no dermos mais carinho para eles, vo todos embora. Tem mais, tem mais: gosto de ver o brilho nos olhos das pessoas quando contam suas histrias, como o homem do saco, a loira do banheiro e o famali. Sou cismado com folias de Reis; ali nasce um tanto de causo e msica. Tonce vou pegar emprestado um trecho de meu livro e CD Lambe-lambe, no qual explico resumidamente como funcionam as folias de Reis do norte de Minas Gerais. Vo ouvindo... Do dia 25 de dezembro a 6 de janeiro, quem andar pelo serto vai encontrar diversas. Cada folia formada por oito, dez, doze ou mais folies, que seriam os prprios Reis Magos. Eles caminham com seus instrumentos, cantando de casa em casa, dando a boa nova do nascimento de jesus. Essa caminhada representa a viagem dos trs Reis Magos, que saram do Oriente e foram a Jerusalm adorar o filho de Deus. Os fohes s andam de noite, pois os Reis assim faziam, orientando-se pela estrela-guia. Chegam na casa da pessoa e fazem diversos cantos: para anunciar a vinda do Menino-Deus, para saudar o dono da casa, para agradecer a acolhida e outros. Depois desses cantos acontecem as brincadetras: lundus, quatros, ponteados de viola, que s terminam no amanhecer1. Frequentei folia como folio, tocando viola, e tambm como come-queijo, que quem fica andando junto com a folia apenas para olhar e comer os agrados que o dono da casa oferece. Nesse servio de folio, aprendi um tanto de toque de viola. Enquanto espervamos cair a noite e as estrelas voltarem para podermos seguir viagem, passvamos o dia em alguma casa, descansando, proseando, inventando msica, dando notcias dos conhecidos, numa camaradagem boa que vai crescendo entre os folies. Toque de viola um tipo de msica instrumental que costuma tratar da natureza e traz sempre um causo por detrs. Conta-se a histria e depois mostra-se como se transformou em msica. assim com a corrida do sapo e o veado, da inhuma caprichosa, do vo do papagaio, entre outras. A arte de transformar causo em msica muito especial, por isso acredito que quem quer
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Paulo Freire, Lambe-lambe (So Paulo: Casa Amarela, 2000), p. 11; acompanha CD com cinco msicas.
aprender viola tem de morar no serto e encostar em um violeiro local. Para executar esses toques, s ouvindo as explicaes do sertanejo, olhar junto com ele os movimentos da natureza, para depois transform-la em msica. Quando fui morar no serto do Urucuia, senti necessidade de aprofundar-me na histria local para poder entender sua cultura. Acredito que, desse momento em diante, fui misturando de uma maneira cada vez mais intensa a msica e a literatura dentro de mim. Muitos acontecimentos locais viraram msica, como, por exemplo, a dana do quatro Apanhou, Geraldo.
Mas apanhou de Mana, apanhou de Joo, mas quem bateu foi Maria, na casa de Joo Beiro. Apanhou, Geraldo, sua fama se acabou.
A partir desses versos, sa buscando sua histria e encontrei um interessante recorte das relaes humanas do Urucuia (ah, se o senhor ficou curioso sobre o Geraldo, corre para o Lambe-lambe2, que o causo est l, bem explicadinho). Quanto aos animais, vejam s o toque de viola sapo e o veado, que acabei de mencionar. Pois bem, esse toque conta da corrida entre os dois bichos. Eles ficam proseando, um provocando o outro, e, no dia da corrida, o sapo tapeia o veado, diz que a nica condio que impe para o desafio que ele corra no brejo e o veado na campina. Como no vo estar se vendo, prope irem cantando, assim pelo menos um escuta o outro. O veado acha esquisito, mas aceita. Depois da conversa, o sapo chama toda a sua parentada, cada um fica em um ponto mais afastado do brejo e eles vo cantando, um depois do outro, para que o veado pense que o sapo est correndo. Como sua corrida cantada cada vez mais ligeira, o veado trana as pernas, cai e perde a aposta. Esse causo falado, mas na hora de passar para a viola vira um terna instrumental. Para que a viola transmita toda a idia da corrida, o canto do sapo feito sempre no mesmo lugar do instrumento, enquanto o canto do veado, cada vez mais difcil, fica passeando pelo brao da viola. Seu Manoel ia me ensinando esses toques, depois encontrava com outros violeiros que sempre tinham sua prpria verso para o acontecido, mudando a histria tanto no modo de contar, como no de tocar. Dessa forma, fui buscando minha maneira de poder retratar tudo o que estava vendo e vivendo junto dos mestres sertanejos. Fui gostando tanto desse servio que, quando estou escrevendo, procuro a musicalidade existente nas palavras. Em relao s msicas, toda cano ou toque de viola que componho carrega um causo que provoca a msica. Nos CDs que lancei, busquei uma idia para reger o conjunto das canes. Assim foi em Rio abaixo3, que o nome de um toque de viola, de uma importante afinao do instrumento, alm de ser o causo do capeta descendo o rio tocando viola, encantando as moas e seguindo com elas rio abaixo; esse CD reflete bem minha experincia no serto. Com o segundo CD, So Gonalo4, giro em torno do santo protetor dos violeiros, mas com um p no profano, por ser santo da fecundidade e protetor das prostitutas; nesse trabalho busco novos caminhos para o instrumento. Em meu site na internet, explico, msica por msica, o causo que corre por trs delas. Sempre que volto para o Urucuia, seu Manoel tem uma histria nova, um toque diferente, uma maneira especial de contar os causos. A viola, alm da parte tcnica do
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Ibid., p. 125. Paulo Freire, Rio abaixo: viola brasileira (So Paulo: Independente, 1995), 1 CD. 4 Paulo Freire, So Gonalo (So Paulo: Pau Brasil, 1997), 1 CD.
instrumento, carrega essa tradio do homem do campo, pois a vida do sertanejo escorre melodiosa pelo bojo da viola. Volteando, volteando, ai que eu agarro na conversa e quase perco o assunto! Nas folias, alm do aprendizado de viola, os novos causos vo surgindo nossa frente, caudalosos. Imaginem que uma vez sa com uma folia a cavalo, pois tnhamos de percorrer um bom pedao. Depois de cantar em uma casa bem arretirada, em uma noite estrelada, perto de um acampamento de ciganos, nossa viagem foi interrompida por dois cavaleiros. Eram dois ciganos que saudavam a gente e pediam para ter uma conversa com o chefe da folia. Seu Manoel Quaresma se adiantou e deu o boa-noite. Os cavaleiros perguntaram qual era o rumo de nossa viagem. Nossa obrigao anunciar de casa em casa o nascimento de Jesus, retrucou seu Manoel. E o cigano arrematou: Pois ali nossa casa e a gente cristo, entonce vocs tm que ir at l. Estamos esperando a folia cantar para ns!... Deram meia-volta com seus cavalos e seguiram para o acampamento. Seu Manoel deixou eles andando na frente, reuniu todos e falou bem baixinho: Eles esto certos, se ali que moram, ns temos que cumprir nossa obrigao. Mas, ateno, Antnio, Z Geraldo, venham c; vocs no vo cantar no acampamento, no. Depois que a gente apear dos cavalos, vocs vo ficar bem do ladinho dos animais e no podem sair de perto nem desgrudar os olhos deles, por um segundo que seja. Nosso dever cantar, mas esse povo ladino, entonce vamos prevenidos. Assim fizemos. Quem carrega a bandeira dos Santos em uma folia de Reis chamado de alferes. E um cargo muito especial; o alferes tem de saber todos os movimentos da bandeira. Tem o ritual de entrega para o dono da casa, a postura na caminhada, os volteios e floreios quando encontra com outra folia, mais um tanto de segredo. Pois o alferes fez os movimentos devidos e entregou a bandeira para o chefe l deles. O homem levou a bandeira para dentro de uma barraca. tradio que o dono da casa pregue com um alfmete algum agrado na bandeira, que servir de ajuda para o dia da festa de Santos Reis. O cigano deixou a bandeira dentro da barraca e voltou para junto de todos. A folia cantou a histria do nascimento de Jesus, bem ao lado de uma grande fogueira, com os ciganos em volta. Depois sapateamos o lundu e danamos o quatro. Foi animado demais. Os ciganos participavam de tudo. Passamos momentos muito alegres com eles. Na hora de ir embora, fizemos as despedidas, o chefe dos ciganos buscou a bandeira, entregou para o alferes e fomos em direo aos cavalos. Antnio e Z Geraldo estavam ali, a postos, ao lado dos animais. Vimos que na bandeira havia algo diferente, mas no podamos demonstrar curiosidade. Era hora de montar nos cavalos, saudar os donos da casa e seguir viagem. Quando nos afastamos um bom pedao, ouvimos o chamado do alferes: Gente, vem c ver uma coisa, corre aqui!. Juntamos todos em volta e vimos um tanto de dinh eiro grudado na bandeira como nunca ningum tinha dado. Os ciganos nos surpreenderam com sua generosidade, devoo e alegria. Seu Manoel depois explicou: E, sim, eles deram uma lio na gente. Entonce, da prxima vez que formos cantar em um acampamento, vamos fazer do jeitinho mesmo que fizemos! No gosto de dar palpite novo em assunto que no conheo. Vambora, gente!. Por isso que digo para todo mundo correr atrs de uma folia e ver os assuntos brotando. Nessas viagens serto adentro, junto com os folies, os causos e as violas andam juntos. Qualquer festa popular carrega dentro de si um imenso potencial de histrias de nossa literatura oral.
Pois bem isso que o causo, a literatura oral. O pai de Joo Guimares Rosa tinha um armazm em Cordisburgo, e o menino ficava muitos momentos junto do pai, ouvindo histrias dos viajantes que passavam por ali, cada um da sua maneira, com sua msica especial do falar. O prprio escritor dizia que o armazm do pai havia rendido assunto demais para ele. Andei fuando um pouco a literatura de Guimares Rosa e tive a alegria de conhecer pessoal- mente Manuelzo, que o escritor retratou em seu livro Manuelzo e Miguilim . Vou contar um causo acontecido com o homem para vocs verem a poesia que esse povo carrega. Manuelzo estava em So Paulo, capital, participando de um evento ligado ao escritor. Fizeram uma festa em sua homenagem e corri l para conhecer o homem. Manuelzo, com seus 92 anos, ficava sentado em um sof contando histrias para todos, sempre com um humor muito fino. At que apareceu uma moa nova e bonita, que j era amiga dele de outros tempos. Fazia muita festa, abraava, beijava e lhe dizia: Ah, Manuel, que beleza, voc aqui em So Paulo, que saudades, abraava e beijava, Ah, que bom te ver, quanto tempo, e abraava, beijava, abraava e beijava, at que ele disse: Ah, se eu fosse vinte anos mais novo...; a moa, amiga dele, foi logo provocando: Voc fazia o qu, Manuel, pode dizer, fazia o qu?. E ele arrematou: Pois eu atravessava o rio e no molhava nem os ps. Ai, ai, ai, olhe s a poesia passeando pelo Manuelzo. Os artistas que fazem seus trabalhos inspirando-se nas tradies, no homem do campo, sempre colocam muito de si em suas obras. Vo criando um mundo em cima do personagem, alimentado por seus causos, modo de andar, alguma frase solta, um olhar, uma msica cantada, uma paisagem. Acredito que nesses instantes que os personagens vo ganhando vida; toda a experincia que o artista carrega transforma-se no mundo que vai brotando de seu trabalho. Manuelzo, s vezes, reclamava de Guimares Rosa, dizendo que o escritor mentiu muito sobre ele. Alis, nessa questo de mentir, meu pai, o escritor Roberto Freire, disse-me uma frase muito legal. Um dia estava contando uma histria e vi que ele aumentava para uns lados e diminua para outros. As pessoas escutavam boquiabertas, adorando o causo. Quando saram de perto, fui logo dizendo: Mas no foi bem assim que aconteceu, voc inventou um pouco. E ele respondeu: Eu minto em respeito inteligncia das pessoas. Pois isso mesmo, quando se conta uma histria, quem o conduz quem est ouvindo. Pelas suas respostas por meio de expresses e olhares que escolhemos o caminho do relato. Na individualidade de todos existe uma forma nica de ver e contar os causos. Trabalha-se muito a fantasia, tanto de quem est contando como a de quem ouve. Vamos criando um mundo em nossa cabea. A roa revela-se riqussima nesse momento, porque ali a imaginao exercitada no dia-a-dia. Fao parte da Associao Nacional dos Criadores de Saci. Estamos reintroduzindo o saci nas matas e na imaginao das pessoas. Nosso presidente o engenheiro Jos Oswaldo Guimares. Ele faz algumas palestras e cuida pessoalmente do transporte dos bichinhos e sua aclimatao nos novos lugares. um especialista em causos. Contou-me que Cmara Cascudo dizia que o medo o pai de todos os mitos. A partir do medo do desconhecido que passamos a enxergar um tanto de assunto. E o presidente acrescenta, por sua conta: O sertanejo antes de tudo um forte... de dia! Porque de noite morre de medo do escuro e corre para trs de sua mulher, que tem um contato mais intenso com Deus.
O vaqueiro Manuel Nardi inspirou a Guimares Rosa alguns traos do personagem Manueizo, da novela Uma estria de amor, publicada no livro Corpo de baile (1956) e, a partir de 1964, no livro Manueizo e Miguilim.
Por falar em saci, acredito que esse meu modo s vezes atrapalhado de escrever tudo por causa dele, que vai embaralhando os meus pensamentos. Como sei que o senhor e a senhora apreciam muito o bichinho, selecionei alguns trechos do captulo em que trato sobre este assunto em meu livro Lambe-lambe. Vo ouvindo: As crianas tm mais facilidade em ver o saci. Para quem no sabe, o saci um primata que, na idade adulta, atinge um metro de altura. A cor de sua pele bem escura, suas feies so parecidas com a do ser humano. Tem uma perna s. Duas espcies j foram catalogadas e devem ser escritas em itlico, so elas: saci -pere r, que a mais encontrada, e tem tambm o saci -acu, que chega a atingir um metro e vinte de altura. Quanto ao gorro, os criadores contam que ele tem um plo mais avermelhado na cabea, formando um funil, o que d a aparncia de um gorrinho. Mas, para quem jura que viu gorro, porque viu mesmo. Saci gosta muito das coisas que ficam balanando: crina, rabo, pano no varal. As lavadeiras fazem rodelas com riras de pano para segurar a lata em cima da cabea e depois penduram tudo no varal. O saci v aquele pano balanando e acaba enrolando na cabea em forma de gorro. O cachimbo. Ele quebra galhos de bambu para ficar mastigando. O pedao de bambu parece com o cachimbo. Mas, gente, saci mexe em tudo, some com as coisas, ento s vezes cachimbo mesmo o que tem na boca. O mdico Vitrio Maddarena, um dos primeiros membros da associao, baseado em seus conhecimentos e observaes de campo, acredita que o saci tem uma perna s por especializao. Na verdade, as duas pernas saem da bacia e se fundem em uma, para poder andar em lugares fechados, como bambuzais, adquirindo maior mobilidade 5. Pois bem, assim como o caso do saci, existem diversos seres espalhados por a que s vezes a gente no consegue enxergar. O que os vem espantando de nosso convvio a luz eltrica. Com a iluminao cada vez mais forte na roa, a sombra foi se afastando. Antigamente, era s abrir uma janela que a gente podia enxergar a escurido; agora ela est to longe que no d nem para perceber o tanto de bicho que mora l dentro. A Associao Nacional dos Criadores de Saci no consegue ter sede fixa, pois o saci apronta multo, esconde a chave, tranca as pessoas por dentro, mistura os documentos... Ento, optamos por uma sociedade mais livre, com alguns encontros e caminhadas na mata para cuidar do bichinho. A cidade de Botucatu, no interior do estado de So Paulo, promoveu o I e o II Festival do Saci, nos anos de 2001 e 2002, respectivamente Caminhadas na mata para ver saci; shows de violeiros; encontro com cientistas da Unesp e da Unicamp para entender a evoluo desse primata; diversas ONGs se movimentando para dar apoio; palestra do presidente da Associao. Tudo isso organizado pelo secretrio de Cultura da cidade, Wilson Nakamoto, profundo conhecedor de viola e, ele tambm, um criador de saci. Existe ainda a Associao dos Criadores de Lobisomem, em J oanpolis, interior de So Paulo, e os Criadores de Mula-sem-Cabea, em Belo Horizonte, Minas Gerais. Essas duas associaes, em uma ousada iniciativa, promoveram o casamento desses dois seres. Foi no Mosteiro do Caraa, em Minas Gerais, em 2001. O encontro foi um sucesso, devidamente filmado e fotografado pelos criadores. O presidente dos criadores de lobisomem, Walter Cassalho, contou-me do principal problema que eles esto enfrentando agora. A preocupao das duas associaes com a procriao entre as duas raas. Eles tm interesse, tambm cientfico, em ver que tipo de animal vai nascer com o acasalamento dos dois seres. Porm, a mula estril... Foram a campo, pesquisaram e descobriram: se a mula-sem-cabea for coberta bebendo gua meia-noite da sexta- feira da Paixo, poder emprenhar. A felicidade dos criadores durou
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pouco, pois sabido que a mula-sem-cabea solta fogo pelos olhos e pela venta; assim, se ela beber gua, poder apagar seu fogo. A, lobisomem nenhum conseguir resolver a questo... Quando fui fazer as pesquisas para escrever o livro Eu nasci naquela serra6, biografia dos compositores paulistas Angelino de Oliveira, Raul Torres e Serrinha, trs pioneiros da msica caipira, tive um desnimo inicial com a falta de material escrito sobre eles. Fui a arquivos de jornais, bibliotecas, e nada. E olha que so os compositores das msicas Tristezas do Jeca, Cabocla Teresa, Chitocinho e Xoror, Saudades de Mato, entre muitos outros sucessos. O desnimo veio de constatar a pouca importncia dada msica caipira, como tambm de vislumbrar a trabalheira que teria pela frente para reconstituir a vida desses compositores. Ento, peguei meu gravadorzinho e fui a Botucatu entrevistar amigos e familiares dos biografados. Ah, moo, foi uma grande alegria. Percebi que, se por um lado havia a dificuldade na reconstituio histrica, por outro eu ficaria um bom tempo por conta de ouvir causos e mais causos de Angelino, Torres e Serrinha. Sobre Angelino, nascido em 1889, autor de Tristezas do Jeca, reconhecidamente um bomio, um homem voltado sua arte, todos os amigos me contaram uma histria muito significativa de sua vida. Cada um da sua maneira, carregando de emoo o acontecido. Reproduzo aqui o trecho do livro em que o causo contado. Vo ouvindo: O trem noturno havia acabado de Chegar a Mairinque. Madrugada fna, uma garoa fina castigava as poucas pessoas que descsam naquela estao. Em meio nvoa, percebe-se um carregador negro ajudando uma famlia a desembarcar do trem. Angelino de Obveira vai passando a sua bagagem para o carregador. Depois da dtnna mala, ele volta para dentro do trem para reaparecer no instante seguinte junto com sua esposa, Maria. O casal carregava seus trs filhos, que dormiam em seus braos, Tasso, urea e Angelino Filho. Tendo pedido demisso do cargo de escnvo de policia em Ribeiro Preto, Angelino e sua famlia desciam em i\Iairinque para pegar a baldeao da Sorocabana rumo a Botucatu, onde ele sonhava montar um consultrio de dentista. O vento que batia na plataforma compnda e vazia os castigava. Angelino estava agoniado, pois largava um emprego estvel, com filhos pequenos para criar. A verdade que no conseguia viver longe de Botucatu, precisava voltar para l, sabia que s seria feliz nessa cidade, Durante a viagem, enquanto o trem passava pelas estaes de Limeira, Campinas e Salto, Angelino no conseguia pregar o olho. A volta para Botucatu era um risco que precisava correr, mas a perspectiva de comear uma vida nova, sem uma reserva de dinheiro, nem casa para morar, o deprimia e assustava. Para piorar, agora em Mairinque, o frio cortante e os pingos dgua molhavam ele, a mulher e os filhos. O carregador vai na frente com as malas, ligeiro. Quando chega parte coberta da estao, ele diminui o passo e espera o casal se aproximar. Maria d um suspiro de alivio quando sente estar protegida da chuva. Angelino segue quieto, olhando para o vazio, o corao batendo apertado. O carregador volta a andar na frente do casal, empurrando seu carnnho. E comea a assobiar. A melodia escorregava pelos lbios do homem. Maria olha ansiosa para Angelino, que continua andando reto, distante de tudo. De repente, ele percebe no assobio do homem a melodia de sua msica Tristezas do Jeca. Angelino diria, anos mais tarde: No sei o que a vida ia me dar, pois deixara o certo pelo duvidoso, o positivo pela aventura. E, naquela amargura do ambiente, quando o carregador assobiou a Tris1eas, um raio de sol como que varreu a nvoa e o frio. E eu senti ah, na plataforma deserta, no meu anonimato de autor da msica, a intensa glria de ser
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Paulo Freire, Eu nasci naquela serra: a histria de Angelino de Oliveira, Raul Torres e Serrinha, ilustr. Benedito Vinicio Aloise (So Paulo Paulicia, 1996), 1 CD.
feliz. Aproxima-se do homem e lhe pergunta: Mas o senhor conhece essa msica? Se conheo... responde o carregador. Essa moda aqui de um homem bom, l de Botucatu, um caboclo bom que s faz coisa bonita... O senhor quer escutar? E assobiou mais um pedao da msica. Angelino comeou a chorar. O carregador pra de empurrar o carrinho, vira-se para ele e pergunta: Por que o senhor est chorando? Porque esse caboclo bom que o senhor est falando sou eu, o Angelino de Ohveira. O homem largou o carrinho, aquela msica vinha lhe ccompanhando o dia inteiro, no lhe saam da cabea os versos com os quais ele tanto se identificava. Olhou bem para Angelino, viu a emoo que transbordava e tambm chorou. Os dois se abraaram ali na plataforma vazia, debaixo dos olhos molhados de Maria. [...] Naquela noite fria em Mairinque, Angelino, que no era de esconder seus sentimentos, emocionava-se profundamente com a dimenso que sua msica tomava. A Tristezas do Jeca simbohzava toda a situao do homem do campo, sua realidade de vida e, apesar de todas as suas tnstezas, a saudade que sentia com a migrao para os grandes centros. Suas imagens simples e fortes espelham o sentimento do caboclo A msica vivia independente do seu autor, de sua insegurana e da chuva que caa na tnste estao coberta pela nvoa7.7 Percebi que, cada vez que ouvia, contava ou escrevia essa histria, ela vinha de modo diferente. Lembrei-me de um tempo em que freqentei um grupo de estudos sobre Guimares Rosa. Esmiuvamos sua vida e obra. Corramos para o caderno de anotaes que ele carregava em sua famosa viagem conduzindo boiada; reliamos as conversas com os vaqueiros da comitiva e tentvamos entender como havia criado tantas belezas. Depois de um tempo, fui ficando incomodado com esse servio; percebia que, dissecando o texto, de certa forma ele perdia sua magia. Fazamos a leitura deixando de lado as belezas da histria que estava sendo contada, pois o que queramos era compreender a criao de uma obra de arte. Vi que era hora de parar, e ca fora. Prefiro a magia. Foi isso que aconteceu para fazer as pesquisas do livro Eu nasci naquela serra. Claro que importante o registro histrico de uma corrente to rica da cultura brasileira, mas, talvez, se houvesse encontrado o que procurava em livros e revistas, no teria entrado to a fundo em minhas entrevistas e no convvio com contemporneos e familiares dos compositores. Nas conversas com os entrevistados, pude dividir o momento da contao do causo o olho brilhando, os caminhos diferentes, a palavra falada, a emoo da lembrana. No primeiro dia do minicurso do Ita Cultural, pedi para algum me contar um causo, e s um moo se animou, ainda assim porque apertei o tal, mas, ao fim do segundo dia, parecia que est vamos em volta de uma fogueira, ponteando viola, assando pinho e nos admirando com as histrias que iam aparecendo. Uma moa contou logo do homem do saco, que a perseguia em sua cidade. Ele vinha com um saco pendurado nas costas e levando dentro dele as crianas que aprontavam muito. Dizia que esse homem morava no interior de So Paulo. Prontamente um rapaz argentino retrucou que esse homem do saco tambm vivia na Argentina e em outros pases. Apareceu at a loira do banheiro, que vive morta (Que que tem, moo, isso mesmo que o senhor ouviu: vive morta.) escondida dentro do banheiro, com algodo nos olhos e no nariz assombrando a todos. Explicaram tudo sobre o famali, um tipo de diabinho que, para vir ao mundo, tem de fazer assim: pega um ovo de galo (O que , dona, no me enganei, no: ovo de galo!), pe
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embaixo do brao e deixa l por sete dias e sete noites. No tira para nada, nem para tomar banho. Deixa ele l, chocando. Depois desse tempo, vai nascer um diabinho. A a gente faz um pedido para o tal. O que acontece depois disso? Ai, ai, ai, tenho medo at de escrever isso aqui... Tem mais, tem mais: o unhudo, ser que vive na regio de Dois Crregos, no interior de So Paulo. um protetor da mata. Esse acontecido foi at matria de um jornal de Bauru. Com cerca de dois metros de altura, usa uma roupa toda esfarrapada, tem unhas muito grandes e fica espreita de quem destri a natureza. Um moo entrou na mata para derrubar uma rvore; ento, escutou um barulho. Olhou para trs e l estava ele: o unhudo. O ser esfarrapado deu um tapo no moo to forte, mas to forte, que ele foi parar desacordado do outro lado do rio Tiet. Ah, mas uma mulher que estava no curso logo arrematou que o unhudo tem um ciclo de trs aparies, e, como j foram as trs de Dois Crregos, ele est indo para outro lugar. Teve tambm um rapaz que contou da pesca batendo bumbum ah, vamos ser claros: dando bundada mesmo! E que ele veio l do Mato Grosso e disse que h uns rios com muito peixe. Quando saa noite para pescar, amarrava uma almofada no traseiro, entrava no barco e ia para o meio do rio. Entonce, comeava a dar bundada no assento do barco e, com o barulho e o movimento que fazia na gua, os peixes comeavam a pular para fora do rio. A, era s esticar a mo e bater para dentro do barco, que os peixinhos caam de monte l para dentro. E olhe que isso no histria de pescador! Outra moa revelou que, sempre que conversa com a me por telefone pois agora vivem em cidades distantes , ela tem uma histria nova. E, cada vez que pede para relembrar algum causo, a me se empolga, sai contando e no pra mais. Emocionei-me quando ela disse que estava sentindo necessidade dc guardar bem essas histrias, pois so muito especiais, para poder contar para seus filhos. No lembro se ela j era me, ou se estava pensando num futuro prximo. Fiquei comovido, pois venho percebendo que esse tipo de transmisso faz bem para todo mundo. Quem ouve, toma contato com um mundo antigo, muitas vezes idealizado, mas com uma imaginao muito grande, j que do tempo em que no havia televiso, ento escuta a histria e imagina o rosto dos personagens, os locais, as expresses tudo fica por conta da imaginao. E tambm para quem est narrando a histria e sente que seu mundo est sendo valorizado. A, pode-se at mentir em respeito inteligncia de quem est escutando. Essa empolgao faz com que o causo melhore, e muito! Todos os floreios e afluentes dos causos surgem desse momento de troca. Quando morei no serto do Urucuia, em 1977, incomodavame a impresso que as pessoas da regio me passavam, dizendo que o mundo delas no era bom, que o melhor era morar em uma cidade grande para poder vencer na vida. Isso faz com que abandonem seus costumes, por julgarem atrasados, e passem a ser como os personagens das novelas, com suas msicas, roupas, modo de falar, etc. O movimento que fazia, junto com os amigos que foram morar comigo no serto, era justamente o inverso. Estvamos vindo de So Paulo (aonde todos queriam ir) e insistindo com eles em que a grande riqueza que possuam estava justamente onde moravam, que deviam aprofundar-se e desenvolver a cultura da sua maneira. Penso que conseguimos convencer alguns poucos. Quando a TV Globo, porm, transmitiu a minissrie Grande serto: veredas8, com um elenco que juntava Toni Ramos, Bruna Lombardi e Tarcsio Metia, entre outros, os urucuianos se surpreenderam. Perguntavam para a gente: Mas esse Urucuia que eles falam tanto na televiso aqui mesmo?, E essas msicas de viola, so todas to parecidas com as que fazemos. Respondamos que sim, que a televiso precisava deles, de sua histria, de
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Minissrie de Walter George Durst, adaptao do romance de Guimares Rosa, exibida pela TV Globo, de 18 de novembro a 19 de dezembro de 1985.
mostrar a sua vida. Dona, moo, vo ouvindo: as escolas da regio, pelo menos naquele instante, procuraram os mestres de viola para ensinar os meninos, as folias de Reis sairam com mais vigor, os urucuianos lanavam um novo olhar para o cerrado, a roa e os animais. Entonce, percebi que o caminho mais rpido para essa revalorizao de sua vida e de seus costumes tem de passar pelos meios de comunicao e sua incrvel mquina de convencimento das pessoas a ser iguais aos personagens de seus programas. Procuro sempre falar do Urucuia, tocar suas msicas. Sei que a fumacinha que estou fazendo por aqui pode chegar at a regio e, assim, de alguma forma, estarei retribuindo o tanto que aprendi. Em minha famlia, tnhamos um grande contador de histrias, o tio Jota, tio de meu pai. Lembro que todas as vees que a famlia se reunia, fosse em festas, ou tambm em enterros e velrios, os meninos (pequenos e adultos) encostavam em tio Jota. Impecavelmente vestido, contava-nos histrias dos armazns de caf no porto de Santos, dava apelidos carinhosos, ouvia-nos com ateno, mostrava sempre um lado diferente das situaes que enfrentvamos. Essa necessidade que sinto de conviver com os causos pode ter comeado com o tio Jota. Lembro perfeitamente a musicalidade de sua voz e suas expresses quando nos envolvia com alguma histria. Ah, preciso dizer que nasci em So Paulo, capital, e que esses momentos eram vividos na cidade grande. Quero dizer com isso que o causo no uma exclusividade de quem nascido e criado na roa. Ah, moo, dona, vou tentar explicar, mas para isso tenho de comear perguntando: O senhor e a senhora, quando escutam um ponteado de viola, j no imaginam logo uma mata, um passarinho cantando, um riacho correndo? Mesmo quem nunca viveu no interior, no vem a lembrana de umas frias na fazenda, cheiro de cavalo, ou mesmo as histrias de um av que morava na roa? Pois bem. Uma vez fiquei matutando sobre por que a viola me escolheu (sim, o grande msico Pereira da Viola diz que a viola que escolhe o violeiro). Meu av paterno de Pitacicaba, interior de So Paulo; o materno de Campos dos Goitacazes, interior do estado do Rio de Janeiro. Quando conheci as duas cidades, jorrou em meus olhos o que elas tm de comum: os rios, O rio Piracicaba e o rio Paraba, caudalosos, banhando as cidades. Andando nas margens desses rios, ouvia em suas corredeiras o som da viola, quase que via os bandeirantes, jesutas, colonos portugueses, negros e ndios subindo os rios, formando os vilarejos e as cidades, promovendo as festas religiosas e pags e depois misturando tudo: cultura e sangue. Pensei em uma frase de Guimares Rosa: Urucuia margens altas, l na beira do serto. O rio e a beira do rio, o diabo descendo rio abaixo e, com o som da viola, os causos correndo, caudalosos, pelas veias do Brasil, o sangue sendo bombeado, as conversas todas se misturando e se confundindo com a natureza. Pois isso tudo para dizer que esse esprito de contador de histrias, que o meu tio Jota tinha e certamente algum parente do senhor, da senhora, ou vocs mesmos carregam, a mesma coisa que o som da viola. A gente no sabe explicar direitinho, s com as palavras, por que o som da viola leva a gente para a roa, por que os violeiros dizem que o serto mora dentro do bojo da viola, ou por que o grande instrumentista tem de fazer o pacto com o diabo. assim porque algum contou, porque a explicao nasceu da tentativa de entender os feimmenos da natureza. Ora, tem violeiro que sapateia na parede, tem outro que larga a viola em cima da mesa e ela toca sozinha... Est cheio de receita para se fazer o pacto com o tinhoso. Ento, a senhora pode afirmar que o capeta no existe? Hummm. Em uma roda em volta da fogueira, ou sentado beira do fogo de lenha, ou num quarto escuro para dar medo, surge uma histria, depois outra. Quando a gente a passa para a frente, dependendo da ateno de quem escuta, j damos nossa contribuio, e a histria vai crescendo, encorpando, ganhando vida, at virar uma verdade definitiva.
Quero dizer, cada um tem a sua verdade para determinado causo acontecido. Escuta s o canto deste sabi... Ser que ns vamos ouvi-lo do mesmo jeitinho? Decerto que no, minhas lembranas do trinado desse passarinho so muito diferentes das suas. J contei que o sabi-laranjeira cantava nas horas de meu namoro? No? Ah, deixa para l... O que foi, dona? Bom, a senhora que sabe. Se est na hora de ir embora, a pressa de vocs. Entonce, vou pedir para o menino ir buscar os seus cavalos. Ah, mas a prosa esteve boa demais, no deixem de aparecer por aqui para dar seus palpites, pois esse o meu maior prazer. Na pgina seguinte vo algumas indicaes de livros e msicas dos causos.
BIBLIOGRAFIA COMENTADA CERVANTES, Miguel de. Dom .Quixole de /a Mancha. Trad. Ferreira Guilar. Rio de Janeiro: Revan, 2002. Quero ver quem consegue convencer-me de que esse tal de Cervantes no foi um dos maiores contadores de causo de todos os tempos. Faa o favor de abrir o livro de novo, veja s o jeito como ele fala, os acontecidos que vo se sucedendo. Para mim, o Cervantes e o Geraldinho (olha s a indicao de CD) frequentaram a mesma escola. MEDINA, Sinval. Memorial de Santa CrUF Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983. Mais um livro que me tirou o flego. O Brasil escorre ali dentro. Um romance que traz um tanto de causo e que vive me impressionando muito, Quando acabei de ler, senti necessidade de fazer uma msica. Peguei a viohnha, e o senhor e a senhora no imaginam que tipo de msica veio.., um rap! , sim, O Memorial de Santa Cru por sua profundidade e novidade, me pediu um rap de viola. Se ele ficou bom, no sei, s vocs aparecerem em uma apresentao que eu toco ele. Mas o livro uma maravilha. ROSA, Joo Guimares. Grande serto: veredas. 19 cd. So Paulo: Nova Fronteira, 2001. Sei muito bem que quase tudo j foi dito a respeito dessa obra, mas deixa eu assoprar um pouco mais a brasa. Assim como outras pessoas j me contaram, comecei a ler as primeiras pginas do livro e logo parei, sem conseguir entender o que estava acontecendo. Acredito que, a partir do momento em que consegui ouvira msica criada pelo escritor, que me empolguei, fui at o fim e agora no consigo mais viver sem o Grande ser/do. um grande causo, muito do bem- contado. Esse livro me levou at a viola, que vive me devolvendo para ele. CDs TIO CARREIRO & PARDINHO. Modas de viola classe, vol. 3. So Paulo: Continental, 1974. 1 CD. As modas de viola contam sempre uma histria. Nesta questo pedi ajuda ao violeiro Roberto Correa, profundo conhecedor do tema, que foi me orientando. O compositor Carreinnho uni mestre no assunto. Tio Carreiro, com sua viola, foi um grande intrprete e compositor de pagodes. Acabam de sair suas obras completas em CD. bom ouvir tudo, mas, para ter uma idia das modas de viola, fica a sugesto acima. GERALDINHO, ANDR E ANDRADE & FIAMILTON CARNEIRO. Trova, prosa e rio/a. So Paulo: Anhanguera Discos/Som Livre, s/d. 1 CD. Geraldinho Nogueira um contador de causos genial. Est tudo l. Moo, dona, faa favor de ouvir esse moo e deliciar-se com as histrias e o modo de cont-las. A entonao, as palavras escolhidas, as situaes... pura literatura de um incrvel Brasil que a gente tem de buscar sempre. Andr e Andrade e Hamilton Carneiro vo dando as deixas para o Geraldinho. Tem vez que estou assim, toa, e me pego rindo sozinho de alguma lembrana de seus causos. RAUL TORRES & FLORENCIO. Raul Torres& F/orrnui. Coleo Luar do Serto. So Paulo: BMG, 2002. 1 CD. Raul Torres e Florncio formaram uma das maiores duplas da histria da msica caipira. As parcerias de Torres comJoo Pacfico so obras primas do gnero. Em sua poca, criaram o estilo falar e cantar, em que declamavam um poema e depois seguiam com a msica, desenvolvendo o causo retratado no poema. Ateno para a beleza dos versos de Joo Pacfico.
Os livros e CDs de Paulo Freire podem ser encomendados atravs de seu site: www.paulofreire.com.br.
IMPROVISO: TRADIO POTICA DA ORALIDADE MARIA ALICE AMORIM Essencialmente oral. assim a literatura popular, que, em Pernambuco, fincou razes com o esteio das xcaras e dos romances tradicionais, das cantigas de desafio, dos contos e das lendas, dos provrbios rimados, das parlendas e adivinhas; fincou razes com o charme das cantorias, dos cordelistas e do movimento editorial do cordel, das sambadas de maracatu; fincou razes com a leveza da ciranda, do coco e da embolada. O manancial potico, em prosa e verso, tem as cores da caatinga, mata e litoral, sobrepostas quelas herdadas desde o sculo XVI, a partir da ocupao portuguesa. Sim, porque o sotaque inicial era lusitano, ou melhor, ibrico, uma vez que a tradio de oralidade naquele pas era a tradio da pennsula Ibrica. Tradio peninsular que tambm chegou Amrica espanhola. Canes de gesta, romances de amor e de cavalaria, desafio de jograis, tudo isso veio na memria dos europeus e registrou-se na das geraes seguintes, passando de pai para filho, sedimentando-se na cultura do povo recm-criado. Literatura popular oralidade, no h como negar isso. O pesquisador Paul Sbillot criou a denominao literatura oral em 1881, para abranger provrbios, adivinhaes, contos, frases feitas, oraes, cantos; conceito que, com o passar do tempo, foi ampliado. Sua caracterstica a persistncia pela oralidade, registrou o folclorista Lus da Cmara Cascudo, no livro cujo ttulo tomou emprestado designao criada por Sbillot 1. So duas as vertentes dessa mesma manifestao: a impressa e a oral (hoje, no mais estritamente oral, pois o conceito de oralidade se expandiu, passando a incluir matrizes escritas). Aquela , conforme Cascudo:
[...] a reimpresso dos antigos livrinhos, vindos de Espanha ou de Portugal e que so convergncias de motivos literrios dos sculos XIII, XIV, XV, XVI [...], alm da produo contempornea pelos antigos processos de versificao popularizada, fixando assuntos da poca 2.
A produo literria do que designamos literatura popular talhada para a assimilao pela leitura em voz alta, pela declamao, pelo canto. Assim, a imposio da voz do poeta ou do contador de histrias to importante quanto a peformance corporal e dramtica na hora de apresentar o produto ao pblico. To importantes, ambas, quanto a envolvncia do tema e das palavras utilizadas; quanto as formas poticas, a rima, o ritmo e o metro. Defende Cmara Cascudo:
Todos os autos populares, danas dramticas, as jornadas dos pastons, as louvaes das lapinhas, cheganas, bumba-meu-boi, fandango, congos, o mundo sonoro e policolor dos reisados, aglutinando saldos de outras representaes apagadas na memria coletiva, resistindo numa figura, num verso, num desenho coreogrfico, so os elementos vivos da literatura oral 3.
Assim, os versos recitados pelas figuras do cavalo-marinho, as sextilhas criadas pelo poeta de cordel, os versos improvisados do mestre de maracatu, a peleja dos violeiros, o coco tirado no pandeiro, a cantiga de ciranda, o aboio de vaqueiro, as jornadas do fandango, do pastoril ou das pretinhas do Congo, tudo literatura oral, produzida numa ambincia peculiar. O universo mtico de anjos e demnios, princesa e Castelo, donzela roubada e anti-heri, cangaceiro e volante, Carlos Magno e os doze pares de Frana, padre Ccero e Antnio Conselheiro fornece os elementos, sobretudo picos e dramticos, de que se vale o criador para construir a obra. A voz viva do jogral, a palavra gesticulada dos poetas, a msica, a dana, esse jogo cnico e verbal que linguagem do corpo e colocao em obra das sensualidades carnais
Luis da Cmara Cascudo, Histria da literatura brasileira: literatura oral, vol. 6 da Coleo Documentos Brasileiros, 63, sob a direo de Alvaro Lins (Rio de Janeiro: J. Olympio, 1952), p. 21. 2 Ibidem. 3 Ibidem.
tudo isso, aqui e agora, tambm remd io, equvoco mas eficaz, das almas4, defende o medievalista suo Paul Zumthor, corroborando o fato de que a literatura popular, alm de ela prpria fornecer auton ornamente os elementos para uma linguagem cnica, est de tal maneira embrenhada nas diversas manifestaes culturais do povo, que quase impossvel encontrar canto, dana e msica dissociados da criao potica. O universo da literatura popular o universo cultural do povo que a faz e para quem feita; universo literrio cujo trao ancestral repousa na oralidade. No metal da fala, difundem- se poesia e fico essencialmente orais. GNEROS E FUNO POTICA No possvel render-se ao argumento simplista de que essa uma literatura de produo pobre, sem complexidade. Alm da importncia comunicacional, indiscutvel a literria. Esto em jogo valores esttico, pedaggico, lingstico, sociolgico, histrico, psicolgico e filosfico, que no podem ser absolutamente desprezados, embora os compndios continuem com o mesmo erro ao consider-la de pouca ou nenhuma importncia. Adverte o professor e ensasta portugus Arnaldo Saraiva:
No fim de contas, o desprezo ou esquecimento da literatura popular representar sempre o esquecimento e o desprezo do homem popular. E no se pense que isso apenas um problema politico, porque tambm um problema cientfico e um problema esttico5.
Repetio, reinveno de temas tradicionais consagrados ou inspirao singular, nessa literatura popular, que se produz no Nordeste brasileiro, d -se, como no podia deixar de ser, uma demarche arcaizante em vrios nveis, preservadora de um-siie de valores j postos de lado pela sociedade global, enquanto que a se realizam tambm os seus padres, o que sugerem os estudos da pesquisadora Jerusa Pires Ferreira 6, nesse confronto entre a cor local e o universal, entre o novo e o velho, entre permanncia e trans formao. Nesse caldeiro de mitos, importante observar que a recorrncia a temticas tradicionais se apresenta com roupagem prpria, quer pela assii-nilao de novos elementos ao enredo, quer pela criao de formas poticas. Ao apresentar variantes, decorrentes de motivos invariantes, deflagra-se, segundo o pesquisador Brulio do Nascimento, todo um processo de elaborao, um trabalho de metalingstica7, provando, afinal, que a literatura popular no esttica, como, de resto, todo processo criador. O maranhense Celso de Magalhes, contemporneo de Silvio Romero na Faculdade de Direito e que, em 1873, publicou dez artigos sobre a poesia popular brasileira utilizando em primeira mo a expresso literatura oral, antecipou -se em oito anos a Paul Sbillot , coletou um romance tradicional, D. Carlos de Montealbar8,em Paje das Flores, Pernambuco. So quadras rirnadas em ar, em redondilha maior (na poesia popular, a constante rtmica o verso de sete silabas, conforme registra Cmara Cascudo) 9. A terminao no a tnico, habitual na potica tradicional e muito recorrente na embolada, herana do verso herico, conforme menciona Rodrigues de Carvalho:
Linda cara tem o conde Para comigo brincar Mais linda tendes, senhora,
4
Paul Zumthor, A letra e a voz, trad. Amlia Pinheiro & Jerusa Pires Ferreira (So Paulo: Cia. das Letras, 1993), p. 258. 5 Arnaldo Saraiva, Literatura marginal-izada (Porto: ed. do autor, 1975), p. 113. 6 Jerusa Pires Ferreira, Cavalaria em cordel (So Paulo: Hucitec, 1979), p. 13. 7 Depoimento autora em agosto de 2001. 8 Slvio Romero, Estudos sobre a poesia popular do Brasil (2 ed. Petrpolis: Vozes, 1977), pp. 79-81. 9 Luis da Cmara Cascudo, Vaqueiros e cantadores: folclore potico do serto de Pernambuco, Paraba, Rio Grande do Norte e Cear (Rio de Janeiro: Ediouro, 1968), p. 18.
Para comigo10
A quadra uma das formas poticas mais antigas de que se tem noticia no Brasil, forma usual na Idade Mdia, impregnada nas diversas brincadeiras em que h presena da poesia, no importando se os temas so da tradio oral, da realidade contempornea, da interseco das duas. No bumba-meu-boi, por exemplo, os personagens apresentam vrias falas naquele mesmo formato, a quadra de sete silabas:
Vocs me chamam gostoso Eu no sou gostoso no Gostoso carne de porco Misturado com feijo11
No canto da ciranda, de extrema variedade na temtica potica e linha musical, conforme as pesquisas do padre Jaime Diniz, tambm temos a quadra setissilaba:
L detrs de minha casa Tem um riacho no meio Tu de l ds dois suspiros Eu de c, suspiro e meio12 Temos, ainda na ciranda, quadras decasslabas, cuja mtrica era cultivada na poesia trovadoresca galego-portuguesa, uma das matrizes da poesia popular nordestina: Morena, vem ver que noite to linda A lua vem surgindo cor de prata Faz-me lembrar da minha Maria Quando pra ela eu fazia serenata13
No de estranhar que a poesia esteja presente em praticamente todas as manifestaes populares, pois mesmo oraes, benditos, novenas, incelenas (canto para encomendar o morto), modinhas, ladainhas e matinas, cantos de trabalho, tudo recorre poesia mnemnica, em variadas formas, por revelar-se eficaz meio de comunicao oral, acessvel aos grupos de pouca escolaridade. No maracatu rural, o canto do mestre inicia com a marcha (improviso em quadra de sete silabas, gnero tradicional muito utilizado nos antigos desafios de viola), passando pelo samba de dez (dcima), pelo galope e pelo samba curto (ambos em sextilha). Numa quadra de coco transcrita por Mrio de Andrade: Corra depressa, V na casa de Maroca Si arranc a mandioca Que me impreste o cau14 O primeiro verso menor que os demais, remetendo ao que disse o autor, no livro
10
Rodrigues de Carvalho, Cancioneiro do Norte (39 ed. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1967), p. 96. 11 Hermilo Borba Filho, Apresentao do bumba -meu-boi (Recife: Guararapes, 1982), p. 83. 12 Jaime Diniz, Ciranda, em Hermilo Borba Filho (org.), Arte popular do Nordeste (Recife: Imprensa Universitria, 1966), p. 105. 13 Mestre cirandeiro Antnio Baracho da Silva, em versos dedicados esposa. 14 Mrio de Andrade, Os cocos (So Paulo/Brasilia: Duas Cidades/INL-Fundao Pr-Memria, 1984), p. 63.
Vida do cantador15, sobre a oitava da embolada, que consiste em duas quadras somadas, ambas em redondilhas maiores, mas com o primeiro verso, ou s da primeira ou das duas quadras, com apenas quatro slabas. Na cantoria, versos curtos (quatro ou cinco slabas) caracterizam a modalidade chamada de parcela ou carretilha, bem como a toada alagoana, que uma estrofe mista, com versos de sete e quatro slabas. Rodrigues de Carvalho registra estrofes em que a primeira linha apresenta trs ou quatro slabas16. E Coutinho Filho, em Violas e repentes, registra embolada utilizada por violciros, em dcimas de quatro ou cinco slabas 17. O pesquisador pernambucano Berlando Raposo tambm registrou um aparentado tipo de oitava entre os mestres de maracatu rural da Zona da Mata pernambucana, cuja diferena consistia no tamanho dos versos menores: eram de apenas duas slabas 18. Embora seja construdo em sextilhas, a mesma caracterstica citada por Mrio de Andrade (verso tetrasslabo) aparece na primeira linha de um samba curto de maracatu do mestre Joo Paulo, cuja rima (ABBCCB) no a tradicional rima em ABCBDB das sextilhas de cordel:
na viola que eu quero deixar tu roxo eita que poeta frouxo vou lhe meter o cacete se pratico gabinete a que leva acocho19.
Em redondilha menor (cinco silabas), uma das verses do mais antigo romance inventado em Pernambuco:
Fecha a porta, gente, Cabeleira a vem, Matando mulheres, Meninos tambm. Corram, minha gente, Cabeleira a vem, Ele no vem s, Vem seu pai tambm20.
Cabeleira era o apelido de um rapaz mestio, Jos Gomes, cuja fama era a de valento, incitado e acompanhado pelo pai nas arruaas. Em 1776, no largo das Cinco Pontas, Recife, quatro dias aps ter sido julgado, foi forca, transformando-se, rapidamente, por causa da idade e do arrependimento fmal, em tema de romance popular, o primeiro genuinamente pernambucano e que estimulou a criao literria erudita. com o romance histrico O Cabeleira (1876) que Franklin Tvora (1842-1888) inicia, de fato, a chamada Literatura do Norte. No mesmo tema inspira-se Silvio Rabelo (1899- 1972) para escrever a pea de teatro Cabeleira a vem.
15
Mrio de Andrade, Vida do cantador, Coleo Obras de Mrio de Andrade, n 25, edio crtica de Raimunda de Brito Batista (Belo Horizonte: VilIa Rica, 1993), p. 68 16 Rodrigues de Carvalho, Cancioneiro do Norte, cit., p 173. 17 E. Coutinho Filho, Violas e repentes (Recife: ed. do autor, 1953), pp. 39-42. 18 O pesquisador e escritor Berando Raposo (1916-2000) escreveu sobre o maracatu rural e a potica dos mestres em carta dirigida ao Dirio de Pernambuco, publicada em 16 de maro de 1977. 19 Esses versos apareceram numa sambada (ou torneio potico) de maracatu, disputada entre os mestres Joo Paulo e Z Galdino, que foi gravada em fita cassete por aficionados de tais embates, e ainda hoje reproduzida pelos apologistas. 20 Slvio Romero, Folclore brasileiro: cantos populares do Brasil, Coleo Reconquista do Brasil, n 86 (Belo Horizonte/So Paulo: ltatiaia/Edusp, 1985), p. 94.
Silvio Romero (1851-1914) considera essa verso popular um romance notvel, especialmente por pertencer ao ciclo de guapos e valentes da tradio espanhola dos sculos XVII e XVIII e constituir uma prova cabal da tradio originada dos pliegos sueltos. Fernandes Gama registrou que trovadores criaram cantigas referentes vida e morte do Cabeleira, que as velhas cantavam para acalentar os netos. Outros romances destacados, com temtica pernambucana, so: Adolfo Rosa Meia-Noite; A mulher enganada ou A dolorida; Jos do Vale. Este ltimo assemelha-se, no tema e nos versos, ao Cabeleira, apresentando, porm, a forma dialogada das xcaras do sculo XVII:
Senhor presidente Se dinheiro vale Dou-lhe dez contos Solte Jos do Vale senhora me Dou meu corao Se o dinheiro pouco D maior poro21
Outro rico exemplo de literatura oral o fandango, que, conforme Jos Maria Tavares de Andrade, um espetculo popular que soma romance antigo, dana, msica, anedotas, ditos, lendas e oraes22. O romance antigo de que fala a xcara portuguesa de assunto martimo, a Nau Catarineta, cuja histria a de uma embarcao que passou sete anos e um dia deriva. Entre as demais variedades de literatura popular, temos pardia de oraes rimadas (Pelo-sinal, Salve-rainha e Ave-maria), como a famosa Ave-maria da eleio, do cordelista Leandro Gomes de Barros; ABC mnemnico (transposto da oralidade para os folhetos de cordel); parlendas, como a popularssima O tango-lo-mango23, o qual tambm recorrente na poesia do coco:
Eram nove irms numa casa, Uma foi fazer biscoito; Deu o tango-lo-mango nela, No ficaram seno oito
O tipo de estrofe usado na poesia de cordel e em outras manifestaes populares quadra, sextilha, septilha e dcima apenas parte do que utilizado nas cantorias, caracterizadas por uma variedade de modelos poticos, em que combinaes de estrofe e melodia fazem o violeiro improvisar os versos em obrigatrias formas fixas, porm de diferentes maneiras na poesia e no canto. de lei respeitar as regras da cantoria: a quantidade de linhas, o esquema de rima, a acentuao tnica, o refro, a orao (ou a capacidade de desenvolver o tema com fidelidade). Sem desleixar os cnones, parceiro e viola incitam o verso. Diz-se, embora no exista comprovao, que a sextilha e a deixa (obrigao de rimar a primeira linha com a ltima do adversrio) foram introduzidas na cantoria pelo paraibano Silvino Pirau de Lima (1848-1913), radicado em Pernambuco a partir de 1898. Diz-se, ainda, embora tambm no haja confirmao, que autor dos primeiros folhetos brasileiros de cordel e da primeira verso da peleja fictcia de Romano do Teixeira com Incio da Catingueira, em versos de seis linhas. No se deve esquecer que Cmara Cascudo, em Vaqueiros e cantadores, registra a ancestralidade da sextilha heptassilaba
21
Francisco Pereira da Costa, Folk-lore pernambucano: Subsdios para a histria da poesia popular em Pernambuco, prefcio de Mauro Mota (Recife: Arquivo Pblico Estadual, 1974), p. 423. 22 Jos Maria Tavares de Andrade, Fandango, em Hermilo Borba Filho (org.), Arte popular do Nordeste, cit., p. 31. 23 Silvio Romero, Folclore brasileiro: cantos populares do Brasil, cit., p. 296. Uma verso de O tango-lo-mango foi recolhida em Folk-lore pernambucano, por Pereira da Costa, que escreveu nota detalhada sobre tal parlenda. Mrio de Andrade, em Vida do cantador, relaciona-a a variantes da poesia do coco.
(ABCBDB), tanto quanto da quadra, que Carolina Michacis de Vasconcelos dizia popularssima em todo o sculo XVI, no qual predominara. No romance do Rei Artur, da Tvola Redonda, que Jorge Ferreira de Vasconcelos publicou em 1567 (Memorial das proeas da segunda Tvola Redonda), ao lado das quadras h sextilha igual dos nossos cantadores 24. Alm dos gneros mais freqentes no folheto, que so a estrofe de seis linhas (sextilha, em rima ABCBDB) e a de sete (septilha, em rima ABCBDDB), a dcima utilizada normalmente para as pelejas de cordel (em geral, fictcias). No folheto A embolada da Velha Chica, de Francisco Saies Arda, entretanto, o gnero a quadra por se tratar de um coco de embolada. Na cantoria, acrescente- se a dcimas e sextilhas um outro verso ( assim que a estrofe chamada no meio popular) muito comum: o mouro de sete-linhas (cada verso ou linha chamado de p), um dos gneros mais antigos no baio de viola e um dos estilos dialogados. Em sete versos de sete slabas, o primeiro diz as duas primeiras linhas; o segundo, as duas seguintes; o primeiro encerra com as trs ltimas. Dez-ps-emquadro, mouro voc-cai e mouro voltado so mais trs exempios de estrofes dialogadas, freqentes na cantoria. A estrofe em decassilabo conhecida por martelo, que pode variar na quantidade de linhas, outro gnero consagrado. Tambm comum glosar, com martelo, um mote (assunto em um, dois ou quatro versos) de decasslabas. A glosa pode ser improviso recitado, o caso da roda de glosa em que no h, muitas vezes, nem acompanhamento da viola. Os participanres, entretanto, a exemplo dos prprios violeiros e apologistas25, so altamente especializados. E importante ressaltar que existem, em Pernambuco e em outros estados do Nordeste, diversos tipos de repentista, embora possamos afirmar que os mais conhecidos sejam o embolador e o violeiro. Nessa modalidade, h os que peregrinam pelos bares e pelas praias e so vistos, com desdm, por violeiros de congressos e festivais, como uma subclasse. O coquista outro tipo de poeta improvisador, que pode ser o embolador ou o coqueiro da roda de coco, duas das muitas ramificaes dessa mesma vertente de improviso. H o glosador26, de que j falamos no pargrafo anterior; h o aboiador, que executa um canto de trabalho ao desfiar versos, enquanto tange o boi, em meio aos arabescos meldicos do aboio; h o cirandeiro; o mestre de maracatu rural, de caboclinho, de boi. Dos poetas que fazem questo de duelar no improviso, e que encontramos com muita fora atualmente em Pernambuco, os mais conhecidos em todo o estado so os violeiros e, na Zona da Mata, os mestres de maracatu. Estes ltimos protagonizam as sambadas, ou desafios entre dois mestres, que acontecem de setembro a fevereiro, quando os brincantes se preparam para o Carnaval. A POESIA, O DESAFIO E A VIOLA Vem de longe o cantar potico ao desafio: do canto amebeu da Antiguidade grega, das disputas dos jograis da Idade Mdia, das diversas culturas espalhadas pelo mundo em todas as pocas. H at notcia de improviso potico entre indgenas brasileiros, praticado antes mesmo da ocupao europia. No Nordeste brasileiro, mais especificamente nos sertes, despontaram poetas cuja tradio os mandava pegar o pandeiro, a rabeca ou a viola e sair de fazenda em fazenda pelejando com os colegas, em disputa versificada inteligente. No uso popular do Nordeste brasileiro, a mesma palavra, cantoria, designa a atividade
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Lus da Cmara Cascudo, Vaqueiros e cantadores, ct., p. 18 Apreciador do improviso potico; conhecedor altamente especializado porque frequenta as cantorias e rodas de glosa; fixa e repete os melhores versos; sabe histrias de poetas e cantorias memorveis e , s vezes, ele prprio, improvisador, glosador de qualidade incontestvel. 26 Poeta que desenvolve a estrofe improvisando a partir de um mote oferecido naquele momento. Ele, entretanto, recita os versos: no canta, nem se faz acompanhar de instrumento musical.
potica em geral, as regras que ela se impe e a peiformance, define Paul Zumthor27, ressaltando a importncia das leis poticas do verso associadas ao desempenho do corpo e da voz. Poeta que desenvolve a estrofe improvisando a partir de um mote oferecido naquele momento. Ele, entretanto, recita os versos: no canta, nem se faz acompanhar de instrumento musical. Em territrio pernambucano, registros apontam a presena de exmios e performticos cantadores no sculo XIX, muitos de origem paraibana, migrados para o pernambucano serto do Paje, celeiro de poetas. A vizinha vila do Teixeira, Cariri da Paraba, legou-nos violeiros do porte de Francisco Romano Caluete (Romano da MedAgua ou Romano do Teixeira), Silvino Pirau de Lima, Agostinho Nunes da Costa, os irmos Ugolino e Nicandro Nunes da Costa, Bernardo Nogueira, esbanjandores, por esses rinces, de generosos versos de boa poesia. Cantar de improviso, exerccio de criatividade, tornou-se uma tradio nordestina. O nome de Severino Loureno da Silva Pinto, ou Pinto do Monteiro, paraibano que viveu longo perodo no Recife e em Sertnia, Pernambuco, tornou-se um marco no universo da poesia improvisada do Nordeste. Diz-se que foi o maior, entretanto, segundo ele prprio, maior mesmo foi o sogro e foi o genro, ao referir -se a Antnio Marinho e Lourival Batista. Dos irmos Batista, Dimas tido por muitos como o melhor dos trs. Sinttico, monossilbico, defme o pesquisador sio Rafael, ao dizer que o maior de todo s chamase Pinto do Monteiro27. O grande vencedor do 1 Congresso de Cantadores do Nordeste, organizado por Rogaciano Leite, realizado em 1948 no teatro de Santa Isabel, no Recife, foi Pinto, a cascavel do Monteiro, juntamente com o piauiense Domingos Martins Fonseca. Tambm participaram do Congresso os trs irmos Batista. Dois anos antes, em 1946, o escritor Ariano Suassuna havia promovido, no mesmo teatro, uma Cantoria, em que participaram os Batista e que estimulou Rogaciano a realizar o Congresso. Da em diante, os festivais e congressos proliferaram de tal maneira que, acusada de excessivamente profissionalizada, a cantoria, na avaliao de sio Rafael, est com a essncia potica enfraquecida. Em 1984, Pinto esteve presente no Festival de Violeiros de Olinda, homenageado por Joo Furiba, um dos antigos companheiros de viola. De 1987 a 1991, a capital pernambucana assistiu, sob a organizao geral de sio Rafael, ao Congresso de Cantadores do Recife, verses II, III, IV, V e VI, duas no Santa Isabel, duas no Teatro Guararapes e a ltima no Teatro do Parque. Paralela ao VI Congresso, aconteceu a Primeira Roda de Glosa do Recife, evento importante para difundir um hbito potico to arraigado na cultura nordestina. A partir dos anos 1990, diversos violeiros organizam festivais e concursos, a exemplo daqueles coordenados, no Recife, em ocasies diferentes, por Antnio Lisboa e Ivanildo Vilanova. Na Paraba, a violeira Maria Soledade articulou, a partir dc 1992, o Encontro de Mulheres Violeiras do Nordeste. Em So Paulo, os nordestinos migrados trataram de dar continuidade tradio do repente, de tal modo que hoje no podemos dizer que a poesia de viola vive apenas no Nordeste. Os festivais espalharam-se pelo Brasil, para alm das fronteiras nordestinas: So Paulo, Braslia, Rio de Janeiro, Santarm tm redutos de cantoria. A regio do Paje viu florescer geraes de cantadores, glosadores e apologistas, desde a segunda metade do sculo XIX. Entre vivos e mortos, pernambucanos ou radicados no estado, figuram nas antologias da poesia de viola os irmos Batista (Dimas, Lourival e Otaclio), de quem se diz que eram descendentes de Ugolino Nunes da Costa (a me deles era sobrinha deste), originrios de famlia de mais de cem poetas. Igualmente figuram em coletneas sobre o assunto Antnio Batista Guedes, Joaquim Francisco de Santana (Joaquim Sem Fim), Antnio Marinho, Job Patriota, Joo Batista Bernardo (Joo Furiba), Agostinho Lopes dos Santos, Amaro Bernardino de Oliveira, Zez Lulu, Z
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Paul Zumthor, Introduo poesia oral, trad. Jerusa Pires Ferreira eta!. (So Paulo: Hucitec, 1997), Depoimento autora, em Recife, agosto de 2001
Catota, Manuel Xudu, Oliveira de Panelas, Pedro Bandeira, Jos Faustino. Ivanildo Vila Nova, Diniz Vitorino Ferreira, Jos Dionsio da Cunha, Francisco Maia de Queiroz (Louro Branco), Lourinaldo Vitorino, Z Gonalves, Severino Nunes Feitosa, Moacir Cosme de Lima (Moacir Laurentino), Jos Galdino dos Santos, Severino Borges (cordelista, foi cantador dos anos 1940 aos 1980), Heleno Severino, Maria Alexandrina da Silva (Mocinha de Passira), Maria Josefa da Silva (Santinha Maurcio), Bernadete Oliveira, Ismael Pereira, Valdir Teles, Geraldo Amncio, Terezinha Maria, Severina Maria da Silva (B iu Bonzinho), Rogrio Menezes, Ant6nio Lisboa e Edmlson Ferreira, Edvaldo Zuzu, Maxiniino Bezerra, Diomedes Mariano, entre outros. O desafio de violeiros, um dos sustentculos da vertente improvisada da poesia popular, foi variando os gneros poticos a partir de quadra, sextilha, dcimas, quadro, entre outros para criar modelos como o coqueiro da Bahia, martelo de sete, mouro cado, mouro zebrado, Brasil de Me Preta, dez-de-queixo-cado, Brasil de Pai Toms, quadro perguntado e gabinete. O galope beira-mar uma dcima de onze slabas. Um formato no muito usual atualmente, o desafio em quadras ainda aparece nas cantorias, como na disputa entre To Azevedo e Bule Bule 29, em que pegam na deixa e rimam segundo e quarto versos (ABCB), em heptasslabos:
Bule Bule Nem que o meu verso chul Do meu jeito to mateiro Eu vou arrancar o couro De um poeta mineiro To Azevedo Te deixo num atoleiro Ou ento no murundu Lugar de plantar caxi Morada de urutu Bule Bule O seu jeito de jacu Daquele bem capiau E quando pego um chifrudo Eu lasco ele no pau To Azevedo Lhe passo o meu berimbau E arremato no forno A coisa pior do mundo a gente aoitar corno
De tal modo o cantador de viola diversificou as possibilidades do jogo de palavras, rima e metro, que hoje possvel reunir tranqilamente, conforme a pesquisadora Vernica Moreira30, 72 a 74 gneros poticos de cantoria dos quais cerca de cinqenta em uso, de que se valem os cantadores para expor, em versos, idia e metfora. No baio de viola, o desafio em martelo um dos mais clebres. Sempre em decassilabo, o martelo pode ser construdo em dcimas, que usualmente apresentam rima em ABBAACCDDC. A sextilha agalopada, decassilaba, conhecida por martelo mineiro. No citado Vaqueiros e cantadores, Cmara Cascudo credita a inveno do martelo
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To Azevedo & Bule Bule, Srie Os Grandes Repentistas do Nordeste Cantoria de viola (So Paulo: MD Music Distribuidora, 2002), 1 CD. 30 A pesquisadora Vernica Moreira acompanha cantoria de viola desde 1989 e vem catalogando os diversos gneros poticos apresentados, para publicao em livro.
originariamente em versos alexandrinos, com rima emparelhada a Pedro Jaime Martelo, professor da Universidade de Bolonha, que viveu entre os sculos XVII e XVIII. Cascudo afirma, ainda, que esse tipo de verso, com tais caractersticas, no foi registrado na nossa poesia popular, entretanto a denominao aponta para a origem erudita, visvel em sua ligao clssica com os poetas portugueses do sculo XVII31. Uma peleja em martelo o que fazem os cantadores Valdir Teles e Louro Branco 32. Martelando um fraseado grandiloqente, lanando desaforos mtuos, tentam desconstruir o discurso potico do rival, semelhana do que fazem os poetas de cordel na tradio dos marcos, vangloriando-se dos prprios dotes na arte de versejar, como faziam e fazem todos os poetas da tradio dos cantos de desafio:
Valdir Teles Meu trabalho tem fora de moral No existe poeta do meu tipo Nos eventos locais que participo Apareo com fama mundial Sou estrela de luz universal Encostado de mim no tem quem ande Mando em todos em mim no tem quem mande Tenho fama, coragem e bons costumes Trago mais uma espada de dois gumes Pra rolar cantador da lngua grande Louro Branca Quando piso na praia o mar se esconde Nem o grupo da fada me governa Eu gritando encostado uma caverna No existe leo que no debande Pois j dera a certeza que sou grande No respeito quem passa aonde eu passo Quanto mais fotocpia de palhao Sinonmia banal de cafajeste Que s canta material que preste Se roubar do caderno aonde eu fao
Como referimos anteriormente, o mote e a glosa so prticas recorrentes na cantoria de viola. O mote geralmente aparece em uma ou duas linhas, e o poeta glosa, desenvolvendo a estrofe de modo que conclua com o mote. interessante observar que no Alentejo, em Portugal, ainda hoje se mantm a prtica do mote e da glosa, num formato que j andou pelo Brasil, entretanto inabitual na atualidade do nosso repente: o mote de quatro linhas, para ser desenvolvido em quatro dcimas. O poeta alentejano Dionsio Gonalves33 comprova isso, com publicao em livro de mote e glosas da prpria autoria, rimadas em ABBAACCDDC, frmula das dcimas tradicionais usadas por repentistas nordestinos. No Cancioneiro do Norte, Rodrigues de Carvalho34 registra dcimas em redondilha maior, desenvolvidas a partir de mote de quatro linhas. Em Violas e repentes, Coutinho Filho35 tambm registra glosas antigas compostas com mote em quadra. No mesmo esquema de rima e metro do martelo transcrito acima, Sebastio da Silva 36
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Lus da Cmara Cascudo, Vaqueiros e canfadores, cit., p. 19. Louro Branco & Vaidir Teles, Srie Os Grandes Repentistas do Nordeste Cantoria de viola (So Paulo: Eldorado, 2002), 1 CD. 33 Dionisio Gonalves, Desde opo at ao sol (Mrtola: Cmara Municipal, 1996). 34 Rodrigues de Carvalho, Cancioneiros do Norte, cit., pp. 160-164 e 176-177. 35 F. Coutinho Filho, Violas e repentes, cit., p. 24. 36 Moacir Laurentino & Sebastio da Silva, Srie Os Grandes Repentistas do Nordeste Cantoria de viola (So Paulo: MD Music Distribuidora, 2002), 1 CD.
festeja a chuva no serto, um dos temas fortes, justamente pelo fato de a tradio, primordialmente rural, ter-se fmcado primeiro nas terras sertanejas do Nordeste quando chegou ao Brasil e ainda por haver at hoje muitos cantadores nascidos no serto. Em Quanto belo se ouvir a trovoada / Numa tarde de chuva no serto, a rima feita como tradicionalmente acontece para alinhar-se aos dois ltimos versos, que so fixos:
Quanto belo se ver um nevoeiro Levantar-se para o lado do nascente E um trovo estalar dizendo gente Que acabou se misria e desespero O trovo a voz do mensageiro Que anuncia mudana de estao Na notcia da morte do vero Canta alegre e feliz a passarada Quanto belo se ouvir a trovoada Numa tarde de chuva no serto
Tambm a oitava, ou quadro, tornou-se um dos gneros mais conhecidos. No oitavo-rebatido, em redondilha maior, Moacir Laurentino e Z Viola37 desenvolvem uma disputa, cujo ttulo teima de cantadores, em que, mais uma vez, a cantoria despeitada, a agresso mtua instiga a criao potica. Z Viola adverte que no aceita verso aprendido nem verso torto. Moacir, numa das oitavas, recorre a imagens de carter pico, para mostrar poder. O arremate de cada estrofe, na ltima linha, refere o gnero utilizado:
Eu sei perfurar lajedo L no redondo ou comprido Desagasalho o rochedo Pelo tempo construdo Quem vem tirar meu conforto Pula pro mato e cai torto Chega vivo e volta morto No oitavo-rebatido
Entre as estrofes dialogadas, encontramos um tipo de oitava, o quadro perguntado, do qual apresentamos um exemplo, com Valdir Teles e Louro Branco 38. Na realidade, ao incluir o refro: Isso quadro perguntado / Isso responder quadro, apresenta-se o gnero como uma dcima em redondilha maior, com a rima tradicional, mencionada anteriormente. Cada cantador desenvolve uma linha da estrofe, e os dois, no final, repetem o refro:
Valdir Teles Quatro que a gente se agrada Louro Branco Nego, nobre, caro e puro Valdir Teles Quatro coisas sem futuro Louro Branco
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Moacir Laurentino & Ze Viola, Srie Os Repentistas do Nordeste Cantoria de viola (So Paulo: MD Music Distribuidora, 2002), 1 CD. 38 Louro Branco & Valdir Teles, cit.
Bnga, perca, pouco e nada Valdir Teles Quatro na Bblia sagrada Louro Branco L, Abel, J e Ado Valdir Teles Quatro rumos do cristo Louro Branco Tempo, vida, signo e fado Valdir Teles Louro Branco Isso quadro perguntado Isso responder quadro
Outro modelo de estrofe dialogada dez-ps-l-vai, que termina apresentando-se em doze ps, com os versos finais e fixos da primeira, segunda e ltima parte, alm do recitado voc cai, conforme mostram Sebastio Marinho e Antnio Maracaj:
Sebastio Marinho Vamos l, Maracaj Cantador de acopiara Conte um, dois, trs Antnio Maracaj Fui o cantador de l Mas hoje s resta a cara Conte quatro, cinco, seis Sebastio Marinho De Sobral a Ubaj ara Voc hoje ento distrai Antnio Maracaj Voc cai Sebastio Marinho Provando ser violeiro Cantando o serto inteiro Sendo por dez-ps-l-vai39
Para provar que se violeiro, preciso comear um dia. E se comea escutando cantador. Assim que se d a iniciao dos improvisadores da viola, do coco, do maracatu. um caminho natural na aprendizagem da tradio oral que vai passando de pai para filho, ou dos mais velhos para os novos, calcada nas formas fixas potico-musicais transmitidas pela voz. indispensvel usar bem o ouvido. Alm das disputas em teatros e praas, o rdio, a tev, o videocassete, as gravaes cada vez mais freqentes em CD so meios que servem no s difuso, mas formao do poeta iniciante na prtica do verso improvisado. Os apologistas tambm exercem influncia nessa escola porque no s promovem encontro de cantadores como sabem rememorar fatos e versos de embates histricos, instigando, assim, o estreante a imitar os grandes. Recitar ou cantar folheto de
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Antnio Maracaj & convidados, Srie Os Grandes Repentistas do Nordeste Cantoria de viola (So Paulo: Eldorado, 2002), 1 CD.
cordel igualmente estmulo criao potica. Agora, se faltar inspirao, como disparou Edmlson Menezes, quando cantou com o parceiro Antnio Lisboa, um coqueiro da Bahia:
[...] Mas se a musa salta fora / Poesia como nora / Faz raiva pessoa um dia40.
Antes dos atuais desdobramentos dos recursos da mdia eletrnica, os programas de rdio serviam como uma das principais influncias, sobretudo para os cantadores ou iniciantes do meio rural, que viviam sem maiores contatos com a vida urbana. A origem campesma ainda abrange parcela significativa dos poetas populares improvisadores. Independentemente de haver ancestrais, na rvore genealgica, com talento para a poesia, interessante observar que muitos cantadores comeam por reconhecer a aptido para o verso embalados pelo que experimentam na infncia e juventude, no ambiente em que vivem, no vinculando, necessariamente, o aprendizado do ofcio presena de poeta na famlia. As vezes, o que acontece, e termina sendo suficiente, existir no ambiente familiar um apologista que serve como orientador do violeiro nefito. O principal estmulo, na realidade, a importncia, o status que aquele ambiente sociocultural concede aos poetas da comunidade. Se se diz que o poeta de tradio oral geralmente analfabeto, no pode existir erro mais extemporneo. Os cantadores de viola sabem ler e escrever, em esmagadora maioria, embora muitos, sobretudo os das geraes que esto hoje na faixa dos 50 anos ou mais, tenham freqentado escola por curtssimo perodo de dias ou meses. Isso prova a facilidade que tm em lidar com as palavras e a inclinao para o autodidatismo. H ainda, entretanto, muitos cantadores com o ensino mdio completo, curso universitrio e ps-graduao, curso de lngua estrangeira. Nada disso, porm, anula a necessidade de o poeta ser pesquisador por conta prpria, para suprir a obrigao de cantar temas dos mais variados, complexos, aos mais triviais. Leitura de jornal, revista; acompanhamento de noticirios de rdio e tev; estudo de assuntos relacionados a histria, geografia, mitologia, lngua portuguesa, literatura, adagirio e fabulrio, biologia, qumica, fsica: esses so alguns dos temas a que se dedicam. hbito dos cantadores estudar dicionrios, ler a Bblia, conhecer almanaques, pesquisar a biografia de personagens histricos. Tudo isso mostra como o conhecimento do cantador necessita ser enciclopdico, para no correr o risco de no saber desenvolver assunto pedido em pleno torneio. Se puder no ficar na superficialidade, tanto melhor: o pblico, atento, sabe distinguir os melhores. A observao da natureza, ao lado dessas pesquisas, serve como subsdio para o poeta que, cantando pelo mundo, cultiva a nostalgia da vida no campo. Afirma o cantador Joo Pereira da Luz, o famoso Joo Paraibano 41: Nossa admirao sempre est nas paisagens, no infinito, nos oceanos, nos rios, no canto dos passarinhos, no entardecer, no amanhecer. A maior parte dos cantadores desde cedo leu muito esse negcio de livros de rios e de mares e de estrelas. Isso so as histrias antigas que a maior parte dos cantadores estudou antes. E para a luta do dia- a-dia a pessoa vem sempre se atualizando com a televiso, com o jornal, com a revista, para no ficar s no passado. A temtica bem explanada apenas um dos requisitos dessa tradio potica. A orao tema ou assunto forma, com a mtrica e a rima, a trade que funciona como parmetro de julgamento da dupla de violeiros nos festivais, e que os prprios violeiros reputam como o mais importante para distinguir a boa poesia. Ter boa voz e noes de ritmo musical, conhecer das toadas de viola, ter agilidade de raciocnio e domnio total dos gneros poticos, porm, complemento para aqueles trs aspectos em questo. A viola me serve de clarim,
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Uma noite estrelada de poesia em Pombal (Pombal: Governo do Estado da Paraba/Prefeitura Municipal de Pombal/Sebrae.PB, 2000), 1 CD. 41 Depoimento autora durante o XVII Torneio de Repentistas de Olinda, Pernambuco, de 7 a 10 de novembro de 2002.
cantou Louro Branco42. A viola abre o peito do poeta para entoao do que no somente canto, poesia, sobretudo rima, ritmo e metfora. E tem de ter baio e sonora: tambm importante atrair o pblico pelo toque da viola (o baio) e pela voz (a sonora). Ainda no so, todavia, apenas esses itens acessrios e principais que norteiam o discernirnento sobre a boa cantoria. Mesmo intuitivamente, sem o domnio terico do que seria a imagem potica, ela a mestra de tudo. Nem sempre o cantador sabe definir, com termos literrios precisos, as imagens poticas, entre outras, a metfora e a comparao, que cria e que tanto comovem as platias. Como os temas sociais e a politizao de certas questes so vigorosos na cantoria, a linguagem metaforizada s vezes cede espao a discurso cru, realista e panfletrio. A temtica social ainda predomina muito no congresso de violeiro, no deixando a natureza de lado, que a fonte maior de todas as pesquisas, garante o violeiro Sebastio Dias43, ps-graduado em histria e secretrio de Cultura da cidade de Tabira, em Pernambuco. A elaborao potica, no entanto, leva distino dos bons violeiros, em meio aos meramente versejadores. A poesia um dom, ele flui. Quando a gente tenta descobrir uma imagem diferente, como se fosse uma verdadeira profecia. Nem a gente sabe explicar, muitas horas, essa qualidade do poeta, como o violeiro Geraldo Alves 44,parente do grande poeta popular Leandro Gomes de Barros, consegue definir o que faz. O cantador um criador, alardeia o poeta Sebastio Dias. Um Criador, sim, deixando parte se o gnero masculino ou feminino. Desde tempos imemoriais, a mulher sobressai em disputas poticas, conforme registro de estudiosos. E interessante conferir a participao da mulher desde as mais antigas noticias que se tm de cantoria. Maria Tebana, Zefinha do Chaboco, Chica Barrosa, Salvina, Maria Joana aparecem nos principais livros sobre poesia popular, como em Vaqueiros e cantadores, de Cmara Cascudo, em Cancioneiro do None, de Rodrigues de Carvalho, em Vida do cantador, de Mrio de Andrade. A paraibana Chica Barrosa, conforme Rodrigues de Carvalho, era alta, robusta, mulata simptica, bebia e jogava como qualquer bomio45 A clebre poetisa acabava sempre as suas toadas com este estribilho: A negra Chica Barrosa / faceira e dengosa46. A potiguar Maria Tebana, tambm chamada de Maria Turbana ou Trubana47, era possuidora, segundo Cmara Cascudo, de uma das mais fortes e lindas vozes de que o sert o se orgulhava. Versejava com rapidez e o seu repente era assustador. Mrio de Andrade acredita ser a tradio de nossas mulheres cantadeiras proveniente da pennsula Ibrica, em decorrncia de dados histricos convincentes: a existncia de jogralesas, os indcios de que as mulheres foram presena marcante na poesia medieval galaico-portuguesa. Andrade ainda registra a procedncia rabe do costume e a presena marcante de cantadoras nas tradies populares recentes de Portugal 48. Embora as mulheres estejam nessa seara h tanto tempo, a realidade das cantadoras aponta para as dificuldades de engajamento nos festivais e congressos, creditadas ao machismo dos organizadores. Maria da Soledade Leite, paraibana de Alagoa Grande, tem um histrico de luta sindical e feminista, inclusive no meio das violeiras. Conseguiu coordenar, durante seis vezes, entre 1992 e 1999, um festival s para cantadoras na cidade onde nasceu. E muito difcil ser convidada at para a participao especial nos festivais, lamenta a po eta, que desde criana j brincava de repentista no casamento e batizado das bonecas. Uma das
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Louro Branco & Valdir Teles, cit. Depoimento autora durante o XVII Torneio de Repentistas de Olinda. 44 Ibidem.
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Rodrigues de Carvalho, Cancioneiro do Norte, cii , pp. 341 -342. Lus da Cmara Cascudo, Vaqueiros e cantadores, cii., p. 263. 48 Mrio de Andrade, Os cocos, cit., p. 71.
dificuldades de cantar com um homem, por exemplo, o tom. Quando a dupla homem e mulher acerta o tom, d pra tirar a jornada, esclarece Soledade.49 Entre as vi oleiras mais famosas, temos a pernambucana Mocinha da Passira, que viaja pelo pas, duplando mintas vezes com violeiros. Mesmo no sendo fcil empunhar uma viola num meio dominado por homens, a qualidade dos versos no se mistura diviso de sexos. O que importa, mesmo, o talento potico. Mocinha tem participao em diversos CDs, e num deles canta com Minervina Ferreira, parceira de Soledade em muitas cantorias. justamente a recorrente e inextinguvel disputa de gnero e as conquistas sociais femininas o tema da gemedeira cantada no disco:
Mocinha A mulher caminhoneira J viaja acostumada A dormir de meia-noite Se acordar de madrugada Sem temer os obstculos Ai ai ui iii Que existem na estrada Minervina A luta multo pesada Mas se a mulher no estranha A revoluo dos tempos Lhe joga em qualquer faanha Pois s se leva o trofu Ai ai ui ui Depois da batalha ganha50
A POTICA DO MARACATU RURAL O mestre de maracatu o poeta do grupo: apito na mo, batuta sobre o ombro, mo em concha sobre o ouvido, como os antigos bardos, quem inaugura a brincadeira, com o canto responsivo em versos improvisados51. Somente a voz ecoando no terreiro, numa pausa dos instrumentos musicais (percusso e sopro), cabe a ele saudar os brincantes, agradecer aos colaboradores e tecer loas s autoridades, numa prtica recorrente da poesia de louvao, conforme refere Mrio de Andrade, em Vida do cantador: esse desenvolvimento, essa particularizao de coisas a louvar, tradicional na poesia do nosso cantador52. 52 Cascudo, em Vaqueiros e cantadores, reproduz modelos de louvao. Uma prtica que, conforme refere, conhecida nos cancioneiros e ainda remanesce nas manifestaes populares em que h poesia, improvisada ou no. Enfim, cabe ao poeta, alm de louvar, conquistar a platia com imagens poticas e rimas bem construdas. Em Nazar da Mata, Pernambuco, a 65 quilmetros de Recife, onde se diz que nasceu a tradio da sambada ou embate entre dois mestres de maracatu rural, os amantes dessa poesia se acotovelam diante do piJanque carnavalesco (que eles chamam de federao) para ver e ouvir o mestre sambador e eleger, claro, o preferido. A partir de uma pequena mostra o registro sonoro de alguns mestres que se apresentaram em Nazar na tera-feira do carnaval de 2002 , observa-se a recorrncia e/ou variao de rima, imagem, gnero e
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Mulheres no repente: Minervina Ferreira & Mocinha da Passira (So Paulo: CPC-Umes, 1999), 1 CD. Maria Alice Amorim, Uma pisa de rima, em Maria Alice Amorim & Roberto Benjamin, Carnaval: cortejos e improvisos, Coleo Malungo, n 5 (Recife: Fundao de Cultura Cidade do Recite, 2002), pp. 61-121. Esse ensaio apresenta, pela primeira vez em livro, um estudo sobre a potica do maracatu rural. 52 Mrio de Andrade, Vida do cantador, cit., p. 77.
discurso potico distintivos de cada criador. E, sobretudo, podem ser apreciadas as qualidades do bom mestre. De vasta cabeleira, lana robusta, chocalhos nas costas, gola ricamente bordada de lantejoula com mianga, e gestos viis, no essa emblemtica figura do caboclo de lana que faz os habitantes da zona canavieira se acotovelarem na praa Joo XXIII, a famosa praa da catedral de Nazar da Mata. E o mestre de maracatu o motivo de tanta ateno, sobretudo quando se sabe que de nome respeitvel. Fraquinho, bom, muito bom, mediano, ao poeta no interessa o rtulo. Todos os mestres que sobem no palanque, imbudos do sentimento de ascendncia sobre os demais brincantes, cheios de bazfla, fazem questo de cantar os versos, improvisados ou supostamente improvisados, para granjear a ateno do pblico. Sobretudo, de lei subir no palco e cantar na cidade de Nazar, respeitada por mestres e caboclos como o lugar da tradio, o lugar que viu florescer a pujante brincadeira e que, ouvidos atentos, tem visto desfilar estrofes de requintada poesia, desde o perodo que a memria dos antigos alcana. Cantar mesmo de lei; encantar, s se for generoso o talento, pois o pblico, que no nem de longe nefito, tripudia sobre os versos mal construdos, aplaude os famosos e d urras aos versos inteligentes. A platia, que j conhece os melhores, ainda assim quer ouvir os menos bons, a fim de elaborar o prprio veredicto. Para delcia dos amantes de poesia, surpreendente ouvir os comentrios da platia, composta principalmente por camponeses, sobre os sambas que cada criador desfia. Ali, na federao, a cantoria individual, sem disputa face a face, mas os versos ressoam de tal maneira na cachola dos ouvintes, que a apresentao termina virando torneio. Aos vencedores, os louros: comentrios elogiosos durante todo o ano e consolidao da fama. O que define exatamente a vitria no tem frmula secreta. a mesma que defme quem bom poeta. E os critrios da boa poesia passam pela construo de imagens que sensibilizam. No caso da poesia dos mestres de maracatu, herdeira das tradies orais literrias procedentes da Antiguidade desde a disputa dos pastores amebeus, passando pelos trovadores, jograis e menestris, chegando aos nossos mestres improvisadores, dos quais os mais afamados so os cantadores de viola , outros critrios soam indispensveis, porque uma construo de formas fixas, que exige boa rima, mtrica impecvel, marcao correta do ritmo potico-musical, adequada utilizao dos tipos de estrofe e peformance atraente na voz e no gestual. No fim de contas, mesmo o talento que ganha a nota, que consegue estabelecer a hierarquia e conceder status, acariciado pelo esprito de embate entranhado no pblico e nos poetas. Foi exatamente assim que definiu um dos nomes respeitveis do samba de maracatu, o mestre Antnio Roberto, quando cantou no carnaval, com o Estrela do paraso, valendo-se, na mesma estrofe, da expresso samba bonito, corriqueira nos versos dessa categoria de poetas, e tambm da recorrente imagem alusiva ao provrbio Prego batido, ponta virada, que os sambadores usam como sinnimo de invencibilidade na arte potica:
Pra cantar samba bonito A natura me comps Se eu bater um prego ou dois Na frente desse palanque Se no chegar quem arranque Eu venho arrancar depois Desde dos anos 90 Comecei sambando assim Nunca fiz sambada ruim Porque no tem quem me empanque Bato um prego no palanque
Embora do ponto de vista da criao artstica sejam mais cobiados, os ensaios de barraca que antecedem o trduo momesco no diferem das apresentaes de carnaval na formulao potica. Nesse tipo de ensaio, tambm conhecido como ensaio de sede, o poeta do grupo canta a noite inteira, ou enquanto durar a energia dos brincantes. O diferencial justamente o tempo de samba: no palanque carnavalesco cada poeta tem direito a apenas alguns minutos de jogos verbais, o que limita bastante a verve do criador. interessante observar que os melhores poetas, orgulhosos da reputao, se sentem livres para cantar vinte ou trinta minutos no palanque, quando o pedido para durao de, no mximo, metade disso. Quando h extrapolao, at provoca samba despeitado, como foi o caso do mestre Dud, do Leo Coroado, da cidade de Araoiaba, ao subir, no palanque de Nazar, aps o afamado mestre Z Galdino, do maracatu Estrela Dourada, da Buenos Aires pernambucana (localizada na Zona da Mata Norte, a 14 quilmetros de Nazar), que havia cantado durante 22 minutos! Nos sete minutos de Dud, ele concluiu, com desprezo, sambando assim:
Pessoal, eu vou embora Eu vou sair pelos fundo O meu desgosto profundo No vou perder meu assunto Tem mestre que demora muito Pensa que dono do mundo
Essa foi a penltima estrofe, cantada em galope (samba de seis linhas), e a ltima arrematada com desaforo ainda maior. A palavra muito pronunciada como ele pronuncia sempre, de modo que rima com assunto, em dois momentos distintos: nos versos citados acima e tambm no trecho que se segue: E quem quiser cantar munto / Bote um palanque em casa. uma poesia de tradio assentada na oralidade, na audio, relacionada s experincias ancestrais potico-musicais, em que a pronncia, o som o que vale na hora de achar a rima. Convencionou-se cham-la de literatura oral: realmente uma literatura antes da letra, antes do alfabeto, antes do tempo em que se comeou a utilizar o designativo literatura, vocbulo cuja raiz remet e ao que escrito, ao que destinado leitura. Outro exemplo de oralidade a no-concordncia de nmero na expresso pelos fundo. O poeta Asa Branca do Norte, do Leo das Cordilheiras (Carpina), chega logo dizendo que est ali para dar surra em gente:
Meus sambas tm um chicote / Sou Asa Branca do Norte.
E, para confirmar a repetio da imagem do prego, defme a prpria poesia como motivo de inspirao para muito poeta, conforme canta nesta outra estrofe:
Quando comeo cantar samba Muito poeta se inspira Madeixa de sicupira Fica de cabea tonta Bato prego viro a ponta Emperro j ningum tira
Pela relao com a vida agrria, com a monocultura aucareira, os instrumentos de trabalho e os meios de transporte esto constantemente vinculados s imagens poticas. As
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Gravao realizada em fita cassete diretamente da mesa de som instalada no palanque carnavalesco, durante a tera-feira, dia 12 de fevereiro de 2002, da qual os versos apresentados neste ensaio foram transcritos pela autora.
rimas, muitas delas toantes, no obedecem a certas regras gramaticais, obedecem, antes, sonoridade da pronncia matuta, prosdia e ortopia. A palavra engenho (engenho de acar, lugar de origem do poeta) pronunciada conforme o costume e, por isso, rima com ningum. A concordncia verbal, sem obedincia ao nmero do sujeito, assim utilizada no ltimo verso para fechar (ningum/engem/tem) o esquema de rima desta sextilha (ABBAAB) de Asa Branca do Norte:
Pra cantar sou preparado E nunca perdi pra ningum Sou da vida do engem E do manero e dos pesado Dez caminho carregado No leva os samba que eu tem
Na mtrica, o poeta tambm se vale de certas pronncias para no quebrar o verso. Foi o que fez o mestre Jos Demsio, antigo no ofcio, talvez lembrando o tempo em que Nazar se escrevia com th e a pronncia usual era essa que utilizou. De toda forma, foi uma soluo original, logo na terceira marcha:
Sa de Araoiaba Fazendo uma passeata E vim deixar samba gravado Em Nazarete da Mata
Como de praxe, todo mestre que pega o apito para cantar comea tecendo loas aos presentes, hbito ancestral das poticas da oralidade mundo afora. No carnaval, h uma exacerbao desse ritual porque, alm do desejo de agradecer s autoridades locais a chance de apresentar-se na cidade, o tempo to restrito que fica quase todo preenchido pelos elogios e, por isso, o discurso laudatrio sobressai. O mestre aproveita para dirigir saudao carinhosa a algum amigo, parente e tambm comerciante ou parceiro que tenha oferecido algum tipo de colaborao ao maracatu. O mestre do Leo da Aldeia brincou com a antiga reputao de Nazar, numa marcha de quatro linhas ou quadra de abertura (a quadra, que j foi abundante no repente de viola, um gnero recorrente no irnproviso dos mestres de maracatu, e com ela que se inaugura a sesso de improviso, diferentemente da cantoria, que aberta com sextilha):
T com o Leo da Aldeia Com prazer e alegria Eu vim s dar um cochilo No bero da poesia
Por essa condio de hipottico nascedouro da potica dos maracatus, praticamente todos os mestres que sobem no palanque de Nazar fazem aluso ao fato. Jos Demsio foi logo dizendo: Quando eu chego em Nazar / Eu canto de alma cheia. Na despedida, tambm em quadra, as estrofes elogiosas voltam, inclusive dirigidas cidade. Z Galdino lamenta ter de ir embora (mesmo depois dos 22 minutos de samba!) e considerado um dos grandes mestres de viola, ciranda e maracatu no foge s regras da oralidade, utiliza corretamente um recurso, ao deslocar a silaba tnica na pronncia da conjugao verbal, que permite no quebrar a cadncia do verso:
Nazar eu vou-me embora Sentindo dor e saudade Mas deixo pra todo adeus Que moro nesta cidade
A no-improvisao outro aspecto interessante a analisar na potica do maracatu. Sabe-se que, apriori, todos os versos desfiados por dois mestres seriam feitos na hora, um respondendo ao outro, na tentativa de suplantarem-se mutuamente. Quando o mestre canta sozinho, tambm reza a tradio que tudo sai aos borbotes. A tradio do halaio, ou verso decorado, entretanto, no prtica s de emboladores, cirandeiros ou violeiros. Tambm o mestre sambador denuncia a prtica da estrofe pr-fabricada, com esquema de rima repetitivo, com imagens recorrentes, com um repertrio de jogos verbais bastante previsvel. Nada disso desmerece o talento potico, embora seja facilmente percebido pelas platcias de aficionados. Afinal, o repertrio tradicional se vale de processos mnemnicos ancestrais, to em voga nas literaturas orais. nessa mesma fonte remota que o poeta sacia o sfrego desejo de expressar-se em poesia, o que denuncia no prprio canto, mesmo no cardpio trivial, como fez Jos Dernsio para apresentar-se em 2002, com sextilha de rima (ABBCCB) no-corriqueira na cantoria:
O que eu tem de cantar hoje No vou deixar pra depois Canto o meu feijo-com-arroz Mas sei que agrado o povo Isso galope novo Que eu fiz pra 2002
Pela condio de porta-voz do grupo, o mestre de maracatu exerce liderana, apresenta auto-estima elevada e, quando o conceito de que desfruta est acima de bom, normalmente constri samba de dez (dcima de redondilha maior) em que se intitula rei, a exemplo de Manuel Damio, mais uma vez confirmando que os poetas da oralidade vivem mesmo no reino da bazfia:
Noventa quando eu brinquei Para fazer meu papel O velho Alfredo Miguel Me chamou menino rei Quando eu me apresentei Na barraca do Leo Foi meu pai foi meu irmo Meu caboclo sem ludum Foi o f nmero um De Manuel Damio54
O samba de maracatu , portanto, uma poesia rimada e metrificada, com formas fixas caractersticas da tradio oral procedente, no Nordeste brasileiro, dos colonizadores portugueses e que granjeia status para quem a pratica. Tem parentesco evidente com o baio de viola, o cordel, a poesia do coco e da ciranda; enfim, com a poesia popular, em suas diversas ramificaes. O poeta do maracatu lana mo da sonora, que como chama a prpria voz (mesmo termo usado pelos violeiros), para tratar de temas da atualidade crime, guerra, violncia, futebol, etc. associados a temas metafsicos, de conhecimentos gerais e metapoticos. A poesia reveste-se de carter sagrado medida que perpetua o saber do grupo, colaborando, assim, com a manuteno da identidade cultural. Tudo em conformidade com a prtica de outras vertentes do improviso popular, conforme declarou o cirandeiro, violeiro e mestre de maracatu Z Galdino: A gente tem que procurar o melhor para transmitir para os nossos ouvintes, que seja no maracatu, que seja na viola ou na ciranda. Que os ouvintes da viola so diferentes dos
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ouvintes da ciranda, do maracatu, mas, concliundo, uma cultura s e ns temos que transmiti-la com perfeio. Ultimamente, e cada vez mais, valendo-se de registro sonoro e audiovisual das novas tecnologias para difundir a prpria arte, conforme testemunha o mestre Joo Paulo, autodenominado papa do maracatu, numa das faixas do primeiro disco55 que conseguiu colocar no mercado no final de 2001, para satisfao dos admiradores, confirmando que o poeta reverenciado por uma sacralizao do status quo e, sobretudo, porque detm o poder da palavra, uma poderosa arma na manuteno das razes culturais:
T na praa o meu CD meu Deus, muito obrigado O sonho virou verdade Me sinto realizado Maracatu quando dana Surgem nuvens de poeira Mostrando a identidade Da zona canavieira 55
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Mestre Joo Paulo: o papa do maracatu (Timbaba: produo independente, outubro de 2001), 1 CD.
BIBLIOGRAFIA COMENTADA ANDRADE, Mrio de. Vida do cantador. Coleo Obras de Mrio de Andrade, n2 25. Edio crtica de Raimunda de Bnto Batista. Belo Horizonte: Vila Rica, 1993. Oferece importantes elementos de composio da potica popular e da psicologia dessa manifestao cultural, a partir da vida de um cantador de coco potiguar: Chico Antnio. Tais elementos, a particularizados, percorrem caminhos da tradio, conforme dados histricos e comparativos levantados pelo autor. So os mesmos elementos que vo aparecer, por exemplo, em estudos de outros autores sobre improviso de viola e samba do mestre de maracatu. CARVALHO, Rodrigues de. Caocioueiro do lVorte. 3 cd. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1967. Um clssico na bibbografia folclrica, conforme definio de Lus da Cmara Cascudo. Foi dos primeiros bvros brasileiros no gnero. Trata-se de uma recolha de cantos populares e respectiva onportncia histrica. Uma parte da pubbcao dedicada bibhografia e transcrio de versos de cantadores, entretanto no prefcio que oferece expbcaes detalhadas sobre aspectos formais e temticos da potica popular nordestina. CASCUDO, Lus da Cmara. Histria da literatura brasileira: literatura oral. Vol. 6. Coleo Documentos Brasileiro, 63. Direo de Alvaro Lins. Rio deJaneiro: J. Oympio, 1952. As fontes e o objeto da hteratura oral, seus Irinites e transmisso, elementos e temas, participao indgena, sobrevivncia afro-negra, permanncia portuguesa, romance, conto, lenda, mito, autos populares brasileiros, desafio e cantiga social so alguns dos aspectos estudados nesse hvro, que oferece um volumoso registro das poticas da orabdade, pela primeira vez includas numa pubbcao de histria da literatura brasileira. Vaqueiros e caotadores. Rio de Janeiro: Ediouro. 1968. Trata-se do folclore potico do serto de Pernambuco, Paraba, Rio Grande do Norte e Cear, conforme registra o subttulo. Cascudo descreve modelos do que chama poesia sertaneja; apresenta uma recolha de versos de temtica tradicional variada e transcreve exemplos de peleja entre cantadores; discorre sobre antecedentes, instrumentos, canto e acompanhamento, temas do desafio. Livro indispensvel para a compreenso da unportncsa histrica, social e hterria da poesia popular nordestiua. COSTA, Francisco Pereira da. Folk-lore pernambucano: subsdios para a histria da poesia popular em Pernambuco. Prefcio de Mauro Mota. Recife: Arquivo Pblico Estadual, 1974. outro livro em que o subttulo resume o contedo: subsdios para a histria da poesia popular em Pernambuco. um registro fundamental para o levantarriento arqueolgico das manifestaes poticas tradicionais em territrio pernambucano. Apresenta romanceiro, cancioneiro, parlendas e brinquedos infantis, quadras, pastoris, supersues populares. Um trabalho pioneiro e, at o momento, nico nesse campo literrio e limite geogrfico. COUTINHO FILHO, F. Violase repentes Recife: ed. do autor, 1953. Repentes em prosa e verso, recolhidcs em pesquisas folclricas no Nordeste brasileiro. Nove captulos so explicativos dos gneros poticos utilizados por violeiros, durante o perodc de coleta nos sertes de Pernambuco e da Paraba, Nos demais captulos, o autor registra disputas antolgicas entre cantadores afiados, pelejas e congressos histricos.
REPENSANDO JANANA ROCHA O rap1,existe no Brasil h cerca de vinte anos. Faz parte do hip hop, hoje, um conjunto de manifestaes culturais formado por uma msica, o rap; que envolve mestrede-cerimnias (MC) e disc-jquei (DJ); uma dana, o break; e uma forma de expresso plstica, o grafite. Popular e controverso , ele reflete e prefigura mais do que um estilo musical. Sua prtica social, entretanto, abranda uma anlise esttica rigorosa. No Brasil, esse vis analitico causa, inclusive, desconforto entre manos e tericos do tema. Desnudar o rap da prtica social e analis-lo sob o ponto de vista esttico ou comercial, encarando-o como tendncia musical, ou ainda nessa nova perspectiva como um tipo de literatura, algo novo e perpassa por um terreno terico bastante problemtico. Isso ocorre no s pela dificuldade de investigao da sua forma e no do contedo, como costumeiramente feita , mas por ser uma manifestao recentssima, de vio juvenil e estudos crticos insuficientes2. Enfim, uma cultura em transformao, cheia de contradiA cultura hip hop compo sta oficialmente por quatro elementos, j mencionados no texto. Observa-se no seu desenvolvimento, entretanto, alm de novas formas de arte, maneiras particulares de organizao e mobilizao. Podemos considerar, assim, como um quinto elemento integrante do hip hop, a posse. Basicamente, a posse uma associao de jovens de uma comunidade ligados ao hip hop que tm como objetivo reelaborar a realidade conflitiva das ruas nos termos da cultura e do lazer. Ao se organizarem em sua comunidade, deforma independente, esses lovens desenvolvem prticas no s artsticas, como na criao de um rap ou de uma coreografia, como tambm prticas politicas. O processo criativo tambem um espao de discusso informal, em que ganham sentido palavras como conscincia e atitude, e que so ainda mais valorizadas em reunies de uma posse. A definio conceitual do hip hop (cultura de rua ou movimento social) um exemplo desse tipo de problemtica, ainda no resolvida, e serve-nos como pressuposto para a questo a ser tratada: a relao entre o rap e a literatura. E importante entender o quanto ela incipiente (at polmica), justamente porque o rap no surge de forma isolada como msica, mas como um tipo de base musical para a dana de rua, o brcak, num contexto cultural e socialmente subordinado expresso gestual. O termo hip hop, que significa, numa traduo literal, movimentar os quadris (te hi, em ingls) e saltar (te hop), foi coada pelo Dl Afrika Bambaataa, em 1968, para nomear os encontros dos danannos de break, DJs e MCs nas festas de rua no bairro do Bronx, cm Nova York. Bambaataa percebeu que a dana seria uma forma eficiente e pacfica de expressar os sentimentos de revolta e de excluso, uma maneira de diminuir as brigas de gangues do gueto e, conseqentemente, o clima de violncia.J em sua origem, portanto, essa manifestao cultural tinha um carter politico e o objetivo de promover a conscicntlzao coletiva, O uso da expresso hip hop ganhou o mundo e hoje, no Brasil, designa basicamente uma manifestao cultural das periferias das grandes cidades, que envolve distintas representaes artsticas de cunho contestatrio 3.
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Abreviao de Rhythm and Poetry (ritmo e poesia). Segundo o crtico literrio Anfonio Candido, valores e ideologias contribuem principalmente para o contedo, enquanto as modalidades de comunicao influem mais na forma, em Literatura e sociedade (8 ed. So Paulo: T. A. Queiroz/Publifolha, 2000), p. 27. 3 Janaina Rocha et ai., Hip hop: a periferia grita (So Paulo: Fundao Perseu Abramo, 2001), pp. 17-18.
Assim como outros ritmos afro-norte-americanos, o rap tem um sentido de resistncia cultural. O historiador Eric Hobsbawm explica, por exemplo, que a paixo ou adeso do povo ao jazz no acontecia apenas porque as pessoas gostavam do som, mas por ser uma conquista cultural de uma minoria dentro da ortodoxia cultural e social, da qual elas tanto diferiam. Hobsbawm4, obviamente, no aplica essa tese ao rap, no seu livro Histria social doja, publicado nos anos 1960, portanto vinte anos antes do nascimento do hip hop, mas essa anlise encontra eco em outros estudos. O antroplogo Marco Aurlio Paz Teila, por exemplo, afuma que o rap [...]deve ser principalmente compreendido como resultado da apropriao de um patrimnio musical simblico da cultura afro-americana que posteriormente foi internacionalizado atravs dos veculos de comunicao 5. A educadora Elaine Nunes de Andrade6 define o bip hop como um movimento social que engloba uma forma de organizao politica, cultural e social do jovem negro. Esse movimento social seria conduzido por uma ideologia de aurnvalorizao da ;uventude de ascendncia negra, por meio da recusa consciente de certos estigmas (drogas, violncia, marginalidade) associados a essa juventude imersa em uma situao de excluso econmica, educacional e racial. Sua principal arma seria a disseminao da palavra: por meio de atividades culturais e artsticas, os jovens seriam levados a refletir sobre sua realidade e a tentar transform-la. Se a atuao de muitos grupos envolvidos com as vrias atividades que constituem o universo hip hop de fato tem as caractersticas de organizao defendidas por Elaine de Andrade e comunga com a cartilha antidrogas e antiviolncia, preciso no esquecer que, originalmente, ele um conjunto de manifestaes culturais. A caracterizao como cultura de rua a mais utilizada pelos prprios integrantes do hip hop, embora sem negar a idia de movimento social. Quando solicitados a responder o que o hip hop, a primeira definio que surge : uma cultura de rua formada por quatro elementos artsticos: o break, o rap, o grafite, o DJ e o MC. Cultura envolve no s conscincia, mas um modo de vida, no qual valores, comportamento, estilo de se vestir compem o conjunto. ENTRECRUZAMENTO Conforme a estruturao do hip hop sob a forma de cultura, limitada por um meio social urbano, o rap conquistou status de msica. Assim como outras formas comunicacionais, entre alas o jornalismo, o cinema e a publicidade, ele tambm tem interagido com a literatura e, por conseqncia, provocado um entrecruzamento com essa linguagem. Nesse sentido, o rap ocupa espao hoje no apenas na indstria fonogrfica como um estilo musical, mas, de certa forma, retoma uma das funes da literatura numa sociedade, possibilitando ao mano (ou mina) o direito de exprimir-se pela palavra. Na cultura de massa, a palavra, muitas vezes, tem a funo de indicar uma direo para o comportamento, como faa, compre, seja. No rap, ela debate, discorda. No dia 18 de agosto de 2002, o Mais!, do jornal Folha de S.Paulo, deu ateno especial ao bip hop, com assuntos referentes ao rap e literatura, refletindo brevemente sobre a interao dessas linguagens. Dois textos da publicao do indcios desse entrecruzamento: A gerao H e Dentro da rede fora da lei.
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Eric J. Hobsbawm, Histria social do jazz, trad. ngela Noronha, prefcio Lus Fernando Verissimo (2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990), pp. 280-281. 5 Marco Aurto Paz Toila, Atitude, arte, cultura e autoconhecimento: o rap como voz da periferia 2000, dissertao de mestrado (So Paulo. PUC-SP, 2000). 6 Elaine Nunes de Andrade, Movimento negro juvenil: um estudo de caso sobre jovens rappers de So Bernardo do Campo 1996, dissertao de mestrado (So Paulo: Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo, 1996).
Marcos Flamnio Peres7 discute o paradoxo de que [...] o hip hop se tornou nos anos 1990 um cone da cultura norteamencana mainstream ao mesmo tempo que os negros, nascidos entre 1965 e 1984, viram declinar seu poder de mobilizao poltica e aumentar dramaticamente sua marginahzao social e econmica ponto de vista presente na obra The Hz Hop Generation, de Bakari Kitwana, um dos tericos do hip hop nos Estados Unidos. Ao ser entrevistado para o Mais!, Kitwana afirmou que os intelectuais negros da velha-guarda se desconectaram da realidade da gerao hip hop e se tornaram incapazes de propor novas solues para essa situao socioeconmica globalizada. Esse espao de discusso vem sendo ocupado por rappers e cineastas: Escotores e poetas tradicionais no tm se destacado pelas crticas e pela compreenso da nova gerao. Os rappers, que so escritores e poetas, e os jovens cineastas tm feito tais tentativas, de dar conta das novas reahdades que desafiam essa gerao. Um dos pontos que destaco no hvro como os intelectuais negros fracassaram ao tentar fornecer uma explicao para o surgimento da nova cultura jovem negra, vazio que foi preenchido pelos rappers e pelos cineastas. Fracassaram ao tentar fazer uma anlise da cultura negra jovem que emergiu nos anos 1980 e 1990, fracassaram ao tentar exphcar o que estava acontecendo de diferente em nossas comrmidades e fracassaram tambm ao tentar cnar um dilogo que levasse em conta teorias plausveis para abranger a psique coletiva da comunidade. Diante disso, os jovens diretores negros chamaram para si a tarefa. Suas respostas foram filmes como Os donos da iria, Perigo sociedade, New Jade Ci e Inferno branco todos eles sucessos do ponto de vista financeiro. Em alguns casos eles acertaram, em outros, erraram. Mas a questo pnncipal que abordo como eles exploraram e fortaleceram o niilismo dessa gerao, mais do que simplesmente mascarar suas ongens. Na ausncia de uma tal crtica, muitos jovens negros aceitam a anlise que recebem de filmes, programas de TU e da msica popular. Muitos intelectuais negros esto se encastelando na torre de marfun do debate ps-cstruturahsta, em vez de discutir quem somos e para onde estamos indo. O jornalista Alcino Leite Neto traz outra perspectiva sobre o encontro do rap com a literatura. Ele entrevistou o musiclogo e professor de filosofia Christjan Bthune, autor de Le rap: une esibtique hors la loi (O rap: uma esttica fora da lei), um estudo histrico e esttico sobre o gnero musical, em que citaes de Rousseau, Benjamin e Bastide se misturam a outras, de Public Enemy, Notorious Big e Ice T. Para Bthune, o rap se desenvolve, sobretudo, a partir da tradio oral das culturas dos imigrantes. [...] embora eu no considere que o rap seja uma forma de msica apenas oral. Ela ao mesmo tempo totalmente escrita e tctatmente oral. do vaivm entre escrita e vocalizao que o rap tira grande parte de sua condio artstica. O autor ainda ratifica que a funo escrita tem mais importncia na Frana, onde se escreve um rap mais literrio que o dos Estados Unidos. Penso que aqui ele muito mfluenciado pela escola. O sistema escolar francs, ainda que o critiquemos muito, no igual ao americano. E os rappers foram marcados por sua passagem pela escola e pela literatura. o que se percebe em numerosos rappers que fazem aluses literrias, com verdadeiras citaes a autores como Baudelatre e Rostand. A forma como trabalham a prosdia tambm demonstra que se baseiam no aprendizado escolar. Por fim, o jornalista brasileiro questiona se exagero dizer que o rap renovou a linguagem potica na Frana.
No . Estou trabalhando atualmente numa aproximao entre o rap e os chamados grandes retricos do sculo XVI, que trabalhavam bastante sobre os efeitos prosdicos, como comear um verso com a rima do ltimo verso ou rimar no interior do verso, etc. Todas essas estratgias, que Malherbe (1555-1628), em prol do classicismo, iria considerar gratuitas, mas eram verdadeiros jogos com a linguagem, reaparecem de certo modo no rap. Essa msica tambm foi um maravilhoso desembocadouro literrio para a linguagem das ridades. A inclinao literria dos franceses tambm acentuada e chega a ter mais importncia que a funo politica8. Essas recentes anlises incidem sobre a mesma temtica, entretanto possuem desdobramentos divergentes. Entre elas h, em comum, o ponto de vista comparativo do rap literatura, que serve de pressuposto para questionarmos, de fato, quais as similaridades dessa linguagem urbana ps-moderna com a criao literria. Alm de base informativa para entrecruzamento dessas artes, os estudos de Bakari Kitwana e Christian Bthune funcionam como exemplos de como enxergar no rap caractersticas da literatura. Certamente, no possvel afirmar o rap como um gnero literrio. No h produo de conhecimento suficiente, no Brasil, para classific-lo dessa forma. Essa uma discusso embrionria. Bakari Kitwana aproxima o rap da literatura pela anlise de contedo, sua funo ideolgica e social e, a partir da, como se deu uma mudana na produo artstica contempornea. J Christian Bthune concebe uma investigao dc orientao esttica, enfatizando uma mudana na forma de criao literria. O ideal a combinao das duas perspectivas, equilibrando os valores estticos e sociolgicos; mas, especialmente no Brasil, h uma tendncia para uma anlise mais sociolgica, reforada pela ferocidade contestatria do rap, inserida numa cultura jovem e rebelde. A teoria literria pode contribuir para entendermos algumas caractersticas comuns ao rap e literatura. TEORIA LITERRIA Como ponto de partida, um dos livros do socilogo e crtico literrio Antonio Candido, iteratura e sociedade. Ao considerarmos o rap como arte, ou seja, um sistema simblico de comunicao inter-humana, entenderemos que a repercusso da obra se d no momento em que repercute no pblico, assim como a literatura. O rap s se completa no momento em que ecoa e atua. Esse carter comunicativo, integrador e bitransitivo por natureza, no deve, como explica Candido, obscurecer a expresso de realidades profundamente radicadas no artista. Na compreenso do rap como forma comunicacional artstica, nesse sentido similar literatura, e, conseqentemente, possuidor de elementos socialmente importantes, como o autor, a obra e o pblico, faz-se necessrio equilibrar anlises que combinem conceitos e interpretaes de diversas reas de humanidades. Ao reforar a dialtica de Candido, exposta aqui de forma muito simplificada, h a inteno de no cair no erro de apenas olliar o rap como fenmeno social, mas como arte, com a presena de um artista criador, mesmo que, nesse caso, a presena do coletivo na obra seja ainda mais forte. Por isso, pensar o rap a partir de dois exemplos de anlises literrias: uma que leva em conta seu efeito no meio social (Bakari IKitwana), a ponto de atribuir ao rap uma capacidade interpretativa sobre alguns dramas da sociedade norte-americana, refm de seus preconceitos; e outra que arma sua criatividade textual, mudando a forma de escrever de uma gerao de poetas (Christian Bthune). Defme Candido:
Alcino Leite Neto, Dentro da rede tora da lei, em Folha de S.Paulo, Mais!, So Paulo, 1 8-8-2002.
Tanto quanto os valores, as tcnicas de comunicao de que a sociedade dispe influem na obra, sobretudo na forma, e, atravs dela, nas suas possibilidades de atuao no meio. [...] Todos sabem para dar mais um exemplo da influncia decisiva do lornal sobre a literatura, criando novos gneros, como a chamada crnica, ou modificando outros j existentes, como o romance9. Podemos, ao menos, procurar entender as possibilidades criativas e transformadoras do rap e da cultura hip hop nas artes em geral. LITERATURA Em 2001, a revista Caros Amzgos publicou o suplemento especial Literatura marginal, com o subttulo A cultura da perifr ria: ato 1, cujo segundo nmero foi lanado no primeiro semestre de 2002. Entre outras qualidades, foi responsvel por reunir um conjunto de textos que poderiam ser classificados como literatura. Mais do que a qualidade dos textos em prosa e poesia , talvez seja mais importante olhar para o manifesto que abre a publicao, feito por Ferrz, escritor do Capo Redondo (bairro perifrico da zona sul de So Paulo), autor de Capo pecado que traz textos de Mano Brown e Gaspar, rapper do grupo Zfrica Brasil. O Manifesto de abertura: literatura marginal um divisor de guas nesse encontro do rap e outras expresses artsticas da periferia com a literatura: [...] queimaram nossos documentos, mentiram sobre nossa histria, mataram nossos antepassados. Outra coisa tambm certa: menriro no futuro, escondero e queimaro tudo o que prove que um dia a periferia fez arte jogando contra a mas sificao que domina e aliena cada vez mais os assim chamados por eles de excludos sociais, e para nos certificar de que o povo da periferia/favela/gueto tenha sua colocao na histria e no fique mais qumhentos anos jogado no limbo cultural de um pas que tem nojo de sua prpria cultura, o Caros Amzgos/Literatura marginal vem para representar a cultura autntica de um povo composto de minorias, mas em seu todo uma maioria. E temos muito a proteger e a mostrar, temos nosso prprio vocabulrio, que muito precioso, principalmente num pas colonizado at os dias de hoje, onde a maioria no tem representatividade cultutal e social. Como Joo Antnio andou pelas ruas de So Paulo e Rio de Janeiro sem ser valorizado, hoje ele se faz presente aqui e temos a honra de cit-lo como a mdia o eternizou, um autor da literatura marginal. Tambm citamos a batalha da vida de Mximo Gorki, um dos pn meiros escritores proletanados. Mas no podemos esquecer de Pino Marcos, que vendia seus livros no centro da cidade e que tambm levou o ttulo de autor marginal e acabou escrevendo dezenas de obras, Dois perdidos numa noite suja e Quer, para citar s duas. Fazemos uma pergunta: quem neste pas se lembra da literatura de cordel? Que traz a pura essncia de um povo totalmente marginalizado, mas que sempre insistiu em provar que a imaginao no tem fronteira? A literatura de cordel, que cem anos completou, literatura marginal, pois margem esteve e est, num lugar que gosta de trabalhar com referncias estrangeiras. Literatura marginal seria um novo movimento literrio? Uma revista de textos literrios? O indcio de um novo gnero ou do surgimento de autores ligados cultura hip hop e ao rap? Pode-se entender Literatura marginal como marco/sntese desse entrecruzamento de linguagens, seja a literatura e o rap, seja a literatura e o hip hop ou a literatura e as culturas da periferia?
Segundo Cuiler, o que distingue um texto literrio de outros tipos de texto que os literrios10 passaram por um processo de seleo: foram publicados, resenhados e reimpressos, para que os leitores se aproximassem deles com a certeza de que outros os haviam considerado bem construdos e de valor) . Essa definio chama ateno para o processo de produo, circulao e consumo que se prolonga no processo de reconhecimento da obra como literatura e de sua legitimao como boa literatura ou at mesmo como grande literatura. A atitude de Ferrz bastante prxima do que Candido diz a respeito da posio do escritor dentro desse sistema artsticcx Ferrz, primeiramente, lanou seu livro, fazendo presente a marca de artista criador, mas j incorporando elementos da arte coletiva, que, para Candido, a arte criada pelo indivduo a tal ponto identicado com as aspiraes e valores do seu tempo, que parecem dissolver- se nele. Os elementos individuais adquirem significado social na medida em que as pessoas correspondem a necessidades coletivas; e estas, agindo, permitem, por sua vez, que os indivduos possam exprimir-se, encontrando repercusso no grupo. As relaes entre o artista e o grupo se pautam por essa circunstncia e podem ser esquematizadas do seguinte modo: em primeiro lugar, h a necessidade de um agente individual que tome a si a tarefa de criar ou representar a obra; em segundo lugar, ele ou no reconhecido como criador ou intrprete pela sociedade, e o destino da obra est hgado a essa circunstncia; em terceiro lugar, ele utiliza a obra, assim marcada pela sociedade, como veculo das suas aspiraes individuais mais profundas11. Essa ltima afirmao de Candido, a respeito das aspiraes individuais, tambm poderia referir-se ao meio hip hopper e da periferia, embora a grande mensagem que envolve as artes relacionadas a esses mundos seja baseada num princpio de coletividade. A relao com o mercado, editorial ou fonogrfico, sempre dicotmica para os manos. Ferrz mantm-se como artista criador independente ao escrever para a revista Caros Amzgos, agindo, assim, como outros colaboradores da revista. Por outro lado, em Literatura marginal, h mais do que um papel especfico do artista, mas a formao de grupos de artistas, citados no fim do manifesto. Isso tambm parte da estrutura de um sistema comunicacional, no caso a literatura. Ao referir-se literatura de cordel, Ferrz estabelece um parmetro importante para entender a literatura de rappers e outros marginalizados. De origem europia, o cordel arte mltipla, que se expressa no plano da escrita, da oralidade e da msica. Especialmente a partir dos anos 1970, por intermdio de pesquisadores estrangeiros e nacionais, a literatura de cordel foi reconhecida como uma das expresses mais legitimamente brasileiras. Chegou-se ao fato de um poeta de cordel, no Rio de Janeiro, candidatar-se para a Academia Brasileira de Letras. Consta que ele obteve cinco votos. Como informa o estudioso Joscph M. Luyten, professor catedrtico da Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura ((Jnesco) e docente da Universidade Metodista de So Paulo (Umesp) e da Umversidade Catlica de Santos: [...] Os folhetos noticiosos que, antes dos anos 1960, incluam desastres locais de trens ou caminhes, agora tratavam de infortnios de maior alcance, informados pela imprensa nacional e a estrangeira. Em suma, houve uma transformao to grande no contedo dos folhetos, que muitos folcloristas tradicionalistas se recusavam a consider-los arte popular ou folclore, Os poetas, os cantadores e o seu pblico no se preocuparam muito com isso, dando, sua maneira, continuidade ao processo e, com isso, seguindo uma longa tradio, esta, sim, verdadeiramente popular, de informar, formar, instruir e divertir o povo. Mudaram-se muitas palavras e enfoques, mas o principal permanece: uma literatura do povo para o
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Jonathan Cuiler, Teoria literria: uma introduo, trad. Sandra Vasconcelos (So Paulo: Beca Produes Culturais, 1999), p 33. 11 Antonio Candido, Literatura e sociedade, cii., p. 23.
povo. certo que os poetas mudaram. Hoje, h diversos formados em universidade. O povo tambm mudou. De inocentes e crdulos campesinos surgiram suburbanos descrentes e sequiosos de transformaes sociais e no necessanamente politicas 12.Essa tendncia contestatria do cordel no soberana dentro do gnero. O discurso criativo da fico se mantm marcante. O que nos interessa na aproximao entre o cordel e o rap e a literatura reunida por Ferrz e por ele denominada rnargina/ a retomada por ambos de uma das mais importantes funes da literatura, a funo social. Segundo Candido, talvez essa funo prepondere na literatura dos grupos iletrados, enquanto a literatura erudita atual parece feita para a leitura individual e voltada para a singularidade diferenciadora dos indivduos, do que para o patrimnio comum dos grupos13. Nesse sentido, pudemos estabelecer esse paralelo entre as duas expresses/artes. E vimos, assim, que o rap pode retomar uma das funes da literatura numa sociedade, quando o mano (ou mina) conquista o seu direito de manifestar-se pela palavra, mobilizando milhares de jovens em todo o pas. O domnio da linguagem dos manos no se mostra na perfeio gramatical, mas na utilizao de diferentes cdigos de reconhecimento; no falar primeiro para a sua comunidade, e os demais que procurem entender. No conseguia fazer um barato mais difidil. J tentei poesia concreta, mas nunca vou fazer um livro com pensamento francs. No fao literatura para elite, afrrma Ferrz, defendendo que a literatura est no ar, o ltimo lugar em que ela aparece no livro14. J o cordel cumpre uma funo de comunicao folclrico- popular: reporta eventos de sua prpria comunidade e regio, opina sobre eles e leva para o consumidor local, recodificadas, as mensagens de uma cultura nacional de massas15. Uma outra perspectiva sobre o Manifesto de abertura: literatura marginal a da literatura como construo intertextual ou auto-reflexiva. Como Cuiler esclarece: [...j tericos recentes argumentaram que as obras so feitas a partir de outras obras: tornadas possveis pela obras anteriores que elas retomam, repetem, contestam, transformam. Essa noo s vezes conhecida pelo nome imaginoso de intertextuahdade. Uma obra existe em meio a outros textos, atravs de suas relaes com eles. Ler algo como literatura consider-lo como um evento hngstico que tem significado em relao a outros discursos16 . Mas como isso se d no Manifesto? E no rap? Para legitimar sua proposta de uma literatura marginal, Ferrz cria uma genealogia, elegendo como precursores dois escritores brasileiros (Joo Antnio e Plnio Marcos) e um russo (Gorki), alm de um gnero da cultura popular, a literatura de cordel. Outro exemplo de construo intertextual: a partir do rap dos Racionais, por exemplo, surgiram inmeros grupos que utilizaram sua criao textual e musical, baseando-se na sua linguagem e no exatamente no que dizem representar: a realidade da sua quebrada. O conceito de intertextualidade fundamental para entender outros processos que envolvem a criao de
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Joseph M. Luyten, Os cem anos de vida e as muitas mortes do cordel brasileiro, em 100 anos de cordel, exposio realizada no Sesc Pompia, de 17 de abril a 24 de junho de 2001 (So Paulo: Sesc, 2001), p. 11 13 Antonio Candido, Literatura e sociedade, cit., p. 41 Segundo o autor, a funo social [...] comporta o papel que a obra desempenha no estabelecimento de relaes sociais, na satisfao de necessidades espirituais e materiais, na manuteno ou mudana de uma certa ordem na sociedade. [...] Considerada em si, a funo social independe da vontade ou da conscincia dos autores e consumidores de literatura. Decorre da prpria natureza da obra, da sua insero no universo de valores culturais e do seu carter de expresso, coroada pela comunicao. 14 Ferrz, em entrevista ao jornalista Marcelo Flubens Paiva, Literatura da periferia v dio substituir malandragem, Em Folha de S.Paulo, Ilustrada, So Paulo, 22-7-2000. 15 Mark J. Curran, Histria do Brasil em cordel (So Paulo: Edusp, 1998), p 18. 16 Jonathan Cuiler, Teoria literria: uma introduo, cii., p. 40.
um rap, como a produo musical, composta por meio de msica (de autoria de outros compositores) reprocessada mecnica ou eletronicamente. Para denunciar a vida dentro de uma instituio penitenciria, Mano Brown se utiliza de uma outra forma de intertextualidade. Dirio de um detento, um dos sucessos do grupo Racionais, foi composta por Mano Brown a partir da leitura de um relato do exdetento J ocenir em seu livro homnimo: Coloquei em suas mos dois cadernos, um de prosa, outro de versos. Imediatamente Brown comeou a folhear tudo com muita ateno, parecia procurar algo que j sabia estar ali. Depois de alguns minutos, ele se dirigiu a mim e pediu permisso para destacar algumas folhas do caderno de versos. Consenti 17. Quando questionado a respeito dessa msica, Mano Brown afirma que foi atrs da realidade, no caso intermediada pelo ento presidirio. MANIFESTO No difcil entender por que Ferrz elegeu Joo Antnio como um de seus precursores: Joo Antnio andou pelas ruas de So Paulo e Rio de Janeiro, ou seja, viveu a cultura das ruas, a cultura autntica de um povo composto de minorias, e, por isso, ele pode ser seu porta-voz. Segundo Ferrz, Joo Antnio no foi valorizado, o que o aproximaria das centenas de escritores marginalizados deste pas, emb ora afirme que Joo Antnio foi eternizado pela mdia como autor de literatura marginal. Por meio desse cone, Ferrz traa indiretamente um retrato de escritor e de seu papel social: um sujeito que conhece sua gente, fala por ela, autor de uma obra que mostra que a periferia faz arte, alm de reivindicar o reconhecimento e a legitimao como escritor, ser lembrado e eternizado. H outras razes, porm, para a escolha de Joo Antnio, que podem ser deduzidas pela referncia a andar pelas ruas. Joo Antnio viveu entre jogadores dc sinuca, viradores, vadios, vagabundos, principais personagens das histrias. Sobre seu primeiro livro, Ma/agueta, Perus e Bacanao, ele conta: Eu vivi a aventura de Malagueta, Perus e Bacanao um pote de vezes. Um tufo de vezes, um derrame, uma profuso de vezes. Sair da Lapa, catar a Barra Funda, desguiar para o centro da cidade, pegar os lados de Pinheiros, procurando jogo e acabar na Lapa, era a aventura diria de quem estava naquele fogo 18. Joo Antnio chegava a afirmar que a maior qualidade do seu Livro era o ponto de vista: ver pelos olhos dos bandidos, dos merdunchos, no pelo olhar do escritor. De um jeito ou de outro, o lquido e certo que Malagueta, Penes e Bacanao , talvez, mais sinuca que literatura.19 Corpo-a-corpo com a vida, ltimo texto de Malhao de Judas carioca, uma espcie de manifesto literrio to raivoso quanto Manifesto de abertura: literatura marginal. Nele, essa relao inter- textual evidente. A leitura de alguns trechos enfatiza essa ligao: [...] Digamos, um bandido falando de bandidos. [...] Literatura de dentro para fora. Isso pouco. Realismo crtico. pou co. Romance-reportagem-depoimento. Ainda pouco. Pode ser tudo isso tranado, misturado, dosado, conluiado, argamassado uma coisa da outra. E ser bom. Perto da mosca. A mosca quase certo est no corpo-a-corpo com a vida20. Joo Antnio, ao defender enfaticamente a palavra dos brasileiros marginalizados, optou pelo manifesto, a mesma forma usada por Ferrz para inaugurar Literatura marginal,
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Jocenir, Dirio de um detento: o livro, apresentao de Druzio Vareila (So Paulo: Labortexto, 2001), pp. 100-101. 18 Joo Antnio, Corpo-a-corpo com a vida, em Malagueta, Perus e Bacanao & Malha o de Judas carioca (So Paulo: Clube do Livro, 1987), p. 323. 19 Ibidem. 20 Ibid., p. 324.
estabelecendo, assim, uma outra semelhana intertextual, pautada por construes hiperblicas e apaixonadas. Se, na dcada de 1970, Joo Antnio vivia provocando a elite literria brasileira, dizendo que na favela, por exemplo, lugar onde h vida, Mano Brown que o faz hoje, quando fala de gueto e quebrada, referindo-se ao Jardim Angela ou Capo Redondo bairros perifricos da zona sul de So Paulo. Nesse sentido, o rapper um afilhado dessa voz louca que Joo Antnio propagava. um rudo novo intimamente ligado fala dos sucumbidos pela lgica do mercado, que tem como expresso rtmica e potica uma funo importante de ser, se possvel, antdoto para a fala educada, tambm atacada por Joo Antnio. Em seus manifestos, ambos querem: [...] uma arte literria, como de um teatro, de um cinema, de um jornalismo, que firam, penetrem, compreendam, exponham, descarnem as nossas reas da vida. [...] A desconhecida vida de nossas favelas, local onde mais se canta e onde mais existe um esprito comunitrio; a indita vida industrial; os nossos subrbios escondendo quase sempre setenta e cinco por cento de nossas populaes urbanas; os nossos interiores os nossos intestinos, enfim, onde esto em nossa literatura? Enquanto isso, os aspectos da vida brasileira esto a, inditos, no tocados, deixados pra l, adiados eternamente e aguardando os comunicadores, artistas e intrpretes21. OUTROS DEBATES O rap arte ps-moderna, segundo o filsofo norte-americano Richard Shusterman: Tendncia mais para uma apropriao reciclada do que para uma criao original, tinica. Uma mistura ecltica de estilos, a adeso entusistica nova tecnologia e cultura de massa, o desafio das noes modernistas de autonomia esttica e pureza artstica, e a nfase colocada sobre a localizao espacial e temporal mais do que sobre o universal ou o eterno22. Para o autor, o rap desafia algumas convenes estticas. A mais bvia a apropriao artstica de msicas, mensagens, cichs, grias, expresses populares, histria oral, etc. Esse trao caracterstico de sua forma esttica ainda visto como algo depreciativo, afrontando, at, outras artes. Shusterman, por exemplo, afirma que suas singularidades estticas (recuperao de msicas antigas, prtica de colagem, trabalho sobre a repetio) so to vivas e judiciosas que justificam, por elas mesmas, a leitura da obra. A discusso no fmda, especialmente quando pensamos que o rap j est submetido sua prpria apropriao. E a arte, no caso do rap, essencialmente mais um processo do que um produto acabado. Embora as diversas formas de msica negra, tanto nos Estados Unidos como no Brasil, tenham relaes estreitas com os movimentos de identidade e de orgulho racial, e, portanto, tenham um papel sociopolitico importante, isso no significa que elas estejam fora do mercado, da ridia e da indstria cultural. O rap no exceo nesse contexto. No d para ignorar, por exemplo, que ele vende milhes de discos pelo menos desde o estouro de Walk This Way, do Run DMC, em 1988; que em 2001 o rapper branco Eminem foi o principal premiado no ultraconservador prmio Grammy; e que, no fosse o poder de divulgao dos meios de comunicao de massa, as mensagens, os simbolos e as formas artsticas do hip hop no teriam circulado pelo mundo e chegado ao Brasil. O rap se relaciona com a indstria, mesmo que muitas vezes busque formas de produo, divulgao e circulao alternativas, que nada mais so do que subsistemas da indstria cultural.
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Ibid., p. 318. Richard Shusterman, Vivendo a arte: o pensamento pra gmatista e a esttica popular, trad. Gisela Domschke (So Paulo: Editora 34, 1998), p145
Ao aproximarmos o rap e a literatura, observando seus entrecruzamentos, necessrio que questes referentes ao mercado tambm sejam levadas em conta. Se, por um lado, a relao com o mercado pode abrandar o seu contedo, tornando-o suscetvel s chamadas regras do sistema, o seu contedo que tem estimulado mudanas em outras linguagens, como o cinema. preciso repensar o conceito de rap como retrato da periferia. Por um lado, como salienta Cuiler, a realidade no um original que pode ser representado, ou seja, substitudo por signos, j que a prpria realidade medliada por signos, por simbolos, por ideologias23. Por outro lado, alm de porta-voz de seu grupo social (menos ou mais consciente, menos ou mais engajado), o rapper tambm uma voz individual. Embora Racionais ou outro grupo de rap tematize a realidade de sua quebrada, ao retratla, eles no faro de forma isenta. Esses poetas da periferia, inseridos num sistema artstico, utilizam signos que intermedeiam esse retrato que, sem dvida, est comprometido com valores da sua comunidade. Isso no significa que fazem uma verso estilizada, mas j no podemos afirmar que sua leitura a realidade pura e simples, mas msica ou literatura mibuda de signos identificveis no cotidiano de uma periferia e acrescidos de tudo o que envolve a criao artstica. Nesse sentido, parece extremamente atuai uma afirmao do intelectual francs Sainte-Beuve, que sintetiza a relao entre o artista e o meio:O poeta no uma resultante, nem mesmo um simples foco refletor; possui o seu prprio espelho, a sua mnada individual e nica. Tem o seu ncleo e o seu rgo, atravs do qual tudo o que passa se transforma, porque ele combina e cria ao devolver realidade 24.A interao do rap com o cinema, j sob esse prisma de literatura da realidade, tem a ver com o debate proposto acima, de que no se transpe a realidade diretamente, sem o filtro de um intrprete. Mais do que isso: arte que tem servido como referncia para outra. Ele est influenciando um tipo de esttica do cinema nacional, qualidade explicita no filme Invasor, de Beto Brant, guiado, em alguns momentos, pelo ritmo do rapper Sabotage (ator e professor da potica da gria para o protagonista, encenado pelo msico Paulo Mildos). Em 1998, o mesmo ocorreu com os Racionais MCs no videocipe da msica Dirio de um detento. Novamente, o rap extrapolou o gnero e ocupou lugar de roteiro, como afirma o diretor do videocipe, o cineasta Maurcio Ea. L-se, em ambos os trabalhos cinematogrficos, influncias do texto do rap. Cidade de Deus, de Fernando Meireiles, no um filme com bip hoppers ou rappers, mas apresenta elementos comuns ao rap e ao bip hop, como a violncia. O historiador da arte Jorge Coli questiona o eventual embelezamento da violncia e da misria, que pode ser comum ao rap e ao cinema. A fico, no entanto, mesmo quando se quer realista, tem seus direitos, e esses senes poderiam ser salvos pela qualidade propriamente cinematogrfica. Ningum acredita que os miserveis, descritas por Victor Hugo, fossem mesmo daquele jeito. Mas ningum esquece de Jean \Taljean, Cosette oujax-ert, cuja verdade literria marca a memria de qualquer leitor, inquietante e perturbadora. Cidade de Deus foi bem filmado, de maneira hbil e dominada, O elenco de amadores foi dirigido de maneira convincente. Contudo o filme apenas uma miragem. Associa comoo sentimental, violncia e desfavorecidos: bons trunfos diante da conscincia culpada do pblico freqentador das salas. Como nada melhor para entender uma obra do que outra, basta, diante de Cidade de Deus, lembrar de O invasor. Este ltimo, muito menos acabado e polido, consegue uma fora efetiva de convico, ao enfocar o tema da violncia. No tenta imitar coisa nenhuma, no busca satisfazer sensibilidades assustadas nem conscincias culpadas. Conta uma histria, apenas; histria abominvel, em que o horror circula nas relaes de todos os personagens 25.
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Jonathan Culier, Teoria literria: uma introduo, cit., p. 21 Sainte-Beuve, apud Antonio Candido, Literatura e sociedade, cit., p. 18. 25 Jorge Coli, Uma questo delicada, em Folha de S.Paulo, Maisl, So Paulo, 29-9-2002.
Cidade de Deus baseia-se no romance homnimo de Paulo Lins26, e no em fatos reais, como mostrado ao seu trmino, motivando o pblico a acreditar nessa afirmao como verdade absoluta. Em toda criao artstica, novos significados so dados para aqueles temas, mesmo que sejam calcados no real. O resultado dessa afirmao repercute no pblico 27, e, uma vez dita real, uma inverdade reproduzida. A Cidade de Deus de Fernando Meireiles uma leitura de Cidade de Deus de Paulo Lins. Outras questes rondam Cidade de Deus, entre elas o seu grande sucesso e seu valor cinematogrfico. Nesse momento, vale ressaltar como imprpria a definio de arte que retrata/mostra a realidade, sem citar que, entre o tema e a linguagem, h uru intrprete, seja ele o cineasta ou o rapper. O Capo Redondo de Mano Brown no o mesmo de Ferrz, e assim por diante. BIBLIOGRAFIA COMENTADA CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 8 ed. So Paulo: T. A. Queiroz/Publifolha, 2000. Publicado originalmente em 1965, este livro rene oito ensaios do socilogo e crtico literrio Antonio Candido. Mesmo sendo independentes, os estudos possuem unidade metodolgica e coerncia temtica. Candido aborda os vrios nveis de correlao entre literatura e sociedade, dando importncia anlise da estrutura (forma), mas sem dispensar o estudo da circunstncia. So ensaios fundamentais para Rapensando: Crtica e sociologia, \ literatura e a vida social e Estmulos da criao literria. Alm de focalizar os aspectos sociais envolvidos no processo literno, Candido empenha-se na teorizao sobre esse processo e sua estrutura. Sua conceituao fornece-nos instrumental para a anlise mais rigorosa do ponto de vista sociolgico, sem reproduzir um olhar paternalista. CULLER, Jonatlian. Teoria literria: uma introduo. Trad. Sandra Vasconcelos. So Paulo: Beca Produes Culturais, 1999. Teoria literria: uma introduo, do terico americano Jonathan Culler, daqueles livros que acabam com qualquer resistncia em relao teoria e critica. No segue a linearidade bvia de estudar a literatura atravs de escolas criticas. Faz um jogo dialtico entre conceitos e tendncias, procurando exemplos clssicos e atuais. Num primeiro momento, toca numa questo delicada e tomada como sabida pela critica: o que literatura. Especialmente para Rapensando, dois captulos possuem extrema relevncia: O que literatura e tem ela importncia? e Literatura e estudos culturais. Com eles, possvel ter informaes suficientes para que o leitor possa formular melhor seu juzo critico acerca da prpria critica. FERRZ. Capo pecado. So Paulo: Labortexto Editorial, 2000. Um romance. Mesmo sendo unia histria de estrutura conservadora, ele tem o contedo do universo do rap, da periferia e do hip hop e sua linguagem que pode modificar a forma (estrutura). Esse mano do Capo Redondo (zona sul de So Paulo) tem a fora da palavra (a do rap). Ferrz no rapper. Poderia ser. Sua escrita tem, entre outros valores, a potica da gria, quabdade desejada por quem faz arte urbana ou busca alguma
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Paulo Lins, Cidade de Deus (So Paulo: da, das Letras, 1997). Segundo Antonio Candido, do ponto de vista sociolgico, h uma relao inextricvel entre a obra, o autor e o pblico. A medida que a arte como foi humana aqui um sistema simblico de comunicao inter-humana, ela pressupe o jogo permanente de relaes entre os trs, que formam uma trade indissolvel. O pblico d sentido e realidade obra, e sem ele o autor no se realiza, pois ele , de certo modo, o espelho, que reflete sua imagem enquanto criador (cf. Literatura e sociedade, cit., 1 . 33).
relao com a esttica da penfena; porque ela fere a palavra e est presente em cada esquina das periferias brasileiras. Capo pecado intercalado por pequenos textos de outros rappers, inclusive de Mano Brown, do grupo Racionais. SHUSTERMAN, Richard. Vivendo a arte: o pensamento pragmatista e a esttica popular. Trad. Gisela Domschke. So Paulo: Editora 34, 1998. Judeu branco de classe mdia, Richard Shusterman procura examinar criteriosamente as formas de expresso artstica populares, as artes de consumo, por meio de uma corrente filosfica, o pragmatismo (do qual a figura mais ativa foiJohn Dewey). O captulo de maior importncia para Rapensando A arte do rap. Situando-o dentro da esttica ps-moderna, ele analisa a msica, o ritmo e a poesia, rememora sua bistria nos Estados Unidos e estabelece um dilogo instigante sobre sua esttica, pela anlise de alguns raps. Fundamental para entender a formao do rap e uma sne de valores imbudos nesse estilo musical. Sua anlise filosfica de contedo extremamente esclarecedora e acessvel e d ao rap legitimidade como arte desafiadora de convenes artsticas.
SOBRE OS AUTORES CARLOS RENN Letrista, produtor e jornalista. Tem parcerias com Arrigo Barnab, Chico Csar, Gilberto Gil, Lenine, Rita Lee e Tom Z. J teve msicas gravadas por esses e outros intrpretes, como Gal Costa, Maria Bethnia e Tet Espndola. E autor de Co/e Porter: cances, verses (Paulicia, 1991) e co-autor do livro Gilberto Gil: todas as letras (Cia. das Letras, 1996). Produziu o CD Co/e Porter e Geoege Gershwin: canes, verses (Gelia Geral, 2000), com verses suas cantadas por nomes da MPB, como Caetano Veloso, Chico Buarque, Elza Soares, Cssia Eller, Zlia Duncan, Sandra de S, Ed Motta e Mnica Salmaso. Criou a srie de sites Os inventores da msica brasileira, para o UOL. Produziu um CD com musicalizaes de trechos do livro A cano do divino mestre, de Rogrio Duarte. Escreve eventualmente sobre msica popular em jornais (como Folha de S.Paulo) e revistas. D palestras, cursos e oficinas de cano popular. JANAINA ROCHA Jornalista e co-autora do livro Hib hop: aperiftriagrita (Fundao Perseu Abramo, 2001). Foi eprter do Caderno 2 (O Estado de S. Paulo) de 1998 a 2001. autora da pesquisa do documentrio VinteDe de Tata Amaral e Francisco Cesar Filho, produzido em 2001. Escreveu para o jornal Valor Econmico e para as revistas Carta Capital e E! (publicao mensal do Sesc So Paulo). Foi ra-geral da Coordenadoria Especial da Juventude da Prefeitura do Municpio de So Paulo, rgo criado na gesto de Marta Suplicy, e responsvel pela construo de politicas pblicas para os jovens da cidade. MARIA ALICE AMORIM Jornalista e pesquisadora na rea de literatura popular. Ps- graduada em teoria literria, pela UFPE. Tem trabalhos publicados, no campo do jornalismo cultural, em peridicos de Pernambuco, a exemplo do Jornal do Commercio, Diario de Pernambuco, revista Continente Turismo, Suplemento Cultural. Publicou, recentemente, um ensaio intitulado Literatura popular, num encarte especial sobre a cultura pernambucana, veiculado no Jornal do Commertio. Lana, com o pesquisador Roberto Benjaniin, o livro Carnaval: cortejos e improvisos (Fundao de Cultura Cidade do Recife, 2002), em que fala sobre a poesia improvisada presente nas brincadeiras carnavalescas da Zona da Mata Norte do estado. PAULO FREIRE Violeiro e escritor. Pertence nova gerao de instrumentistas que est trazendo a viola do serto para as salas de concerto. Apaixonado pelo romance Grande serto: veredas, de Guimares Rosa, foi morar na regio do rio Urucuia, norte de Minas Gerais, onde se passa a trama do livro. A partir dessa experincia, vem unindo, de forma cada vez mais intensa, a msica e a literatura, por intermdio de suas canes e causos. autor de trilhas sonoras, canes, romances, biografias, livros de causos, CDs de viola, recebendo premiaes no Brasil e no exterior. Tem participao em trabalhos de diferentes artistas brasileiros e colaborador das revistas Caros Amigos e Globo Rural. Alm de ter se apresentado na Europa e nos Estados Unidos, vem realizando shows, palestras e oficinas de viola pelo Brasil. SOLANGE RIBEIRO DE OLIVEIRA Ensasta e tradutora, professora emrita da UFMG, nas reas de literatura inglesa
e literatura comparada. Autora de A barata e a crislida: o romance de Clarice Liipector (J. Olympio, 1985), Literatura e artesplsticas (Editora da Universidade Federal de Ouro Preto, 1995), De mendzos e malandros: Cico Buarque, Berto/t Brecht, John Gy (Editora da Universidade Federal de Ouro Preto, 1999), Literatura e msica: modulaes ps-coloniais (Perspectiva, 2002).
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