Inventio e Invenção Na Sátira Atribuída A Gregório de Matos: o Caso Retórico e o Caso Augusto de Campos
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RESUMO
A partir da consideração da importância da obra cômico-satírica atribuída a Gregório de
Matos para a poesia de Augusto de Campos, mormente enquanto constituinte extrínseco
de seu projeto verbivocovisual, nosso artigo estabelece uma comparação crítica de dois
modos de leitura, duas figurações possíveis da persona de Gregório de Matos. A primeira,
aquela que contempla a entidade “barroca” por uma ótica adequada às contingências e
condições de seu tempo, sob o regime da aemulatio ibérica e contrarreformista; a segunda,
a que se detém sobre a permanência canônica da sátira gregoriana na obra de um autor
contemporâneo de relevo. Trata-se de diálogo diacrônico despoletado pelo concretista e
em última instância consubstanciado em performance poética.
ABSTRACT
Bearing in mind the importance of the comical and satirical works attributed to Gregorio
de Matos for Augusto de Campos's poetry, especially as an extrinsic constituent of his
verbivocovisual project, our article institutes a critical comparison between two possible
figurations of Gregorio de Matos's persona. The first contemplates the “baroque” entity
through a perspective suited to the contingencies and conditions of its historical time,
under the regime of Iberian counter-reformist aemulatio; the second focuses on the
canonical permanence of Gregorian satire in the work of a prominent contemporary
brazilian author. This is ultimately a diachronic dialogue initiated by the concretist poet
and embodied by his poetic performance.
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INTRODUÇÃO
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Gabriel Costa Resende Pinto Bastos dos Santos
É uma obviedade apontar que este enxerto, além de enfatizar a ética da adequação
histórico-pragmática que também receitamos, arrola vários dos neokantismos aplicados à
leitura de Gregório de Matos e da poesia satírica do século XVII. Certamente mais
importante do que esta constatação, para a proposta de nosso trabalho, é o nosso grifo
solitário: “antropofagia” é o termo que reporta à leitura não-ortodoxa (não em termos de
senso comum ou crítica leiga, mas em relação ao entendimento mais firmado e estável
dos estudos sérios sobre letras coloniais) que nos interessa. Referimo-nos, sem surpresas,
às análises de Gregório de Matos feitas pelas vanguardas do século XX, especialmente
pelos concretistas Haroldo e Augusto de Campos.
O crítico, tradutor e poeta Haroldo de Campos não é nome infenso aos debates
sobre o XVII. Seu contraponto aos critérios de Antonio Candido para a marginalização
historiográfica das práticas retórico-poéticas seiscentistas, reduzidas a “manifestações
literárias” em Formação da literatura brasileira (1959), é um dos performativos críticos
mais importantes de revaloração do “barroco” – discutida a natureza problemática do
rótulo “barroco”, adotemo-no por conveniência, seguindo o modus operandi de
especialistas (Oliveira, 2003, p. 20), e doravante dispensemos sua colocação entre aspas
– em nossa tradição literária.
Com a combatividade que lhe era de praxe, Haroldo de Campos também publica
na Folha de São Paulo, em outubro de 1996, o artigo A questão gregoriana, em que,
priorizando a “leitura sincrônica do passado de cultura à luz das necessidades do presente
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tradição, dentre os quais este espírito sem corpo, mas ainda ou até por isso espírito de seu
tempo, chamado Gregório de Matos e Guerra.
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Pode-se dizer que a leitura dos concretistas sobre Gregório de Matos e o barroco,
conquanto enseje um revelante contraponto crítico ao entendimento consolidado nos
estudos literários – lembrando, novamente, a centralidade da contribuição de Haroldo de
Campos para a revaloração das poéticas barrocas e de sua pertinência na historiografia
literária –, afasta-se quase inteiramente de quaisquer metas de reconstituição fidedigna
das condições de produção e dos sistemas subordinantes.
Não obstante, é inegável que a poesia atribuída a Gregório, desde o século XVII
de sua origem, encontrou poucos divulgadores e defensores de semelhante tenacidade.
Para Augusto de Campos (2015, p. 121), trata-se de obra que “não pode ser dispensada
sob nenhum pretexto”. O mesmo Augusto, no ensaio Da América que Existe: Gregório
de Matos, publicado originalmente em 1977, em resposta a uma crítica de José Miguel
Wisnik às vanguardas, indaga:
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dá por meio de uma análise formal que ressalta interposições de significado e riqueza
semântico-lexical, muito atenta e interessante, a despeito de ser debatível a relação
estipulada entre a agudeza gracianesca e expedientes “moderníssimos” (Campos, 2015,
p. 114-131). Em suma, os Campos não são coadjuvantes de uma fortuna crítica, mas
proponentes de relevo.
Enquanto ativos poetas-críticos-tradutores, que pensam o elo entre poesia, crítica
e tradução como complementaridade essencial, como característica irmã do isomorfismo
original (i.e. adequação inconsútil entre forma e conteúdo), os concretistas são capazes
de gestos que efetivamente ultrapassam os limites materiais do ensaio acadêmico. Não
surpreendentemente, uma idiossincrasia comum a ampla parte de seu repertório de
traduções e adaptações é a forma com que enfatizam aspectos particulares do objeto,
lançando mão de recursos de iconicidade verbivocovisual. Fora os termos “tradução-arte”
e “transcrição”, amiúde optados por Augusto (2022, p. 10), um conceito que descreveria
rigorosamente o processo e o seu resultado é o de intradução:
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Fonte: CAMPOS, Augusto de. O anticrítico. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
O artefato em questão repete duas vezes o dístico inicial da quadra eleita pelo
paulistano como exemplum magnum das qualidades atribuídas à poesia de Gregório. Na
primeira ocorrência, destaca-se a “constelação sônica/de fonemas oclusivos” (Campos,
2020, p. 91), o procedimento aliterativo que perfaz musicalidade com os ruídos
consonantais. Este é o aspecto melódico caro à melopeia. Observe-se como as repetições
das bilabiais, dentais e velares são assinaladas por escolhas tipográficas que as indiquem
iconicamente. Na segunda ocorrência, pensando agora a fanopeia, a tipografia torna-se
ícone da natureza monstruosa da imagem perfazida pelas metáforas gregorianas.
Não é uma liberdade excessiva de Campos: Quintiliano (Inst., VI, 2, 32) já
receitava a enargeia (ou illustratio, ou evidentia), a necessidade de fazer ver/mostrar,
como crucial qualidade retórica – pressuposto que seria incorporado, sabidamente, pelos
oradores e poetas contrarreformistas. No sistema semiótico proposto por Campos, por sua
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Gabriel Costa Resende Pinto Bastos dos Santos: Mestrando em Literatura Brasileira
pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
e graduado em Letras Português-Japonês pela mesma universidade. É bolsista da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES).
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