A Bagaceira

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JOS AMRICO DE ALMEIDA

(DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS)

A
BAGACEIRA

Romance
Introduo
M. CAVALCANTI PROENA

Ilustraes
POTY

37. e d i o
(texto da edio crtica)

JOS OLYMPIO
E D I T O R A

Fundao Casa de Jos Amrico, 1980


Reservam-se os direitos desta edio
EDITORA JOS OLYMPIO LTDA.
Rua Argentina, 171 - 1 andar - So Cristvo
20921-380 - Rio de Janeiro, RJ - Repblica Federativa do Brasil
Printed in Brazil I Impresso no Brasil
o

Atendemos pelo

Reembolso Postal

ISBN 85-03-00231-0

Capa: POTY

CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
A448b

Almeida, Jos Amrico de, 1887-1980.


A bagaceira: romance / Jos Amrico de Almeida; introduo M.
Cavalcanti Proena; ilustraes Poty. - 37 ed. com texto revisto da
ed. crtica. - Rio de Janeiro: Jos Olympio, 2004.
Dados biobibliogrficos do autor.
Inclui glossrio por Ivan Cavalcanti Proena e Jos Amrico de
Almeida.
a

1. Romance brasileiro. I. Poty. 1924-1998. II. Ttulo.

04-0946

CDD - 869.93
CDU-869.0(81)-3

ANTES

QUE ME FALEM

H muitas formas de dizer a verdade.


seja a que tem a aparncia de mentira.

Talvez

mais persuasiva

*
Se escapar alguma exaltao sentimental, a tragdia da prpria
realidade. A paixo s romntica quando falsa.

*
O naturalismo foi uma bisbilhotice de tropeiros.
ver tudo: ver o que os outros no vem.

Ver bem

no

*
A alma semibrbara s alma pela violncia dos instintos. Interpret-la

com

uma

sobriedade artificial seria

tirar-lhe a alma.

H uma misria maior do que morrer de fome no deserto: no


ter o que comer na terra de Cana.

um livro triste que procura a alegria. A tristeza do povo brasileiro uma licena potica...

*
Os grandes abalos morais so como as
imunizam. Mas deixam a marca ostensiva.

bexigas: se

no

matam,

O regionalismo o p-do-fogo da literatura... Mas a dor universal, porque uma expresso de humanidade. E nossa fico incipiente no pode competir com os temas cultivados por uma inteligncia mais requintada: s interessar por suas revelaes, pela originalidade de seus aspectos despercebidos.

*
O amor aqui um tudo-nada de concesso lrica ao clima e raa. E um problema de moralidade com o preconceito da vingana
privada.

*
Um
paraso.

romance brasileiro sem paisagem seria como Eva expulsa


O ponto suprimir os lugares-comuns da natureza.

do

A lngua nacional tem rr e ss finais... Deve ser utilizada sem os


plebesmos que lhe afeiam a formao. Brasileirismo no corruptela nem solecismo. A plebe fala errado; mas escrever disciplinar e
construir...

*
Valem as reticncias

e as intenes,
O ROMANCISTA

OS SALVADOS

F i n d o o a l m o o podiam ser 9 h o r a s D a g o b e r t o M a r a u c o r reu j a n e l a , q u e u m a forma de fugir de c a s a , s e m sair fora de p o r t a s , c o m o se o m o v e s s e u m a g r a n d e c u r i o s i d a d e . M a s , d e b r u a d o ,


apoiou o q u e i x o na m o soerguida e entrefechou os o l h o s , n u m alhea m e n t o d e enfado o u displicncia.
Vivia e l e , d e s s e j e i t o , e n t r e trabalheiras e c i o s , c o m o o h o m e m mquina d e s t a s t e r r a s q u e o u s e agita resistentemente o u , q u a n d o p ra, p r a m e s m o , c o m o u m m o t o r p a r a d o .
C o m o q u e c o b r a r a m e d o a o v a z i o interior. N o h d e s e r t o m a i o r
que u m a c a s a d e s e r t a .
E n t r a v a a f o b a d o , c o m i a , o u , a n t e s , engolia, de c a b e a d e s c a d a , o
r e p a s t o invarivel e ou saa de golpe ou ficava a espiar p a r a fora.
A p r e s e n a do filho r e c m - c h e g a d o , em frias, n o lhe modificava
e s s a i m p r e s s o . Em v e z de confortar-lhe o a b a n d o n o , a g r a v a v a - o ,
mais e m a i s , c o m o u m a s o m b r a intrusa.
L c i o v o l t o u d a c a c h o e i r a c o m a toalha e n r o l a d a n a c a b e a , c o m o
um turbante.
L e v a n t o u o b r a o n u m gesto d e q u e m mais p a r e c i a d a r d o q u e p e dir a b n o . E foi, p o r sua v e z , sentar-se m e s a ,
N o s e d e f r o n t a v a m , sequer, n e s s e p o n t o d e c o m u n h o familiar,
onde a s a l m a s s e m i s t u r a m n u m a intimidade aperitiva. F o r r a v a m - s e ,
assim, a o c o n s t r a n g i m e n t o d o s e n c o n t r o s c a l a d o s o u d a s c o n v e r s a s
contrafeitas e e s c a s s a s .
A c a s a - g r a n d e , situada n u m a colina, s o b r a n c e a v a o c a m i n h o a p e r t a d o , no t r e c h o fronteiro, e n t r e o c e r c a d o e o a u d e .
N u m r e p e n t i n o desenfado, D a g o b e r t o estirou o olhar, p o r c i m a d a s
mangueiras m e s enfileiradas ladeira a b a i x o , p a r a a e s t r a d a revolta.
Parecia a poeira l e v a n t a d a , a sujeira do c h o n u m p - d e - v e n t o .

E r a o x o d o d a s e c a d e 1898. U m a r e s s u r r e i o d e cemitrios a n tigos e s q u e l e t o s r e d i v i v o s , c o m o a s p e c t o t e r r o s o e o fedor d a s c o vas podres.


O s f a n t a s m a s e s t r o p i a d o s c o m o q u e iam d a n a n d o , d e t o t r p e gos e t r m u l o s , n u m p a s s o a r r a s t a d o d e q u e m leva a s p e r n a s , e m v e z
d e ser l e v a d o p o r elas.
A n d a v a m d e v a g a r , o l h a n d o p a r a t r s , c o m o q u e m q u e r voltar.
N o t i n h a m p r e s s a e m chegar, p o r q u e n o sabiam a o n d e iam. E x p u l s o s d o seu p a r a s o p o r e s p a d a s d e fogo, iam, a o a c a s o , e m d e s c a m i n h o s , n o a r r a s t o d o s m a u s fados.
F u g i a m do sol e o sol guiava-os n e s s e forado n o m a d i s m o .
Adelgaados na magreira cmica, cresciam, c o m o se o vento os lev a n t a s s e . E os b r a o s afinados desciam-lhes a o s j o e l h o s , de m o s
abanando.
V i n h a m e s c o t e i r o s . M e n o s os hidrpicos d o e n t e s da a l i m e n t a o txica c o m os fardos das barrigas a l a r m a n t e s . .
No tinham sexo, nem idade, nem condio nenhuma. E r a m os
retirantes. N a d a m a i s .
M e n i n o t a s , c o m a s pregas d a sbita velhice, c a r e t e a v a m , t o r c e n d o
a s c a r i n h a s d e c r p i t a s d e e x - v o t o . O s v a q u e i r o s m s c u l o s , c o m o tits
a l q u e b r a d o s , e m p e t i o d e misria. P e q u e n o s fazendeiros, n o a r r e m e s s o igualitrio, b a r a l h a v a m - s e n e s s e a n n i m o aniquilamento.
Mais m o r t o s do q u e vivos. V i v o s , vivssimos s no olhar. Pupilas
d o sol d a seca. U n s olhos e s p a s m d i c o s d e p n i c o , a s s o m b r a d o s d e s i
p r p r i o s . Agnica c o n c e n t r a o de vitalidade faiscante.
F a r i s c a v a m o c h e i r o enjoativo do m e l a d o q u e lhes e x a c e r b a v a os
e s t m a g o s j e j u n o s . E , e m vez d e c o m e r e m , e r a m c o m i d o s pela p r p r i a
fome n u m a autofagia erosiva.
L c i o a l m o a v a c o m o sentido n o s r e t i r a n t e s . E s c o n d i a c d e a s
n o s bolsos p a r a distribuir c o m e l e s , c o m o q u e m lana migalhas a a v e s
de arribao.
A c a b r o e i r a e s c a r n i n h a metia-os bulha:
V e m tirar a barriga da misria...
Prias d a b a g a c e i r a , vtimas d e u m a e m p e r r a d a organizao d o
trabalho e d e u m a d e p e n d n c i a q u e o s d e s u m a n i z a v a , e r a m o s m a i s
insensveis a o martrio d a s r e t i r a d a s .
A coliso d o s m e i o s pronunciava-se no c o n t a t o d a s migraes p e ridicas. Os sertanejos e r a m malvistos n o s brejos. E o n o m e de b r e j e i r o c r u e l m e n t e pejorativo.
L c i o r e s p o n s a b i l i z a v a a fisiografia p a r a i b a n a p o r e s s e s c h o q u e s
rivais. A c a d a z o n a c o r r e s p o n d i a m tipos e c o s t u m e s m a r c a d o s .
8

E s s a diversidade criava g r u p o s sociais q u e a c a r r e t a v a m os conflit o s de s e n t i m e n t o s .


Estrugia a t r o v a repulsiva:
E u n o vou n a s u a c a s a ,
Voc n o venha na m i n h a ,
P o r q u e tem a b o c a g r a n d e ,
Vem c o m e r m i n h a f a r i n h a . . .
H o m e n s d o s e r t o , o b c e c a d o s n a mentalidade d a s r e a e s c r u e n t a s , n o c o n v o c a v a m a s derradeiras energias n u m arranque selvagem.
A histria das s e c a s era u m a histria de passividades. Limitavam-se a
fitar os olhos terrveis nos seus ofensores. Outros ronronavam. c o m o se estivessem engolindo golfadas de d i o .
E n a s terras c o p i o s a s , que lhes d e n e g a v a m as p r o m e s s a s vistoriadas, goravam seus sonhos de redeno.
D a g o b e r t o o l h a v a por olhar, indiferente a e s s a tragdia viva.
A seca r e p r e s e n t a v a a valorizao da safra. Os s e n h o r e s de engenho, d e u m a avidez v, refaziam-se d a d e p r e c i a o d o s t e m p o s normais c u s t a da desgraa peridica.
O feitor alvitrava a admisso d o s retirantes:
Paga-se p o u c o mais ou n a d a . . .
M a s D a g o b e r t o e s c a r m e n t a v a a c o n v e r g n c i a molesta. Desafogava a fazenda da s u p e r p o p u l a o imprestvel, consignada caridade
pblica.
vista do b u e i r o fumegante q u e sujava o cu estivo, a matula e s petral detinha-se e s p e r a n o s a . E ficava a espiar a c a s a do e n g e n h o
c o m o u m a grande e s s a a r m a d a n o n e g r u m e d o teto velho.
Alguns faziam m e n o de subir. M a s logo d e s a n d a v a m , a o s t o m b o s , na mobilidade incerta.
De q u a n d o em q u a n d o , um magote vingava o socalco. C h e g a v a m
mastigando em s e c o , p a r a enganar a fome, nas mais grotescas atitudes da misria.
D o b r a v a m - s e o s j o e l h o s , no c o m o p e d i n c h e s . Genufletiam modos de fadiga.
N o se c a r p i a m , c o m o se estivessem realizando um destino irremedivel. N e m , sequer, lavavam c o m lgrimas a s c a r a s p o e n t a s .
E s c o r r a a d o s , retrocediam, a r q u e j a n t e s , sem u m a queixa.
E, desengonando-se, de du em d u , numa marcha esquecida, o
rebotalho e r r a n t e ia atulhar as feiras, malignar as cidades.
D a g o b e r t o despercebia-se do desfile m a c a b r o . A seca infundia-lhe
um sentimento contrastante.
9

E r a u m a inquietao serdia, c o m o a b r a s a r e m a n e s c e n t e q u e
p r o c u r a a c e n d e r o cinzeiro.
N u m p e r o d o de vida em q u e o h o m e m realiza o que s o n h o u , ele
voltava a s o n h a r . A m o r plvora q u e se a c a b a c o m a primeira e x ploso. A m o r q u e sabe a frutos a p o d r e c i d o s . E r a c o m o o c a m i n h e i r o
que., fatigado da j o r n a d a , estuga o p a s s o p a r a chegar a n t e s de anoitecer.
Beirava u m a idade em q u e o instinto sexual instigado se difunde
p o r t o d o s os sentidos e mais imaginao que materialidade, c o m o a
saudade do q u e se no gozou. Crise d a s unies r e t a r d a t r i a s .
H a v i a coisa de 18 a n o s , inveterava-se na viuvez d e s c o n f o r t a d a ,
p o r u m a j u r a indiscreta:
M a s eu n o e n c o n t r o o u t r a mulher a s s i m . . .
E gabava-lhe c o m mincias de formas os c a r a c t e r e s da beleza e as
prendas ocultas:
Mulhero! mulhero!
Os dias do c a m p o decorriam-lhe r e c r e a t i v o s . M a s , noite, q u a n d o
as p o r t a s se c e r r a v a m , cerrava-se-lhe o c o r a o .
A solido entretinha intimidades desiguais. Admitia o feitor em
suas confidencias:
Qual o q u ! O s e n h o r e n c r u o u . . . Se duvidar, c o m e s s e calibre
c a p a z de p a s s a r a perna em seu L c i o .
A m a t a fronteira, o p a d r o m a j e s t o s o , e s t a v a acesa n u m a c o r de
incndio.
H a v i a u m a s e m a n a , surdira u m t o q u e e s t r a n h o n a m o n o t o n i a d a
v e r d u r a . Dir-se-ia um r a m o amarelido torreira da e s t a o .
Dominava ainda a esmeralda tropical. Mas, com pouco, emergira o
m e s m o matiz em o u t r o t r e c h o vizinho, c o m o um efeito de luz, um
beijo fulgurante do sol em r v o r e favorita. E, logo, o p a u - d ' a r c o a s soberbou a flora, c o m o um b a n h o de o u r o na folhagem.
N e s s a m a n h luminosa a m a t a resplandecia c o m uma orgia de d e s a b r o c h o e m sua p o m p a a u r i v e r d e .
S e m a p e r c e p o da paisagem, c o m a sensibilidade o b t u s a e entorpecida a o s p r i m o r e s da n a t u r e z a , D a g o b e r t o inquietava-se, pela
primeira v e z , p e r a n t e o o u r o que frondejava. Parecia-lhe q u e o sol tinha b a i x a d o sobre a selva fulva.
E r a , talvez, a c o r que lhe suscitara o interesse c h a m b o . As ptalas u r e a s . . .
E s e m i c e r r o u , n o v a m e n t e , os olhos d e s c u r i o s o s .

10

S e n o q u a n d o , foi d e s p e r t a d o por u m a voz sumida q u e o sobressaltou. N o n o t a r a o a c e s s o de o u t r o grupo de retirantes.


I m p o r t u n a v a m - n o os i n t r u s o s , cortando-lhe o fio d o s clculos da
colheita ou de alguma cisma transitria.
Pediam-lhe u m a poisada.
Ele a b a n o u a c a b e a n e g a t i v a m e n t e .
E os d v e n a s q u e d a r a m - s e e s m o r e c i d o s pelo r e p o u s o m o m e n t neo.
Irritava-se p e r a n t e essa insistncia m u d a .
Saiu p a r a enxot-los e, c o m o visse que traziam um c a v a l o , c o n t r a
os hbitos d e s s a peregrinao, aferrou-se, cada vez mais, na r e c u s a .
Suspeitou q u e se tratava de gente de c e r t a c o n d i o , incapaz de
uma atividade til.
De fato, suas maneiras inculcavam a mediania despenhada no turbilho
da seca. Um ar mais de d e c a d n c i a que de humildade.
E, c o m o e r a de seu natural, o s e n h o r de e n g e n h o no e n c a r a v a e s sas figuras r e s s e q u i d a s . T a l v e z tivesse m e d o de c o m o v e r - s e . Ou o
olhar p a r a o seu conceito da a u t o r i d a d e era uma e x c e s s i v a b e n e v o lncia.
E esbravejou:
O q u e j disse est dito!
N i s t o , d e s m o n t o u - s e u m a rapariga e, c o m a vozita s o p r a d a :
Se o s e n h o r pudesse m a n d a r alcanar-me um p o u c o d ' g u a . . .
Ele e x a m i n o u - a atravs d a s p e s t a n a s c e r d o s a s e ficou c o m a fisionomia s u s p e n s a , c o m o q u e m reconstitui u m a viso ou e v o c a um fato.
Milonga, olha aqui!
E, e n q u a n t o a retirante segurava o c o p o c o m os d e d o s m u r a d o s ,
interpelou, indicando um rapaz que a a c o m p a n h a v a :
So irmos?
S e n h o r n o ; m a s , c o m o se fosse respondeu o mais velho
que p r o c u r a v a e s c o n d e r a c a r a na b a r b a intonsa.
Seguiram c a m i n h o .
Manuel Broca! Ma-nuel!
Chegou o feitor. E D a g o b e r t o , a p o n t a n d o o grupo q u e se distanciava:
A r r a n c h e aquela gente.
E e n t r o u a ir e vir, em longos p a s s o s frouxos, no seu hbito de
marchar para um ponto que lhe e s t a v a mais na imaginao do que no
espao.

11

D U A S ALMAS N U M S CORPO

T o d e p r e s s a percebeu o inslito acolhimento dos retirantes. L c i o


no se t e v e em si: picado de curiosidade, foi direito a o n d e eles e s t a v a m .
E n t r o u n a estrebaria, c o m o q u e m e n t r a num q u a r t o d e d o e n t e :
Meu velho...
Valentim Pedreira, um seu c r i a d o . N o ouviu falar em Valentim do B o n d ?
Seu B o n d . . . isto pra c a v a l o !
N o tem n a d a n o , m o o : a gente vai pra debaixo do p - d e -pau e o animal fica aqui.
E , p r o c u r a n d o c o m u n i c a r e s s a resignao aos c o m p a n h e i r o s :
N o , S o l e d a d e ? V o c n o vai, Pirunga?
A rapariga tinha ocultado a face e n t r e os b r a o s , n u m a atitude de
a c a n h a m e n t o ou de fadiga, d e b r u a d a , m o l e m e n t e , no c a v a l o q u e , a
e s s e c o n t a t o , e s t r e m e c i a , c o m uns frmitos que a s a c u d i a m , c o m o se
estivesse s o l u a n d o .
A c u d i n d o v o z do pai, v o l t o u - s e , c o m os olhos a c e s o s e v e r d e s
q u a n t o mais a c e s o s mais v e r d e s ! de u m a luz febril q u e parecia
esfumaar o crculo d a s olheiras.
Pensei q u e estivesse c h o r a n d o . . . falou-lhe o e s t u d a n t e ,
reparando-lhe na sensibilidade do c o r p o desfeito, de graas c o n s u m i das.
S o l e d a d e c o n c h e g o u os t r a p o s q u e mal lhe disfaravam a beleza
magra.
E Valentim e s t r a n h o u :
C h o r a n d o de q u ? ! N i n g u m o l h o - d ' g u a pra viver revendo...
M a n u e l B r o c a e s t a v a , nesse dia, c o m veia de a d u l o .
L c i o intercedia:
A s e c a estancou-lhe at as lgrimas... S lhe resta o olhar de
fogo-ftuo...
E o feitor s e c u n d a v a :
N o t e m q u e ver um e s p e t o ; n o t e m o n d e se d a r um belisco.
S falta m e s m o voar...
Afinal anuiu:
de se d a r um j e i t o . T o m a - s e o m o c a m b o de X i n a n e . . .
***
12

Intimado a deixar a palhoa q u e ajudara a levantar, o caboclo coou a c a b e a e correu c a s a - g r a n d e , c o m o c h a p u debaixo do b r a o :


P a t r o , eu no me sujeito. O p a t r o sabe q u e eu n o enjeito
parada: sou um b u r r o de carga. M a s p o r m , nascer pra estrebaria no
nasci.
D a g o b e r t o n o quis saber de mais n a d a :
Pois, p o r ali, c a a b r a ssafado! V o c n o nasceu pra estrebaria
que de cavalo de sela: nasceu foi pra cangalha!
Xinane continuou a coar a c a b e a , c o m o se p r o c u r a s s e d e s p e r t a r
uma idia:
A gente bota um quinguingu; q u a n d o agora, o p a t r o , sem
qu n e m m a i s . . .
E , implorativamente:
Q u a n d o a c a b a , foi a caseira a r r a n h a n d o c o m o c a c o de e n x a d a .
P a t r o , minha rocinha, atrs do r a n c h o ! E a rebolada de c a n a ! . . .
O q u e est na terra da terra!
E r a e s s a a frmula de espoliao sumarssima.
P a t r o , m a n d e suas o r d e n s . D licena que leve os t r o o s ?
E o c a b o c l o saiu, levando os c a c a r e c o s num b r a a d o e 400 a n o s de
servilismo na m a s s a do sangue.
L c i o culpava-se desse desfecho de sua sentimentalidade incoerente. E interveio:
Meu pai, no a m a s s e o seu po c o m o suor dos p o b r e s .
Milonga interps-se. As galinhas gritavam, c o m o se estivessem
vendo c o b r a .
O e s t u d a n t e ainda percebia, e n t r e outros ralhos:
o q u e lhe digo de u m a v e z p o r t o d a s !
de me J o a n a !
meter as ventas
E, e s c o a n d o - s e , internou-se, toa, na picada dos l e n h a d o r e s , q u e
se afigurava u m a r e c e n t e violao da m a t a virgem, at a antiga e s p e r a
do v e a d o , o n d e c o s t u m a v a e s p a i r e c e r , h o r a s a fio, forrando-se aos
atritos a m i u d a d o s .
N e s s a c o n t e m p l a o excitada, espiritualizava as formas mais
grosseiras da n a t u r e z a arbitrria.
M a s , ao c a b o , j se n o c o m p r a z i a c o m o r e c e s s o acolhedor.
P r o c u r a v a u m a impresso q u e lhe pacificasse o esprito e a selva
bruta dava-lhe a idia de um conflito. r v o r e s deitadas sobre r v o r e s .
Deformidades de c o r p o s h u m a n o s . Plantas c o r c u n d a s c o m as c o p a s
no c h o . Cips enforcando t r o n c o s venerveis.
13

S o b o guarda-sol da folhagem esbelta, os arbustos c o n f o r m a v a m se c o m a c o n d i o rasteira. P r e c i s a v a m da sombra p r o t e t o r a . . .


M a s , no afogo da ramalheira, um vegetal franzino insurgia-se contra a o b s c u r i d a d e . E perdia o porte natural, insinuando-se, afilado e
trmulo, a t r a v s da p e n u m b r a , alando-se atrs da luz alta.
E s s a viso angustiosa mostrava-lhe c o m o o s a c e s s o s d a inteligncia afinam a sensibilidade.
B e m lhe dizia o pai:
Hoje em dia n o se guarda m a i s na cabea: s se d e v e g u a r d a r
nas algibeiras.
N o e r a s o m e n t e a negao da solidariedade vegetal a d o m i n a o da seiva, c o m o o capital da flora. Bichos q u e no o c o n h e c i a m
corriam d e l e , c o m o de um inimigo n a t o da criao. At os sagins
largavam a baunilha r e c e n d e n t e . E viu a m a t a a r r o x e a d a pela florao d o s espinheiros e das sucupiras. S distinguia e s s a tonalidade fnebre.
O p r p r i o p a u - d ' a r c o , que se d e s p i r a de folhas"para se cobrir de
o u r o , e r a um g a r r a n c h o miservel, s e m , sequer, o vestido v e r d e d a s
outras r v o r e s .
E temeu-se de q u e os cips insidiosos que pendiam em t r a n c a s se
lhe e n r o s c a s s e m no c o r p o dolorido, p r e n d e n d o - o solido hostil.
Voltou, mais q u e depressa, p a r a casa. Recolheu-se ao q u a r t o , galgando a j a n e l a do oito, p a r a n o ser pressentido.
T r a n c o u - s e p o r d e n t r o , c o m o prisioneiro de si m e s m o .
E meteu-se na rede q u e , p a r a d a , feita p a r a se d o r m i r ; m a s , a o s
e m b a l o s , a v o a r , feita p a r a se s o n h a r .
L e m b r o u - l h e o martrio infligido a Seu-bem, um c o z i t o a m a r e l o
com a c a u d a e n r o s c a d a c o m o um i m b u , q u e estivera p r e s o , ali d e n tro, u m a s e m a n a , sem c o m e r .
Pungia-o e s s e r e m o r s o .
P e n d u r a r a um p e d a o de c h a r q u e altura de t r s m e t r o s . E ia v e r
pelo b u r a c o d a fechadura a s a c r o b a c i a s d o cadelo e s f o m e a d o : primeir o , saltava p a r a alcanar o b o c a d o ; d e p o i s , mais fraco, p u l a v a e caa;
afinal, s l e v a n t a v a a c a b e a , m i r a n d o a carne inatingvel.
Q u a n d o o g o z o gania, ele abria a p o r t a e passava-lhe manteiga no
focinho.
Ocorriam-lhe outros malfeitos de m e n i n o arteiro: deitava sal no
dorso leitoso d o s c u r u r u s ; m u d a v a d e ninho o s p a s s a r i n h o s n u e l o s . . .
C o n v o c a v a , nessa s u p e r e x c i t a o , t o d o s os episdios da infncia
indcil.
Acudiam-lhe a s reminiscncias, c o m o u m e n x a m e a s s a n h a d o .
14

rfo de m e , ao nascer, a n a t u r e z a criara-o vivaz e livre, c o m o


um selvagenzinho folgazo.
N o sentira a soledade de unignito. C r e s c e r a de c a m b u l h a d a c o m
os m o l e q u e s da bagaceira, garotos de u m a malcia d e s c a r a d a .
E r e c o r d a v a - s e da violenta t r a n s i o d e s s e s hbitos de liberdade.
O colgio fora o viveiro c o m d u z e n t o s bicos c o m e n d o no m e s m o
cocho e b e b e n d o na m e s m a gua. O c o r r u p i o que c o m e mole sujando
as p e n a s do canrio gentil. A patativa c a n t a n d o c o m a a r a p o n g a .
E s t a v a a t o d a h o r a c o m t o d o o m u n d o ; s n o tinha direito de ficar s , de e s t a r consigo m e s m o . F o r a o silncio a t e r r a d o r de d u z e n t a s
bocas q u e se a b r i a m , no refeitrio, s e m falar. O silncio indiscreto do
dormitrio. F o r a a babel de d u z e n t a s meias-lnguas no recreio.
N e s s e convvio de p o r t a s f e c h a d a s , o relgio tinha m a i s v o n t a d e
do que a sua n a t u r e z a : era o h o r r i o do s o n o e da fome.
A disciplina constitua um sistema de inibies e s c u s a d a s .
Extraa-se a personalidade, c o m o se extrai um dente p o d r e . E r a a
forma, dois a d o i s , c o m o animais j u n g i d o s .
Os longos silncios regulamentares incutiram-lhe o v e z o d a s meditaes intranqilas.
E fora, ao m e s m o p a s s o , a m o l e c e n d o a inteligncia c o m leituras
secretas. Noitadas de romances angustiados, debaixo dos c o b e r t o r e s ,
luz d o s lampies vigilantes.
A liberdade a c a d m i c a agravara-lhe e s s a sensibilidade. D u a s cadeiras d e . . . ru para ser j u l g a d o no fim do a n o . A filosofia imprvia
como a m a t a de M a r z a g o c o m o cipoal de t o d o s os sistemas e n r e dado no f e n o m e n i s m o catedrtico. O Direito R o m a n o (catlico, a p o s tlico, r o m a n o . . . ) do professor N e t o . ( E m R o m a s havia o P a p a . . . )
Trocara a luz da inteligncia p o r d u a s velas a c e s a s : u m a ao C o r p u s
J r i s , c o n s e r v a d o na gua benta do m e s t r e e a o u t r a ao inferno filosf i c o d o dr. L a u r i n d o . . .
D e p o i s , um Portela, s u r d o c o m o a corruptela de seu n o m e ; um
Virgnio constitucionalista...
C o n s e r v a v a o h o r r o r do trote q u e e r a a forma m e n o s e q i n a de
falta de esprito.
Formalizara-se plagiando F a g u n d e s Varela, c o m a m o e s p a l m a d a
nos olhos:
O h o m e m m o d e r n o m e d e - s e daqui p a r a cima.
E, c o m o a c a b e a e r a a nica z o n a beligerante, aplicaram-lhe alguns p i p a r o t e s e, p o r um n a d a , n o lhe d e r a m m a r r a d a s .
M u d a n d o a vista, notou u m a d a t a escrita a lpis e n c a r n a d o na cal
encardida: 12 4 95.
15

T e n t o u apag-la, remordido p o r e s s a lembrana. E , p a r a e s q u e c la, levantou-se e entrou a garatujar, displicentemente, c o m o se u m a


lesma p a s s a s s e pela p a r e d e :
Eu chorava, de manhzinha, quando os
p a s s a r i n h o s c o m e a v a m a c a n t a r chor a n d o , que a f o r m a m a i s alegre de
criana falar. E Milonga: "Cabeleira'i
vem, m a t a n d o m e n i n o s " . . . E n c o l h i a - m e ,
ficava p e q u e n i n i n h o , p a r a o bicho n o me
a c h a r . . . E , hoje, n e m p o s s o f i c a r p e q u e n o
p a r a o m u n d o n o me ver.
*
N o g o s t a v a d e s e r m e n i n o . Minha vont a d e era ser h o m e m f e i t o . E , a g o r a , este
b u o p a r e c e o luto de m i n h a infncia que
morreu.
**
Eu sofria na m i n h a i n o c n c i a com p e n a
d o s bichos q u e s e a m a v a m . A m o r d e a r r a n h a d u r a s , de coices e de d e n t a d a s . E, enfim, creio que os beijos d o e m muito m a i s .
* * *
E t o r n o u r e d e servil q u e , n o s v a i v n s , se lhe afeioava ndole
voltaria.
F l u t u a v a m - l h e s e n t i m e n t o s i n c o m p l e t o s n o tropel d a a l m a desarmnica.
Afundava-se na anlise ntima, c o m o algum q u e p r o c u r a s s e
r e c o n h e c e r - s e na prpria s o m b r a . Mal sabia ele q u e o e s p e l h o n o s
familiariza c o m a imagem fsica, m a s n e n h u m h o m e m se identificaria,
se se e n c o n t r a s s e em pessoa.
T a p a v a os o u v i d o s p a r a e s c u t a r a v o z recndita.
E s s e a b u s o d e i n t r o s p e o exaltava-se nas t e n d n c i a s d i s c o r d a n t e s . E d i s c r e t e a v a consigo m e s m o c o m o e n t e n d i m e n t o d a s d u a s faces
o p o s t a s do m e s m o eu. C o n v e r s a v a c o m o silncio; tinha a a u d i o do
invisvel.
Recolher-se voltar-se c o n t r a si p r p r i o . E sobrevinha-lhe o rem o r s o q u e o narcisismo d o s pessimistas.
C o m p a r a v a - s e criana q u e r e c u s a a comida, rola no c h o , c h o r a ,
16

r o u c o , e s c o r i a d o , para se desforrar. . E ele, a curtir e s s a crise moral,


rebolando o esprito a t o r m e n t a d o , p o r um revide parecido c o m a
greve da f o m e . . .
E s t a v a farto de ainda n o ter vivido.
De u m a rebeldia inativa retraa-se da luta pela vida, c o m o q u e m
estaciona m a r g e m do c a m i n h o para d a r passagem a um desconhecido.
Na solido rural s abria a b o c a para bocejar.
F o r a t u d o c a n t a v a . At o c a r r o de boi sob os fardos a r r o b a d o s :
q u a n t o mais p e s a d o , mais c a n t a v a .
Ele profanava c o m essa tristeza ociosa a alegria gritante da natureza tropical.
C o s t u m a v a dizer que suas a e s n o tinham equilbrio p o r q u e o
c o r a o lhe p e s a v a mais do que a c a b e a . Parecia-lhe o c o n t r a p e s o da
hereditariedade promscua.
U m a rstia de sol c o r t a v a perpendicularmente a p e n u m b r a do
a p o s e n t o , c o m o u m a flecha luminosa.
P a s s o u a o b s e r v a r a poeira invisvel girando na fita de luz.
O a m b i e n t e e r a a p a r e n t e m e n t e limpo; m a s e s s a projeo exibia
toda a i m p u r e z a suspensa em partculas no ar.
Um raio tnue desvendava-lhe os mistrios de sua inquietao.
Antes tivesse p e r m a n e c i d o na o b s c u r i d a d e despercebida: a inteligncia revelava-lhe t o d a s as anomalias da constituio excntrica.
Criana, tivera pavor s t r e v a s em q u e Milonga o d e i x a v a ; h o m e m
feito, tinha m e d o da luz.
E e x e r c i t a v a um d o m de p i e d a d e , alm dos limites h u m a n o s .
S u a b o n d a d e prdiga, mal-empregada, desassossegava-se c o m o
martrio trivial da seca q u se reproduzia ciclicamente.
E s s a assistncia distraa-o, s v e z e s , do conflito s e c r e t o . Era a satisfao de tirar do sofrimento alheio um motivo de alegria ntima, a
conscincia de ser b o m . Um meio de e s q u e c e r a prpria d o r para sofrer a d o r dos o u t r o s .

***
N i s t o , c o r t o u o s ares d o M a r z a g o u m silvo extraordinrio, c o m o
se t o d a s as cigarras e s t r i d e n t e s tivessem e n s a n d e c i d o n u m s grito.
Um sibilo d e m o n a c o !
E r a o assobio d o s m o l e q u e s da bagaceira, c o m dois d e d o s na b o 17

ca. S se o u v i n d o . A molecagem na sua e x p r e s s o mais safada: fi-iiii-i-iii...


Parecia u m a p a t u s c a d a de gorilas vadios. O estalido d a s galhofas
infernais.
Estralejava o apito a g u d o , a c a n a l h a d a de sete flegos; fi-fi-i-ii...
L c i o , s u s p e i t o s o , saltou a j a n e l a .
E, em sua dplice organizao m o r a l , em sua sensibilidade contraditria, ria-se e comovia-se.
E r a um retirante que levava a m e invlida e s c a n c h a d a no p e s c o o.
J t o falto de foras, n o tinha o u t r o meio de carreg-la.
A c u a d o pela surriada vexatria, fraqueava. Passou-lhe uma nuvem pelos olhos. Desequilibrou-se. E a m b o s , me e filho, caindo de
b o r c o , beijaram, sem querer, a T e r r a da P r o m i s s o . . .

D A R O L A D E I R A A O EITO

C h . . . t c h . . . ch... tch.
E r a um p s s a r o m a d r u g a d o r q u e a n u n c i a v a a a n t e m a n h , primeiro
que o galo-de-campina, que toda a o r q u e s t r a o das m a t i n a s . Um xexu d e s g r a c i o s o , c o r d a s barreiras enferrujadas, a q u e os e s c r a v o s
d a v a m c a a , a b o d o q u e , nos dias de folga, p o r q u e regulador q u e
no se a t r a s a lhes m a r c a v a , p o n t u a l m e n t e , o incio d a s tarefas dirias.
O feitor, c o m o ainda c h a m a m a esse a r a u t o i m p o r t u n o , p e g a v a no
estribilho t e m p o r o , tirando do s o n o a cabroeira e x t e n u a d a , c o m o
c o n t r a t a d o pelo s e n h o r rural: c h . . . t c h . . .
N o e r a um c a n t o : era um grito. E, de longe, s o a v a , imperativamente: j . . . j . . . jaj...
E p o r q u e n o o f r e c e caf? replicavam os t r a b a l h a d o r e s j e junos.
Assim q u e o x e x u entrou a gritar, Manuel B r o c a b e r r o u no terreiro d o s sertanejos:
h o r a , c a m b a d a ! L e v a n t a pra pegar!
Pirunga r e s p o n d e u do e n g e n h o , o n d e pernoitava.
18

E l se foram os dois, de e n x a d a s , no ao o m b r o , maneira dos


brejeiros, m a s s o b r a a d a s , c o m o q u e m leva a vara de ferro. E r a a
m e s m a h o r a e m q u e c o s t u m a v a m soltar a s vacas curraleiras.
P e n s a n d o que iam c a m p e a r , Pegali saiu atrs.
Ao q u e b r a r da b a r r a a a r r a i a d a ainda hesitante.
Pirunga e s p i a v a a lua azul, c o m o u m a bola de anil, c u i d a n d o q u e
era o sol n a s c e n t e .
Pegaram na limpa da c a n a r e c m - n a s c i d a que s o m b r e a v a de verde
a terra preta.
J o o T r o u l h o l a m e n t a v a que no fosse cana m a d u r a . As folhas
velhas cortavam-lhe a c a r a , m a s , q u a n d o o feitor d a v a as c o s t a s , ele
se a g a c h a v a e mordia com c a s c a e t u d o , feito guaxinim.
Os t r a b a l h a d o r e s c u r v a d o s sobre as e n x a d a s formavam um magote de c o r c u n d a s infatigveis. M a n t i n h a m , assim, a atitude natural
do servilismo hereditrio.
Manuel Broca feitorizava:
Agenta o t o c o ! Sustenta o rojo!
E, forando um mais zorreiro a deitar a alma pela b o c a :
C a b r a e n c o s t o ! Est r e m a n c h a n d o , m a n z a n z a ? !
Estimulava o u t r o que nada mais podia dar de si:
Q u e r o v e r , cabra e n x a d e i r o !
O m e s m o j u g o do c a p a t a z ; a m e s m a disciplina do trabalho servil.
Havia alguns tipos slidos, e n c o r p a d o s , de t r o n c o s fornidos
cada animalo que era um milagre de resistncia. O u t r o s , de aparncia acabadia, parecia que no podiam c o m a e n x a d a ; m a s , faziam
das fraquezas foras e d a v a m c o n t a da tarefa com o m e s m o vigor hercleo.
Pegali r o s n a v a no aceiro a s s e d i a d o p o r u m a cainalha agressiva.
No havia gozo c o b a r d e que no quisesse ir a ele.
O co d e s t e m e r o s o , afeito a d e p e n d u r a r - s e no focinho d o s barbates ferozes, tinha o rabo e n t r e as p e r n a s , pegado na barriga.
Fazia p o u c o na c a n z o a d a hostil. N o a v a n a v a , n e m fugia. F i c a v a
onde e s t a v a , a m o r d e r o p b i c h a d o .
E os retirantes certificavam-se de q u e , entre brejeiros e sertanej o s , nem os c a c h o r r o s se d a v a m .
As e n x a d a s ronceiras tiniam na crosta endurecida, virgem da explorao mecnica.
Culturas m e s q u i n h a s d e f o r m a v a m a terra prdiga. E r a m arranhaduras superficiais, em vez de lhe rasgarem as e n t r a n h a s p a r a as fec u n d a e s profundas
O solo maltratado pelas colheitas sucessivas, sem s u p r i m e n t o s
19

n e m t r g u a s , porque era tido em c o n t a de incansvel, c o m o o h o m e m ,


afeava-se nesse regime d e p a u p e r a n t e .
L c i o insistia pela i n t r o d u o da tcnica agrcola. C o m os fumos
de n o e s prticas, adquiridas no vale do Paraba e em usinas de acar de P e r n a m b u c o , intentava aplicar o u t r o s p r o c e s s o s de aproveitamento.
Sabia que se t r a n s f o r m a v a m t e r r a s infrteis em o s i s . E via o seu
osis tornar-se sfaro.
C o n h e c e n d o que o s t r e c h o s e x a u s t o s j p o u c o d a v a m d e si, indic a v a u m a r e a mais r e p o u s a d a nas e x t r e m a s do latifndio, t e r r e n o s
lavradios c o m fome de s e m e n t e i r a s :
Na grota funda a c a n a de virar.
O s e n h o r de engenho n o ia c o m e s s a s idias:
N a q u e l e m u n d o ? V carregar!...
E o r a p a z , m o s t r a n d o a c a n a n o d o s a e curta:
O s e n h o r prefere e s s e s a p . mais leve e est em c i m a do engenho...
E s s a s intromisses na e c o n o m i a rural o incompatibilizavam, cada
vez m a i s , c o m o gnio do pai.
M a s , ele tinha a intuio da sensibilidade da terra.
Via a b r o c a , c o m o r a s g e s na paisagem.
O b s e r v a v a a q u e i m a d a c o b e r t a de c a r a c a r s que tinham a vocao
do cinzeiro. E apiedava-se da gleba sofredora levada a ferro e fogo: a
e n x a d a e a coivara.
C h e g o u Soledade c o m o a l m o o .
O s c a b r a s pararam, l a n a n d o o s d e d o s sobre a s t e s t a s borbulhant e s , na rega dos suores, c o m o o v a p o r dos c o r p o s q u e n t e s .
U n s apoiavam-se ao c a b o da e n x a d a , c o m a p e r n a b a n d a .
J um t a n t o clara, ela v o l t a v a ao que era.
Refazia-se. Mais cheia do c o r p o . Tinha vindo a m a r e l a , c o r de flor
de algodo. E m b r a n q u e c i a e r o s a v a - s e , levemente.
Parecia u m a p o m b a b r a n c a e x t r a v i a d a num b a n d o d e a n u n s pretos.
A c u p i d e z das olhadelas ardia-lhe c o m o o plo da c a n a .
O s t r a b a l h a d o r e s , e m tiras, e s m o l a m b a d o s , e n t r e m o s t r a v a m o s
c o r p o s o l e o s o s . E j t i n h a m m o s t r a as costas a s s a d a s no trabalho
soalheiro.
J o o T r o u l h o com q u a s e t u d o de fora.
Valentim, v e x a d o , postava-se na frente dela, c o m o p a r a tomar-lhe
a vista:
20

V-se e m b o r a , minha f i l h a ! N o e s t vendo e s s a gente t o d a esgulepada?


O feitor, t a m b m caindo em si e dirigindo-se a um c a b r a q u e perm a n e c i a apoiado:
M o a m b e i r o ! S vive d a n d o de m a m a r e n x a d a !
A v e z a d o s a o eito, n e n h u m d a v a por e s s a s p e n a s . A o i n v s . Q u a s e
t o d o s assobiavam. Muitos c a n t a v a m . T a m b m se a d o r m e c e a fome,
c o m o s crianas, c a n t a n d o .
N o se queixavam da labuta improdutiva:
pra castigar o c o r p o .
V e z por outra, levantavam os olhos ao cu, no p e d i n d o miseric r d i a , m a s r e p a r a n d o no sol a hora d d e s c a n s o .
Mourejavam com e s s a nica e s p e r a n a : o toque do b z i o : t u m ,
t u m . E r a u m a toada mais grata q u e todas a s msicas d a n a t u r e z a .
E s s a resignada submisso s necessidades de c a d a dia no r a
p a r a g a n h a r a vida: era, a p e n a s , p a r a no perd-la.
U m desperdcio d e energia. U m esforo d e s p r e m i a d o . M a s nen h u m se deixaria ficar em c a s a ; tinham o tdio da inao.
B r o c a advertiu a Latomia:
Voc deixou m a t o na p r a a !
E o mulato:
um matim c o m e n d o , assim, pelo m e n o s , u m a slaba.
E n q u a n t o os outros a l m o a v a m , Pirunga foi ver o c a v a l o .
O s e n h o r de e n g e n h o n o queria bicho na terra. N o p u s e r a dvida em deix-lo ficar, p o r m c o m o seu, na bagaceira.
E o sertanejo oferecera-se p a r a trat-lo de graa.
Viera Deus sabia c o m o c o m e n d o o resto de milho que poderia ter servido de alimento a o s retirantes. A r r a o a d o pela m o .
Pirunga gabava-o:
U m a pimenta. Z o m b a v a de qualquer perna.
E r a um animal amarelo-caxito, calado de p r e t o .
D e v e r a ter sido, q u a n d o n o bonito, muito vivo. M a s e s t a v a desbarrigado, c o m a crina r a t a d a e a c a u d a murcha e encolhida.
Pirunga batia-lhe na a n c a c o m a m o e ele virava-se c o m o beio
p e n d e n t e , c o m o avisando q u e at aquela carcia lhe doa. E ainda
a b a n a v a a c a b e a para dizer q u e no queria mais.
Valentim avergava-se sobre a e n x a d a .
N o precisava anzolar-se, c o m o os outros. At a retirada se mantivera t e s o e gil, mas as ltimas p r o v a e s pesavam-lhe na c o r c u n d a .
J a m a i s um galo de p o t r o c h u c r o ou um pau a t r a v e s s a d o na ca22

tinga o d e r r u b a r a da roladeira; e n t r e t a n t o , um e m p u x o da seca deralhe e s s e b a q u e no eito.

Pirunga deixava para ele a carreira mindinha, a q u e morria entre


as o u t r a s . E demasiava-se na faina p a r a ajud-lo a tir-la.
L a t o m i a e s t r a n h a v a e s s a solidariedade sertaneja:
N o t e n h o penhe de trabalhar pra m a c h o . Q u e m quiser q u e se
agente.
E a d m i r a v a Pirunga:
T a n t o m a t o t e n h a . . . Q u a n d o pega, s arreia
D e p o i s , e s c a r m e n t a v a o velho:
Voc no viu n a d a ! Q u e dir se fosse no
cisca em cima da formiga preta que faz gosto. E o
P e n s a q u e mais que a n d a r e s c a n c h a d o ? . . . Pensa
santos leos?...

no fim.
i n v e r n o . A gente
p fica um rebolo.
q u e mijo de padre

T r o u l h o acudiu:
Formiga no nada: frieira que ela. A que o p vira toicinho.
Valentim notou, e n t o , q u e t o d o s trabalhavam d e s c a l o s .
J n o tinham plantas d e p s , p o r m , cascos e n d u r e c i d o s .
E, v e n d o o canavial verde-claro na vegetao v e r d e - e s c u r o , lembrou-se do algodoal sertanejo c o m o u m a n u v e m b r a n c a p o u s a d a na
vrzea.
Os c a c h o r r o s brejeiros corriam e voltavam g a n i n d o .
A c u a v a m o canavial a d u l t o , da outra banda. E, ao mais leve farfalho, uivavam funebrernente.
O feitor foi ver o que e r a . E s t u m o u a c a c h o r r a d a . E os cadelos
calaram-se e m e t e r a m o r a b o e n t r e as pernas.
Sobressaa, de t r e c h o a t r e c h o , na ondulao v e r d e , um l o m b o escuro.
Pegali cheirou as p e r n a s de Valentim e endireitou a orelha para
um p o n t o que a c a m a v a . Latiu, a c u a n d o .
O partido e s t r e m e c e u n u m a estalada de c a n a s q u e b r a d a s .
E ouviu-se um grunhido e s t r a n h o , um berro de animal dolorido.
U m a o n d a de frio enregelou toda a bravura mestia do Marzago.
J o o T r o u l h o tremia c o m o a milh sacudida pelo v e n t o .
23

E n t o , Pirunga a v a n o u i m p v i d o e mergulhou n a s t o u c e i r a s agitadas.


R e c r e s c e u a ansiedade c o b a r d e .
O s c e s encolhiam-se n o a c e i r o .
M a s seguiu-se um silncio intrigante. E boiavam n a s folhas duas
c a b e a s imveis.
E r a Pirunga a b r a a d o c o m X i n a n e q u e tinha ido, alta n o i t e , furtar
o aipim q u e havia plantado e, p r e s s e n t i n d o os vigias, se e n t o c a r a no
canavial.
L e v a d o p r e s e n a do s e n h o r de e n g e n h o , este o r d e n o u ao feitor:
L a m b u z e o traseiro de mel de furo e assente no formigueiro.
Xinane alarmou-se:
P o r a m o r de seu L c i o ! . . .
Lambuze, bem lambuzado!
P o r a m o r da defunta!...
N e s s e c a s o , d-lhe u m a s t r o n c h a d a s .
M a n u e l B r o c a prontificou-se:
F i c a p o r minha c o n t a . T r i n t a l a m b o r a d a s .
E, ali m e s m o , u m a , d u a s , t r s . . . L o g o na terceira, o c a b o c l o grunhia e mijou-se.
O x e x u deu-lhe u m a vaia em t e r m o s .

U M A HISTRIA QUE SE REPETE

Valentim Pedreira c o n t o u u m a histria que t e m sido reproduzid a , n o s ciclos mortais da seca, p o r milhares de bocas famintas.
N i n g u m pergunta a o retirante d o n d e vem nem p a r a o n d e vai.
um h o m e m q u e foge do seu d e s t i n o . C o r r e do fogo para a lama.
D i s c o r r e u neste teor:
Eu n o d a v a definio de seca. Na era de 45 no me entendia
de g e n t e . J era um tanto g r a n d o t e ; m a s menino assim m e s m o
s g u a r d a l e m b r a n a de besteira. Vi o m u n d o c o m os m o r c e g o s . E r a
tanto do morcego!
E , indicando Pirunga:
Em 77 este e r a pichititinho. E, indagora, p a r e c e q u e e s t v e n d o
a m e , l dele, na h o r a da retirada.
Reatou:
N e s s e t e m p o fazia gosto o s e r t o . T o d o o m u n d o c o n t a v a van24

tagem. Acontecia algum repiquete em 51, 53, 60, 69, 70. M a s fervilhava de g a d o . S este seu criado tinha pra mais de 100 vacas de
ponta serrada e muito boi e r a d o . M i u n a nem se falava. E era um fazendeiro c h u . Q u a n d o havia morrinha. era que se c o n t a v a algum
prejuzo. O serto, livrando a seca, no tem m e r m a .
Foi q u a n d o veio o r e b e n t o de 77. Meu mano foi mais sabido:
v e n d o a coisa preta, torrou t u d o n o s c o b r e s , at o c a s c o da fazenda.
E saiu p o r esse m u n d o c o m toda a rafamia. T a m b m levou um sumio!
Q u e mal pergunto, m e u v e l h o , q u e marca foi e s s a na b o c h e c h a ? inquiriu Manuel Broca.
Valentim no r e s p o n d e u . E virou-se para Lcio que t a m b m o b servava a cicatriz curiosa:
N e m me batia a p a s s a r i n h a . E agentei o rojo. Foi um teitei
c o m o ningum no magina...
M i n u d e n c i o u , em seguida, na sua linguagem brasileira, esse esfacelo de u m a populao fantstica que se finava de pura fome no pas
das e n g o r d a s forasteiras. Referiu o canibalismo de Dionsia dos Anj o s , a mulher antropfaga, de P o m b a l , que matara e c o m e r a u m a menina de 5 a n o s . E outros lances p a v o r o s o s .
Falou g r o s s o :
Fiquei na estica. M a s , c o m a vontade de D e u s , n o pedi n e m
roubei. T o d o o meu pessoal na c a c u n d a e at dei conta de gente que
era m e s m o que ser minha.
E p o u s o u , p a t e r n a l m e n t e , a m o firme no o m b r o de Pirunga.
L c i o comovia-se:
M e u velho, voc um santo-heri!
Isto da vida, m o o . O q u e tem de a c o n t e c e r tem muita fora.
E continuou:
Eu j ia levantando a c a b e a , me endireitando, q u a n d o apertou
88. Alguma neblina era s pra a p a g a r a poeira. C h u v a s salteadas.
F i q u e i , o u t r a vez, no ora-veja, sem semente de g a d o . Voou o derradeiro p a t a c o do p-de-meia.
A c a b o disso, essa que foi a seca grande: de primeiro, o rebento
era p o r fora; esse a fui e u , p o r q u e a gente tambm seca p o r d e n t r o .
Seca, fica t u d o mirrado o e s p r i t o , a c o r a g e m . . .
S tem que as lgrimas no secam aparteou o e s t u d a n t e .
E aduziu:
Q u a n t o mais a alma seca, mais elas c o r r e m , c o m o se n o viessem da alma. a dor que e s p r e m e , at a ltima gota.
25

Sertanejo no sabe chorar. o que tocar sorte retorquiu


Valentim Pedreira.
E, olhando para a filha:
E s t a aqui ficou com obra de 5 a n o s . Diz que as santas a n d a m
sempre c o m os anjos; m a s . minha santa se foi e ela ficou p e n a n d o .
Soledade sorriu, pondo a vista no c h o . E Valentim calou-se,
olhando para ela.
Sobreveio a seca de 1898. S se v e n d o . C o m o que o cu se conflagrara e pegara fogo no serto funesto.
Os raios de sol pareciam labaredas soltas a t e a n d o a c o m b u s t o t o tal. Um painel infernal. Um incndio e s t r a n h o que ardia de cima p a r a
baixo. N u v e n s v e r m e l h a s c o m o c h a m a s que v o a s s e m . U m a ironia d e
ouro sobre azul.
O sol que para dar o beijo de fecundidade d a v a um beijo de
morte longo, c u s t i c o , c o m o um cautrio m o n s t r u o s o .
A poeira levantava e parecia o u r o em p .
Os o c a s o s c o n g e s t o s entravam pelas trevas em ndoas sangneas.
S o m b r a s frvidas, c o m o um cinzeiro em b r a s a s . Noites t o s t a d a s .
Um d e r r a m e de luz exaltada que parecia o sol fulminante d e r r e tido nos seus a r d o r e s .
V e n t a v a . N o era o vento pontual da b o c a da noite t o d o sujo de
p c o m o uma criana traquina.
Era um sopro do inferno que, alteando-se, parecia q u e r e r rasgar as
n u v e n s para a c e n d e r a fogueira.
A flora desfalecida.
Durante um a n o a fio, uma gota d ' g u a que fosse no refrescara a
queimadura dos campos.
D e p o i s , no se via um pssaro: s v o a v a m muito alto as folhas secas.
B e m . Um p a s s a r i n h o estava sob a ltima folha da u m b u r a n a ,
c o m o debaixo de um guarda-sol. Caiu a folha e o passarinho abriu o
bico e t a m b m caiu, com as asas a b e r t a s .
O p a n a s c o pulverizara-se: girava c o m a poeirada chamejante.
At o n d e d a v a a vista se a c h a t a v a a paisagem cinrea. A desola o da m e s m a cor.
A capoeira esqueltica levantava os g a r r a n c h o s , c o m o d e d o s crisp a d o s . E d a n a v a , fora, nessa tragdia, c o m o b o c h o r n o fogoso.
A catinga formava um aranhol.
C o m o era feia a natureza resseca na sua n u d e z de pau e p e d r a !
Os r e b a n h o s aflitos prostravam-se no c h o e s b r a s e a d o .
Valentim exprimiu todo esse horror canicular:
26

Era u m a calma! O cu b r a n c o , c o m o um espelho, n o se mexia; o m a t o parecia de c h u m b o , q u i e t o . C o m o quem s u s p e n d e o


folgo.
Um c a l o r o , c o m o se as profundas estivessem flor da terra.
M a s . logo, ficou tudo c o m o varrido de n o v o . O vento b r a b o , cisc a n d o , varria at as telhas, at as n u v e n s .
A g e n t e , se o esprito no me e n g a n a , sopra pra esfriar; m a s , esse
sopro era pra queimar.
E , p u x a n d o u m suspiro que r e t e v e :
Eu n u n c a que deixasse a minha terra. A gente teimava em ficar
e o sol t a m b m teimava, c o m o q u e m diz: " A q u i estou g r i m p a n d o de
c i m a . " E m p e r r a d o de dia e de noite, p o r q u e nunca se viu lua mais parecida c o m o sol.
Pintava u m a nuvem de c h u v a . Corria tudo besta, e s c o g o t a d o ,
c o m o se fosse a p a r a r a gua com a b o c a . Era urubu at dizer basta. A
u r u b u z a d a vinha a p u s do resto da carnia. D por vista u m a nuvem
de c h u v a .
A risada da seriema parecia um s o l u o .
As p e d r a s se esfarelavam, c o m o t o r r o de acar.
S havia de verde os olhos da m e n i n a ? perguntou L c i o .
Valentim fez q u e no ouvia. E S o l e d a d e derreou o p e s c o o , como
ave que mete a c a b e a sob a asa.
V o c c o m e u fogo! disse o feitor.
Ele a c h o u a e x p r e s s o usual ajustada ao seu martrio:
Diz b e m . Comi fogo em vida. M a s um h o m e m um h o m e m .
E a c r e s c e n t o u , de cabea inclinada:
Os r a p a z e s foram arribando de um a um. Diziam que era pra
me trazer um adjutrio. E nem eles, n e m nada. O Acre c o m o o outro m u n d o : p o d e ser muito b o m , m a s q u e m vai no volta mais. E diz
que dinheiro de borracha encurta q u a n d o ela estira,
Pegou no b r a o de Pirunga:
E s t e , sem ser filho, no quis c o r r e r m u n d o : ficou p r a me fazer
companhia. T e m um pegadio gente q u e faz gosto.
O rapaz o l h o u , de r e v s , para Soledade q u e , ainda um t a n t o desb o t a d a , na beleza amortecida, ergueu a m o para c o m p o r o c a b e l o e,
caindo-lhe a m a n g a , entremostrou um b r a o b r a n c o c o n t r a s t a n d o com
a luva m o r e n a de sol.
E Valentim explicou:
T a m b m , no era pra m e n o s . Q u a n d o tomei conta dele, era
deste t o p e . Foi em 77. O pai tinha m o r r i d o de comida braba e a me
era minha a p a r e n t a d a . Eu no podia a g e n t a r t u d o , porque ela tinha
28

uma miualha de filhos e as coisas j a n d a v a m vasqueiras. A. ela


saiu, aos e m b o l u s , por esse o c o de m u n d o , deixando o mais mirim.
Era de arrepiar cabelo. O bichinho corria pra me num berreiro de
borrego enjeitado. E ela voltava do ptio. Enganava, prometia mundos e fundos (coitada! o que que ela podia prometer?), e, era sair de
novo, o m e n i n o se desgoelava. at ficar roxo, estatelado no c h o .
Depois, a n d o u c a a n d o a me at d e n t r o dos buracos de tatu. Ficou
quase prejudicado. Q u a n d o se aperreia muito, d pra perder a bola.
E tornou narrao:
D e u s foi servido acabar t u d o , seno ningum me alua de l.
Queria ficar a b r a a d o com o m o u r o da porteira, at esticar a canela.
Mas minha vida no me pertencia... Q u e m tomava conta de minha filha? Q u e m carregava minha c r u z ?
Baldara-se-lhe todo o herosmo sertanejo. Ainda bem no se refazia de um cataclismo, sobrevinha-lhe o u t r o . Horrendos d e s a s t r e s desorganizando a economia r e n a s c e n t e . O serto vitimado: todo o seu
esforo aniquilado pelo clima arrtmico, perturbador dos valores, regulador inconstante dos destinos da regio.
E Valentim saiu, ao d e s b a r a t o , pela soalheira estendida nas estradas que iam d e s a p a r e c e n d o nas v r z e a s nuas.
Calcava essa lonjura pelos p r a m o s a d u s t o s que se lascavam na
argila refrangida.
O sol, v e r m e l h o c o m o um fundo de t a c h o , escaldava o saibro e
acendia o pedregulho.
Canseiras invencveis, desde as m a n h s a b r a s a d a s . pelos plainos
intrminos.
Calores m o d o r r a i s nas c h a r n e c a s e s m o i t a d a s .
Um m o n s t r o clandestino resfolegava. Era o nordeste, no seu advento p u l v e r o s o . aos r e m o i n h o s . q u e r e n d o danar a ciranda com os
retirantes.
D e p o i s , os Cariris Velhos de uma sequido mais d e s o l a d a . U m a
natureza quaresmal de cactos s o b r e v i v e n t e s , e r e t o s c o m o crios acesos em frutos de fogo.
Dessa altura se divisava a perspectiva percorrida, viso de um
sol que d o u r a v a tanta misria, tudo cor de o u r o . A plancie alagada da
fulgurao vertiginosa. At as colinas avulsas se afiguravam blocos
de luz.
E os sertanejos, e n c a n d e a d o s , esfregavam os olhos, c o m o se estivessem c h o r a n d o , nessa derradeira mirada de saudade.
O papagaio vinha arrepiado, c o m m e d o de ficar s.
29

Soledade quisera solt-lo v e n t u r a ; m a s , ele no sabia mais voar


e, p e r d e n d o o v o , ganhava esse p e c o destino h u m a n o . . .
O louro tinha a p r e n d i d o , c o m o t o d o s os outros papagaios d o m s ticos, o aviso inconsciente, qual u m a previso do seu fim:
Papa-gai' no co-meu m o - r r e u .
E r a o estribilho da fome.
E finou-se, encorajado, e s c o n d e n d o - s e sob as a s a s , n u m a splica
aflitiva:
Sol'dade! Sol'dade!...
C o r i s c o esse chegou em p a z e a salvamento, c o m e n d o o resto
de milho, de que todos se p r i v a v a m , c o n t a n t o q u e S o l e d a d e n o
viesse a p .
Pegali e s t a v a sentado sobre as p a t a s traseiras c o m os olhos nostlgicos fixos em Valentim, c o m o q u e e s c u t a n d o .
O sertanejo lembrou:
Calcule que esse sujo ia c o m e n d o a perna de um anjo m o r t o na
beira da e s t r a d a . T a m b m dei-lhe u m a preacada!...
N i s t o , ouviu-se um e s t r o n d o a l a r m a n t e .
L c i o e Manuel Broca e r g u e r a m - s e n u m salto.
Valentim e s b o o u um riso fatigado na b o c a r e e n t r a n t e . S o a r a
c o m o u m trovo promissor.
A estrebaria viera abaixo c o m as t r a v e s c a r c o m i d a s , i m p u n e m e n te, pelo cupim roaz.
O cavalo soerguia-se nas p a t a s dianteiras, de j o e l h o s , e, a c a d a esforo, resfolegava num gemido a u t n t i c o . N e s s a atitude irmanava-se
pela d o r s u p r e m a condio h u m a n a .
Pirunga dirigiu-se ao s e n h o r de e n g e n h o :
D licena, major?
E disparou um tiro na c a b e a do animal.
Valentim voltou sentenciando:
O q u e tem de acontecer tem muita fora. D e u s foi servido me
livrar desse m o n d .
E r e m a t o u a sua odissia:
A gente sai por este m u n d o sem saber pra o n d e vai. Q u a n t o
mais a n d a , m e n o s quer chegar. P o r q u e , se fica, est de m u d a e t e m
pena de ficar. E, e n q u a n t o a n d a , p e n s a q u e vai voltar.
L c i o interrompeu:
N o i n t e r r o m p e n d o . . . C o m o que se tem saudade d e s s a terra
infernal?
M o o , sertanejo no se adorna no brejo. O serto pra ns
c o m o h o m e m malvado pra mulher: q u a n t o mais maltrata, mais se
30

quer b e m . Aperreia, b o t a pra fora e, na primeira fuga, se volta em


cima d o s p s .
E, levantando-se para fechar a porta:
E foi a seca que me deu c o r a g e m . Porque saber sofrer, m o o ,
isso que ter coragem.

NEM DRADAS NEM H A M A D R A D A S


Da casa-grande at a c a c h o e i r a se alava um r e n q u e de cajueiros
revelhos t o c o n c h e g a d o s u n s a o s o u t r o s que formavam mal c o m parando u m a baita lagarta v e r d e de ps cinza.
Solidarizavam-se e s s a s r v o r e s familiares no c o m u n i s m o d o s frutos (amarelo c o m e n c a r n a d o e vice-versa) e no e n t r a n a d o da ramaria
em c r u z e s e o u t r o s smbolos pacficos. M a s , q u a n d o d a v a o v e n t o , arregaando as folhas, o q u e p a r e c i a um a b r a o vegetal e r a u m a agresso a l a r m a n t e .
D o b r a v a m - s e o s galhos e m a u t n t i c o s cotovelos. A c o t o v e l a v a m se. U m a v a r a v a a c o p a da o u t r a mais chegada c o m a v e r g n t e a hostil.
Ramos cados sobre r a m o s subjugados.
E, se e r a mais rija a refega, engalfinhavam-se, a o s sacolejos,
fronde c o m fronde, c o m o m u l h e r e s q u e se arrepelam.
N e s s e s atritos, r a n g e n d o , g e m e n d o , gingavam, c o m o s e q u i s e s s e m
saltar d a s razes.
N o confraternizavam: a c a l m a a p a r e n t e era u m a trgua de rinha
de galos q u e se c r u z a m os p e s c o o s para se refazerem.
E n t o , havia um cajueiro curiosssimo. Bipartia-se em galhos desiguais: u m , hiertico, linheiro, parecia q u e r e r e s c o r a r o c u ; o outro,
de u m a humilde horizontalidade, deitava-se, literalmente, no c h o .
E r a nesse poiso natural q u e L c i o ia, s m a t i n a d a s , r e p a s s a r seus
romances convulsivos. Em vez de interpretar o clssico " l i v r o da nat u r e z a " , d e s d e n h a v a e s s a s folhas v e r d e s ilustradas p o r t o d o s os matizes e q u e s tm sido lidas pela r a m a , p a r a , em to ledo e fragrante
retiro, afundar-se na d e g e n e r e s c n c i a romntica, e x a s p e r o da sensibilidade c o m o sal em ferida b r a b a .
M a s , a c e r t a r a de se e n a m o r a r da figurinha fictcia de Sibil, no tablado abominvel do e m p r e s r i o j u d e u .

31

A mulher era um anjo... d e p o i s da q u e d a . Q u e d a , de v e r d a d e , que


p r o d u z mrtires e no d e m n i o s . . . (O pobre do anjo m a u ! . . . ) .
Seria c a p a z de pedir-lhe a m o . . . p a r a levant-la d e s s e inferno.
O a m o r era um consolo. F u n o de enfermeiro ou de e s m o l e r . A
beleza "o longo e obediente s o f r i m e n t o " da Circe...
E e v o c a v a as famosas p a i x e s plebias. N o exclua d e s s a baixa
do c o r a o nem a humildade da c o r . S a l o m o , o padroeiro d a s senzalas:
Nigra

sum,

sed formosa.

E n o s s o poeta Gonalves C r e s p o ganhara esse lirismo pixaim em


Portugal:
s negra,

sim, mas que formosos dentes,


Que prolas sem par!

Lafcdio H e a r n q u e r e n d o c a s a r c o m uma pretinha; "Baudelaire...


E s t e v e em levantar-se e gritar: " V i v a o a m o r c r u z a d o q u e c u r o u
nostalgia africana e coloriu o m e u B r a s i l ! "
N i s t o , Soledade abeirou-se d e l e , sem se fazer sentir, c o m o se tivesse p o i s a d o de um vo.
T i n h a o cabelo m o l h a d o . E u m a c a r a . . . (que cara!...) de mulher
bonita c o m raiva.
Q u e d o u - s e , sem dar sinal de si, c o m o se d e v e s s e ser n o t a d a pelo
cheiro.
F i c o u , assim, bons d e z m i n u t o s , at que r e s m u n g o u , c a d a vez
mais arrufada:
Eu vinha da cachoeira...
E , c o m o u t r o ar:
Avistei o senhor a q u i . . .
P a r e c i a q u e r e r lanar u m a confisso q u e lhe c a u s a v a nojo p a s s a r lhe pela b o c a . H confidencias q u e aliviam c o m o um v m i t o , m a s repugnam tambm como um vmito.
L c i o acolheu-a com um sorriso s nos lbios e c o n t i n u o u a ler.
E n t o , ela sentou-se no cajueiro ao seu lado. E ele c o m e o u a fic a r c o m o os cajus, amarelo e e n c a r n a d o , m u d a n d o de cor. T o d o contrafeito, p a r e c i a recear ser s u r p r e e n d i d o nesse convvio suspeito.
Soledade procurou ler e caiu-lhe da c a b e a mal e n x u t a u m a gota
d ' g u a no livro a b e r t o , c o m o u m a lgrima ocasional.
L c i o levantou-se, v e x a d o :
Q u e isso, menina?
32

E descobriu-lhe ainda um p o u c o de tristeza nas u n h a s a r r o x e a d a s


pelo b a n h o . . .
Ela d e s c o n v e r s o u :
O s e n h o r quer bem a seu pai?
O e s t u d a n t e p e n d e u a c a b e a h u m i l h a d o . Acudiram-lhe as c e n a s
de a s p e r e z a desse h o m e m brutificado pelo trato s e m i b r b a r o do engenho. J s e g r e d a v a m o s m o r a d o r e s : " A q u e l e d coice n o v e n t o . "
E, i n t e n t a n d o confort-la:
N o ligue, Soledade: meu pai p a n c a d a pra t o d o o m u n d o .
Alteando o seio, q u a s e sem se sentir, ela corrigiu:
N o p o r ser e s t r o m p a . . .
E n t o , diga...
Foi n a d a . . .
E, evasivamente:
p o r q u e ele no quer b e m ao s e n h o r . . .
R e c e n d i a um cheiro misto de resina e cabelo m o l h a d o . S e m falar
no cafezal a r o m t i c o .
U m a laranjeira moa e roante c o m o q u e se ajoelhava p a r a c a s a r ,
com o vu e a grinalda.
A n a t u r e z a matinal, dando-se a b e b e r , aos s o r v o s , ia bulir c o m os
c o r a e s , l d e n t r o .
E, n u m interesse mais de piedade q u e de o u t r o s e n t i m e n t o , L c i o
reparou em S o l e d a d e .
J n o e r a a retirante d e s b o t a d a e a c a b a d i n h a , mas a m o a capitosa, de graas d e s a b r o c h a n t e s .
Refeita e m i m o s a , semelhava c e r t a s flores que d e c a e m ao anoitecer, p a r a , s primeiras o r v a l h a d a s , m a d r u g a r e m com mais frescor.
A s b o r b o l e t a s beijavam-se nos estalidos d a revoada, c o m o s e u m
p-de-vento tivesse d e s p e t a l a d o o c a m p o florido, l e v a n t a n d o e s s a
doida policromia.
Os galhos do cajueiro c o m p r o v a v a m as desigualdades acidentais
filhos do m e s m o t r o n c o com d e s t i n o s d s p a r e s .
S, e n t o , L c i o notou esse c o n t r a s t e .
E Soledade fremia n u m alvoroo i n c o m p r e e n d i d o .
Sentia o primeiro toque da p u b e r d a d e q u e ensaia adivinhar os mistrios interiores. U m a inquietude d e virgem n a inscincia d o a m o r
feito de curiosidade e de m e d o .
Cortejada por t o d a p a r t e , d e s a s s o s s e g a d a , receosa, refugiava-se
na c o m p l a c n c i a honesta do e s t u d a n t e , discernida c o m o instinto divinatrio c o m que as mulheres mais ingnuas interpretam os sentim e n t o s que as r e q u e s t a m .
34

O s e n h o r de e n g e n h o , to f e c h a d o , p a s s a r a p o r ela, s e m olh-la.
Baixara-se a d i a n t e . Parecia e s t a r a c o l h e r as flores marginais. De fato, c o l h e r a - a s . E, e s p e r a n d o - a , oferecera-lhas um m o l h o r o x o
com um riso arregaado no focinho insacivel. Aceitara, s e m v e r ,
com u m a humilde confuso. M a s , r e p a r a n d o , era a florzinha indiscreta e s p i a - c a m i n h o que as m u l h e r e s t a n t o hostilizavam. As lavadeiras d e i t a v a m a t r o u x a no c h o p a r a arranc-la ou a e s p e z i n h a vam furtivamente.
Jogara-as fora, c o m o q u e m solta um inseto nojento, p e g a d o inadvertidamente.
E , a g o r a , m a i s calma, refletia: T a l v e z n o fosse p o r mal. P o d e r i a
ter sido um a v i s o o p o r t u n o . E s p i a - c a m i n h o um n o m e q u e e r a u m a
advertncia, c o m o q u e m diz: " P o r o n d e q u e r q u e p a s s e s , p o r t o d a
parte, e s t o a r m a d o s o s laos d a s e d u o . "
O p o m a r d e s m a n c h a v a - s e em a r o m a s . Principalmente as j a q u e i r a s
carregadas. H a v i a plantas q u e c h e i r a v a m at s razes. A p r p r i a
sebe de maria-segunda as r o s a s p r o s a i c a s , c h e i r a n d o !
C o m o q u e m o s feiticeiras a n d a v a m m a c h u c a n d o a s p t a l a s a m veis.
A brisa p a r e c i a o perfume a g i t a d o . H a v i a perfume e s p a l h a d o no ar
como um i n c e n s r i o invisvel. A p r p r i a o r v a l h a d a e r a m g o t a s de perfume em vidrinhos de arco-ris. Perfume em blocos de r e s i n a . . .
Soledade estava toda impregnada dessa natureza odorante. A
e m a n a o violenta ungia-lhe a c a r n e m o l h a d a . C h e i r a v a , c o m o se
toda a florao se tivesse e n t o r n a d o nela, c o m o se estivesse florindo
tambm em suas graas s e x u a i s . O o d o r infiltrava-se-lhe a t n o s
olhos v e r d e s . . .
N a e b r i e z d e s s e a m b i e n t e c m p l i c e , q u e lhe tirava o s s e n t i d o s ,
narcotizando-o c o m as suas fragrncias, Lcio agarrou-lhe as m o s e
puxava-lhe o s d e d o s , c o m o s e e s t i v e s s e d e s p e t a l a n d o u m m a l m e q u e r .
Vinha d e l a t o d a a exalao e x c i t a n t e . Ura blsamo indefinvel do
corpo m i d o .
T o m a d o d e s s a exaltao olfativa, ele ps-se a rir sem ter de q u :
V o c j viu q u e t a n t o c h e i r o ? Me diga s ! . . .
Os cajus c o m e a r a m a cair. C a a m cajus, c a s t a n h a s , m a t u r i s . . .
E x a s p e r a v a m - s e os cajueiros confidentes.
N o e r a m mais a s r v o r e s a c o l h e d o r a s dos solilquios matinais.
Expulsavam os intrusos de sua c a s t a intimidade. E s a c u d i a m neles folhas, cajus, c a s t a n h a s , m a t u r i s . . . A t galhos secos sacudiam.
Molhavam-nos com o orvalho restante.
E r a u m a p a t e a d a em regra. E rangiam, balanando-se, g i n g a n d o ,
35

e m m e n e i o s d e capoeiras. C o n t o r c i a m - s e , c o m o s e q u i s e s s e m , outra
v e z , saltar das razes, cair em c i m a d e s s e par b b e d o de perfumes que
profanava o p u d o r da alameda a r o m a i .
E o v e n t o ajudava a s s o b i a n d o .
L c i o saiu desconfiado c o m o sentido nos b o s q u e s s a g r a d o s . M a s ,
n o e r a m dradas nem h a m a d r a d a s d e s p e i t a d a s : e r a m e s m o a refega...

A CICATRIZ
O o c a s o profuso a v e r m e l h a v a m e i o c u . O sol informe, c o m o uma
g e m a d e o v o esteirada, parecia dissolver-se n a m a n c h a c r e p u s c u l a r .
E r a u m a queimada no h o r i z o n t e , c o m o se a grande b r a s a se tivesse desfeito na labareda fugaz.
M a s e s s e q u a d r o tropical no podia durar: era belo d e m a i s p a r a se
deixar v e r por muito t e m p o .
E Lcio ficou tocaiando as primeiras sombras do lusco-fusco, cor
o fumo d e s s e incndio.
A i n d a c o m dia, a misria o b u m b r a v a todo o stio. A luz e r a u
luxo da casa-grande.
C a d a r a n c h o obscuro q u i e t o , c o m o u m a moita.
E a h o r a p r e m a t u r a do silncio e da treva antecipava as funes da
noite, os c o n c h e g o s prolficos da r a a d o s d e s e r d a d o s .
U m bruxuleio barato n o fundo d a biboca dos retirantes q u e , perdida na a m p l i d o do latifndio, ficava m e n o r , s e m e l h a n d o um ninho
cado, modificava-lhes a i m p r e s s o da vida. N o d e i x a v a m de v e r to
cedo, como os outros...
Valentim r e s s o n a v a na rede de t a p u a r a n a .
Na sala mal iluminada pela l a m p a r i n a da cozinha, Pirunga fumava
com o cigarro oculto no c n c a v o da m o .
Vai s e n o , Pegali empinou as orelhas e desenroscou-se n u m pulo.
Q u e coisa! Vocs d o r m e m c o m as galinhas! falou Lcio,
detendo-se entrada.
Valentim ergueu meio-corpo e t a r t a m u d e o u :
V pro rapador!...
M a s , r e c o n h e c e n d o - o , desfranziu a testa e retificou:
36

Q u e besteira!... Eu e s t a v a a r e a d o . . . O sono p a s s a d e p r e s s a .
Ficara-lhe agradecido, d e p o i s d a c e n a d a estrebaria. E , c o m o a c o lhimento sertanejo:
A b o l e t e - s e , m o o . T o m e a tipia.
A p o u c o t r e c h o , a s s o m o u o feitor, sempre lampeiro, c o m o se andasse n o r a s t r o d o e s t u d a n t e .
O d o n o da c a s a e n c r e s p o u a fisionomia e disse s e c a m e n t e :
E s t da b a n d a de fora p o r q u e q u e r . . .
M a n u e l B r o c a sentou-se n o s c a l c a n h a r e s .
M e n i n a , deixa v e r a luz b e r r o u Valentim, t r s v e z e s .
E S o l e d a d e trouxe a l a m p a r i n a a c e s a , r e s g u a r d a n d o os o l h o s da
claridade p o b r e .
C h e g o u b a m b a de s o n o e ficou no meio da sala, indecisa:
Eu me descuidei e peguei n u m a m a d o r n a . . .
T i n h a o ar de q u e m d e s p e r t a , m a s diferente d a s c a r a s e s t r e m u n h a d a s d e o u t r a s mulheres, d e s s a s feies intumescidas q u e e m e r g e m
d a c a m a , c o m o s e tivessem r e g r e s s a d o d a m o r t e .
P a r e c i a q u e ainda e s t a v a s o n h a n d o , p o r q u e esfregava o s o l h o s ,
c o m o q u e m d e s v a n e c e u m a v i s o renitente. Trazia a fronte u m p o u c o
r e p u x a d a n a m o l d u r a d o c a b e l o e m desalinho.
E , a i n d a d e p , atou o s b r a o s n a n u c a , n u m e s p r e g u i a m e n t o e s t r o v i n h a d o , exibindo, i n a d v e r t i d a m e n t e , a plstica rija.
D e p o i s e n c r u z o u na esteira e d e r r e o u o p e s c o o , b a n d a . C a b e ceava a i n d a , a b r i n d o a b o c a .
l u z vacilante, seu perfil o r a se iluminava, o r a se s o m b r e a v a . E
Lcio atribua e s s a m u d a n a a s a de um p e n s a m e n t o triste a e s v o aar.
M a n u e l B r o c a instou:
M e u v e l h o , voc hoje b o t a p r a fora a histria da m a r c a .
O e s t u d a n t e t a m b m n o e n c o b r i u a curiosidade:
, seu Valentim: diga a origem da cicatriz.
Eu lhe c o n t o . Q u i n c o . . .
S o l e d a d e recobrou-se e a t a l h o u :
N o diga, pai! O d o u t o r fica c i s m a d o . . .
C o m um lano de o l h o s , V a l e n t i m deu-lhe a e n t e n d e r q u e se retirasse.
P a r e c i a q u e ele nutria u m e m p e n h o intencional n a e v o c a o d a
tragdia. Q u e r i a reconstituir seu p a s s a d o sanguinrio, c o m o se servisse d e e s c a r m e n t o a o s a p e t i t e s ruins q u e lhe r o n d a v a m , visivelmente, o lar provisrio.
Endireitou-se e pigarreou:
37

Q u i n c o eu lhe c o n t o , m o o era minha s e g u n d a p e s s o a .


E r a u n h a e c a r n e . Meu velho no via b e m esse pegadio. A c h a v a q u e
ele no tinha b o a pinta. M a s , muita v e z , a gente se engabela c o m a
felpa. E n o h q u e m no tenha seu p e d a o de mau c a m i n h o . H
gente que a n d a de capas e n c o u r a d a s ; q u a n d o m e n o s se p e n s a , b o t a as
mangas de fora...
I s t o , seu Valentim! Abra o olho c o m os s o n s o s . . . o b s e r v o u
o feitor.
O e s t u d a n t e e s t r e m e c e u , a p o n t o de r a n g e r e m os p u n h o s da r e d e .
Para r e c o m p o r - s e , foi at porta. E o b s e r v o u :
E s t e s c u r o c o m o breu.
O sertanejo c h a m a v a - o :
E s t t o m a n d o fresco? U s a t o r r a d o , m o o ? U m a pitada.
E continuou:
Eu j era frangote e doido p o r u m a estrepolia. Q u i n c o n o ficava a t r s : fazia p e r n a comigo. Q u a n d o ele precisava dar um e n s i n o ,
era s me avisar e eu no fazia p o r m e n o s . E r a um bicho c u t u b a . E r a
h o m e m p r a se ver. Brigava c o m u m , c o m trinta, c o m u m a t r o p a inteira. N u n c a mentiu fogo.
E u abria o s olhos dele: " C o m p a n h e i r o , voc p o d e s e e s p ' r i t a r ,
conta s e m p r e c o m i g o ; m a s , n o bula c o m m o a donzela, s e n o encontra t o c o . "
V o c , to m o o , j era um h o m e m de b e m c o m e n t o u L c i o .
O a p a r t e deu-lhe no goto.
Manuel Broca chasqueou:
C o m e s s a lei aqui voc se e s t r e p a . E s t mal pra p a s s a r . . .
Os olhos de Pirunga fuzilaram, c o m o um isqueiro.
E o feitor insistiu:
C o n h e c e a d e r r o t a de Jos R o d r i g u e s , de S o u s a ? E r a da b a n d a
de l. A filha, forada pelo sargento Arcanjo, ali na M a t a - L i m p a . . .
At a t r o p a !
L c i o c o n h e c i a a histria da libertinagem das secas a e x p l o r a o bestial da c a r n e magra. O g o z o c o n t r a s t a n t e das m u l h e r e s desfeitas, c o r r o m p i d a s pelos ftidos s i n t o m a s da fome. O e s t m a g o exigia o
sacrifcio de t o d o o organismo, at n a s suas partes mais m e l i n d r o s a s .
T u d o e r a vendido pela hora da m o r t e ; s a virgindade se m e r c a d e j a v a
a baixo p r e o . Meninas impberes c o m os corpinhos c o n s p u r c a d o s .
Deitavam-se a elas nos fundos d a s b o d e g a s p o r um rabo de b a c a l h a u
ou um brote duro.
E a d e s o n r a ocasional c o n s u m i a o ltimo t e s o u r o de um p a t r i m nio s o o b r a d o .
38

A dignidade sertaneja a n d a v a e n t o r p e c i d a nesses c o r p o s misrrimos.


A pelas 7 h o r a s , uma garoa subitnea chiava no teto de palha.
Peneirava. E r a o prenuncio das primeiras guas, das c h u v a s janeireiras.
Valentim foi ver:
u m a n u v e m . Est p a s s a n d o .
Lcio impacientou-se. Queria ouvir o desfecho da r e t a r d a d a narrativa.
E o sertanejo prosseguiu:
M a s , por mal dos meus p e c a d o s , um dia, correu q u e Q u i n c o
tinha t i r a d o a neta de Brando de Batalaia.
Pus de q u a r e n t e n a . Ele era seu t a n t o ou q u a n t o p e n s i o n a d o l
isso era , mas eu no podia m a r c a r que tivesse d e s o n e r a d o assim.
Fazia um t e m p o que no me d a v a sinal de vida.
N u n c a q u e eu pudesse maldar. M a s at gato e c a c h o r r o j sabiam.
Fiquei encafifado. E toquei-me pra l.
Sa q u e sa feito. N o tinha c a r a de t o m a r chegada. Q u a n d o vi a
cabea b r a n c a do velho e me lembrei do sucedido, s reinei ir liquidar
o e x c o m u n g a d o em cima da b u c h a .
J e r a idoso assim? interrogou o e s t u d a n t e .
E r a seu t a n t o velhinho. E q u e m que no tem pena de um velho d e s o n r a d o ?
Retomou:
C o m o de fato, a derrota e s t a v a feita. Cheguei-me e indaguei:
" Q u e q u e v o s s e m e c m a n d a ? " Ele respondeu que s queria era
morrer. E u ajuntei: " E por que no q u e r m a t a r ? . . . " Foi a t r s d a porta, pegou u m a lazarina e a e s p i n g a r d a caiu-lhe em cima d o s p s . T r e mia muito p o r q u e tinha e n v e l h e c i d o o u t r o t a n t o do dia p r a n o i t e . Eu
agarrei a a r m a e pum! n o q u e b r o u o catol. Dei um tiro no
morcego q u e e s t a v a d e p e n d u r a d o na c u m e e i r a e o velho n e m p e s t a n e jou. E n t o , perguntei: " V o s s e m e c q u e r ver sua neta n o b o m caminho?"
E r a sua a p a r e n t a d a ? inquiriu o feitor.
N e m p a r e n t e , nem a d e r e n t e . M a s a m o a no tinha ningum
por ela.
Pois eu tirava os q u a r t o s de fora acrescentou Manuel Broca.
Maria de Soledade tossiu na c a m a r i n h a . E s t a v a a c o r d a d a e atenta
i m p r e s s o c a u s a d a pelo lance de seu vago c o n h e c i m e n t o .
Valentim falou mais baixo:
39

Eu garanti que a m o a se c a s a v a . E fui direito fazenda de


Quinco.
Q u a n d o a gente m o o pau pra toda obra. D e p o i s de velho
que fica perrengue arriscou Manuel Broca.
Pode ser... O bicho era b a r g a d o , mas era de boa c o n c r d i a . Eu
ia m a t u t a n d o : se ele trastejar, o m u n d o se fecha. Entrei c o m o q u e m
no q u e r e q u e r e n d o . Quinco baixou a grimpa. E eu tinha e m b r u lhado a m o num leno fingindo u n h e i r o , pra no a p e r t a r a d e l e .
E a esquerda? questionou o estudante.
Sertanejo no d a m o e s q u e r d a . Eu marquei logo e n t r a r no
c a s o , m a s ouvi u m a vozinha, c o m o um gemido de rola p r e s a . Q u a n d o
Fifi me avistou, embiocou pra d e n t r o . Eu no queria q u e ela cismasse
de minha idia. Procurei uma sada. Da a b o c a d i n h o , enxerguei o rio,
l embaixo, feito um mar d'gua. Estava de beira a beira. Chamei
Q u i n c o pra tomar b a n h o . M a s ele tinha s o b r o s s o de ficar s comigo.
A puxei o bruto e tibungo! entrou-se n ' g u a . Eu n o a c h a v a
jeito de tocar no c a s o , q u a n d o ele me desafiou pra a t r a v e s s a r a corr e n t e z a , fazendo p o u c o em mim. Meteu-se o b r a o . L no meio,
criei coragem e disse por aqui assim: " Q u i n c o , eu q u e r o ser testem u n h a do seu c a s r i o . " Foi m e s m o que falar da b a n d a m o u c a . Disse
o u t r a v e z : " V o u ser t e s t e m u n h a do seu c a s a m e n t o c o m Fifi. V o c
quer roer a c o r d a ? " N e s s a v o z , ele cuspiu grosso e soltou u m a risada, chega perdeu o fol'go pra n a d a r . E gritou que eu n o o aporrin h a s s e . Fiquei nos ares. E, c o m o ia na dianteira, sapequei-lhe o p na
rosca da venta, que ele viu c a n d e i a s de sebo.
A luz baa, mexida pelo v e n t o brinco, que ora q u a s e a enfiava
pelo bico da lamparina, ora a p u x a v a em fitas de fogo, a m o r t i a v a - s e ,
Valentim saltou, de s u p e t o , no terreiro, j u n t o c o m Pegali q u e se
precipitou na frente.
Refazendo-se da surpresa, Pirunga correu e foi d a r c o m e l e , parad o , b e s t a , c o m os olhos pregados nos longes do p o e n t e ,
C h a m o u - o a si, s a c u d i d a m e n t e , at que ele explicou:
N a q u e l a corda...
N e s s e m e s m o instante, pisca-piscou n o horizonte longnquo u m a
claridade q u a s e imperceptvel.
L c i o chegou e viu o cu afogueado, em trepidaes multiformes,
s v e z e s , a lngua gnea lambia a e s c u r i d o , de c a n t o a c a n t o . O leque luminoso abria-se e fechava-se, sem cessar. E ele c o m p a r a v a essas intermitncias s transies de seu esprito.
40

P a r a Valentim o relmpago riscado na treva c o m p a c t a e r a o nncio do inverno sertanejo, a p r o m e s s a de retorno s u a t e r r a .


N o h o u v e mais q u e m o tirasse do relento.
Agruparam-se uns sobre os calcanhares e outros de p .
A luz furta-cor, luz m e n t i r o s a , negaceava.
E o velho referiu:
C o m o ia dizendo, soltei-lhe um pontap de e s b a g a a r a dentua. O bicho deu o b u t e , ficou tirando fogo. Foi em c i m a , foi e m b a i x o
e, q u a n d o deu a c o r d o de si, ficou feito um c o n d e n a d o . Acatitou os
olhos e e s c u m a v a , c o m o j u . A, dei um mergulho e, saindo por debaixo, virei ele de p e r n a s pra riba. Segurei pelo c a c h a o e enfinqueilhe o focinho na lama. Ele voltou bufando. Nadei pra longe e perguntei: " C a s a o u no c a s a ? Olhe q u e q u a n d o e u carrego o p i n i o ! " N e s s a
voz foi q u e o bruto se peitou. L e v a n t o u os b r a o s : " t o m a ! t o m a ! " E,
p e r d e n d o o jeito, soverteu-se de n o v o . Esperei ele n a s borbulhas.
M o o , o senhor no magina! A, Quinco se grudou c o m i g o . N u m sofragante trincou-me o dente a q u i , parecia um m o l e s t a d o .
L c i o riscou um fsforo e e x a m i n o u a cara engelhada do sertanej o , e s v e r d e a d a , luz do r e l m p a g o .
N o d e r a pela causa d o t r a u m a t i s m o .
O b s e r v o u a impresso dentria caraterstica, a cicatriz em c u r v a s
o p o s t a s c o m as falhas de alguns d e n t e s .
Valentim virou o r o s t o :
Arrochei-lhe a goela de c o m fora. Encalquei m a i s . Vi a hora
que ele me arrancava a tbua do q u e i x o . Desceu-se no fundo outra
vez. Eu queria quebrar-lhe o roo e ele j estava desbilitado. Com a
boca p e g a d a , no podia t o m a r ar e teve um p a s s a m e n t o . Dei-lhe um
s o c a v a n c o e espragatei-lhe as v e n t a s . Ficou sem a o , fazendo termo. Dei-lhe outro c a c h a o . E o sangue espirrou. E r a isso que eu
queria. As piranhas a b o c a n h a v a m . Um putissi! C a d a qual que tirasse
o seu c h a b o q u e .
Bem-feito! Que rio e s s e ? perguntou L c i o .
o rio do Peixe.
M a s , no o P i r a n h a s ?
N o : o rio do Peixe. Fui em cima, botei Fifi na garupa. Sa
que sa zunindo, chega levantava o pedregulho. Cai a q u i , cai acol.
Saltei e o velho arrenegou, a p o n t a n d o a porta: " P o r ali, c a c h o r r a ! " E
ela, de j o e l h o : " M a s v o s s e m e c sabe, no foi por g o s t o ; foi, b e m dizer, a p u l s o . " O velho ciscava no c h o e fazia: " c h o . . . r r ! " Pensei q u e ainda estivesse d e s c o m p o n d o e tomei a parte dela: " N o
c h a m e esse nome m o a . " E ele: " c h o . . . r r ! " Fiquei t o d o arre41

piado! Qual c a c h o r r a , qual n a d a : era o ronco da m o r t e . M o r r e u pra


no perdoar.
E Valentim findou:
Agora: no o u t r o dia, foi e n c o n t r a d o o c a d v e r e n g a l h a d o n u m
p de p a u . N o tinha venta, nem b e i o , nem olhos, nem n a d a . . . A
honra d a m o a e s t a v a vingada pelos p e i x e s .
Pelos p e i x e s , no: por um h o m e m que sabe defender a h o n r a
d o s o u t r o s , q u a n t o mais a sua r e t r u c o u L c i o .
E s s e h o m e m at debaixo d ' g u a disse o feitor, u s a n d o de
u m a e x p r e s s o popular.
O e s t u d a n t e retirou-se, m o n o l o g a n d o , ao sabor de sua nfase:
R e s e r v a s da dignidade antiga! Resistncia grantica, c o m o os
afloramentos do Nordeste! Solidificao da famlia! T e s o u r o das virt u d e s primitivas!...
Q u e m p a s s a s s e , pelas primeiras arraiadas, e n c o n t r a r i a , n o
m e s m o stio e na m e s m a p o s t u r a , Valentim Pedreira a tocaiar o rel m p a g o , c o m Pegali ao lado.
C a d a facho d o cu acendia-lhe n o v a s e s p e r a n a s .
J c l a r o , e s s a s fosforescncias d e s a b r o c h a v a m , c o m o u m a t o c h a
azulada.

MORITUR

ET RIDET

P a t r o , faz toda vida que n o se e n t r o s a um forr intercedeu


o feitor, c o m a fingida indiferena de q u e m pleiteia um desejo p r p r i o
em nome de outrem.
O s e n h o r de e n g e n h o pusera t e r m o a e s s a s funes. C o s t u m a v a
dizer q u e a alegria do pobre era um m a u agouro. De feito, n o se
d a v a u m s a m b a q u e no a c a b a s s e e m sangueira.
M a s Manuel Broca segredou-lhe um plano que ele acolheu e n t r e
malicioso e desconfiado. E, v e n d o o u t r o s m o r a d o r e s q u e se a c e r c a vam, a c e d e u c o m uma praga:
Pois levem os seiscentos mil d i a b o s ! . . .
( O s d i a b o s tinham sempre c o n t a c e r t a : eram trezentos ou seiscent o s mil...).
L c i o e s c u t a v a o maracatu: d u a s p a n c a d a s iscronas, c o m o um
c o r a o b a t e n d o alto. O baticum de seu c o r a o a l v o r o a d o .
42

S o a v a um r u m o r inexpressivo na noite b r b a r a . S o b r e s s a a m gargalhadas m i s t u r a d a s c o m o v e n t o c o m o bramidos de animais d e s c o nhecidos.


E ele saiu, a e s m o , a n d a n d o ao t o q u e do maracatu.
P e r t o , sentiu o cheiro da q u e i m a d a . E virou-se p a r a a p a i s a g e m
rubro-negra.
O fogo, b e m defronte do r a n c h o festivo, alumiava o t e r r e i r o .
L c i o ps-se a o b s e r v a r a agonia da lenha verde q u e se e s t o r c i a ,
estalava de d o r , estoirava em p r o t e s t o s secos e se finava, c h i a n d o ,
e s p u m a n d o d e raiva vegetal.
V o a v a m fascas c o m o lgrimas de fogaru.
D i v i s a v a m - s e o s t r o n c o s q u e i m a d o s boiando n o c i n z e i r o , c o m o
negros em farinhada.
F l a m e j a v a o painel do aceiro as r v o r e s gneas e, e s p l n d i d a , a
macaba c o m o leque de c h a m a s .
O incndio esfumava-se, e s c u r e c e n d o a noite. E, de q u a n d o em
q u a n d o , a fumaa deitava p a r a a c a s a fronteira, e n v o l v e n d o - a n u m
pressgio de luto.
L c i o voltou-se, afinal, atrado p e l o barulho da d a n a .
Vistos distncia, os p a r e s alongavam-se na terra r o x a l e v a n t a d a ,
como l a b a r e d a s fantsticas n e s s e a m b i e n t e poeiroso.
O s n e g r o s giravam c o m o s o m b r a s alucinadas.
P a r e c i a um inferno orgaco.
De chofre, t o d a s as m u l h e r e s d e r a m as costas p a r a a p o r t a . E r a a
superstio de q u e , e s t a n d o a l g u m , do lado de fora, a r e z a r s a v e s sas, via d e s p i d o s os que se a c h a v a m d a n a n d o .
D a g o b e r t o e n t r o u , pela primeira v e z , n u m s a m b a .
Plantou-se face de S o l e d a d e , a fumar. E apagou-se o c i g a r r o . . .
O bafo d a s mulheres a m o r n a v a a sala. Um cheiro a a l h o e a fermentaes crnicas.
S o s t r a s multparas, de i d a d e s e q u v o c a s , t o s o r v a d a s e escorridas, c o m o s e tivessem sido p a s s a d a s n a m o e n d a , c i r a n d a v a m c o m o
cabos d e v a s s o u r a , v a r r e n d o o c h o e m p o e i r a d o . M a s havia u m a b e leza apetecvel na coleo d a s m o a s roceiras, as virgens m o r e n a s e
viosas q u e o s c a b r a s viam c o m indiferena, p o r q u e v i a m t o d o s o s
dias.
M e n i n o t a s modeladas c o m o m u l h e r e s feitas, c o m o s peitos apojados de feminilidades indiscretas q u e lhes escandalizavam a p r p r i a
inocncia. Mulatinhas de lbios r o x o s , c o m o se t i v e s s e m sido mordidos, v i v a s e e n g r a a d a s , e s p e r a do a m o r putrefatrio. E as n e g r o t a s
43

o l e o s a s , borboletas e s c u r a s , c o m c r a v o s vermelhos no seio, c o m o a


c a r n e a c e s a e m b r a s a s . C o m o n o i t e s disparatadas d e sol a r d e n t e .
Z o a v a u m c o n t e n t a m e n t o d e p a s s a r i n h o solto q u e n o escolhe
t e m p o p a r a c a n t a r . U m a b r u t a alacridade. Risadas selvagens d e ser i e m a s . Gritos vibratrios. R i s a d a s q u e soavam c o m o g r i t o s .
D e s p e r c e b i d o d e t o d o s o s v e x a m e s d o servilismo r e m a n e s c e n t e ,
o p o v o l u rural d e s m a n d a v a - s e na a n i m a o barulhenta.
P a r e c i a que o p r o b l e m a da felicidade se resolvia n e s s a diverso
agreste.
E r a u m jbilo integral. U m a alegria unnime q u e c a n t a v a c o m o a
m e l h o r m s i c a d o samba.
S e m os fermentos da a m b i o q u e a t o r m e n t a m a n a t u r e z a human a ; s e m os cuidados da p r e v i d n c i a , n u m a vida de c a d a d i a ; sem imag i n a o q u e elaborasse p r e s s e n t i m e n t o s mofinos; s o b r e t u d o , sem
t e m p o p a r a p e n s a r em ser triste e s s a gente tinha a fortuna de n o
s e c o n h e c e r . A s prprias d o r e s fsicas e r a m discretas, s e m c h o r o alto.
L c i o corria-se d e sua tristeza inveterada p e r a n t e t a n t a e x p l o s o
de p r a z e r q u e dissimulava a p e n r i a p e r m a n e n t e . C h e g a v a a saber
q u e o s sofrimentos morais e r a m u m a iluso d o s s e n t i d o s . S havia
u m a c o n d i o de felicidade: n o s a b e r sofrer. Feliz e r a o animal q u e
se encolhia chicotada e a e s q u e c i a , q u a n d o deixava de d o e r . Feliz
e r a a sensibilidade que n o ia a l m da c a s c a grossa. E bendizia a ign o r n c i a q u e ignorava at a dor. Invejava e s s a vivacidade inconscient e . A c o s t u m a d o a cultivar as sentimentalidades m a l s s , c o m o um
m e n d i g o q u e vive de sua ferida a b e r t a , ouvia c a s q u i n a d a s c a v a s ,
o r i u n d a s , talvez, das c a v e r n a s do e s t m a g o , e no sabia rir de e s t mago cheio.
E n t r o u na o n d a pulverosa. E t e s t e m u n h a v a os idlios brejeiros,
cuja a m o s t r a mais d o c e e r a u m a injria: " F e i a ! . . . " " E s s a safad a ! . . . " O u , n u m d e r r a m e lrico: " B i c h i n h a . . . " E , q u a n d o p a s s a v a
d a p a l a v r a a o g e s t o , e r a u m b e l i s c o , u m a pisadura, u m p u x a v o d e
orelha, u m a dentada... S u m a carcia n o doa: o cafun. M a s , s vezes, as unhas penetravam com mais bem-querer.
As raparigotas encolhiam-se, a p e r t a n d o o c o r a o q u e ia saltarlhes p e l a b o c a :
N o m e afutrique!... Q u e a b u s o ! . . . N o m e a l c a t r u z e ! . . .
A r t a ! n o me pinique!... Me largue de m o ! . . .
Um cambiteiro mais e n x e r i d o c o n c h e g a v a - s e . E a n e g r o t a :
44

J se viu que e m p a c h o ! . . . O r a , que peitica!...


agente este a z u c r i m ? . . .
E l e , a cutuc-la:
Deixa de luxo!...
Ela ainda simulava:
T o m e a s s e n t o de g e n t e . . .
E riam t o d a s num riso c r a s s o e c o n d e s c e n d e n t e .
J o o T r o u l h o i a p u x a n d o u m a d a m a que s e e s c u s o u :
Eu n o d a n o , banga!...
?...

H quem

E l a estirou o beio p a r a a m e .
O c a b r a arreliou-se:
Velha caninguenta!...
E a moa:
D a n o l c o m e s s e t r u p i z u p e ! E s t o u de m e u , d a n d o figa p r a
ele...
As raparigas agrupavam-se n o s c a n t o s da sala, d i z e n d o - s e coisin h a s , a o s m u x o x o s e aos belisces. E separavam-se, c h i a n d o :
Qui qui-quiqui...
Boliam c o m o s p a r e s s u a r e n t o s , d e c a r a s e m p a s t a d a s d o r o u g e terroso:
C o m o ele est fiota!... T o d o p e r e q u e t e . . .
O l h a esse r e m e l e x o , c a b e l o de aratanha!...
L c i o p e n s a v a em Soledade e preveniu a Pirunga:
I s t o pega c o m o visgo. C u i d a d o c o m os v e d i a s . .
M u d a r a m para o c o c o :
Cabra danado,
Se n o tem c o r a g e , eu tenho
D e p e g a r n e s s a pistola
E a t i r a r no s e n h o r de e n g e n h o . . .
Minha s e n h o r a .
D e que c h o r a este m e n i n o ?
Chora d e b a r r i g a cheia
Com v o n t a d e d e a p a n h a r . . .
O e s t u d a n t e o b s e r v o u : " M u s a mentirosa!... Atirar n o s e n h o r d e
e n g e n h o neste estado de s u b o r d i n a o crnica... C h o r a r de barriga
cheia, c o m o s e no c h o r a s s e s e n o d e f o m e . . . "
Os cambiteiros replicavam, c o m os ditrios da bagaceira:
Olha e s s a delerncia... C a b e l o de fu!
45

D e i x a de a g a c h a d o c o m e s s e p - r a p a d o . . .
Pirunga, muito c a n h e s t r o , servia d e m a n g a o . N o lhe q u a d r a v a m e s s e s c o s t u m e s . N o s e a m o l d a v a nessa p r o m i s c u i d a d e a b o m i nvel.
J o o T r o u l h o motejava:
E s t desconfiado q u e n e m c a c h o r r o em m e i ' de c a r g a .
S o l e d a d e caoava:
E n t o , e s t se b a b a n d o ? . . .
L e m b r a n d o - s e das m o c e t o n a s sertanejas, ele d e s d e n h a v a :
Q u e r o l saber de m o a c a x e x a . . .
E ela r e p a r a v a nos c a b r o c h a s :
Q u a s e t u d o aqui b a t o r . . .
O s brejeiros c o n s p i r a v a m :
Ele fouveiro, n o d a n a c o m negro. m e t i d o a l o r d e . . .
L a t o m i a interpelou-o:
P o r q u e n o entra na d a n a ?
S se me arranjar u m a d a m a .
B o c a , q u e tal disseste? C r e s c e u p a r a ele t o d a a arraia-mida. U n s
procuravam os porretes. Outros protestavam:
E s s e fregus dizendo d a m a ! . . . D o b r e a lngua!...
D a m a mulher da vida...
D a m a mulher -toa... De p o n t a de rua.
Latomia, por trs dos outros:
Sertanejo b o c n o v o g a a q u i ! . . . Sertanejo cafifa!
E t o d o s , de u m a v e z :
N e m sabe dizer c a v a l h e i r a . . .
Pirunga n o fazia c a s o . T i n h a n o s olhos tristes u m a e x p r e s s o d e
c a l m a e de c o r a g e m . E, d e s d e n h o s o , saiu a d a n a r c o m S o l e d a d e .
O feitor aplaudia:
I s t o , Pirunga!
E, p a r t e :
Mal-empregado! Ela t o j e i t o s a e ele t o mal-enjorcado...
E , q u a n d o Soledade s e s e n t o u :
M o a , v a m o s ver?
Ia tir-la pela m o , s e m n o t a r q u e ela tivera um g e s t o negativo,
q u a n d o Pirunga s e a t r a v e s s o u , c o m b o n s m o d o s , v e r d a d e , m a s c o m
u m a d e c i s o inflexvel.
Participava do teir do p a d r i n h o a Manuel B r o c a .
Os cambiteiros desforravam-se, puridade:
A r r a s t o u a mala...
E l a n o d a n a c o m bangalafumenga daqui.
46

Foi b o m , que ele m e t i d o a rabequista.


O p a t r o d gs quele mequetrefe... Um p-de-poeira, c o m o
os o u t r o s . . .
E as mulheres voltavam-se c o n t r a Soledade:
A n d a c o m parte de santa, m a s o que ela u m a s o n s a de
marca maior. U m a tipa muito entojada!...
Por ser sarar trata os mais de resto.
Vive ancha p o r q u e o m o o a n d a de olho gacheiro p r a b a n d a
dela...
E, v e n d o que a d a n a arrefecia, t o d o s a c o r o o a v a m :
T o c a fogo na canjica! A, negrada! Eita pau!
A poeira ia baixando no c h o a g u a d o pelos suores a b u n d a n t e s .
S o l e d a d e , curiosa, r e c u s a v a retirar-se. Achava g r a a n o s saracoteios d o s quadris a l v o r o a d o s .
O m o a m e ia-se c h e g a n d o . U m a mais influda s e n t o u - s e n a s suas
pernas. O s cabras roavam-se n o s seus j o e l h o s .
Sentindo-a to p e r t u r b a d o r a m e n t e feminina, envolta n e s s a animalidade p r o m s c u a , Lcio a d v e r t i u :
N o d c a b i m e n t o a c a m u m b e m b e . . .
E d e i x o u o samba.
O feitor acercou-se:
E s t u d a n t e uma n a o de gente que s vive de c a b e a virada...
Ela deu de o m b r o s :
N o se d coisa mais a b u s a d a ! . . . no me a t u c a n e a pacincia!
A sala tresandava a alho e a a g u a r d e n t e .
V e n h a de l!
T r o u l h o tocava com os beios e restitua o q u a r t e i r o . Enchia-o
para o c o m p a n h e i r o q u e r e c u s a v a beber e d e r r a m a v a a c a c h a a . Era
um c m u l o de gentileza...
E s v a z i a v a m o botijo.
U m a bicada.
E, e s t a l a n d o a lngua:
b o m que di.
O feitor diligenciava e m b r i a g a r Pirunga.
E trovejavam as p r o v o c a e s :
E s t e fuzu acaba mal. Q u a n d o eu tomo u m a t r u a c a , n e m D e u s
N o s s o S e n h o r vindo d o c u . . .
Eu dou c a b o d e s t a j o a ! . . . Hoje aqui fede a chifre de b o d e .
E s t o u me e s b o d e g a n d o ; j e s p a l h o esta porqueira.
Eu s dou conta d e s t a pinia. A c a b o com esta futrica.
47

C a b r a s de uma turbulncia c o b a r d e tentavam a p a g a r a luz por desaforo.


Pirunga e s t r a n h o u :
Q u e barulho fora de t e m p o ! . . .
O feitor c h a m a v a o r d e m :
Mundia, olha essa b u z i n a !
A c a c h a a ia pegando fogo sensualidade mestia.
C h o c a v a m - s e os peitos e r i a d o s . Barrigas sumidas p r o c u r a v a m
encontrar-se na ironia d a s u m b i g a d a s . Agitavam-se, a o s s a r a c o t e s , as
coxas frenticas, nas a g a r r a e s d o s pares safadssimos, os h o m e n s
de c a b e a levantada e as m u l h e r e s cabisbaixas.
E revelavam-se excelncias plsticas nessa d e s o r d e m de m s c u l o s
de alguns tiparres e x c e p c i o n a i s . Donzelas equvocas da r e d o n d e z a
acudiam ao estalo dos d e d o s , c o m o se c h a m a aos c e s .
M a s , ali no se brigava por mulher: o amor no valia u m a facada.
O cime mal passava de a m e a a s :
Olhe que eu te dou uns c r o q u e s ! , .
Q u a n d o chegar em c a s a , v o c chia no relho!...
L c i o d e s p e r t o u , o u v i n d o u m v o z e a r e s t r a n h o U m formidvel
clamor q u e uivava d e n t r o da noite
A c e r t o u de passar a escolta para a feira de L a g o a do Remgio,
O delegado p a r o u , e s c u t a :
gente c o m o os trinta.
D a g o b e r t o estava d e s a v i n d o c o m o chefe local. E a poltica adversa despicava-se em seus m o r a d o r e s . Os correligionrios do poder
m a n t i n h a m redutos de i m p u n i d a d e inviolvel; m a s os oposicionistas
tinham s e u s domnios e x p o s t o s s represlias policiais.
M e t a o faco nessa c a m b a d a ! ordenou a a u t o r i d a d e .
A cabroeira recuou. E Pirunga cresceu para a fora arbitrria:
Q u e isso, p r a a ? !
E , c o r r e n d o e m defesa d e L a t o m i a :
N o desfeite o h o m e m , p r a a . Um h o m e m um h o m e m . N o
faa a o , p r a a !
E r a o g o v e r n o . O g o v e r n o e r a essa afirmao de a r b i t r a r i e d a d e .
A n t e s que vibrasse o golpe, ele caiu em cima da l a m p a r i n a .
E feriu-se a luta no e s c u r o .
O sertanejo fazia frente a t o d a a tropa na confuso do conflito
c o r p o a c o r p o . Seu olhar fuzilava na treva c o m o um sabre d e s e m b a i nhado.
49

E n c o n t r o a v a m - s e ; a g a r r a v a m - s e , s t o n t a s , s o l d a d o c o m soldado;
engalfinhavam-se e m p e n c a ; embolavam-se n o c h o .
O espaldeiramento e r a um som de garrafas q u e b r a d a s .
E estrugia a sanha d e s o r d e n a d a :
D um c h o t o no m a t a - c a c h o r r o ! Sapeca o p a u ! Sujiga a praa!
Quebra-lhe a c a s t a n h a ! F u r a na veia da tripa! F u r a na tripa gaiteira!
P a t r o ! patro!...
D a g o b e r t o sobressaltou-se, d a cama:
Q u e barulho u m ? !
E o r u m o r era a g r a v a d o pelo alarido das m u l h e r e s . S no havia
a t a q u e histrico.
Pirunga p a r a v a , de o n d e em o n d e , para e s c u t a r o v o z e r i o tumulturio. Distinguia no a r r u d o lamentos e pragas; m a s no reconhecia a
v o z de Soledade, abafada pelo berreiro d e s c o n e x o .
T e n t a v a encontr-la, p e g a n d o , s apalpadelas, as saias que perp a s s a v a m . E gritava por ela, c o m o um doido.
E n t o , d e s e s p e r a d o , i r r o m p e u pela parede de palha.
Do lado de fora, ouvia a m e s m a algazarra indistinta. A barafunda
alarmante.
E a p o d e r o u - s e de um c u i d a d o aflitivo. Pensou n o s perigos desse
e m b a t e no e s c u r o ; m a s , p e n s o u s o b r e t u d o , nos c o n t a t o s a e s m o , na
c a b r a - c e g a de h o m e n s e m u l h e r e s , no ruge-ruge p r o m s c u o . E, mais e
m a i s , se vexava, p e r c e b e n d o os improprios d o s c a m b i t e i r o s desboc a d o s n a balbrdia r e c r e s c e n t e .
O l h o u em d e r r e d o r . A q u e i m a d a estava circunscrita ao aceiro,
c o m o um colar de rubis. A paisagem vizinha toda t o s t a d a e vermelha.
A i n d a v o a v a m algumas fagulhas misturadas c o m os vaga-lumes.
De veneta, correu at a coivara e trouxe um facho na mo c o m o
p a r a alumiar. E chegou-o ao c o l m o velho. T o c o u fogo no rancho tum u l t u o s o . A o claro i n s t a n t n e o , embarafustou pelas c h a m a s , num
s o b e r b o a r r e m e s s o . T o m o u Soledade nos b r a o s , p o r e n t r e a s f i g u r a s
mal iluminadas. E, c h a m u s c a d o , triunfal, no desfecho esplndido, r e fugiu, c o m seu fardo s u a v s s i m o , pela noite discreta.
M a s , logo, ela soltou-se revoltada:
E precisava isto? E n t o , eu no sabia sair do fogo?
A polcia d e b a n d a r a , aturdida.
F e z sangue?
Foi a fora do g o v e r n o , p a t r o .
P a r a eles o g o v e r n o e r a , a p e n a s , essa n o o de violncia: o espal50

deiramento. a priso ilegal, o despique partidrio... N o o conheciam


por n e n h u m a manifestao tutelar.
E explicavam:
Chegou e foi m e t e n d o o fandango. S pra e m p a t a r o samba.
Passou o refe em t u d o .
J o o Troulho a p r e s e n t o u - s e :
Eu s sa com u m a roncha aqui na tbua do q u e i x o . E c o m a
camisa esfaqueada.
T o d o s riram, at os feridos, porque ele nunca tivera u m a camisa
inteira.
L a t o m i a blasonava:
Eu sa do a r r e g a o c o m um calombo aqui no q u e n g o , mas tirei
tudo de eito. Queria era pegar de jeito. Mas a fora abriu do c h a m b r e ,
ganhou os paus.
Acudiu o feitor:
Foi pantim, p a t r o . O fogo foi uma fasca da coivara. Foi nada
no. Com qualquer b o b a g e m esse povo assenta a b o c a no m u n d o . . .
E c o m o estivesse tiritando. Dagoberto argiu:
Que isso! Ainda est t r e m e n d o ?
Ora, t r e m e n d o ! Eu fui tomar banho de m a d r u g a d a . Frio pra
mim c o m o passou.
Se no mentiam as ms-lnguas. ao primeiro a s s a l t o , ele metera-se
no aude com gua pelo q u e i x o .
Pirunga soprava ainda, c o m o se estivesse expelindo os m a u s instintos.
O senhor de e n g e n h o o b s e r v o u :
Esse est c o m o cobra que errou o bote.
Lcio desabafou:
N o era pra m e n o s . Eu bem sabia que aquilo a c a b a v a pegando
fogo...
E foi ver Soledade que estava queimada... c o m Pirunga, porque a
carregara nos braos.

O RETRATO
O amor uma g r a d a o dos sentidos: c o m e a pela necessidade de
ver.
N o se passava um dia que Lcio no e n c o n t r a s s e Soledade; m a s .
pensando nela, forcejava, d e b a l d e . reconstituir-lhe o tipo ou. pelo
menos, as feies mais bizarras.
51

A c o n t e c e isso. A s a u d a d e um p o u c o dessa incerteza da separao


E c o m o , u m a v e z , n o p u d e s s e evocar-lhe a imagem, n e m , sequer,
r e c o m p o r - l h e os t r a o s mais familiares, dirigiu-se, induzido p o r e s s a
r e p e n t i n a curiosidade, c a s a d o s sertanejos.
Ao e m b a l o da r e d e , na perplexidade de q u e m se inicia n o s convit e s d o c o r a o , ela c a n t a r o l a v a , a o a c o m p a n h a m e n t o d o s a r m a d o r e s
gritantes. E, assim que o viu, e n t r a d a , precipitou-se do b a l a n o e,
desequilibrando-se, foi-lhe de e n c o n t r o , d e s a s t r a d a m e n t e .
Ele aparou-a num a b r a o e, a r r e p e n d i d o desse m o v i m e n t o involuntrio, recuou at o terreiro.
N e s s e nterim c o m e o u u m a bulha n o teto. E r a m o s c a s a c a s - d e c o u r o . C a n t a v a m e d a n a v a m . A v a n a v a m c o m um d o n a i r e natural e
r e t r o c e d i a m com outra graa coreogrfica. Primeiro, um c a s a l soment e . D e p o i s , um b a n d o p a r a a quadrilha. Pegavam a rir. R i a m t a m b m .
D a v a m u m a s risadinhas perfeitas, e n q u a n t o d a n a v a m , alegrando a
dana.
O e s t u d a n t e intentava sair:
Seu pai no e s t . . .
D e u um pulo ali na r u a . J v e m j .
B e m ; nesse c a s o , volto daqui a p o u c o .
A h , no quer e n t r a r ?
N o est ningum...
E e u ? E n t o , o q u e sou e u ?
E apontando o cachorro:
Pegali t a m b m e s t . . .
O c o sacudiu a c a b e a c o m estrpito e p a s s o u a r a b e a r n u m a agit a o acolhedora.
E n t o , L c i o e n t r o u c o m S o l e d a d e e prontificou-se a tirar-lhe o
retrato:
F a a srio.
Ela comps-se com um ar engraado.
E, no interesse de examinar-lhe melhor a e x p r e s s o fisionmica,
ele insistiu:
F a a srio!
V o c quer cara feia, n o ? . . .
E fez um trejeito que n e m de leve lhe deformou a graa primorosa
M a s , logo, endireitou-se, c o m faceirice, p a s s a n d o a m o no r o s t o e na
cabea.
Ele notou que seus olhos v e r d e s t o m a v a m o u t r a cor.
E, alternando a vista, fingia e s t a r d e s e n h a n d o .
52

T i n h a u m a c o n c e p o d a b e l e z a feminina, d e s s a n a t u r e z a privilegiada, e m a n c i p a d o d o s m o d e l o s d e o u t r a s r a a s . Idealizava u m conj u n t o e s t t i c o c o m o q u e m c o m p e u m florilgio. F i x a v a e s s a viso


p e n s a n d o em muitas m u l h e r e s . E impressionava-se p e r a n t e c o r p o s
q u e m e r e c i a m o u t r a s c a r a s e vice-versa.
S o l e d a d e n o c o r r e s p o n d i a pela harmonia d o s c a r a c t e r e s s exigncias d o seu sentimento d o tipo h u m a n o . M a s , n o sabia p o r q u e ,
achava-lhe um sainete n o v o na feminilidade indefinvel. As linhas fsicas n o seriam t o p u r a s . M a s o t o d o picante tinha um s a b o r esquisito q u e s e requintava e m c e r t a d e s p r o p o r o d o s c o n t o r n o s e , notad a m e n t e . n o a c e n t o p e t u l a n t e d o s olhos originais.
S e u instinto d e perfeio c o m p r a z i a - s e n o e x a m e d e s s a s formas
florescentes, desse e x e m p l a r d e virgem m a t u t a q u e n o t i n h a t e r m o
de c o m p a r a o c o m a b e l e z a citadina a arte de p a r e c e r bela. U m a
e x p o s i o de c o r p o s e l e g a n t e s e de c a r a s b o n i t a s q u e se pareciam
t a n t o e n t r e si c o m o se t i v e s s e m sido feitos do m e s m o m o d e l o . . .
L c i o continuava a simular q u e pintava.
E S o l e d a d e perdia a pacincia.
O p e s c o o um p o u c o l o n g o , m a s cheio, dava-lhe n o s graciosos
r i t m o s d a vivacidade m o a u m a r d e passarinho irrequieto.
A d i s c r e t a p r o e m i n n c i a do b u s t o arfava-lhe de c u r i o s i d a d e .
O e s t u d a n t e d e u , enfim, o r e t r a t o p o r t e r m i n a d o e m o s t r o u - l h o , a
sorrir.
E r a u m a antiga fotografia m e i o d e s b o t a d a .
E l a desconfiou:
Quem ?...
N o e s t v e n d o ?
E u ? . . . M a s eu no tenho esta venta...
De fato, seu nariz e r a diferente, c o m um ar inconfundvel no ligeiro a r r e b i t o . M a s , os o l h o s , a t e s t a , a b o c a (o m i m o da b o c a ) , os car a c t e r e s essenciais identificavam-se n o s t r a o s e s m a e c i d o s .
E r a o tipo modelar de u m a r a a selecionada, s e m m e s c l a , na mais
sadia consanginidade.
O e s t u d a n t e quisera, a p e n a s , confrontar e s s a s e m e l h a n a . E ia retirar-se, q u a n d o ela acudiu:
Se m e u , fica c o m i g o .
Sabia q u e a fotografia n o e r a sua e alvoroou-a a curiosidade a
nica forma d e impacincia d a mulher, esse apetite d o d e s c o n h e c i d o
que constitui, as mais das v e z e s , o mvel de sua perdio a curiosi53

d a d e de verificar q u e m e r a a q u e l a figura feminina q u e t a n t o se parecia


consigo.
Instava:
L c i o , no m e u ?
Suspeitou que i n t e r e s s a v a ao estudante p o r q u e se a s s e m e l h a v a a
algum que ele a m a v a . E r a a c o n d i o mais humilhante de ser a m a d a .
C o m o q u e m a m a de o l h o s fechados, com o sentido em o u t r o amor.
E , c o m u m cime a n t e c i p a d o :
S serve pra mim: t o feio!...
Afinal, no se c o n t e v e q u e no avanasse c o m o propsito feito de
tom-lo.
L c i o retraa-se c o m as m o s atrs das c o s t a s . E ela no d e s c e r o o a v a . Cingiu-o c o m um d e s e m b a r a o resoluto.
Ele sentia-lhe os c o n t a t o s das formas d u r a s e, a t a r a n t a d o , tolhido,
t e n t a v a , e m vo, d e s v e n c i l h a r - s e . Segurando-a pelos b r a o s , e m a r c o ,
e m p r e g a v a esforos para mant-la distncia.
F r a q u e o u , de vez. Pegali, fora, batera as o r e l h a s , c o m o q u e m
b a t e palmas.
Deixou-se v e n c e r , q u a n d o ela o entrelaou, t e m e n d o ser apan h a d o nessa d e s e n v o l t u r a .
Soledade meteu o r e t r a t o no seio e ficou c o m um ar malicioso,
c o m o q u e m queria dizer: " V e m t i r a r . . . "
E, se ele se tivesse a t r e v i d o sabe-se l! t a l v e z lhe houvesse
p u n i d o o atrevimento c o m o primeiro beijo.
Depois, rompeu o retrato.
N o faa isso! rogava Lcio com os olhos splices.
E s s e gesto fora u m a r e v e l a o . Soledade a m a v a - o c o m a violncia
r e p e n t i n a dos c o r a e s ingnuos.
" D o i d i n h a ! " p e n s a v a ele.
Ajoelhou-se, a p a n h o u t o d o s os fragmentos e beijou-os d e m o r a d a mente.
Bem-feito! sua noiva, n o ? perguntou ela, c a d a vez mais
aziumada.
N o : u m a santa.
E ainda beijava os p e d a o s q u e j u n t a v a .
D e p o i s , para no ser s u r p r e e n d i d o de volta, c o n t o r n o u a casa e
t o r c e u pela vereda dos c a m b i t e i r o s .
Avistou Pirunga e n c o s t a d o num pau, de alcatia.
Disse-lhe qualquer coisa e ele c o r r e s p o n d e u c o m u m a e x p r e s s o
ronronada, de maneiras bravias.
54

Prosseguiu sem fazer c a s o dessa rispidez. M a s , da a u n s p a s s o s ,


no teve m o em si e v o l v e u precipitadamente.
Foi-se a ele.
Pirunga p e r c e b e u o l a n c e , m a s ficou q u i e t o , c o m o a o n a na t o caia.
Suas artrias e n g r o s s a v a m , c o m o se quisesse p r e n d e r - s e a si p r prio, para evitar o d e s f o r o .
M a s , a o defront-lo, L c i o perguntou, d e b o a s o m b r a :
Pirunga, tu g o s t a s d e l a ?
O sertanejo fez-se d e s e n t e n d i d o e baixou o olhar vago:
O x e n t e ! Pois n o h a v e r de gostar? F o m o s criados j u n t o s . . .
N o sou seu m a n o de c r i a o ?
Eu sei j u n t o u L c i o . E e x p e r i m e n t o u : M a s t a m b m podia
ser tua mulher...
Depois, levando-lhe a m o ao o m b r o :
N o deixes q u e ela caia na unha de um d e s s e s cafajestes.
O rapaz c o b r o u confiana e despejou a alma:
Soledade n o q u e r b e m a ningum. L no s e r t o muitos fazendeiros se e n g r a a r a m dela, falaram at em c a s a m e n t o e n e m c o m o
coisa...
E , n u m desalento:
S se agora e s t q u e r e n d o . . . A n d a t o d e s p a c h a d a , to sada,
que nem m o a de p r a a . . .
Sombreou o rosto:
Os h o m e n s de l n o ligam s mulheres d a q u i , m a s sertaneja
tem q u e d a pra brejeiro.
Lcio procurou a p l a c a r e s s e cime indomvel, m a s Pirunga soltou
queima-roupa:
At o senhor e s t a c e i r a n d o . . .

?
N o , senhor! Eu n o maldo, no senhor!...
O estudante distinguia-lhe um trao de a m a r g u r a , que nem na
odissia da seca. C o m o v e u - s e diante desse zelo selvagem e falou-lhe
de molde a dissuadi-lo:
N o por n a d a . p o r q u e ela o retrato de m i n h a m e . . .

55

N A

B A G A C E I R A

E r a u m clamor a s s i m c o m o u m t r o v o e n f u r n a d o .
Soledade c o r r e u ao e n g e n h o e p s as m o s na c a b e a :
Mas que judiao!
A moagem parada.
D a g o b e r t o n o tivera d v i d a : a m o n t o a r a a p a l h a s e c a debaixo da
barriga do c h a m u r r o e m p a c a d o e tocara fogo.
Queria ver se no puxava. Era para amansar...
A s s a d o v i v o , o boi t e i m o s o soltava u n s u r r o s l a m e n t o s o s e sacudia os chifres e n c o r r e a d o s . M a s davam-lhe c o m o chiqueirador na
v e n t a s q u e e r a a p a r t e m a i s sensvel. E, s r e c u a d a s , ele torcia o
q u a r t o s , n u m berreiro q u e j n o e r a mugido, m a s u m uivo formidvel.
T o d o o b a n g rangia.
E chegavam-lhe a i n d a o ferro p a r a ir a ferro e fogo.
Q u a n t o mais b r u t a l i z a d o , m e n o s o c h a m u r r o a c e r t a v a a n d a r rod a . E c h o r a v a . C h o r a v a , de v e r d a d e , c o m dois fios g r o s s o s escorrendo-lhe pelo focinho m i d o .
L a v a r n t o , j u n g i d o a o s c a n z i s , ruminava, filosoficamente, c o m a
s u a filosofia estica. L i m i t a v a - s e a a b a n a r as o r e l h a s , q u a n d o a canga
r e p u x a d a nos a r r e m e s s o s da p a r e l h a lhe m a g o a v a o c a c h a o negro int u m e s c i d o , talvez p a r a refrescar a dor.
Soledade e s t a v a a c o s t u m a d a a ver bichos esfolados e esquartejad o s , o c h o r o d o s b e z e r r o s na ferra, os r e b a n h o s carpindo-se no sangue fraterno, a rs l e v a n t a n d o - s e nfega d a s m u c i c a s da vaquejada, as
o s s a d a s d a seca... M a s , n o havia t e r m o d e c o m p a r a o c o m e s s e suplcio n o v o d o s mrtires d a almanjarra.
E r a a sorte d o s bois sertanejos na bagaceira...
***
T o d o s c a n t a v a m o t a n g e d o r , o c e v a d o r de c a n a , o bagaceiro.
E, na c a s a de caldeira, o fornalheiro, o m e s t r e , o b a t e d o r . . . Q u e m
no cantava, assobiava.
E r a um r a m e r r o q u e aligeirava a faina.
C o r r i a a alegria d o s c o r a e s e n d u r e c i d o s c o m o a g a r a p a d o c e da
m o e n d a de ferro.
***
56

A almanjarra r o n c e i r a , p a c h o r r a d a s j u n t a s fatigadas, e r a o smbolo diuturno da rotina e m p e c i v a . T r a a v a , inalteravelmente, a


m e s m a circunferncia n a b o s t a d e boi.
E r a a n o r m a a u t o m t i c a q u e distingue a m e s m i c e do instinto d a s
variaes da inteligncia.
A m o a g e m ia, p o r assim dizer, de meia-noite a meia-noite. Os eix o s frouxos v o m i t a v a m o b a g a o maior do q u e a c a n a engolida e mij a v a m um fio de c a l d o no p a r o l . . .
***
Q u e porcaria e s s a ? perguntou S o l e d a d e .
N o a ajuda? explicou o m e s t r e .
E deitava cal, azeite e cinza na fervura d a s t a c h a s p a r a " l i m p a r a
rapadura".
Entravam os muares gemendo, ao compasso da andadura: hum!
hum!...
'barr'a!
Viraram-se, p o r si, p a r a o " p i c a d e i r o " de c a n a .
E e s s e s b u r r o s , c o r t a d o s pelo a r r o c h o e pela rabichola, c o m a pelagem m o s q u e a d a p e l o s sinais das p i s a d u r a s , n e m coices d a v a m ,
q u a n d o o s cambiteiros lhes enfiavam o s d e d o s d o s p s n o curvilho,
para montar.
Ainda lhes s o l t a v a m a c a n c e l a na g a r u p a e lhes b a t i a m no t o p e t e
c o m o c a b o da m a c a c a .
Pirunga c a m b i t a v a em C o r i s c o p a r a poup-lo a m a i o r e s sevias..
A a z m o l a a n d a v a biqueira e ferida na c e r n e l h a . T i r a d a a cangalha,
e s t r e m e c i a e agitava as o r e l h a s ; m a s , n o ia espojar-se no cinzeiro,
c o m o a s outras alimrias. Ficava-se e n t r e o s bois invlidos: u n s j
d e r r a b a d o s , c a b e c e a n d o , fleumaticamente, p a r a e n x o t a r o m o s q u e i r o ;
outros c o m a s c a u d a s o b l q u a s , q u e b r a d a s , d e t a n t a t o r c e d u r a n o a t o
d e a m a n s a r o u nos e m p e r r o s d o e n g e n h o .
E os sertanejos l e m b r a v a m - s e da alegria d o s r e b a n h o s na liberdade do compscuo.
***
Q u a n d o tocou o b z i o , Soledade passou-se bagaceira.
A fauna dos c a m b i t e i r o s abatia-se ao sol c o m o o b a g a o a m o n t o a d o .
N o e r a a negralhada d a s senzalas, m a s o r e c r u z a m e n t o arbitrrio,
a s escrias d a m e s t i a g e m , c o m o u m a balbrdia d e pigmentos.
A d m i r a v a m a sertaneja:
57

b r a n c a chega ser azul!...


Os mais deles e m b o r c a d o s no d a v a m a c o r d o de si.
O u t r o s sentados n o s c a l c a n h a r e s j u n t a v a m as m o s sobre a c a b e a
e estalavam todos os d e d o s de u m a vez.
N o havia n e n h u m d e c c o r a s . . .
T o d o s r o t o s , sem fundilhos, n a s indecncias da n u d e z vulgar.
Rezingavam n u n s violentos apelos nosologia popular:
Molestado!
Gota-Serena!...
O u , e n t o , c o r r o m p i a m a fontica para requintar no insulto:
F e l h a da pota!...
L a t o m i a , sempre b r i g o , alardeava:
Eu e s t a v a c a n s o de avisar. M a s o fregus tinha n pelas costas, e r a cheio de n o v e s fora. A, dei de garra do quiri. O b r u t o e n t e sou. Agentou a primeira pilorada lep! no alto da sinagoga.
Arrochei-lhe o u t r a c h u m b e r g a d a . A, ele negou o c o r p o , apragatouse, ficou u m a m o q u e c a . E veio feito em riba de mim. A r t a , d a n a d o !
Caiu c i s c a n d o , ficou c e l ! . . . Foi p a n c a d a de m o r t e e p a i x o . V c o mer terra!... Fugiu na s o m b r a e levou um t e m p o a m o c a m b a d o .
J o o T r o u l h o fez p o u c o e passou-lhe a q u e n g a de caxixi:
Deixe de l a m p r o a , p o m b o c a ! Eu no c o m o l a m b a n a . Voc s
h o m e m pra m a t a r . . . o b i c h o .
E bravateava:
S e n d o c o m i g o , d a v a u m a facada remexida n o v o . E u q u a n d o
bato m o d e meu p o t r u c o d e faca... N a minha u n h a n o d a v a u m caldo.
O feitor interveio:
Eu no digo q u e n e g r o n o tem a o ! . . .
E r a um bem-te-vi p e r s e g u i n d o um urubu. Dava-lhe b i c a d a s de arrancar p e n a s .
O u r u b u v o a v a m a i s a l t o , ia feder nas n u v e n s . V o l t e a v a . Batia,
n e r v o s a m e n t e , a s a s a s p r e t a s . Encolhia o s p s d e a v e d e rapina.
E sangrava-lhe a c a b e a e n c a r n a d a .
O p a s s a r i n h o i n e r m e desfeiteava-o nos a r e s , c o m um d e s t e m o r
zombeteiro.
Seguiam-se lrias, d i c h o t e s e gabaes i n d e c o r o s a s .
E r a m os brutos q u e c o n q u i s t a v a m o a m o r c o m u m a rasteira.
Pirunga, s e m p r e malvisto d o s cabras, c o m o d e s t e r r a d o , n o se
quadrava a esses costumes.
Lanavam-lhe em rosto:
P u n e pelo s e r t o , m a s v e i o afinar o cabelo no b r e j o . . .
59

Ele a c a m a r a d a v a - s e c o m u m catingueiro h o m i z i a d o n o e n g e n h o ,
o r i u n d o d e s s a faixa de c r i a o e de cultura algodoeira, o n d e se desfrutava u m melhor a p a r e l h a m e n t o e c o n m i c o e m m a i s p r e c r i a s cond i e s naturais.
E confidenciavam:
Eu arrenego da b o n d a d e deste calcanhar-de-juda. N o s meus
m u n d o s no se v d i s t o . . .
T o m a r a j me escafeder!...
Valentim a p r o x i m o u - s e , c o m o o u v i d o b a n d a , a seu m o d o . E fec h o u a c a r a vista do feitor. N o disfarava e s s a ojeriza. C o s t u m a v a
dizer:
E s s e tipo n o me e n t r a . . .
E deixou a bagaceira c h a m a d o pelo s e n h o r de e n g e n h o p a r a ajustar uma empreitada.
O s c a b r a s maliciavam:
C a d a amarelo t e m s e u d i a . . . O p a t r o e s t a b r i n d o d o s peitos...
E n t r o u n a casa-grande pela primeira v e z . E , v e n d o u m r e t r a t o n a parede.
Eu me p a r e c e q u e c o n h e o e s s a figura...
F i c o u c i s m a n d o , c o m o d e d o na testa.
A t d os a r e s c o m a sua filha, n o ? p e r g u n t o u Dagoberto.
E , intencionalmente:
bonita: d p a r e c e n a c o m ela...
O sertanejo saiu p r e c i p i t a d a m e n t e e foi tirar S o l e d a d e da bagac e i r a c o r r u t o r a q u e lhe d e r r a n c a v a a inocncia.
Encontrou Lcio.
O senhor, m o o , n o p a r e c e d a q u i . . .
O estudante comparou a mentalidade do engenho, resduos da esc r a v a r i a , os estigmas da senzala, e s s e s c o s t u m e s e s t r a g a d o s c o m a
p u r e z a d o serto.
E sentia q u e , c o m o a n d a r do t e m p o , se estupidificava n e s s e meio
execrvel.
***
D e r e p e n t e , e r g u e r a m - s e o s cambiteiros, c o m o m o v i d o s p o r u m a
s mola.
T o d a a j o l d a e x t e n u a d a q u e parecia incapaz d o m a i s l e v e movim e n t o disparou d e s a b a l a d a m e n t e .
Pega! pega! r e t u m b a v a a gritaria unssona
60

C a d a qual que quisesse atravessar-se diante da correria desordenada.


E r a Pegali que a s s o m a r a no alto com u m a pre nos d e n t e s .
A t r s da caa fcil de a p a n h a r nos m o n d s ou nos fojos, porm
mais fcil na b o c a do c a c h o r r o , agitava-se toda a p o p u l a o faminta.
Pegali fugia e p a r a v a a s s u s t a d o , olhando p a r a t r s .
Afinal, largou a p r e s a , levantou a perna e fez a sua necessidade
em c i m a dela.
N o era pre: era p u n a r um rato do m a t o . . .

A V E R T I G E M DAS A L T U R A S
Soledade queria, p o r fora, c o n h e c e r Areia. Q u e r o - p o r q u e - q u e r o .
ali indicava Pirunga, e s t e n d e n d o o p e s c o o . um salto
de pulga.
Valentim diligenciava despersuadi-la: Que ia empalh-lo. E s p e rasse pela desobriga...
M a s , era por c a u s a d o s b b e d o s d e s b o c a d o s que v o l t a v a m , aos
b o r d o s , t o m a n d o liberdades c o m a s m o a s e n c o n t r a d i a s .
Ela instava:
T o pertinho!
N o podia a d o m i n g a r - s e ; pelo m e n o s , a feira.
T a n t o bateu, q u e ficou p o r isso: iria num s b a d o .
E foi, afinal, j u n t a c o m o pai, num dia de feira.
***
Da c h ela enxergou a gameleira imemorial, c o m o o cu verde da
cidade.
Via as m a n c h a s de b a r r o v e r m e l h o da e n c o s t a , a t e r r a esfolada.
E, atreita a o s longos plainos nativos, s v r z e a s intrminas, com e o u a sentir a curiosidade d a s alturas. Sem n e n h u m sentimento do
pitoresco, n o deixava de admirar essa beleza q u e a gente s sente
u m a v e z , p o r q u e t o d a a d m i r a o um pouco de surpresa.
A o s acidentes d o c a m i n h o , Areia aparecia c o m o e n c a l h a d a nos astros e d e s a p a r e c i a n u m d e s m a i o . E n t r e m o s t r a v a - s e , feita u m a n u v e m
Poisada na verdura. E, logo, fazendo negaas, sumia-se, parecia ter
descambado no abismo.
61

Enfim, j s e no o c u l t a v a , c o m o nas m a n h s d e n v o a . B r a n q u e j a v a . Resplandecia c o m a cal do casario b r a n c o d o u r a d o pelo sol


montanhs. Toda ensoalheirada.
Soledade distinguia a c i d a d e d e b r u a d a sobre a v o r a g e m . Mal
equilibrada n o d o r s o d a s e r r a , fino c o m o u m g u m e :
Chega dar agonia na g e n t e ! . . .
Circundava-a u m a n a t u r e z a d e c o n t r a s t e s , t o d a complicada e m
c u r v a s violentas. F r a g m e n t a v a - s e e m m o r r o s . Alteava-se e m desfilad e i r o s . U m a imagem de v o s e de q u e d a s . O gnio de c r i a o em surtos inspirativos e em d e s p e n h o s de fadiga. Vertigens siderais e p r o s t r a e s nas grotas s o m b r i a s .
O horizonte trancava-se de um lado quase rente c o m os telhados e
r e c u a v a , do outro lado, at a infinita perspectiva.
E r a a eminncia e u g n i c a , e m p i n a d a no c u , q u e criara nessa exalt a o d o granito florindo e m t a n t a s alternativas, u m gnio d e pintura
a sensibilidade artstica de P e d r o A m r i c o .
***
P o u c o interessavam os lugares-comuns da feira:
As crianas a r e i e n s e s , c o m o querubins e v a d i d o s do cu vizin h o . M e n i n o s b r a n c o s c o m u m a e x p o s i o d e r o s a s nas faces.
U m a mulher v e n d e n d o um papagaio. 10$000. N i n g u m queria.
D a v a p o r m e n o s : 8$000, 6$000... E, c o m o papagaio no d e d o , beijand o - o , cheirando-lhe as a s a s . Afinal, vendeu-o e e n t r i s t e c e u , p o r q u e
n o tinha mais, e m c a s a , q u e m lhe c h a m a s s e pelo n o m e . . .
P o r esse p r e o , volto c o m ele.
E r a o porqueiro, c o n d e n a d o a voltar na distncia de 4 lguas, em
m a r c h a de suno g o r d o .
Galdino C a s c a v e l e r a um velho e x c n t r i c o . T r a z i a a carga de
c o r d a d e c a r o n u m boi e n c a n g a l h a d o . E , s t a n t a s h o r a s , comia, e m
plena feira, rolos de c o b r a c o m farinha seca.
V e n d i a m faca de p o n t a e c a c h a a , p a r a q u e a polcia e a j u s t i a
c u m p r i s s e m , depois, o seu d e v e r .
A feira de c o c o s e r a um tintim por tintim... C o m p r a v a - s e pelo
som, batendo c o m uma moeda.
M o e d a c o r r e n t e : pelega, b a g a r o t e , selo, c r u z a d o , p a t a c a , xenxm...
***

62

Valentim r e c o n h e c i a algumas filhas de


c o m o criadas de servir.
Seu pai, m e n i n a ?
Acho que morreu...
E seus i r m o s ?
Tambm acho...
?...
P o r q u e n o d o sinal de vida.

pequenos

fazendeiros

***
N a feira d o s c a v a l o s :
E s t e de baixinho a b a i x o . E t a m b m no rojo do meio. N o
dizer q u e pedido de r d e a : cavalo liberal. M a n s o q u e um pensamento.
estradeiro. passarinheiro. R o n c a o palheiro. C a valo fouveiro deixa o d o n o no terreiro. B e b e em b r a n c o . T e m
sinal e n c o b e r t o . M o b r a n c a , m o m a n c a . o q u e h de ardigueza. Vai c a b e a n d o . . . S u a em p . . .
Valentim, c u r i o s o , a p r o x i m o u - s e c o m C o r i s c o pelo freio.
Q u e r f a z e r u m a b a r g a n h a ? acudiram os c i g a n o s .
E iam logo d e s f a z e n d o no bucfalo:
Cavalo melado mela o dono e o encerado...
N o m e u e n e m q u e fosse... M a s , q u a n d o d e i t a a c a b e a na
a n c a de u m a r s , n o h h o m e m p r a esbarrar a c e n t u o u o sertanejo.
E os ciganos, d e s e n g a n a d o s da troca:
E s t at m a n t e d o . E n o um m o n d r u n g o t u n g o . P a r e c e
quartau de fiana...
***

U m z u n z u m . U m fecha-fecha! U m c o r r e - c o r r e ! !
Q u e foi? Q u e n o foi?
T r r i . . . Apitos. T r r r r i . . .
A feira desarticulava-se. Barafustava-se na i n c e r t e z a do rebulio.
U m c e g o , c o m o s o l h o s b r a n c o s volvidos p a r a o c u , levou, maquinalmente, a s m o s a o s b o l s o s . E n t o , o guia, u m g a r o t o d e o m b r o
baixo, fez-lhe u m a c a r e t a q u e a forma m e n o s a g r e s s i v a de injuriar a
quem no v.
63

M a s sabia q u e ele e r a o m a i s infeliz dos c e g o s : n o v e r em


Areia!...
A p i t o s . Apitos.
O l a d r o escapara-se pela ladeira do Quebra. E os soldados apod e r a v a m - s e d o s cavalos da feira p a r a encal-lo. A n t e s q u e Valentim
p u d e s s e impedi-lo, um deles v o o u em c i m a de C o r i s c o e c o r r e u desfilada.
O sertanejo, aflito, avisou S o l e d a d e :
Eu v o u atrs do c a v a l o !
E, volvendo-se, na carreira:
Eu j volto j-j!
G r i t o u ainda, s e m ver Pirunga:
R e p a r e minha filha a! T o m e sentido nela!
E a b a l a v a p a r a a frente, o l h a n d o p a r a t r s .
S o l e d a d e extraviou-se n o t u m u l t o .
B e m q u e o s c a b r a s diziam:
A q u e l a d sorte na r u a . . .
L o u e bem-feita, sentia-se bela pelos olhos de t a n t a g e n t e .
E encolhia-se na o n d a d o s feirantes.
Passou-lhe pela m e n t e q u e p o d e r i a ressarcir c o m esse d o m o conforto p e r d i d o .
E n c o n t r a n d o - a s, o s e n h o r de e n g e n h o deu-lhe u m a coisa, s
o c u l t a s . Deu-lhe d a d a .
L c i o ofereceu-lhe a g a r u p a do seu alazo p a r a conduzi-la casa.
E l a r e l u t o u ; a c e d e u f i n a l m e n t e . M a s , montaria fora d e p o r t a s .
V e n d o - a nesse c o n c h e g o , a s m a t u t i n h a s d e b i c a v a m :
Hum!... hum!...
Um bbedo, com as mos abanando:
Hoje galo canta a n t e s do dia a m a n h e c e r . . .
S o l e d a d e a c h a v a graa n e s s a s indiretas. E L c i o ficava srio.
A um t o p e do cavalo, ela cingiu-o c o m um g r a n d e a p e r t o quase a
meter-lhe as u n h a s no c o r a o . E ele sentia-lhe o hlito no pescoo,
p r i m e i r o c o m u m a s e n s a o de d o r m n c i a e, enfim, q u e i m o s o como
um s o p r o de fogo de m a a r i c o .
E s t chega n o c h e g a disse Soledade, a v i s t a n d o as cajazeiras.
E simulava inquietar-se:
Se papai no der p o r m i m . . .
Q u e r i a voltar, c o m a i n t e n o de rever a cidade ou de prolongar
esse contato.
Lcio retrocedeu constrangido.
64

Pirunga q u e vinha vindo da feira divisou-os c h e g a d i n h o s na galopada solta. E esfregou os o l h o s p a r a r e c o n h e c - l o s .


O c o r r e u - l h e , e n t o , u m a suspeita terrvel.
Esgueirou-se m a r g e m d o c a m i n h o , c o m o p a r a s e disfarar. E , n o
ponto e m q u e eles p a s s a v a m , n a e s q u i p a d a , pondo-se-lhes d i a n t e , p u lou em c i m a da poeira e p r o c u r o u c o l h e r as r d e a s , n u m a s s a l t o t e m e rrio.
O c a v a l o a s s o m b r a d o u p o u e levantou-lhe as p a t a s s o b r e o p e i t o , a
pique de atropel-lo.
Ele a r r e m e s s o u - s e n u m m p e t o m a i s vigoroso e a b r a o u - s e c o m o
pescoo do animal e x a s p e r a d o q u e o sacudiu n u m g a l o .
L c i o e S o l e d a d e e s c o r r e g a r a m pela a n c a .
E ela alterou-se:
L e s o ! L e s e i r a ! A gente vai direitinho, e s s e d o i d o , s e m q u n e m
mais, v e m se a t r a v e s s a r ! . . .
E s t no seu direito! a p a z i g u o u - o L c i o , p e g a n d o no freio
partido.
Soledade c o n t o u ao pai e s s a p a s s a g e m . C o n t o u a seu m o d o .
Pirunga, interpelado, explicou:
F o i p o r q u e e u m a l d e i . . . N o t i n h a q u e v e r m o a fugida...
P o r e s s e eu b o t o a m o ho fogo tranqilizou-o Valentim.
M a s , q u a n d o e n c o n t r o u L c i o , c a r r e g o u o s o b r e c e n h o e n o lhe
deu palavra.

AMOR, LEI DA N A T U R E Z A

S o l e d a d e t o r n a r a , a p o u c o e p o u c o , d e s e n v o l t u r a de seu natural.
C r i a d a , s e m b r i n c o s d e m e n i n a , n o s folguedos d o s i r m o s m a i s v e lhos, c o n t r a r a os m e s m o s h b i t o s de liberdade e de a u d c i a rstica.
E, n o logrando condicionar-se vida sozinha, fugia ao tdio caseiro, v a g u e a n d o p o r vales e g r o t e s , c o m u m a vivacidade de p a s s a rinho indomstico.
R e c o b r a v a o j e i t o d a s e s c a p a d a s pelos s e r r o t e s e tabuleiros sertanejos, a t r s d e frutas d o m a t o o u d o s cabritos fujes.
N o s e a c o m o d a v a c o m a s raparigas s e r r a n a s . E n t r a v a , s v e z e s ,
65

p e l o cafezal; m a s , s u a vista, as a p a n h a d e i r a s e n t r e o l h a v a m - s e e fic a v a m c h i a n d o , c o m o m o r c e g o s a s s u s t a d o s . A, e l a largava p a r a m a i s


longe: s e m p r e andeja, enfiava a t pelo c a p o m a c i o d o alto d a cachoeira, onde as raposas se acamavam.
L c i o saa-lhe, m a i s q u e d e p r e s s a , a o e n c o n t r o .
S o r v i a o ar, farejando-lhe o almscar virginal. E fazia de c o n t a q u e
n o a p r o c u r a v a , e s c u s a n d o - s e c o m fingida s u r p r e s a :
Pensei que f o s s e . . .
E , a s s i m , confundiu-a, d e c a d a v e z , c o m t o d o s o s s e r e s a n i m a d o s
e i n a n i m a d o s do M a r z a g o , inclusive, d i s t r a i d a m e n t e , c o m ela m e s ma:
Pensei q u e fosse v o c . . .
Q u a n d o n o , d a v a um sinal p a r a q u e ela o b u s c a s s e : tossia, q u e b r a v a u m galho, a s s o b i a v a . . . A s mais d a s v e z e s , tossia, d e tal forma
q u e ficava tossindo d e v e r d a d e .
Si... si...
E r a u m a cigarrinha maliciosa, d e s s a s c h a m a d a s d o v e r o , q u e o s
c o n v o c a v a p a r a o idlio.
O o u t r o dia, o s e n h o r de e n g e n h o t e m p e r a v a a goela. E S o l e d a d e ,
q u e a c o r r e r a , voltou m a t u t a n d o :
T e r i a sido de c a s o p e n s a d o ? . . .
E alongavam-se de c a s a ; d e s c a m p a v a m , solta, p o r t o d o s os m e a n d r o s d o latifndio.
E s s a s e s c a p u l a s d a v a m q u e falar a o s linguares d a bagaceira:
N e s s e a n d a r , ela se arranja... S oio o falao...
J e s t v a g a n d o u m a histria...
R e p r o c h a v a m a c o n d e s c e n d n c i a de Valentim P e d r e i r a , c o m restri e s a o conceito d a h o n r a sertaneja:
F a z e a c o n t e c e e, q u a n d o a c a b a , n o t e m um tiquinho de sent i m e n t o . A n d a c o m u m a pele-de-cear nos o l h o s . . .
S t e m u m a filha, n ' g u a e no sal. E, em v e z de p r a regra na
b o c a d o s a c o , fecha o s o l h o s p o r q u e c o m q u e m . . .
E os dois viviam, m a i s e m a i s , na intimidade d e s t a n a t u r e z a alcoviteira q u e e r a t o d a u m a e x a l t a o c o m u n i c a t i v a n o s s e u s solertes
a m a v i o s e n o s seus frmitos de vitalidade.
L c i o , seja d i t o , n o e r a d o s m a i s sensveis a o s l u g a r e s - c o m u n s d a
c r i a o . J sabia de c o r o c a n t o de t o d o s os p a s s a r i n h o s e n o sentia
m a i s o perfume d a s flores...
M a s , se n o o e m b e v e c i a a b e l e z a e s p o n t n e a da p a i s a g e m , parti66

cipava de seu t o q u e de h u m a n i d a d e , de sua r e p r e s e n t a o sentimental. E adquiria o u t r a n o o do c a m p o . Frua o a l v o r o o de um q u a d r o


imprevisto n a s p e r s p e c t i v a s vulgares, de u m a brasilidade imutvel.
C o b r a v a o sentido d o s c e n r i o s d e s p e r c e b i d o s de seu antigo convvio.
I n t e r p r e t a v a a s formas v i v a s , t o d a s a s palpitaes d e s s e ambiente d e
coloridos e fragrncias q u e lhe reconstituam a sensibilidade m o a .
A n d a v a c o m u m a alegria n o v a brilhando-lhe n o s o l h o s v i v o s ,
c o m o a sade d o s s e n t i m e n t o s renascidos.
O stio arreava-se de festes i n c o m u n s .
A florescncia incitativa requintava em milagres de a r o m a e de cor.
L e v a n t a v a m - s e a s a s t r a v e s s a s c o m o convites d a a m p l i d o .
T u d o se a c a s a l a v a n u m a vivacidade a m o r o s a e c a n t a d e i r a .
As s o n o r i d a d e s i n c e s s a n t e s e r a m o ritmo de um g r a n d e beijo criador.
N a c o n t e m p l a o d e s s e s a s p e c t o s n a t u r a i s , L c i o sentia r e n o v o s
de felicidade.
P o s t o q u e incuriosa d a s coisas visveis, S o l e d a d e n o deixava d e
se deleitar n e s s a c o n s t n c i a de beleza agreste c o m p a r a d a c o m a natureza precria do seu s e r t o . Sadia e viosa, em t o d a a frescura da pub e r d a d e floral, p a r e c i a um d e s a b r o c h o d e s s a e x u b e r n c i a festiva.
Valentim no d a v a p o r e s s a s digresses; p o r isso n o lhe p u n h a
c o b r o vida buliosa, m a i s do q u e convinha n u m m e i o t o incerto. E
vedar-lhe a nica r e c r e a o compatvel c o m o seu gnio irrequieto,
priv-la dessa existncia livre, enclausur-la na sujeio domstica
seria subtrair-lhe t o d o o s a b o r da serra privilegiada.
M a s , n o havia bem-te-vi g a r o t o que os s u r p r e e n d e s s e c o m o seu
grito indiscreto. N u n c a , a falar v e r d a d e , o q u e i m o r de um beijo perturbara e s s e s e n c o n t r o s p r o p o s i t a d o s .
Milonga p e g o u - o s , de u m a feita, nesse colquio ao ar livre:
Benza-a D e u s ! sinh-moa todinha!...
E , fechando o s o l h o s :
Q u a n d o ficar s c o m ela, faa de c o n t a , m e u filho, que sinh-moa vinda d o c u lhe b o t a r b e n o . . .
T o m o u a m o de S o l e d a d e :
Beije aqui, i o i o z i n h o . . .
N o , Milonga: m i n h a m e v o c tergiversou L c i o , abra a n d o a m e preta.
Sensibilizada p o r e s s e d e r r a m e filial, a negra velha alvitrou:
N o digo q u e n o beije, m a s s na m o , ioiozinho, p o r q u e sai
logo p e l o s d e d o s : n o vai formigar l d e n t r o .
67

O e s t u d a n t e baixou a vista p a r a n o e n c a r a r os r e l e v o s da c a r n a o f l o r e s c e n t e q u e solicitava u m a c e s s o d e beijos d a c a b e a a o s p s .


E ficou a e s c u t a r as r e n o v a e s interiores, sentindo q u e e s s e pensam e n t o d e a m o r roceiro lhe c o m p u n h a o u t r a i m p r e s s o d a vida.
S o l e d a d e p o u c o s e d a v a d e s u a p r e s e n a , c o m o s e estivesse n a
c o m p a n h i a de u m a amiga ingnua, q u a n d o ele a a p a n h a v a em gracios a s negligncias e s p i c h a d a no r e l v a d o . T r a n s p u n h a as l e v a d a s , salt a v a a s s e b e s , subia n a s r v o r e s c o m u m a viveza d e s c u i d o s a .
Um dia D a g o b e r t o divisou-a e m p o l e i r a d a n u m cajueiro. E espiou
para cima:
M a s , isso srio! Deixe e s t a r q u e eu v o u dar p a r t e a seu pai.
O l h o u d e n o v o , sem q u e r e r .
E l a d o galho e m q u e e s t a v a soltou-se, caindo n a folhada, c o m o u m
fruto g o s t o s o .
E o s e n h o r de e n g e n h o n o c o n t e v e o riso, v e n d o L c i o , e m b a i x o ,
v e n d a d o c o m u m leno.
M a s saiu fungando, ao seu s e s t r o , t o r c e n d o o nariz a t u d o .
Q u a n d o o feitor lhe c o n t a v a os fracos desse a m o r do filho, resp o n d i a c o m u m a stira invarivel:
A q u i l o , q u a n d o c h e g a r idade de criar j u z o , j e s t m a s caduco.
E fungava ainda, e s c u t a n d o , de longe, uns gorjeios d e s c o n h e c i d o s
que estalavam no mato...
L c i o mais Soledade p r e s s e n t i a m que e s t a v a m s e n d o vigiados. E
d e r i v a v a m p a r a o u t r o s lugares.
U m a s o m b r a q u e se intrometia, o gemido d o s a n u n s a m o i t a d o s , o
a r a t i c u m espapaando-se n u m b a q u e frouxo t u d o os sobressaltava.
S , e n t o , se sentiam mais j u n t o s um do o u t r o ; t i n h a m o p u d o r do
e r m o , a p e n a s c o m a s t e s t e m u n h a s d a n a t u r e z a inocente.
C a l a v a m - s e , c a d a qual c o m m e d o d e falar.
Soltavam-se a s m o s d e s c o n f i a d o s .
E r a u m a c a b e a d e p r e t o q u e o s espreitava. N a d a : e r a u m cupim
indiferente.
T e r r a de negro!... d e s d e n h a v a Soledade, a c h e g a n d o - s e .
P i r u n g a tinha-os de olho. Punha-se de guarda, dissimulando-se nas
r v o r e s mais folhudas ou a l a p a r d a n d o - s e nas moitas de c a m a r .
A q u a n d o e q u a n d o , r e p o n t a v a n u m atalho, c o m o q u e m n o q u e ria e q u e r e n d o .
S o l e d a d e descobria:
S acerta c o m a gente p o r c a u s a do c a c h o r r o : ele v , m a s n o
sente.
68

A t q u e , u m a vez, L c i o saiu-lhe frente e interpelou-o c o m azedume.


E s s a energia d e s a c o s t u m a d a avivou Soledade q u e ajudou:
'St a! 'St v e n d o ? T i c a c a ! . . .
Assim o c h a m a v a em s e u s arrufos. No serto ia p e g a n d o . N o
que ele fosse catingoso. Efebo sadio, se tinha algum pituim, era o b o d u m d o chiqueiro.
Vinha-lhe o apelido de um episdio da infncia. F o r a o c a s o q u e ,
q u a n d o m e n i n o , d e r a c o m u m a maritacaca d e t r s d o serrote d a a c a u .
E, c o m o n o tivesse olfato, de n a s c e n a , p r o c u r o u alcan-la. A bicha defendeu-se, o q u a n t o p d e , c o m a m i c o ftida. Ele nem se
d a v a disso. Q u e gentil e m i m o s o animalzinho!
T r o u x e - o nos b r a o s , c o m o u m a c h a d o c u r i o s o .
Misericrdia! T u d o se impregnou do mau odor.
E, depois de muitas esfregaes, ficou s e n d o T i c a c a .
A s p i r a n d o o cheiro q u e se e v o l a v a de Soledade, o e s t u d a n t e apiedou-se de Pirunga a q u e m faltava um sentido t o p r e c i o s o . E imaginou c o m q u e fria ele a a m a r i a , se lhe sentisse o b l s a m o do c o r p o
virgem.
E s s a vigilncia e r a u m incitamento.
R e p a r a n d o nos cips r e e n t r a n t e s e n r o s c a d o s n u m t r o n c o velho,
vingando a c o p a inflexa, cingindo a ramaria asfixiada. Soledade cobi a v a e s s a d o m i n a o desigual. E , v e n d o a s o r q u d e a s n a s r v o r e s r i j a s , tinha vontade de concitar L c i o a um a m o r m a i s franco:
D - m e apoio e eu te darei as minhas g r a a s ; d - m e seiva e eu
te retribuirei c o m a alegria do c o r a o .
C o m as c h u v a s j a n e i r e i r a s a paisagem c o b r a v a e x p r e s s e s mais
vivas. M a l b a r a t a v a seus m i m o s n u m luxo d e t o d o s o s m a t i z e s . Flores
singelas salpicavam a alfombra n u m a policromia profusa, c o m o se o
ltimo arco-ris se tivesse d e s m a n c h a d o , aos pingos, na v e r d u r a a s s o berbante.
O milharal e m b a n d e i r a v a o stio em festa.
L c i o a n d a v a to r e v e r t i d o a e s s e e s t a d o natural q u e tinha venetas
de espojar-se na relva, sujar-se de frutas m a c h u c a d a s , b e b e r o orvalho em folhas.
Escapulindo-se desse e n l e v o , Soledade c o r r e u a o b a t e d o u r o .
A s lavadeiras a c o c o r a v a m - s e arregaadas at a s c o x a s , m a s c o m
a s saias t o b e m t r a a d a s , q u e n e m d e c c o r a s e s t a v a m d e s c o m p o s t a s . P a r e c i a u m a v e g e t a o multicor beira da levada.
A s q u e vinham c h e g a n d o d e s a t a v a m c o m a s t r o u x a s u m m u n d o d e

69

intimidades. C a d a vestido e r a a impregnao de um c o r p o . Havia panos sujos de almas.


E d a v a m trela:
Ainda estou por ver u m a m o a mais foguete!... Solta de c o r d a
e c a n g a e o b r a n c o sem respeito na batida dela...
Mais hoje, mais a m a n h , esse negcio a c a b a em c h o r o de m e nino...
Minha negra, n o p o r falar, m a s j caiu na b o c a do m u n d o .
N o vale mais u m dez-ris-de-mel-coado...
Eu estou a q u e l a bichota p e n s a r que aquilo n o p a s s a de paleio, q u e m o o b r a n c o p r o bico dela...
Pirunga a n d a c a b r e i r o , n u m p e n o u t r o . . .
A t o senhor de e n g e n h o , bichinha!...
A d o n d e ? N o v logo!...
Bonitota . C h e g o u aqui guenza m a s est q u e p a r e c e u m a imagem.
N o ofenda a D e u s , mulher! Imagem? Tinha q u e v e r . . . Bonita,
n a d a ! s e n g r a a d i n h a . . .
Soledade percebeu e s s a linguarice excitante.
Coibiu o primeiro a s s o m o . E perguntava-se, c o m u m a ingnua curiosidade, p o r q u e essa a t o a r d a e r a inverdica. Se os h o m e n s se c o m p o r t a v a m assim, c o m o os bichos de sua convivncia, nas c e n a s de fec u n d i d a d e da fazenda, p o r q u e L c i o , q u e a seguia p o r t o d a p a r t e ,
c o m o o marru a c o m p a n h a as v a c a s solteiras, n o lhe d e r a ainda um
sinal d e s s a animalidade?
Ao o u t r o dia, o e s t u d a n t e achou-lhe um ar diferente, c o m um riso
m e n o s solto e u m a graa mais sbria.
C o r a v a - s e , sem ter d e q u , c o m a s plpebras d e s c i d a s , n u m rubor
q u e latejava.
T i n h a m d a d o n u m d o s r e c a n t o s mais a m v e i s .
Ouviam-se c o c h i c h o s de r a m o s que se esfregavam u n s aos o u t r o s .
E r a um chilrear sem fim n o s moitedos frementes. Os passarinhos
c a n t a v a m d e n t r o d a s c o p a s fechadas c o m o n u m viveiro tumulturio.
A m a n h e s t a v a t o n t a de claridade.
E Soledade r e t e s a v a o b u s t o firme n u n s e s p r e g u i a m e n t o s involuntrios. Revelava o u t r a e x p r e s s o feminina. D e p o i s , caiu n u m a lassido:
Eu no p a s s o de u m a retirante...
mim...
Emendou, com um entono engraado:
70

N i n g u m q u e r saber de

M a s , se no fosse a seca, eu no levava em c o n t a . . .


Ainda, a sorrir, c o m u m a sombra de desdm no arrebito do nariz:
Eu sou to fe-e-ei-a!...
Lcio retrucou, m a q u i n a l m e n t e
mulher basta ser bela...
E, ao cabo, consolando-a:
N o , Soledade, m e s m o com a seca. eu n o vejo o u t r a . . .
Ela interpretou a seu m o d o :
Ah, a s s i m ? . . .
Em seguida, o estudante pegou-lhe as mos que, sem anis, eram
mais ostensivas na sua beleza.
Ela provocou outra confisso:
E s t fazendo p o u c o em mim...
E Lcio entrou a mir-la c o m um e n t e r n e c i m e n t o a b s t r a t o .
Enfarava-se. s v e z e s , de sua ledice volvel; t a n t o mais triste e
sofredora, mais a queria, c o m o a figura magrinha e dolente da estrebaria.
Soledade enfastiava-se d e s s a e x p r e s s o de inteligncia e de desgosto. Intentou voltar, d e s a p o n t a d a , p r e t e x t a n d o :
E s t o u m o r r r - r e n d o de s e d e !
E m b a i x o , flua a c a s c a t i n h a resguardada pelas cajazeiras embrulhadas n o s seus fichus de t r e p a d e i r a s .
Lcio aconcheou a destra, colheu a gua e deu-lha a beber. Ela
sorveu-a, aos estalidos, c o m os olhos verdes revirados e ficou chuc h u r r e a n d o os beios na palma da m o t r e m e n t e . Depois de dessedentada, comia-a de beijos.
E ele, todo e s c a r l a t e , contraa os d e d o s e machucava-lhe a boca
sfrega. Forcejava, muito a t r a p a l h a d o , estancar-lhe o j o r r o do corao.
Soledade a g a s t o u - s e , enfiada:
Brejeiro! N o nega q u e brejeiro...
Voltaram contrafeitos e calados L c i o c o m a idia fixa da
honra sertaneja e S o l e d a d e c o m o que repesa da efuso leviana.
Ao separarem-se ela desculpou-se:
Foi s brincadeira; p a r a ver o que voc fazia...
E ele, sem r e s p o n d e r , aspirou, longamente, a m o beijada; m a s .
logo, corrigiu o efeito d e s s e gesto:
N s s o m o s c o m o i r m o s ; eu queria ter u m a irm.
Da a p o u c o s d i a s , S o l e d a d e recebeu-o c o m u m a pontinha de mistrio:
71

Eu nem lhe digo!...


E. depois de muito rogada:
Sabe que e s t o m a l d a n d o de n s ? . . . Em h o m e m n o pega nada...
Mostrou-lhe a barra do vestido:
Voc est livre, m a s olhe saia c o m o pega c a r r a p i c h o . . .
Lcio no ignorava e s s a s m u r m u r a e s :
Ningum pode tapar a boca do m u n d o . . .
Nesse caso, eu no posso ser sua irm...
?
O p o v o no diz?
E afastou-se, c o m o de vez.
Parou no p o m a r para colher uma laranja c o m um gesto d e s a s t r a d o
de Eva. E feriu-se na m o .
Voltou c o m uma graa careteira e o d e d o a sangrar.
Lcio penalizou-se:
N o tem n a d a : passa j .
E ela deu-lhe o pingo de sangue a chupar at e s t a n c a r .
Tinha na b o c a um ricto caricato e os olhos glaucos riam disfaradamente.
O xexu pontual grazinou uma pilhria.
Soledade gracejou:
Voc chupou c o m tanta fora que o c o r a o ia saindo...
E, com uma ironia pronta:
Agora, voc tem m e u sangue nas suas veias; agora, sim. v o c
meu irmo...
Eu j o tinha. S o l e d a d e . . .
Imagine!
Vibravam, toa, o u t r a s vozes galhofeiras.
E vivaz, c o m o se tivesse asas em t o d o s os sentidos, ela entrou em
alegrias repentinas, nas repreensveis t r a v e s s u r a s de sua natureza indcil.
A palpitao d a s narinas dava-lhe um ar mais p i c a n t e .
E m b o s c a v a - s e n a s moitas a r r e m e d a n d o o s a n u n s .
Assanhava os m a r i b o n d o s . E desferia a rir, p e r a n t e as piruetas de
Lcio, que punha as m o s na cabea, a p e r r e a d o .
Os passarinhos c a n t a d o r e s respondiam a e s s e riso (de verdade!...) com uns trinados idlicos, c o m o se e s t i v e s s e m r e s p o n d e n d o
companheira extraviada.
Nisto, surdiu o feitor. Esfregou a m o na axila e tirou a caixa de
maribondos, t o d o s q u i e t o s , inofensivos, c o m o a b e l h a s brasileiras.
73

C o m o isso, M a n u e l ? inquiriu o e s t u d a n t e .
Manuel Broca p a s s o u , de n o v o , a m o no s o v a c o e a p a n h o u , imp u n e m e n t e , o u t r a caixa.
L c i o rendia-se a e s s e s c a p r i c h o s inocentes. S via em Soledade a
solteirinha intata, de u m a graa t o menineira, q u e , s v e z e s , tinha
g a n a s de tom-la ao c o l o .
N e s s e ambiente afrodisaco, nutria um a m o r sem carnalidades, um
idlio naturista, c o m o s a b o r acre de fruta de v e z , j u n t o a o s a b a n d o nos e aos m o d o s de indiferena ou de entrega d e s s a mulher perturbad o r a que a l v o r o a v a t o d o o M a r z a g o .
A semelhana e v o c a t i v a amortecia-lhe os a p e t i t e s indiscretos que
a n a t u r e z a velhaca lhe destilava no sangue tropical.
E g o v e r n a v a as v e n e t a s de g o z o . C h e g a v a a ter r e m o r s o s dos son h o s ruins.
Soledade q u e d o u - s e , u m a t a r d e , a ver o sabi-gong c o m e n d o pim e n t a . Depois, o p a s s a r i n h o nacionalista foi piar no olho de uma umb a b a , p o i s a d o u r o d a s preguias.
Em c m b i o , o galo-de-campina c o n c e r t a v a u m a autntica melodia
de beijos ou coisa a s s i m .
E ela ficou o l h a n d o o u t r o s passarinhos a c a s a l a d o s o m a c h o , de
ordinrio, mais b o n i t o q u e a fmea. E era t a m b m o q u e cantava.
E n t o , voltou-se p a r a L c i o , esquecendo-lhe o n o m e :
Esse menino, voc t o capiongo: nem abre o bico. Faz toda a
vida que no me c o n t a u m a histria.
U m ventozinho madrigalesco mexia-lhe a s m a d e i x a s c u r t a s , ora
alargando-lhe a t e s t a , o r a cobrindo-lhe os o l h o s .
E ele c o m e o u , e s p i a n d o para cima:
Era u m a v e z u m a fada. C o m o no havia t o bela e n t r e os anjos
e as o n z e mil virgens, o c u vivia a mir-la, t o d o o dia q u e D e u s dav a , c o m o seu olho de sol, muito a c e s o e n a m o r a d o . O sol crescia e se
e n c h i a de luz pra ver melhor. N e n h u m a n u v e m p a s s a v a por essa viso de fogo. E o cu e r a t o feliz que n o c h o r a v a mais. N e m u m a
gota d!gua! Por c a u s a d e s s e n a m o r o , as fontes foram s e c a n d o , as rv o r e s esfolhando-se, a terra e s t o r r i c a n d o . . .
Deixa de enjo, e n j o a d o ! . . . interrompeu S o l e d a d e , atinando
c o m a aluso piegas.
Enjoava-se d e s s a s fantasias.
L c i o s o m b r e o u - s e . E alou a m o :
E s p e r a a! N o p a r e c e um gemido?
N o o c a c h o q u e v e m s a i n d o ? . . . A b a n a n e i r a est p a r i n d o .
74

como l diz... explicou S o l e d a d e , rindo desse t e m p e r a m e n t o sensitivo.


E os m a n g a r s o s c i l a v a m , c o m o c o b r a s de c a b e a s vermelhas
abrindo o s d e n t e s b r a n c o s .
Encalmava-se o dia.
Desvos de v e r d u r a , moitas de u m a confidencia exemplar c o m
que guardavam as s o m b r a s d o c e s , ofereciam-se a e s s e enleio a m o r o s o
e confiado.
E r a m gasalhados c o n v i d a t i v o s , recessos nupciais. O bambual c o m
o refrigrio d o s seus l e q u e s . O dossel de maracuj c o m flores e frutos.
O melo b r a v o , e n v o l v e n d o um a r b u s t o , t o d o salpicado de o u r o ,
formava um ninho a c i n t o s o .
Soledade c h a m o u :
Quer entrar naquele sombrio?
E L c i o , nas suas d v i d a s , hesitou:
Eu sei?...
Ela levou-o pela m o .
Era um leito macio e natural no folhio a m o n t o a d o . E n t r a v a , apenas, u m a rstia de sol, c o m o vela acesa na p e n u m b r a discreta.
V e n d o o tlamo floral. Soledade r e c u o u :
E n g r a a d o ! T i n h a q u e ver eu me a m o i t a r . . .
Ocorria-lhe um p u d o r de ltima hora, pelo sim, pelo n o .
Lcio ficou dentro, amuado:
Bom!... E v o c p e n s a v a q u e eu ficava?...
Ela foi sentar-se no cajueiro da alameda, o de galhos desiguais.
Pirunga passou e deu-lhe uns favos de e n x u , trazido da mata. T o
medocre, nem se c o m p a r a v a c o m o enxu do serto que m e d r a v a ,
previdentemente, p a r a as r e s e r v a s da seca.
Lcio t o r n o u , m e i o e s q u e r d o .
Afogueava-se a poesia do v e r o .
Um bruto meio-dia. O solo e s p a r r a m a d o .
E as rvores t o s t a d a s franqueavam-lhe s o m b r a s hospitaleiras que
nessa q u e n t u r a e r a m u m a o b r a de misericrdia.
As cigarras aplaudiam a fulgurao triunfal.
C o m e a v a m c a c a r e j a n d o c-c c o m um c h o c o mido.
Rechinou um grito, a e s m o . O u t r o . Mais o u t r o . E pegou o desafio
sonoroso.
Havia t r o n c o s c r e s p o s de cigarras c a n t a d e i r a s . ( Q u e m duvidar
s ir ver na serra.)
As macabas prediletas tinham cigarras c o m o e s p i n h o s .
75

C o m p o u c o , t o d a a a l a m e d a zinia, c o m o se c a d a folha fosse um


a s a estrdula. Parecia q u e o znite radioso apitava em cada raio
sol.
E os cajueiros q u i e t o s , c o m o e s c u t a .
Z o n z o e a d o r m e n t a d o no torpor do m o r m a o . Lcio caiu num
a b a n d o n o g o s t o s o . Na g r a n d e luz passou-lhe uma nuvem pelos olhos.
Soledade, ao lado, inclinava a c a b e a c a c h e a d a . E ele, sem dar
p o r isso, de olhos fechados, puxou-a a si, passou-lhe a m o pelo pesc o o e, apanhando-lhe o queixo entre os d e d o s , ficou a afag-lo, esq u e c i d a m e n t e . R e n t e a ela, evitava-lhe, e n t r e t a n t o , os c o n t a t o s fortuitos.
D e p o i s , principiou a franzir os lbios, formando um bico suspeito
Conhecendo-lhe a inteno, ela torceu a c a r a , c o m m e d o de algum
beijo de surpresa.
E esperou-lhe a b o c a ansiosa com o favo de e n x u .
Q u e sabor dulcssimo!... T o d o c e que ele cismou. E, descobrindo
a traa:
Sabe q u e m a i s ? b o m a c a b a r c o m isto!...
Soledade t r o a v a e s s a zanga:
Ih, v o c ! . . .
E , a t o c o n t n u o , caiu-lhe aos p s , e n r o d i l h a d a , c o m o u m a gata
camarada.
C o m o rosto baixo, fitava nele os olhos revirados. Fiava-se nos txicos d e s s e olhar.
F i n a l m e n t e , levantou-se e enfiava-lhe os d e d o s pelos cabelos,
c o m o u m a caranguejeira v e n e n o s a :
T e n h a j u z o n e s t a c a b e a de v e n t o .
E volveu ao m e s m o e s t o u v a m e n t o . P e r p e t r a v a leviandades graciosas que no induziam a m e n o r malcia, m a s e r a m de molde a suscitar desconfianas.
A p o n t a v a a s m a c a b a s bojudas c o m c o m p a r a e s indiscretas, etc.,
e t c . T u d o c o m a simplicidade de q u e m n a s c e r a e c r e s c e r a , v e n d o o
curral p e g a d o c a s a .
L c i o ralava-se:
J teria o p u d o r d e t e r i o r a d o pela c o n t a m i n a o da bagaceira?
E, u m a feita, r e p r e e n s i v o :
S o l e d a d e , v o c , u m a m o a feita, t o m a n d o b a n h o no a u d e ! . . .
Ela ia, de fato, b a n h a r - s e , s noitinhas. E ria, e s c a n d a l o s a m e n t e ,
q u a n d o as piabas-famintas, c o m o as p i r a m b e b a s do rio do Peixe, lhe
beliscavam a s c o x a s p u b e s c e n t e s .
A gua b a l d e a d a , s b o r b u l h a s , c o m o q u e fervia ao calor do seu
76

corpo nbil. N o parecia gua morta; no tinha a corriqueira insensibilidade de e s p e l h o , c o m fundo de lama.
E ele esforava-se por persuadi-la da conscincia do lar. Mostrava-lhe o j e n i p a p e i r o s o b r e c a r r e g a d o , sem u m a folha:
Olha, aquilo c o m o a me de famlia: despe-se de todos os ornatos, renuncia a t o d a s as vaidades, para ficar s c o m os seus frutos.
Ela redargia:
Eu no vou nisso. A gente deve ser c o m o o p a u - d ' a r c o , que
fica sem u m a folha pra se cobrir todo de flores.
E indicava ainda o mulungu. Na v e r d a d e , toda a rvore sangrava.
Toda borrifada de sangue fresco, n u m a palpitao de carne viva.
V e n d o que o c a s a c a - d e - c o u r o c o m p u n h a o ninho com espinhos e
gravetos, L c i o c e n s u r a v a :
Passarinho c h a b o u q u e i r o ! . . .
S c o m p r e e n d i a o a m o r c o n c h e g a d o em p l u m a s .
E Soledade l e m b r a v a o beija-flor que nidifica, de preferncia, nos
ps de urtiga. C o m p a r a v a :
Veja c o m o o c o r a o bem g u a r d a d o ! A gente no pega, n o
v...
E, levando a m o ao peito:
... mas o q u e se sente mais: bate sem parar e b a t e , d e n t r o ,
com mais fora, q u a n d o j no nos p e r t e n c e . . .
U m a tardinha, ela e s t a c o u perto de c a s a e pediu a L c i o que lhe
abotoasse o c a s a c o a b e r t o a t r s .
C o m os d e d o s d e s a s t r a d o s , ele aflorava-lhe as e s p d u a s capitosas.
Sentia-lhe na p e n u g e m da nuca um cheiro extraordinrio de bogari
machucado.
Ela encolhia-se, a o s t o q u e s casuais:
Olhe, direitinho!...
E virou a c a b e a . E s t a v a m as c a s a s d e s e n c o n t r a d a s . Com u m a s
mo fechou o c a s a c o p r o n t a m e n t e sinal de que o havia d e s a b o t o ado por gosto.
E r a para mangar c o m e l e . . .
Isto q u e !... vociferou Pirunga, i r r o m p e n d o de u m a touceira
de cana.
E, a v a n a n d o , m a l - e n c a r a d o , terrvel:
Pois o s e n h o r d e s e n c a b e a n d o essa d e s m i o l a d a ! . . .
A gente n o p o d e n e m . . . interceptou S o l e d a d e .
A fervura do sangue queimava-lhe a c a r a .
Lcio reps-se a c u s t o :
A gente n o p o d e n e m . . .
77

... n e m o q u , b r a n c o sem respeito!


... abotoar.
Pirunga tomou o v e r b o no sentido brasileiro e apresentou-lhe o
peito forte:
A b o t o e ! A b o t o e ! A b o t o a nada!...
E teria investido, se Soledade no o h o u v e s s e c h u m b a d o ao solo
c o m o olhar agridoce.
***
Dagoberto c h a m o u L c i o parte e aferrolhou-se com ele.
G r a v e e contrafeito, n o tinha por o n d e c o m e a r . Enfim, tatibitat e , referiu-lhe u m a t r a d i o local:
Voc c o n h e c e a histria de Carlota?
T e n h o u m a idia...
Era uma mulher do serto do Paje. D e s c e r a na seca de 45 e ia
a r r a s a n d o o Brejo...
T o r c e u o nariz e retificou:
Ia a r r a s a n d o , u m a histria: arrasou, b e m a r r a s a d o !
P r o c u r o u colher a primeira impresso nos olhos do filho e prosseguiu:
Sertaneja, q u a n d o b o a , boa; m a s , t a m b m , q u a n d o desencabea!...
E, tendenciosamente:
E n t o , se b o n i t a . . .
Continuou:
Carlota chegou aqui na tira; m a s , c o m p o u c o , e s t a v a feita u m a
s e n h o r a dona. Vivia c o m o u m a princesa na r o d a d a s famlias. Bastava ser espingarda do chefe, um homem de p o d e r e dinheiro que mand a v a e m toda esta r e d o n d e z a .
E, u s a n d o de u m a familiaridade a que L c i o e s t a v a desafeito:
M a s , meu filho, a mulher parecia que tinha trazido t o d o o cang a o do serto e o fogaru da seca debaixo da saia. O fim foi aquela
d e r r o t a ! Ela m a n d o u m a t a r um d e p u t a d o geral o dr. Trajano C h a con. A poltica virou. E nem lhe conto: morreu Beiju enforcado; foi
gente pra F e r n a n d o . Os maiorais da terra... Ela t a m b m .
E , n u m desalento patritico:
Areia n u n c a mais se levantou! V por t o d o este distrito e, se
e n c o n t r a r um ente de D e u s c o m o nome de Carlota, eu dou o p e s c o o
forca...
L c i o explodiu:
78

E n t o , o s e n h o r c o n h e c e u Carlota?! E r a bonita m e s m o ? Sim,


devia ser muito bonita!
Dagoberto deu d e c o s t a s .
E, sob a i m p r e s s o r o m a n e s c a desse episdio a m o r o s o , ele correu
casa de S o l e d a d e .
No a encontrou.
N e s s e c o m e n o s , seria c a p a z de exum-la, se ela tivesse m o r r i d o ,
tamanha era a nsia de v-la.
Deu c o m ela, afinal, na mais grotesca atitude feminina, de c c o ras, abrindo sulcos n u m leiro do c o e n t r o .
Quedou-se a fit-la, em silncio, c o m os o l h o s gulosos, c o m o se
nunca a tivesse visto. Idealizava-a numa figura de r o m a n c e . P r e s s e n tia-lhe as fatalidades de H e l e n a e Carlota, d e s t r u i d o r a s de c i d a d e s .
Afgurava-se-lhe que naquele grosseiro mister ela estivesse abrindo a
vala dos futuros sacrifcios, dos holocaustos sua beleza fatdica.
Sentia-se p r e d e s t i n a d o a participar dos seus m a u s fados.
E n t o , fora de si:
S o l e d a d e , d - m e o beijo de m o r t e ! C o m u n i c a - m e num beijo o
teu destino de tragdia! Liga-me aos teus m a u s angrios!...
Ela, surpresa e g a r o t a , jogou-lhe em cima d o s p s u m a c o b r a de
duas c a b e a s q u e a c a b a r a de d e s e n t e r r a r da lama.
E ele baixou-se e p a s s o u a examinar o c o r p o cilndrico da anfisbena, sem distinguir-lhe os olhos minsculos:
D u a s c a b e a s e cega! N o admira, pois, q u e , c o m u m a c a b e a
s, eu viva nesta c e g u e i r a . . . E dizer que foi a prpria luz da inteligncia que me cegou!...
Depois, ficou a c o n s i d e r a r que no havia t e r m o de c o m p a r a o
entre Carlota e Soledade u m a c o n s p u r c a d a na mancebia adulterosa, a outra um " a n j o de i n o c n c i a " .
Procurou escusar-se do seu ousio. M a s , Soledade fingia melindres:
: voc m e r e c e um castigo...
E e s c a p o u - s e , lesta, para casa. Ele seguiu-a, at q u e , no j a r d i m , as
roseiras c o m p a c t a s a p r e n d e r a m pelo v e s t i d o , n u m a alcovitice e s p o n tnea.
Lcio pegou-a:
Diga qual o m e u castigo.
Veja s!!!
Diga!
E ela, toda c o r a d a :
O castigo de ter pedido um beijo d-lo a g o r a . . .
79

E exibiu-lhe logo q u ? a boca s a b o r o s a , entreaberta numa


t e n t a o sangnea, p o r o n d e se dava toda a alma.
T o m a n d o esse desplante em conta de brincadeira. Lcio riu-se:
De v e r d a d e ?
E ela encalistrou:
Brejeiro! N o nega que brejeiro...

GENTE DO MATO
Lcio no se dissociava do problema h u m a n o do Marzago.
Sua n o v a sensibilidade tinha uma direo mais til e um mpeto
criador.
Reconciliava-se c o m a terra feracssima, isenta de t o d o s os obstculos do t r a b a l h o : de n u v e n s de gafanhotos, tufes, g e a d a s , s e c a s ,
terremotos...
M a s s era rica a n a t u r e z a .
Ele calculava c o m o essa vitalidade poderia ser produtiva. E via a
ndole de progresso do latifndio c o a r t a d a pelos vcios de seu aproveitamento.
Q u a n t a energia mal-empregada na d e s o r i e n t a o dos p r o c e s s o s
agrcolas!
A falta de m t o d o a c a r r e t a v a uma p r e c a r i e d a d e responsvel pelos
a p e r t o s da p o p u l a o misrrima. A gleba inesgotvel era aviltada por
essa p r o s t r a o e c o n m i c a . A mediania do s e n h o r rural e a ral faminta.
Tinha a intuio d o s reformadores; t e n t a v a assimilar os melhores
estmulos da luta pela vida. Mas seu instinto de a o ainda era inutiliz a d o pelas sentimentalidades emolientes. Vises e x a g e r a d a s deformavam-lhe o equilbrio d a s relaes imediatas. N o e s confusas, proj e t o s imprecisos resultavam na incapacidade de realizar, no desastre
d a s tentativas. G o r a v a m a s c o n c e p e s prticas.
C o m o risco de se malquistar com o pai. ensaiava objetivar esse
vago talento de iniciativas. Pleiteava uma aplicao mais vantajosa
d e s s a s foras m a l b a r a t a d a s .
D a g o b e r t o era o p-de-boi do e n g e n h o chinfrim. D e s d e n h a v a :
Aquele g r a n g a z s tem palanfrrio. N o se pode dar um tipo
mais lel. Por ele eu j tinha me a c a b a d o .
***
80

Lcio forcejava interessar o c o r a o de S o l e d a d e na sua assistncia aos m o r a d o r e s .


E n t r a v a m nas bibocas de gravata. E ela n a u s e a v a - s e . O c h o cheirava a urina velha e a b o u b a e n d m i c a .
Santo D e u s ! o s guris lzaros, e m b a s t i d o s d e p e r e b a s , c o a n d o a s
sarnas e t e r n a s . S a m b u d o s , c o m as p e r n a s de taquari, c o m o u m a laranja enfiada em dois palitos.
As c a b e c i n h a s grisalhas do lendeao fediam a o v o p o d r e .
Mas no c h o r a v a m , n o sabiam c h o r a r .
Soledade saa, a o s e n g u l h o s , desse hlito de pocilga.
E J o o T r o u l h o satirizava:
E s s a c o m o urubu n o v o que d o r m e d e b a i x o da asa do urubu
velho e lana q u a n d o v g e n t e . . .
Vomita m e s m o ? perguntou o e s t u d a n t e , sem se zangar.
O r a , lana at as tripas...
A natureza caridosa p r o c u r a v a encobrir e s s a misria. A jitirana
encostava-se na baica infeta. marinhava pela p a r e d e rota e ia desabrochar, toda e s p a l h a d a , na coberta de palha, formando o que nenhuma casa rica o s t e n t a v a : um teto de flores.
O s cochicholos s e c o s , c o m o rvores d e r r u b a d a s , ficavam, a s s i m ,
bonitos, q u e nem m o i t a s de m a n a c .
O jardim nativo balsamizava essa porcaria.
E o vento vinha varrer o terreiro.

***
N o havia c h o a pauprrima que n o tivesse um c a c h o r r o gafo.
Era o scio da fome.
O s pobres g o z o s herbvoros! C o m i a m c a p i m , p a s t a v a m c o m o carneiros.
A c a n z o a d a magrrima juntava-se no faro do cio e, m o r d e n d o - s e ,
parecia que no tinha o u t r o s o s s o s para roer,
Sique! sique! e s t u m a v a o d o n o da c a s a , c o m os d e n t e s cerrados, baixinho.
S pelo g o s t o de se levantar e gritar da porta:
Ca...chorro! 'chorro!
E, num grande e n t o n o :
J se deitar!
Desse m o d o , d e s c o n t a v a o servilismo irremissvel.
81

Voltava a sentar-se c o m um ar de q u e m m a n d o u e foi o b e d e c i d o .


E, numa ltima e x p a n s o de a u t o r i d a d e :
S-vergonho!
M a s , infeliz do t r a n s e u n t e que levasse o a g r e s s o r b o r d o a d a .
Passava t a m b m um ou o u t r o porco q u e de t o magro parecia um
c o tinhoso.

***
Os meninos nus e r a m criados pelo sol enfermeiro.
Divertiam-se p e g a n d o gafanhotos e lagartixas, m a t a n d o os bichinhos do m a t o divertiam-se, c o m o podiam, c o m e s s a s m a l d a d e s
inocentes.
s v e z e s , a s n u v e n s vinham brincar c o m eles, d e s c e n d o e m somb r a s , c o r r e n d o pelos c a m i n h o s .
E os garotinhos c a n t a v a m para o b a m b u a l d a n a r . E n s i n a v a m ao
xexu a vaiar. Colhiam os frutos silvestres que a mata lhes d a v a dad o s . E r a m mais alegres que os colegiais afortunados.
Lcio o b s e r v a v a e s s a alegria, lamuriando:
N o h n a d a mais triste do que u m a criana triste...
***
J o o T r o u l h o cedia ociosidade dominical. Estendia-se. ao sol.
c o m o um animal c a n s a d o . C o m o um lagarto preguioso.
Lcio d e s p e r t o u - o :
Por que n o d e s e m b a r a a aquele cavalo que est se enforcando?
Eu no t e n h o c o n t a com cavalo, p a t r o z i n h o . Diga a Latomia
q u e est e s c o r n a d o na bagaceira.
E r a a manivela d a s o r d e n s do dia... O sistema de s u p r e s s o da
personalidade eliminava t o d o o p o d e r de iniciativa.
A mulataria p r o s t r a v a - s e a m o r r i n h a d a pela fadiga do aluguel.
Deitados, s e m e l h a v a m torres da terra preta.
O pessoal fica aqui p a n z u a n d o u m a p o r q u e no tem trajo
d e c e n t e e p o r q u e , se D e u s se e s q u e c e da g e n t e , a gente t a m b m se
e s q u e c e dele d o u t r i n a v a J o o T r o u l h o .
Soledade a m i s e r a v a - s e :
Esse infeliz...
O cabra e s p i n h o u - s e , c o m o nunca:
82

Desinfeliz q u e m me c h a m a ! . . .
Era o mais afrontoso dos e p t e t o s . . .
S havia d u a s infelicidades para essa c o n d i o indizvel: as bexigas e o servio militar. S tinham m e d o d e s s a s d u a s c a l a m i d a d e s . . .
Mas na guerra improvisavam-se heris.
Qual o seu maior desejo. J o o T r o u l h o ? indagou L c i o .
C o m e r at m a t a r a vontade.
E n t o , s por isso que d e v o r a toda a feira de u m a v e z e p a s s a
o resto da semana em jejum?
Q u e m guarda c o m e r guarda b a r u l h o . . .
E q u a n d o no tem o que c o m e r ?
Come com a testa...
Dagoberto tinha a experincia desse regime de privaes c r n i c a s :
Pobre de barriga cheia. Deus te livre!...
Era uma penria ostensiva que no se e n v e r g o n h a v a nem se carpia.
Nada tinham de seu: s possuam, c o m o c o s t u m a v a m dizer, a
roupa do c o r p o .
Viver assim era, a p e n a s , esperar pela m o r t e .
Mas no tinham idia de nada melhor. Os c o n t r a s t e s e confrontos
que so c h o c a n t e s .
Riam sem ter de q u : no c u m p r i m e n t a v a m sem sorrir.
E olhavam para cima e viam todo o cu de uma vez.
Passavam fitas naturais nas a u r o r a s e nos ocasos miraculosos.
Havia msica de graa nos coretos do a r v o r e d o . Perfume de graa em
cada florao.
E o sol fazia-lhes visitas mdicas e n t r a n d o pelos rasges d o s tugrios.
Afinal, valia a pena viver, porque ningum se matava. N o se
dava o c a s o de um suicdio.
***

Lcio e x o r t a v a J o o T r o u l h o ao trabalho:
Por que no planta um quinguingu?
N o se tem fuga, patrozinho: no eito t o d o o dia que D e u s
d. Se fosse coisa q u e se tivesse t e m p o , m a s no rojo de inverno a
vero. E a gente no tem ganncia. O que adianta a gente se m a t a r ?
pra m e l h o r a r de vida.
N o viu X i n a n e ? Xinane no era v i v e d o r ? mas c a d ? no
fim de conta, coisssima n e n h u m a . O patro toca da terra, sem se fa83

zer por o n d e . . . De u m a hora pra outra, se e s t no oco do m u n d o .


A m a n h e c e aqui, anoitece acol.
Tem a justia.
Agradeo! A gente de fazer isso! N o v que ningum vai fa
zer mal ao senhor de e n g e n h o !
Por que no endireita a casa. no tira as goteiras?
Pro h o m e m q u e i m a r ? Q u a n d o bota pra fora e a gente no arriba logo, quer, no fim de conta, tocar fogo e... toca m e s m o .
E faz isso?
De toda viagem.
Por que no cria galinha?
Pra raposa passar no papo? De que s e r v e ?
Qual a parte que cabe ao lavrador?
coisa que eu no sei... Quem faz a conta o h o m e m .
A todas as o u t r a s perguntas, o cabra d e s c o n v e r s a v a :
Eu no sei...
Era o h o m e m que no sabia nada o instrumento inconsciente
que tinha a e n x a d a c o m o o m e m b r o principal.
Depois, passou a a p r o v a r tudo c o m o estribilho de uma inflexo
peculiar:
An, b o m ! . . .
E ainda afirmava:
N o deixa de no ser...
N e n h u m agenciava melhor sorte. Na rea da fartura, na gleba
munificente, propcia a todas as culturas, essa gente vegetativa, de
uma passividade fatalista, afeita lida de sol a sol, no plantava u m a
rama de batata beira do r a n c h o .
Lcio indicava o e x e m p l o do sertanejo:
No r o a d o dele no canta cambonje. Chegou aqui chorando
misria; chegou a p i t a n d o , com uma mo na frente, outra a t r s , mas
se no b r o m a r . . .
***

No terreiro dos c a s e b r e s floridos as m o a s c a n t a v a m a bom cantar.


Era a c h a m a d o s a m o r e s brutais.
As borboletas brincavam com elas: d a v a m - l h e s pancadinhas nas
faces, c o m o quem bate c o m um leque madrigalesce.
P a s s a v a m as lavadeiras vistas de longe c o m o m o n s t r o s macrocfa84

los c o m u m a t r o u x a na c a b e a e o u t r a t r o u x a na barriga. E n c h i a m
as panas, j que no podiam encher os estmagos.
Mulheres e x t r a o r d i n r i a s ! Filhavam u m a e , n o r a r o . d u a s v e z e s
por a n o .
E n g e n d r a v a m - s e em p r a z e r e s fugazes e t e r n i d a d e s de sofrimentos.
Os apetites c o m q u e a natureza capciosa e n c a d e a v a as geraes deserdadas e r a m u m a srie de sacrifcios irresistveis. A m p l e x o s de
corpos m o d o s . Procriaes d e s a s t r a d a s . Fbrica de anjos. A fecundidade frustrada pela misria e pela m o r b i d e z geral.
E m e n i n o t a s t r a n s f o r m a d a s em p e i t o s , c a r r e g a n d o o p e s o d e s s a s
sexualidades i m p r o v i s a d a s , c a n t a v a m a b o m cantar:
Eu q u e r o me c a s a r . . .
Tinham por nico a d e r e o o c o r a o a o s p u l o s , c o m o se estivesse
dependurado do pescoo.
Se algum vaga-lume errtico se s e n t a v a em seus c a b e l o s , parecia
uma jia furtada.
E o v e n t o desfolhava-lhes nas c a b e a s os m a l m e q u e r e s votivos.
***
Na casa de farinha as raspadeiras c o m saias c o r de e s t o p a c o n s purcavam a mandioca descascada.
E n t r a v a m m u l h e r e s embarrigadas, no ltimo m s . debaixo de balaios d e s c o m u n a i s .
N o veio, c a b r a s d e u m a anatomia herclea suavam c o m o olhosd'gua.
Me d u m a fumaa.
E o c a c h i m b o familiar passava de b o c a em b o c a .
O rodete roa os d e d o s da sevadeira e c h i a v a , em vez dela.
A tarefa prorrogava-se pela noite. E. e s t e n d e n d o - s e no forno,
c o m o um lenol de linho, a farinha era u m a t e n t a o de sono.
Q u a n d o o dia a m a n h e c e u , Pirunga saiu, levando para Soledade
um beiju insosso e c r e s p o .
***
Soledade d e r a para esquivar-se de L c i o .
U m a feita, r e c e b e u - o no m a t o , de m a u s m o d o s :
Eu serei algum bicho? Cabra que a gente enchiqueira: Chiqueiro, c a b r a ! chiqueiro, c a b r a . . .
, p a s t o r a n d o . por causa dos lobos...
85

Que lobo, q u e n a d a ! Pra o n d e me viro e s t o dois olhos em


cima de mim. V i v e m me vigiando por sua c a u s a . E feio a gente
a n d a r s nestas b r e n h a s . . .
O estudante ficou-se q u e b r a n d o os galhos da guabiraba a que se
encostara.
A, ela explicou-se:
Papai j a n d a c o m u m a m o s c a na orelha e c a p a z de fazer u m a
das dele...
Pelo velho eu r e s p o n d o . Ele at gosta que eu lhe faa g u a r d a . . .
Agora, se voc e s t aborrecida, o u t r a coisa.
Voc p r o m e t e segredo? Pois b e m : foi o major que j u r o u b o t a r
papai pra fora, se a gente ainda viver...
Viver o q u ?
... c o r r i c a n d o . Viver... voc s a b e , seu s o n s o ! . . . Viver, c o m o l
diz, feito a linha atrs da agulha...
E , alheada:
Voc nem alinhavar quer.
E continuou a dissimular-se nos mil m e a n d r o s do stio.
Lcio a n d a v a , c o m o faro guloso, de latada em latada, rebuscando-a, c o m o q u e m p r o c u r a a felicidade perdida.
At q u e , um dia, saiu com Pegali.
O c a c h o r r o afundou-se no capoeiro.
Ele disfarou-se e e s p e r o u que Soledade sasse. E n t o , foi ver o
seu esconderijo o dossel amplo e e s c u s o , c o m o um ninho proibido.
Bebs t o s c o s , de pau. E papelitos fechados c o m o para tirar sort e : o moo, o velho, o carrapato.
O e s t u d a n t e no p d e ver mais n a d a ! M a s sentiu a impregnao
dela nas flores inodoras da trepadeira.
C o r r e u e perguntou quase sem flego:
Soledade, q u e m velho?
Q u e m no m o o . . .
N o isso q u e eu q u e r o saber! Diga q u e m o moo!
Ora, e s s a ! M o o q u e m no v e l h o . . .
B o m ! E n t o , r e s p o n d a quem o carrapato.
An! J sei...
C o m e o u a picar folhas e confessou c o m imperturbvel naturalidade:
Voc viu? Pois fique sabendo: o moo, n o digo; o velho seu
pai; o carrapato Pjrunga...
Meu pai, S o l e d a d e ? ! E n t o , m e u pai ainda lhe d flores...
espia-caminho?!
86

Eu no digo! E r a s o que faltava...


E, pegando-lhe na orelha:
Voc logo n o v q u e , se seu pai no me quiser b e m , voc n o
pode q u e r e r . . . T e m muita coragem pra i s s o . . .
R e m a t o u , pegando-lhe na outra orelha, c o m um mimoso fingimento:
O l h e , L u : preciso que nos vejamos m e n o s pra no nos deixarmos de ver...
A a l m a fundida pelo sol da seca, afogueada pelas scuas do v e r o ,
andava farta de t a n t a solicitude ociosa, de um a m o r entretido de
olhadelas e c o n v e r s a s fiadas que se d a v a por satisfeito c o m e s s a s atitudes de c o r a o .
Surdiu Pirunga e, v e n d o o e s t u d a n t e a m a r e l o c o m as orelhas rubras:
Olhe que e s t o fazendo m ausncia do s e n h o r . . .
D e p o i s , n o t a n d o que a m b a s e s t a v a m v e r m e l h a s :
Um falando de b e m , o u t r o de mal...
Ficou, d e s e n g a n a d a m e n t e , mirando S o l e d a d e com os olhos fixos
de c o .
E falou-lhe, ao c a b o , entre d e s p e i t a d o e c o m o v i d o :
M a s , criatura, no v que ele no pra v o c . . .
***
Correu o m e s t r e a t a r a n t a d o :
Patro! patro!... Uma derrota!
O s e n h o r de e n g e n h o no fez c a s o . A c o s t u m a d o aos freqentes
transtornos d o trabalho, j no s e d a v a d e s s e s a l a r m a s . N e m , sequer,
virou a c a b e a . Prosseguiu na sua faina, at q u e , p a s s a d o s alguns minutos, se voltou c o m o olhar indiferente.
Foi u m a d e r r o t a ! Furou-se a t a c h a na segunda meladura...
O caldeirote de a p u r a r ? !
S e n h o r , n o : e s t o u r o u a tacha de r e c e b e r . E a caldeira de limpar est p i n g a n d o , vai-no-vai...
Dagoberto arrepelou-se num esgar e abalou para a casa de caldeira.
O fumo do c o z i m e n t o obscurecia o e n g e n h o .
A moagem s u s p e n s a . O parol cheio. O picadeiro atulhado. C a n a a
secar no partido.
L c i o tentou confort-lo, c o m u m a e m o o pernstica:
Meu pai, isto uma natureza privilegiada e c o m p e n s a d o r a
87

s e m acidentes q u e r e t a r d e m os s e u s benefcios. A t e r r a paga-lhe os


sacrifcios d a agricultura c o m g e n e r o s i d a d e . Veja c o m o o s sertanejos,
a r a a de l u t a d o r e s , a r c a m c o m o clima t r a i o e i r o . . .
E eu e n c a l a c r a d o ! A g o r a m e s m o o vizinho entrou na m i n h a
p o s s e . Se b o t a r q u e s t o , c o m e m o dinheiro e a t e r r a . Se resistir, v e m
o chefe poltico e divide c o m o b e i o , t i r a n d o o melhor q u i n h o . E
pago e m i m p o s t o o q u e n o d o u e m v o t o s . M a s j estou aquilotado.
E, a c a b a n d o de p r e p a r a r o t a m p o de e s t o p a c o m breu, saltou, arr e m a n g a d o , d e n t r o da t a c h a q u e n t e , n u m p e n o u t r o .
Saiu t o d o t i s n a d o , s o p r a n d o a s m o s .
O m e s t r e e n c h e u a passadeira.
E, de n o v o , o c a l d o e n t o r n a d o , c h i a n d o na fornalha chi-chi-Hi
parecia a p u p - l o .

C H U V A COM SOL

N o trissara u m a a n d o r i n h a q u e fosse. O alvoroo d e s s a s a s a s


nncias n o cindira o M a r z a g o .
A n d o r i n h a s d e v o t a s , c h o v e s s e ou fizesse sol, adejavam s o m e n t e
na igreja de Santa Rita.
M a s a atmosfera ficara-se, de r e p e n t e , p a r a d a , c o m o e s p e r a de
novidades.
O s m o r a d o r e s invertiam o s g r a u s c o m u m a prosdia interminvel:
E s t p r e e e . . . tiiinho!
Estava preto.
Est bonito...
Bonito e r a o n a s c e n t e feito u m a c a r v o e i r a . A t o r v a fisionomia da
estao.
A m a t a fumarenta e n t r a v a a roncar. R o n c a v a c o m o um m o n s t r o
acuado.
Vinha vindo o barulho pluvial as b t e g a s caindo no folhedo.
E pegaram as c h u v a s c o m u m a demasia pnica. Dir-se-ia a ruptura
do cu num despejo fragoroso.
Os dias lbregos e m e n d a v a m c o m as noites o u , a b e m dizer, n o
havia dias. E r a m noites infinitas, dias c o m o noites.
A gua, t o b o a p a r a purificar, lameirava o stio. T u d o se fundia
em lama.
88

A e n x u r r a d a revolucionria t r a n s p u n h a as r e p r e s a s , i n c h a n d o , e s pumando, blaterando...


Os crregos m a i s humildes r o m p i a m o l v e o , espalhando-se, e s b o r r o t a n d o a s l e v a d a s , c a c h e a n d o pelos baixios.
Mananciais a o s gorgolhes, c o m o v m i t o s incoercveis.
E os b a r r a n c o s v e r m e l h o s e s b o r c i n a d o s s a n g r a n d o , r e v e n d o c o m o
j o r r o s de s a l m o u r a de um flanco a b e r t o .
***
O s retirantes c o m p a r a v a m esse d e s p e r d c i o c o m o s c u s t a c a n h o s
de seca. A linfa p r o t e t o r a , fonte de t o d a alegria sertaneja, e n c h a r c a v a
at as a l m a s .
D e primeiro, S o l e d a d e gostava d o cheiro q u e n t e d a t e r r a m o l h a d a
pelo c h u v i s c o . L e m b r a v a - l h e o s c a m p o s lavados d o B o n d .
M a s a c h u v a r a d a agressiva deu p a r a enfasti-la.
E r a a flor de estufa t r a n s p o r t a d a p a r a o atoleiro. Tinha Saudade da
q u e n t u r a d a s estiagens fatais, d o s dias m o r m a c e n t o s d o serto soalheiro.
O que mais a amofinava era no poder vaguear pelos lbricos lamar e n t o s . O a g u a c e i r o , c o m o u m a sentinela p o r t a , sonegava-lhe as r e c r e a e s buclicas.
Lcio levava-a pela m o . Ela aquiescia, c o m p o n d o a b a r r a da
saia, nas a b e r t a s da c h u v a . E u m a p a n c a d a d ' g u a tapetava o lameiral
de ptalas multicores.
***
noite, a luz e s c u r e c i a de m a r i p o s a s .
Soledade abria a j a n e l a c o m o p a r a se a q u e c e r no relmpago. E o
v e n t o , sem abrigo, d e s p e i t a d o vu-vu deitava gua de c a s a a dentro. As gotas e s p a r s a s borrifavam-lhe o r o s t o c o m o p u n h a d o s de alfinetes.
E ela dizia p a r a L c i o :
T u d o q u a n t o bicho cria asa no i n v e r n o : formiga, c u p i m .
S a gente no cria.
?
Pra voar pra muito longe...
E , e s c l a v i n h a n d o a s m o s , batia o s q u e i x o s d e frio, c o m o e m p r e ce...
A saparia c o m e a v a a toada de sete flegos. O c o m u m e r a um
90

reco-reco r a s c a n t e . D e p o i s , c o n c e r t a v a - s e toda a variedade instrumental carrilhes, castanholas,. flautins (um flautim gritante) e, afinal, a pancadaria da jia: b u m ! b u m ! b u m !
***
As a r a q u s matinais algazarreavam festejando o mau t e m p o .
L a v a n d i s c a s familiares m e r g u l h a v a m n a s p o a s suspeitas, alvoroadas, soltando ningum ainda r e p a r o u nisso uns beijos estrdulos, minsculos e, s v e z e s , uns risinhos e n g r a a d o s .
O s m o l e q u e s trelosos d a n a v a m d e b a i x o d a c h u v a a o b a t u q u e d o
trovo. E b r i n c a v a m c o m a lama p o d r e c o m a m e s m a satisfao c o m
que os m e n i n o s estrangeiros b r i n c a v a m c o m a n e v e .
***
L c i o virou um imbu. E r a a r e p r e s e n t a o do meio e n t o r p e c i d o
miripode, c o m t a n t a s p e r n a s e a arrastar-se c o m o u m a lesma ou a
viver e n r o s c a d o .
O s c a m b i t e i r o s , c o m o s andrajos pingando c o m o goteiras, metiam
as b e s t a s de carga na insdia dos a t a s q u e i r o s . T e n t e a n d o c o m as pernas t r m u l a s , as alimrias afocinhavam o tremedal e, se a l c a n a v a m a
outra b a n d a , d e i x a v a m o r a s t r o c o m a barriga.
O e s t u d a n t e intervinha. E os c a b r a s t e i m a v a m :
T e m p o r fora passar.
As pilecas e s t e n d i a m as p a t a s dianteiras e ficavam, s v e z e s , c o m
os q u a r t o s atolados.
P a s s a v a m m u l h e r e s a r r e p a n h a d a s exibindo as canelas c i n z e n t a s
com meias p r e t a s de lama.
***
U m a surdina de c h u v a c o m sol. Mal se distinguia o que corria do
cu: se e r a m fios d ' g u a ou raios de luz; se a claridade lquida ou a garoa d o u r a d a .
Soledade achegou-se:
U m a histria, L c i o . D a q u e l a s . . .
U m a m o a q u e eu sei...
a q u e l a histria do sol?
91

... a c o s t u m a r a - s e a n a m o r a r c o m o sol e, q u a n d o n o o via,


d a v a para ficar...
A h . isso n o me entoa!...
C h u v i s c a v a . U m a chuvinha m i d a , conta-gota, antiptica, c o m o
toda impertinncia pequenina. O xixi intolervel.
E r e p o n t a v a . enfim, um sol e q u v o c o , latescente, c o m o a lua tmpor.

***
Certa noite, vibrava um t r o v o n e r v o s o , qual o clamor d a s t r e v a s
friorentas.
Acudiu t o d a a p o p u l a o rural ao ptio da casa-grande, d e b a i x o
do aguaceiro, c o n v o c a d a pelo bzio imperativo.
O a u d e e s t a v a a pique de a r r o m b a r .
A gua prisioneira saltava pela b a r r a g e m e batia nas p e d r a s c o m
um berro doloroso.
Pirunga, d e s c r e n t e da coragem d o s brejeiros, viu, estupefato, de
r e p e n t e , h o m e n s e m u l h e r e s , s o r d e n s do s e n h o r de e n g e n h o , c o m o
q u e f o r m a n d o c o m o s prprios c o r p o s u m a b a r r a g e m nova, a t a l h a n d o
o perigo.
Est limpando. Levantou o tempo.
E o cu m o s t r a v a q u e era s e m p r e c u : o arco-ris coloria a celagem c o m o um a r c o de triunfo a r m a d o pelo sol despeitado c o m a caligem que o o b u m b r a v a .
O mais q u e havia era um t e m p o n e u t r o , c o m o tardes de cinza.
As plantas ficavam a r r e p i a d a s , imitando as a v e s , sacudindo a gua
de sobre si.
A c h u v a j n o parecia cair das n u v e n s , m a s d a s copas m i d a s .
O dia e s t se a r r e p e n d e n d o .
N u v e n s c h e i a s , c o m o bales.
E o cu e n c a r v o a v a - s e . Ficava b a i x o , frisava pelo c o p a d o , pesava
nas c a b e a s . R e a t a v a m - s e os dias l u t u o s o s .
O u t r o c h u v o hostil. A luz do relmpago molhava-se n a s c o r d a s
d'gua.
E as r v o r e s c a v a d a s ficavam d a n a n d o nas razes, n u m a d a n a
m a c a b r a , at t o m b a r e m , pingando, c o m o n u m s u o r d e agonia

***

92

O a m o r de Soledade era u m a sinfonia de c h u v a c o m sol. Um idlio


de v e n e t a s o r a de meiguice inesgotvel, o r a de maus m o d o s . T o
depressa se c o n c h e g a v a rendido, c o m o se e s q u i v a v a enjoado.
E n e s s a mobilidade tinha t o d o o seu enleio natural.
L c i o intentava aquec-lo c o m as c a l e n t u r a s da paixo recrescente. P r e m e d i t a v a um beijo longo, profundo, um c h u p o doido q u e lhe
desse o g o s t o do c o r a o . E sobrevinham-lhe as d v i d a s . . . O n d e ? . . .
C o m o ? . . . C o m e a r i a pelos d e d o s o u , melhor, pelas u n h a s . Se n o relutasse, subiria pelo b r a o ; e, se g o s t a s s e , na testa, um na testa; e, se
anusse, n o s o l h o s sim, fechar-lhe-ia os olhos c o m muitos beijos,
para, e n t o , de s u r p r e s a , beij-la, b e m beijada, na boca. Um beijo
que lhe deixasse u m a cicatriz n ' a l m a . Queria sorver-lhe o a r o m a carnal q u e se b e b e em beijos.
E n c o n t r o u - a n u m a indolncia m o l e , a c a b e c e a r , c o m o se fosse
cair-lhe n o s b r a o s .
Ela n o t o u :
V o c fala de mim e treme de frio, que n e m e u . . . Que cruviana!
N o frio: calor!
E n t o , maleita?...
S o os dois plos do a m o r !
Soledade e n t e r n e c e u - s e :
Filho, voc...
E L c i o lembrou-se do aviso de Milonga: " Q u a n d o ficar s c o m
ela, faa de c o n t a q u e sinh-moa... N o digo que no beije, m a s s
na m o , p o r q u e sai logo pelos d e d o s . . . "
Ela encolheu-se c o m u m a frieza m a i o r no c o r a o .
E ele saiu, d i s s u a d i d o , l a m b e n d o os beios s e c o s , sentindo uns
ressaibos de beijos g o r o s . . .
M a s , v o l t a n d o , da a p o u c o , achou-a d e m u d a d a num d e r r a m e de
ternura. C h e g o u a passar-lhe o b r a o pelo p e s c o o e ficou a
amolegar-lhe a orelha, o r a c o m b r a n d u r a , ora c o m fora.
O v e n t o alcoviteiro fechou a j a n e l a .
L c i o n o atinava c o m essa m u d a n a instantnea. M a s , q u a n d o
saiu, viu o c u a b e r t o n u m a grande claridade de p a r a b n s .
E as p o a s acendiam-se c o m o e s p e l h o s e m b a c i a d o s .
F o r a o t o q u e da luz o segredo d e s s e agrado fictcio.
O e s t u d a n t e anunciou a volta p a r a a academia.
E s p e r o u um lance de s a u d a d e . E Soledade p e r m a n e c e u glacial
como o t e m p o .
P r o c u r o u despertar-lhe c i m e s . Ela fez p o u c o :
E eu q u e me i m p o r t o ?
93

D e noite, rebolava n a c a m a . N o s e l e m b r a v a dele, m a s sentia


que lhe faltava alguma coisa, c o m o algum q u e dormisse s e m t r a v e s seiro.

ENTREVER P I O R D O Q U E V E R

A t e n t a n d o n a s n o v a s rugas q u e , dia a dia, sublinhavam o r o s t o de


Valentim Pedreira, L a t o m i a conjeturou:
Aqui a n d a coisa...
Os outros moradores observavam:
Vive de orelha em p ; a n d a de v e n t a inchada...
A dvida e r a um insondvel sofrimento. Oscilava entre o r e m o r s o
do juzo t e m e r r i o e o horror da realidade.
O sertanejo a p o q u e n t a v a - s e pela primeira v e z na vida. G a n h a r a - o
essa p r e m e n t e desconfiana. Diligenciava sopes-la; fazia t u d o p a r a
refugar a suspeita corrosiva que lhe a t u a v a a t no s o n o em s o n h o s intrigantes.
Mas a idia t e i m o s a fermentava. E r a um ri-ri diuturno.
A c o n s t n c i a d e s s e p r e s s e n t i m e n t o assanhava-lhe os m a u s instintos.
Ele sondava Pirunga p o r palavras t r a v e s s a s .
E, enfim, confidenciou:
D e s d e q u e isto se e n c a s q u e t o u na minha c a b e a q u e vivo c o m
a cara calada de vergonha.
Referiu-lhe u m a circunstncia q u a l q u e r .
L p o r isso no objetou-lhe o r a p a z .
Soledade r e v e l a v a n o v a s e n c e n a e s de beleza. A c a r n a d u r a de
relevos ostensivos e r a um canteiro de t e n t a e s .
Valentim n o a largava de si.
N o c a s o que a n d a s s e e n a m o r a d a , seria u m a d e t e r m i n a o n a t u r a l ;
mas parecia-lhe q u e ela propendia p a r a u m a m o r criminoso.
Q u e , d e s d e a partida de L c i o , tinha o u t r a s maneiras, tinha e a
ningum p a s s a v a d e s p e r c e b i d o . E e s s e s m o d o s a c u s a v a m c e r t a
transformao interior.
O pior, p o r m , e r a a o s t e n t a o de feminilidades magnficas,
c o m o oferendas d a n a t u r e z a seivosa.
E Valentim e s p r e i t a v a tresnoitado.
94

R e c o m p u n h a , d e u m a feita, a s i m p r e s s e s mais verossmeis e , a


pela m a d r u g a d a , e s c u t o u u n s estalidos, c o m o b o q u i n h a s e m surdina.
L e v a n t o u - s e , p a n t e p , c o m o s e a n d a s s e sobre e s p i n h o s .
Aplicou o o u v i d o e s c u r i d o q u i e t a .
E r a o c o b o c e j a n d o e espulgando-se.
M a s , m a n e i r a q u e decorria o t e m p o , ele sentia que se confirmava a c i s m a r e n i t e n t e .
Reprimia, a c u s t o , a rebentina. Resfolegava. E r e c e a v a ferir a inocncia d a filha c o m u m a interpelao i m p r u d e n t e .
A t q u e , u m dia, n o t e v e m o e m si. Botou-se a ela, n u m esgarro de raiva. Aferrou-a pela gorja, fitando-a na c a r a , q u e r e n d o
perscrutar-lhe o segredo d e n t r o d o s o l h o s .
O q u ? ! E u ? ! interrogava S o l e d a d e , c o m o ave p r e s a na e s parrela.
E ele abafou a v e e m n c i a p a r a n o lanar-lhe em r o s t o u m a s u p o sio i n d e c e n t e .
De o u t r a v e z , c o m o tivesse sentido um cheiro i n c o m u m , e n t r o u a
fungar. R e l a n c e o u a vista. Revistou t o d o s os c a n t o s da c a s a . E d e u
com o p no b a de lata, revirando-o.
E s p a l h a r a m - s e pelo c h o vidros d e oriza, j i a s b a r a t a s , estojos,
toda u m a quinquilharia suspeita.
Aqui, e l e , n u m a e x p l o s o d o m a u gnio, tirou-a pelo c a b e l o , violentando-a a confessar a origem d e s s e s m i m o s ocultos.
T o r n o u ela, c o m a maior naturalidade d e s t e m u n d o :
Papai e s t m a s c a d u c o ! Isso n o b e s t e i r a de P i r u n g a ? . . .
O r a p a z , q u e a c u d i r a ao grito e s t e n t o r o s o do p a d r i n h o , c h e g o u em
tempo d e ouvir e s s a d e c l a r a o .
Valentim tossiu. E a t o s s e p e g o u em t o d o s t r s .
E n t r o u em si e a p a n h o u um lencinho de c r o c h :
Q u e m d p r e s e n t e de l e n o . . . diz q u e a c a b a b r i g a n d o . . .
T i r a v a um p e s o da conscincia. Pacificava a h o n r a sertaneja.
Pirunga e s t e v e em confirmar a e v a s i v a e m b u s t e i r a , p o r q u e ganharia c o m e s s a transigncia, n u m lance tal, o a m o r d i s p u t a d o a t a n t o
custo.
R e m r o u a p r i m a . Seu r o s t o n o d e n o t a v a n e n h u m a p e r t u r b a o ;
mas, r e p a r a n d o - s e b e m , o s olhos confessavam-se d e algum m o d o .
E , d a n d o - l h e a s c o s t a s , c o m m e d o d e v-la, p r o t e s t o u :
menos verdade, Soledade! Voc est inventando!...
J a g a r r a d o p e l o s d e d o s n o d o s o s de Valentim, q u e lhe c o l a v a a
orelha m u r c h a b o c a , explicou:
95

Eu s lhe dei aquela figa de o u r o p r a v o c esconjurar as t e n t a es...


E, procurando-a entre outros objetos dispersos:
M a s foi m e s m o q u e n a d a ! . . .
E n t o , ela, desaforada, n u m a afronta m o n s t r u o s a , confessou:
Pois b e m ; foi o feitor! A g o r a q u e r o ver!...
E c r u z o u o s b r a o s , c o m u m a c a l m a acintosa, c o m o q u e m s e entrega a o seu d e s t i n o .
Seguiu-se u m silncio mais a t e r r a d o r q u e t o d o s o s p r o t e s t o s d e
maldio e de vingana.
C h o c a r a m - s e olhares vesgos c o m o p o n t o s d e i n t e r r o g a o .
C o i t a d o do Pegali! C o a v a a o r e l h a c o m o p , c o m o q u e m c o c a a
cabea de desespero.
E s t r o n d e a v a m p r a g a s , qual um bafo do inferno.
A casa j estava rodeada de moradores: Joo Troulho, Latomia,
a mulher do feitor...
P a d r i n h o , v o s s e m e c n o brejeiro! Sertanejo n o l e v a n t a a
m o c o n t r a m u l h e r ! interrompeu Pirunga.
E , a r r a n c a n d o - s e dos b r a o s d o afilhado, Valentim c o r r e u , c o m o
um d a n a d o .
C o r r e u d o i d o ! gritava o m o l e c r i o , na a s s u a d a alegre.

N O T U R N O DE D I O E D E S A U D A D E
Q u a n d o Valentim i a c o r r e n d o e m p r o c u r a d o feitor, C o r i s c o soltou um rincho q u e parecia falar.
Rinchar ele rinchava s e m p r e e talvez mais q u e q u a l q u e r o u t r o cavalo d a fazenda; m a s , assim, t o e x p r e s s i v a m e n t e , n o h a v i a lembrana.
O sertanejo e s t a c o u t o m a d o de supersticiosa curiosidade. E n t o ,
Pirunga, q u e o encalava, gritou:
Padrinho! O vaqueiro!
P a s s a v a pela e s t r a d a u m c o m b o i o d o s e r t o .
C o r i s c o r e c o n h e c e r a algum animal e s c a p o seca e nitria n u m a
s a u d a o de velhos amigos q u e se r e v e m depois de um julgar o o u t r o
morto.
Foi m a n d a d o de D e u s dizia Pirunga de si p a r a si.
96

P o r q u e , de feito, Valentim se d e u p r e s s a em voltar tangido pelo


a l v o r o o d e s s e e n c o n t r o imprevisto.
Sim s e n h o r !
S e n h o r sim!...
E os sertanejos no podiam s e p a r a r - s e , c o m o se suas a l m a s se tiv e s s e m c o l a d o n o vigoroso a b r a o .
Pegali ria c o m o r a b o .
O vaqueiro e n t r o u em si:
Eu n o c o n t a v a q u e o s e n h o r tivesse d e s c i d o . . .
E r a a forma de indicar a d i r e o d o s brejos.
Desci e . . . desci m u i t o .
E est acabado...
A gente c o m o o g a d o sujeito q u e , tirado do p a s t o , m o r r e de
tristeza. T a m b m d mal-triste n a g e n t e . N o e s t n a s m i n h a s foras.
O o u t r o p r o c u r o u desviar o r u m o da c o n v e r s a desse d e s a t e r r o de
i m p r e s s e s . M a s Valentim insistiu:
V o c no viu a fazenda?
C h e g a parece do g o v e r n o : t o d o o m u n d o q u e r tirar o seu p e d a o...
H v e r d e ?
Se h ? ! At as e s t a c a s do curral p e g a r a m . . .
E o audeco?
Ficou cheio-cheio!
De v e r d a d e ?
Chei-inho!
Valentim visionou o B o n d r e v e r t i d o fartura do i n v e r n o . Imaginou o rio escapando-se no a r r e m e s s o transitrio. No s e r t o t u d o e r a
livre: n o s e p r e n d i a m n e m o s c a u d a i s nas b a r r a g e n s . M a s s a s guas
no v o l t a v a m . . .
A v i v e n t a v a a nostalgia incurvel, o mal de u m a instabilidade q u e
no condizia c o m a vida sedentria de seu natural.
E r a a r v o r e adulta q u e , a r r a n c a d a pela raiz, n o pega m a i s .
S o l e d a d e , retirada e tristonha, n o percebia a c o n v e r s a .
N o t a n d o - l h e os primores de m o a feita, o vaqueiro a d m i r o u - s e :
H u m ! A menina e s t um m o o ! . . .
E, p e r d e n d o o antigo respeito nesse nivelamento da seca:
E u , sendo comigo, n o d e i x a v a brejeiro t o m a r c h e g a d a . . .
E l a palidejava e e n r u b e s c i a .
C o n t i n u o u , sem saber q u e e s t a v a r e m e x e n d o u m a ferida a b e r t a :
M o a triste sinal d e . . .
Pirunga levou o indicador a o s lbios, pedindo silncio.
97

E n c o n t r a n d o o olhar fulminante do p a i , Soledade purpurejou-se


o u t r a v e z e deu-lhe as c o s t a s p a r a e s c o n d e r a vermelhido do r o s t o .
Valentim baixou a c a b e a e p a s s o u a riscar na areia c o m o d e d o
t r e m e n t e . F e z , m a q u i n a l m e n t e , u m a c r u z q u e Pirunga a p a g o u a n t e s
q u e algum pisasse e m cima.
M e n i n a , v o c t e m p e n a do s e r t o ?
T e r p e n a c o m o se ajusta e s s a sinonmia, q u a n d o a s a u d a d e se
aplica ao sertanejo! a sua nica sentimentalidade.
Valentim a p a r e n t a v a u m a c a l m a trgica e ria c o m um riso a c o l h e d o r q u e lhe n o saa da b o c a .
A t a r d e languescia. E o e s m o r e c i m e n t o do dia bulia-lhe na sensibilidade e m c a r n e viva. Faziam-lhe mal a s indecises d a luz m e d r o s a ,
aqui e ali, c o m o a v e que n o a c e r t a c o m a d o r m i d a .
A colina fronteira c o m o q u e se e s p r e g u i a v a . E r a a s o m b r a q u e se
estendia. E , e m o u t r o s p o n t o s , c h e g a v a , devagar, e m r e t a l h o s , c o m o
s e sasse d e b a i x o d a s rvores q u e m u d a v a m d e cor.
Vinha-se a noite fechando. E m a i s se s o m b r e a v a o r o s t o de Valentim q u e se r e c o l h e u , p r e t e x t a n d o d o e n a :
T e n h o u m a t r a n c a nos p e i t o s .
D e v i a ser o a p e r t o da s a u d a d e .
Pirunga segredou a o v a q u e i r o :
Ele n o t e m v o z ativa; n o p o d e m a i s c o m a vida dela. T o r c e a
orelha e n o sai s a n g u e .
E, despeitado:
J lhe t o m o u o flego. A n d a m u i t o s e n h o r a de si.
Vinha d a m a t a vizinha u m r u m o r d e c r e p s c u l o brasileiro.
O v e n t o , c o m o um bocejo de s o n o , t r a n s p o r t a v a o b a r u l h o indistinto. E s o n s m i d o s c o n c e r t a v a m - s e n u m apito a g u d o , de mil flegos; muitas v o z e s z u m b i a m n u m s grito.
E r a a afinao da noite.
M a s , d a a p o u c o , tornou o silncio de q u e m n o o u v e n a d a p o r que s se o u v e a si prprio. O silncio fecundo que o ritmo de q u e m
se e s c u t a .
E pegou a t o a d a d o s a e d o s sertanejos, a m u s a b r b a r a q u e n o floresce n o s p a u i s d o s brejos, m a s n a t e r r a c o m b u s t a , c o m o p t a l a s d e
raios de sol.
E n t o a n d o a t r o v a de F a b i o d a s Q u e i m a d a s , o violeiro p u x a v a a
alma c o m o s d e d o s :
98

A m i n h a a l m a de velho
Anda agora renovada,
Que a paixo como o sonho,
Chega sem ser esperada.
D a g o b e r t o abriu a j a n e l a no e s c u r o e fechou os o l h o s p a r a ouvir
melhor.
E s s a v o z a m o r o s a eletrizava o ar n o t u r n o . D a v a a i m p r e s s o de
que t u d o e s t a v a s u s p e n s o , a o seu e m b a l o . N o era o e n c a n t o d o q u e
vibrava, m a s o mistrio do q u e e m u d e c i a . Interpretava-se o p r p r i o
sentido d o silncio d e algumas e s t r e l a s , c o m o reticncias d o c u .
I n s t a d o , Pirunga improvisou:
N o se v um olho-d'gua,
Quando h seca no serto.
E e n c h e m - s e os olhos d ' g u a ,
Quando seca o corao...
O xexu de m i n h a terra
Q u e me ensinou a c a n t a r
A n t e s me tirasse o c a n t o
E me e n s i n a s s e a v o a r . . .
U m d o s tropeiros r e s p o n d e :
Q u e m deu p e n a a o p a s s a r i n h o
O c a n t o tinha q u e d a r :
Q u e m voa sofre s a u d a d e ,
Q u e m sofre d e v e c a n t a r . . .
Pirunga confiou-se veia r e p e n t i s t a .
No quente do corao
E u criei u m p a s s a r i n h o
E , f o i ter a s a s , voou,
N o quis m a i s s a b e r d o n i n h o . . .

Um b a c u r a u , o gago notvago b a c o . . . b a c o . . . b a c u r a u lembrava no v o c u r t o e na gaguez os p o e t a s da bagaceira.


E a n a t u r e z a abafou-se, n o v a m e n t e , em c o c h i c h o s . S u s s u r r o s
annimos. P i o s a s s u s t a d o s . M u r m u r a v a m o s sons humildes q u e tinham e s t a d o e s p e r a do silncio.
99

Enfim, t u d o se calou. A noite s e m fala parecia e n g a s g a d a pelas


sombras espessas.
Pegali ladrou g r o s s o , c o m o d o n o d a solido pacfica.
Valentim n o pregava o l h o s . Sentia em t o d o o seu mistrio a noite
primitiva, de quietude e de t r e v a a b s o l u t a s .
Virava-se n a c a m a , c o m o s e , m u d a n d o d e lugar, p u d e s s e m u d a r
de i m p r e s s e s , ou c o m o se fosse incompatvel c o m o r e p o u s o
c o r p o a intranqilidade da alma.
T r a d u z i a a insnia pela primeira v e z .
O silncio deixava-o p e n s a r p o r c o n t a prpria s e m v o z e s p e r t u r badoras nem sugestes conselheiras.
O galo da casa-grande a m i u d o u . E n e n h u m o u t r o r e s p o n d e u porq u e s c a n t a v a u m galo n a q u e l e s t e r r e i r o s .
O instinto de d e s a g r a v o q u e lhe latejava na m a s s a do s a n g u e e
um impulso b r b a r o em litgio c o m a s a u d a d e do rinco d i s t a n t e .
C h o c a v a m - s e os dois s e n t i m e n t o s fundamentais do sertanejo
dignidade da famlia e o apego gleba. E l e sabia q u e o crime lhe acarretaria a p r i s o no m e i o a d v e r s o . A nostalgia quebrantava-lhe o pens a m e n t o d e vingana.
E a s e r e n i d a d e exterior a c a l m o u - o . T o m o u o e x e m p l o d a s horas
s o s s e g a d a s . Desafogou o d e s e s p e r o na l e m b r a n a da f a z e n d a r e s t a u rada. E p l a n e o u a e s c a p a d a .
L e v a n t a n d o - s e d e s v a n e c i d o d a desafronta sanguinria, participou
de t o d o o e n c a n t o da alvorada s e r r a n a . T u d o c a n t a v a c o m o n u m coro
de despedida.
E o c h e i r o da m a n h , t o c h e i r o s a , balsamizou-lhe as d e p r e s s e s
da noitada horrenda.

ATIROU N O QUE V I U
J h a v i a t o c a d o o bzio de meio-dia e Pirunga n o d a v a sinal de
si.
E s t i v e r a , c e d i n h o , a coscuvilhar a b r u a c a e sumira-se, c o m o
encanto.
Valentim ficara em c a s a p a r a n o d a r de c a r a c o m o feitor. Afast a v a de si q u a l q u e r incidente q u e p u d e s s e embaraar-lhe o regresso
premeditado ao serto.
Q u e r i a c o m b i n a r t u d o c o m Pirunga e n a d a dele a p a r e c e r .
100

D e r a u m a volta p e l o e n g e n h o , d a s e p a s s a r a c a s a d e farinha,
espiara o canavial de longe e n e m s o m b r a d e l e .
Recrudesciam-lhe o s p r e s s e n t i m e n t o s . T e r i a fugido c o m r a i v a d e
Soledade? T e r i a seguido o c o m b o i o ?
E , d e s c o r o o a d o p o r mil a p r e e n s e s , sentiu-se, d e s e n g a n a d a m e n te, a b a n d o n a d o n o exlio a d v e r s o , q u a n d o m a i s carecia d e s s e b o r d o
d a velhice d e c a d e n t e .
A q u e l e q u e fazia a s v e z e s d o s s e u s filhos n o o a c o m p a n h a r a p o r
uma dedicao desinteressada, m a s por causa de Soledade. Porque,
desfeita a ltima e s p e r a n a , se safara, c o m o os o u t r o s .
E saiu a i n d a a procur-lo.
L a t o m i a d e u notcia:
I n d a g o r i n h a e s t a v a feito um m o l e s t a d o . Os o l h o s p a r e c i a m
uma p o s t a d e s a n g u e .
P o i s l e v o u um s u m i o ! J d e i u m a c o r r a de vista e n a d a !
confiou-lhe Valentim.
E c o r r e u a c h a m - l o , afligidssimo, a altos b r a d o s , p e l a s g r o t a s ,
pela e s t r a d a , p o r t o d o s o s cafunds d o stio.
E r a m gritos q u e saam c o m p e d a o s d ' a l m a .

***
P a d r i n h o , deixe de p a n t i m !
P i r u n g a e s t a v a a l a p a r d a d o a t r s d e u m a cajazeira c o m a g a r r u c h a
aperrada.
N o s e bulia; parecia u m t r o n c o m o r t o .
C o m o q u e tinha os o l h o s e s c o r v a d o s . E u m a idia fixa na mira.
T u d o m a i s lhe e r a indiferente.
V a l e n t i m p r o c u r o u dissuadi-lo c o m b o n s m o d o s :
Se fosse coisa q u e ele tivesse feito m a l a ela...
E , c o m u m regougo:
... a , eu seria o primeiro!...
Simulou b r a n d u r a :
A g e n t e n o d e v e pegar em t u d o . V a m o s e v e n h a m o s , se fosse
e m n o s s a t e r r a . . . L a r g u e m o d e s s a besteira!... U m a coisa d e n a d a . . .
P i r u n g a relutava. D e s o b e d e c i a p e l a primeira v e z .
Um vem-vem provocativo comeou a cantar.
E r a a v o z d o serto q u e o s i n v o c a v a n u m apelo i n s t a n t e .
V a l e n t i m r o g a v a , humlimo:
M e u filho, v a m o s ' e m b o r a ! L a gente n o se l e m b r a de n a d a .
101

E ele ajustava a espoleta, e x a m i n a v a o gatilho, fazendo o u v i d o s de


mercador.
O p a s s a r i n h o c a n t o u , de n o v o : v e m - v e m . . .
O r a p a z p e n s o u que fosse um a v i s o da passagem do feitor. L e v o u
a garrucha cara.
Valentim p r o c u r o u tom-la e , n o p o d e n d o , largou-o c o m u m a
praga.
O v e m - v e m ficou gritando, n u m c h a m a d o n e r v o s o q u e p a r e c i a vir
de muito longe.
***
E m b r e v e p r a z o , r e b o o u u m a vozeria q u e sobressaltou t o d o o
Marzago.
A t os b i c h o s se a l v o r o t a v a m .
Mulheres assustadias arrepiavam caminho, lanando no cho os
p o t e s d ' g u a e as t r o u x a s de r o u p a .
V i b r a v a m v o z e s intimativas.
T o l h i d o s d e s u r p r e s a d a tragdia, o s t r a b a l h a d o r e s c o n s u l t a v a m - s e
c o m o l h a r e s pusilnimes.
Qual a o n a a c u a d a p o r u m a matilha de g o z o s , o c r i m i n o s o detin h a c o m u m a imobilidade faiscante a c a b r o e i r a poltrona p a r a m a i s
de vinte sujeitos q u e o c e r c a v a m , distncia, c o m as e n x a d a s erguidas.
H a v i a da p a r t e de t o d o s o impulso de a c o m e t e r , n o p e l o instinto
d e represlia, m a s pela m a l v a d e z c o m q u e s e c o m p r a z i a m , n o s l a n c e s
d e r e a o conjunta, c o n t r a a s v t i m a s d e s e u s dios v a g o s .
C h e g a v a m , a o s m a g o t e s , c o m c a c e t e s , c h u o s , ferros d e c o v a e
facas d e s e m b a i n h a d a s .
E Valentim fazia frente a v i n t e , trinta, a q u a n t o s a c u d i a m ao clam o r de p e r s e g u i o e c o b a r d i a . A p r u m a v a - s e na e s p i n h a a c u r v a d a
c o m o o p a u t o r t o sacudido p e l o t e m p o r a l .
De v e z em q u a n d o , partia de um c a b r a m a i s afoito o grito de animao:
Pega o homem!
A multido m o v i m e n t a v a - s e n u m s a r r a n c o ; m a s , a o m e n o r
a c e n o de resistncia, reflua e s p a v o r i d a .
L a t o m i a instigava:
Casca-lhe o p o t r u c o de faca!
102

E s t o u b e m livre!... r e s p o n d e u J o o T r o u l h o , e n c o l h e n d o se

E , c o m o estivesse e m m s i t u a o , justificou-se:
Eu c sou c o m o o t o u r o q u e , q u a n d o briga, se b o r r a n d o t o do...
O mulherio grunhia a t r s .
D a a n a d a , soou u m a e s t r a l a d a m e d o n h a , c o m o c a r r e i r a d e a n t a
em mato grosso.
Pirunga varou a o n d a hostil q u e lhe franqueou p a s s a g e m e foi p o s tar-se ao lado de Valentim:
Mas, padrinho!...
Alheio s circunstncias d a luta, e x a m i n o u - o , d e r e v s , a t e n t o n o s
seus p e r s e g u i d o r e s . V e n d o - o ileso, exprimiu u m a alegria selvagem,
com o ar de desafio ou de e s c r n i o :
Eu v e n h o p u n i r p o r e l e , brejeirada mucufa!
E a t r a v e s s o u - s e p a r a q u e n i n g u m lhe pusesse m o .
E s t r a n h o u ainda:
Mas, padrinho!...
N i n g u m me tira o m e u direito! retorquiu Valentim.
D a g o b e r t o saiu-lhe frente. Encorajou os c a p a n g a s :
Brejeiro, q u a n d o d p r a v a l e n t o , n o h sertanejo q u e p e g u e !
Valentim e n t e s o u t a m b m c o m o s e n h o r de e n g e n h o :
Seu major, n o v e n h a , seu major!
Dagoberto mudou de tom:
Velho, voc est doido?
O senhor garante?
E, a um gesto afirmativo, o a s s a s s i n o confiou-se da p r o m e s s a , j o gando a pistola e n t r e os c a b r a s .
E s t a v a afeito s c e n a s d e i m p u n i d a d e , aos c o m p r o m i s s o s d e escapula o u d e homizio c o m o p o n t o s d e h o n r a . E n t r e g a n d o - s e , n o e r a a
vida q u e ele p r e s e r v a v a , s e n o a liberdade o u , a dizer m e l h o r , a fuga
para o s e r t o .
M a s , a p e n a s se viu i n e r m e , foi subjugado p o r c e m b r a o s e inquerido ( o t e r m o ) c o m c o r d a s de c a r o .
Sujigue o h o m e m ! Passe-lhe a e m b i r a ! I s s o ! A c o c h e m a i s , de
c o m fora! o r d e n o u D a g o b e r t o .
E , n u m desafogo:
E s t muito e n g a n a d o ! . . .
***

103

S t a r d e s e l e m b r a r a m d o defunto q u e ficara e m c m a r a a r d e n t e . . .
d o sol.
Q u a n d o o feitor b a q u e a r a , s t i v e r a t e m p o de pedir a vela. E,
c o m o n o h a v i a d i s s o , m e t e r a m - l h e u m cigarro a c e s o n a m o crispada.
E n q u a n t o o s e s b i r r o s m u d a v a m o s andrajos, Pirunga, s o l t o p e l o s
cabras que o haviam dominado, aproximou-se do tronco de jatob,
o n d e Valentim e s t a v a a m a r r a d o , e c a q u e o u a faca:
Eu c o r t o a c o r d a e e s p a l h o a t o s e n h o r de e n g e n h o .
O v e l h o ergueu a c a b e a t r m u l a e, e n c a r a n d o - o , falou-lhe em tom
de r e c u s a e de splica:
V o c faz a s m i n h a s v e z e s ? T o m a c o n t a d e l a ? . . .
V d e s c a n s a d o . S se eu m o r r e r ! . . .
E, arroxeando-se, coberto de suor, calcando um sentimento feroz
de dignidade patriarcal, ele c o n t i n u o u , t a r t a m u d o :
Eu n o sei q u a n d o me livro. Se v o c d e i x a s s e a b a g a c e i r a e
voltasse c o m e l a v o c s a b e . . . eu n o fazia c a s o : m o r r i a satisfeito n a c a d e i a . V o c p o d i a . . .
E embatucou.
Pirunga desenganou-o:
Eu queria tanto! Mas no h jeito, padrinho! J dei um toque.
Diz q u e no quer. N o quer por nada!...
***
J h a v i a m a l c a n a d o a ladeira d o T a u .
Pirunga a c o m p a n h a v a o p a d r i n h o , g u a r d a n d o distncia, o r a adiant e , o r a a t r s , p a r a n o ser confundido c o m a cfila d o s c a p a n g a s .
De chofre, o p r e s o e s t a c o u , s o b r e c a r r e g a d o de c u i d a d o s :
M e u filho, v o c n o p r o m e t e u ? . . .
O r a p a z atinou c o m a a d v e r t n c i a . E, r e t r o c e d e n d o , c o r r e u em
toda carreira.
C o r r e u a t cair esbaforido a o l a d o d e S o l e d a d e .

VISES D A N O I T E V E L H A
Q u a n d o Pirunga s e p r o s t r o u e s b o f a d o j u n t o d e S o l e d a d e , ela
a i n d a e s t a v a enrodilhada c o m a c a b e a r e n t e t r e m p e do fogo extinto.
104

S e u c a b e l o polvilhado d e c i n z a d o borralho parecia t e r e n c a n e c i d o


d e i m p r o v i s o . Dava-lhe u m a r v e l h i n h o d e sofrimento.
Julgando-a a d o r m e c i d a , ele p r o c u r o u compor-lhe a saia s u n g a d a
m e i a - p e r n a , n o a b a n d o n o trgico.
E n t o , ela sentou-se, d e a r r e b a t o , c o m o s o l h o s r e v o l t a d o s . U m
olhar s e c o . N o pingara u m a lgrima.
P a s s a r a m a recriminar-se e m silncio, c o m o u m a a c a r e a o d e e s finges.
A t q u e , noitinha, ela o intimou:
Saia q u e eu q u e r o fechar.
P i r u n g a relutou, a c a n h a d o :
Eu fico fazendo c o m p a n h i a ; v o c p o d e ter m e d o . . .
E s t a b o a ! . . . N i n g u m me tira p e d a o . . . r e p u l s o u - o Soledade.
E i m p s , c o m a m o na p o r t a entrefechada:
V o c logo n o v ! . . .
Pegali c o r r e u ao terreiro e voltou c o m D a g o b e r t o , s e m l a d r a r ,
c o m o q u e lhe r e c o n h e c e n d o a a u t o r i d a d e de s e n h o r rural.
M a s , interpondo-se, Pirunga obstou-lhe o ingresso. N o c h e g o u a
repeli-lo; quedou-se n o b a t e n t e , d u r o c o m o u m a sentinela, s e m lhe
dar passagem.
E D a g o b e r t o afastou-se, r e s m u n g a n d o :
E u e r a p r a n o d e i x a r s o m b r a d e s t a raa a q u i ; m a s , p r a n o dizer q u e a m b i o do r o a d o fao q u e s t o q u e fiquem...
O r a p a z n o a r r e d o u o p . S o l e d a d e p r o t e s t a v a . Q u e passaria a
noite a c o r d a d a , i a dormir a o r e l e n t o . . . E , t o d a e n v e r g o n h a d a :
Q u e q u e m e u pai n o dir, s a b e n d o de u m a coisa d e s ta?...
ele q u e m m a n d a . N i n g u m m a i s e n t r a r n e s t a c a s a . Aqui s
eu e Pegali!
P a r e c e q u e o c a c h o r r o c o m p r e e n d e u t a m b m s u a m i s s o de guarda, p o r q u e se estirou e girou o olhar pelos q u a t r o c a n t o s da sala.
E Pirunga deitou-se c o m r o u p a e t u d o .
S o l e d a d e dormiu logo. M a s , ele tinha a i m p r e s s o de q u e m v e lasse p o r u m t e s o u r o n u m covil d e salteadores.
T a r d e d a noite, ela c h a m o u - o , m u i t o d e leve.
Ventava. S se escutava um barulho de ramos. S as rvores estavam despertas.
Pirunga.
105

E l e fez q u e n o ouvia; m a s pigarreou p a r a m o s t r a r q u e n o e s t a v a


d o r m i n d o . E ela insistiu g r i t a n d o :
PIRUNGA!
H u u m ! soou c o m o um g e m i d o longo.
Q u e r i a saber q u a n d o m e u pai se solta.
Eu s r e s p o n d o de dia.
E d e s v e l a v a , noite p o r n o i t e , n u m a insnia febril q u e e r a a fogueira d o s s e n t i d o s .
T i n h a m e d o da discrio do silncio. E atendia s e x p r e s s e s contraditrias d o v e n t o s e r r a n o : c a r i d o s o , c o m o u m a surdina d e mistr i o s ; c o n f u s o , c o m o u m c l a m o r d e m u d o ; fnebre, c o m o u m grito
e m u.
Q u a n d o t u d o se sossegava, o u v i a Soledade r e s s o n a r . E c o n t a v a
lhe a r e s p i r a o o r a flbil, c o m o a c a l e n t a n d o o c o r a o ; o r a a n g u s tiosa, q u a l o ofego de um r e m o r s o ; o r a acelerada, n a s a l , q u e n e m o
resflego d e u m g o z o .
L e v a v a a s m o s a o s o u v i d o s . E s s e hlito s o p r a v a c o m o u m fole
vivo q u e lhe a c e n d i a o s s e n t i d o s .
Sobrevinha-lhe u m a curiosidade involuntria, q u a n d o ela s e m e x i a
n o lenol. C o m o estaria d e i t a d a ? D e b o r c o ? D e b o r c o n o seria...
D e p o i s , ocorria-lhe q u e p o d e r i a e s t a r d e s c o m p o s t a n o d e s a l i n h o
do s o n o solto. E fechava os o l h o s no e s c u r o .
L e m b r a v a a inocncia c o m q u e ela lhe saltava n o s j o e l h o s , o
t e m p o em q u e a t o m a v a n o s b r a o s , nuinha e t e n r a c o m o um q u e r u bim-menina, desses que no s a e m do cu, n e m para as e s t a m p a s bentas.
N i s t o , e n x e r g o u p o r u m a f e n d a d o t e t o a estrela c o m u m brilho
d u r o , r e p r e e n s i v o , c o m o o clssico " o l h o d a c o n s c i n c i a " . . .
C e r t a noite q u e noite! a t os pirilampos se a p a g a r a m . N o i t e
a b s u r d a ndice da solido vulgar.
Pirunga pressentiu um v u l t o c o s i d o c a s a . R o a v a - s e , d e p o i s , na
p o r t a d e d e t r s , c o m o d a n d o sinal p a r a abrir.
C o r r i a , d e m u i t o , n o stio, a v e r s o d e u m a a s s o m b r a o .
A s lavadeiras sabiam d e t u d o :
u m a visagem q u e a n d a de n o i t o a c e i r a n d o a s e r t a n e j a . . .
P i r u n g a saltou da rede s e m , ao m e n o s , b u s c a r a g a r r u c h a . Ia p e g a r
unha.
Avanou cego, no escuro. E, nesse arremesso temerrio, agarrou
n o a r u n s b r a o s gelatinosos q u e lhe esfriaram a s m o s . S t i n h a a o
106

seu a l c a n c e e s s e s tentculos p e l u d o s e fugidios. T e n t e a v a aferrar pela


goela, lutar c o r p o a c o r p o e no e n c o n t r a v a seno os a p n d i c e s m o n s t r u o s o s . E o fantasma no r e c u a v a , n e m reagia.
A s s i m , ludibriado pela a p a r i o sorrateira, desferiu um b e r r o de
impotncia e de coragem:
Se s a alma do feitor, te s o v e r t e , alma d a n a d a !
S o l e d a d e acorreu a t o r d o a d a c o m a lamparina na m o .
Ele divisou-a, em camisa, claridade incerta.
E , c a i n d o e m si, c r u z a n d o o s b r a o s para encobrir o s p e i t o s , sem
largar a luz, tocou-se fogo. A c h a m a envolveu-lhe o seio, c o m o um
incndio e s p o n t n e o d o c o r a o .
A v a n o u Pirunga e, n u m s rasgo brutal, arrancou-lhe a camisa
em d u a s tiras.
E c o r r e u t r a n s t o r n a d o , c o m muito mais m e d o dela, do c o r p o branc o , c o m o u m a m a n c h a d e luar n a t r e v a absoluta, d o q u e d o bicho
imaginrio.
E n c o s t a d o palha, um b u r r o p a c h o r r e n t o , c o m as o r e l h a s longas
doloridas, c o m o que e s p i a v a t a m b m a viso d e s n u d a da noite enigmtica...

UMA SERENATA DE CIGARRAS


E n f a r a d o das mulheres superfinas que civilizavam o s e x o , L c i o
no se e s q u e c e r a de sua beldade m a t u t a , c o r a d a pelo sol e c h e i r a n d o
a si m e s m a .
Foi recebido pelo pai m a z o r r o de m sombra.
D a g o b e r t o chegara a franquear-lhe os meios de u m a viagem de recreio, p a r a se descartar, d u r a n t e as frias, dessa t e s t e m u n h a m u d a de
sua solido. E ele viera a n t e c i p a d a m e n t e .
Ao v-lo, Soledade mal levantou o rosto da costura:
E s t o u cosicando isto a q u i .
Ele c h e g o u - s e , falou-lhe de u m a saudade impossvel, e v o c o u passagens de seus a m o r e s b o s c a r e j o s . . . E ela, d e s l e m b r a d a , n u m a abstrata lassitude:
An!...
E e n t r o u a evadir-se, c o m o n u n c a , ao seu convvio. C o m o quer
que fosse, subtraa-se a o s e n c o n t r o s c o m ele, a s s , p o r o n d e matejava.
107

L c i o levava t a m a n h o r e t r a i m e n t o conta da priso de Valentim:


c u i d a v a q u e a filha do a s s a s s i n o se corria desse labu. E r a o p u d o r do
abandono.
E sua alma condoda e x t r e m o u - s e na solicitude enjoativa.
L a t o m i a mexericava:
C o n t a d o o dia q u e n o se enfinca em c a s a dela p r a olhar as
p a r e d e s . u m a coisa p o r d e m a i s ! . . . Eu ele j tinha a r r i b a d o d a q u i . . .
L c i o ignorava a causa do c r i m e .
J o o T r o u l h o informou, v a g a m e n t e :
M a t o u de ruim pra m a t a r .
E , interpelado, olhava p a r a o s p s :
Sei n o . . .
Pirunga tinha-se m a l q u i s t a d o c o m Soledade. Dava-lhe c o m que
p a s s a r , m a s no se falavam.
O e s t u d a n t e c o m e o u a suspeitar desse d e s a p e g o .
E volveu-se, a p o u c o e p o u c o , esterilidade interior.
Seu bucolismo fora u m a c r i a o lrica. A paisagem p e r d e r a aquele
sentido solidrio. Escravizara-se s formas e x t e r i o r e s refletidas em
sua sensibilidade; m a s d a s r v o r e s s lhe restavam n ' a l m a as sombras
midas.
O q u e lhe parecera o s e n t i m e n t o da natureza fora u m a subordina o vulgar.
O esprito m o d o r r o enfastiava-se da mesmice do c a m p o , do eterno
e s p e t c u l o de flores e c a n t o s . Amofinava-se d e n t r o d e s s a alegria natural c o m o um d o e n t e de indigesto q u e sofre da felicidade do estmago cheio.
N o distinguia as v a r i e d a d e s da e s t a o : as m a n g u e i r a s e os caj u e i r o s sujos de sangue, s a n g r a n d o na folhagem nupcial; abacateiros
floridos c o b e r t o s de insetos, c o m as c o p a s musicais, c o m o violinos
em surdina; o j a t o b c a r r e g a d o , b a t e n d o n u m barulho de c a s t a n h o las...
A n t e s , q u a n d o c h e g a v a , e n c o n t r a v a m u d a d a a fisionomia do stio:
t u d o para m e n o r . medida q u e ia c r e s c e n d o , n o t a v a q u e os altos e as
plantas familiares se a m e s q u i n h a v a m .
M a s , p o r ltimo, n e m e s s a iluso sentia, p o r q u e se j u l g a v a abaixo
de tudo.
Repercutiam-lhe n o c o r a o vazio t o d a s a s v o z e s a g o u r e n t a s .
Ui! u...
C o r r e u e m s o c o r r o . E r a u m b a n d o d e a n u n s n o m e s m o ninho c o m
a alegria d e s s e c o m u n i s m o a m o r o s o .

***
108

A m a n h e n t r o u no q u a r t o de telha-v.
E L c i o esgueirou-se d o s s o n h o s convulsivos e d a s vises rebeldes d a insnia. M a s e s t a v a t u d o d o r m i n d o .
A lua bonita l u g a r - c o m u m d o s c u s brasileiros e r a um rom a n t i s m o indito n e s s a h o r a ambgua.
A noite b r a n c a , em c a m i s a , tinha um peito a p o j a d o de fora, a vazar-se e m goteiras d e luz.
E r a u m a feio d e dia c l a r o , d e u m a claridade benigna, q u e r e v e lava t u d o s e m e x a c e r b a e s de sol. Um d o c e meio-dia c o m o cheiro
forte d a fresca d a m a d r u g a d a .
A noite n u a , s e m o maillot d a s n u v e n s , nas negligncias da solid o , t o m a v a um b a n h o de leite. E a b r a n c u r a tangvel escorria molhando a s coisas a d o r m e c i d a s .
A coruja, desconfiada, recolheu-se ao seu esconderijo.
E o c u m o s t r o u q u e t a m b m sabia cantar. Pegou a cantoria das
estrelas e s c o n d i d a s .
P a r e c i a u m delrio d o s a s t r o s .
L c i o e s c u t a v a m a r a v i l h a d o a c o n s o n n c i a sideral.
E r a m as cigarras q u e t o m a v a m a lua pelo sol.
T o d a a amplido r e c h i n a v a n u m a loucura estrdula, zinia na fanfarra de milhes de silvos q u e c r e s c i a m n u m grito u n s s o n o fantstico
de me-da-lua.
Um ruidoso meio-dia meia-noite.
E s t o n t e a d o d a zoeira fora d e h o r a s , L c i o abeirava-se d a casa d e
S o l e d a d e . E notou q u e u m a s o m b r a a nica s o m b r a d e s s a vibrao
luminosa lhe seguia as p i s a d a s .
E r a a m e preta a noite indormida de sua infncia c o m a cabea
toda b r a n c a , c o m o c o r o a d a d e luar.
Ele abraou-a, alisando-lhe a carapinha de algodo. E imaginou
que ela, em paga de t a n t o s sacrifcios, ia ficando a l v a , t o d a branquinha, d o cabelo pixaim a o s p s .
Milonga falou-lhe c o m um beijo no ouvido:
V dormir, ioiozinho: a noite pra gente se e s q u e c e r . F e c h e
os o l h o s , faa de c o n t a q u e e s t d o r m i n d o . Se vier a l e m b r a n a , faa
de c o n t a q u e s o n h o q u e no faz mal a ningum.
E levando-lhe a m o t e s t a febril:
N o perca a c a b e a , m e u filho: coloque ela p o r c i m a do corao c o m o D e u s c o l o c o u , c o m o q u e m coloca u m p e s o e m cima d e u m a
coisa q u e q u e r v o a r .
Ungiu-se, afinal, de t o d o o mistrio n o t u r n o :
Mulher c o m o fruita: q u a n d o cai, a p o d r e c e . . .
109

***
L c i o continuou a viver j u r u r u , c o m o u m b o d e d o e n t e .
F a l a v a b a i x o , c o m a fadiga d a v o z . Batia o s d e d o s e m t u d o , c o m o
num teclado.
N o se s e n t a v a q u e n o e n t e r r a s s e a c a r a nas m o s . E deu-lhe volt a r a o s antigos hbitos solido voluntria do q u a r t o de d o r m i r .
Refugiava-se n o s livros de u m a i n v e n o fantstica q u e lhe h a v i a m
d e s o r g a n i z a d o a sensibilidade.
T e n d o p r e s e n t e s o s c o n s e l h o s d e Milonga, t o r n o u , u m dia, a rabiscar na p a r e d e c o m o v e n e n o pessimista:
O a m o r o caixeiro-viajante da p r o p a g a o da espcie.
*
N s compramos as mulheres perdidas e
as m u l h e r e s h o n e s t a s nos c o m p r a m . o
r e g i m e institudo p e l o s i n t e r e s s e s s e x u a i s .
H uma generosidade egosta: a de
quem a m a sem ser a m a d o .
*
A m u l h e r s s a b e g u a r d a r o seu s e g r e d o . O a m o r a nica f o r a c a p a z de a
d e s c o b r i r ; e, q u a n d o a d e s c o b r e t o d a , n a s
d e n n c i a s d e certos a b a n d o n o s , ela e s t
perdida p a r a o prprio a m o r que a descobriu.
N o ! a mulher que a m a a q u e diz men o s , p o r q u e a que m e n t e m a i s .
S a mulher que sofre diz t u d o n u m
grito de dor.
M a s no p d e contrafazer a n a t u r e z a sensvel:

O a m o r m a i o r o que n o t e m f i m .
*

110

A m a i o r d a s s a u d a d e s a do b e m p r e sente que j no se alcana.


***
I n d o a o p o m a r , s distinguia n o s frutos s a z o n a d o s a s m a n c h a s
pretas.
Dir-se-ia q u e a a l m a se lhe tinha apodrecido d e n t r o , c o m o um feto
morto.
Sentia q u e a sua p i e d a d e p a r a c o m o s o u t r o s n o e r a m a i s d o q u e
u m a forma da piedade d e v i d a a si m e s m o .
T r a z i a a c a b e a inclinada, c o m o q u e m leva o p e s o de u m a idia fixa.
Vendo-lhe a c a r a aflita, n u m a a p a r n c i a visionria, s e g r e d a v a m os
moradores:
A n d a b e s t a n d o . E s t f a z e n d o v e z de d o i d o . . .
E ele esgaravatava a c o n s c i n c i a . Tinha vertigens na inteligncia,
c o m o a s t o n t u r a s d e q u e m o l h a p a r a o sol e , f e c h a n d o o s o l h o s , v ,
e m v e z d e luz, p o n t o s n e g r o s .
D e u m a feita, a s s o m b r o u - s e c o m o s p r e s s e n t i m e n t o s d o seu destino. O b s e r v o u n o d e s c a m p a d o u m a c r u z d e s o m b r a d e s e n h a d a n o
cho.
F i x a v a - s e a m a n c h a inexplicvel, c o m o um m a u a u g r i o .
L a t o m i a tirou-o d e s s e p e s a d e l o :
O s e n h o r n o v o g a v i o s e s s a n d o ?
A a v e de rapina p a r a d a , m u i t o a l t o , c o m as a s a s d i s t e n d i d a s , peneirava.
***
P i n t o u - s e , mais t a r d e , um p o e n t e esquisito: o fundo de fogo deb r u a d o de r o x o e a m a r e l o e p o r c i m a u m a s b r e c h a s e s c a n c a r a d a s p a r a
se v e r a D e u s p o r e s s e p r i m o r de suas fantasias.
E L c i o sentiu falta de S o l e d a d e .
T i n h a a nsia de r e t o m - l a ; s se corre p a r a o q u e foge.
L e v a v a a peito salv-la d a s c o n s p i r a e s da s o r t e .
M a s , c o m o q u e r q u e lhe falasse e m c a s a m e n t o :
Diga...
E l a r e s p o n d e u n u m t o m d e pilhria amarga:
I s s o falando srio? M a s veja s ! . . .
R e m a t o u d e u m a m a n e i r a q u a s e repulsiva:
111

' S t d o i d o ! Eu podia ser s u a m e . . .


E ele saiu p e n s a n d o n u m a m o r q u e lhe suprisse t o d o s os a m o r e s
q u e n o tivera de m e , de i r m e de noiva...

PAI E

FILHO

O senhor no repare...
E D a g o b e r t o levantou-se:
Q u e me q u e r ? V a m o s l! D e s e m b u c h e ! . . .
E n c r e s p a v a - s e , i n t r a t a v e l m e n t e , c o m o u m a lagarta-de-fogo.
P o r u m a natural desconfiana o u p o r q u e lhe e n t r e v i u u m a r d e desaprovao, Lcio antecipou-se:
Eu sei q u e o s e n h o r leva a m a l . . .
Se levo?! E p o r q u e n o hei de levar?!
O e s t u d a n t e ficou b r a n c o e frio, c o m o u m a figura de gelo.
P a r e c i a q u e r e r falar pelos o l h o s arregalados.
E o pai lanou-lhe em r o s t o , c o m o habitual a g a s t a m e n t o :
N o p r e c i s a v a vir d a r - m e p a r t e ! . . . Eu j sabia q u e o senhor
(era u m a forma agressiva de t r a t a m e n t o ) a n d a v a m e t i d o c o m o a s s a s sino!...
C o m o ? ! O s e n h o r s a b e ? Eu n o passei a n i n g u m . . .
Se sei? At gato e c a c h o r r o s a b e m que o s e n h o r vai me defend e r aquele bandido no j r i . F o i p r a isso que o botei no e s t u d o pra
ser c o n t r a m i m , p r a m e d e r r o t a r ! . . .
?!...
S i m , p o r q u e , se ele for livre, me liquida em dois t e m p o s !
M a s , p o r q u e , m e u pai? Q u e h o u v e , q u e eu i g n o r o ?
D a g o b e r t o a m a n s o u a v o z e n t r e m u x o x o s involuntrios:
O r a , n o se faa d e s e n t e n d i d o . M a l v a d o , c o m o , n o me perd o a a p r i s o . Queria e r a q u e eu lhe d e s s e fuga e, c o m o n o dei, est
comigo de olho...
L c i o criou coragem:
O s e n h o r diz isso e eu beijo a m o dele p o r um d e v e r q u e a
m u d a n a d a sorte n o m e fez d e s c o n h e c e r . . .
!... Beija as m o s de um criminoso e n u n c a beijou as de seu
pai!
N e s t a c a s a n u n c a se ouviu um beijo!
112

O s e n h o r de e n g e n h o c h u p o u o cigarro inteiro de dois t r a g o s . E as


baforadas envolveram-lhe a c a r a , dando-lhe um ar m a i s s o m b r i o .
L c i o aproveitou-se d e s s e silncio p e r t u r b a d o r e d i s s e , deliberad a m e n t e , c o m u m inslito p o d e r d e resoluo:
M e u pai, eu serei a d v o g a d o de Valentim. M a s n o e r a isto o
q u e e u vinha dizer-lhe. E u q u e r i a dizer-lhe...
Q u e ajudar a m a t a r - m e ! N o isso? N o sei o n d e e s t o u
que...
N o , senhor! N o p e r c a a calma. Eu vinha dar-lhe p a r t e e j
p o u c o me importa q u e saiba q u e . . .
A, empalideceu de c e r t o m o d o e a c a b o u n u m a f r a n q u e z a d o i d a ,
c o m o o criminoso c o m a p e r v e r s i d a d e da confisso:
... vou c a s a r - m e c o m a filha do a s s a s s i n o .
O qu?! Ento, voc!...
D a g o b e r t o f i c o u d a c o r d a p a r e d e . Ficou b r a n . . . q u i n h o !
N i s t o , chegou L a t o m i a , a i n d a mais b r a n c o :
Patro, o cavalo s'embaraou e morreu enforcado!
C a b r a de peia, v o c foi o c u l p a d o !
, ali m e s m o , o s e n h o r de e n g e n h o tirou o r e b e n q u e do a r m a d o r e
deu-lhe c o m o n u n c a s e d e r a e m negro fujo.
O bravateiro a p a n h o u de c a b e a baixa talvez p a r a livrar o r o s t o de
alguma lapada cega.
L c i o ia i n t e r c e d e n d o :
N o bata n o . . .
M a s ocorreu-lhe q u e e s t a v a incidindo n u m a e x a s p e r a o maior e
e s c o a v a - s e , eis q u e o p a i o c h a m o u fala.
Tinha serenado:
Q u e r que lhe diga? de s u a v o n t a d e ? P o i s n o me faz n a d a
q u e c a s e ou no c a s e . s e n h o r de suas a e s . . .
O e s t u d a n t e a v a n o u p a r a abra-lo. E ele c o m e o u a ir e vir, ao
seu j e i t o , d e m o s a t a d a s n a s c o s t a s , c o m o s e a s p r e n d e s s e p a r a s e
coibir de violncias.
E n r o l o u a p o n t a do b i g o d e no d e d o e ficou, a s s i m , c o m os d e n t e s
mostra.
A p a r e n t a v a u m a c a l m a enfurecida:
Hum! hum!... Estou a ver que tem bom gosto...
Soletrou:
G-o-s gos t-o t o . . .
E, no seu v a i v m , m o n o l o g a v a , a e s p a o s :
E esta!... O r a , m a s na v e r d a d e ! . . . V o c j se v i u ? ! E r a m e s m o
o q u e faltava...
113

L c i o q u e d a r a - s e , s e m u m a sada, c o m o s b r a o s c a d o s c o m o u m
p e s o m o r t o . O rosto ficava-lhe m a i s c o m p r i d o .
E D a g o b e r t o foi j a n e l a , esfregando as m o s , c o m o se triturasse
a l g u m a coisa. D e p o i s , sentou-se e e n t r o u a assobiar, b a i x i n h o , marc a n d o o c o m p a s s o c o m o p frentico. M o n t o u , em seguida, u m a
p e r n a sobre a o u t r a e, t a n t o a b a l a n o u , que ela caiu.
V o l t o u a falar c o m o olhar no t e t o :
P a r a q u e foi que eu gastei t a n t o s e q u a n t o s ? D i n h e i r o q u e d a v a
p r a levantar a c a b e a de muita g e n t e . . . Pra q u e foi q u e o tirei da bagaceira?
Virou-se p a r a L c i o :
M a s isso no t e m t r a m e n h a ! Se e s t u d o d p r a d e s m a n t e l a r a
b o l a , v o c me vai p r o c a b o do freij!
J fora de si:
N e m bonita ...
E o l h o u , m a q u i n a l m e n t e , p a r a o r e t r a t o da mulher p e n d e n t e da parede.
O estudante, desasado, arriscou:
Seria do g o s t o de m i n h a m e , s e . . .
N o p d e continuar. Enfuriando-se, de mais a m a i s , D a g o b e r t o
pulou, num destampatrio:
E n t o , seu c o r n o , v o c p e n s a q u e me b o t a o p no p e s c o o ? !
Q u e me desmoraliza a r a a ?
E s t e v e , vai-no-vai, a saltar-lhe ao gasnete. C h e g o u a fazer m e n o d e abertur-lo.
A i n d a se descomediu em o u t r o s r o m p a n t e s .
L c i o deixou-se e s t a r no m e i o da sala, a g u a r d a n d o o d e s a b a r
d e s s a v e e m n c i a , c o m a imobilidade de uma grande d e c i s o .
E p a r e c e q u e D a g o b e r t o e n s a i a v a , n o v a m e n t e , despersuadi-lo
pelo ridculo:
Pois q u e lhe faa b o m p r o v e i t o . . . N o podia ser mais feliz a
e s c o l h a . . . P r a q u e m b a c a l h a u b a s t a . . . T e m g o s t o , sim, senhor!...
G-o-s gos t-o t o . . .
D e u u m a risada triste q u e n e m um uivo. E c u s p i n h o u c o m c a r a de
nojo.
A c e n t u o u , c o r a n d o c o m u m a p o n t i n h a d e mistrio:
coragem muita!... E n o lhe digo mais n a d a . . .
M a s , d e p a n c a d a , voltou-se, i m p e r a t i v a m e n t e , n u m vozeiro,
c o m o se tivesse a alma a trovejar:
N o ! no casar com a retirante! Corto a mesada, boto pra
fora de c a s a ! . . . T i n h a q u e ver!...
114

Lcio no se conteve que no obtemperasse:


Por ser retirante, n o . O senhor no c a s o u c o m m i n h a m e ?
E a q u e v e m isso? S u a m e n o era e s s a m u n d i a !
N o diga isso, m e u p a i !
N o diga o q u ? !
Se minha m e n o e r a retirante, Soledade t a m b m n o ...
Lembrou-lhe o cajueiro da a l a m e d a o de galhos nascidos do
m e s m o t r o n c o c o m d e s t i n o s desiguais.
E revelou:
O pai de Soledade n o irmo do pai de m i n h a m e ? Pois, ento?
Dagoberto desconcertou-se:
a p u r a mentira!
E L c i o no r e t r u c o u : limitou-se a esticar o d e d o p a r a o retrato
d e s b o t a d o . E, c o m o p e r m a n e c e s s e o silncio p e s a d o , c o m p a r o u :
Veja aquela b o c a . . . a q u e l a testa!
E r a m o s c a r a c t e r e s fsicos d a consanginidade sertaneja, d a r a a
que se fixara e s t r e m e de r e c r u z a m e n t o s i m p u r o s .
O senhor de e n g e n h o confessou, evocativo:
C o m o de fato. E l e veio em 77...
M a s e m e n d o u o efeito d e s s a confisso, f o r m a n d o o c o n t r a s t e :
E r a um sertanejo de c o n d i o . T r o u x e h a v e r e s . N o era um
leguelh...
D a v a d e c o s t a s , d e v e z e m q u a n d o , c o m o p a s s o agitado, c o m o s e
intentasse sair e, v o l t a n d o , r e a t o u :
N o h t e r m o de c o m p a r a o . . .
M a s , c o n c e n t r o u - s e , tirou o retrato da p a r e d e , m i r o u - o , remirou-o
e m u r m u r o u abatido:
Eu devia ter a d i v i n h a d o . . . Q u a n d o a vi p e l a primeira v e z , foi
essa s e m e l h a n a q u e me levou a lhe dar m o r a d a . . .
E c o m um ar h e s i t a n t e :
E u no tinha e n c o n t r a d o o u t r a mulher a s s i m . . .
Chegou-se a L c i o , humlimo:
N o , meu filho, ela n o p o d e ser tua e s p o s a p o r q u e . . . Eu profanei a m e m r i a de t u a m e , m a s foi tua m e , q u e a m e i nela...
L c i o sentiu q u e lhe refluam t o d a s as t a r a s a t v i c a s , os impulsos
da r a a vingadora, o s e n t i m e n t o de famlia dos seus a n t e p a s s a d o s sertanejos:
Q u e que o s e n h o r e s t a d i z e n d o ? !
D a g o b e r t o deu u m p a s s o a t r s corrido d e v e r g o n h a d e s s a s disso115

n n c i a s da honra. B e m q u e o feitor lhe dissera q u e c o m a q u e l e calibre


p a s s a r i a a perna em seu L c i o .
E o e s t u d a n t e n o lhe t e m i a a veemncia, e m b o r a lhe evitasse
olhar.
M e u pai, o s e n h o r e s t m e n t i n d o p a r a me dissuadir!...
A h , m e u filho, a n t e s fosse mentira! M a s a gente t e m d u a s idad e s de p e r d e r a c a b e a . . .
Eu logo vi! p o r isso q u e o senhor t e m m e d o do a s s a s s i n o . . .
P o r q u e sabe q u e minha gente n o p e r d o a e s s a s afrontas!
E , c o m o s e falasse a o r e t r a t o :
M e u pai desonrou m i n h a famlia, prostituiu m i n h a prima, tom o u m i n h a noiva!...
Ele sabia que o c o r a o n o c a p a z de r e n n c i a s ; m a s t a m b m
devia saber q u e o pai p o d e d i s p u t a r t u d o ao filho, m e n o s o seu amor,
q u e um direito da idade.
Caiu o q u a d r o espatifado.
A m b o s se a s s u s t a r a m diante d e s s e mistrio.
F o r a Milonga que o d e r r u b a r a p o r trs com o c a b o da v a s s o u r a .
E, c o m a a s c e n d n c i a g a n h a p e l a humildade d a s criadas v e l h a s :
Minha gente! isso um fim de m u n d o . . .
Saiu carregando t u d o :
E n q u a n t o eles virem a m o r t a no se e s q u e c e m da viva. a
mesma coisa...
L c i o recuou:
Eu queria resgatar aquele d e s t i n o . Meu a m o r e n c a r n a v a t o d o o
sofrimento da seca.
Dirigiu-se ao pai:
T o m e - a para o senhor. J s u a . . .
E , c o m o lhe p e r c e b e s s e u m g e s t o d e renncia:
Eu matei, n a s c e n d o , m i n h a m e . Foi p o r m i n h a c a u s a q u e o
s e n h o r perdeu sua mulher; a g o r a , n o seja t a m b m p o r m i m que
p e r c a sua a m a n t e . N o diga m a i s q u e nem bonita . . . bonita e
sua.
Saiu a cambalear:
Eu d e v o d e s a p a r e c e r d a q u i p a r a q u e no fique interposto nesse
amor...
Foi direito casa de S o l e d a d e .
No caminho, Latomia atravessou-se:
Eu vi o trovejo. Foi um c a t a t a u m e d o n h o !
E c o m u m a ponta de m a l d a d e :
116

N o sabia q u e ela t i n h a c a d o n a vida? E s t a v a t u d o d e lngua


p a s s a d a . . . Eu vi o e s t e r n e g u e ! Babau!...
E n t r o u , c o m o um p - d e - v e n t o , d e r r u b a n d o a p o r t a . E levantou-lhe
um p u n h a l sobre a c a b e a :
Pu...
E l a s e n t a d a e s t a v a , s e n t a d a ficou. A p e n a s e r g u e u o r o s t o e cravou-lhe um olhar l u z e n t e c o m o a lamina d e s e m b a i n h a d a . Entregavas e a o golpe iminente o u z o m b a v a d a a m e a a .
E l e ia repetindo:
Pu...
M a s , a n t e e s s e olhar indizvel, e m e n d o u , a t i r a n d o a a r m a pela j a nela e a p o n t a n d o o t e r r e i r o :
Pu...xe!
N o podia expeli-la do q u e n o lhe pertencia e c o m a m o espalm a d a p a r a a frente, n u m g e s t o suspensivo:
Tu s muito d e s g r a a d a !
A c o s t u m a d a a t o m a r e s s a p a l a v r a em sentido i n s u l t u o s o , Soledade
n o c o m p r e e n d e u a lstima:
Se q u e r m a t a r , m a t e ; m a s , maltratar, isso n o !
M o r t a j e s t s , a l m a da s e c a e s c a r n e c e u L c i o .
E deu-lhe as c o s t a s p a r a n u n c a mais voltar.
A i n d a gritou, de l o n g e :
A g o r a , j sei p o r q u e q u e r i a s ser m i n h a m e ! impossvel: eu
j n o t e n h o mais p a i !
D e s p e d i u - s e , ao d o b r a r a e s t r a d a :
A t dia de j u z o !
E foi ela mofou:
A h , e s s e n u n c a lhe chegar!...

O JURAMENTO
Pirunga chegara-se g r a d e da priso c o m um ar s u c u m b i d o e segredeiro.
Valentim e s g a r a v a t a v a , e s q u e c i d a m e n t e , a fenda do r e b o c o , c o m o
p a r a se d a r a iluso de q u e , a q u a l q u e r m o d o , p r o c u r a v a a liberdade
Q u a n d o n o , p a r a gastar o t e m p o q u e era o q u e t i n h a p a r a gastar,
c o n t a v a as badaladas da sineta. E os dias p a s s a v a m - s e c o m u m a lentido de milagre bblico de sol p a r a d o .
Regozijavam-se os p r e s o s c o m a runa iminente. ( A s s a v a s soli117

darias as m e s m a s formigas sacrlegas q u e haviam d e r r u d o a igreja


de S a n t a Rita c a r c o m i a m , i m p u n e m e n t e , a cadeia fedorenta q u e
e m p e s t a v a t o d o o quarteiro.)
B a t i a m c o m os ps no c h o c a v o , ouvindo o c h a m a d o s u b t e r r n e o
d a s c o v a s feitas. E, q u a n d o o t e l h a d o oscilava n a s p a r e d e s desaprum a d a s , e s p e r a n a v a m - s e c o m a e s c a p a d a na h o r a do p e r i g o .
Valentim voltou-se, afinal, p a r a Pirunga:
H o m e m , que i s s o ? ! P a r e c e que v o c viu a l m a do o u t r o mundo...
P a d r i n h o , Soledade n o t i n h a n a d a com o feitor...
De v e r d a d e , P i r u n g a ? ! Q u e q u e voc e s t d i z e n d o ? Eu logo
vi! M i n h a f i l h a . . .
Recuou para os presos:
V o c s q u e r e m cigarro? T o m e m cigarro!
E n o e n c o n t r o u mais o m a o q u e havia e s c o n d i d o no r e b o c o
aberto.
N o se tinha em si de satisfao:
E n t o , m e u filho, e r a t u d o p a n t i m ? Soledade n o h a v e r de me
m a t a r em vida... Voc tirou b e m a limpo?
O r a p a z sacou esse s e g r e d o d a s e n t r a n h a s , c o m o q u e m lana a
p r p r i a vida n u m a h e m o p t i s e :
O feitor e r a s leva-e-traz...
O q u , Pirunga?! O feitor...
E r a s espoleta... A n d a v a a o s m a n d a r e t e s . . . F o i t u d o o b r a do
s e n h o r de e n g e n h o . . . A d e r r o t a e s t feita!...
A cadeia e s t a v a vai-no-vai. R a n g e r a m as t r a v e s c o m o p-de-vent o n u m longo gemido d o t e t o d e s e n g o n a d o .
Valentim fez m e n o de sair:
' S p e r a a! Eu vou j-j!...
A r r e m e s s o u - s e c o n t r a a grade de ferro. Passou as c o s t a s da m o
na testa ferida. E, q u a n d o viu s a n g u e , danou.
E x p e d i u um urro que r e p e r c u t i u n o s formigueiros.
E calou-se p a r a tossir c o m os d e d o s enfiados na b a r b a esfiapada.
U m a p o n t i n h a d e tosse d e p r e s o .
E n c o l h e u - s e n u m c a n t o , j u n t o d a c u b a cheia.
X i n a n e , que ainda e s t a v a d e t i d o p o r haver tirado o q u e e r a seu,
deu-lhe u m a palavra de c o n s o l o cristo:
Bote pra Deus.
O ladro confessou:
T o m e seu m a o de c i g a r r o , m e u velho. Eu guardei p o r c a u s a
dos outros...
118

E um preso irnico r e p r o d u z i u o estribilho fatalista:


Isso da vida. O q u e t e m de acontecer t e m muita fora...
A agitao dessa a l m a selvagem semelhava u m a t e m p e s t a d e no
escuro: a razo luzia c o m o um relmpago que o olho m a u da tempestade.
E r a u m a angstia seca. Ele enxugava, a p e n a s , o suor g r o s s o que
se lhe e m p o a v a nas rugas do rosto e s c a r n a d o , c o m o se estivesse
c h o r a n d o p o r todos os p o r o s . E, nesse afogo, e s p u m a v a , c o m o se ondas de amargura lhe r e b e n t a s s e m boca.
D e r r e a d o pelo golpe fulminante, gemeu c o m o som de u m a pancada no c o r a o :
Meu D e u s ! . . .
E, olhando para os d e d o s m a g r o s , rosnava:
Eu atirei no que vi... N u n c a que eu p e n s a s s e ! . . .
E x p r o b r o u a negligncia de Pirunga:
Eu s estou v o c s a b e r de tudo e n o me d a r p a r t e ! E s t a v a
na m e n t e que t o m a v a c o n t a dela...
O sertanejo e s c u s o u - s e :
Ainda dei um t o q u e , m a s nem c o m o coisa! Botei o p atrs e
ela saiu-se com quatro p e d r a s na m o . . . Dava um b o r d o t o d a noite...
Uma feita, barrei a e n t r a d a dele.
E, envergonhado:
Q u a n d o a c a b a , me j u r o u : Que se eu viesse c o m a histria, me
levantava um falso. M a s D e u s N o s s o Senhor e s t a v a v e n d o do cu...
Eu n o podia tomar c h e g a d a . . .
Enfim, tranqilizou-o:
Soledade est p u x a n d o pro serto. Ela q u e m m a n d a em tudo.
Vo de arribada... M a s deixe p o r minha conta! S d a v a t e m p o em vir
dizer.
C o n t r a i n d o a c a r a e s c a v a c a d a , Valentim e s t r e m e c e u :
M e u filho, se eu lhe pedir uma coisa...
Diga, padrinho!
Voc jura?
Eu j u r o !
E , beijando o s d e d o s e m cruz:
J u r o por tudo q u a n t o e s t no cu! E, d no q u e d e r , me caiam
as m o s , se eu q u e b r a r a m i n h a j u r a !
E logo, indo ao e n c o n t r o do p e n s a m e n t o homicida:
Eu j u r o q u e , a n t e s q u e o sol nasa o u t r a v e z , hei de dar fim...
O velho despediu um b r a m i d o de aflio:
N o ! Por a m o r de D e u s , no a c a b e ! N o isso, m e u filho!...
119

E , rogativo:
Eu q u e r o que v o c p r o m e t a que n o m a t a o s e n h o r de engenho.
Pirunga d e s c o n h e c e u aquele o b d u r a d o instinto de vingana.
E foi franco:
Pois, padrinho, d e s d e q u e eu s u b e , s d a v a t e m p o e r a vir pedir
licena ao s e n h o r . . . A pistola j e s t e s c o r v a d a .
N i n g u m me tira o m e u direito. Um dia, c e d o ou t a r d e , eu hei
de me livrar, p o r q u e D e u s n o servido que eu m o r r a d e s o n r a d o !
blaterou Valentim.
E, acalmando-se:
J u r e q u e n o m a t a e q u e ir c o m eles pra o n d e eles forem. F e c h e os olhos a t u d o . F a a de c o n t a q u e no v . V s e m p r e na batida.
D d a q u i , d dacol, n o deixe o r a b o da saia dela!
E r a h o r r e n d o esse p a c t o .
F i c a r a m nisso. Pirunga beijou, silenciosamente, o s d e d o s e m c r u z .
E despediu-se de Valentim, de longe, c o m a m o t r m u l a , c o m o um
p s s a r o ferido v o a n d o .

FESTA DA RESSURREIO
A n d a v a p o r u m ms q u e D a g o b e r t o Marau s e a c h a v a n o B o n d .
E s t i v e r a em levar consigo o L a t o m i a ; m a s , instncia de Pirunga,
t o m a r a - o p a r a vaqueiro. E o sertanejo revia a fazenda c o m u m a satisfao m e d o c r e .
O p e r a v a - s e a m u t a o i m p r o v i s a . A gleba c o n v a l e s c e n t e recomp u n h a - s e n u m abrir e fechar de o l h o s . T u d o se t r a n s f o r m a v a c o m a
i n t e r v e n o da primeira c h u v a , c o m o se a q u e d a d ' g u a fosse o hiss o p e aspergido da reconciliao do cu c o m a terra precita.
O serto tinha um cheiro de milagre. A n a t u r e z a imperecvel ost e n t a v a , de e x t r e m o a e x t r e m o , u m a beleza m o a . T i n h a morrido s
pelo g o s t o de renascer mais bela.
Reflorescia o d e s e r t o a r r e l v a d o nesse surto miraculoso da seiva
explosiva. Revivia a flora, f r o n d e a v a a catinga, de s u p e t o , na paisag e m n o v a em folha. C a d a r v o r e tinha um vestido n o v o p a r a a festa
da ressurreio.
C o m o q u e a s p e d r a s r e b e n t a v a m e m folhagem. A s t r e p a d e i r a s sub i a m , e n r o s c a v a m - s e pelos anfractos e faziam c o m q u e a r o c h a nua
florisse.
120

A e r v a g e m viosa e s c o n d i a os d e s t r o o s de u m a riqueza q u e se refazia: chiqueiros d e s m a n t e l a d o s e o s s a d a s d i s p e r s a s .


A v e r d u r a era um d e s p o t i s m o de cor. Invadia at as guas. Surdia
c o m u m a bolha d e e s p e r a n a , u m a e s p u m a d e e s m e r a l d a ; fingia ilhot a s p a r a o s segredos d a s d o n z e l i n h a s , a s liblulas d e t a n t o s olhos que
t i n h a m visto Soledade t o m a r b a n h o ; estendia-se, afinal, p o r t o d a a
superfcie lquida, c o m s u a c o l c h a de algas, p a r a o a u d e n o ter
frio...
O prprio cu v e r d e j a v a em n u v e n s de m a r a c a n s e periquitos.
D e p o i s , t o d a e s s a v e r d u r a c o m e a v a a rir na a l v u r a d o s capulhos
da v r z e a feraz. E s a u d a n d o a vida nova, as c a r n a u b e i r a s perfilav a m - s e c o m o p e n d o a u r i v e r d e de c a c h o s e p a l m a s .
A relva e s t a v a t o florida q u e os animais c o m i a m flores.
R e m a n e s c i a m p o u c a s r e s e s d a fazenda. A s m a i s d e l a s v i n h a m d e
fora.
As v a c a s saciavam-se a o s primeiros b o c a d o s e d e i t a v a m - s e nos
c o l c h e s d e p a n a s c o borrifados d e leite.
B e z e r r o s e s t o u v a d o s a p o s t a v a m carreira c o m a s c a u d a s e m b a n d e i r a d a s . Cabritos lacres e s p i n o t e a n d o , c o m o colegiais e m recreio.
Equilibravam-se os b o d e s a c r o b a t a s n a s p o n t a s do s e r r o t e . E c a b r a s
m a n h o s a s mergulhavam n o s tufos d e e s m e r a l d a , c o m o b r i n c a n d o d e
esconder.
O serto pagava-se d o s a n o s estreis c o m e s s a largueza.
T o d o s queriam desfrutar a felicidade bandoleira do p a r a s o pastoril.
S havia de triste o balar d a s o v e l h a s b i c h o t r i s t e ! cabisbaix a s e u n i d a s , c o m o m e n i n o s m e d r o s o s , to j u n t o o r e b a n h o , q u e par e c i a u m algodoal a b e r t o .
N o : havia e m t u d o i s s o , n e s s a revivncia e s t u a n t e , u m a tristeza
maior.
A b o c a da noite, Pirunga e n c o s t a v a - s e na p o r t e i r a do curral. Sorvia o ar q u e cheirava a mijo de v a c a . E, nessa h o r a de p r e s s o sentim e n t a l , aboiava n u m a t o a d a q u e n o diz nada e diz t u d o .
E s s e grito rude traduzia o d o l o r o s o segredo d a s r e n n c i a s . Tinha
o s o m de u m a alma que se r a s g a v a .
A t q u e , u m a v e z , o garganteio convidativo p e r d e u t o d o o seu
ritmo de hino do s e r t o : e r a um urro de d e s e s p e r o .
Soledade correu e tapou-lhe a b o c a c o m a m b a s as m o s . E ele ficou
g e m e n d o , c o m o u m aboio e m surdina.
***
122

D a g o b e r t o afeioava-se, o melhor que p o d i a , v i d a pastoril.


N o e r a raro q u e sasse t a m b m a c a m p e a r .
Corisco revigorado, c o m o brio dos r a b e s a n c e s t r a i s , e r a a s u a
montada predileta.
Pirunga advertia:
Olhe que o c a v a l o m e t e de c a b e a ! N o v d e s e m b e s t a r . . .
E , u m dia, d e s e m b e s t o u : picado nas ilhargas, s e m preciso,
arremessou-se aos t r a n c o s , v o a n d o por cima d e t o d o s o s precipcios.
O s vaqueiros f e c h a v a m o s o l h o s :
Vai em t e m p o de se e s p e d a a r !
Dagoberto j corria d e s t r i b a d o ; mal se tinha na sela, seguro no aro.
E n t o , Pirunga pulou e m t o d a carreira d o seu c a v a l o n a a n c a d e
Corisco, e, d o b r a n d o o c o r p o , colheu as r d e a s c o m m o de ferro.
De o u t r a v e z , C o r i s c o , mal g o v e r n a d o , galgou u m a t o u c e i r a de xiquexique. Desequilibrando-se pela violncia do salto, D a g o b e r t o
agarrou-se a um galho a t r a v e s s a d o . E ficou b e m m e i a h o r a d e p e n d u rado, a oscilar, c o m o um e n f o r c a d o , servindo de e s p a n t a l h o .
A qualquer esforo p a r a subir, o r a m o frgil a m e a a v a partir-se. E
e m b a i x o o c a c t o a g r e s s i v o e s p e r a v a - o c o m os b r a o s erguidos arrepiados de espinhos longos c o m o estiletes.
De longe, Pirunga confundiu o vulto v e r m e l h o c o m um ninho de
casaca-de-couro. E , r e c o n h e c e n d o - o , gritou:
Se cair, fica u m a r e n d a , fura at a alma!
Tornou-se b r a n c o , c o m o o s flocos d e s u m a m a q u e v o a v a m a o
vento. E cruzou os d e d o s , na forma do j u r a m e n t o feito.
D e p o i s , sem olhar p a r a o c o r p o b a m b o , a o s b a l o i o s , p a s s o u a
lanar p e d r a s d e n t r o d a m o i t a d e xiquexique, p a r a soterr-la.
D a g o b e r t o , no ltimo a l e n t o , expediu um grito fnebre, c o m o se
j estivesse sofrendo a d o r d o s espinhos. E Pirunga a v a n o u para C o risco, m o n t o u , fez c a r r e i r a , saltou e, t o m a n d o o rival n o s b r a o s , alc a n o u o o u t r o lado, so e salvo.
***
Pirunga p r o c u r a v a afazer-se misso q u e V a l e n t i m lhe c o m e t e r a ;
mas r e c o b r a v a nesse s i s t e m a de vida o gnio selvagem. Revertido
liberdade do s e r t o , q u e lhe restitua o brio congenial, sentia t o d o o
pejo da transigncia i m p o s t a por u m a vingana a p r a z a d a .
Via o s animais j u c u n d o s n o s escndalos d a r e p r o d u o . A s novilhas nbeis dando-se a o s t o u r o s patrcios; o pai-de-chiqueiro em libi123

dinagens olfativas; o c a r n e i r o g e m e b u n d o c o m o p e s c o o alongado


l o m b o d a marra pudica...
S ele r e p r e s e n t a v a a r e n n c i a do a m o r incendirio.
Z o a v a n o m a t o u m j a z z - b a n d d e c h o c a l h o s . Tilintavam r o s e t a s .
C o r i s c o r e t o u a v a a b a b u g e m do ptio. E s c a r a m u a v a , atirando
c o i c e s , a e s m o . E, q u a n d o o e n c o n t r a v a , levantava as o r e l h a s , saud a n d o - o . Repunha-se na antiga alegria.
Ele e s c u t a v a o som da e s p u m a do leite fresco n o s p o t e s , admirado
de n o ouvir t a m b m o b a r u l h o de seu c o r a o frvido.
Ia sentar-se na ribanceira p a r a ver a n o v a e n c h e n t e do rio q u e eng r o s s a v a borbulhando e m m a r e t a s b a r r e n t a s . Despejando-se d e u m
j a t o intumescido, n u m a e s c a p a d a d e p o u c o s d i a s , n a vertigem d o
c u r s o impaciente, a c o r r e n t e z a brutal deixava o leito s e c o e, no arrem e s s o e r o s i v o , levava de p r e s e n t e p a r a terras e s t r a n h a s t u d o o que
podia levar.
E Pirunga p e n s o u q u e a s e c a devia ser um castigo: o c u negava
g u a a o r i o ingrato...
***
Eu vi a o n a q u e v o c criou. At inda t e m coleira disse Pirunga a Soledade.
M i m o s a ? ! Pois eu j u r a v a q u e ela tinha m o r r i d o . Soltei com
t a n t a p e n a ! c a p a z de me c o n h e c e r .
C o n h e c e o q u ! C o n h e c e n a d a ! A bicha parece q u e n u n c a saiu
da furna.
Pirunga, v a m o s peg-la?
Olhe q u e , q u a n d o ela me avistou, levantou a m o , parecia que
e s t a v a d a n d o a d e u s ; m a s , o diabo que receba a u n h a d a !
S o l e d a d e t a n t o fez, que Pirunga resolveu p r peito a e s s a aventura. F o r a m j u n t o s . E D a g o b e r t o , q u e d e s a p r o v a v a t a m a n h a temeridad e , foi a t r s . . .
A o n a encolheu-se e e r g u e u a m o . Estava g r a n d e , c a r r a n c u d a ,
b a r b a d a e c o m u m a perfdia felina nos olhos de e m b o s c a d a .
Soledade agitou um leno, c o r r e s p o n d e n d o ao c u m p r i m e n t o feito.
E a fera correu para ela c o m u n h a s e dentes. C o r r e u e abraou-se
c o m Dagoberto que de mais p e r t o procurou defender a a m a n t e .
Estrangulou-se um grito de e x t r e m a angstia.
E Pirunga no vacilou: salvou, mais uma v e z , seu maior inimigo
de um perigo mortal.
124

***
Soledade bilrava, m o l e m e n t e , no copiar. Pirunga o b s e r v a v a a almofada vermelha crivada de alfinetes c o m o a i m a g e m do seu c o r a o
picado de cimes.
D a g o b e r t o deitava-lhe a c a b e a grisalha n o s j o e l h o s e ela p a s s a v a
a extrair-lhe, entre mimalhices e cafuns a m o r o s o s , os impertinentes
cabelos b r a n c o s .
Pirunga sabia q u e o q u e se afigurava muito a p e g o n a s paixes serdias no passava d e zelo a s s u s t a d i o . E r a u m a m o r feito d e m e d o s
de n o ser a m a d o e de n o p o d e r a m a r .
E ela descaiu a fronte. E v o c a v a , n u m a crise de r e m o r s o , a c e n a de
sua p e r d i o .
C o m o estivesse a b a n h a r - s e na cachoeira, p r e s s e n t i r a q u e algum
a e s p r e i t a v a por t r s d a s cajazeiras entrelaadas de j i t i r a n a .
E r a o senhor de e n g e n h o q u e , d e s c o b e r t o , a v a n o u e lhe colheu a
camisa, t o d a i m p r e g n a d a d o cheiro virgem.
Batendo-lhe nos c o n t o r n o s firmes, a gua, q u e p a r e c i a aljofr-la,
a c a c h o a v a , m u d a v a d e r i t m o , n u m j a t o m a c i o , e s c a p a v a - s e mais d e vagar, formava p o a s m a l i c i o s a s , o n d e o olho do sol ficava a espiar,
de baixo p a r a cima, e s s a n u d e z sensacional.
O c o r p o r o b u s t o p o m p e a v a na nervosidade d a s f o r m a s soltas, n u m
c o n t r a s t e de profundezas e salincias vertiginosas, no frmito da
carne d e mulher e s t a d e a d a a o a r livre.
E l a ps-se a gritar, q u a s e a c h o r a r . A t o r d o a d a , p r o c u r a v a encobrir
c o m a s m o s tiritantes, n u m a atitude c u r v a d e pudiccia, a s p o m a s
e r e t a s . T e n t a v a e m b r u l h a r - s e n o j o r r o b r a n c o c o m o n u m lenol. V e s tia-se de e s p u m a s difanas.
Enfim, deitou a c o r r e r . Refugiu pelo c a p o a d e n t r o , q u e b r a n d o os
gravetos e n t r a n a d o s c o m o s peitos virginais.
O s mamilos d e s a b r o c h a v a m n u m a florao sangnea e m r o s a s
b r a v a s . Ela sangrava, a t r a v s d o s calumbis e de e s p i n h e i r o s n o v o s ,
c o m o se lhe r e b e n t a s s e m r o s a s p o r t o d o o c o r p o .
D e v i a m ser o s a n u n s : ui! ui!
E floriu u m a r o s a m a i s r u b r a na sombra o a m o r p u r p r e o na
sua glria inaugural.
O p u d o r de energia selvagem s se renderia p e l a volpia da subm i s s o . S cederia i n v e s t i d a bestial, p o s s e , s c a r r e i r a s , d o s instintos animais.
N o fora n a d a d e ninfas n e m d e faunos; m a s u m primitivismo pudico o Brasil brasileiro c o m mulheres n u a s no m a t o . . .
125

D a g o b e r t o m a n d o u c h a m a r Pirunga:
Diga-lhe que d um salto aqui.
E mostrou-se g e n e r o s o :
Eu preciso melhor-lo de c o n d i o . O e n g e n h o e s t de fogo
m o r t o . V o c vai t o m a r c o n t a . . . E s t a s s e n t a d o .
O sertanejo conteve um m o v i m e n t o involuntrio:
Se eu sou d e m a i s na minha terra, vou me a c a b a r na bagaceira...
Disse e lembrou-se do j u r a m e n t o : n e m m a t a r , n e m a b a n d o n a r . . .

OS C E N T A U R O S
E r a u m a vspera de a p a r t a o . Vaquejava-se o g a d o nos c a m p o s
comuns.
D a g o b e r t o t o m a v a g o s t o a o s riscos do pastoreio, s g r a n d e s corrid a s temerrias pelos tabuleiros e chavascais da fazenda.
Cavalgava sem g a r b o , m a s c o m firmeza.
C o r i s c o e s c a r v a v a o p e d r o u o , mastigando a brida. Sofreado, a
c u s t o , franqueava, d a n d o d e c a b e a .
Pirunga a c e r c o u - s e , e m p a r e l h o u c o m ele e acariciou-lhe o topete
c o m o chicote.
P a r o u um instante p a r a ajeitar o barbicacho. E voltou a lade-lo,
incitando-o a um c u r t o g a l o p e .
Enfim, tomando-lhe a dianteira, soltou o grito d a s c o s t u m e i r a s arr a n c a d a s . Arrojou-se na mais d e s a p o d e r a d a carreira, c u r v a d o sobre a
prpria sombra: -c-!
Dcil a essa voz incitativa, Corisco apontou as orelhas, tomou o
freio e n t r e os d e n t e s e lanou-se a correr. T e n d o D a g o b e r t o diligenc i a d o par-lo, c u r v e t e o u , encabritou-se e d e s s a altura precipitou-se,
a t r s , desfilada, c o m o u m a bala. A cada n o v a tentativa de sust-lo,
c a b e c e a v a , ingovernvel, s a c u d i n d o a b a b a sangrenta.
O s cavalos elsticos, d e p e s c o o s e s t i r a d o s , a c h a t a v a m - s e , arrast a v a m a barriga nas c h a r n e c a s , n u m desabrido v o rasteiro.
M u d a v a m de cor: ficavam pretos de suor c o m toalhas de e s p u m a
na g a r u p a . E s o p r a v a m c o m resflegos de v e n t o forte.
O b a t u q u e d o s c a s c o s e r a um barulho de t e r r e m o t o .
126

Pirunga sumia-se na vertigem das velocidades fatais, c o m o o vaqueiro voador que leva o cavalo nas p e r n a s .
Embaralhavam-se os dois, de onde em onde, formando com as
vstias vermelhas u m a viso d e demnios a l u c i n a d o s .
C o m o que e n c a l a v a m um fantasma invisvel.
Os vaqueiros e n t r e o l h a v a m - s e , intrigados:
Correu d o i d o !
Dagoberto gritava p a r a Pirunga, forcejando p o r d e t e r o seu corcel
infrene:
E s t s o n h a n d o ? ! C o r r e n d o atrs de q u ? . . .
Praguejava a m e a a s e fazia m e n o de p u x a r a pistola; m a s , o r e ceio de largar as r d e a s privava-o desse gesto de s a l v a o .
E r a a inverso d a s hostilidades: a vtima corria a t r s do perseguidor.
Q u a n d o ia a f r o u x a n d o o m p e t o , r e b o a v a o u t r o grito estimulante:
-c-!
E disparavam c o m m a i o r d e s t r e z a .
Dagoberto ajustava as p e r n a s para no cair e, d e s s e m o d o , fincava
as e s p o r a s no vazio do C o r i s c o que r e d o b r a v a a c o r r i d a , molhando o
rastro de sangue.
E s t a l a v a o c a p o e i r o no fragor dos galhos q u e b r a d i o s . Na faixa
pedregosa os seixos c a n t a v a m u m a toada s e c a , saltando c o m o pipocas.
V a r a v a m a s s e b e s ; v o a v a m por cima d a s touceiras d e c a c t o s ;
afundavam-se nos s o c a v e s afogados; r e p o n t a v a m , a l m , n u m socalco; abeiravam-se d o s b o q u e i r e s e s c a n c a r a d o s .
Desapareciam. S se distinguia a o n d u l a o da catinga. S se ouvia um chiado de m a t o flexvel.
Os vaqueiros erguiam-se nos estribos, p r o c u r a n d o v e r a parelha
tresloucada.
Atalhavam-na; r o d e a v a m - n a . E ela d e s a g a r r a v a d e s s a direo: d e sandava, acelerada, z i q u e z a g u e a n d o , na fuga m a i s d e s o r d e n a d a .
Seguiam o e s t r u p i d o de d e m n i o s solta. R a s t e j a v a m na esteira
de sangue e de suor.
Cessou a e s t r o p e a d a .
Os cavaleiros mais d e s t r o s riscavam b o r d a do precipcio.
Pirunga tinha a vestia r e p r e g a d a de e s p i n h o s , t o d o o u r i a d o .
N o p r e m e d i t a r a e s s e desfecho:
Foi Corisco. M o r d e u o freio nos d e n t e s . . .
127

O c a v a l o parecia d e s f o r r a d o , n e s s e a s s o m o de l i b e r d a d e , d a s hum i l h a e s d a bagaceira.


E ele d e n u n c i o u na r o d a d o s c o m p a n h e i r o s a vertigem de suicdio
e de vingana:
Eu j u r e i que n o m a t a v a e n o m a t e i . . .
S o b r e vinham-lhe d v i d a s s o b r e a q u e b r a do j u r a m e n t o , olhando
para os dedos:
Eu matei?!... H e i m ? ! . . .
D e p o i s , levantou a m o do defunto:
P a t r o , eu m a t e i ? !
S o l e d a d e afogou o c h o r o , c h a m o u um dos v a q u e i r o s p a r t e e ent r e t e v e c o m ele u m a longa confidencia.
Q u a n d o t r o u x e r a m o m o r t o , bifurcado na sela, c o m as p e r n a s atad a s p o r b a i x o , o s b r a o s p e n d e n t e s q u a s e c o m a s m o s p o r terra,
b a m b o l e a n d o , a c a b e a e s p e d a a d a l a m b e n d o as c r i n a s a s s a n h a d a s ,
q u a n d o a p a r e c e u n o ptio e s s a v i s o ridcula, ela m u d a e s t a v a , m u d a
ficou.

MAIS FORTE DO QUE O AMOR

E r a u m a noite c o m o t o d a s a s noites e s c u r a s . N o i t e d e v e r d a d e .
Um silncio inquietador, c o m o o s o n o prolongado de um d o e n t e
g r a v e , d a v a a i m p r e s s o de q u e o B o n d o n o despertaria m a i s . Quieto, quieto.
S se e s c u t a v a , a e s p a o s , c o m o a d a r h o r a s , o c h o c a l h o abafado
de a l g u m a r s que c a b e c e a v a . N o : ouvia-se t a m b m a r u m i n a o do
c u r r a l q u e b u r b u r i n h a v a n a c a l a d a d a noite retrada.
S e n o q u a n d o , um t e t u a s s u s t a d i o a sentinela insone do ptio
d a s f a z e n d a s desferiu o v o , a gritar: t-tu. D o i s e s t a l o s , c o m o
u m foguete.
Pegali c o r r e u e voltou s e m r o s n a r .
U m vulto b r a n c o endireitou p a r a a antiga c a s a d o v a q u e i r o .
A p o r t a , a p e n a s e n c o s t a d a , c o m o de c o s t u m e , c e d e u a um impulso
nervoso.
E r a S o l e d a d e . E s t i v e r a at a a rebolar-se na c a m a , de c a n t o a
c a n t o , a virar-se c o m o p a r a p r e e n c h e r - l h e o vazio da v i u v e z .
A c e n d e u , e n t r a d a , u m a v e l a de c a r n a b a .
128

Enfiou at ao q u a r t o de Pirunga e agitou-lhe, s a c u d i d a m e n t e , os


punhos da rede.
E l e esfregou os o l h o s , luz tbia, sem p o d e r a c r e d i t a r no que e s tava vendo.
E r a o d e s p e r t a r indeciso de q u e m vivia a s o n h a r e queria p r o r r o gar as vises n o t u r n a s p e l a s viglias.
Circunvagou a vista, p r o c u r a n d o r e c o n h e c e r o n d e e s t a v a .
P e r t u r b a v a - o e s s a imprevista apario.
Viria refugiar-se em seu a m o r ? Dar-se-ia o c a s o q u e estivesse ent r a d a d o terror d a m o r t e ?
Olhou-a mais, d e s m e s u r a d a m e n t e , s e m falar. D e p o i s , c e r r o u o s
o l h o s , c o m o para s e certificar d e q u e e s t a v a a c o r d a d o .
F i n a l m e n t e , encolheu-se na r e d e e cobriu-se c a b e a e t u d o , c o m o
uma criana com medo.
Virou-se ainda de b o r c o .
Soledade arrancou-lhe o lenol da cara e s p a n t a d a .
F o i a que ele viu direito. A b o c a sem a graa do r e c o r t e , a testa
r e p r e g a d a , o s olhos v e r d e s c o m o s maroios d a t e m p e s t a d e ntima,
parecia ao pai no lance de resistncia cabroeira do M a r z a g o .
F o i v o c ! Se h o m e m , n o negue! desafiou-o S o l e d a d e .
E s a c o u a pistola do c o r p e t e .
N u m a agilidade d e b o t e d e o n a , Pirunga lanou-se sobre ela.
Arrebatou-lhe a a r m a e j o g o u - a p o r cima da p a r e d e .
S o l e d a d e atirou-se, e n t o , c o m u n h a s e d e n t e s .
E r a a revivescncia d e u m a r a a d e heris-bandidos e m q u e o s
h o m e n s defendem a h o n r a e as m u l h e r e s o a m o r .
Pegaram-se em luta c o r p o a c o r p o .
A s v e n t a s palpitantes a c e n d i a m dios m o r t a i s .
Pirunga retraa-se a o e m b a t e d o seio p t r e o q u e s e p r e m i a n o d e s foro. E v i t a v a o s t o q u e s d o s bicos agressivos. T e n t a v a desligar-se
d e s s a fria q u e d e r r a m a v a na s u d a o cheirosa seus filtros p e c a m i n o s o s , c o m o flores q u e , m a c h u c a d a s , deitam mais p e r f u m e .
E s t r a o a v a - s e a b l u s a l e v e . D e s v e n d a v a - s e , na m e i a o b s c u r i d a d e ,
a q u e l a n u d a o maravilhosa d a noite d o incndio.
E, t o r c e n d o o r o s t o , Pirunga t e n t a v a d e r r u b a r a v e l a c o m o p
banda.
O ar da noite tinha u m a impregnao de p e r e i r o s florados.
O u v i n d o as i m p r e c a e s , o c a c h o r r o c a i n a v a do l a d o de fora e
esfregava as patas na p o r t a .
Violentada c o m mais fora pelas garras b r u t a i s , S o l e d a d e fraquej a v a . E s b o o u u m sorriso conciliador.
129

E Pirunga foi-lhe gorja o u t r a vez. Aplicou-lhe os d e d o s frreos


n u m a herclea c o n s t r i o .
C o m os olhos e n o r m e s e a face violcea, m e i o desfalecida, ela asfixiava.
R e t o m a n d o a p o s s e de si m e s m o , ele soltou-lhe a goela a r r o x e a d a .
E achou-lhe graa, vendo-lhe a lngua p e n d e n t e , c o m o um gesto insultuoso.
M a s Soledade inclinava-se sobre seu peito hirsuto. Parecia-lhe
q u e ela ia caindo m o r t a .
F i c o u linda, t o d a viosa e reflorindo na beleza fecundada.
C o r o u - s e muito, n u m g r a n d e frmito. Luzia-lhe um lume diferente.
Cedia a um a b a n d o n o e n v e r g o n h a d o um n o - q u e r e r que se ent r e g a v a de olhos f e c h a d o s , c o m o se t o d o o crime fosse consentir c o m
os o l h o s . O p u d o r n a s l t i m a s , c o m o o t o c o de vela d e r r e t i d o .
Maltratada, rendida, a mulher forte sofria a vertigem da submiss o . Sorria-se c o m u m sorriso triste, m a s c o n v i d a t i v o , c o m o agradec e n d o a inslita r e v e l a o de fora que a reconciliava c o m o p a s s a d o .
E r a a oferta do s o n h o p e r d i d o o amor retrtil q u e se voltava.
A c a b a n d o - s e , a vela levantou a c h a m a e iluminou-a.
Ao desalinho da luta, soltara-se-lhe o peito c h e i o , no amojo dos
sete m e s e s .
Pirunga sentiu-lhe o calor do c o r p o profanado.
E l a tinha a b o c a em fogo. E ele teve nojo d e s s a b o c a q u e lhe p a r e cia u m a ferida a b e r t a , c o m ressaibos de beijos p o d r e s .
M a s o vestido esfrangalhado ia-lhe caindo pelos o m b r o s .
Ao espetculo d e s s a n u d e z , Pirunga e s t r e m e c e u no frenesi impuro.
Seu primeiro m o v i m e n t o foi deitar a correr, m a s faltavam-lhe as
pernas.
E, p a r a vencer-se, p r o c u r o u venc-la. Tinha m e d o de si m e s m o .
Aferrou-a, de n o v o , a c o m um furor de m o r t e ; voltou a esgan-la,
enterrando-lhe os d e d o s p o s s a n t e s na garganta magnfica.
E arremessou-a c o n t r a a p a r e d e .
D e p o i s , p r o c u r o u cham-la a si. T e n t o u soergu-la c o m o b r a o
p o r baixo da c a b e a , dizendo-lhe o n o m e . Revirou-lhe, supersticiosamente, o sapato e m b o r c a d o , porque c h a m a v a a m o r t e . . .
Saiu nas pontas d o s p s .
N o piou n e n h u m a ave agoureira, m a s o c h o c a l h o soou c o m o um
dobre.
O arranque dos t e t u s p a r e c i a u m a denncia.
130

A caligem p a v o r o s a tinha u m a impregnao de mistrios. A noite


protetora prometia-lhe g u a r d a r segredo e oferecia-se p a r a homizi-lo.
U m v e n t o alto c o m o q u e queria apagar a s ltimas estrelas p a r a
que ele fugisse no e s c u r o .
M a s , abriu-se um r e l m p a g o ruivo, c o m o se a t r e v a p r o c u r a s s e
reconhec-lo. E o pico da serra parecia erguer-se m a i s p a r a v-lo.
Doendo-lhe o r e m o r s o de a ter deixado insepulta, t o r n o u , s apalpadelas, escorregou p e l a s s o m b r a s , eis q u e ouviu u m a praga estrangulada...
E largou a correr.
Poderia bandolear-se c o m os quadrilheiros q u e infestavam o serto. E n c o n t r a r i a o s p o d e r o s o s redutos d e i m p u n i d a d e . M a s , u m a
fora e s t r a n h a e m p u x a v a - o , c o m o sacrifcio da l i b e r d a d e , p a r a um
rumo c e r t o .

NA CIDADE VERDE

O dr. L c i o M a r a u v i e r a a r r e c a d a r a h e r a n a p a t e r n a .
Assediava-o a r o d a da inquisitiva bisbilhotice u r b a n a . E, em t r o c a ,
contavam-lhe frioleiras ntimas, os p o d r e s dos a m i g o s , os nadinhas
domsticos da p a s m a c e i r a inaturvel.
Ele refugia a e s s e m e i o social intermedirio, vida sem sabor e
mexeriqueira d a s p e q u e n a s cidades, o n d e a gente se e n e r v a , sem a
doura do c a m p o n e m a s e d u o das capitais, c o m o na intimidade de
uma grande famlia d e s u n i d a .
N e m Areia, a e u g n i c a , se subtraa a e s s e esprito m i d o .
E n t o , seu pai c o r r e u atrs da m o r t e a t e n c o n t r - l a ? . . .
perguntou-lhe um antigo condiscpulo.
Avizinhava-se, d e v e z e m q u a n d o , u m sujeitinho ressentido:
N o c o n h e c e m a i s os p o b r e s . . .
E ele j tinha a c a b e a fora do lugar de cortejar a t o r t o e a direito...
Os mais velhos desfaziam na memria de P e d r o A m r i c o :
Areiense d e s n a t u r a d o ! . . . De sua t e r r a s pintou um galo! O
galo que ele pintou n o c a n t a a q u i . . .
Volteava o b o a t o m e d o c r e :
e x a t o q u e o prefeito engoliu a d e n t a d u r a ?
131

Se engoliu, j b o t o u : h b o c a d i n h o e s t a v a c o m e l a . . .
L c i o d e s p e g a v a a a t e n o d e s s a s niquices e via a cidade branca
t o d a vestida d e v e r d e .
T u d o m u d a v a d e c o r n a paisagem d o inverno. O s t e l h a d o s cobert o s de liquens. As fachadas b o r r a d a s de musgos. A t a t o r r e da matriz parecia u m a r v o r e afogada de trepadeiras.
A m a n h longa ainda se espreguiava na n v o a .
De sbito, um sol d e s c o r a d o , que se e m b u a v a na cerrao,
esgarou-se e e n t o r n o u a claridade mida pela v e r d u r a do casario e
d a s colinas sobranceiras.
R u a s silenciosas c o m o c o r r e d o r e s de c o n v e n t o . A cidade s falava
p e l a b o c a do sino, em d o b r e s e repiques i n g n u o s , o dia inteiro. As
c a s a s s e m quintais, e s p i a n d o o a b i s m o , a g a r r a d i n h a s , c o m o se estiv e s s e m c o m frio o u c o m m e d o d e cair e m b a i x o .
L c i o o b s e r v a v a o c a r t e r de Areia, sua feio original, diferente
d o s o u t r o s p o v o a d o s d o interior q u e , maiores o u m e n o r e s , e r a m todos
iguais. O ar antigo d o s s o b r a d o s de azulejo d o m i n a v a as habitaes
mais novas com uma orgulhosa decadncia.
O ambiente p r e g u i o s o n o se lhe c o m u n i c a v a ao t e m p e r a m e n t o
r d e g o e cioso de a o .
A p o u c o t r e c h o , t u d o se a l v o r o o u , c o m o se a cidade se tivesse
d e s c o s i d o d a serra, r o l a n d o pela fundura d o Q u e b r a .
O b o a t o j n o c o c h i c h a v a : b e r r a v a c o m o um p r e g o frentico.
Gritava-se de p o n t a a p o n t a de r u a c o m muito m a i s curiosidade em
dizer do que em saber.
L c i o foi levado de r o l d o .
E r a um h o m e m q u e se e n t r e g a r a priso. C o n f e s s a v a ter estrangulado u m a mulher, m a s n o lhe dizia o n o m e , n e m m e n c i o n a v a nen h u m a circunstncia d o c r i m e .
Ele r e c o n h e c e u Pirunga:
Foi Soledade? N o foi?
Matei pra n o m o r r e r .
P o r q u e m o r r e r c o m o ela queria me m a t a r e r a pior do que morrer de verdade!...
Viera fazer c o m p a n h i a a Valentim.
T e m e n d o ser c a p t u r a d o e m o u t r o p o n t o , palmilhara serras brutas
e m a t a s fechadas, n u m a e s c a p u l a de muitos m e s e s , c o m o o pior facnora amoitado.
L c i o p r o m o v e u o primeiro e n c o n t r o , a salvo da curiosidade dos
p r e s o s , na sala livre.
132

F i c o u p a r t e . E, e n q u a n t o os dois s e g r e d a v a m , t e s t e m u n h a v a a
tragdia de e x p r e s s e s , c o m o q u e m assiste a u m a c e n a m u d a .
De quando em quando, percebia cochichos, a esmo:
M a s , p a d r i n h o , eu j u r e i s e m dizer n a d a : foi s beijando os d e d o s ! N o jurei q u e ele n o morria! E u j u r e i q u e ele n o m o r r i a ? . . .
C h e g a v a m o u t r a s frases a v u l s a s :
Eu via a h o r a de me e s b a g a a r n a s p e d r a s e ele ficar de seu,
olhando p r a m i n h a d e r r o t a ! . . . O vento z o a v a q u e n e m c a c h o r r o na
b o c a d a furna...
Transfigurou-se a face encarquilhada d o v e l h o , r e p u x a d a p o r u m
sorriso infernal.
Lcio apurou o ouvido.
Eu t o d o dia p e d i a a D e u s q u e se q u e b r a s s e a j u r a ! N o tinha
mais f de me soltar...
Pirunga desoprimia-se d o perjrio:
E u n o q u e b r e i . . . E u q u e b r e i ? ! N o foi p o r g o s t o . . .
M a s a m e s m a c o i s a . . . E s t o u de peito l a v a d o ! . . .
E o l h a v a m desconfiados p a r a L c i o .
R e a t o u - s e o mistrio. F a l a v a m - s e mais p u r i d a d e .
Enfarruscou-se, a s b i t a s , o rosto de Valentim n u m esgar intraduzvel.
E l e vociferou p a r a t o d a a cadeia ouvir:
O q u ? ! T d o i d o ! . . .
Afastou Pirunga n u m r e p e l o . Levava-lhe a m o c o n v u l s a ao o m bro e recolhia-a, b r u s c a m e n t e ; tinha o u t r o g e s t o p a t e r n a l , m a s logo se
horrorizava d e s s a c o n d e s c e n d n c i a .
P e r d o e , p a d r i n h o ! T a m b m no foi p o r g o s t o , q u e diga, n o foi
p r a matar!...
E Pirunga a p e r t o u a t e s t a c o m a d e s t r a e s p a s m d i c a .
E r a vspera de So Joo.
A cidade c h i s p a v a na c h u v a de limalhas. J a t o s de fogo q u e i m a v a m
a b r u m a do anoitecer. U m a viso de r e l m p a g o s e t r o v e s .
Os r a p a z e s n o t i n h a m m e d o do perigo festivo; o tdio aldeo
pesava-lhes n a s p e r n a s . B r i n c a v a m c o m a s q u e i m a d u r a s . E , s e corria
algum c o v a r d e , a c h a m a c o r r i a atrs.
E n t r o u u m b u s c a - p d o i d o pela grade d a p r i s o e s c u r a . Parecia
u m a chicotada d e fogo.
E n t o , Valentim p e g o u - o e alumiou c o m ele a c a r a de Pirunga.
Repeliu-o c o m c o n t r a r i e d a d e :
M a s , h o m e m , q u e isso?!... V o c c h o r a p o r q u e ficou leso
d e s d e 77!...
133

D e p o i s , passou-lhe o b r a o volta do p e s c o o c o m u m a ternura


d e fera dolorosa:
Coitadinha de m i n h a filha! M a s , felizmente, e s t m o r t a , b e m
m o r t a . . . E l a n o p o d i a viver assim!...
D e i t o u a c a b e a no o m b r o do afilhado c o m u m a tristeza satisfeita:
O que passou passou.
A centelha sinistra do olhar secava-lhe as lgrimas.
Culpava a seca desse desfecho:
F o i a bagaceira!
Em s u a n a t u r e z a primitiva o instinto de h o n r a e o p r e c o n c e i t o da
v i n g a n a p r i v a d a s u p l a n t a v a m o prprio a m o r p a t e r n o .
L c i o estivera t o d o e s s e t e m p o s e n t a d o , s e r e n o , blindado d a
c a l m a reavida. A p e n a s , batia, d e v e z e m v e z , c o m o p n o ladrilho.
Enfim, a p r o x i m o u - s e d e Valentim, q u e s e a c h a v a , havia t a n t o
t e m p o , e s p e r a de j u l g a m e n t o , e beijou-lhe a m o m i r r a d a , c o m o um
sapo seco:
V o u defend-lo no j r i .
Eu j n e m fao c o n t a de me livrar... A gente sai c o n t e n t e da
c a d e i a q u a n d o t e m o q u e seu. O q u e a s e c a n o levou se perdeu na
bagaceira!... r e c u s o u o criminoso.
E, inadvertidamente:
N o t e n h o m a i s o q u e fazer. Tinha um servio em m e n t e , m a s
j e s t feito...

O JULGAMENTO
O dr. Marau entrou a orar neste tom:
O p r o m o t o r a c u s o u o ru em n o m e da s o c i e d a d e e eu a c u s o a
sociedade em nome do ru.
Q u e m mais c r i m i n o s o o ru q u e m a t o u um h o m e m ou a soc i e d a d e q u e deixou p o r c u l p a sua m o r r e r e m milhares d e h o m e n s ?
E, a n t e s de ser r u , ele vtima da falta de solidariedade da raa.
A s e c a chegou a a p r a z a r suas irrupes c o m a lei da periodicidad e . T o d o o m u n d o tinha a p r e v i s o da catstrofe em d a t a s fatais. E os
p o d e r e s pblicos n o a a t a l h a r a m ; n o p r o c u r a r a m corrigir os acident e s da n a t u r e z a incerta q u e d muito e tira t u d o de u m a v e z . E s s a vitalidade aleatria ficou, at hoje, e s p e r a da i n t e r v e n o racional q u e
d e m o v e s s e os o b s t c u l o s do seu a p r o v e i t a m e n t o e fixasse o sertanejo
no serto.
134

Dispersou-se o p o v o sedentrio e esfacelou-se a famlia...


O a d v o g a d o n o p o d e continuar a a t a c a r os p o d e r e s pblicos!
advertiu o p r e s i d e n t e do tribunal do j r i , c o m a ajuda da campainha enrgica.
L c i o abreviou a e l o q n c i a forense:
Eu d o u p o r t e r m i n a d a e s t a funo teatral q u e avilta a dignidade
dos r u s , c a r a a c a r a , p a r a formar a conscincia d o s j u l g a m e n t o s e s pontneos...
Justia d e . . . n u l i d a d e s a definio da inpia q u e s enxerga frmulas n o papel selado d o s a u t o s , e m v e z d e u m a a l m a e n c a r c e r a d a
nestas frmulas, d a m e s m a maneira q u e e s t p r e s a n a cadeia. N o
sabe que c a d a p r o c e s s o u m a palpitao da n a t u r e z a h u m a n a .
Atende m e n o s a e s s e p r o b l e m a moral q u e meia-lngua d a s t e s t e m u nhas.
Justia falvel, s a b a l a n a de dois p e s o s q u e s n o p e s a m n a s
conscincias! C o m o e u q u i s e r a que fosses cega, d e v e r d a d e , no p e l a
tua ignorncia, m a s p e l a imparcialidade!
O m a u j u i z o pior d o s h o m e n s .
Se o j u i z tiver de p e c a r , seja, pelo m e n o s , h u m a n o . . P e q u e pelo
a m o r q u e a liberdade e n o pelo dio q u e a injustia mais grosseira...
Vingue em c a d a absolvio de um miservel a impunidade d o s
grandes criminosos!...
(Valentim foi absolvido p o r p e r t u r b a o de sentidos e de inteligncia... d o s j u r a d o s . )

SOMBRAS REDIVIVAS
S pelo n o m e se r e c o n h e c i a o antigo M a r z a g o .
Em v e z da m o n o t o n i a da rotina, v i b r a v a o b a r u l h o do p r o g r e s s o
mecnico. O silvo d a s m q u i n a s abafava o grito d a s cigarras.
D e s a p a r e c e r a o b o r r o d a s q u e i m a d a s na v e r d u r a p e r e n e . A c a p o eira imprestvel d e r a lugar opulncia d o s c a m p o s cultivados n o
com a cana t a m a n h i n h a , m a s de touceiras q u e se inclinavam, c o m o se
estivessem n a d a n d o n o s maroios d a folhagem o n d e a d a .
N o s e viam m a i s a s c h o a s c o b e r t a s d e p a l h a s e c a que imprimiam ao stio um t o m de n a t u r e z a m o r t a . C a s i t a s caiadas exibiam n o s
telhados v e r m e l h o s a c o r da lareira acesa da fartura.
135

O p o m a r d a d i v o s o e s g a l h a v a r e n t e c a s a - g r a n d e ; s o p r a v a perfum e s de j a n e l a a d e n t r o e p a r e c i a q u e r e r d a r frutos na sala de j a n t a r


E r a o m e r c a d o a b e r t o , a feira livre d o s passarinhos e d o s p o b r e s .
E s s e osis r e p r e s e n t a v a u m m o l d e d e p r o s p e r i d a d e , u m m o d e l o d e
t c n i c a agrcola, o n c l e o eficiente c o n t r a s t a n d o c o m a organizao
primitiva.
O s proprietrios d e c a d e n t e s explicavam e s s e s valores ativos n a
r e a d o r a m e r r o , esfregando o s d e d o s : .
F a z t u d o isso p o r q u e c a s o u c o m filha de u s i n e i r o . . .
A o b r a de um h o m e m e r a m a i o r q u e t o d a a o b r a de um p o v o ,
O fator espiritual q u e o vitalizava tinha a p a r e l h a d o e s s a transformao.
L c i o a c h a v a o sentido da vida, a m a n d o - a ; a vida s p r e m i a v a a
quem a amava.
D e u m p e s s i m i s m o d e q u e m fecha o s olhos p a r a v e r t u d o e s c u r o ,
e l e , d a n t e s , sofria n o t e r n e n h u m sofrimento. O p e s s i m i s m o q u e se
enrodilha nos coraes vazios, c o m o a cobra no pau o c o , era uma
idia fixa q u e s u p u r a v a . Q u i s e r a c u r a r os males d ' a l m a p e l a d o r sem
s a b e r q u e e s s e p r o c e s s o agia c o m o a medicina d o s sinapismos,
a b r i n d o feridas m a i o r e s . S e m s a b e r q u e a dor s fecunda c o m o uma
a d v e r t n c i a cura. E, se purificava, e r a a purificao do m e d o .
A n d a r a n u m a inquietao estril, c o m muitas tristezas m i d a s d e
q u e f o r m a r a u m a g r a n d e tristeza.
A g o r a , sacudia de si e s s a sensibilidade irrefletida, o esprito artificial d a s nsias v a g a s . R e o r g a n i z a v a a v o n t a d e . A r r e n e g a v a t o d a s as
t e o r i a s da dor e do p e s s i m i s m o .
S desejava do p a s s a d o a vida q u e n o vivera.
N e s s e esforo de retificao moral, j n o queria m a t a r o t e m p o ;
q u i s e r a , a n t e s , restaur-lo, cri-lo, desdobr-lo.
Se c h o r a s s e , seria de alegria q u e um c h o r o iluminado c o m o
c h u v a c o m sol. U m milagre e n c o m e n d a d o , u m fruto q u e s e devia colher a n t e s que casse p o d r e .
C o s t u m a v a dizer: Se eu n o p u d e r criar a felicidade, criarei a alegria q u e a sua imagem.
Seu segredo de o t i m i s m o e r a viver dentro de sua esfera. Situava o
ideal da vida no M a r z a g o . E r a o h o m e m mais feliz da t e r r a , sem indagar se alm d e s s e s limites havia u m a v e n t u r a maior. Dizia c o m o
o r g u l h o de um p e q u e n o d e u s : Eu criei o m e u m u n d o .
N o p r o c u r a v a o s g r a n d e s p r a z e r e s q u e solicitam p r a z e r e s maiores at chegarem s desiluses arrependidas.
A n t e s de ensinar ao filho a falar, ensinava-lhe a rir. Sabia que se136

ria fcil rir a o s o u t r o s a n i m a i s ; p o r m s o h o m e m podia exprimir a


alegria pelo riso q u e a sonoridade d ' a l m a .
P r e t e n d i a d o s a r o esprito de sua gente c o m e s s e sentimento da
vida. M o d e l a v a as a l m a s simples. S a n e a v a o g r a u de moralidade de
um p o v o q u e c h e g a r a a ter c a c h a a no sangue e e s t o p i m n o s instintos.
P e r d o a v a s e m m a l b a r a t a r o p e r d o . T i n h a a e x p e r i n c i a de q u e o
m a u h u m o r se ralava a si p r p r i o a n t e s de ralar a o s o u t r o s .
Os m o r a d o r e s g a b a v a m - l h e a gravidade a c o l h e d o r a :
um p a t r o d a d o ; d as h o r a s a gente.
R e c o n h e c i a m a simplicidade de suas m a n e i r a s :
um h o m e m s e m b o n d a d e . . .
J n o p a r e c i a m c o n d e n a d o s a trabalhos f o r a d o s : assimilavam o
interesse da p r o d u o . E o s e n h o r de e n g e n h o premiava-lhes as iniciativas adquirindo-lhes os p r o d u t o s a b o m p r e o .
As leis de higiene d u p l i c a v a m o esforo p e r s i s t e n t e .
E s s a faina n o r e p r e s e n t a v a , a p e n a s , a satisfao d a s necessidad e s imediatas: e r a u m a m e d i d a d e previdncia.
Repousavam, de noite, descansados na conscincia de quem no
p e r d e u o dia, p o r q u e as e n e r g i a s c o n c r e t a s e r a m o n i c o m e i o de p r o longar o p a s s a d o c o m a p e r m a n n c i a de suas a q u i s i e s .
L c i o tinha, s o b r e t u d o , a intuio d a s utilidades, u m a inteligncia
d a s n e c e s s i d a d e s p o s i t i v a s , a disciplina da a o . B a s e s objetivas q u e
no sacrificavam o s e s t m u l o s d'alma. E r a , a o i n v s , e s s a espiritualid a d e b e m dirigida q u e f e c u n d a v a a s suas m e l h o r e s s o l u e s .
O trabalho tinha o u t r o r i t m o c o m e s s a o r i e n t a o da sensibilidade.
Ele modificava o antigo pantesmo. C r i a v a a beleza til. S
a c h a v a e n c a n t o na p a i s a g e m d a s g r a n d e s c u l t u r a s . A n a t u r e z a b r u t a
e r a infecunda e inesttica.
E sentia o grito da t e r r a a s s o c i a d a ao h o m e m c o m t o d a a sua virgindade.
***

L c i o p a s s e a v a a o lado d a e s p o s a pelas n o v a s a l a m e d a s .
E o b a m b u a l c u m p r i m e n t o u - o s em longas c u r v a t u r a s . N o contente de c u m p r i m e n t a r , ainda soltava beijos, atritando-se ao v e n t o .
Beijos ou risos. E r a a m e s m a coisa.
Ela acercou-se da g r a n d e t o u a amvel. E m u l h e r v t u d o . A inscrio e s t a v a meio desfeita pelo atrito d a s h a s t e s :
EDADE
CIO
137

T i n h a m d e s a p a r e c i d o as primeiras slabas. S as ltimas p e r m a n e ciam, c o m u m sentido d i v e r s o , indiscretamente, n u m a d e n n c i a significativa: E D A D E C I O . . .


E r a o p a s s a d o q u e revivia na e x p r e s s o m a i s suspeita d e s s e s dois
nomes p r p r i o s c o m i d o s p e l o t e m p o q u e , i r o n i c a m e n t e , deixara d e
preservar a s letras iniciais: S O L L U .
T a m b m seria o fogo d a q u e l a paixo q u e p a r e c i a ter querido
consumir-lhe t o d a a a l m a de u m a vez.
Bendisse o lance e m o c i o n a l do seu d e s e n c a n t o . F o r a preciso sofrer u m a grande d o r p a r a c u r a r t o d a s a s d o r e s m e n o r e s . Tinha sido
imunizado p o r u m a m o r t a l d e c e p o : o ridculo, q u a n d o n o m a t a ,
cura. Sentia ainda o r e s s a i b o d e s s a a b e n o a d a d e s i l u s o .
E e v o c a v a a crise de afetividade, e s s a hipertrofia r o m a n e s c a , e n o j a d o do a m o r q u e transfigurava a mulher em anjos ou d e m n i o s q u e
no p o d e m ser a m a d o s . . .
***
Q u a n d o o M a r z a g o c o m e o u a ser feliz, p a s s o u a ser triste.
A alegria civilizava-se. J n o era o p o v o riso d o s s a m b a s brbar o s . T i n h a m sido abolidos os c o c o s . E as valsas a r r a s t a v a m - s e , lerd a m e n t e , c o m o d a n a s d e elefantases.
L c i o n o t a v a q u e havia g e r a d o a felicidade, m a s suprimira a alegria.
O b s e r v a v a a n o v a psicologia da ral redimida. Impacincias vagas. A inspirao d o s brios h u m a n o s convertia-se na indisciplina do
trabalho. A personalidade r e s t a u r a d a era um a s s o m o de rebeldia.
Um dia, t o c o u o b z i o . L a v r a v a incndio no canavial. O fogo
ainda se ocultava na f u m a r a d a p a r a que ningum o d e s c o b r i s s e . M a s
o partido estalava c o m o um foguetrio.
Urgia extingui-lo ou impedir-lhe a m a r c h a c o m a c e i r o s . E c a d a
qual q u e se retrasse: t o d o s tinham a i m p r e s s o do perigo; ningum
queria expor-se.
S Pirunga e X i n a n e se arrojaram e m p r e s a .
L c i o lembrou-se, e n t o , d a temerria p a s s i v i d a d e d o s m o r a d o r e s
na noite em que o a u d e a m e a a v a a r r o m b a r .
Os q u e a p r e n d i a m a ler na escola rural a c h a v a m indigna a labuta
agrcola e d e r i v a v a m p a r a o urbanismo estril.
139

A geografia e r a u m a n o o de v a g a b u n d a g e m . A higiene o horror


t e r r a impura.
***
O a n o de 1915 r e p r o d u z i a os q u a d r o s lastimosos da seca.
E r a m o s m e s m o s a z a r e s d o x o d o . A m e s m a d e b a n d a d a pattica.
L a r e s d e s m a n t e l a d o s ; o s sertanejos desarraigados d o seu sedentarismo.
P a s s a v a m o s retirantes d e s s o r a d o s , o c o s d e f o m e , cabisbaixos
c o m o q u e m vai c o n t a n d o o s p a s s o s .
L c i o sentia gritar-lhe no sangue a solidariedade instintiva da raa.
E organizou a assistncia a o s mais n e c e s s i t a d o s .
Abeirou-se, c e r t a v e z , u m a retirante c o m o ar de mistrio. Trazia
um r a p a z i n h o pela m o . E r e c u s o u a e s m o l a c o m a fala q u e b r a d a :
Eu s queria s a b e r de q u e m este e n g e n h o . . .
Pois n o sabe q u e do dr. L c i o ? !
E l a empalideceu c o m o se fosse possvel ficar mais b r a n c a . E deix o u carem o s m o l a m b o s e n t r o u x a d o s .
A p r e s e n t o u - s e n a c a s a - g r a n d e s e m falar. E , s e m n a d a perguntar,
aguardava a resposta.
Intrigado c o m e s s e silncio, o s e n h o r de e n g e n h o indagou:
Q u e deseja, m u l h e r ?
E u p o r m i m n a d a q u e r o , m a s este m e n i n o e s t m o r r e n d o d e
fome...
Pois v d a r de c o m e r ao seu filho! N o p r e c i s a v a vir a mim.
Ele t e m seu s a n g u e . . .
C a d a v e z mais e n l e a d o , L c i o n o s e a c u s a v a d e u m d e s s e s contat o s fortuitos, de beijos a v u l s o s q u e frutificam, do nico p e c a d o que
deixa o r e m o r s o v i v o .
E no conteve a repulsa:
Mulher e m b u s t e i r a , se q u e r e s q u e eu te m a t e a f o m e . . .
O senhor faz isso p o r q u e n o seu filho!...
Pois, se n o m e u filho, q u e quer q u e lhe faa?
Q u e r o q u e d o q u e d e l e . . . E s m o l a eu pediria a o s e s t r a n h o s . . .
Chegou Pirunga e q u a s e rasgou os olhos de e s p a n t o :
C r e d o em c r u z ! . . .
R e c o n h e c e r a S o l e d a d e p e l o s cabelos b r a n c o s , c o m o a c a b e a polvilhada, n o dia d o c r i m e d e Valentim, pela c i n z a d o b o r r a l h o .
Explicou-se ainda m e i o a s s o m b r a d o :
140

Eu fazia ela m o r t a p o r q u e n o d a v a a c o r d o de si...


Ocorreu-lhe a circunstncia da praga o u v i d a ltima hora.
Soledade r e p r e s e n t a v a t o d o s o s g r a v a m e s d a seca. N o conservara, sequer, aquele a c e n t o d e beleza m u r c h a d a primeira apario r o mntica. As olheiras funreas alastravam-se c o m o a m s c a r a violcea
de t o d o o r o s t o . E n c r e s p a v a - s e a pele enegrecida n a s longas ossaturas. E trazia as faces t o e n c o v a d a s q u e p a r e c i a t e r trs b o c a s .
E x a m i n a v a t u d o c o m um olhar c o m p r i d o q u e alongava o nariz.
E n c o s t o u - s e , afinal, p a r a n o cair. E s e m e l h a v a u m a s o m b r a na
parede.
L c i o c o m p r e e n d e u c o m o a beleza e r a prfida.
A l e m b r a n a do a m o r ou saudade ou r e m o r s o . N e s s e c a s o , e r a
vergonha.
A r r e p e n d e r - s e punir-se a si m e s m o .
Ele c h a m o u o r a p a z i n h o a si e tomou-lhe o r o s t o entre as m o s .
Beijou-lhe a testa suja e r e q u e i m a d a .
D e p o i s , a p r e s e n t o u - o esposa:
Este meu irmo.
M o s t r o u ainda S o l e d a d e :
E s s a . . . m i n h a prima.
E, a c u s t o , c o m um g r a n d e esforo sobre si:
a m e de m e u i r m o . . .
***
L c i o sentou-se d e b a i x o d a latada d e rainha-do-prado q u e parecia
sangrar ferida pelos p r p r i o s e s p i n h o s .
E os m o r a d o r e s c o m e a r a m a j u n t a r - s e . F o r m a v a m um crculo silencioso e m t o r n o dele, c o m o n u m a a m o s t r a d e solidariedade consolativa.
Q u a n d o c h e g o u o l t i m o , L a t o m i a t o m o u a palavra.
V i n h a m p r o t e s t a r c o n t r a a a d m i s s o d o s n o v o s retirantes: Soledade e o filho.
T i n h a m assimilado t o d a s a s frmulas d e e m a n c i p a o :
O c a m i n h o da felicidade q u e nos e n s i n a s t e s vai alm d o s v o s sos domnios!
L c i o espiou p a r a b a i x o e viu a e s t r a d a c o a l h a d a de sertanejos e x pulsos de suas plagas pelo clima r e v o l t a d o .
Voltou-se p a r a a p o p u l a o amotinada:
A v o s s a s u b m i s s o e r a filha da ignorncia e da misria. Eu v o s
dei u m a conscincia e um b r a o forte p a r a q u e p u d s s e i s ser livres.
141

Relanceou a vista p e l a paisagem do t r a b a l h o o r g a n i z a d o . S a


t e r r a e r a dcil e fiel. S ela se afeioara ao seu s o n h o de bem-estar e
d e b e l e z a . S havia o r d e m n e s s a n o v a face d a n a t u r e z a e d u c a d a p o r
s u a sensibilidade c o n s t r u t i v a .
E recolheu-se c o m um t r a v o de criador desiludido:
Eu criei o m e u m u n d o ; m a s n e m D e u s p d e fazer o h o m e m
s u a imagem e s e m e l h a n a . . .

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