Democracia e Autogestão (VIANA)

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Democracia e Autogesto

Nildo Viana *

As expresses democracia e autogesto so vistas, muitas vezes, na histria do pensamento poltico, como sendo opostas, e, outras vezes, como sendo complementares. A democracia moderna uma democracia representativa, enquanto que a autogesto geralmente compreendida como democracia direta. A forma de relacionar democracia e autogesto depende da definio e significado dos termos democracia e autogesto. No presente texto, apresentaremos resumidamente as teses que defendem a complementaridade e a oposio entre autogesto e democracia para depois realizar uma discusso terica referente aos conceitos de democracia e autogesto e, posteriormente, apresentar nossa posio neste debate.

Entre os que defendem a tese da complementaridade entre democracia representativa e autogesto (democracia direta), temos um conjunto de pensadores, embora nem sempre claros em seus postulados, mas que possuem sua pr-histria na social-democracia alem de Kautsky, nos representantes do chamado austro-marxismo de Max Adler e Otto Bauer, no Gramsci da poca de seus escritos na priso, entre outros (Coutinho, 1985). Mas a concepo compatibilista entre democracia e autogesto (compreendida como democracia direta, ou democracia de base ou fundada em conselhos operrios) teve como primeiros defensores explcitos autores como Togliatti, Ingrao, entre outros, que defenderam a terceira via, tendncia chamada eurocomunista. Para Togliatti, a luta pelo socialismo no exclui a luta pela democracia (Togliatti, 1966), pois entre elas existe um nexo indissolvel (Togliatti, 1980). Ele defende o que denomina democracia progressiva, que seria um processo de aprofundamento da democracia no qual chegaria a um momento em que conviveriam harmonicamente as instituies da democracia representativa com as instituies da democracia de base (conselhos de fbrica, de bairros, etc.).

Seguindo esta linha de Togliatti e Ingrao, Carlos Nlson Coutinho defende a dualidade de poderes, isto , a convivncia entre democracia representativa e democracia direta (1985), tese retomada em outro escrito sem, neste caso, a referncia dualidade de poderes (1992). Coutinho parte da discusso realizada por Lnin e Trotsky a respeito da dualidade de poderes durante a revoluo russa,

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expressando a existncia de um poder proletrio e um poder burgus, um se manifestando atravs dos sovietes (conselhos operrios) e o outro atravs do Estado. A tese de Lnin e Trotsky era a de que esta dualidade de poderes era provisria e com a derrocada do poder burgus, se instauraria apenas um poder proletrio. Coutinho retoma vrios autores para reformular tal concepo e defender sua tese da dualidade de poderes como elemento componente da futura sociedade socialista. Fazendo uma interpretao questionvel de alguns autores, entre os quais Rosa Luxemburgo, Max Adler, Otto Bauer, entre outros, e buscando conquist-los para suas teses, Coutinho fundamenta sua posio atravs das mudanas histricas. desta forma que ele explica o que ele denomina concepo restrita de Estado e teoria da revoluo explosiva em Marx, Lnin e Trotsky. Estes autores apresentaram uma concepo restrita do Estado por no terem ultrapassado um nvel de abstrao e chegando ao Estado em sua concreticidade mas isto no foi apenas um problema metodolgico, pois o Estado, na poca e lugar em que eles produziram suas teses, era realmente mais restrito. Com as mudanas histricas, estes autores continuam apresentando contribuies

importantes, mas, segundo Coutinho, preciso ir alm da concepo restrita de Estado e de revoluo explosiva para constituir uma concepo ampliada de Estado, o que j foi realizado por Gramsci, e uma concepo processual de revoluo, na qual haveria reformas de estrutura (Coutinho, 1982). por isso que este autor poder, posteriormente, postular a tese da democracia como valor universal (1980) e, portanto, indo alm da sociedade capitalista.

Outra posio que considera a existncia de uma compatibilidade entre democracia direta (autogesto) e democracia representativa parte de questes mais prticas de organizao da futura sociedade autogerida, pois em uma empresa autogerida, o processo relativamente claro e simples, mas se complexifica quando se passa para a escala global da sociedade:

A partir do momento em que se deixa o escalo da empresa para passar aos nveis mais elevados da autogesto, por exemplo, para tratar dos problemas de pessoal que devem receber uma soluo interprofissional, torna-se praticamente impossvel pensar no exerccio de uma democracia direta. Nesse caso s poder tratar-se de democracia representativa, por mais lamentvel que isso seja. a estes nveis que o sindicato chamado a tornar posio em nome dos trabalhadores das empresas, ao passo que em cada uma delas em particular a sua vocao ser conselheiro da

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democracia direta sem jamais se substituir a ela, por pouco que seja (Chauvey, 1970, p. 189).

Aqui temos uma viso da autogesto enquanto democracia direta e a democracia representativa, por mais problemtica (ou lamentvel) que seja, uma forma aceitvel de relao poltica no s na sociedade moderna mas at mesmo na sociedade ps-capitalista. Para Coutinho, a democracia representativa seria um valor universal enquanto que para Chauvey, a contragosto, a aceita numa futura sociedade autogerida.

Posio antagnica a daqueles que consideram que a autogesto mais do que uma democracia direta ou forma de democracia direta aplicada gesto de empresas. A autogesto seria uma relao social especfica, uma relao de produo, o que significaria relaes de trabalho e de distribuio. A autogesto seria a deciso coletiva dos produtores sobre o processo de produo, isto , os prprios produtores iriam gerir o processo de produo. A autogesto uma relao social fundante de uma nova formao social, uma nova sociedade. Nesta perspectiva, a autogesto seria um processo de autogoverno, ou uma livre associao dos produtores, segundo expresso de Marx. A democracia

representativa, nesta viso, seria uma forma de reproduo da diviso da sociedade de classes, uma forma de dominao. Marx foi o primeiro a desenvolver esta tese ao realizar a crtica do Estado capitalista e apresentar suas teses referentes futura sociedade comunista. Para Marx, o Estado capitalista um aparato da classe burguesa, uma expresso de seus interesses de classe (Marx e Engels, 1988). A democracia burguesa a forma lgica da dominao burguesa, segundo Engels (apud. Moore, 1988).

O carter das eleies, escreve Marx, no depende de suas denominaes e sim de seus fundamentos econmicos, dos vnculos econmicos entre os membros do eleitorado.... Ele sustenta que a funo normal do sufrgio universal nas sociedades capitalistas a decidir uma vez a cada trs ou seis anos que membro da classe dominante ir representar o povo no parlamento (Moore, p. 96).

Em contraste com a democracia burguesa, Marx apresentava a sociedade comunista como forma de autogoverno dos produtores (Marx, 1986), partindo da

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experincia histrica da Comuna de Paris. O regime comunal seria uma livre associao dos produtores nos quais o Estado capitalista seria abolido juntamente com todo o aparato burocrtico, o que significaria, por conseguinte, a abolio da democracia representativa. Embora no utilizasse a expresso autogesto, sua concepo nitidamente autogestionria, tal como muitos observaram (Massari, 1977; Guillerm e Bourdet, 1976).

Depois de Marx, um dos autores que se destacou na anlise crtica da democracia burguesa e na defesa da autogesto foi o pensador marxista Anton Pannekoek. Pannekoek realizou uma crtica radical democracia burguesa, mais desenvolvida em sua poca do que no tempo de Marx, qualificando-a de forma de dominao burguesa (Pannekoek, 1978; Pannekoek, 1977) e contrapondo a ela o sistema conselhista, isto , o sistema dos conselhos operrios que deveriam autogerir o processo de produo e distribuio da sociedade comunista

(Pannekoek, 1977; Viana, 2005; Guillerm e Bourdet, 1976). Se a democracia e o parlamento so formas burguesas de escravizao do proletariado (Pannekoek, 1978), ento a ao direta e luta operria autnoma se torna o seu meio de libertao visando uma sociedade fundada no autogoverno dos conselhos operrios, na autogesto social.

Poderamos citar outros pensadores que partem da posio antagonista entre democracia e autogesto, tal como Joo Bernardo (1975) e tambm alguns pensadores anarquistas, mas, por questo de espao, nos limitaremos a Marx e Pannekoek, dois dos nomes mais expressivos desta tendncia.

A resoluo da questo da compatibilidade ou incompatibilidade entre democracia e autogesto depende da definio fornecida a estes termos. A questo da definio de uma palavra no coisa simples e inocente. Para compreender isto podemos partir da contribuio da filosofia da linguagem de Mikhail Bakhtin:

Um signo no existe apenas como parte de uma realidade; ele tambm reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer esta realidade, ser-lhe fiel, ou apreend-la de um ponto de vista especfico, etc. Todo signo est sujeito aos critrios de avaliao ideolgica (isto : se verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc.). O domnio do ideolgico coincide com o domnio dos signos: so mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se

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encontra, encontra-se tambm o ideolgico. Tudo que ideolgico possui um valor semitico (Bakhtin, 1990, p. 32).

Assim, Bakhtin relaciona signo e ideologia. O ideolgico, que para Bakhtin o mesmo que valorativo, acaba tomando conta dos signos. A palavra , para ele, um fenmeno ideolgico. O signo se torna arena onde se desenvolve a luta de classes (Bakhtin, 1990, p. 46). Desta forma, no difcil compreender que a concepo compatibilista e a concepo antagonista de democracia e autogesto sejam defendidas por posies polticas diferentes. No entanto, preciso diferenciar entre a palavra utilizada na linguagem cotidiana e os termos complexos utilizados, os conceitos e falsos conceitos, construtos (Viana, 1997), sendo o primeiro parte de um discurso terico e o segundo de um discurso ideolgico. Cabe lembrar que nossa concepo de ideologia difere da de Bakhtin, significando, tal como em Marx, falsa conscincia sistematizada. Os conceitos so histricos, transitrios, tal como a realidade que eles expressam. Os construtos podem ser fixos, a-histricos, dependendo da ideologia que lhe d suporte. Os conceitos so expresso da realidade mas tambm podemos pensar em conceitos antecipadores (Viana, 1997), que so expresses de uma realidade desejada mas ainda-no-existente, para utilizar expresso de Ernst Bloch (2005). Esta realidade desejada um projeto e uma possibilidade histrico, e, assim, o conceito antecipador um conceito possvel que pode ou no se realizar.

Aqui cabe distinguir entre o conceito expressivo e o conceito antecipador, expresso de um ideal. Muitos confundem conceitos expressivos e conceitos antecipadores e ao faz-lo perdem de vista a capacidade de analisar determinados fenmenos histricos. Este o caso da expresso democracia, palavra que possui uma carga valorativa positiva muito grande. Da se confunde a democracia desejada com a democracia efetiva. A democracia existente de fato aquela que surge com a sociedade moderna a partir das revolues burguesas e que se transformou historicamente. Ela uma democracia representativa e a

representao que lhe caracteriza, embora a forma de representao tenha mudado historicamente.

A democracia moderna, inicialmente, foi uma democracia censitria, na qual a representao era facultada a quem detinha determinado nvel de renda, a partir do sculo 19, como resultado das lutas operrias, a democracia passou a se organizar sob a forma de sistema partidrio, no qual os partidos polticos se tornavam os

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rgos mediadores e que, aps a segunda guerra mundial, se torna amplamente um sistema burocrtico (Viana, 2003). Assim, a democracia representativa moderna um produto do desenvolvimento das lutas sociais e da ao do Estado moderno. Este, por sua vez, expressa os interesses da classe dominante. Por conseguinte, a democracia representativa moderna uma das formas como o Estado capitalista se relaciona com as classes sociais, sendo, pois, um regime poltico burgus, caracterizado pela participao restrita das classes sociais (Viana, 2003, p. 48).

Por conseguinte, esta a democracia representativa realmente existente e no o ideal de democracia ou a expresso fidedigna de sua etimologia (demo = povo; cracia = governo = governo do povo). Ela se fundamenta numa sociedade dividida em classes sociais fundada em um processo de explorao e dominao que tem no Estado o seu principal suporte de reproduo. Obviamente que a percepo disto pressupe uma anlise histrica e uma discusso acerca dos conceitos, que esboamos aqui e desenvolvemos em outro lugar (Viana, 1997). Mas alm de tudo, h a questo apontada por Bakhtin, do envolvimento dos signos com as lutas de classes, que acabam gerando opes e concepes.

Passemos, ento, para o conceito de autogesto. Este um termo que est na moda, onde se confunde cooperativas e economia solidria com autogesto social. Mas a moda j antiga na Europa, pois j na dcada de 70 j estava em voga (Guillerm e Bourdet, 1976). Existem diversas concepes de autogesto, mas aqui partiremos daquela esboada por Marx e Pannekoek, poca em que a expresso ainda nem existia, para apresentar nossa concepo de autogesto. Aqui, ela no , como para alguns, mtodo de gesto de empresas ou como, para outros, uma forma poltica que assume o comunismo, ou seja, a democracia direta. Aqui partimos da idia da historicidade do conceito, dependente e indissoluvelmente ligada histria da sociedade.

Antes de tudo, tal como fizeram A. Guillerm e Y. Bourdet (1976), til distinguir o conceito de autogesto de outras palavras que muitos pensam ter o mesmo significado. Autogesto no possui o mesmo significado que participao , co-gesto, controle operrio ou cooperativismo. Vejamos o significado destas palavras:

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A) PARTICIPAO: Participao no significa autogesto, pois ela significa participar de algo j existente, ou seja, de uma atividade que possui estrutura e finalidade prprias. Segundo Guillerm e Bourdet, o participante como um flautista numa orquestra: participa se misturando individualmente a um grupo que lhe preexistente:

B) CO-GESTO: A co-gesto uma tentativa de integrar a criatividade e a iniciativa operria no processo produtivo capitalista (com o objetivo de aumentar a produtividade e, conseqentemente, a extrao de mais-valor relativo - ou maisvalia relativa) e que permite a participao dos trabalhadores apenas no processo de produo, nos meios e no nos fins. Mas mesmo essa co-gesto nos meios limitada, pois a definio por outros sobre os fins leva uma pr-determinao no que se refere ao meios.

C) CONTROLE OPERRIO: Segundo Guillerm e Bourdet, o controle operrio significa um passo adiante em relao co-gesto, mas ainda no autogesto, pois o controle operrio surge como produto de uma interveno conflituosa que arranca concesses para os trabalhadores, embora se limite a exercer-se sob pontos especficos que no questionam o salariato. Para M. Brinton, a proposta de controle operrio apresentada por diversos grupos polticos (principalmente leninistas e trotskistas) expressa a vontade de apresentarem-se como mais democrticos e fazem isto buscando nos iludir com a afirmao de que o leninismo sempre defendeu tal proposta. Para ele, o controle operrio, ao contrrio da autogesto, no significa que a classe operria ir gerir a produo e sim que ela ir supervisionar, inspecionar ou verificar as decises tomadas por instncias exteriores ao processo produtivo, tal como o estado ou o partido (Brinton, 1975).

D) A COOPERATIVA: Segundo Guillerm e Bourdet, esquematicamente, podese, com efeito, convir que (...), as cooperativas tm vegetado sempre sob formas locais, a tal ponto que esta limitao se tornou seu sinal distintivo. Por isso, para designar a generalizao dos sistemas de cooperativas, far-se- mister uma palavra nova. O termo autogesto deve assumir o papel (Guillerm e Bourdet, 1976, p. 1920). Acontece que, no interior da sociedade capitalista, as cooperativas no determinam seus fins, pois o mercado e o estado sempre interferem nas finalidades de uma cooperativa e no s nos fins como, em menor grau, tambm nos meios.

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Em sntese, a participao, o controle operrio, a co-gesto e as cooperativas podem existir no interior do modo de produo capitalista e so assimilveis por ele. O capitalismo envolve todas estas manifestaes e as colocam sob sua direo, direta ou indiretamente. No existem nem podem existir ilhas de autogesto cercadas pelo mar do capitalismo. A autogesto s pode existir em locais isolados por um curto perodo de tempo e em confronto com o conjunto da sociedade capitalista (Estado, mercado, etc.) e desta luta um dos dois vencer, ocorrendo a destruio da experincia autogestionria ou a generalizao da autogesto a nvel nacional e posteriormente mundial.

Podemos dizer tambm que as definies acima deixam entrever que no existe muita diferena entre todos estes termos, pois todos eles possuem algo em comum: em todas essas formas de participacionismo permanece exterior aos trabalhadores a determinao dos fins e uma co-determinao no que se refere aos meios. Por conseguinte, o termo co-gesto engloba todos os outros termos e, sendo assim, ele suficiente para marcar a diferena entre a autogesto e as outras formas de gesto que se dizem democrticas. Mas o que a autogesto? Para responder a esta questo necessrio compreender a sua possibilidade histrica e o locus onde esta possibilidade ocorre, isto , o capitalismo.

Todo modo de produo possui uma determinao fundamental que expressa pelo conceito de relaes de produo e que serve de fundamento para todas as outras relaes sociais. Marx demonstrou que a relao de produo (determinao fundamental) do feudalismo a servido:

Em

vez

do homem independente,

encontramos aqui

toda a gente

dependente, servos e senhores, vassalos e suseranos, laicos e clrigos. Esta dependncia caracteriza tanto as relaes de produo quanto todas as

outras esferas da vida social, s quais serve de fundamento (apud. Poulantzas, 1988).

A relao de produo capitalista expressa o fundamento da sociedade capitalista. O capital no s os meios de produo mas , fundamentalmente, uma relao social, uma relao de produo.

As relaes de produo capitalistas se baseiam na extrao de mais-trabalho sob a forma de mais-valor (ou, segundo linguagem corrente, mais-valia). O

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proprietrio dos meios de produo, o capitalista, compra a fora de trabalho do produtor e paga por ela o valor necessrio para sua reproduo enquanto fora de trabalho. A fora de trabalho, porm, produz mais do que o necessrio para sua reproduo e este valor a mais, acrescentado mercadoria e apropriado pelo capitalista o que se chama mais-valor. No processo de produo do mais-valor h um duplo carter: de um lado, um processo de trabalho caracterizado pela explorao e alienao do trabalhador; de outro, um processo de valorizao dos meios de produo. S a fora de trabalho acrescenta valor s mercadorias, pois os meios de produo apenas transmitem seu valor ao produto-mercadoria fabricado.

A evoluo do modo de produo capitalista transforma esta relao. Com o desenvolvimento e acumulao dos meios de produo h a desvalorizao da fora de trabalho e a valorizao dos meios de produo. Os meios de produo foram valorizados pela fora de trabalho e por isso se tornam, com o desenvolvimento do capitalismo, um dispndio cada vez maior para o capitalista.

Com isso o capitalista investe cada vez mais nos meios de produo e cada vez menos na fora de trabalho. Assim, como s a fora de trabalho produz maisvalor, surge a tendncia para haver a queda da taxa de lucro mdio. O aumento de produtividade busca evitar esta queda, j que aumenta a extrao de mais-valor relativo. Entretanto, isto cria uma nova tendncia baixa da taxa de lucro mdio, pois o aumento do mais-valor relativo significa que a fora de trabalho acrescentou mais valor ainda mercadoria e isto torna mais dispendioso os meios de produo.

Esta a tendncia declinante da taxa mdia de lucro. O capitalismo, atravs de seus agentes, cria tambm contratendncias e busca fazer isto de vrias formas, tal como atravs do aumento da interferncia do estado no processo de produo e distribuio ou da expanso do consumo, entre outras.

O modo de produo capitalista, como vimos, se caracteriza pelo domnio do trabalho morto sobre o trabalho vivo. Esta relao de dominao do trabalho morto sobre o trabalho vivo atravs da produo de mais-valor a determinao fundamental do capitalismo (Bernardo, 1975). Torna-se necessrio, ento,

descobrir qual a determinao fundamental do modo de produo comunista.

A determinao fundamental do modo de produo comunista s pode ser a autogesto. Isto significa, entre outras coisas, que a autogesto no apenas a

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forma poltica (democracia direta) do comunismo e nem mero mtodo de gesto das empresas. A autogesto uma relao de produo que se generaliza e se expande para todas as outras esferas da vida social. A autogesto inverte a relao entre trabalho morto e trabalho vivo instaurada pelo capitalismo e, assim, instaura o domnio do trabalho vivo sobre o trabalho morto. A autogesto significa que os prprios produtores associados dirigem sua atividade e o produto dela derivado. Abole-se, assim, o estado, a democracia representativa, as classes sociais, o mercado, etc., j que com a autogesto abole-se a diviso social do trabalho. Conseqentemente, abole-se a diviso entre economia, poltica, etc.

Aqui devemos abrir um parentesis para relacionar esta posio com as teses de Marx, pois segundo a interpretao dominante do pensamento deste autor, ele seria mais um defensor de um Estado socialista que seria a base da transicao entre capitalismo e o comunismo (compreendido aqui como sociedade autogerida) e no um defensor da abolio imediata do Estado, que seria tese anarquista. Para Marx, haveria um perodo de transio entre capitalismo e comunismo chamado socialismo. Neste perodo, o estado dirige a economia atravs de um plano e se mantm o dinheiro, o trabalho assalariado e at mesmo a lei do valor.

No entanto, Marx jamais afirmou isto e compreender a concepo de autogesto acima colocada pressupe entender isto, j que Marx foi um dos primeiros a teorizar a sociedade autogerida. As colocaes de Marx sobre a passagem do capitalismo ao comunismo que so utilizadas pelos que defendem tal tese so fundamentalmente duas: a) a permanncia do trabalho assalariado; b) a existncia de um estado de transio no socialismo. Mas, antes de tudo,

devemos dizer que Marx no utilizava as noes de perodo de transio e de socialismo. Essas noes foram criadas pela tradio bolchevique e similares e foram erigidas ao nvel de verdadeiros conceitos, que foram reificados e passaram a ser, na ideologia da burocracia, uma etapa necessria na histria. O que Marx colocou que a sociedade comunista, tal como surge do capitalismo, atravessa duas fases, o que significa que so duas fases do comunismo e no que uma delas seja de passagem para ele. As colocaes de Marx sobre a permanncia do trabalho assalariado e a existncia de um estado de transio se referem a esta primeira fase do comunismo.

Entretanto, necessrio colocar que Marx reformulou as suas teses sobre a primeira fase do comunismo. Marx havia colocado que nesta primeira fase deveria

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haver a estatizao dos meios de produo, e a que se pode falar em estado de transio. Acontece que, aps a experincia da Comuna de Paris, ele reformulou esta tese, tal como demonstra o seu artigo sobre a comuna (Marx, 1986) e os posfcios ao Manifesto Comunista (Marx e Engels, 1988). Para Marx, a classe operria no pode se apossar do estado, pois deve destru-lo e em seu lugar implantar o autogoverno dos produtores, ou seja, a autogesto. Tal como fizeram os proletrios durante a Comuna, deve-se abolir o exrcito permanente e a burocracia do estado.

Outra colocao que Marx reformulou a de que na primeira fase da sociedade comunista todos deveriam receber salrios equivalentes ao dos operrios, o que pressupe a permanncia do trabalho assalariado, s que funcionando sob outra forma. Posteriormente, ele afirmou que os trabalhadores receberiam bnus comprovando o trabalho executado:

"Do que se trata aqui no de uma sociedade comunista que se desenvolveu sobre sua prpria base, mas de uma que acaba de sair precisamente da sociedade capitalista e que, portanto, apresenta ainda em todos os seus aspectos, no econmico, no moral e no intelectual, o selo da velha sociedade cujas entranhas procede. Congruentemente com isto, nela o produtor individual obtm da sociedade depois de feitas as devidas dedues precisamente aquilo que deu. O que o produtor deu sociedade constitui sua cota individual de trabalho. Assim, por exemplo, a jornada social de trabalho compe-se da soma das horas de trabalho individual; o tempo individual de trabalho de cada produtor em separado a parte da jornada social do trabalho com que ele contribui, sua participao nela. A sociedade entrega-lhe um bnus consignando que prestou tal ou qual quantidade de trabalho (depois de descontar o que trabalhou para o fundo comum), e com este bnus ele retira dos depsitos sociais de meios de consumo e parte equivalente quantidade de trabalho que deu sociedade sob uma forma, recebe-a desta sob uma outra forma diferente (Marx, 1978, p. 213).

Entretanto, o sistema de bnus no a mesma coisa que o salariato. O salrio pago em papel-moeda (dinheiro), que um meio de troca universal e pode ser, por isso, acumulado e utilizado para comprar meios de consumo e produo e/ou fora de trabalho. O bnus proposto por Marx era trocvel apenas

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por meios de consumo e por isso no tem nada a ver com o dinheiro, o trabalho assalariado e a lei do valor. Por conseguinte, a primeira fase do comunismo j seria marcada pela abolio do estado, do trabalho assalariado, do dinheiro, etc., e pela instaurao da autogesto social ou, segundo a linguagem de Marx, da livre associao dos produtores.

Marx colocou que o trabalho se generalizaria durante a primeira fase do comunismo, mas sem ligao com o salariato e sim com o sistema de bnus. Nesta fase predomina o princpio de cada um segundo sua capacidade cada um segundo seu trabalho. Na segunda fase predomina o principio de cada um segundo sua capacidade cada um segundo suas necessidades. Assim, os escritos de Marx apontam para uma concepo autogestionria e no para uma concepo burocrtica-partidria, tal como foi desenvolvido posteriormente por Lnin e por outros pretensos marxistas.

A democracia representativa uma forma sob a qual o Estado capitalista se relaciona com as classes sociais e est envolvida no conjunto de relaes sociais desta sociedade (Estado, diviso social do trabalho, mercado, classes sociais, capital, etc.) e no pode ser intelectualmente transposta para outra sociedade, pois no teria nem sequer sentido prtico em outras sociedades (qual sentido, base e utilidade teria a democracia representativa numa sociedade feudal ou comunista?). A democracia representativa fora do capitalismo um anacronismo.

Assim, necessrio reconhecer a historicidade das sociedades e dos conceitos que so sua expresso, bem como a radicalidade da transformao conceitual quando se passa de uma forma de sociedade para outra. A compreenso da sociedade feudal requer conceitos especficos que retratam relaes sociais especficas, o que no impede a utilizao de conceitos mais amplos para expressar relaes sociais que mantm o seu contedo embora mude de forma. Assim, os conceitos de feudo, servido, servo, senhor feudal, entre inmeros outros, s existem e possuem sentido na sociedade feudal, assim como trabalho, cultura, sociedade, entre inmeros outros, so expresses de semelhanas entre esta sociedade e as demais, pois se trata de conceitos universais. No entanto, a democracia moderna, representativa, burguesa, ou qualquer nome que se lhe d, um conceito especfico e prprio da sociedade moderna.

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J o conceito de autogesto no expressa nenhuma realidade j existente. Obviamente que se pode utilizar a palavra em outros sentidos, tal como se definir autogesto enquanto cooperativa, como alguns fazem. Mas pensar autogesto no sentido anteriormente delimitado, enquanto relao de produo que se generaliza para todas as relaes sociais, ento um conceito antecipador, que expressa uma realidade ainda-no-existente. A autogesto seria o conceito fundamental de uma sociedade futura e, portanto, incompatvel com relaes sociais, e, por conseguinte, conceitos, de nossa sociedade. Enfim, por tal motivo autogesto social distinta e incompatvel com democracia representativa.

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RESUMO: Os termos democracia e autogesto so considerados, para alguns, como opostos e, para outros, como complementares. A forma de relacionar democracia e autogesto depende da definio e significado atribudos a estes termos. Aps expormos as teses da complementaridade e do antagonismo entre autogesto e democracia, apresentamos uma discusso conceitual e nossa prpria definio destes termos, apresentando a partir disto a tese de sua incompatibilidade entre ambos derivada de sua historicidade.

Palavras-Chave:

democracia

representativa,

autogesto

social,

relaes

de

produo, conceitos, historicidade,

Abstract: The expressions democracy and self-government are seen, a lot of times, in the history of the political thought, as being opposite, and, other times, as being complemental. The form of relating democracy and self-government depends on the definition and meaning of the terms democracy and self-government. After terms exposed the theses of the complementarity and of the incompatibility between self-government and democracy, we presented a conceptual discussion and our self-government definition and democracy, presenting starting from this the thesis of your derived incompatibility of your historical character. Word-key: representative democracy, social self-government, production

relationships, concepts, historical character.

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Democracia e auto-gesto Nildo Viana

* Professor da Universidade Estadual de Gois e Doutor em Sociologia/UnB. Email: [email protected]

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