A Bagaceira
A Bagaceira
A Bagaceira
A
BAGACEIRA
Romance
Introduo
M. CAVALCANTI PROENA
Ilustraes
POTY
37. e d i o
(texto da edio crtica)
JOS OLYMPIO
E D I T O R A
Atendemos pelo
Reembolso Postal
ISBN 85-03-00231-0
Capa: POTY
CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
A448b
04-0946
CDD - 869.93
CDU-869.0(81)-3
ANTES
QUE ME FALEM
Talvez
mais persuasiva
*
Se escapar alguma exaltao sentimental, a tragdia da prpria
realidade. A paixo s romntica quando falsa.
*
O naturalismo foi uma bisbilhotice de tropeiros.
ver tudo: ver o que os outros no vem.
Ver bem
no
*
A alma semibrbara s alma pela violncia dos instintos. Interpret-la
com
uma
tirar-lhe a alma.
um livro triste que procura a alegria. A tristeza do povo brasileiro uma licena potica...
*
Os grandes abalos morais so como as
imunizam. Mas deixam a marca ostensiva.
bexigas: se
no
matam,
O regionalismo o p-do-fogo da literatura... Mas a dor universal, porque uma expresso de humanidade. E nossa fico incipiente no pode competir com os temas cultivados por uma inteligncia mais requintada: s interessar por suas revelaes, pela originalidade de seus aspectos despercebidos.
*
O amor aqui um tudo-nada de concesso lrica ao clima e raa. E um problema de moralidade com o preconceito da vingana
privada.
*
Um
paraso.
do
*
Valem as reticncias
e as intenes,
O ROMANCISTA
OS SALVADOS
E r a u m a inquietao serdia, c o m o a b r a s a r e m a n e s c e n t e q u e
p r o c u r a a c e n d e r o cinzeiro.
N u m p e r o d o de vida em q u e o h o m e m realiza o que s o n h o u , ele
voltava a s o n h a r . A m o r plvora q u e se a c a b a c o m a primeira e x ploso. A m o r q u e sabe a frutos a p o d r e c i d o s . E r a c o m o o c a m i n h e i r o
que., fatigado da j o r n a d a , estuga o p a s s o p a r a chegar a n t e s de anoitecer.
Beirava u m a idade em q u e o instinto sexual instigado se difunde
p o r t o d o s os sentidos e mais imaginao que materialidade, c o m o a
saudade do q u e se no gozou. Crise d a s unies r e t a r d a t r i a s .
H a v i a coisa de 18 a n o s , inveterava-se na viuvez d e s c o n f o r t a d a ,
p o r u m a j u r a indiscreta:
M a s eu n o e n c o n t r o o u t r a mulher a s s i m . . .
E gabava-lhe c o m mincias de formas os c a r a c t e r e s da beleza e as
prendas ocultas:
Mulhero! mulhero!
Os dias do c a m p o decorriam-lhe r e c r e a t i v o s . M a s , noite, q u a n d o
as p o r t a s se c e r r a v a m , cerrava-se-lhe o c o r a o .
A solido entretinha intimidades desiguais. Admitia o feitor em
suas confidencias:
Qual o q u ! O s e n h o r e n c r u o u . . . Se duvidar, c o m e s s e calibre
c a p a z de p a s s a r a perna em seu L c i o .
A m a t a fronteira, o p a d r o m a j e s t o s o , e s t a v a acesa n u m a c o r de
incndio.
H a v i a u m a s e m a n a , surdira u m t o q u e e s t r a n h o n a m o n o t o n i a d a
v e r d u r a . Dir-se-ia um r a m o amarelido torreira da e s t a o .
Dominava ainda a esmeralda tropical. Mas, com pouco, emergira o
m e s m o matiz em o u t r o t r e c h o vizinho, c o m o um efeito de luz, um
beijo fulgurante do sol em r v o r e favorita. E, logo, o p a u - d ' a r c o a s soberbou a flora, c o m o um b a n h o de o u r o na folhagem.
N e s s a m a n h luminosa a m a t a resplandecia c o m uma orgia de d e s a b r o c h o e m sua p o m p a a u r i v e r d e .
S e m a p e r c e p o da paisagem, c o m a sensibilidade o b t u s a e entorpecida a o s p r i m o r e s da n a t u r e z a , D a g o b e r t o inquietava-se, pela
primeira v e z , p e r a n t e o o u r o que frondejava. Parecia-lhe q u e o sol tinha b a i x a d o sobre a selva fulva.
E r a , talvez, a c o r que lhe suscitara o interesse c h a m b o . As ptalas u r e a s . . .
E s e m i c e r r o u , n o v a m e n t e , os olhos d e s c u r i o s o s .
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D U A S ALMAS N U M S CORPO
***
N i s t o , c o r t o u o s ares d o M a r z a g o u m silvo extraordinrio, c o m o
se t o d a s as cigarras e s t r i d e n t e s tivessem e n s a n d e c i d o n u m s grito.
Um sibilo d e m o n a c o !
E r a o assobio d o s m o l e q u e s da bagaceira, c o m dois d e d o s na b o 17
D A R O L A D E I R A A O EITO
C h . . . t c h . . . ch... tch.
E r a um p s s a r o m a d r u g a d o r q u e a n u n c i a v a a a n t e m a n h , primeiro
que o galo-de-campina, que toda a o r q u e s t r a o das m a t i n a s . Um xexu d e s g r a c i o s o , c o r d a s barreiras enferrujadas, a q u e os e s c r a v o s
d a v a m c a a , a b o d o q u e , nos dias de folga, p o r q u e regulador q u e
no se a t r a s a lhes m a r c a v a , p o n t u a l m e n t e , o incio d a s tarefas dirias.
O feitor, c o m o ainda c h a m a m a esse a r a u t o i m p o r t u n o , p e g a v a no
estribilho t e m p o r o , tirando do s o n o a cabroeira e x t e n u a d a , c o m o
c o n t r a t a d o pelo s e n h o r rural: c h . . . t c h . . .
N o e r a um c a n t o : era um grito. E, de longe, s o a v a , imperativamente: j . . . j . . . jaj...
E p o r q u e n o o f r e c e caf? replicavam os t r a b a l h a d o r e s j e junos.
Assim q u e o x e x u entrou a gritar, Manuel B r o c a b e r r o u no terreiro d o s sertanejos:
h o r a , c a m b a d a ! L e v a n t a pra pegar!
Pirunga r e s p o n d e u do e n g e n h o , o n d e pernoitava.
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no fim.
i n v e r n o . A gente
p fica um rebolo.
q u e mijo de padre
T r o u l h o acudiu:
Formiga no nada: frieira que ela. A que o p vira toicinho.
Valentim notou, e n t o , q u e t o d o s trabalhavam d e s c a l o s .
J n o tinham plantas d e p s , p o r m , cascos e n d u r e c i d o s .
E, v e n d o o canavial verde-claro na vegetao v e r d e - e s c u r o , lembrou-se do algodoal sertanejo c o m o u m a n u v e m b r a n c a p o u s a d a na
vrzea.
Os c a c h o r r o s brejeiros corriam e voltavam g a n i n d o .
A c u a v a m o canavial a d u l t o , da outra banda. E, ao mais leve farfalho, uivavam funebrernente.
O feitor foi ver o que e r a . E s t u m o u a c a c h o r r a d a . E os cadelos
calaram-se e m e t e r a m o r a b o e n t r e as pernas.
Sobressaa, de t r e c h o a t r e c h o , na ondulao v e r d e , um l o m b o escuro.
Pegali cheirou as p e r n a s de Valentim e endireitou a orelha para
um p o n t o que a c a m a v a . Latiu, a c u a n d o .
O partido e s t r e m e c e u n u m a estalada de c a n a s q u e b r a d a s .
E ouviu-se um grunhido e s t r a n h o , um berro de animal dolorido.
U m a o n d a de frio enregelou toda a bravura mestia do Marzago.
J o o T r o u l h o tremia c o m o a milh sacudida pelo v e n t o .
23
Valentim Pedreira c o n t o u u m a histria que t e m sido reproduzid a , n o s ciclos mortais da seca, p o r milhares de bocas famintas.
N i n g u m pergunta a o retirante d o n d e vem nem p a r a o n d e vai.
um h o m e m q u e foge do seu d e s t i n o . C o r r e do fogo para a lama.
D i s c o r r e u neste teor:
Eu n o d a v a definio de seca. Na era de 45 no me entendia
de g e n t e . J era um tanto g r a n d o t e ; m a s menino assim m e s m o
s g u a r d a l e m b r a n a de besteira. Vi o m u n d o c o m os m o r c e g o s . E r a
tanto do morcego!
E , indicando Pirunga:
Em 77 este e r a pichititinho. E, indagora, p a r e c e q u e e s t v e n d o
a m e , l dele, na h o r a da retirada.
Reatou:
N e s s e t e m p o fazia gosto o s e r t o . T o d o o m u n d o c o n t a v a van24
tagem. Acontecia algum repiquete em 51, 53, 60, 69, 70. M a s fervilhava de g a d o . S este seu criado tinha pra mais de 100 vacas de
ponta serrada e muito boi e r a d o . M i u n a nem se falava. E era um fazendeiro c h u . Q u a n d o havia morrinha. era que se c o n t a v a algum
prejuzo. O serto, livrando a seca, no tem m e r m a .
Foi q u a n d o veio o r e b e n t o de 77. Meu mano foi mais sabido:
v e n d o a coisa preta, torrou t u d o n o s c o b r e s , at o c a s c o da fazenda.
E saiu p o r esse m u n d o c o m toda a rafamia. T a m b m levou um sumio!
Q u e mal pergunto, m e u v e l h o , q u e marca foi e s s a na b o c h e c h a ? inquiriu Manuel Broca.
Valentim no r e s p o n d e u . E virou-se para Lcio que t a m b m o b servava a cicatriz curiosa:
N e m me batia a p a s s a r i n h a . E agentei o rojo. Foi um teitei
c o m o ningum no magina...
M i n u d e n c i o u , em seguida, na sua linguagem brasileira, esse esfacelo de u m a populao fantstica que se finava de pura fome no pas
das e n g o r d a s forasteiras. Referiu o canibalismo de Dionsia dos Anj o s , a mulher antropfaga, de P o m b a l , que matara e c o m e r a u m a menina de 5 a n o s . E outros lances p a v o r o s o s .
Falou g r o s s o :
Fiquei na estica. M a s , c o m a vontade de D e u s , n o pedi n e m
roubei. T o d o o meu pessoal na c a c u n d a e at dei conta de gente que
era m e s m o que ser minha.
E p o u s o u , p a t e r n a l m e n t e , a m o firme no o m b r o de Pirunga.
L c i o comovia-se:
M e u velho, voc um santo-heri!
Isto da vida, m o o . O q u e tem de a c o n t e c e r tem muita fora.
E continuou:
Eu j ia levantando a c a b e a , me endireitando, q u a n d o apertou
88. Alguma neblina era s pra a p a g a r a poeira. C h u v a s salteadas.
F i q u e i , o u t r a vez, no ora-veja, sem semente de g a d o . Voou o derradeiro p a t a c o do p-de-meia.
A c a b o disso, essa que foi a seca grande: de primeiro, o rebento
era p o r fora; esse a fui e u , p o r q u e a gente tambm seca p o r d e n t r o .
Seca, fica t u d o mirrado o e s p r i t o , a c o r a g e m . . .
S tem que as lgrimas no secam aparteou o e s t u d a n t e .
E aduziu:
Q u a n t o mais a alma seca, mais elas c o r r e m , c o m o se n o viessem da alma. a dor que e s p r e m e , at a ltima gota.
25
31
sum,
sed formosa.
O s e n h o r de e n g e n h o , to f e c h a d o , p a s s a r a p o r ela, s e m olh-la.
Baixara-se a d i a n t e . Parecia e s t a r a c o l h e r as flores marginais. De fato, c o l h e r a - a s . E, e s p e r a n d o - a , oferecera-lhas um m o l h o r o x o
com um riso arregaado no focinho insacivel. Aceitara, s e m v e r ,
com u m a humilde confuso. M a s , r e p a r a n d o , era a florzinha indiscreta e s p i a - c a m i n h o que as m u l h e r e s t a n t o hostilizavam. As lavadeiras d e i t a v a m a t r o u x a no c h o p a r a arranc-la ou a e s p e z i n h a vam furtivamente.
Jogara-as fora, c o m o q u e m solta um inseto nojento, p e g a d o inadvertidamente.
E , a g o r a , m a i s calma, refletia: T a l v e z n o fosse p o r mal. P o d e r i a
ter sido um a v i s o o p o r t u n o . E s p i a - c a m i n h o um n o m e q u e e r a u m a
advertncia, c o m o q u e m diz: " P o r o n d e q u e r q u e p a s s e s , p o r t o d a
parte, e s t o a r m a d o s o s laos d a s e d u o . "
O p o m a r d e s m a n c h a v a - s e em a r o m a s . Principalmente as j a q u e i r a s
carregadas. H a v i a plantas q u e c h e i r a v a m at s razes. A p r p r i a
sebe de maria-segunda as r o s a s p r o s a i c a s , c h e i r a n d o !
C o m o q u e m o s feiticeiras a n d a v a m m a c h u c a n d o a s p t a l a s a m veis.
A brisa p a r e c i a o perfume a g i t a d o . H a v i a perfume e s p a l h a d o no ar
como um i n c e n s r i o invisvel. A p r p r i a o r v a l h a d a e r a m g o t a s de perfume em vidrinhos de arco-ris. Perfume em blocos de r e s i n a . . .
Soledade estava toda impregnada dessa natureza odorante. A
e m a n a o violenta ungia-lhe a c a r n e m o l h a d a . C h e i r a v a , c o m o se
toda a florao se tivesse e n t o r n a d o nela, c o m o se estivesse florindo
tambm em suas graas s e x u a i s . O o d o r infiltrava-se-lhe a t n o s
olhos v e r d e s . . .
N a e b r i e z d e s s e a m b i e n t e c m p l i c e , q u e lhe tirava o s s e n t i d o s ,
narcotizando-o c o m as suas fragrncias, Lcio agarrou-lhe as m o s e
puxava-lhe o s d e d o s , c o m o s e e s t i v e s s e d e s p e t a l a n d o u m m a l m e q u e r .
Vinha d e l a t o d a a exalao e x c i t a n t e . Ura blsamo indefinvel do
corpo m i d o .
T o m a d o d e s s a exaltao olfativa, ele ps-se a rir sem ter de q u :
V o c j viu q u e t a n t o c h e i r o ? Me diga s ! . . .
Os cajus c o m e a r a m a cair. C a a m cajus, c a s t a n h a s , m a t u r i s . . .
E x a s p e r a v a m - s e os cajueiros confidentes.
N o e r a m mais a s r v o r e s a c o l h e d o r a s dos solilquios matinais.
Expulsavam os intrusos de sua c a s t a intimidade. E s a c u d i a m neles folhas, cajus, c a s t a n h a s , m a t u r i s . . . A t galhos secos sacudiam.
Molhavam-nos com o orvalho restante.
E r a u m a p a t e a d a em regra. E rangiam, balanando-se, g i n g a n d o ,
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e m m e n e i o s d e capoeiras. C o n t o r c i a m - s e , c o m o s e q u i s e s s e m , outra
v e z , saltar das razes, cair em c i m a d e s s e par b b e d o de perfumes que
profanava o p u d o r da alameda a r o m a i .
E o v e n t o ajudava a s s o b i a n d o .
L c i o saiu desconfiado c o m o sentido nos b o s q u e s s a g r a d o s . M a s ,
n o e r a m dradas nem h a m a d r a d a s d e s p e i t a d a s : e r a m e s m o a refega...
A CICATRIZ
O o c a s o profuso a v e r m e l h a v a m e i o c u . O sol informe, c o m o uma
g e m a d e o v o esteirada, parecia dissolver-se n a m a n c h a c r e p u s c u l a r .
E r a u m a queimada no h o r i z o n t e , c o m o se a grande b r a s a se tivesse desfeito na labareda fugaz.
M a s e s s e q u a d r o tropical no podia durar: era belo d e m a i s p a r a se
deixar v e r por muito t e m p o .
E Lcio ficou tocaiando as primeiras sombras do lusco-fusco, cor
o fumo d e s s e incndio.
A i n d a c o m dia, a misria o b u m b r a v a todo o stio. A luz e r a u
luxo da casa-grande.
C a d a r a n c h o obscuro q u i e t o , c o m o u m a moita.
E a h o r a p r e m a t u r a do silncio e da treva antecipava as funes da
noite, os c o n c h e g o s prolficos da r a a d o s d e s e r d a d o s .
U m bruxuleio barato n o fundo d a biboca dos retirantes q u e , perdida na a m p l i d o do latifndio, ficava m e n o r , s e m e l h a n d o um ninho
cado, modificava-lhes a i m p r e s s o da vida. N o d e i x a v a m de v e r to
cedo, como os outros...
Valentim r e s s o n a v a na rede de t a p u a r a n a .
Na sala mal iluminada pela l a m p a r i n a da cozinha, Pirunga fumava
com o cigarro oculto no c n c a v o da m o .
Vai s e n o , Pegali empinou as orelhas e desenroscou-se n u m pulo.
Q u e coisa! Vocs d o r m e m c o m as galinhas! falou Lcio,
detendo-se entrada.
Valentim ergueu meio-corpo e t a r t a m u d e o u :
V pro rapador!...
M a s , r e c o n h e c e n d o - o , desfranziu a testa e retificou:
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Q u e besteira!... Eu e s t a v a a r e a d o . . . O sono p a s s a d e p r e s s a .
Ficara-lhe agradecido, d e p o i s d a c e n a d a estrebaria. E , c o m o a c o lhimento sertanejo:
A b o l e t e - s e , m o o . T o m e a tipia.
A p o u c o t r e c h o , a s s o m o u o feitor, sempre lampeiro, c o m o se andasse n o r a s t r o d o e s t u d a n t e .
O d o n o da c a s a e n c r e s p o u a fisionomia e disse s e c a m e n t e :
E s t da b a n d a de fora p o r q u e q u e r . . .
M a n u e l B r o c a sentou-se n o s c a l c a n h a r e s .
M e n i n a , deixa v e r a luz b e r r o u Valentim, t r s v e z e s .
E S o l e d a d e trouxe a l a m p a r i n a a c e s a , r e s g u a r d a n d o os o l h o s da
claridade p o b r e .
C h e g o u b a m b a de s o n o e ficou no meio da sala, indecisa:
Eu me descuidei e peguei n u m a m a d o r n a . . .
T i n h a o ar de q u e m d e s p e r t a , m a s diferente d a s c a r a s e s t r e m u n h a d a s d e o u t r a s mulheres, d e s s a s feies intumescidas q u e e m e r g e m
d a c a m a , c o m o s e tivessem r e g r e s s a d o d a m o r t e .
P a r e c i a q u e ainda e s t a v a s o n h a n d o , p o r q u e esfregava o s o l h o s ,
c o m o q u e m d e s v a n e c e u m a v i s o renitente. Trazia a fronte u m p o u c o
r e p u x a d a n a m o l d u r a d o c a b e l o e m desalinho.
E , a i n d a d e p , atou o s b r a o s n a n u c a , n u m e s p r e g u i a m e n t o e s t r o v i n h a d o , exibindo, i n a d v e r t i d a m e n t e , a plstica rija.
D e p o i s e n c r u z o u na esteira e d e r r e o u o p e s c o o , b a n d a . C a b e ceava a i n d a , a b r i n d o a b o c a .
l u z vacilante, seu perfil o r a se iluminava, o r a se s o m b r e a v a . E
Lcio atribua e s s a m u d a n a a s a de um p e n s a m e n t o triste a e s v o aar.
M a n u e l B r o c a instou:
M e u v e l h o , voc hoje b o t a p r a fora a histria da m a r c a .
O e s t u d a n t e t a m b m n o e n c o b r i u a curiosidade:
, seu Valentim: diga a origem da cicatriz.
Eu lhe c o n t o . Q u i n c o . . .
S o l e d a d e recobrou-se e a t a l h o u :
N o diga, pai! O d o u t o r fica c i s m a d o . . .
C o m um lano de o l h o s , V a l e n t i m deu-lhe a e n t e n d e r q u e se retirasse.
P a r e c i a q u e ele nutria u m e m p e n h o intencional n a e v o c a o d a
tragdia. Q u e r i a reconstituir seu p a s s a d o sanguinrio, c o m o se servisse d e e s c a r m e n t o a o s a p e t i t e s ruins q u e lhe r o n d a v a m , visivelmente, o lar provisrio.
Endireitou-se e pigarreou:
37
MORITUR
ET RIDET
H quem
E l a estirou o beio p a r a a m e .
O c a b r a arreliou-se:
Velha caninguenta!...
E a moa:
D a n o l c o m e s s e t r u p i z u p e ! E s t o u de m e u , d a n d o figa p r a
ele...
As raparigas agrupavam-se n o s c a n t o s da sala, d i z e n d o - s e coisin h a s , a o s m u x o x o s e aos belisces. E separavam-se, c h i a n d o :
Qui qui-quiqui...
Boliam c o m o s p a r e s s u a r e n t o s , d e c a r a s e m p a s t a d a s d o r o u g e terroso:
C o m o ele est fiota!... T o d o p e r e q u e t e . . .
O l h a esse r e m e l e x o , c a b e l o de aratanha!...
L c i o p e n s a v a em Soledade e preveniu a Pirunga:
I s t o pega c o m o visgo. C u i d a d o c o m os v e d i a s . .
M u d a r a m para o c o c o :
Cabra danado,
Se n o tem c o r a g e , eu tenho
D e p e g a r n e s s a pistola
E a t i r a r no s e n h o r de e n g e n h o . . .
Minha s e n h o r a .
D e que c h o r a este m e n i n o ?
Chora d e b a r r i g a cheia
Com v o n t a d e d e a p a n h a r . . .
O e s t u d a n t e o b s e r v o u : " M u s a mentirosa!... Atirar n o s e n h o r d e
e n g e n h o neste estado de s u b o r d i n a o crnica... C h o r a r de barriga
cheia, c o m o s e no c h o r a s s e s e n o d e f o m e . . . "
Os cambiteiros replicavam, c o m os ditrios da bagaceira:
Olha e s s a delerncia... C a b e l o de fu!
45
D e i x a de a g a c h a d o c o m e s s e p - r a p a d o . . .
Pirunga, muito c a n h e s t r o , servia d e m a n g a o . N o lhe q u a d r a v a m e s s e s c o s t u m e s . N o s e a m o l d a v a nessa p r o m i s c u i d a d e a b o m i nvel.
J o o T r o u l h o motejava:
E s t desconfiado q u e n e m c a c h o r r o em m e i ' de c a r g a .
S o l e d a d e caoava:
E n t o , e s t se b a b a n d o ? . . .
L e m b r a n d o - s e das m o c e t o n a s sertanejas, ele d e s d e n h a v a :
Q u e r o l saber de m o a c a x e x a . . .
E ela r e p a r a v a nos c a b r o c h a s :
Q u a s e t u d o aqui b a t o r . . .
O s brejeiros c o n s p i r a v a m :
Ele fouveiro, n o d a n a c o m negro. m e t i d o a l o r d e . . .
L a t o m i a interpelou-o:
P o r q u e n o entra na d a n a ?
S se me arranjar u m a d a m a .
B o c a , q u e tal disseste? C r e s c e u p a r a ele t o d a a arraia-mida. U n s
procuravam os porretes. Outros protestavam:
E s s e fregus dizendo d a m a ! . . . D o b r e a lngua!...
D a m a mulher da vida...
D a m a mulher -toa... De p o n t a de rua.
Latomia, por trs dos outros:
Sertanejo b o c n o v o g a a q u i ! . . . Sertanejo cafifa!
E t o d o s , de u m a v e z :
N e m sabe dizer c a v a l h e i r a . . .
Pirunga n o fazia c a s o . T i n h a n o s olhos tristes u m a e x p r e s s o d e
c a l m a e de c o r a g e m . E, d e s d e n h o s o , saiu a d a n a r c o m S o l e d a d e .
O feitor aplaudia:
I s t o , Pirunga!
E, p a r t e :
Mal-empregado! Ela t o j e i t o s a e ele t o mal-enjorcado...
E , q u a n d o Soledade s e s e n t o u :
M o a , v a m o s ver?
Ia tir-la pela m o , s e m n o t a r q u e ela tivera um g e s t o negativo,
q u a n d o Pirunga s e a t r a v e s s o u , c o m b o n s m o d o s , v e r d a d e , m a s c o m
u m a d e c i s o inflexvel.
Participava do teir do p a d r i n h o a Manuel B r o c a .
Os cambiteiros desforravam-se, puridade:
A r r a s t o u a mala...
E l a n o d a n a c o m bangalafumenga daqui.
46
E n c o n t r o a v a m - s e ; a g a r r a v a m - s e , s t o n t a s , s o l d a d o c o m soldado;
engalfinhavam-se e m p e n c a ; embolavam-se n o c h o .
O espaldeiramento e r a um som de garrafas q u e b r a d a s .
E estrugia a sanha d e s o r d e n a d a :
D um c h o t o no m a t a - c a c h o r r o ! Sapeca o p a u ! Sujiga a praa!
Quebra-lhe a c a s t a n h a ! F u r a na veia da tripa! F u r a na tripa gaiteira!
P a t r o ! patro!...
D a g o b e r t o sobressaltou-se, d a cama:
Q u e barulho u m ? !
E o r u m o r era a g r a v a d o pelo alarido das m u l h e r e s . S no havia
a t a q u e histrico.
Pirunga p a r a v a , de o n d e em o n d e , para e s c u t a r o v o z e r i o tumulturio. Distinguia no a r r u d o lamentos e pragas; m a s no reconhecia a
v o z de Soledade, abafada pelo berreiro d e s c o n e x o .
T e n t a v a encontr-la, p e g a n d o , s apalpadelas, as saias que perp a s s a v a m . E gritava por ela, c o m o um doido.
E n t o , d e s e s p e r a d o , i r r o m p e u pela parede de palha.
Do lado de fora, ouvia a m e s m a algazarra indistinta. A barafunda
alarmante.
E a p o d e r o u - s e de um c u i d a d o aflitivo. Pensou n o s perigos desse
e m b a t e no e s c u r o ; m a s , p e n s o u s o b r e t u d o , nos c o n t a t o s a e s m o , na
c a b r a - c e g a de h o m e n s e m u l h e r e s , no ruge-ruge p r o m s c u o . E, mais e
m a i s , se vexava, p e r c e b e n d o os improprios d o s c a m b i t e i r o s desboc a d o s n a balbrdia r e c r e s c e n t e .
O l h o u em d e r r e d o r . A q u e i m a d a estava circunscrita ao aceiro,
c o m o um colar de rubis. A paisagem vizinha toda t o s t a d a e vermelha.
A i n d a v o a v a m algumas fagulhas misturadas c o m os vaga-lumes.
De veneta, correu at a coivara e trouxe um facho na mo c o m o
p a r a alumiar. E chegou-o ao c o l m o velho. T o c o u fogo no rancho tum u l t u o s o . A o claro i n s t a n t n e o , embarafustou pelas c h a m a s , num
s o b e r b o a r r e m e s s o . T o m o u Soledade nos b r a o s , p o r e n t r e a s f i g u r a s
mal iluminadas. E, c h a m u s c a d o , triunfal, no desfecho esplndido, r e fugiu, c o m seu fardo s u a v s s i m o , pela noite discreta.
M a s , logo, ela soltou-se revoltada:
E precisava isto? E n t o , eu no sabia sair do fogo?
A polcia d e b a n d a r a , aturdida.
F e z sangue?
Foi a fora do g o v e r n o , p a t r o .
P a r a eles o g o v e r n o e r a , a p e n a s , essa n o o de violncia: o espal50
O RETRATO
O amor uma g r a d a o dos sentidos: c o m e a pela necessidade de
ver.
N o se passava um dia que Lcio no e n c o n t r a s s e Soledade; m a s .
pensando nela, forcejava, d e b a l d e . reconstituir-lhe o tipo ou. pelo
menos, as feies mais bizarras.
51
?
N o , senhor! Eu n o maldo, no senhor!...
O estudante distinguia-lhe um trao de a m a r g u r a , que nem na
odissia da seca. C o m o v e u - s e diante desse zelo selvagem e falou-lhe
de molde a dissuadi-lo:
N o por n a d a . p o r q u e ela o retrato de m i n h a m e . . .
55
N A
B A G A C E I R A
E r a u m clamor a s s i m c o m o u m t r o v o e n f u r n a d o .
Soledade c o r r e u ao e n g e n h o e p s as m o s na c a b e a :
Mas que judiao!
A moagem parada.
D a g o b e r t o n o tivera d v i d a : a m o n t o a r a a p a l h a s e c a debaixo da
barriga do c h a m u r r o e m p a c a d o e tocara fogo.
Queria ver se no puxava. Era para amansar...
A s s a d o v i v o , o boi t e i m o s o soltava u n s u r r o s l a m e n t o s o s e sacudia os chifres e n c o r r e a d o s . M a s davam-lhe c o m o chiqueirador na
v e n t a s q u e e r a a p a r t e m a i s sensvel. E, s r e c u a d a s , ele torcia o
q u a r t o s , n u m berreiro q u e j n o e r a mugido, m a s u m uivo formidvel.
T o d o o b a n g rangia.
E chegavam-lhe a i n d a o ferro p a r a ir a ferro e fogo.
Q u a n t o mais b r u t a l i z a d o , m e n o s o c h a m u r r o a c e r t a v a a n d a r rod a . E c h o r a v a . C h o r a v a , de v e r d a d e , c o m dois fios g r o s s o s escorrendo-lhe pelo focinho m i d o .
L a v a r n t o , j u n g i d o a o s c a n z i s , ruminava, filosoficamente, c o m a
s u a filosofia estica. L i m i t a v a - s e a a b a n a r as o r e l h a s , q u a n d o a canga
r e p u x a d a nos a r r e m e s s o s da p a r e l h a lhe m a g o a v a o c a c h a o negro int u m e s c i d o , talvez p a r a refrescar a dor.
Soledade e s t a v a a c o s t u m a d a a ver bichos esfolados e esquartejad o s , o c h o r o d o s b e z e r r o s na ferra, os r e b a n h o s carpindo-se no sangue fraterno, a rs l e v a n t a n d o - s e nfega d a s m u c i c a s da vaquejada, as
o s s a d a s d a seca... M a s , n o havia t e r m o d e c o m p a r a o c o m e s s e suplcio n o v o d o s mrtires d a almanjarra.
E r a a sorte d o s bois sertanejos na bagaceira...
***
T o d o s c a n t a v a m o t a n g e d o r , o c e v a d o r de c a n a , o bagaceiro.
E, na c a s a de caldeira, o fornalheiro, o m e s t r e , o b a t e d o r . . . Q u e m
no cantava, assobiava.
E r a um r a m e r r o q u e aligeirava a faina.
C o r r i a a alegria d o s c o r a e s e n d u r e c i d o s c o m o a g a r a p a d o c e da
m o e n d a de ferro.
***
56
Ele a c a m a r a d a v a - s e c o m u m catingueiro h o m i z i a d o n o e n g e n h o ,
o r i u n d o d e s s a faixa de c r i a o e de cultura algodoeira, o n d e se desfrutava u m melhor a p a r e l h a m e n t o e c o n m i c o e m m a i s p r e c r i a s cond i e s naturais.
E confidenciavam:
Eu arrenego da b o n d a d e deste calcanhar-de-juda. N o s meus
m u n d o s no se v d i s t o . . .
T o m a r a j me escafeder!...
Valentim a p r o x i m o u - s e , c o m o o u v i d o b a n d a , a seu m o d o . E fec h o u a c a r a vista do feitor. N o disfarava e s s a ojeriza. C o s t u m a v a
dizer:
E s s e tipo n o me e n t r a . . .
E deixou a bagaceira c h a m a d o pelo s e n h o r de e n g e n h o p a r a ajustar uma empreitada.
O s c a b r a s maliciavam:
C a d a amarelo t e m s e u d i a . . . O p a t r o e s t a b r i n d o d o s peitos...
E n t r o u n a casa-grande pela primeira v e z . E , v e n d o u m r e t r a t o n a parede.
Eu me p a r e c e q u e c o n h e o e s s a figura...
F i c o u c i s m a n d o , c o m o d e d o na testa.
A t d os a r e s c o m a sua filha, n o ? p e r g u n t o u Dagoberto.
E , intencionalmente:
bonita: d p a r e c e n a c o m ela...
O sertanejo saiu p r e c i p i t a d a m e n t e e foi tirar S o l e d a d e da bagac e i r a c o r r u t o r a q u e lhe d e r r a n c a v a a inocncia.
Encontrou Lcio.
O senhor, m o o , n o p a r e c e d a q u i . . .
O estudante comparou a mentalidade do engenho, resduos da esc r a v a r i a , os estigmas da senzala, e s s e s c o s t u m e s e s t r a g a d o s c o m a
p u r e z a d o serto.
E sentia q u e , c o m o a n d a r do t e m p o , se estupidificava n e s s e meio
execrvel.
***
D e r e p e n t e , e r g u e r a m - s e o s cambiteiros, c o m o m o v i d o s p o r u m a
s mola.
T o d a a j o l d a e x t e n u a d a q u e parecia incapaz d o m a i s l e v e movim e n t o disparou d e s a b a l a d a m e n t e .
Pega! pega! r e t u m b a v a a gritaria unssona
60
A V E R T I G E M DAS A L T U R A S
Soledade queria, p o r fora, c o n h e c e r Areia. Q u e r o - p o r q u e - q u e r o .
ali indicava Pirunga, e s t e n d e n d o o p e s c o o . um salto
de pulga.
Valentim diligenciava despersuadi-la: Que ia empalh-lo. E s p e rasse pela desobriga...
M a s , era por c a u s a d o s b b e d o s d e s b o c a d o s que v o l t a v a m , aos
b o r d o s , t o m a n d o liberdades c o m a s m o a s e n c o n t r a d i a s .
Ela instava:
T o pertinho!
N o podia a d o m i n g a r - s e ; pelo m e n o s , a feira.
T a n t o bateu, q u e ficou p o r isso: iria num s b a d o .
E foi, afinal, j u n t a c o m o pai, num dia de feira.
***
Da c h ela enxergou a gameleira imemorial, c o m o o cu verde da
cidade.
Via as m a n c h a s de b a r r o v e r m e l h o da e n c o s t a , a t e r r a esfolada.
E, atreita a o s longos plainos nativos, s v r z e a s intrminas, com e o u a sentir a curiosidade d a s alturas. Sem n e n h u m sentimento do
pitoresco, n o deixava de admirar essa beleza q u e a gente s sente
u m a v e z , p o r q u e t o d a a d m i r a o um pouco de surpresa.
A o s acidentes d o c a m i n h o , Areia aparecia c o m o e n c a l h a d a nos astros e d e s a p a r e c i a n u m d e s m a i o . E n t r e m o s t r a v a - s e , feita u m a n u v e m
Poisada na verdura. E, logo, fazendo negaas, sumia-se, parecia ter
descambado no abismo.
61
62
pequenos
fazendeiros
***
N a feira d o s c a v a l o s :
E s t e de baixinho a b a i x o . E t a m b m no rojo do meio. N o
dizer q u e pedido de r d e a : cavalo liberal. M a n s o q u e um pensamento.
estradeiro. passarinheiro. R o n c a o palheiro. C a valo fouveiro deixa o d o n o no terreiro. B e b e em b r a n c o . T e m
sinal e n c o b e r t o . M o b r a n c a , m o m a n c a . o q u e h de ardigueza. Vai c a b e a n d o . . . S u a em p . . .
Valentim, c u r i o s o , a p r o x i m o u - s e c o m C o r i s c o pelo freio.
Q u e r f a z e r u m a b a r g a n h a ? acudiram os c i g a n o s .
E iam logo d e s f a z e n d o no bucfalo:
Cavalo melado mela o dono e o encerado...
N o m e u e n e m q u e fosse... M a s , q u a n d o d e i t a a c a b e a na
a n c a de u m a r s , n o h h o m e m p r a esbarrar a c e n t u o u o sertanejo.
E os ciganos, d e s e n g a n a d o s da troca:
E s t at m a n t e d o . E n o um m o n d r u n g o t u n g o . P a r e c e
quartau de fiana...
***
U m z u n z u m . U m fecha-fecha! U m c o r r e - c o r r e ! !
Q u e foi? Q u e n o foi?
T r r i . . . Apitos. T r r r r i . . .
A feira desarticulava-se. Barafustava-se na i n c e r t e z a do rebulio.
U m c e g o , c o m o s o l h o s b r a n c o s volvidos p a r a o c u , levou, maquinalmente, a s m o s a o s b o l s o s . E n t o , o guia, u m g a r o t o d e o m b r o
baixo, fez-lhe u m a c a r e t a q u e a forma m e n o s a g r e s s i v a de injuriar a
quem no v.
63
AMOR, LEI DA N A T U R E Z A
S o l e d a d e t o r n a r a , a p o u c o e p o u c o , d e s e n v o l t u r a de seu natural.
C r i a d a , s e m b r i n c o s d e m e n i n a , n o s folguedos d o s i r m o s m a i s v e lhos, c o n t r a r a os m e s m o s h b i t o s de liberdade e de a u d c i a rstica.
E, n o logrando condicionar-se vida sozinha, fugia ao tdio caseiro, v a g u e a n d o p o r vales e g r o t e s , c o m u m a vivacidade de p a s s a rinho indomstico.
R e c o b r a v a o j e i t o d a s e s c a p a d a s pelos s e r r o t e s e tabuleiros sertanejos, a t r s d e frutas d o m a t o o u d o s cabritos fujes.
N o s e a c o m o d a v a c o m a s raparigas s e r r a n a s . E n t r a v a , s v e z e s ,
65
69
N i n g u m q u e r saber de
C o m o isso, M a n u e l ? inquiriu o e s t u d a n t e .
Manuel Broca p a s s o u , de n o v o , a m o no s o v a c o e a p a n h o u , imp u n e m e n t e , o u t r a caixa.
L c i o rendia-se a e s s e s c a p r i c h o s inocentes. S via em Soledade a
solteirinha intata, de u m a graa t o menineira, q u e , s v e z e s , tinha
g a n a s de tom-la ao c o l o .
N e s s e ambiente afrodisaco, nutria um a m o r sem carnalidades, um
idlio naturista, c o m o s a b o r acre de fruta de v e z , j u n t o a o s a b a n d o nos e aos m o d o s de indiferena ou de entrega d e s s a mulher perturbad o r a que a l v o r o a v a t o d o o M a r z a g o .
A semelhana e v o c a t i v a amortecia-lhe os a p e t i t e s indiscretos que
a n a t u r e z a velhaca lhe destilava no sangue tropical.
E g o v e r n a v a as v e n e t a s de g o z o . C h e g a v a a ter r e m o r s o s dos son h o s ruins.
Soledade q u e d o u - s e , u m a t a r d e , a ver o sabi-gong c o m e n d o pim e n t a . Depois, o p a s s a r i n h o nacionalista foi piar no olho de uma umb a b a , p o i s a d o u r o d a s preguias.
Em c m b i o , o galo-de-campina c o n c e r t a v a u m a autntica melodia
de beijos ou coisa a s s i m .
E ela ficou o l h a n d o o u t r o s passarinhos a c a s a l a d o s o m a c h o , de
ordinrio, mais b o n i t o q u e a fmea. E era t a m b m o q u e cantava.
E n t o , voltou-se p a r a L c i o , esquecendo-lhe o n o m e :
Esse menino, voc t o capiongo: nem abre o bico. Faz toda a
vida que no me c o n t a u m a histria.
U m ventozinho madrigalesco mexia-lhe a s m a d e i x a s c u r t a s , ora
alargando-lhe a t e s t a , o r a cobrindo-lhe os o l h o s .
E ele c o m e o u , e s p i a n d o para cima:
Era u m a v e z u m a fada. C o m o no havia t o bela e n t r e os anjos
e as o n z e mil virgens, o c u vivia a mir-la, t o d o o dia q u e D e u s dav a , c o m o seu olho de sol, muito a c e s o e n a m o r a d o . O sol crescia e se
e n c h i a de luz pra ver melhor. N e n h u m a n u v e m p a s s a v a por essa viso de fogo. E o cu e r a t o feliz que n o c h o r a v a mais. N e m u m a
gota d!gua! Por c a u s a d e s s e n a m o r o , as fontes foram s e c a n d o , as rv o r e s esfolhando-se, a terra e s t o r r i c a n d o . . .
Deixa de enjo, e n j o a d o ! . . . interrompeu S o l e d a d e , atinando
c o m a aluso piegas.
Enjoava-se d e s s a s fantasias.
L c i o s o m b r e o u - s e . E alou a m o :
E s p e r a a! N o p a r e c e um gemido?
N o o c a c h o q u e v e m s a i n d o ? . . . A b a n a n e i r a est p a r i n d o .
74
corpo nbil. N o parecia gua morta; no tinha a corriqueira insensibilidade de e s p e l h o , c o m fundo de lama.
E ele esforava-se por persuadi-la da conscincia do lar. Mostrava-lhe o j e n i p a p e i r o s o b r e c a r r e g a d o , sem u m a folha:
Olha, aquilo c o m o a me de famlia: despe-se de todos os ornatos, renuncia a t o d a s as vaidades, para ficar s c o m os seus frutos.
Ela redargia:
Eu no vou nisso. A gente deve ser c o m o o p a u - d ' a r c o , que
fica sem u m a folha pra se cobrir todo de flores.
E indicava ainda o mulungu. Na v e r d a d e , toda a rvore sangrava.
Toda borrifada de sangue fresco, n u m a palpitao de carne viva.
V e n d o que o c a s a c a - d e - c o u r o c o m p u n h a o ninho com espinhos e
gravetos, L c i o c e n s u r a v a :
Passarinho c h a b o u q u e i r o ! . . .
S c o m p r e e n d i a o a m o r c o n c h e g a d o em p l u m a s .
E Soledade l e m b r a v a o beija-flor que nidifica, de preferncia, nos
ps de urtiga. C o m p a r a v a :
Veja c o m o o c o r a o bem g u a r d a d o ! A gente no pega, n o
v...
E, levando a m o ao peito:
... mas o q u e se sente mais: bate sem parar e b a t e , d e n t r o ,
com mais fora, q u a n d o j no nos p e r t e n c e . . .
U m a tardinha, ela e s t a c o u perto de c a s a e pediu a L c i o que lhe
abotoasse o c a s a c o a b e r t o a t r s .
C o m os d e d o s d e s a s t r a d o s , ele aflorava-lhe as e s p d u a s capitosas.
Sentia-lhe na p e n u g e m da nuca um cheiro extraordinrio de bogari
machucado.
Ela encolhia-se, a o s t o q u e s casuais:
Olhe, direitinho!...
E virou a c a b e a . E s t a v a m as c a s a s d e s e n c o n t r a d a s . Com u m a s
mo fechou o c a s a c o p r o n t a m e n t e sinal de que o havia d e s a b o t o ado por gosto.
E r a para mangar c o m e l e . . .
Isto q u e !... vociferou Pirunga, i r r o m p e n d o de u m a touceira
de cana.
E, a v a n a n d o , m a l - e n c a r a d o , terrvel:
Pois o s e n h o r d e s e n c a b e a n d o essa d e s m i o l a d a ! . . .
A gente n o p o d e n e m . . . interceptou S o l e d a d e .
A fervura do sangue queimava-lhe a c a r a .
Lcio reps-se a c u s t o :
A gente n o p o d e n e m . . .
77
GENTE DO MATO
Lcio no se dissociava do problema h u m a n o do Marzago.
Sua n o v a sensibilidade tinha uma direo mais til e um mpeto
criador.
Reconciliava-se c o m a terra feracssima, isenta de t o d o s os obstculos do t r a b a l h o : de n u v e n s de gafanhotos, tufes, g e a d a s , s e c a s ,
terremotos...
M a s s era rica a n a t u r e z a .
Ele calculava c o m o essa vitalidade poderia ser produtiva. E via a
ndole de progresso do latifndio c o a r t a d a pelos vcios de seu aproveitamento.
Q u a n t a energia mal-empregada na d e s o r i e n t a o dos p r o c e s s o s
agrcolas!
A falta de m t o d o a c a r r e t a v a uma p r e c a r i e d a d e responsvel pelos
a p e r t o s da p o p u l a o misrrima. A gleba inesgotvel era aviltada por
essa p r o s t r a o e c o n m i c a . A mediania do s e n h o r rural e a ral faminta.
Tinha a intuio d o s reformadores; t e n t a v a assimilar os melhores
estmulos da luta pela vida. Mas seu instinto de a o ainda era inutiliz a d o pelas sentimentalidades emolientes. Vises e x a g e r a d a s deformavam-lhe o equilbrio d a s relaes imediatas. N o e s confusas, proj e t o s imprecisos resultavam na incapacidade de realizar, no desastre
d a s tentativas. G o r a v a m a s c o n c e p e s prticas.
C o m o risco de se malquistar com o pai. ensaiava objetivar esse
vago talento de iniciativas. Pleiteava uma aplicao mais vantajosa
d e s s a s foras m a l b a r a t a d a s .
D a g o b e r t o era o p-de-boi do e n g e n h o chinfrim. D e s d e n h a v a :
Aquele g r a n g a z s tem palanfrrio. N o se pode dar um tipo
mais lel. Por ele eu j tinha me a c a b a d o .
***
80
***
N o havia c h o a pauprrima que n o tivesse um c a c h o r r o gafo.
Era o scio da fome.
O s pobres g o z o s herbvoros! C o m i a m c a p i m , p a s t a v a m c o m o carneiros.
A c a n z o a d a magrrima juntava-se no faro do cio e, m o r d e n d o - s e ,
parecia que no tinha o u t r o s o s s o s para roer,
Sique! sique! e s t u m a v a o d o n o da c a s a , c o m os d e n t e s cerrados, baixinho.
S pelo g o s t o de se levantar e gritar da porta:
Ca...chorro! 'chorro!
E, num grande e n t o n o :
J se deitar!
Desse m o d o , d e s c o n t a v a o servilismo irremissvel.
81
***
Os meninos nus e r a m criados pelo sol enfermeiro.
Divertiam-se p e g a n d o gafanhotos e lagartixas, m a t a n d o os bichinhos do m a t o divertiam-se, c o m o podiam, c o m e s s a s m a l d a d e s
inocentes.
s v e z e s , a s n u v e n s vinham brincar c o m eles, d e s c e n d o e m somb r a s , c o r r e n d o pelos c a m i n h o s .
E os garotinhos c a n t a v a m para o b a m b u a l d a n a r . E n s i n a v a m ao
xexu a vaiar. Colhiam os frutos silvestres que a mata lhes d a v a dad o s . E r a m mais alegres que os colegiais afortunados.
Lcio o b s e r v a v a e s s a alegria, lamuriando:
N o h n a d a mais triste do que u m a criana triste...
***
J o o T r o u l h o cedia ociosidade dominical. Estendia-se. ao sol.
c o m o um animal c a n s a d o . C o m o um lagarto preguioso.
Lcio d e s p e r t o u - o :
Por que n o d e s e m b a r a a aquele cavalo que est se enforcando?
Eu no t e n h o c o n t a com cavalo, p a t r o z i n h o . Diga a Latomia
q u e est e s c o r n a d o na bagaceira.
E r a a manivela d a s o r d e n s do dia... O sistema de s u p r e s s o da
personalidade eliminava t o d o o p o d e r de iniciativa.
A mulataria p r o s t r a v a - s e a m o r r i n h a d a pela fadiga do aluguel.
Deitados, s e m e l h a v a m torres da terra preta.
O pessoal fica aqui p a n z u a n d o u m a p o r q u e no tem trajo
d e c e n t e e p o r q u e , se D e u s se e s q u e c e da g e n t e , a gente t a m b m se
e s q u e c e dele d o u t r i n a v a J o o T r o u l h o .
Soledade a m i s e r a v a - s e :
Esse infeliz...
O cabra e s p i n h o u - s e , c o m o nunca:
82
Desinfeliz q u e m me c h a m a ! . . .
Era o mais afrontoso dos e p t e t o s . . .
S havia d u a s infelicidades para essa c o n d i o indizvel: as bexigas e o servio militar. S tinham m e d o d e s s a s d u a s c a l a m i d a d e s . . .
Mas na guerra improvisavam-se heris.
Qual o seu maior desejo. J o o T r o u l h o ? indagou L c i o .
C o m e r at m a t a r a vontade.
E n t o , s por isso que d e v o r a toda a feira de u m a v e z e p a s s a
o resto da semana em jejum?
Q u e m guarda c o m e r guarda b a r u l h o . . .
E q u a n d o no tem o que c o m e r ?
Come com a testa...
Dagoberto tinha a experincia desse regime de privaes c r n i c a s :
Pobre de barriga cheia. Deus te livre!...
Era uma penria ostensiva que no se e n v e r g o n h a v a nem se carpia.
Nada tinham de seu: s possuam, c o m o c o s t u m a v a m dizer, a
roupa do c o r p o .
Viver assim era, a p e n a s , esperar pela m o r t e .
Mas no tinham idia de nada melhor. Os c o n t r a s t e s e confrontos
que so c h o c a n t e s .
Riam sem ter de q u : no c u m p r i m e n t a v a m sem sorrir.
E olhavam para cima e viam todo o cu de uma vez.
Passavam fitas naturais nas a u r o r a s e nos ocasos miraculosos.
Havia msica de graa nos coretos do a r v o r e d o . Perfume de graa em
cada florao.
E o sol fazia-lhes visitas mdicas e n t r a n d o pelos rasges d o s tugrios.
Afinal, valia a pena viver, porque ningum se matava. N o se
dava o c a s o de um suicdio.
***
Lcio e x o r t a v a J o o T r o u l h o ao trabalho:
Por que no planta um quinguingu?
N o se tem fuga, patrozinho: no eito t o d o o dia que D e u s
d. Se fosse coisa q u e se tivesse t e m p o , m a s no rojo de inverno a
vero. E a gente no tem ganncia. O que adianta a gente se m a t a r ?
pra m e l h o r a r de vida.
N o viu X i n a n e ? Xinane no era v i v e d o r ? mas c a d ? no
fim de conta, coisssima n e n h u m a . O patro toca da terra, sem se fa83
los c o m u m a t r o u x a na c a b e a e o u t r a t r o u x a na barriga. E n c h i a m
as panas, j que no podiam encher os estmagos.
Mulheres e x t r a o r d i n r i a s ! Filhavam u m a e , n o r a r o . d u a s v e z e s
por a n o .
E n g e n d r a v a m - s e em p r a z e r e s fugazes e t e r n i d a d e s de sofrimentos.
Os apetites c o m q u e a natureza capciosa e n c a d e a v a as geraes deserdadas e r a m u m a srie de sacrifcios irresistveis. A m p l e x o s de
corpos m o d o s . Procriaes d e s a s t r a d a s . Fbrica de anjos. A fecundidade frustrada pela misria e pela m o r b i d e z geral.
E m e n i n o t a s t r a n s f o r m a d a s em p e i t o s , c a r r e g a n d o o p e s o d e s s a s
sexualidades i m p r o v i s a d a s , c a n t a v a m a b o m cantar:
Eu q u e r o me c a s a r . . .
Tinham por nico a d e r e o o c o r a o a o s p u l o s , c o m o se estivesse
dependurado do pescoo.
Se algum vaga-lume errtico se s e n t a v a em seus c a b e l o s , parecia
uma jia furtada.
E o v e n t o desfolhava-lhes nas c a b e a s os m a l m e q u e r e s votivos.
***
Na casa de farinha as raspadeiras c o m saias c o r de e s t o p a c o n s purcavam a mandioca descascada.
E n t r a v a m m u l h e r e s embarrigadas, no ltimo m s . debaixo de balaios d e s c o m u n a i s .
N o veio, c a b r a s d e u m a anatomia herclea suavam c o m o olhosd'gua.
Me d u m a fumaa.
E o c a c h i m b o familiar passava de b o c a em b o c a .
O rodete roa os d e d o s da sevadeira e c h i a v a , em vez dela.
A tarefa prorrogava-se pela noite. E. e s t e n d e n d o - s e no forno,
c o m o um lenol de linho, a farinha era u m a t e n t a o de sono.
Q u a n d o o dia a m a n h e c e u , Pirunga saiu, levando para Soledade
um beiju insosso e c r e s p o .
***
Soledade d e r a para esquivar-se de L c i o .
U m a feita, r e c e b e u - o no m a t o , de m a u s m o d o s :
Eu serei algum bicho? Cabra que a gente enchiqueira: Chiqueiro, c a b r a ! chiqueiro, c a b r a . . .
, p a s t o r a n d o . por causa dos lobos...
85
C H U V A COM SOL
reco-reco r a s c a n t e . D e p o i s , c o n c e r t a v a - s e toda a variedade instrumental carrilhes, castanholas,. flautins (um flautim gritante) e, afinal, a pancadaria da jia: b u m ! b u m ! b u m !
***
As a r a q u s matinais algazarreavam festejando o mau t e m p o .
L a v a n d i s c a s familiares m e r g u l h a v a m n a s p o a s suspeitas, alvoroadas, soltando ningum ainda r e p a r o u nisso uns beijos estrdulos, minsculos e, s v e z e s , uns risinhos e n g r a a d o s .
O s m o l e q u e s trelosos d a n a v a m d e b a i x o d a c h u v a a o b a t u q u e d o
trovo. E b r i n c a v a m c o m a lama p o d r e c o m a m e s m a satisfao c o m
que os m e n i n o s estrangeiros b r i n c a v a m c o m a n e v e .
***
L c i o virou um imbu. E r a a r e p r e s e n t a o do meio e n t o r p e c i d o
miripode, c o m t a n t a s p e r n a s e a arrastar-se c o m o u m a lesma ou a
viver e n r o s c a d o .
O s c a m b i t e i r o s , c o m o s andrajos pingando c o m o goteiras, metiam
as b e s t a s de carga na insdia dos a t a s q u e i r o s . T e n t e a n d o c o m as pernas t r m u l a s , as alimrias afocinhavam o tremedal e, se a l c a n a v a m a
outra b a n d a , d e i x a v a m o r a s t r o c o m a barriga.
O e s t u d a n t e intervinha. E os c a b r a s t e i m a v a m :
T e m p o r fora passar.
As pilecas e s t e n d i a m as p a t a s dianteiras e ficavam, s v e z e s , c o m
os q u a r t o s atolados.
P a s s a v a m m u l h e r e s a r r e p a n h a d a s exibindo as canelas c i n z e n t a s
com meias p r e t a s de lama.
***
U m a surdina de c h u v a c o m sol. Mal se distinguia o que corria do
cu: se e r a m fios d ' g u a ou raios de luz; se a claridade lquida ou a garoa d o u r a d a .
Soledade achegou-se:
U m a histria, L c i o . D a q u e l a s . . .
U m a m o a q u e eu sei...
a q u e l a histria do sol?
91
***
Certa noite, vibrava um t r o v o n e r v o s o , qual o clamor d a s t r e v a s
friorentas.
Acudiu t o d a a p o p u l a o rural ao ptio da casa-grande, d e b a i x o
do aguaceiro, c o n v o c a d a pelo bzio imperativo.
O a u d e e s t a v a a pique de a r r o m b a r .
A gua prisioneira saltava pela b a r r a g e m e batia nas p e d r a s c o m
um berro doloroso.
Pirunga, d e s c r e n t e da coragem d o s brejeiros, viu, estupefato, de
r e p e n t e , h o m e n s e m u l h e r e s , s o r d e n s do s e n h o r de e n g e n h o , c o m o
q u e f o r m a n d o c o m o s prprios c o r p o s u m a b a r r a g e m nova, a t a l h a n d o
o perigo.
Est limpando. Levantou o tempo.
E o cu m o s t r a v a q u e era s e m p r e c u : o arco-ris coloria a celagem c o m o um a r c o de triunfo a r m a d o pelo sol despeitado c o m a caligem que o o b u m b r a v a .
O mais q u e havia era um t e m p o n e u t r o , c o m o tardes de cinza.
As plantas ficavam a r r e p i a d a s , imitando as a v e s , sacudindo a gua
de sobre si.
A c h u v a j n o parecia cair das n u v e n s , m a s d a s copas m i d a s .
O dia e s t se a r r e p e n d e n d o .
N u v e n s c h e i a s , c o m o bales.
E o cu e n c a r v o a v a - s e . Ficava b a i x o , frisava pelo c o p a d o , pesava
nas c a b e a s . R e a t a v a m - s e os dias l u t u o s o s .
O u t r o c h u v o hostil. A luz do relmpago molhava-se n a s c o r d a s
d'gua.
E as r v o r e s c a v a d a s ficavam d a n a n d o nas razes, n u m a d a n a
m a c a b r a , at t o m b a r e m , pingando, c o m o n u m s u o r d e agonia
***
92
ENTREVER P I O R D O Q U E V E R
N O T U R N O DE D I O E D E S A U D A D E
Q u a n d o Valentim i a c o r r e n d o e m p r o c u r a d o feitor, C o r i s c o soltou um rincho q u e parecia falar.
Rinchar ele rinchava s e m p r e e talvez mais q u e q u a l q u e r o u t r o cavalo d a fazenda; m a s , assim, t o e x p r e s s i v a m e n t e , n o h a v i a lembrana.
O sertanejo e s t a c o u t o m a d o de supersticiosa curiosidade. E n t o ,
Pirunga, q u e o encalava, gritou:
Padrinho! O vaqueiro!
P a s s a v a pela e s t r a d a u m c o m b o i o d o s e r t o .
C o r i s c o r e c o n h e c e r a algum animal e s c a p o seca e nitria n u m a
s a u d a o de velhos amigos q u e se r e v e m depois de um julgar o o u t r o
morto.
Foi m a n d a d o de D e u s dizia Pirunga de si p a r a si.
96
A m i n h a a l m a de velho
Anda agora renovada,
Que a paixo como o sonho,
Chega sem ser esperada.
D a g o b e r t o abriu a j a n e l a no e s c u r o e fechou os o l h o s p a r a ouvir
melhor.
E s s a v o z a m o r o s a eletrizava o ar n o t u r n o . D a v a a i m p r e s s o de
que t u d o e s t a v a s u s p e n s o , a o seu e m b a l o . N o era o e n c a n t o d o q u e
vibrava, m a s o mistrio do q u e e m u d e c i a . Interpretava-se o p r p r i o
sentido d o silncio d e algumas e s t r e l a s , c o m o reticncias d o c u .
I n s t a d o , Pirunga improvisou:
N o se v um olho-d'gua,
Quando h seca no serto.
E e n c h e m - s e os olhos d ' g u a ,
Quando seca o corao...
O xexu de m i n h a terra
Q u e me ensinou a c a n t a r
A n t e s me tirasse o c a n t o
E me e n s i n a s s e a v o a r . . .
U m d o s tropeiros r e s p o n d e :
Q u e m deu p e n a a o p a s s a r i n h o
O c a n t o tinha q u e d a r :
Q u e m voa sofre s a u d a d e ,
Q u e m sofre d e v e c a n t a r . . .
Pirunga confiou-se veia r e p e n t i s t a .
No quente do corao
E u criei u m p a s s a r i n h o
E , f o i ter a s a s , voou,
N o quis m a i s s a b e r d o n i n h o . . .
ATIROU N O QUE V I U
J h a v i a t o c a d o o bzio de meio-dia e Pirunga n o d a v a sinal de
si.
E s t i v e r a , c e d i n h o , a coscuvilhar a b r u a c a e sumira-se, c o m o
encanto.
Valentim ficara em c a s a p a r a n o d a r de c a r a c o m o feitor. Afast a v a de si q u a l q u e r incidente q u e p u d e s s e embaraar-lhe o regresso
premeditado ao serto.
Q u e r i a c o m b i n a r t u d o c o m Pirunga e n a d a dele a p a r e c e r .
100
D e r a u m a volta p e l o e n g e n h o , d a s e p a s s a r a c a s a d e farinha,
espiara o canavial de longe e n e m s o m b r a d e l e .
Recrudesciam-lhe o s p r e s s e n t i m e n t o s . T e r i a fugido c o m r a i v a d e
Soledade? T e r i a seguido o c o m b o i o ?
E , d e s c o r o o a d o p o r mil a p r e e n s e s , sentiu-se, d e s e n g a n a d a m e n te, a b a n d o n a d o n o exlio a d v e r s o , q u a n d o m a i s carecia d e s s e b o r d o
d a velhice d e c a d e n t e .
A q u e l e q u e fazia a s v e z e s d o s s e u s filhos n o o a c o m p a n h a r a p o r
uma dedicao desinteressada, m a s por causa de Soledade. Porque,
desfeita a ltima e s p e r a n a , se safara, c o m o os o u t r o s .
E saiu a i n d a a procur-lo.
L a t o m i a d e u notcia:
I n d a g o r i n h a e s t a v a feito um m o l e s t a d o . Os o l h o s p a r e c i a m
uma p o s t a d e s a n g u e .
P o i s l e v o u um s u m i o ! J d e i u m a c o r r a de vista e n a d a !
confiou-lhe Valentim.
E c o r r e u a c h a m - l o , afligidssimo, a altos b r a d o s , p e l a s g r o t a s ,
pela e s t r a d a , p o r t o d o s o s cafunds d o stio.
E r a m gritos q u e saam c o m p e d a o s d ' a l m a .
***
P a d r i n h o , deixe de p a n t i m !
P i r u n g a e s t a v a a l a p a r d a d o a t r s d e u m a cajazeira c o m a g a r r u c h a
aperrada.
N o s e bulia; parecia u m t r o n c o m o r t o .
C o m o q u e tinha os o l h o s e s c o r v a d o s . E u m a idia fixa na mira.
T u d o m a i s lhe e r a indiferente.
V a l e n t i m p r o c u r o u dissuadi-lo c o m b o n s m o d o s :
Se fosse coisa q u e ele tivesse feito m a l a ela...
E , c o m u m regougo:
... a , eu seria o primeiro!...
Simulou b r a n d u r a :
A g e n t e n o d e v e pegar em t u d o . V a m o s e v e n h a m o s , se fosse
e m n o s s a t e r r a . . . L a r g u e m o d e s s a besteira!... U m a coisa d e n a d a . . .
P i r u n g a relutava. D e s o b e d e c i a p e l a primeira v e z .
Um vem-vem provocativo comeou a cantar.
E r a a v o z d o serto q u e o s i n v o c a v a n u m apelo i n s t a n t e .
V a l e n t i m r o g a v a , humlimo:
M e u filho, v a m o s ' e m b o r a ! L a gente n o se l e m b r a de n a d a .
101
E s t o u b e m livre!... r e s p o n d e u J o o T r o u l h o , e n c o l h e n d o se
E , c o m o estivesse e m m s i t u a o , justificou-se:
Eu c sou c o m o o t o u r o q u e , q u a n d o briga, se b o r r a n d o t o do...
O mulherio grunhia a t r s .
D a a n a d a , soou u m a e s t r a l a d a m e d o n h a , c o m o c a r r e i r a d e a n t a
em mato grosso.
Pirunga varou a o n d a hostil q u e lhe franqueou p a s s a g e m e foi p o s tar-se ao lado de Valentim:
Mas, padrinho!...
Alheio s circunstncias d a luta, e x a m i n o u - o , d e r e v s , a t e n t o n o s
seus p e r s e g u i d o r e s . V e n d o - o ileso, exprimiu u m a alegria selvagem,
com o ar de desafio ou de e s c r n i o :
Eu v e n h o p u n i r p o r e l e , brejeirada mucufa!
E a t r a v e s s o u - s e p a r a q u e n i n g u m lhe pusesse m o .
E s t r a n h o u ainda:
Mas, padrinho!...
N i n g u m me tira o m e u direito! retorquiu Valentim.
D a g o b e r t o saiu-lhe frente. Encorajou os c a p a n g a s :
Brejeiro, q u a n d o d p r a v a l e n t o , n o h sertanejo q u e p e g u e !
Valentim e n t e s o u t a m b m c o m o s e n h o r de e n g e n h o :
Seu major, n o v e n h a , seu major!
Dagoberto mudou de tom:
Velho, voc est doido?
O senhor garante?
E, a um gesto afirmativo, o a s s a s s i n o confiou-se da p r o m e s s a , j o gando a pistola e n t r e os c a b r a s .
E s t a v a afeito s c e n a s d e i m p u n i d a d e , aos c o m p r o m i s s o s d e escapula o u d e homizio c o m o p o n t o s d e h o n r a . E n t r e g a n d o - s e , n o e r a a
vida q u e ele p r e s e r v a v a , s e n o a liberdade o u , a dizer m e l h o r , a fuga
para o s e r t o .
M a s , a p e n a s se viu i n e r m e , foi subjugado p o r c e m b r a o s e inquerido ( o t e r m o ) c o m c o r d a s de c a r o .
Sujigue o h o m e m ! Passe-lhe a e m b i r a ! I s s o ! A c o c h e m a i s , de
c o m fora! o r d e n o u D a g o b e r t o .
E , n u m desafogo:
E s t muito e n g a n a d o ! . . .
***
103
S t a r d e s e l e m b r a r a m d o defunto q u e ficara e m c m a r a a r d e n t e . . .
d o sol.
Q u a n d o o feitor b a q u e a r a , s t i v e r a t e m p o de pedir a vela. E,
c o m o n o h a v i a d i s s o , m e t e r a m - l h e u m cigarro a c e s o n a m o crispada.
E n q u a n t o o s e s b i r r o s m u d a v a m o s andrajos, Pirunga, s o l t o p e l o s
cabras que o haviam dominado, aproximou-se do tronco de jatob,
o n d e Valentim e s t a v a a m a r r a d o , e c a q u e o u a faca:
Eu c o r t o a c o r d a e e s p a l h o a t o s e n h o r de e n g e n h o .
O v e l h o ergueu a c a b e a t r m u l a e, e n c a r a n d o - o , falou-lhe em tom
de r e c u s a e de splica:
V o c faz a s m i n h a s v e z e s ? T o m a c o n t a d e l a ? . . .
V d e s c a n s a d o . S se eu m o r r e r ! . . .
E, arroxeando-se, coberto de suor, calcando um sentimento feroz
de dignidade patriarcal, ele c o n t i n u o u , t a r t a m u d o :
Eu n o sei q u a n d o me livro. Se v o c d e i x a s s e a b a g a c e i r a e
voltasse c o m e l a v o c s a b e . . . eu n o fazia c a s o : m o r r i a satisfeito n a c a d e i a . V o c p o d i a . . .
E embatucou.
Pirunga desenganou-o:
Eu queria tanto! Mas no h jeito, padrinho! J dei um toque.
Diz q u e no quer. N o quer por nada!...
***
J h a v i a m a l c a n a d o a ladeira d o T a u .
Pirunga a c o m p a n h a v a o p a d r i n h o , g u a r d a n d o distncia, o r a adiant e , o r a a t r s , p a r a n o ser confundido c o m a cfila d o s c a p a n g a s .
De chofre, o p r e s o e s t a c o u , s o b r e c a r r e g a d o de c u i d a d o s :
M e u filho, v o c n o p r o m e t e u ? . . .
O r a p a z atinou c o m a a d v e r t n c i a . E, r e t r o c e d e n d o , c o r r e u em
toda carreira.
C o r r e u a t cair esbaforido a o l a d o d e S o l e d a d e .
VISES D A N O I T E V E L H A
Q u a n d o Pirunga s e p r o s t r o u e s b o f a d o j u n t o d e S o l e d a d e , ela
a i n d a e s t a v a enrodilhada c o m a c a b e a r e n t e t r e m p e do fogo extinto.
104
***
108
A m a n h e n t r o u no q u a r t o de telha-v.
E L c i o esgueirou-se d o s s o n h o s convulsivos e d a s vises rebeldes d a insnia. M a s e s t a v a t u d o d o r m i n d o .
A lua bonita l u g a r - c o m u m d o s c u s brasileiros e r a um rom a n t i s m o indito n e s s a h o r a ambgua.
A noite b r a n c a , em c a m i s a , tinha um peito a p o j a d o de fora, a vazar-se e m goteiras d e luz.
E r a u m a feio d e dia c l a r o , d e u m a claridade benigna, q u e r e v e lava t u d o s e m e x a c e r b a e s de sol. Um d o c e meio-dia c o m o cheiro
forte d a fresca d a m a d r u g a d a .
A noite n u a , s e m o maillot d a s n u v e n s , nas negligncias da solid o , t o m a v a um b a n h o de leite. E a b r a n c u r a tangvel escorria molhando a s coisas a d o r m e c i d a s .
A coruja, desconfiada, recolheu-se ao seu esconderijo.
E o c u m o s t r o u q u e t a m b m sabia cantar. Pegou a cantoria das
estrelas e s c o n d i d a s .
P a r e c i a u m delrio d o s a s t r o s .
L c i o e s c u t a v a m a r a v i l h a d o a c o n s o n n c i a sideral.
E r a m as cigarras q u e t o m a v a m a lua pelo sol.
T o d a a amplido r e c h i n a v a n u m a loucura estrdula, zinia na fanfarra de milhes de silvos q u e c r e s c i a m n u m grito u n s s o n o fantstico
de me-da-lua.
Um ruidoso meio-dia meia-noite.
E s t o n t e a d o d a zoeira fora d e h o r a s , L c i o abeirava-se d a casa d e
S o l e d a d e . E notou q u e u m a s o m b r a a nica s o m b r a d e s s a vibrao
luminosa lhe seguia as p i s a d a s .
E r a a m e preta a noite indormida de sua infncia c o m a cabea
toda b r a n c a , c o m o c o r o a d a d e luar.
Ele abraou-a, alisando-lhe a carapinha de algodo. E imaginou
que ela, em paga de t a n t o s sacrifcios, ia ficando a l v a , t o d a branquinha, d o cabelo pixaim a o s p s .
Milonga falou-lhe c o m um beijo no ouvido:
V dormir, ioiozinho: a noite pra gente se e s q u e c e r . F e c h e
os o l h o s , faa de c o n t a q u e e s t d o r m i n d o . Se vier a l e m b r a n a , faa
de c o n t a q u e s o n h o q u e no faz mal a ningum.
E levando-lhe a m o t e s t a febril:
N o perca a c a b e a , m e u filho: coloque ela p o r c i m a do corao c o m o D e u s c o l o c o u , c o m o q u e m coloca u m p e s o e m cima d e u m a
coisa q u e q u e r v o a r .
Ungiu-se, afinal, de t o d o o mistrio n o t u r n o :
Mulher c o m o fruita: q u a n d o cai, a p o d r e c e . . .
109
***
L c i o continuou a viver j u r u r u , c o m o u m b o d e d o e n t e .
F a l a v a b a i x o , c o m a fadiga d a v o z . Batia o s d e d o s e m t u d o , c o m o
num teclado.
N o se s e n t a v a q u e n o e n t e r r a s s e a c a r a nas m o s . E deu-lhe volt a r a o s antigos hbitos solido voluntria do q u a r t o de d o r m i r .
Refugiava-se n o s livros de u m a i n v e n o fantstica q u e lhe h a v i a m
d e s o r g a n i z a d o a sensibilidade.
T e n d o p r e s e n t e s o s c o n s e l h o s d e Milonga, t o r n o u , u m dia, a rabiscar na p a r e d e c o m o v e n e n o pessimista:
O a m o r o caixeiro-viajante da p r o p a g a o da espcie.
*
N s compramos as mulheres perdidas e
as m u l h e r e s h o n e s t a s nos c o m p r a m . o
r e g i m e institudo p e l o s i n t e r e s s e s s e x u a i s .
H uma generosidade egosta: a de
quem a m a sem ser a m a d o .
*
A m u l h e r s s a b e g u a r d a r o seu s e g r e d o . O a m o r a nica f o r a c a p a z de a
d e s c o b r i r ; e, q u a n d o a d e s c o b r e t o d a , n a s
d e n n c i a s d e certos a b a n d o n o s , ela e s t
perdida p a r a o prprio a m o r que a descobriu.
N o ! a mulher que a m a a q u e diz men o s , p o r q u e a que m e n t e m a i s .
S a mulher que sofre diz t u d o n u m
grito de dor.
M a s no p d e contrafazer a n a t u r e z a sensvel:
O a m o r m a i o r o que n o t e m f i m .
*
110
PAI E
FILHO
O senhor no repare...
E D a g o b e r t o levantou-se:
Q u e me q u e r ? V a m o s l! D e s e m b u c h e ! . . .
E n c r e s p a v a - s e , i n t r a t a v e l m e n t e , c o m o u m a lagarta-de-fogo.
P o r u m a natural desconfiana o u p o r q u e lhe e n t r e v i u u m a r d e desaprovao, Lcio antecipou-se:
Eu sei q u e o s e n h o r leva a m a l . . .
Se levo?! E p o r q u e n o hei de levar?!
O e s t u d a n t e ficou b r a n c o e frio, c o m o u m a figura de gelo.
P a r e c i a q u e r e r falar pelos o l h o s arregalados.
E o pai lanou-lhe em r o s t o , c o m o habitual a g a s t a m e n t o :
N o p r e c i s a v a vir d a r - m e p a r t e ! . . . Eu j sabia q u e o senhor
(era u m a forma agressiva de t r a t a m e n t o ) a n d a v a m e t i d o c o m o a s s a s sino!...
C o m o ? ! O s e n h o r s a b e ? Eu n o passei a n i n g u m . . .
Se sei? At gato e c a c h o r r o s a b e m que o s e n h o r vai me defend e r aquele bandido no j r i . F o i p r a isso que o botei no e s t u d o pra
ser c o n t r a m i m , p r a m e d e r r o t a r ! . . .
?!...
S i m , p o r q u e , se ele for livre, me liquida em dois t e m p o s !
M a s , p o r q u e , m e u pai? Q u e h o u v e , q u e eu i g n o r o ?
D a g o b e r t o a m a n s o u a v o z e n t r e m u x o x o s involuntrios:
O r a , n o se faa d e s e n t e n d i d o . M a l v a d o , c o m o , n o me perd o a a p r i s o . Queria e r a q u e eu lhe d e s s e fuga e, c o m o n o dei, est
comigo de olho...
L c i o criou coragem:
O s e n h o r diz isso e eu beijo a m o dele p o r um d e v e r q u e a
m u d a n a d a sorte n o m e fez d e s c o n h e c e r . . .
!... Beija as m o s de um criminoso e n u n c a beijou as de seu
pai!
N e s t a c a s a n u n c a se ouviu um beijo!
112
L c i o q u e d a r a - s e , s e m u m a sada, c o m o s b r a o s c a d o s c o m o u m
p e s o m o r t o . O rosto ficava-lhe m a i s c o m p r i d o .
E D a g o b e r t o foi j a n e l a , esfregando as m o s , c o m o se triturasse
a l g u m a coisa. D e p o i s , sentou-se e e n t r o u a assobiar, b a i x i n h o , marc a n d o o c o m p a s s o c o m o p frentico. M o n t o u , em seguida, u m a
p e r n a sobre a o u t r a e, t a n t o a b a l a n o u , que ela caiu.
V o l t o u a falar c o m o olhar no t e t o :
P a r a q u e foi que eu gastei t a n t o s e q u a n t o s ? D i n h e i r o q u e d a v a
p r a levantar a c a b e a de muita g e n t e . . . Pra q u e foi q u e o tirei da bagaceira?
Virou-se p a r a L c i o :
M a s isso no t e m t r a m e n h a ! Se e s t u d o d p r a d e s m a n t e l a r a
b o l a , v o c me vai p r o c a b o do freij!
J fora de si:
N e m bonita ...
E o l h o u , m a q u i n a l m e n t e , p a r a o r e t r a t o da mulher p e n d e n t e da parede.
O estudante, desasado, arriscou:
Seria do g o s t o de m i n h a m e , s e . . .
N o p d e continuar. Enfuriando-se, de mais a m a i s , D a g o b e r t o
pulou, num destampatrio:
E n t o , seu c o r n o , v o c p e n s a q u e me b o t a o p no p e s c o o ? !
Q u e me desmoraliza a r a a ?
E s t e v e , vai-no-vai, a saltar-lhe ao gasnete. C h e g o u a fazer m e n o d e abertur-lo.
A i n d a se descomediu em o u t r o s r o m p a n t e s .
L c i o deixou-se e s t a r no m e i o da sala, a g u a r d a n d o o d e s a b a r
d e s s a v e e m n c i a , c o m a imobilidade de uma grande d e c i s o .
E p a r e c e q u e D a g o b e r t o e n s a i a v a , n o v a m e n t e , despersuadi-lo
pelo ridculo:
Pois q u e lhe faa b o m p r o v e i t o . . . N o podia ser mais feliz a
e s c o l h a . . . P r a q u e m b a c a l h a u b a s t a . . . T e m g o s t o , sim, senhor!...
G-o-s gos t-o t o . . .
D e u u m a risada triste q u e n e m um uivo. E c u s p i n h o u c o m c a r a de
nojo.
A c e n t u o u , c o r a n d o c o m u m a p o n t i n h a d e mistrio:
coragem muita!... E n o lhe digo mais n a d a . . .
M a s , d e p a n c a d a , voltou-se, i m p e r a t i v a m e n t e , n u m vozeiro,
c o m o se tivesse a alma a trovejar:
N o ! no casar com a retirante! Corto a mesada, boto pra
fora de c a s a ! . . . T i n h a q u e ver!...
114
O JURAMENTO
Pirunga chegara-se g r a d e da priso c o m um ar s u c u m b i d o e segredeiro.
Valentim e s g a r a v a t a v a , e s q u e c i d a m e n t e , a fenda do r e b o c o , c o m o
p a r a se d a r a iluso de q u e , a q u a l q u e r m o d o , p r o c u r a v a a liberdade
Q u a n d o n o , p a r a gastar o t e m p o q u e era o q u e t i n h a p a r a gastar,
c o n t a v a as badaladas da sineta. E os dias p a s s a v a m - s e c o m u m a lentido de milagre bblico de sol p a r a d o .
Regozijavam-se os p r e s o s c o m a runa iminente. ( A s s a v a s soli117
E , rogativo:
Eu q u e r o que v o c p r o m e t a que n o m a t a o s e n h o r de engenho.
Pirunga d e s c o n h e c e u aquele o b d u r a d o instinto de vingana.
E foi franco:
Pois, padrinho, d e s d e q u e eu s u b e , s d a v a t e m p o e r a vir pedir
licena ao s e n h o r . . . A pistola j e s t e s c o r v a d a .
N i n g u m me tira o m e u direito. Um dia, c e d o ou t a r d e , eu hei
de me livrar, p o r q u e D e u s n o servido que eu m o r r a d e s o n r a d o !
blaterou Valentim.
E, acalmando-se:
J u r e q u e n o m a t a e q u e ir c o m eles pra o n d e eles forem. F e c h e os olhos a t u d o . F a a de c o n t a q u e no v . V s e m p r e na batida.
D d a q u i , d dacol, n o deixe o r a b o da saia dela!
E r a h o r r e n d o esse p a c t o .
F i c a r a m nisso. Pirunga beijou, silenciosamente, o s d e d o s e m c r u z .
E despediu-se de Valentim, de longe, c o m a m o t r m u l a , c o m o um
p s s a r o ferido v o a n d o .
FESTA DA RESSURREIO
A n d a v a p o r u m ms q u e D a g o b e r t o Marau s e a c h a v a n o B o n d .
E s t i v e r a em levar consigo o L a t o m i a ; m a s , instncia de Pirunga,
t o m a r a - o p a r a vaqueiro. E o sertanejo revia a fazenda c o m u m a satisfao m e d o c r e .
O p e r a v a - s e a m u t a o i m p r o v i s a . A gleba c o n v a l e s c e n t e recomp u n h a - s e n u m abrir e fechar de o l h o s . T u d o se t r a n s f o r m a v a c o m a
i n t e r v e n o da primeira c h u v a , c o m o se a q u e d a d ' g u a fosse o hiss o p e aspergido da reconciliao do cu c o m a terra precita.
O serto tinha um cheiro de milagre. A n a t u r e z a imperecvel ost e n t a v a , de e x t r e m o a e x t r e m o , u m a beleza m o a . T i n h a morrido s
pelo g o s t o de renascer mais bela.
Reflorescia o d e s e r t o a r r e l v a d o nesse surto miraculoso da seiva
explosiva. Revivia a flora, f r o n d e a v a a catinga, de s u p e t o , na paisag e m n o v a em folha. C a d a r v o r e tinha um vestido n o v o p a r a a festa
da ressurreio.
C o m o q u e a s p e d r a s r e b e n t a v a m e m folhagem. A s t r e p a d e i r a s sub i a m , e n r o s c a v a m - s e pelos anfractos e faziam c o m q u e a r o c h a nua
florisse.
120
***
Soledade bilrava, m o l e m e n t e , no copiar. Pirunga o b s e r v a v a a almofada vermelha crivada de alfinetes c o m o a i m a g e m do seu c o r a o
picado de cimes.
D a g o b e r t o deitava-lhe a c a b e a grisalha n o s j o e l h o s e ela p a s s a v a
a extrair-lhe, entre mimalhices e cafuns a m o r o s o s , os impertinentes
cabelos b r a n c o s .
Pirunga sabia q u e o q u e se afigurava muito a p e g o n a s paixes serdias no passava d e zelo a s s u s t a d i o . E r a u m a m o r feito d e m e d o s
de n o ser a m a d o e de n o p o d e r a m a r .
E ela descaiu a fronte. E v o c a v a , n u m a crise de r e m o r s o , a c e n a de
sua p e r d i o .
C o m o estivesse a b a n h a r - s e na cachoeira, p r e s s e n t i r a q u e algum
a e s p r e i t a v a por t r s d a s cajazeiras entrelaadas de j i t i r a n a .
E r a o senhor de e n g e n h o q u e , d e s c o b e r t o , a v a n o u e lhe colheu a
camisa, t o d a i m p r e g n a d a d o cheiro virgem.
Batendo-lhe nos c o n t o r n o s firmes, a gua, q u e p a r e c i a aljofr-la,
a c a c h o a v a , m u d a v a d e r i t m o , n u m j a t o m a c i o , e s c a p a v a - s e mais d e vagar, formava p o a s m a l i c i o s a s , o n d e o olho do sol ficava a espiar,
de baixo p a r a cima, e s s a n u d e z sensacional.
O c o r p o r o b u s t o p o m p e a v a na nervosidade d a s f o r m a s soltas, n u m
c o n t r a s t e de profundezas e salincias vertiginosas, no frmito da
carne d e mulher e s t a d e a d a a o a r livre.
E l a ps-se a gritar, q u a s e a c h o r a r . A t o r d o a d a , p r o c u r a v a encobrir
c o m a s m o s tiritantes, n u m a atitude c u r v a d e pudiccia, a s p o m a s
e r e t a s . T e n t a v a e m b r u l h a r - s e n o j o r r o b r a n c o c o m o n u m lenol. V e s tia-se de e s p u m a s difanas.
Enfim, deitou a c o r r e r . Refugiu pelo c a p o a d e n t r o , q u e b r a n d o os
gravetos e n t r a n a d o s c o m o s peitos virginais.
O s mamilos d e s a b r o c h a v a m n u m a florao sangnea e m r o s a s
b r a v a s . Ela sangrava, a t r a v s d o s calumbis e de e s p i n h e i r o s n o v o s ,
c o m o se lhe r e b e n t a s s e m r o s a s p o r t o d o o c o r p o .
D e v i a m ser o s a n u n s : ui! ui!
E floriu u m a r o s a m a i s r u b r a na sombra o a m o r p u r p r e o na
sua glria inaugural.
O p u d o r de energia selvagem s se renderia p e l a volpia da subm i s s o . S cederia i n v e s t i d a bestial, p o s s e , s c a r r e i r a s , d o s instintos animais.
N o fora n a d a d e ninfas n e m d e faunos; m a s u m primitivismo pudico o Brasil brasileiro c o m mulheres n u a s no m a t o . . .
125
D a g o b e r t o m a n d o u c h a m a r Pirunga:
Diga-lhe que d um salto aqui.
E mostrou-se g e n e r o s o :
Eu preciso melhor-lo de c o n d i o . O e n g e n h o e s t de fogo
m o r t o . V o c vai t o m a r c o n t a . . . E s t a s s e n t a d o .
O sertanejo conteve um m o v i m e n t o involuntrio:
Se eu sou d e m a i s na minha terra, vou me a c a b a r na bagaceira...
Disse e lembrou-se do j u r a m e n t o : n e m m a t a r , n e m a b a n d o n a r . . .
OS C E N T A U R O S
E r a u m a vspera de a p a r t a o . Vaquejava-se o g a d o nos c a m p o s
comuns.
D a g o b e r t o t o m a v a g o s t o a o s riscos do pastoreio, s g r a n d e s corrid a s temerrias pelos tabuleiros e chavascais da fazenda.
Cavalgava sem g a r b o , m a s c o m firmeza.
C o r i s c o e s c a r v a v a o p e d r o u o , mastigando a brida. Sofreado, a
c u s t o , franqueava, d a n d o d e c a b e a .
Pirunga a c e r c o u - s e , e m p a r e l h o u c o m ele e acariciou-lhe o topete
c o m o chicote.
P a r o u um instante p a r a ajeitar o barbicacho. E voltou a lade-lo,
incitando-o a um c u r t o g a l o p e .
Enfim, tomando-lhe a dianteira, soltou o grito d a s c o s t u m e i r a s arr a n c a d a s . Arrojou-se na mais d e s a p o d e r a d a carreira, c u r v a d o sobre a
prpria sombra: -c-!
Dcil a essa voz incitativa, Corisco apontou as orelhas, tomou o
freio e n t r e os d e n t e s e lanou-se a correr. T e n d o D a g o b e r t o diligenc i a d o par-lo, c u r v e t e o u , encabritou-se e d e s s a altura precipitou-se,
a t r s , desfilada, c o m o u m a bala. A cada n o v a tentativa de sust-lo,
c a b e c e a v a , ingovernvel, s a c u d i n d o a b a b a sangrenta.
O s cavalos elsticos, d e p e s c o o s e s t i r a d o s , a c h a t a v a m - s e , arrast a v a m a barriga nas c h a r n e c a s , n u m desabrido v o rasteiro.
M u d a v a m de cor: ficavam pretos de suor c o m toalhas de e s p u m a
na g a r u p a . E s o p r a v a m c o m resflegos de v e n t o forte.
O b a t u q u e d o s c a s c o s e r a um barulho de t e r r e m o t o .
126
Pirunga sumia-se na vertigem das velocidades fatais, c o m o o vaqueiro voador que leva o cavalo nas p e r n a s .
Embaralhavam-se os dois, de onde em onde, formando com as
vstias vermelhas u m a viso d e demnios a l u c i n a d o s .
C o m o que e n c a l a v a m um fantasma invisvel.
Os vaqueiros e n t r e o l h a v a m - s e , intrigados:
Correu d o i d o !
Dagoberto gritava p a r a Pirunga, forcejando p o r d e t e r o seu corcel
infrene:
E s t s o n h a n d o ? ! C o r r e n d o atrs de q u ? . . .
Praguejava a m e a a s e fazia m e n o de p u x a r a pistola; m a s , o r e ceio de largar as r d e a s privava-o desse gesto de s a l v a o .
E r a a inverso d a s hostilidades: a vtima corria a t r s do perseguidor.
Q u a n d o ia a f r o u x a n d o o m p e t o , r e b o a v a o u t r o grito estimulante:
-c-!
E disparavam c o m m a i o r d e s t r e z a .
Dagoberto ajustava as p e r n a s para no cair e, d e s s e m o d o , fincava
as e s p o r a s no vazio do C o r i s c o que r e d o b r a v a a c o r r i d a , molhando o
rastro de sangue.
E s t a l a v a o c a p o e i r o no fragor dos galhos q u e b r a d i o s . Na faixa
pedregosa os seixos c a n t a v a m u m a toada s e c a , saltando c o m o pipocas.
V a r a v a m a s s e b e s ; v o a v a m por cima d a s touceiras d e c a c t o s ;
afundavam-se nos s o c a v e s afogados; r e p o n t a v a m , a l m , n u m socalco; abeiravam-se d o s b o q u e i r e s e s c a n c a r a d o s .
Desapareciam. S se distinguia a o n d u l a o da catinga. S se ouvia um chiado de m a t o flexvel.
Os vaqueiros erguiam-se nos estribos, p r o c u r a n d o v e r a parelha
tresloucada.
Atalhavam-na; r o d e a v a m - n a . E ela d e s a g a r r a v a d e s s a direo: d e sandava, acelerada, z i q u e z a g u e a n d o , na fuga m a i s d e s o r d e n a d a .
Seguiam o e s t r u p i d o de d e m n i o s solta. R a s t e j a v a m na esteira
de sangue e de suor.
Cessou a e s t r o p e a d a .
Os cavaleiros mais d e s t r o s riscavam b o r d a do precipcio.
Pirunga tinha a vestia r e p r e g a d a de e s p i n h o s , t o d o o u r i a d o .
N o p r e m e d i t a r a e s s e desfecho:
Foi Corisco. M o r d e u o freio nos d e n t e s . . .
127
E r a u m a noite c o m o t o d a s a s noites e s c u r a s . N o i t e d e v e r d a d e .
Um silncio inquietador, c o m o o s o n o prolongado de um d o e n t e
g r a v e , d a v a a i m p r e s s o de q u e o B o n d o n o despertaria m a i s . Quieto, quieto.
S se e s c u t a v a , a e s p a o s , c o m o a d a r h o r a s , o c h o c a l h o abafado
de a l g u m a r s que c a b e c e a v a . N o : ouvia-se t a m b m a r u m i n a o do
c u r r a l q u e b u r b u r i n h a v a n a c a l a d a d a noite retrada.
S e n o q u a n d o , um t e t u a s s u s t a d i o a sentinela insone do ptio
d a s f a z e n d a s desferiu o v o , a gritar: t-tu. D o i s e s t a l o s , c o m o
u m foguete.
Pegali c o r r e u e voltou s e m r o s n a r .
U m vulto b r a n c o endireitou p a r a a antiga c a s a d o v a q u e i r o .
A p o r t a , a p e n a s e n c o s t a d a , c o m o de c o s t u m e , c e d e u a um impulso
nervoso.
E r a S o l e d a d e . E s t i v e r a at a a rebolar-se na c a m a , de c a n t o a
c a n t o , a virar-se c o m o p a r a p r e e n c h e r - l h e o vazio da v i u v e z .
A c e n d e u , e n t r a d a , u m a v e l a de c a r n a b a .
128
NA CIDADE VERDE
O dr. L c i o M a r a u v i e r a a r r e c a d a r a h e r a n a p a t e r n a .
Assediava-o a r o d a da inquisitiva bisbilhotice u r b a n a . E, em t r o c a ,
contavam-lhe frioleiras ntimas, os p o d r e s dos a m i g o s , os nadinhas
domsticos da p a s m a c e i r a inaturvel.
Ele refugia a e s s e m e i o social intermedirio, vida sem sabor e
mexeriqueira d a s p e q u e n a s cidades, o n d e a gente se e n e r v a , sem a
doura do c a m p o n e m a s e d u o das capitais, c o m o na intimidade de
uma grande famlia d e s u n i d a .
N e m Areia, a e u g n i c a , se subtraa a e s s e esprito m i d o .
E n t o , seu pai c o r r e u atrs da m o r t e a t e n c o n t r - l a ? . . .
perguntou-lhe um antigo condiscpulo.
Avizinhava-se, d e v e z e m q u a n d o , u m sujeitinho ressentido:
N o c o n h e c e m a i s os p o b r e s . . .
E ele j tinha a c a b e a fora do lugar de cortejar a t o r t o e a direito...
Os mais velhos desfaziam na memria de P e d r o A m r i c o :
Areiense d e s n a t u r a d o ! . . . De sua t e r r a s pintou um galo! O
galo que ele pintou n o c a n t a a q u i . . .
Volteava o b o a t o m e d o c r e :
e x a t o q u e o prefeito engoliu a d e n t a d u r a ?
131
Se engoliu, j b o t o u : h b o c a d i n h o e s t a v a c o m e l a . . .
L c i o d e s p e g a v a a a t e n o d e s s a s niquices e via a cidade branca
t o d a vestida d e v e r d e .
T u d o m u d a v a d e c o r n a paisagem d o inverno. O s t e l h a d o s cobert o s de liquens. As fachadas b o r r a d a s de musgos. A t a t o r r e da matriz parecia u m a r v o r e afogada de trepadeiras.
A m a n h longa ainda se espreguiava na n v o a .
De sbito, um sol d e s c o r a d o , que se e m b u a v a na cerrao,
esgarou-se e e n t o r n o u a claridade mida pela v e r d u r a do casario e
d a s colinas sobranceiras.
R u a s silenciosas c o m o c o r r e d o r e s de c o n v e n t o . A cidade s falava
p e l a b o c a do sino, em d o b r e s e repiques i n g n u o s , o dia inteiro. As
c a s a s s e m quintais, e s p i a n d o o a b i s m o , a g a r r a d i n h a s , c o m o se estiv e s s e m c o m frio o u c o m m e d o d e cair e m b a i x o .
L c i o o b s e r v a v a o c a r t e r de Areia, sua feio original, diferente
d o s o u t r o s p o v o a d o s d o interior q u e , maiores o u m e n o r e s , e r a m todos
iguais. O ar antigo d o s s o b r a d o s de azulejo d o m i n a v a as habitaes
mais novas com uma orgulhosa decadncia.
O ambiente p r e g u i o s o n o se lhe c o m u n i c a v a ao t e m p e r a m e n t o
r d e g o e cioso de a o .
A p o u c o t r e c h o , t u d o se a l v o r o o u , c o m o se a cidade se tivesse
d e s c o s i d o d a serra, r o l a n d o pela fundura d o Q u e b r a .
O b o a t o j n o c o c h i c h a v a : b e r r a v a c o m o um p r e g o frentico.
Gritava-se de p o n t a a p o n t a de r u a c o m muito m a i s curiosidade em
dizer do que em saber.
L c i o foi levado de r o l d o .
E r a um h o m e m q u e se e n t r e g a r a priso. C o n f e s s a v a ter estrangulado u m a mulher, m a s n o lhe dizia o n o m e , n e m m e n c i o n a v a nen h u m a circunstncia d o c r i m e .
Ele r e c o n h e c e u Pirunga:
Foi Soledade? N o foi?
Matei pra n o m o r r e r .
P o r q u e m o r r e r c o m o ela queria me m a t a r e r a pior do que morrer de verdade!...
Viera fazer c o m p a n h i a a Valentim.
T e m e n d o ser c a p t u r a d o e m o u t r o p o n t o , palmilhara serras brutas
e m a t a s fechadas, n u m a e s c a p u l a de muitos m e s e s , c o m o o pior facnora amoitado.
L c i o p r o m o v e u o primeiro e n c o n t r o , a salvo da curiosidade dos
p r e s o s , na sala livre.
132
F i c o u p a r t e . E, e n q u a n t o os dois s e g r e d a v a m , t e s t e m u n h a v a a
tragdia de e x p r e s s e s , c o m o q u e m assiste a u m a c e n a m u d a .
De quando em quando, percebia cochichos, a esmo:
M a s , p a d r i n h o , eu j u r e i s e m dizer n a d a : foi s beijando os d e d o s ! N o jurei q u e ele n o morria! E u j u r e i q u e ele n o m o r r i a ? . . .
C h e g a v a m o u t r a s frases a v u l s a s :
Eu via a h o r a de me e s b a g a a r n a s p e d r a s e ele ficar de seu,
olhando p r a m i n h a d e r r o t a ! . . . O vento z o a v a q u e n e m c a c h o r r o na
b o c a d a furna...
Transfigurou-se a face encarquilhada d o v e l h o , r e p u x a d a p o r u m
sorriso infernal.
Lcio apurou o ouvido.
Eu t o d o dia p e d i a a D e u s q u e se q u e b r a s s e a j u r a ! N o tinha
mais f de me soltar...
Pirunga desoprimia-se d o perjrio:
E u n o q u e b r e i . . . E u q u e b r e i ? ! N o foi p o r g o s t o . . .
M a s a m e s m a c o i s a . . . E s t o u de peito l a v a d o ! . . .
E o l h a v a m desconfiados p a r a L c i o .
R e a t o u - s e o mistrio. F a l a v a m - s e mais p u r i d a d e .
Enfarruscou-se, a s b i t a s , o rosto de Valentim n u m esgar intraduzvel.
E l e vociferou p a r a t o d a a cadeia ouvir:
O q u ? ! T d o i d o ! . . .
Afastou Pirunga n u m r e p e l o . Levava-lhe a m o c o n v u l s a ao o m bro e recolhia-a, b r u s c a m e n t e ; tinha o u t r o g e s t o p a t e r n a l , m a s logo se
horrorizava d e s s a c o n d e s c e n d n c i a .
P e r d o e , p a d r i n h o ! T a m b m no foi p o r g o s t o , q u e diga, n o foi
p r a matar!...
E Pirunga a p e r t o u a t e s t a c o m a d e s t r a e s p a s m d i c a .
E r a vspera de So Joo.
A cidade c h i s p a v a na c h u v a de limalhas. J a t o s de fogo q u e i m a v a m
a b r u m a do anoitecer. U m a viso de r e l m p a g o s e t r o v e s .
Os r a p a z e s n o t i n h a m m e d o do perigo festivo; o tdio aldeo
pesava-lhes n a s p e r n a s . B r i n c a v a m c o m a s q u e i m a d u r a s . E , s e corria
algum c o v a r d e , a c h a m a c o r r i a atrs.
E n t r o u u m b u s c a - p d o i d o pela grade d a p r i s o e s c u r a . Parecia
u m a chicotada d e fogo.
E n t o , Valentim p e g o u - o e alumiou c o m ele a c a r a de Pirunga.
Repeliu-o c o m c o n t r a r i e d a d e :
M a s , h o m e m , q u e isso?!... V o c c h o r a p o r q u e ficou leso
d e s d e 77!...
133
O JULGAMENTO
O dr. Marau entrou a orar neste tom:
O p r o m o t o r a c u s o u o ru em n o m e da s o c i e d a d e e eu a c u s o a
sociedade em nome do ru.
Q u e m mais c r i m i n o s o o ru q u e m a t o u um h o m e m ou a soc i e d a d e q u e deixou p o r c u l p a sua m o r r e r e m milhares d e h o m e n s ?
E, a n t e s de ser r u , ele vtima da falta de solidariedade da raa.
A s e c a chegou a a p r a z a r suas irrupes c o m a lei da periodicidad e . T o d o o m u n d o tinha a p r e v i s o da catstrofe em d a t a s fatais. E os
p o d e r e s pblicos n o a a t a l h a r a m ; n o p r o c u r a r a m corrigir os acident e s da n a t u r e z a incerta q u e d muito e tira t u d o de u m a v e z . E s s a vitalidade aleatria ficou, at hoje, e s p e r a da i n t e r v e n o racional q u e
d e m o v e s s e os o b s t c u l o s do seu a p r o v e i t a m e n t o e fixasse o sertanejo
no serto.
134
SOMBRAS REDIVIVAS
S pelo n o m e se r e c o n h e c i a o antigo M a r z a g o .
Em v e z da m o n o t o n i a da rotina, v i b r a v a o b a r u l h o do p r o g r e s s o
mecnico. O silvo d a s m q u i n a s abafava o grito d a s cigarras.
D e s a p a r e c e r a o b o r r o d a s q u e i m a d a s na v e r d u r a p e r e n e . A c a p o eira imprestvel d e r a lugar opulncia d o s c a m p o s cultivados n o
com a cana t a m a n h i n h a , m a s de touceiras q u e se inclinavam, c o m o se
estivessem n a d a n d o n o s maroios d a folhagem o n d e a d a .
N o s e viam m a i s a s c h o a s c o b e r t a s d e p a l h a s e c a que imprimiam ao stio um t o m de n a t u r e z a m o r t a . C a s i t a s caiadas exibiam n o s
telhados v e r m e l h o s a c o r da lareira acesa da fartura.
135
L c i o p a s s e a v a a o lado d a e s p o s a pelas n o v a s a l a m e d a s .
E o b a m b u a l c u m p r i m e n t o u - o s em longas c u r v a t u r a s . N o contente de c u m p r i m e n t a r , ainda soltava beijos, atritando-se ao v e n t o .
Beijos ou risos. E r a a m e s m a coisa.
Ela acercou-se da g r a n d e t o u a amvel. E m u l h e r v t u d o . A inscrio e s t a v a meio desfeita pelo atrito d a s h a s t e s :
EDADE
CIO
137
142