DEZEM, Rogério - Matizes Do Amarelo

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Matizes do Amarelo: Elementos formadores do imaginrio sobre

o japons no Brasil

Rogrio Dezem1

Abstract: Based on the analysis of texts and illustrations published in the maganizes O
Malho and Revista da Semana between 1903 and 1908, this article aims to present how
the

discussions

related

to

the

oriental

immigrants

in

Brazil

were

constructed/deconstructed. We intend to focus on the plurality of these discourses,


comparing them, besides identifying the stereotypes linked to the objective of stigmatizing,
first, the Chinese (chim), and then the Japanese people.
Palavras-chave: Imprensa no Brasil, Imigrao Japonesa, Perigo Amarelo.

For Old Japan was like an oyster:- to open it


was to kill it (sir Basil Hall Chamberlain)
Introduo
Este artigo tem como objetivo demonstrar que alm dos discursos sobre o
imigrante de origem asitica no Brasil, produzidos nos gabinetes e tribunas desde meados
do sculo XIX, existe um outro campo discursivo a ser explorado: os discursos
1

Professor, Mestre em Histria Social pela FFLCH/USP (2003) e pesquisador do PROIN (Projeto Integrado
Arquivo do Estado de So Paulo/Universidade de So Paulo desde 1997). Autor de ShindRenmei:terrorismo e represso. Inventrio Deops. So Paulo: AESP/ Imprensa Oficial, 2000 e Matizes do
amarelo: a gnese dos discursos sobre os orientais no Brasil. Srie Histrias da Intolerncia. So Paulo:
Humanitas, 2005.

formalizados e divulgados a partir da nascente imprensa ilustrada, principalmente, da


cidade do Rio de Janeiro, autntica capital cultural da Belle poque tupiniquim.
Nos ltimos anos do sculo XIX, o mundo passava por rpidas transformaes e,
neste contexto o pequeno arquiplago japons deveria se adaptar a essa nova realidade.
Ser japons aos olhos do Ocidente naquele momento era representar uma nao
militarista em ascenso, cujos elementos exticos, como gueixas e samurais ainda
alimentavam o curioso pensamento ocidental. No entanto, a imagem dos imigrantes
japoneses era constituda no s de elementos positivos, mas tambm negativos.
Enigmticos, da a expresso sorriso amarelo, fisicamente inferiores e de cor mbar,
traioeiros, enfim podemos notar que haviam esteretipos relacionados a este imigrante
que desde 1868 se aventuravam alm-mar, inicialmente para lavoura de cana-de-acar
no Hava. Eram os primeiros dekasseguis2 em terras americanas.
Naquele momento o governo do Japo estava estruturando sua poltica
emigratria, a partir de Companhias de Emigrao com seus (depois) famosos marus3.
Contingncia histrica, o fato foi que esta poltica deveria ser a soluo para os problemas
demogrficos que aumentavam cada vez mais desde a dcada de 1870 no pas do SolNascente. Neste universo de transformaes, a situao brasileira era diametralmente
oposta japonesa. O fim do trfico de escravos (1850), associado posteriormente ao
movimento abolicionista e imigrantista e ao boom da cafeicultura no estado de So Paulo,
deram origem a debates em assemblias, congressos e at no Senado sobre quem
deveria substituir a quase finada escravido negra. A partir de argumentos histricos,
preconceituosos e racistas as oligarquias agrrias do Imprio optaram por descartar a
mo-de-obra negra (sinnimo de atraso) e o trabalhador nacional (sinnimo de preguia),
resolvendo-se por trazer, como elemento transitrio (Dezem, 2005, pp. 61-73), o imigrante
chins ou simplesmente chim, considerado pelos fazendeiros um elemento mais barato e
dcil, se comparado ao imigrante europeu.

Segundo a sociloga Elisa Sasaki, a palavra de origem japonesa dekassegui significa trabalhar fora de
casa. No Japo do final do sculo XIX, o termo referia-se aos trabalhadores que saam temporariamente de
suas regies de origem e iam em direo a outras mais desenvolvidas, sobretudo aqueles provenientes do
norte e nordeste do Japo, durante o rigoroso inverno que interrompia suas produes agrcolas no campo.
3
Maru um sufixo de nomes masculinos que tambm pode significar crculo, redondo. Denominao
que recebiam os navios de emigrantes japoneses como por exemplo: Kasato Maru, Brasil Maru,
Argentina Maru entre outros. Entre 1908 e 1940 aportaram no Brasil 309 marus.

Imagem 1. O chim como transio entre o negro e o europeu (branco), cartun de ngelo
Agostini. (Revista Illustrada 1878)
Era a Questo Chinesa (1879) que passava a ser debatida entre as elites agrrias
e representantes do governo. Entre os defensores da vinda destes imigrantes se
encontrava Moreira de Barros, Ministro dos Negcios Estrangeiros que afirmou: Pode-se
chamar os chins de raa inferior, mas onde eles se estabelecerem ho de multiplicar-se,
crescer, espalhar-se por toda parte, e ainda que a raa superior os domine, os escravize,
os governe, qualquer que seja o futuro da raa branca no mundo, onde eles obtiverem
uma ptria, ho de fatalmente ocupar o pas. Para isso basta-lhes viver, o que eles
conseguem nas piores condies (Idem, p. 97).
A lavoura de caf se expandia rapidamente pelo antigo Oeste Paulista (Jundia,
Campinas, Ribeiro Preto entre outras cidades da regio), a necessidade de mo-de-obra
se tornou o principal tema de debates entre os cafeicultores nas dcadas de 1870 e 1880.
O imigrante branco, europeu e catlico era o mais desejado, pois deveria vir trabalhar e
colonizar, alm disso, ele deveria contribuir para branquear a populao mestia
brasileira. Inicialmente, existiam dificuldades em conseguir trazer este imigrante ideal,
pois havia o desejo de italianos, espanhis, suos, alemes em emigrar para os Estados
Unidos e a Argentina.
A existncia da escravido no Brasil dificultava ainda mais a atrao de imigrantes
europeus. Pensou-se ento, em trazer mo-de-obra em carter de urgncia ou
transio, at que o pas estivesse preparado para receber os superiores europeus.
Tentou-se a imigrao chinesa, que na realidade estava associada a uma rede de trfico
amarelo (Ibidem, p. 163), na qual boa parte dos trabalhadores, conhecidos como coolies,
era aliciada de forma violenta nos portos de Hong Kong, Amoy, Canto e Macau. Nestes
locais grupos de chineses eram amontoados em barraces, semins, com uma placa
pendurada ao pescoo na qual estava pintada a letra do ponto a que se destinavam:
poderia ser C (Califrnia), P (Peru), H (Havana) ou S (Ilhas Sandwich). Eram recrutados

individualmente e sua procedncia, na maioria dos casos, consistia em condenados,


prisioneiros de guerra vendidos, jogadores endividados, aldees e pescadores tomados
fora. Este novo modelo de trfico teve como primeiro grande destino a colnia espanhola
de Cuba na dcada de 1840. O governo chins proibia e tentava (ineficazmente) fiscalizar
este tipo de trfico humano, condenado tambm pela Inglaterra. Imigrao defendida e
combatida por muitos, a tentativa de se inserir chins para trabalhar na lavoura do caf
acabou por no vingar. O estigma chins de pas derrotado e conquistado pelas potncias
europias, alm de o chim ser visto como indolente, fraco, sujo, racialmente inferior,
fizeram com que este projeto fracassasse. Pouco mais de 3.000 chineses aportaram no
Brasil ao longo do sculo XIX.
Por outro lado, enquanto a China vivia uma das maiores crises de sua histria o
seu vizinho, Japo rumava para uma posio de destaque na sia. Para tal, baseou-se
em uma poltica de carter militarista-expansionista (Doutrina Okuma), em ideais
nacionalistas4, associados a modelos ocidentais de legislao (influncia francesa),
organizao militar (influncias alem, francesa e inglesa), educao (influncia norteamericana), culminando com o culto ao Imperador. Como uma balana que representasse
o jogo de poderes no Extremo-Oriente, um gigante descia, a China, enquanto que uma
diminuta nao ascendia, o Japo.
Reflexo destas mudanas pode ser notado em vrias obras publicadas no perodo,
entre elas, citamos uma observao feita na crnica Chineses e Japoneses, do escritor
portugus Ea de Queirs, publicada em 1894. Nela o autor demonstra admirao pelo
pequeno arquiplago do sol-nascente que deixava de ser o Japo pitoresco para se
transformar rapidamente no Japo formidvel (Queirs, 1997, p. 12).
O ponto de partida deste rpido processo foi a Restaurao Meiji (1867-68),
importante momento da histria nipnica para que se possa compreender o nascimento
do Japo moderno. Modernizar-se sem perder a essncia era o desafio japons, aps o
trmino de mais de duzentos anos de isolacionismo que marcaram a Era Tokugawa.

As bases do nacionalismo japons se aliceravam a partir da associao de elementos culturais, como o


Bushido, literalmente caminho do guerreiro; histricos, como o Kojiki e o Nihongi, obras sobre a histria
de carter mitolgico do Japo antigo; poltico-filosficos associados ao neoconfucionismo e religiosos, como
o xintosmo, elevado a religio estatal a partir da Restaurao Meiji (1868).

Um dos maiores temores do governo japons era sucumbir ao poderio ocidental


como havia ocorrido com a China. No entanto, os deuses estavam ao lado dos nipnicos,
como podemos notar nas palavras do socilogo e historiador japons N. Kitaro: Os cus
preconizavam (...) uma moralidade bem distinta dos tempos Tokugawa; j no bastava o
Japo se confinar a seu isolamento geogrfico, caberia a ele a misso de edificar uma
sia Oriental...(Ortiz, 2000, p.28).
Misso que associada a uma mistura de admirao e temor frente ao Ocidente
(Estados Unidos, Inglaterra, Frana e Alemanha), mas de extrema confiana nos deuses
e no Imperador, se transformou no motor das diretrizes tomadas pelo novo governo
japons. Vrias dificuldades foram enfrentadas: revoltas de ex-samurais e da populao,
conspiraes nacionalistas, crises agrrias, exploso da taxa de natalidade, mas em um
curto espao de tempo o pas conseguiu solucionar ou contornar seus principais
problemas. A soluo encontrada foi o desenvolvimento de uma eficiente poltica
educacional, baseada no edito Imperial Educacional (1890) e na criao de escolas,
universidades e tambm no fortalecimento da crena no Esprito de Imbatividade (Yamato
Damashii) e no Niponismo (Nihon Shugi) como elementos de coeso nacional. A crena
exacerbada neste princpios, foram em grande parte, responsveis por um projeto de
expanso militar que levou ao desastre japons na Segunda Guerra Mundial.
No quadro internacional os reflexos da ascenso nipnica podiam ser sentidos
mundialmente. A anexao do arquiplago de Okinawa (1872), a vitria sobre a China
(1895), e o triunfo sobre o Gigante Russo (1905) deram ao Japo status de potncia junto
ao Ocidente, que surpreso com a fora do pequeno pas, tambm comeou a ficar
apreensivo. Em 1881 o peridico Japan Herald publicava em suas pginas que os
japoneses so uma raa alegre e, contentando-se com pouco, no parece que
conseguiro muito (Dezem, 2005, p. 141).
Grande engano, pois em pouco mais de uma dcada os japoneses eram vistos
sob o prisma de Perigo Amarelo (gelb Gefahr), denominao usada pela primeira vez na
Europa pelo Kaiser Guilherme II da Alemanha ao advertir os russos sobre a expanso
nipnica pela sia.
O fim da escravido (maio de 1888) e a queda da Monarquia brasileira dando
lugar Repblica (novembro de 1889), passaram a dar um tom mais eficiente poltica

imigratria brasileira voltada ao amarelo. Desse modo, com os projetos de imigrao


chinesa descartada, comeou-se a se pensar, no incio da dcada de 1890, na vinda de
imigrantes japoneses.
1. Variaes sobre o mesmo tema: o imigrante japons
Aos olhos de boa parte da diminuta elite ilustrada nacional, pretendia-se inaugurar no
Brasil uma nova fase poltica fundada nos ideais positivistas de ordem e progresso
social. Dentre os fundamentos promotores da modernidade estava a vinda de um nmero
maior de imigrantes europeus para o pas. Antes mesmo de ser aprovada a Constituio
republicana, o governo provisrio promulgava um decreto-lei que revelava o ideal de
branqueamento em ao na busca de imigrantes (Skidmore, 1976, p. 155). Assim, ainda
no governo provisrio, o presidente Marechal Deodoro da Fonseca promulgou o Decreto
n. 528, de 28 de junho de 1890, que regulamentava o servio de introduo e localizao
de imigrantes no Brasil. O artigo primeiro deste decreto estipulava que era:
(...) inteiramente livre a entrada, nos portos da Repblica, dos indivduos vlidos e aptos
para o trabalho, que no se acharem sujeitos ao criminal do seu pas, excetuados os
indgenas da sia, ou da frica que smente mediante a autorizao do Congresso
Nacional podero ser admitidos de acrdo com as condies que forem estipuladas
(Demoro, 1960, p. 91)
A partir desse momento, seja, da proclamao da Repblica brasileira, iniciou-se a
entrada macia de imigrantes europeus, principalmente para o estado de So Paulo. A
maioria desses imigrantes vinha como colonos para trabalhar nas fazendas de caf na
regio do Vale o Paraba e na regio do antigo oeste paulista pontilhado por importantes
ncleos urbanos como Limeira, Campinas e Ribeiro Preto. No entanto, em 5 de outubro
de 1892 foi promulgada a Lei n. 97, que em seu artigo 1 versava:
permitida a livre entrada, no territrio da Repblica, a imigrantes de nacionalidade
chinesa e japonsa, contanto que, no sendo indigentes, mendigos, piratas, nem

sujeitos ao criminal em seus pases, sejam vlidos e aptos para trabalhos de qualquer
indstria (Idem. p. 97)
A inteno era de promover a execuo do Tratado de 5 de novembro de 1890
com a China e celebrar um Tratado de Comrcio, Paz e Amizade com o Japo.
Concomitantemente, pretendia-se criar legaes e consulados para a manuteno e a
consolidao de uma possvel imigrao, inteno reafirmada pela tentativa de trazer,
novamente, trabalhadores chineses para a lavoura de caf. Os debates continuavam
acirrados. No entanto, o chins j tinha o seu veredicto confirmado, conforme as palavras
do Senador Ubaldino Amaral em 1892: A raa chinesa invasora (...) o que certo
que, uma vez aberto o caminho e iniciada a torrente, no h mais quem possa cont-la.5
Considerando-se a dinmica dos mitos, podemos afirmar que ocorreu uma
metamorfose: o japons tornou-se o elemento novo na equao imigratria. Seria ele
uma segunda opo? Na realidade, o japons emergia ao olhar dos imigrantistas - e
graas a fatores externos, como a ascenso na sia e o descrdito com relao ao chins
como o principal denominador dessa equao amarela de onde o chins foi subtrado
para dar lugar a opo japonesa: trabalhador bom, barato e dcil.
Para garantir a viabilidade desse projeto, Jos da Costa Azevedo, Baro de
Ladrio, foi enviado em 1893 para uma misso especial ao Extremo Oriente (China e
Japo), com o objetivo de consolidar as relaes diplomticas e de contatar cidados
interessados em imigrar para o Brasil. Apesar do malogro da misso, que no chegou ao
seu final. Ladrio escreveu ao presidente Floriano Peixoto, manifestando-se contrrio
imigrao chinesa, segundo ele um mal moral para o Brasil, no entanto, colocava-se
como favorvel imigrao japonesa, pois no Japo havia melhores e mais econmicos
trabalhadores (Abranches, 1918 vol. 1, p. 484).
Influenciado ou no por esse parecer to enftico, o governo brasileiro
interrompeu as tentativas de aproximao com o governo chins. No incio do ano de
1895, os esforos voltaram-se para o estabelecimento de relaes diplomticas com o
Japo. O assunto imigrao asitica tornou-se novamente tema de pauta no Senado e
Cmara dos Deputados, onde muitos lamentavam o insucesso da misso no Extremo
5

Anais do Senado, sesses de 6/1892, p. 161-5.

Oriente. Nesse momento Carlos de Carvalho, Ministro de Relaes Exteriores, procurava


firmar com o Japo um tratado de comrcio. Segundo o ministro brasileiro, os japoneses
iriam aviventar as foras agrcolas e industriais do nosso pas6
Tais esforos culminaram com o Tratado de Amizade, Comrcio e Navegao,
assinado em Paris por ambos os pases no dia 5 de novembro de 1895.
Na realidade, o japons ganhou espao nos debates, apresentando-se como uma
possvel corrente imigrantista. A ordem poltica comeava a mudar tanto no Brasil como
no Japo. As relaes diplomticas, e at mesmo comerciais, entre os dois pases ainda
se encontravam na mesma situao desde a (re)abertura do Japo para o Ocidente em
1854,ou seja, eram praticamente nulas. Conhecia-se muito pouco sobre o Japo e o seu
povo e, praticamente, no se tinha nenhuma informao mais slida sobre o perfil
daquele que seria candidato imigrao.
Aps calorosos debates na Cmara dos Deputados, no qual a imigrao japonesa
passou a ser avaliada de maneira mais crtica e menos apaixonada foi aprovado o
projeto relativo ao Tratado de Amizade em 1896. No Senado, Quintino Bocaiva, senador
fluminense e que anos antes discursava em prol da imigrao chinesa para o Brasil,
defendeu o tratado por entender que a corrente imigratria acompanharia o
desenvolvimento das relaes comerciais. A seu ver, uma vez estabelecidos ncleos de
imigrao, o Brasil lucraria, pois haveria desenvolvimento da sua marinha mercante, que
faria presena em regies onde seu pavilho era quase desconhecido.7 interessante
notar que argumentos como este no se manifestaram de forma to clara durante os
debates anteriores relativos aos chineses. A proposta de se criar laos comerciais
atrelados a uma poltica imigratria a ser colocada em prtica pelo governo brasileiro
evidencia uma diferena substancial no modo de ver e de considerar as relaes com o
pas do sol nascente.
Concluda a redao final, o projeto que aprovava o Tratado Brasil-Japo, firmado
em Paris no ano anterior, foi encaminhado sano presidencial em 27 de novembro de
1896 (Bueno, 1995, p. 320).
Importante ressaltar que no Brasil no foi apenas o governo federal que colocou
obstculos legislativos introduo de asiticos. No ano de 1895, o governo do estado de
6
7

Anais do Senado Federal, sesso de 28 de outubro de 1895.


Anais do Senado Federal, sesso de 21 de setembro de 1896.

So Paulo promulgou a Lei Estadual n. 356, permitindo somente a entrada de imigrantes


procedentes dos continentes europeu, americano e africano (canarinos), todos de raa
branca.8 O estado de Minas Gerais, pelo contrrio a partir do Decreto Estadual n. 612 de
1893, desenvolveu uma infra-estrutura necessria implementao do movimento
imigratrio para seu estado, admitindo a entrada de asiticos. Naquele mesmo ano, o
estado do Rio de Janeiro estudava a possibilidade de introduo de quinhentos asiticos.
Com base nos fatos e pressupostos at aqui apresentados, pode-se afirmar que
os poucos trabalhadores chineses (chins) que aportaram no Brasil no sculo XIX
transformaram-se em referenciais nos discursos relativos a imigrao amarela, at a
dcada de 1890. Referencial esse, de carter negativo, pois quase sempre ocorreram
debates e crticas desfavorveis ao chim. Alm do chins ser avaliado como
representante de uma raa inferior, a China era considerada pelas potncias europias,
e tambm por boa parte da intelligentsia brasileira da poca, como um Imprio decadente.
Cogitou-se transpor o modelo de raa inferior/nao inferior ao imigrante
japons, estigmatizado inicialmente como representante da raa amarela. Quase de
imediato essa marca comeou a ser questionada e a se modificar com a vitria japonesa
sobre a China em 1895. Alterou-se quase que radicalmente com a consolidao do Japo
como principal potncia asitica, aps sua vitria inconteste sobre os russos em 1905.
Esse fato interferiu no contedo dos discursos relativos ao japons, tanto naqueles de
teor filonipnico como antinipnico no Brasil e no exterior. A partir do incio do sculo XX,
tornou-se evidente a diferena entre os amarelos: ao chins, atribua-se o papel de
servir ao homem branco e, tambm, aos que se autodenominavam os brancos da sia,
os japoneses (Dezem, 2005, p. 119).
2. Imagens e discursos: matizes do amarelo
Instigado pelos debates sobre a Questo Chinesa (1879), procuro neste captulo
apresentar, ab initio, como o principal semanrio ilustrado entre as dcadas de 1870 e
1880, a Revista Illustrada representava os trabalhadores chineses ou chins, primeiros
imigrantes amarelos trazidos para o Brasil (em reduzido nmero) no incio do sculo XIX
8

Colleco de Leis e Decretos do Estado de So Paulo de 1895-1896.

10

(Dezem, 2005). O vis irnico dos cartuns do jornalista ngelo Agostini (1843-1910)
contribuu para consolidar esteretipos relativos a esse elemento, constatao que
denomino equao amarela, na qual o outro denominador seria o japons.
Os esteretipos veiculados com relao ao chim materializaram uma imagem
negativa desse elemento, que alm de ter sua figura associada s suas tranas, foi
sempre lembrado como preguioso, viciado em pio, ladro de galinhas, pouco
higinico, civilizadamente atrasado, supersticioso, racialmente inferior etc. Em um
primeiro momento a perpetuao desses estigmas no imaginrio coletivo deve-se ao fato
de que, segundo o historiador da arte, E. Gombrich, todos ns temos a faculdade de
fabricar mitos, e inserido nesse universo de mitologizao do mundo que o
cartunista/chargista assume um importante e, talvez, nico papel ao encaixar toda uma
cadeia de idias ou uma idia mais complexa dentro de uma imagem inventiva
(Gombrich, 1999, pp. 130-139) de modo que o leitor possa captar tudo num simples olhar.
No caso do chim, sua imagem tambm permaneceu associada de um elemento
transitrio. O fato de no ter se efetivado a imigrao de trabalhadores chineses em
nmero significativo para o Brasil, deu ensejo para que, a partir de meados da dcada de
1890, a palavra chim praticamente desaparecesse dos discursos imigratrios, sendo
substituda pela palavra japons. No entanto, veremos que, assim mesmo, elementos
pertencentes ao imaginrio relacionado ao trabalhador chins ainda permaneceram.
Associado ou fazendo contraponto ao outro elemento amarelo (japons), o fato foi que
os cartunistas que retrataram o chim como ngelo Agostini - ao se utilizar de maneira
to perfeita daquilo que E. Gombrich chama de recursos do arsenal do cartunista, ou
seja, a capacidade/necessidade de condensar em um cartum o tpico e o permanente, a
aluso de passagem e a caracterizao duradoura (Idem. p. 137), acabaram dando
sobrevida imagem desse elemento ainda nos primrdios do sculo XX.
As imagens, em nosso caso os cartuns e as charges, so de extrema importncia,
pois elas nos permitem no somente estudar o uso de smbolos num contexto
circunscrito, como tambm descobrir que papel podem representar nos escaninhos de
nossa mente (Ibidem, p. 127). a partir dessa proposio que coloco lado a lado palavra
e imagem, fato que pode ser constatado no discurso escrito relativo ao japons e que se
mostrou, desde o final da dcada de 1890, dissociado da figura do chim. Por outro lado,

11

em alguns momentos a imagem do chim vinha associada figura do japons. Para


melhor compreenso de que modo comeava a se mitologizar a imagem do japons,
utilizo neste artigo de um pequeno conjunto de imagens, artigos e at uma pesquisa de
opinio, produzidas pelas revistas ilustradas O Malho e Revista da Semana, peridicos
em circulao a partir de 1902.
Ao pesquisar as primeiras edies dos peridicos encontrei na edio de maro de
1903, a representao de uma gueixa, primeira imagem publicada sobre o Japo na
revista O Malho.9 Qual o efeito dessas charges no imaginrio coletivo nacional? Podemos
afirmar que a chegada dos japoneses no Brasil se deu por meio destas publicaes?
Com base nesses questionamentos gostaria de relacionar o discurso oral e escrito
imagem, enfocando a figura do Japo e dos japoneses aos olhos da pulverizada opinio
pblica nacional (Saliba, 2002, p. 80), portadora de uma imagem estereotipada do chins,
uma das matizes do amarelo. Para responder, em parte, e essas instigantes questes,
fao uso de uma curiosa pesquisa de opinio realizada pela revista O Malho, junto aos
seus leitores entre os meses de maro e abril de 1904, logo aps o incio da Guerra
Russo-Japonesa (1904-1905).
Percebe-se, ento, que entre 1903 e 1908 ocorreu a desconstruo/construo da
imagem associada ao Japo e aos japoneses. O principal responsvel por isso foi, no
apenas no Brasil, o conflito russo-japons, interpretado aqui como um elemento de ajuste
nos discursos relacionados idia de perigo amarelo. Com a vitria japonesa, as
dvidas que pairavam sobre o real potencial do Japo confirmaram-se e o que para
alguns era extico, tornou-se perigoso. A nascente repblica brasileira insere-se entre os
pases que vivenciaram esta mudana conceitual. O imaginrio nacional relacionado ao
japons, ainda na transio do sculo XIX para o XX, respirava os ares do japonismo,
enquanto pases como o Peru e, principalmente, os Estados Unidos viviam um momento
de redefinio dos discursos relativos ao imigrante japons que ali se radicava. Esse fato
de suma importncia para compreendermos a diferena de sintonia entre o Brasil e os
outros dois pases imigrantistas. A operao de desconstruo do mito de pas das
gueixas e da esttica naif associada ao japonismo comeou a entrar em evidncia a
partir da publicao da obra No Japo, do diplomata Oliveira Lima (1903). Ao mesmo
9

O Malho, Rio de Janeiro, n. 26, ano II, 14 de maro de 1903.

12

tempo, comeava-se a construir o mito do pas dos samurais ou de um Japo imbatvel,


de um povo bravo e herico. Baseadas em metforas ocidentais, nenhuma dessas
imagens ir se diluir totalmente: a da gueixa, associada ao extico e frgil, personificando
os mistrios da mulher japonesa, a do samurai, associada ao guerreiro e ao militar,
modelo de fora e disciplina. Esse processo de transformao das formas de representar
o japons no imaginrio nacional pode ser constatado nos discursos veiculados
posteriormente, a partir da chegada dos imigrantes japoneses ao Brasil (1908).

3. O Escrutnio Russo-Japonez: o simphatico nippo e o colosso russo.


No incio do ms de maro de 1904, logo aps o comeo das hostilidades entre a
Rssia e o Japo no Extremo Oriente, a revista ilustrada O Malho convidou seus leitores a
participar de uma votao livre sobre quem venceria a guerra entre russos e japoneses. O
chamado Escrutnio Russo-Japonez teve espao em seis edies da revista,10 iniciou-se
na primeira semana de maro de 1904 e terminou com a publicao do resultado final da
votao na primeira semana de abril. O escrutnio baseava-se em questionrio simples
composto de trs perguntas:
1) Interessa-se pelo conflito Russo-Japonez?
2) Por qual dos dous pazes manifesta os seus votos?
3) Por que?
Esta interessante iniciativa surpreendeu at mesmo aos mentores da pesquisa. Na
primeira semana o volume de cartas foi to grande que, mal poderamos suppor que a
nossa idia tivesse o alcance que teve, e que milhares de respostas nos vissem s
mos.11 Notamos pela surpresa dos redatores que havia um certo ar despretensioso na
iniciativa, pois o que poderia ser apenas mais um entretenimento da revista acabou se
tornando um espelho da mentalidade de boa parte dos leitores da regio Sudeste e
Nordeste do pas, e at mesmo de alguns estrangeiros aqui radicados. Ao final do
10
11

O Malho, Rio de Janeiro, ns 77,78,79,80,81 e 82, ano III. 5 de maro a 9 de abril de 1904.
O Malho, Rio de Janeiro, n. 78, ano III. 12 de maro de 1904. p. 17.

13

escrutnio, a revista havia recebido um total de quase seis mil cartas, sendo que apenas
uma pequena parcela do total enviado redao do O Malho foram publicadas. A maioria
das cartas vinha assinada por pseudnimos.
No dia 10 de maro, aps a primeira apurao de votos, o resultado parcial foi o
seguinte:
Pelo Japo ............... 549 votos.
Pela Russia .............. 231 votos 12
Constata-se que essa margem favorvel de votos ao Japo aumentou de forma
significativa, mesmo aps o ataque de surpresa efetuado pelos japoneses base naval
russa de Port Arthur um ms antes da pesquisa. A que se deveu essa simpatia pelo
Japo? Seria ela apenas resultado da guerra em si, na qual o gigante russo era
malvisto, pois representava o atraso de um regime monrquico, autocrtico aos olhos
da jovem Repblica brasileira? Aliado a esse fato estaria o chamado perigo eslavo,
identificado com os planos russos de expansionismo na sia? Ou essa simpatia j vinha
sendo cultivada h um certo tempo, no s por aqueles que admiravam as coisas do
Japo como tambm por aqueles que viam nesse pequeno pas que se desenvolvia a
cada dia, afeito ao progresso e em sintonia com a civilizao ocidental um modelo?
Admirao ou desconhecimento por parte dos leitores? Percebe-se que admirao e
desconhecimento acerca do outro conviveram lado a lado, produzindo algumas
distores.
Alguns como o leitor Odagab Arievilonoch, evocavam a ptria e alertavam para o
perigo de uma expanso japonesa no mundo. Por ser brasileiro e patriota, ele desejava a
vitria russa, caso isso no ocorresse (...) a Victoria dos filhos do Nippon poria em pratica
o fallado Perigo Amarelo, no s para o Brasil como para o mundo em geral.13
Em outras cartas favorveis vitria russa, os japoneses eram freqentemente
acusados de haverem provocado covardemente a guerra, desleais, prfidos,
traidores, salteadores do Oriente, raa orgulhosa e semi-selvagem. Para esse menor
nmero de leitores que eram favorveis Rssia, a raa amarela deveria ser destruda,
isto , derrotada para que o perigo amarello fosse destrudo.
12
13

Idem.
O Malho, Rio de Janeiro, n. 81, ano III. 2 de abril de 1904, p. 15.

14

Para o leitor Annbal Falco, de opinio totalmente contrria aos japoneses, a


macia votao favorvel aos amarelos ocorria devido falta de conhecimentos
histricos e geogrficos por parte dos leitores, fato que desmerecia a prpria raison
dtre do escrutnio, que, a seu ver, no tinha lgica.
Por mais contundentes que paream as opinies com relao ao Japo e seu
povo at o momento explicitadas, estas ocorreram em menor nmero.
Para se compreender os motivos que levaram simpatia pelo Japo e pelos
japoneses, atenho-me variedade de adjetivos adotados pelos leitores para explicar os
motivos pelos quais votaram a favor do Japo. O pequeno arquiplago nipnico era visto
como a nobre nao do sol levante, intrpido e destemido, possuidor de uma
grandeza militar que caminha a passos to largos para o progresso. Por seu turno, o
povo japons era, segundo a opinio dos leitores, um fiel retrato de sua nao. Naquele
momento, se o governo japons tivesse em mos essa pesquisa ficaria satisfeito pelo
modo como era visto o herico povo japonez, o mais progressista do mundo. Idealizados
sempre com sympathia, os japoneses eram freqentemente citados como civilisados,
patriotas, valentes, briosos, pacientes, laboriosos, viris, possuidores de refinado
gosto esttico e admirados por desprezar a morte.14
Outros leitores, como o santista Jos Barroso, viam o Japo como o pas mais
civilisado do mundo, depois do nosso querido Brasil, e faziam votos para que a vitria
japonesa desse uma lio velha Europa decrpita!. Conclui sua carta externando seu
desejo pela (...) victoria do Japo, pois to necessria como o alimento ao corpo. Deus
justo, proteger esse povo here.15
Em 9 de abril de 1904, na edio nmero 82 de O Malho, notificou-se aos leitores
o encerramento das votaes. Aps um ms, os redatores alegaram como motivo para
pr trmino ao escrutnio o excessivo nmero de respostas. O resultado final foi marcado
pela triunfal vitria japonesa, como ocorreria na guerra um ano e meio depois:
Pelo Japo ............... 4.169 votos
Pela Russia ...............1.132 votos 16
14

O Malho, Rio de Janeiro, ns 77,78, 79, 80, 81 e 82, ano III. 5 de maro a 9 de abril de 1904.
O Malho, Rio de Janeiro, n. 78, ano III. 12 de maro de 1904, p. 18.
16
O Malho, Rio de Janeiro, n. 82, ano III. 9 de abril de 1904, p. 21.
15

15

Baseando-nos simplesmente nesses nmeros, pode-se afirmar que o mito da


superioridade da raa branca havia enfraquecido no Brasil? Estaramos na vanguarda de
um novo padro racial, no qual o amarelo encontrava um lugar ao sol? Longe disso. A
meu ver, esse resultado final expressa que a notria simpatia e admirao pelo distante
Japo e pelo povo japons era fruto de uma idealizao por boa parte dos leitores
participantes, que ao se utilizarem de esteretipos para definir seu voto demonstravam
seu (des)conhecimento pelo novo Japo que nascia.
Pelo grande volume de cartas recebidas como tambm pelo contedo das
opinies externadas pelos leitores sobre os resultados da guerra, vislumbra-se um retrato
do universo nacional que se transformava. Evidenciado pela pouca variabilidade do nvel
de informao sobre os dois pases que haviam acabado de entrar em guerra. E para
definir os motivos de seus votos, os leitores geralmente se utilizavam de esteretipos.
Leitores que, na maioria das vezes, admiravam o Japo e os japoneses por um elemento
que o Brasil e os brasileiros ainda no haviam conseguido consagrar: a nao. O Japo
era transformado em alvo de simpatia (mesmo que para certos leitores inexplicvel),
enquanto, os russos (mesmo pertencendo a raa branca), governados pelo Czar Nicolau
II, ao estarem associados ao regime monrquico autocrtico, eram vistos negativamente
pelos leitores, que relacionavam a decrpita monarquia russa extinta monarquia
brasileira. curioso observar que em nenhum momento as cartas citam a forma de
governo japonesa (Monarquia Constitucional) como algo negativo ou mesmo positivo.
Governo este, que tinha no culto ao Imperador, considerado figura divina, o principal eixo
que acabou por conduzir o pas a um nacionalismo de carter exacerbado e militarista.
A meu ver, uma srie de ilustraes (cartuns) e artigos publicados nas revistas
ilustradas O Malho e Revista da Semana durante os anos de 1903 e 1908 tiveram um
importante papel na (re)formulao dos discursos presentes no imaginrio coletivo
nacional. Constato que, a partir desse primeiro momento, o Japo e os japoneses
passaram a fazer parte do cotidiano da imprensa ilustrada brasileira.
4. Imagens do Japo: japonismo, guerra, costumes, propaganda e perigo amarelo.

16

A veiculao pela imprensa nacional de imagens e artigos relacionados ao Japo


no perodo anterior conflagrao da Guerra Russo-Japonesa praticamente inexistia. O
pouco conhecimento pblico que se tinha sobre as coisas do Japo advinha em sua
maior parte de obras produzidas por autores estrangeiros, que ainda veiculavam as
imagens construdas pelo japonismo, no qual o outro, no caso o japons, idealizado
por seus atributos estticos, vistos pelo Ocidente como exticos. Apesar da idia de
perigo amarelo rondar o mundo, nota-se que seus efeitos no Brasil naquele momento
e fora do estrito crculo diplomtico e poltico no alcanaram muita ressonncia como
nos Estados Unidos e outros pases que j haviam recebido imigrantes japoneses em seu
territrio. O imaginrio nacional ainda estava em lua-de-mel com os valores retricos e
estticos do japonismo. A intelectualidade e as autoridades polticas brasileiras somente
comearam a dar conta do pesadelo do perigo amarelo a partir do momento em que se
tornou iminente a vinda dos embaixadores do vitorioso Japo (imigrantes japoneses)
para o Brasil com os acordos selados em 1907.
Desse modo, os anos de 1903 a 1908 representam um perodo de transformaes
na maneira como o japons foi visto e representado no Brasil.
Que imagens sobre o japons foram materializadas mediante a influncia dos
discursos produzidos e veiculados durante a guerra? Que novos discursos essas imagens
ajudaram a construir ou desmistificar?
Devido cobertura jornalstica sustentada pelo O Malho e pela Revista da
Semana a partir do incio do conflito russo-japons, os artigos e as imagens relacionadas
ao Japo, at ento inexistentes, passaram a ser publicados em quase todas as edies
desses peridicos. Grande parte do material editado sobre essa questo foi reproduzida a
partir da imprensa inglesa e francesa.

Imagem 2: O Japo chins, charge de K. Lixto. (O Malho 1904)


Foi nesse contexto de dvidas que pairavam sobre quem seria o vencedor do
conflito recm-iniciado que a revista O Malho, na edio de nmero 77, de 5 de maro de
1904, publicou em sua capa uma charge de autoria de K. Lixto (1877-1957), um dos

17

grandes nomes da caricatura nacional no perodo. Importante lembrar que foi nessa
mesma edio que teve incio o Escrutnio Russo-Japonez. Na charge, que mostra o
representante russo em luta com o representante japons, um primeiro dado merece a
nossa ateno: o modo original como o desenho da capa da revista foi idealizado ao se
utilizar a tcnica chamada trompe doeil, que possibilita virar a pgina de cabea para
baixo de maneira que o contendor que est por cima fique por baixo, dando ao leitor a
liberdade para escolher o provvel vencedor... Outro dado a figura do representante
japons, que, se observado atentamente, nota-se que na realidade se trata da figura de
um chins, pois a trana (herana da dinastia Manchu na China) denota esse aspecto.
Brincadeira de K. Lixto ou isso seria resultado do desconhecimento com relao ao Japo
e os japoneses?
Ao nosso ver, a imagem do japons/chins denota um certo desconhecimento,
podendo ser considerada expresso do imaginrio coletivo que, at certo ponto, ainda se
mostrava ambguo com relao aos orientais no Brasil. A princpio parece que no
importava quem vencesse (ao longo da guerra nota-se que boa parte dos leitores da
revista e da opinio pblica torcia pelos japoneses) e que aos olhos do cartunista
chineses e japoneses, ou seja, amarelos pareciam ser a mesma coisa. Confuso que, se
realmente existia para alguns, foi desfeita aps o trmino da guerra entre russos e
japoneses.
Com o objetivo de informar os leitores sobre quem era aquele valente oponente
dos russos, foi publicada no decorrer da guerra uma srie de artigos sobre os costumes
japoneses. Quase nada se falava sobre a Rssia ou os russos. Parecia que a imprensa
ilustrada nacional, acompanhando o esprito do escrutnio, estava deslumbrada com a
possibilidade de um pas extico e de raa amarela vencer o colosso branco russo.
Em quase todas as edies do ano de 1904 dos peridicos pesquisados
identificamos artigos e imagens sobre a guerra. Na revista O Malho, por exemplo, foram
criadas colunas semanais com o ttulo de Desenhos Japonezes e Costumes
Japonezes, enquanto na Revista da Semana, os assuntos relacionados ao Japo faziam
parte da seo Curiosidades Mundiais. O contedo dos artigos veiculados nessas
colunas ainda idealizava os japoneses, no mais vistos unicamente sob a forma de uma
inofensiva e misteriosa gueixa, mas tambm como Os voluntrios da morte, expresso

18

tirada de um artigo publicado na coluna Costumes Japonezes, de O Malho em julho de


1904. O prprio epteto, voluntrios da morte, para designar os japoneses se faz
impactante. Percebe-se que a inteno dos redatores era demonstrar a sensvel moral
japonesa ao descrever a importncia dada s questes ligadas honra, valor essencial
na cultura nipnica.
Segundo o artigo, era costume, caso um japons fosse insultado ou cometesse
algum ato que ferisse sua honra ou a de outro, se autopunir, como demonstrao do
reconhecimento do erro e da preservao da honra. Essa autopunio poderia se
formalizar apenas em um ato simples de raspar a cabea, ou, em casos mais extremos,
terminar em suicdio. A morte voluntria no Japo presente no imaginrio japons
era chamada de seppuku, que significa ventre cortado (leitura moda chinesa, mais
elegante e sbia). No Ocidente essa ao passou a ser conhecida pelo nome de hara kiri
(leitura vulgar ocidentalizada). Costume que mesmo adoado pela civilisao ocidental
no deixava de ser extraordinrio, podendo, segundo o autor (desconhecido) do artigo,
servir de lio aos brasileiros habituados a ver falhar a justia publica, e at Divina (!). 17
Outros artigos de cunho mais ameno, mas voltados para temas no menos
exticos aos olhos dos redatores e dos leitores, retratavam aspectos religiosos da cultura
japonesa, como, por exemplo, o artigo As Religies Japonezas, de autoria de F. Mendes
Junior, publicado na seo Curiosidades Mundiais da Revista da Semana, em agosto de
1904. Aos olhos de Mendes Junior, o culto xntosta era algo bem simples, pois o povo
japons, visto como portador de uma ndole calma e de carter tradicionalista, no
apreciava as cousas difficeis e desse modo seus deuses no eram exigentes. 18 Alm
disso, nas primeiras linhas do artigo, o autor sintetiza de maneira curiosa o modo como o
Japo era visto at aquele momento, como um raro e extraordinrio Museu:
Nada mais a propsito actualmente do que uma pequena indagao dos usos e
costumes antigos dos japonezes. At agora o grande imprio do Extremo Oriente
era considerado como uma curiosidade que o resto do mundo civilisado ia ver e

17

Os voluntrios da Morte. In: O Malho. Rio de Janeiro, n. 97, ano III. 23 de julho de 1904, p. 18.
Seo Curiosidades Mundiais As religies japonezas. Revista da Semana, n. 222, 14 de agosto de 1904,
pp.1469-1471.

18

19

examinar como se fosse um raro Museu, em que se achasse collecionada toda


multido de pequenos objetos darte to raros e to apreciados pelos ocidentaes.
Desta colleo, os seus homens constituam a primeira e mais admirada parte do
extraordinrio Museu.
Examinar um japonez ou uma japoneza, ir estudar os seus hbitos, apreciar os
seus costumes, admirar sua atividade, constitua, como ainda hoje constitue, uma
diverso ao mesmo tempo cara e almejada pelos europeus. (...) os japonezes,
habitantes pequenos, nervosos, buliosos, originaes em tudo, mas em tudo
perfeitos at nas mais insignificantes cousas que elles usam.19
A utilizao de imagens de mulheres ocidentais em trajes tpicos japoneses foi
moda na Europa nas dcadas de 1860 e 1870, quando o japonismo estava em voga.
Essa moda persistiu no imaginrio coletivo nacional pelos traos e artigos dos peridicos,
que, em tempos de guerra, viam no Japo a personificao do soldado e em tempos de
paz apelavam para a figura da gueixa. Exemplo dessa persistncia foi a publicao em
dezembro de 1905 do soneto Gueisha impresso, de autoria de Olgario Carneiro da
Cunha. No soneto, o autor descreve uma suposta cena, inesquecvel para ele, na qual
um marinheiro deposita um sello breve na fronte de uma mimosa gueisha scismadora e
bella que vivia no Japo sombrio. Essa viso fez com que o autor, nas ltimas linhas do
soneto, repetisse consigo mesmo extasiado que gostaria de ser marinheiro.20
A simpatia pelo Japo e os japoneses tambm pode ser vista na publicidade dos
mais variados produtos nas revistas ilustradas, que se utilizavam no s da imagem do
japons, mas tambm deste adjetivo para nomear alguns produtos. Esse foi o caso do
Sabonete Japonez. As frases curtas de sua propaganda se fizeram constantes na revista
O Malho21, transformando o sabonete em um produto quase milagroso:
O Sabonete japonez D a cutis belleza, attractivos e encantos
Torna os cabellos sedosos e perfumados

19

Idem.
Gueisha Impresso por Olgario Carneiro Cunha. Revista da Semana. Rio de janeiro. N. 290, 3 de
dezembro de 1905, p. 2932.
21
O Malho, Rio de Janeiro, n. 94, ano III. 2 de julho de 1904, p. 20.
20

20

Torna a pele fina e acetinada


Trs anos aps o final da guerra, em 20 de junho de 1908, logo aps a chegada
da primeira leva de imigrantes japoneses no Brasil, o xarope Bromil em sua propaganda
At no Japo!,22 publicava uma cena na qual aparecem uma gueixa e um oficial da
marinha brasileira conversando sobre o clima do Brasil e as propriedades milagrosas do
xarope. Notamos nessa representao a persistncia de um imaginrio ainda associado a
idealizaes baseadas em histrias como da pera Madama Butterfly (1904) de Gicomo
Puccini.
No incio de 1908, O Malho publicou uma outra interessante propaganda de
remdio intitulada Entre Asiaticos23, na qual, pela primeira vez, identificamos as figuras
de uma mulher japonesa e de um chins. No dilogo entre os dois representantes da
raa amarela, ao ser questionada pelo chins se estava no Brasil tambm para povoar
o solo, a japonesa responde negativamente, dizendo ser rica o bastante e no precisar
trabalhar Podemos afirmar que nesse curto, mas simblico dilogo ocorre a sntese do
modo pelo qual eram avaliados os chineses, de tranas e em uma categoria abaixo dos
japoneses, vistos como ricos e representados (ainda) pela figura feminina.
Imagem 3: Entre Asiticos propaganda do remdio A Sade da Mulher. (O Malho
1908)
Certifiquei-me que mesmo aps as transformaes no cenrio internacional e
nacional ocorridas, algumas imagens relacionadas ao amarelo persistiram, enquanto
outras desapareceram da imprensa ilustrada. O imaginrio relacionado imagem do
chins/chim ainda carregava os estigmas dos debates ocorridos trinta anos antes
(Questo Chinesa, 1879), assim como no caso do japons persistia a figura feminina e
extica. No entanto, aps a Guerra Russo-Japonesa (1904-1905) criaram-se novas
imagens do Japo, contribuindo para dissociar no imaginrio nacional a sua imagem da
dos chineses.

22
23

At no Japo!. O Malho. Rio de Janeiro, n. 301, ano VII. 20 de junho de 1908, p. 10.
Entre Asiaticos. O Malho. Rio de Janeiro, n. 227, 4 de janeiro de 1908, p. 40.

21

Pode-se afirmar que, at aquele momento e mesmo depois, nenhum elemento


estrangeiro foi em to curto espao de tempo (1903-1905) retratado com tanto
entusiasmo e euforia no Brasil como os japoneses. Nota-se que antes da chegada dos
imigrantes japoneses ao pas, as imagens veiculadas pela imprensa relacionadas a esse
elemento ainda tinham um ar de extico, de maravilhoso, feminino. Boa parte da opinio
pblica alimentava-se dessa forma de idealizao da figura do japons, que, ao
desembarcar no Brasil, causou estranhamento.
Apesar de o Japo ter se tornado uma potncia, modelo de progresso a ser
seguido, a chegada dos primeiros imigrantes japoneses colaborou para a diminuio da
distncia entre o real e o imaginrio. O contato com o real fez com que esse elemento
passasse a ser visto por parte da imprensa ilustrada que at ento o exaltara de forma
estereotipada. Resgatou-se o arsenal de esteretipos utilizados anteriormente contra os
chineses e agora, em um outro contexto, adaptados aos japoneses.
Imagem 4: Immigrao japonesa. (O Malho 1908)
Exemplo dessas mudanas pode ser visto no cartum Immigrao Japoneza,
publicado na revista O Malho, em dezembro de 190824 (seis meses aps a chegada da
primeira leva de imigrantes japoneses ao Brasil). Muito parecidas com os cartuns
publicados pela Revista Illustrada no final da dcada de 1870, as imagens e os discursos
se fazem carregados de marcas negativas inspiradas em questes raciais, religiosas,
culturais, sem falar nas questes de concorrncia trabalhista, onde o japons aparece
como um srio concorrente do trabalhador nacional por conseguir sobreviver com
salrios mais baixos. A imagem desse imigrante em solo brasileiro passou a ser
associada de seu pas, configurando-se como um elemento muito mais perigoso do
que o chins.
A idia de perigo amarelo que at ento vinha sendo debatida e combatida em
pases como os Estados Unidos tornava-se uma (possvel) realidade no Brasil; pois
deixava de ser uma figura imaginada pelos intelectuais, polticos e periodistas nacionais
para se apresentar como partcipe do cotidiano nacional.
24

Immigrao Japoneza. O Malho, Rio de Janeiro, n. 325, ano VII. 5 de dezembro de 1908, p.9.

22

A opinio pblica ainda mal havia digerido os elementos positivos e incuos do


japonismo misturados euforia das vitrias do Grande Japo, quando os japoneses
aqui aportaram, trazendo consigo um novo ingrediente a ser adicionado ao imaginrio
coletivo sobre a figura do oriental: o perigo amarelo ou, como os polticos e intelectuais
norte-americanos denominaram, new Oriental peril.

BIBLIOGRAFIA:
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So Paulo, vol. 1, 1918.
BUENO, Clodoaldo. A Repblica e sua Poltica Exterior (1889-1902). So Paulo,
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DEZEM, R. Matizes do amarelo: a gnese dos discursos sobre os orientais no Brasil
(1878-1908). So Paulo: Associao Editorial Humanitas, 2005.
GOMBRICH, E.H. Meditaes sobre um cavalinho de pau. E outros ensaios sobre teoria
da arte. So Paulo: Edusp, 1999.
HUNTER, J.E. The emergence of Modern Japan: an introductory history since 1853. New
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QUEIRS, Ea. Chineses e Japoneses. Srie Oriental. Lisboa, Edies Cotovia, 1997.
SALIBA, Elias T. Razes do Riso. A representao humorstica na histria brasileira: da
Belle poque aos primeiros tempos da rdio. So Paulo: Companhia das Letras, 2002.
SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco: raa e nacionalidade no pensamento brasileiro.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
FONTES PRIMRIAS:
Anais do Senado, sesses de 6/1892.
Anais do Senado Federal, sesso de 28 de outubro de 1895.

23

Anais do Senado Federal, sesso de 21 de setembro de 1896.


Colleco de Leis e Decretos do Estado de So Paulo de 1895-1896
Revista Illustrada (1878-1879) Acervo Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro Brasil)
Revista da Semana Edio semanal ilustrada do Jornal do Brazil (1903-1908) - Acervo
Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro Brasil)
Revista O Malho (1902-1908) - Acervo Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro Brasil)

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