A Difícil Vida Fácil - Amara Lúcia
A Difícil Vida Fácil - Amara Lúcia
A Difícil Vida Fácil - Amara Lúcia
Amara Lúcia
Vozes
Petrópolis
1984
Amara Lúcia
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Em especial:
Aos medíocres de espírito que fizeram o possível e
o impossível para boicotar a publicação deste
livro.
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A Difícil Vida Fácil
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
Entrevista de D. Rose Marie Muraro com a Autora
V. O encontro
VIII. O cotidiano
XI. Impressões
XIII. Bet
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XVIII. O desembarcado
XXI. Percentuais
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APRESENTAÇÃO
R. E aí?
A. Fiquei em casa, dando assistência aos velhos, aos filhos.
R. Teve filhos?
A. Tive, do primeiro matrimônio. Três.
R. E daí?
A. Quando eu disse a eles, disseram que era loucura, que eu ia me arriscar, que
isso não dava certo. Eu disse que não adiantava, que eu não ia perder a riqueza do
material que tinha ali.
R. E daí?
A. E aí, eles terminaram concordando. E eles sabem que eu vivo mais pra escrever.
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A. Ah! lógico. Eu não tenho vergonha do que eu fiz. Pelo contrário. Acho que se eu
tivesse paciência, eu teria feito um trabalho bem melhor. Colocar um pseudônimo
seria negar tudo.
R. E a maioria?
A. A maioria vai pra quebrar a rotina. Aliás, outra parte, que é em grande escala, vai
pra quebrar a rotina da vida sexual deles. Em casa a esposa só quer saber daquela
posição papai mamãe, se priva dos prazeres sexuais e induz o marido a procurar
outras, que levam até o sustento dela. E a maioria dos homens vão pra usar mesmo a
prostituta.
R. Por que você acha que eles não têm possibilidade de se recuperar desses
traumas?
A. Os homens? Pelo seguinte. Porque a mulher, ela sofre a primeira decepção
amorosa. Então, o segundo, ela já tem Michê: o preço pago à prostituta. uma
esperança, ela já guarda ela mesma uma esperança de que não vai sofrer aquilo
novamente. Mas o homem não. Está danado. Sofreu a primeira decepção com uma
mulher, as outras são piores do que a primeira.
R. Então tudo bem. Outra coisa. Você esteve na zona de meretrício só em Recife ou
em outra cidade?
A. Recife, Salvador e Rio de Janeiro.
R. Por quê?
A. Porque aqui há agressividade.
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R. E no Rio?
A. No Rio, a barra é mais pesada.
R. Então, na medida em que o centro é mais avançado, você encontra uma maior
desumanidade?
A. Exato.
R. É.
A. Olha, pelo que eu vi e elas contaram, aqui em Recife a prostituta só tem valor se
for ladra.
R. Por quê?
A. Porque na hora de entrar no xadrez, ela dá do que sobrou para o guarda, pra o
policial.
ir pra cama de graça: Se você não aceita, daí a poucos instantes você é autuada em
flagrante com a maconha no bolso, mesmo sem você puxar fumo. Toma cuidado
com os bolsos das calças. Quando um policial se aproximar de você, você vai logo
pondo a mão nos bolsos das calças, porque facilitou, maconha entra no bolso sem
você perceber. E daí você não vai dormir só com ele não. No xadrez você vai meter
com mais de três sem ninguém pagar”. Quer dizer, lá é bem pior. Já em Salvador, eu
não notei nada disso. É como eu disse antes. Me parece, a olho nu, que em Salvador
se goza de um clima mais tranqüilo em matéria de confiança ao semelhante.
R. Onde?
A. Pelo interior da Paraíba, na cidade de Souza, vão buscar ali mulheres. Pelas
bandas do Nordeste. Principalmente as donas de cabaré que vão com carros buscá-
las lá.
R. E que mulheres elas buscam, se essas mulheres são tão presas pela família?
A. Não, aquelas ali já são as que não estão mais gozando da confiança pai filho. E
além de não gozar da confiança pai-filho, a fome em casa está na goela, e se abrir a
boca só vomita mesmo a saliva. Então a dona do cabaré chega: “Olhe, eu tenho um
emprego pra você. Você vai pra lá, eu tenho um bar lá. Você vai lá e fica atendendo
no bar. No meio do caminho: “Mas eu não tenho roupa”. Não tem nada não. Eu te
ajeito roupa. Te dou roupa, sapato. Você não vai gastar nada, não”. No meio do
caminho a dona do cabaré vai dizer o que ela vai fazer. A essas alturas ela já sabe
que a menina é mulher. Já vai dizendo o que ela vai fazer: “Mas você vai ganhar
muita coisa: jantares, bebidas boas, você vai conhecer lugares bons, você vai sair
dessa miséria”. E a moça vem, encantadinha, né?
R. Gostam?
A. E outra parte, nesse ínterim, já no cabaré, procuram emprego. Lê os classificados
ali, e na segunda feira vai. No trabalho falam: “Querem? Batem aqui”. Olhe, a
mulher do campo com fome, com sede e nua. Vem com pouco dinheiro, quando
vem só. Aí estou explicando quando vem só: “Vou fazer uma coisa, o negócio
apertou, vou me embora pra capital”. Chega aqui, quer trabalhar, bem honesta,
muitas vezes até bicho cabaço(!).
R. E aí?
A. Quando chega aqui, quer trabalhar. Ninguém quer empregada de porta. Nas
agências querem o quê? Experiência. O dinheiro que ela trouxe do interior, que
economizou vai acabando. Vai se acabando, então ela não tem mais onde comer, não
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tem conhecidos na cidade. Aí, no caso aqui da cidade de Recife, atravessa a ponte,
bate na Av. Rio Branco. A Av. Rio Branco tem cabarés – olha lá que não estou
fazendo propaganda deles não – que quando dá uma hora da manhã, dão um prato de
macarronada com dois ovos e queijo, uma macarronada muito da suculenta, dá
refrigerante e dose pra beber até uma certa hora. No outro dia já é um cardápio
variado. O sistema de cabaré é incrível, é um cardápio até variado, nesse ponto. No
outro dia já é um prato de sopa com verduras e tudo, suculento. Quer dizer que aí a
mulher não está passando fome: prato de sopa e 2 pães. E já transou com alguém e
está com dinheiro no bolso, mas chega ao ponto, e ela continua, e ela começa a se
iludir que aquilo ali é bom. Mas os cabarés dão o quê? Dão comida, dão bebida. E os
cremes vaginais, eles dão? Não. Os antissépticos eles dão? Não. Uma garrafa de
vinagre numa bacia com água eles dão com uma ducha? Seria o mais barato pra eles
no caso. Não. Além de tudo, umas duas semanas ela está infestada: gonorréia,
cancro mole, blenorragia, e o que há de danado por lá. Por aí eu tiro: eu, eu, quando
vi mesmo que tinha necessidade de ficar, necessidade literária – é bom frisar isso –
eu fui num ginecologista: “Olha lá, doutor, eu quero me abastecer, estou num
ambiente assim, assim, quero me abastecer”. Era uma porrada de dinheiro que eu
gastava de creme vaginal, creme antisséptico, lavagem, tudinho, e consegui contrair
uma blenorragia. E na época que eu contraí, quase que endoido dentro desta casa.
Mas como é que pode, eu me cuidando tanto? E olha que eu selecionava os homens.
E elas que não selecionam. Como não estavam?
R. E o futuro dessas prostitutas? Então vai assim, elas logo ficam doentes? Quanto
tempo duram como prostitutas?
A. Nos cabarés, no centro da cidade, é que elas são mais relaxadas ainda quanto à
saúde íntima delas. Achei isso um negócio incrível. Porque as prostitutas dos
cabarés do centro, elas mesmas temem ir para a Av. Rio Branco. No entanto, na Av.
Rio Branco há menos índice de doenças venéreas.
R. Então ela pega doença venérea, todas pegam, e como é o futuro delas quando
elas envelhecem? Elas envelhecem na prostituição, como é que é?
A. Tem algumas. Em todo lugar tem alguém inteligente, não é? As mais inteligentes
são aquelas que conseguem guardar alguma coisa em caderneta de poupança.
mais pra trepar, aí já vai viver do lucro que a poupança deu. Mas aí que eu digo, que
o mau do brasileiro é a acomodação. Porque ela ainda está nova, mas no caso dela,
ela viciou-se.
R. E homens, relação com os homens, cafetão, por exemplo, todas têm cafetão?
A. Não, não tem não, aqui não. Aqui é um mínimo as que têm cafetão. Já no Rio não
é nem mais cafetão. No Rio tem que se ter um costa quente. Que a barra é tão pesada
lá que tem se que dizer que se tem um homem, e tem se que andar com um homem
perto, mesmo que ele não seja nada dela, mesmo que ele não meta com ela, mas que
paga ele pra ele ser a segurança dela.
R. Por dia?
A. Por noite. Mas isso tornou-se pouco, em virtude, quando tinha força tarefa
atracada. Quando tinha força tarefa atracada, chegava ter 20, 15 relações, 18, porque
o negócio estava tão mecânico que era só deitar, abrir as pernas e eles entravam, e
no caso bons estrangeiros. E eles queriam só isso, queriam expelir o sêmen,
agarravam enquanto estavam ali. Expeliu o sêmen, pagou, ia embora, pra dançar, pra
beber. Então eu tinha o restante do tempo pra transar com os outros, pra encher os
bolsos de dinheiro.
A. Não sei. Olhe, nada dos outros eu sei, além do que eles sentem, assim
fisicamente.
R. Mas a esposa contrai, então, com outro homem. Se transmite ao marido, contraiu
com quem?
A. Não sei. Pode ser com ele mesmo se ela for amantíssima.
R. Que loucura!
A. Que loucura! É um poço fundo.
R. Hotel?
A. É, hotel. Inclusive quando cheguei lá, até a mulher, perguntei a uma delas onde é
que tinha hotel, um lugar onde pudesse descansar, sossegada, ela disse: “Olha, eu
moro ali, é ali”. Foi essa que me preveniu da maconha. E abriu assim o bolso e tirou
três mil e quinhentos cruzeiros e disse: “Você veio de onde?” Eu disse: “De Recife”.
Ela disse: “Toma lá, pra tua diária”. Eu disse: “Não, eu tenho”. “Não, mas você vai
poder precisar, fica com isso, de noite eu te encontro lá no Flórida”.
Nenhuma delas conta o que é a zona, como é o ponto, o cartão de visita. Aqui você
vai comer bem, aqui você vai ganhar dinheiro. E ganha, engorda”. Entrei com trinta
e nove quilos e saí com 47. Comia bem, bebia bem, tudo. E sustentei parte de minha
família com dinheiro do meretrício, lá. Pra você fazer idéia como era o negócio. E
eu selecionava. Quer dizer que elas que não selecionam ganham mais. Mas
ninguém... mas ninguém se iluda com isso, não, porque há época de crise econômica
na zona. É uma loucura.
R. Agora?
A. E quando há crise econômica, é a coisa mais triste. Não é tão triste pra elas,
quanto é triste para a infância que há dentro da zona. Porque é uma infância não
prostituída, uma infância trabalhista, existe esse termo? Uma infância trabalhista,
aqueles garotos que vendem amendoim, pra sustentar a casa, a mãe, os irmãos e o
gigolô da mãe. Essas crianças são as que mais sofrem ali dentro em época de crise
econômica. O que é crise econômica lá dentro? É não ter navio atracado no porto
local.
R. Não de brasileiros?
A. Não de brasileiros. Não ter navio estrangeiro no porto local é desgraceira total na
zona.
R. Ah! é?
A. Ele é tão econômico quanto preocupado com o orgasmo da mulher na cama, e é
maravilhoso, né? Quer dizer que o homem brasileiro não está de todo perdido, não.
É o segundo mais econômico, é o brasileiro. Os primeiros são os paquistaneses.
R. É que são pobres. Agora, diz o seguinte: isso você notou no Recife ou no Rio?
A. No Rio. Não em Salvador. O brasileiro na cama com a prostituta. Eu tava ali, era
prostituta, ninguém tava sabendo que eu estava fazendo livro. Eles me tratavam
como uma prostituta. Sensacionais, sabe? É lógico, tem as exceções, né? As
exceções, já vem os “boys”, que são os que pintam misérias com as meninas. É por
isso que elas têm medo dos “boys”. Já não vão mais pra apartamento, têm medo.
Quem vai pra apartamento, acontece desgraça. As vezes sai uma com garrafa na
vagina. Vai pra praia, vai bater no outro dia aonde? No pronto socorro. Entupida de
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areia. Depois, saiu com quem? Com os “boys”. Quem são os “boys”? São os
filhinhos de papai da alta sociedade. Aí é que volta a questão inicial. Eles são jovens
esses “boys” , se eles fossem conscientizados mesmo do que era sexo, eles iam
abusar do sexo oposto? Não iam. Porque não são conscientizados.
R. Quero saber se a maioria das trepadas que você deu foi com estrangeiros ou com
brasileiros. Quero saber exatamente o mecanismo da prostituição. É mais com
estrangeiro ou mais com brasileiro?
A. Mais com estrangeiros. A fonte de renda da prostituição são os estrangeiros.
R. Pode.
A. Há um tipo de prostitutas sofisticadas que vivem de anúncio de jornal:
massagistas.
R. Isso eu sei. Isso é outro papo então? Que mais? Sobre outro tipo de prostituição,
fora a “massagista”.
A. A prostituta sofisticada é a massagista. Há a do baixo meretrício, há a dos cabarés
do centro e há essas a nível de companheiro. Há também a prostituta da conta, é
aquela que no restaurante enquanto observa o cardápio, fisga o garçom com os
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olhos, esta se prostitui para não pagar a conta. Agora, você está sabendo o que foi
que me levou à zona da Rio Branco?
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De repente senti saudade e inveja de Walesca, pois jamais seria tão bela quanto ela!
Ainda naquele dia procurei André pela cidade inteira e não o encontrei.
Mais tarde pensei em visitar os cemitérios, querendo encontrar num deles Rogério,
que eu estava sempre a buscar, nas lápides, epitáfios ternos que lhe provassem meu
amor.
E desolada com a busca que empreendera em vão, só me restava agora sentar ao
canteiro das lembranças e voltar a pensar nos outros filhos que havia criado!
Na falta de suas presenças, lembrava-me que a alguns deles eu própria matara e aos
outros que havia deixado vivos, tão longe estavam que não mais atenderiam ao meu
chamado.
Não! Não haveria de ser aquele o momento em que ficaria escura a minha
imaginação!
Resignada, levantei me em direção à lareira e, tentando aquecer a alma, acendi nela
os anseios da solidão.
Olhei a máquina de escrever, companheira fiel do meu ainda não estagnado viver.
Aproximei me dela e comecei a escrever outro livro. Desta vez, porém, usaria de
mais cuidado a fim de não sentir novamente a falta de alguém a quem dedicaria
tempo e amor criando-o!
Justamente nessa época eu atravessava uma fase de bastante criatividade e tudo o
que até então escrevera acumulava-se em minha estante. Precisava apenas de tempo
e isso era tão somente o que me faltava. Tempo para revisão ortográfica e higiene
mental. Todavia, tornavam se vãs todas as tentativas que eu fazia em minha casa
para conseguir esse tempo. Eu devia isso à criação que já não me surpreendia, mas
assaltava-me a mente na vontade incansável de escrever.
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Em conversas de bares e encontros casuais, era mesmo inveja aquilo que eu sentia
diante de quase todos os amigos que escreviam, porque no momento queixavam se
do recesso que tinham sofrido!
De uma certa forma, alienava-me então ao buscar o recesso! Ele tornara se
necessidade vital para mim, para o aperfeiçoamento do artista em mim. Exclamava:
ah! se ele viesse a mim, aí sim, eu descansaria! E irônico ao tempo que ele se fazia
por mim aguardado, permitia que eu ouvisse os seus passos mas não vinha a mim!
A sua presença, que eu não tivera ainda a ventura de sentir, provava-me no entanto
que, nem mesmo em arte, por mais que a ela o artista se dedique, a perfeição jamais
será por alguém alcançada.
Por tudo isso que me fazia sofrer, resolvi de imediato, como agir: dar férias a minha
criatividade e conhecer outro mundo.
O mundo pelo qual optei conhecer não se tratava de um espaço além das fronteiras
do ser mas o mundo do sexo comercializado que tem vida maior em períodos
noturnos de qualquer cidade.
A Avenida Rio Branco seria, sem dúvida alguma, o verdadeiro cenário de inúmeros
personagens a cruzar o meu caminho. Por eles, sozinha e pessoalmente, por mais
que quisesse, nada poderia fazer. Mas no simples refúgio da minha arte, através de
espaçados parágrafos do meu novo livro, quem sabe, encontraria solução para os
seus problemas.
O que realmente haveria lá, que causasse tanto desprezo e medo nas pessoas que do
outro lado da ponte mencionavam tal nome?
Sabia que se referiam à zona maior em termos de meretrício no Recife. Mas o que
era mesmo na íntegra a zona? .
No começo, foi tudo simples, bastou-me atravessar a ponte para ingressar no outro
lado da vida, defrontando me com risos e lágrimas de meu próximo. Parei no cais,
espantada comigo mesma devido à tranqüilidade com que me armei para pisar
naquele terreno. Lembro me que ainda adolescente temia passar por ali, mesmo de
dia, quando tudo aquilo era área comercial. Ademais, fui criada e educada num
ambiente em que mencionar sequer o nome da Avenida Rio Branco era enorme
desrespeito ao que todos chamavam família e padrões de formação. E foi nessa
avenida que um letreiro chamou-me a atenção e entrei no “Chanel Drinks”.
De pé, já no canto da tal casa, à medida que olhava as pessoas, desfaziam se em mim
as dúvidas a respeito daquele local e sua clientela. Afinal, as prostitutas não se
vestiam como eu pensava. Julgava que haveria de encontrá-las em meio a
extravasados decotes e saias curtíssimas com bêbados. Mas, não! Elas falavam como
pessoas que não sabem avaliar o preço real das coisas importantes, como gente que,
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por mais idade e escola que tenha, embora morando na cidade, ainda não aprendera
realmente a ler.
Algumas vestiam se como adolescentes que após passarem a tarde toda escolhendo
os próximos trajes, desde as vitrines aos tabuleiros das lojas do centro, finalmente,
optavam por algo que de maneira simples realçasse a beleza das formas dos seus
corpos. Outras, devido talvez ao passar dos anos ali, pareciam me trazer nas roupas a
prova evidente da experiência sofrida, machucadas por mortais tão perdidos quanto
elas, às custas do vício causado pelo prazer momentâneo do sexo, cujo efeito era tão
monetário quanto o tempo gasto em futilidades.
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II
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III
O meu quarto dia na zona foi bem diferente do que qualquer outro que num quarto
dela eu pudesse ter. Os três dias anteriores conduziram me tão somente à
acomodação e, não intrigada, reconhecia que gostara daquele lugar.
Mas voltemos ao quarto dia da minha permanência no meretrício. A zona estava
calma, mas tão calma que parecia dopada! As mulheres comentavam entre si o seu
ganho com os visitantes que se tinham ido e, apesar de tranqüilas, notava-se em
todas o visível sinal de cansaço, pois aqueles três dias com os alemães foram
considerados como uma “maratona fodástica”, diante do número de marinheiros
para os quais eram poucas as meretrizes naquele reduto.
Agora, de estrangeiros mesmo, só havia gregos, e eram poucos os chegados de
navio. Ouvi quando uma delas chamou outra para que juntas fossem à “Casa de
Atenas”. Aproveitei a oportunidade para as seguir, querendo conhecer a tal casa,
uma vez que o local é ponto de encontro de todos os gregos que na zona chegam.
Na “Casa de Atenas”, só se ouve música grega. Não há quartos para faturamento.
Daí a renda ser apenas das bebidas, dos pratinhos de tira-gosto e pratos vazios
comprados para serem quebrados enquanto os gregos dançam.
Admirava-me com o que via agora: um espetáculo por demais espontâneo. Aos
meus olhos nada havia de mais bonito no momento.
Tratava-se da música grega enriquecida pela quebra dos pratos lançados ao centro da
sala onde se exibiam os dançarinos que não eram profissionais. Tudo indicava que
faturamento ali deixava de ser a preocupação delas que agora se divertiam, mas que,
com certeza, mais tarde teriam a segurança de uma “foda garantida” com pagamento
efetuado pelo único grego, a quem tinham se dedicado a noite inteira.
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Fiquei extasiada diante daquilo tudo e tentei resistir enquanto pude até não agüentar
mais e pedir à moça do balcão papel e caneta emprestados.
E, satisfazendo a vontade de escrever que, para surpresa minha, ali também me
assaltava, “nascia” assim o primeiro guardanapo de papel escrito por mim que,
juntamente com outros, dariam origem a este livro.
As mulheres que vão assiduamente àquela casa falam mesmo grego e afirmam que
aprenderam o idioma com eles. Demorei pouco tempo ali e saí um tanto
decepcionada comigo mesma, por não conseguir deter mais uma vez a inspiração,
terminando por parar novamente sentada no Bar São Francisco. Mas o que vi depois
não podia passar despercebido à minha capacidade de exploração.
Ora, o Bar São Francisco em si é a maior parte do que é mesmo aquela zona. Basta
dizer que raríssimas são as vezes que os freqüentadores não participam de confusões
ou assistem a arruaças entre mulheres alvoroçadas e gringos disputados. Nas
paredes, marcas de bala.
As confusões ali já se tornaram tão comuns que causa espanto quando nada de
anormal acontece!
Tentei dialogar com elas para colher mais informações, mas a desconfiança delas
não me permitia maior aproximação. Cada vez mais eu reconhecia ali a abundância
de material que não podia desprezar. Lembrei me que tinha algo em meu favor
ainda: a condição de escritor anônimo!
O próprio ser retraía se para dar livre curso ao que talvez, se não me cuidasse, se
tornaria algo semelhante à maldição
de algum deus que não me permitia descansar a mente. Era o impacto puro entre o
artista e a fêmea que eu descobria em mim. Mas sobreviveu a arte de escrever.
E, para não correr o risco fácil daqueles que escrevem sobre a fome sem nunca a
terem sentido nas entranhas, adotei a necessidade real de viver naquele mundo, e tão
importante se tornou tal fato para a minha arte que cheguei a prover parte da minha
família com o dinheiro que lá ganhava e, paradoxo ambiental ou não, ainda assim
não me prostituí.
Mas, no Bar São Francisco, encontrei uma imensidade de elementos que deviam por
mim ser explorados, literariamente falando. Enquanto dei férias à minha
criatividade, conheci as feras humanas da criação!
Portanto, foi nesse bar que se formou o objetivo de todo esse trabalho. Foi lá que,
em momentos de descanso, eu construí os trechos de ficção. Foi lá que a poesia
esbofeteou-me mais de uma vez através do seu realismo e amparou-me em todos os
terrenos ilimitados do seu lirismo.
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Foram seis meses de faturamento, embora os meus bolsos estivessem sempre mais
cheios de escritos do que de dinheiro, algo como poemas ou crônicas avulsas que eu
sempre trazia para casa.
Contudo, caríssimo leitor, este livro não é uma autobiografia. Na balança dos
equilíbrios, a minha arte pesou menos do que as conjunturas sociais dos que me
dedicavam amizade. Comuniquei a meus pais onde à noite me encontrava, o drama
que eu vivia. Como nunca antes, passei a ser alvo de comentários da vizinhança.
Só dos escassos amigos recebi incentivos. Dos meus filhos, especialmente de Tânia,
recebi o apoio e o impulso mais compreensivo para a elaboração deste livro.
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IV
CARTÃO DE VISITA
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O ENCONTRO
Quase sempre à noite aquele homem chegava ao cabaré e, numa dessas noites,
conseguimos dialogar. Iniciamos assim uma sólida amizade, com encontros cuja
freqüência passou a incomodar a todos os incultos e desprovidos de amor à nossa
volta.
Louvou ele o meu talento e eu a sua amizade. Uma das mulheres chamou-me
somente para me dizer que eu estava enlouquecendo de tanto escrever. Não sabia ela
que eu era nada mais do que um “artista do imediato” e que as portas teatrais dos
bajuladores, reconhecidos às pressas, pelas quais eu jamais pretendi passar, tinham
se fechado para mim desde o início do primeiro ato.
Enquanto isso a “máfia dos poetas”, que tinham canto certo para poetizar, teimava
em não enxergar que aonde quer que fôssemos, a inspiração pairava, estando ela em
qualquer lugar que provasse aos humanos a expressão benéfica do amor. Todavia,
nunca perdi tempo em lhes explicar o motivo de cada coisa ser um tema e cada
humano um elemento literário possível de exploração pela minha inteligência.
Por conseguinte, diante disso tudo, sorria me a criação, e com certeza nem mesmo o
tédio me assaltaria, isso porque amo e, na plenitude desse amor, vivo!
Outrossim, a solidão às vezes tenta perseguir me e, no meio do caminho, por si só
desiste, sentindo a realidade da poesia que, cada vez mais, preenche o vazio a que se
arrisca também a minha alma.
Sabe, amigo, que nada mais me espanta neste mundo, tudo para mim é conseqüência
do natural, afinal, o paradoxo só existe porque alguém o acata.
Vez por outra, a hipocrisia faz me trejeitos e se enfurece, afoga-se em ódio por saber
que o meu ser por ela jamais será contaminado. Apesar de tudo, eu ainda acredito
nas pessoas, pois Buda não parou aqui só para dizer alguma coisa e partiu; e Cristo,
o Messias, por sua vez não teria escolhido espontaneamente esse lugar para ser
crucificado e, se naquele tempo não existia gravador, restou nos o consolo da
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existência dos poucos homens que tiveram memória para registrar o que deveras a
humanidade precisa saber.
De uma certa forma, convém apenas lembrar: em meio a tudo isso, os “artistas do
imediato rejubilar-se-ão”, diante da verdadeira arte, porque somente ela servirá de
ungüento para a purificação do ser!
E agradeço, amigo, mas no momento nada quero ler. Receio o embotamento da
mente através de regras, vocábulos e metáforas que há muito deserdei. Devolvo a
gramática que, cuidadoso, me emprestaste querendo um dia me ler decerto bem.
Peço apenas que também te coloques à prova, e, embora não conformado, aceites as
coisas como elas são e não como convém, pois é sabido de todos aqueles que me
conhecem que há muito abandonei as regras, a teoria dos meus versos e a lei do meu
ser.
Quem sabe talvez seja eu a exceção de moderna Poesia!
E para que nada fique embaraçoso, explico melhor. Respeito tanto os mestres que a
essa altura dos acontecimentos estúpidos sinto receio de maculá-los ao tocá-los.
Relembro Goethe e Nietzsche, escuto Ray e Ella, e nos meus escritos sorvo tão
somente a emanação. Relembro Brecht e Eluard, escuto Caetano e Chico e nos meus
versos faço a explosão. Relembro Sartre e Vinícius e vivo cada momento que em
mim a Poesia ainda existe!
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VI
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Penso naquelas que preferem sempre a Coca Cola como refrigerante e cigarros
Marlboro em louvor aos capitalistas louros de olhos azuis que aqui vêm e, como se
isso não bastasse, vaporizam a pele com spray também importado e tratam esses
estrangeiros como se eles fossem verdadeiros e dignos reis.
Calada, eu assisto a tudo com vontade de lembrar-lhes que os excrementos dos
estrangeiros fedem tanto quanto os dos favelados de qualquer país!
Penso em Elaine, alguém que não quis nem pensou em ser prostituta, e hoje, no
entanto, é. Penso no pai dela, que sabe da sua permanência aqui, na zona, e hoje fez
outros depósitos em sua conta bancária, alguns milhões, para lhe deixar quando
morrer (herdeira única). Mas esse mesmo pai disse à filha que agüentasse a vida de
prostituição até o próximo ano, quando os juros do capital empregado por ele a
prazo fixo serão maiores podendo assim ela e a família viver melhor!
Penso no pai dos filhos de Elaine que, após uma semana de homologação da
separação judicial por ela pedida, demitiu se da firma em que trabalhava e com a
indenização recebida comprou móveis de luxo, granja e carro do ano, registrando
tudo no nome dos irmãos e cunhados, passando a trabalhar por conta própria, sem
nada dar aos filhos!
Ninguém prova que ele tem algo e da mesma forma ninguém prova que todo ganho
de Elaine aqui, na zona, é exclusivamente para a manutenção dela e dos filhos, cuja
guarda ganhou na justiça!
Já recorreu à assistência judiciária, mas o que lá ouviu desanimou a, pois, segundo o
advogado que a atendeu, é melhor não requerer a pensão alimentícia que há muito
está atrasada, ou melhor, nunca foi paga pelo responsável pai aos filhos e se ele
alega ao juiz qual o tipo de vida que às noites Elaine
tem, a situação piora, perderá a guarda dos filhos que tanto ama e que o maldoso pai
levará passando sem dúvida a sustentá-los. No entanto, enquanto eles estiverem na
companhia dela, um centavo sequer o pai dará.
Como se vê, os direitos humanos diante disso tornam se piada, e, deitada
eternamente de olhos vendados, continua a justiça no teu berço esplêndido, Brasil!
Penso em Mônica, aquela prostituta que freqüenta um cabaré na rua da Concórdia,
tem emprego certo, salário seguro, é filha de um eminente professor de urologia já
aposentado, tem um modesto apartamento e duas filhas moças e não só às noites
mas também às tardes de sábado e domingo freqüenta o cabaré, já tendo me dito
certa vez que se deitaria até com satanás se lhe aparecer trazendo lhe dinheiro!
Penso em Mirna, que aos olhos dos que a conhecem superficialmente é muito bem
casada, freqüenta a alta sociedade e participa até de campanhas filantrópicas. Vez
por outra, ela freqüenta a zona de Rio Branco e à medida que conhece os homens
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Amara Lúcia
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que aqui vêm, busca com eles o orgasmo que o marido devotado ainda não
conseguiu lhe proporcionar. No entanto, se o homem com quem ela quis se deitar
não lhe pagar depois, ela correrá atrás dele, não para agradecer o orgasmo
proporcionado, mas para cobrar o aluguel do sexo!
Penso também na prostituição masculina e no quanto mais difícil que a feminina é!
Penso naquele sujeito educado e economista conceituado de quem, para surpresa
minha, recebi um dos mais altos michês, conhecendo ao mesmo tempo outra faceta
da sua personalidade. Carregava sempre uma pequena mala, e cada vez que vinha à
zona, ao chegar ao quarto, tranqüilizava a mulher que o acompanhasse explicando
que o seu caso não era “trepar”, mas receber aplausos dela. Em seguida, retirava da
mala um par de sandálias de salto alto, peruca e vestido fino. E pelo quarto, já
depois de maquiado, exibia se como se estivesse a desfilar numa passarela. A
prostituta, sentada na cama, batia palmas, deixando o muito feliz!
Esse realmente foi uma exceção, pois os melhores homens que conheci na zona
foram aqueles com os quais não tive sequer contato íntimo. Daí hoje eu ficar
também a pensar em George, que a essa altura está muito longe daqui.
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A Difícil Vida Fácil
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VII
George e eu conversávamos em inglês, pois ele não falava uma palavra sequer em
português. Eu não conseguia entender por que algumas mulheres que por nós
passavam, ao escutarem parte da nossa conversa, paravam e dele se admiravam,
outras até a certa distância de nós apontavam para ele. Só mais tarde vim a saber o
porquê daquilo tudo!
Ele era mais um dos gregos que ali se encontravam e deparar-se com um grego que
soubesse expressar-se em inglês, ainda mais tão bem quanto ele, era mesmo algo
raro ali na zona! E Sandra, a mulher que estava com ele, passou a ser invejada pelas
outras, porque ele a preferia às demais.
George era mesmo um sujeito culto e passei por ele a ser mais admirada quando,
para surpresa sua, citei alguns dos tópicos das obras de Ésquilo e Sófocles. De
minha parte, Dir-se-ia que a felicidade transparecia em meu rosto!
Afinal, encontrar um grego na zona que conhecesse o Agammênon de Ésquilo era o
mesmo que encontrar lá na Grécia um brasileiro que conhecesse Carlos Drummond
de Andrade e Alberto Cunha Melo, e além disso, os amasse tanto quanto eu!
Ele não era como os outros seus compatriotas gregos eufóricos que quase sempre
por ali transitavam. Muitas mulheres até se faziam charmosas ao avistá-lo.
Já do outro lado da ponte, o barulho do progresso martelava na construção de mais
um edifício àquela hora da madrugada. Em seu carro, o contista martelava na
consciência o título que daria ênfase à capa do seu último livro recentemente escrito.
Sentada perto dele, a amada, calada, fazia ao colo poemas, dos quais até então era
ele seu único entusiasta. Perto deles, o Capibaribe murmurava a canção de amor
nascida das águas serenas, quando um homem calmo que pescava aproximou-se
deles com a rede ensangüentada, barriga cortada, vísceras à mostra. Numa atitude
mesclada de normalidade e espanto, eles socorreram o pescador banhando o carro de
sangue.
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Amara Lúcia
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Mas, voltando à nossa conversa, George quis conhecer minhas idéias políticas que
combinavam com as dele. Comemoramos com alegria a vitória do regime socialista,
recentemente adotado pela Grécia. Sabíamos que aquilo ainda não era tudo, mas não
podíamos deixar de louvar o primeiro passo e por muito tempo ainda naquela noite
ficamos a lembrar e a analisar a situação de alguns países.
George partiu no navio onde trabalhava como imediato, a massa humana dos
estrangeiros que ficaram na zona continua a ser usada e é ainda essa mesma massa
que aqui não serve para nada.
E isso faz me continuar acreditando que a questão verdadeira já não é aquela antiga
questão shakesperiana: “Ser ou não ser!” Para mim, a questão tornou-se mais real.
Daí eu dizer: “Permanecer ou não permanecer!”
Em outras palavras, há mulheres que já não têm necessidade de aqui permanecer. O
caso dessas tornou-se vício. Há outras que têm empregos seguros, tais como
enfermeiras, auxiliares de escritório, recepcionistas e bancárias, mas continuam
alegando que “o ganho daqui ajuda o ordenado. Assim sendo, lamentavelmente
percebo a prostituição como integrante do sistema da compensação salarial!
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A Difícil Vida Fácil
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VIII
O COTIDIANO
Era mesmo rico aquele homem que me chamou para beber com ele e Dir-se-ia até
que foram inúmeras as vezes que o seu barco velejara através dos mares do
contentamento hipócrita e todos se curvavam diante dele.
Inúmeras também foram as vezes que o avistei vagando por bares onde pseudo
amigos lhe erguiam altares e ele lhes parecia o único Deus em solicitude plena e
compreensão, sempre a conquistar dos novos conhecidos simpatia e atenção.
Ele se fazia alheio perante gírias e materialidades que o pudessem induzir ao caos.
Em dado momento, alguns amigos começaram a discutir sobre a renúncia ao álcool
e à nicotina, enquanto ele continuava tranqüilo a beber comigo e, olhando-me
seriamente, disse-me em seguida em tom grave: “Será que não compreenderam
ainda que o perdão e a renúncia devem estar ao alcance de todos? Pelo menos eu
aprendi isso com um sábio!”
E era mesmo com tranqüilidade que ele vivia não em onisciência mas em plena
consciência de que, apesar de só, era o mais rico dos mortais, pois tinha consigo um
Deus em cada copo de cerveja chamado relax, em cada busca chamada asneira, em
cada dispêndio chamado arrojo, e incinerava assim a coroa que eles lhe destinavam.
Apesar de tudo, era um carente, e eles jamais perceberiam, tão envolvido em
dinheiro aquele homem estava que apenas isso nele eles viam. Mas até com essas
coisas nós nos acostumamos.
Nós nos acostumamos, sim, a ficar até altas horas da noite acordados, e a mais do
que isso, nós nos acostumamos à rotina dessa vida deturpada!
Os homens que vêm aqui, na maioria, são de meia idade e, como souvenirs dos seus
comportamentos, trazem consigo a vulgaridade. O interessante disso é que já são
considerados figuras importantes da alta sociedade, mas como estabeleci um critério
para faturamento, tais homens não me chamavam a atenção e, diante desse critério,
eu levava em conta o cuidado para não me desgastar física e emocionalmente.
Escolhia os homens por duas etapas:
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Amara Lúcia
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1) tipo físico;
2) idéias e concepções formadas.
Os homens que tivessem tais itens em suas personalidades, mesmo que estivessem
interessados em me conhecer sexualmente, não iriam correr o risco de se
vulgarizarem me perguntando: Qual é o seu preço? Quanto você cobra para
“dormir” comigo? Quanto custa para você ficar numa cama comigo por uma ou duas
horas?
Ora, se tais perguntas me fossem feitas, eu jamais saberia avaliar me em quanto
sexualmente valia! Obviamente, eu escutei tais perguntas de muitos e quando isto
acontecia em relação aos brasileiros, minutos após, eu arrumava uma desculpa,
pedia licença e me retirava da mesa, sabendo assim que eles não eram tão educados
quanto bonitos, e bem vestidos.
Já em relação aos estrangeiros, eu aprendera com eles a cobrar e perante eles eu me
conscientizava mais da minha condição atual de prostituta e precisava sentir como
eles as tratavam.
Se agisse assim com os brasileiros, estaria me prostituindo, e não colaborando para
que se pusesse termo à prostituição no Brasil.
E ainda quanto aos estrangeiros, eu os conhecia em comportamento e sexualidade e,
além de com eles me divertir, disso tudo monetariamente usufruía.
Uma agulhada de tristeza é o que sinto quando estritamente por motivos de sexo
encontro aqui expoentes da intelectualidade pernambucana.
É como se nesses instantes, editores, poetas, educadores, jornalistas e psiquiatras
esquecessem de vez as suas finalidades aqui na terra!
Viajo através do meu expresso mental e, no caminho, encontro alguns humanos tão
insanos que repudio a minha condição de ainda ser isso!
As vinte e três horas de mais um dia já se foram, isto quer dizer que os soldados da
polícia já foram recolhidos junto aos cães que as suas vidas guardam. De agora em
diante, até que o dia amanheça, os malandros fichados ou não recebem a promoção
livre de galões ou fardamento, tornando se assim os verdadeiros guardas do
meretrício!
Um certo pária passa por mim com um tabuleiro de damas e eu associo o jogo ao
lugar, devido ao vaivém sacrificado que as mulheres empreendem na travessia do
tabuleiro vital dessa amarga existência; algumas não demoram a ser comidas no
caminho e para que outras recebam a coroação, precisam mesmo saber relacionar
dinheiro e bebida, suportes principais das suas verdadeiras ações.
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A Difícil Vida Fácil
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Enquanto bebíamos hoje, Maurício me falava sobre Lady Júlia, um raro ser humano
que não conheci, e de tudo o quanto com ela ele aprendeu aqui. Perto de nós, um dos
garotos do amendoim dormiu o seu sono infantil abraçado ao travesseiro por ele
mesmo improvisado. Era o depósito de plástico do seu amendoim.
Ao contrário do que muita gente pensa, as prostitutas, na maioria, se vestem de
maneira mais decente que certas mulheres que vivem do outro lado da ponte e até
mesmo altas posições sociais ocupem.
O idioma mais bem falado aqui é o grego. Em inglês, a cantilena é sempre a mesma:
“Do you have money? Wanna to fuck? Cigarrette? I love you!” Em compensação,
algumas mulheres falam muito bem a língua dos filipinos.
Os travestis nunca são por elas insultados mas considerados, e o seu local de
domínio são sempre as esquinas!
Há seis anos, Ana trabalha só para gregos e tanto fala como escreve também.
Embriagou-se hoje como nunca antes vi.
Chegou até onde estava e disse-me que na “Casa de Atenas estava proibida de
entrar.
Ana é bonita, tem 48 anos de idade, mas não aparenta. Um brasileiro bem humorado
passa por nós e bate de leve no traseiro de Ana. Ela reclama: “Ei, cara, não mexe
aqui não que isso tá alugado a grego. Não tem nenhum aqui agora, mas no mês que
vem o navio deles vai voltar! Hão de querer encontrar tudo como deixaram, senão,
ao invés de dinheiro, vou ganhar deles a palavra adeus!”
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Amara Lúcia
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IX
A INFANCIA NA ZONA
Lamentável mesmo é ver de perto o grande número de crianças que todas as noites
trabalham, imploram e ganham e, à medida que crescem na zona, na zona mesmo se
perdem. Desde muito cedo, ingressam na marginalidade, muitas vezes até induzidas
pelos próprios pais que ao mundo os trouxeram; enquanto isso, esporadicamente as
campanhas continuam em benefício do menor abandonado. As autoridades locais
talvez não avaliem a gravidade do problema.
No tablado da cadeira de engraxate, duas crianças se encolheram uma com o auxílio
da outra para deitar, abrigar-se da chuva e dos maldosos que pudessem incomodar o
seu sono.
Observei o cuidado com que uma outra criança colocou sobre os amigos encolhidos
o tablado de madeira, de forma que as abrigasse a fim de que ninguém pudesse
machucá-las. Como era mínimo o número de pessoas que assistiram à tal cena, logo
depois, sem nada daquilo suspeitarem, três prostitutas cansadas de tentar ganhar até
aquela hora e nada encontrar, sentaram se sobre o desamparado e precioso sono
infantil!
A poucos metros de distância, um homem vende confeitos, doces e bugigangas.
Arma dentro do seu tabuleiro a cama apertada do bonito e mal arrumado casal de
filhos que a mulher a quem amara um dia lhe presenteara. A menina tem quatro
anos e o menino três. Dormiram felizes após o pai beijá-los e com cuidado tê-los
coberto.
Em pé eu bebia cerveja na garrafa, e perto do velho pipoqueiro, silenciosa, dali eu
observava. Diante de um grupo de cinco argentinos, algo me chamou a atenção: uma
mulher com duas crianças maltrapilhas. A menina sem dúvida alguma sentia frio e
as lágrimas ameaçavam cair dos seus pequeninos e inocentes olhos, mas foram
impedidas com o impacto do empurrão que lhe dera a mãe dizendo: “Vai logo,
menina, deixa de ser lesa!”
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A garota esbarrou num dos argentinos que nada daquilo compreendiam e ela pediu
com voz tênue numa mistura de inglês e italiano:
– Money pra bambino (apontando para o irmão menor). Em seguida, a mãe repetiu a
frase como num eco apontando também para o menino. Não resisti e me aproximei
da mulher indagando:
– Quantos anos ela tem?
– Seis, respondeu a mulher.
Ela está com frio e acho que com sono também, disse.
– Tá sim, mas ainda não tá na hora de dormir. A senhora não imagina a minha luta,
como é danada. Tenho mais dois em casa e trabalho muito para ganhar. Agora
mesmo, ao invés de dormir, estou perambulando. Hoje vim só com esses dois.
Afastei me da mulher e, naquele momento, senti até onde vai a ira do ser humano,
quando desejei acordar as autoridades de menores para que elas pudessem ver bem
de perto aquilo tudo ao mesmo tempo em que desejei ter nas mãos galhos de urtiga
para dar uma surra na mulher. Mas como tem mulheres que não merecem a
maternidade, aquela era uma delas e a desgraçada agora ria enquanto a filha
pequena, tremendo de frio, era obrigada a abordar os homens pedindo dinheiro.
Perguntei as horas a alguém. Já passava das duas e meia da madrugada.
“Pelado” é um garoto desnutrido, de 12 anos, fala grego com habilidade e
humildemente não sabe o quanto é inteligente!
Mas quem é que na zona da Rio Branco não conhece “Pelado”, o menino galeguinho
do amendoim? Os gregos adoram no a tal ponto que já o puseram no navio para
levá-lo à Grécia. Segundo eles, “Pelado” deveria estar lá, mas quando isso
aconteceu, a mãe de “Pelado” apavorada correu ao porto e o retirou do navio.
Também pudera, as mulheres disseram me que ele sustenta a ela e aos irmãos
menores, além de um gigolô.
A realidade daquele reduto é a seguinte:
1) A infância, 20 a 25 crianças, mantém boas relações de amizade com ladrões,
toxicômanos e malandros.
2)Estas crianças mantém a casa onde se encontram os irmãos, e mãe e, em alguns
casos, até gigolôs.
3) Estas mesmas crianças estão já incluídas como integrantes assíduos do
submundo.
4) E sem apoio moral e psicológico, quase tudo elas já sabem sobre aquela realidade
chocante, ao mesmo tempo em que desconhecem bastante sobre tudo o que
necessariamente nas suas idades deveriam conhecer.
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III) Os iraquianos são maravilhosos sujeitos religiosos, alguns encaram o ato sexual
como se fosse um ritual. Não há reclamação contra eles. Alguns sobressaem na
maneira de pagar. Sentem que perguntar à mulher quanto ela custa na cama é um
modo rude de as tratar. Entregam a carteira e mandam retirar dela o dinheiro que
aquela noite a mulher precisa ganhar. Como se vê, realmente os iraquianos nada
deixam a desejar, a começar pela fidelidade. Meses depois eles voltam e,
sorridentes, as mulheres os recebem. Eles sempre as reconhecem com alegria, e
renovam com as mesmas parceiras os prazeres do sexo. Antes disso, jamais se
esquecem de as presentear. Fato que me surpreendeu também diante dos iraquianos:
quando noivos ficam em seu país, guardam se sexualmente para as noivas que lá os
esperam. Contudo, enquanto terminam os seus contratos de trabalho aqui, no Brasil,
em navios petroleiros e aqui retornam a encontrar a prostituta com que ficavam em
viagens anteriores, tornam se unicamente amigos, alimentando as e presenteando as,
mas evitando relações sexuais com qualquer delas.
IV) Os filipinos, suecos, dinamarqueses, noruegueses, italianos e japoneses
dispensam comentários de tão bons que são, sem esquecer de anotar nessa
seqüência, segundo elas, os chineses e coreanos. Com esses nunca fiquei. Fazem
parte dos homens ideais, dos michês, é claro.
V) Os gregos são os favoritos das veteranas e a atração glamourosa das novatas.
Estes senhores da euforia, em suas danças bonitas, transportam nos a um mundo
deveras emocionante, não digo todos, refiro me à maioria. Eles, como a maioria dos
brasileiros, são obcecados por sexo anal.
VI) Os americanos: para esses a palavra de ordem na zona é dançar; liberais
sexualmente e bagunceiros por natureza, como nunca seriam os alemães. Quando
um norte-americano gosta de uma mulher, além de a presentear, dá lhe dinheiro
suficiente para que possa viajar, garantindo lhe assim que, enquanto estiver no
Brasil, com ele irá ficar e no próximo porto realizará novo encontro.
VII) Os chilenos, mexicanos, peruanos, argentinos, irlandeses, africanos e uruguaios
trazem consigo o toque de romantismo e são ao todo mais conformados com o que
na zona possa acontecer.
VIII) Os ingleses são tão calados quanto atenciosos.
IX) Os portugueses são muito bons pagadores e também ótimo tratamento dedicam
àquelas que os acompanham, mas isto até que se tornem radicados no Brasil.
É óbvio que existem exceções que não correspondem às características acima ditas
em matéria de coerência e legitimidade.
E voltando à questão titular deste texto, vale salientar: ao contrário de tudo, entre
dez brasileiros que procuram as “operárias do sexo” em busca dos prazeres carnais,
apenas três as tratam de maneira distinta e calorosa, chegando até com elas a
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XI
IMPRESSÕES
O único receio que sinto na zona é diante dos chineses. Quando eles estão a sorrir
pra mim não consigo desvendar o que dizem, se lhes agrado ou se sou mais uma
entre tantas filhas das putas que aqui vegetam.
Lamento profundamente que este receio me impeça de aproximar me e analisar os
seus comportamentos na cama.
Meu corpo e alma empenham se neste trabalho. Não posso titubear um instante
sequer. Sei que estou arriscando meu nome, minha posição de mãe, enfim toda a
minha reputação, mas faço questão de frisar que não fui convocada por órgão algum
para registrar esses acontecimentos. Tenho apenas a certeza de que estou cumprindo
um dever para com a arte a que me dedico, e que me renova as forças para ir adiante.
Como escritora, poetisa e artista plástica que sou, deixo aqui as minhas impressões
sobre o ambiente:
A zona é a seqüela maior do capitalismo: portanto, vasto campo de materiais
cruciais ao ser. Todas as páginas brancas do mundo são insuficientes para realizar a
história dela. A zona é também um universo de elementos dum poema cujas estrofes
são tão profundas quanto incalculáveis, um quadro repleto de cortes sangrando olhos
e corações verdadeiramente humanos.
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XII
PESQUISA VIVIDA
Ninguém pode afirmar ser a cozinha baiana mesmo boa se dela só tiver comido
vatapá. É preciso ter provado por mais de uma vez, de diversos cozinheiros, o
caruru, a panqueca de siri mole, a muqueca de peixe ou marisco, os bolinhos de
estudante e outros tantos pratos típicos que a Bahia tem.
Da mesma maneira, mulher alguma pode afirmar que tal raça é mais sexy do que
outra, se só com um homem dessa raça ela deitar. Para is estrangeiros que pouco
aparecem, tal afirmação só deve ser feita se pelo menos com 10 ou 20 ela se deitar.
Porém, quando a freqüência é maior também se tem mais base para se afirmar qual é
mais sexy.
Pela ordem de seqüência, pois, os homens mais sexy que na cama da zona conheci
são:
1) suíços e iugoslavos; 2) suecos e noruegueses; 3) dinamarqueses e japoneses; 4)
uruguaios e chilenos; 5) alemães e franceses; 6) brasileiros e gregos; 7) italianos e
iraquianos; 8) indianos e mexicanos; 9) filipinos e ingleses; 10) americanos e
argentinos.
Adeptos do sexo anal: 1) gregos; 2) brasileiros; 3) mexicanos; 4) chilenos; 5)
franceses.
Adeptos do sexo oral: 1) japoneses; 2) norte-americanos; 3) suíços; 4) franceses; 5)
uruguaios; 6) brasileiros; 7) iugoslavos; 8) chilenos; 9) alemães; 10) mexicanos; 11)
argentinos; 12) irlandeses.
Associação da masturbação com o ato sexual: 1) filipinos; 2) suíços; 3) brasileiros;
4) franceses; 5) chilenos; 6) argentinos; 7) mexicanos.
Colaboração em prol do orgasmo feminino: 1) brasileiros; 2) chilenos; 3)
noruegueses; 4) suíços; 5) venezuelanos; 6) dinamarqueses; 7) argentinos; 8)
franceses; 9) suecos; 10) uruguaios; 11) alemães; 12) africanos.
Dão muita ternura: 1) o negro norte-americano; 2) iraquianos; 3) japoneses; 4)
filipinos; 5) mexicanos; 6) chilenos; 7) brasileiros; 8) suíços; 9) venezuelanos; 10)
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Amara Lúcia
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portugueses; 11) iugoslavos; 12) franceses; 13) alemães; 14) suecos; 15) porto-
riquenhos; 16) africanos; 17) gregos; 18) italianos; 19) uruguaios.
Os que mais gastam com mulheres dentro e fora da zona: 1) iraquianos; 2) ingleses;
3) suíços; 4) alemães; 5) filipinos; 6) franceses; 7) gregos; 8) norte-americanos; 9)
japoneses; 10) iugoslavos; 11) italianos.
Os que mais gastam em bebidas na zona: 1) gregos; 2) filipinos; 3) chineses; 4)
coreanos; 5) norte-americanos; 6) alemães; 7) iraquianos; 8) venezuelanos.
Os mais econômicos: 1) paquistaneses; 2) indianos; 3) bangladenses; 4) brasileiros;
5) chilenos; 6) argentinos; 7) mexicanos.
E falando por classes sociais, os michês brasileiros normais: 1) classe C. 2) classe B.
3) classe A.
As aberrações sexuais realizadas por brasileiros no reduto do meretrício em alto
índice são encabeçadas pela classe alta. Na maioria os autores são ainda rapazes, daí
as prostitutas terem tanto medo dos boys.
Os michês mais altos são aqueles nos quais a prostituta mais se desgasta física e
emocionalmente (salvo as exceções).
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XIII
BET
Cada vez que eu a via, ficava em silêncio a perguntar: Que pais adotariam aquela
menina? Que tipo de carinho precisaria um homem usar a fim de prender aquela
mulher?
Tão endiabrada quanto inocente e, às vezes, parecia até assombração. Fazendo se
atrevida, fixava os olhos num homem ficando não por muito tempo a querê-lo.
Muitas vezes, sem que ela notasse, eu ouvia as suas idéias que para muitos que não a
entendiam pareciam fantasiosas. As perguntas a seu respeito assaltavam me a mente:
Que pais adotariam aquela menina? Que rumo tomaria algum dia aquela mulher?
Tão escondida como ouro em mina e tão inspirada quanto amor alegre ou sofrido! E
ela continuava a sua caminhada certa de que já quase tudo sabia, debochando
daqueles que a viam como nada. Qual poeta versaria o jeito daquela menina? Qual
pintor captaria o seu ser? Afinal quem na verdade amaria mesmo aquela mulher?
E se ela soubesse disso tudo, talvez ficasse calada ou talvez me respondesse assim:
Lerei na praia os versos do poeta, presentearei ao pintor com mil temas para que em
sua tela livre ele me possa retratar; levarei os dois comigo a um lugar santo onde
ouviremos o canto dos pássaros e darei ao povo um sorriso ao invés de ameaça.
Assim era Bet. Criatura estranha que se destacava tanto perante as outras meretrizes.
Bet tinha um homem que a amava muito e, apesar de ajudá-la financeiramente,
permitia que ela faturasse. Enquanto isso ficava a fazer planos quando juntos
morassem numa casa própria.
E Bet às vezes me confundia quando eu acreditava nela dizendo me: “Tenho muita
vontade de sair daqui, mas ainda assim me conformo, porque sinto que esse dia
ainda não chegou!”
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Ela era tão simples quanto teimosa, experiência vivida e frustração personificada,
falava direito quando boa e corretamente quando embriagada.
Certa vez engravidou e ficou muito contente, até que a vi sangrando e com dores
porque havia praticado o aborto. Naquele momento, ela chorou e disse-me que
queria muito ter um filho, mas que não podia incluí-lo numa raça podre como a dela,
pois tinha certeza de que o que para ele ou ela estava reservado era algo mais do que
ela havia passado até então e, como não podia evitar que a criança sofresse, preferia
sofrer perdendo-a.
Por mais que ela me contasse dos seus planos de sair dali, eu me sentia mais
responsável pela causa que poria termo à prostituição. Vivia ali de uma maneira
sofrida mas vivia. Lá fora não, seria difícil ela sozinha adaptar-se a uma vida
tranqüila e, por isso, eu me calava, mas ficava lembrando que sozinha ia ser difícil,
porém, com outras do mesmo nível, não!
O homem dela era desses tipos, amigo pra valer, mas de paciência limitada. Vezes
por outra, batiam se horrivelmente. E eu me perguntava onde iria parar o juízo
daquela mulher doente, quando ele batia a cabeça dela na parede por tê-lo
provocado.
Batiam-se, separavam-se dois ou três dias e era ele quem sempre voltava aos braços
dela carregado de amor, para se envolver novamente na ternura de sua companhia.
Mas o que posso dizer de Bet? Quando lúcida era gente à beça ou translúcida
aparência de ser? Bêbada, a ouvíamos filosofar, tentando consertar a loucura
daquela vida.
Bet carente de afeto, amor, apoio e álcool e que não precisava mais estudar!
Bet já sabia muito e, no viver dos seus dias, havia se formado cedo, cedo demais.
Bet no cabaré da Floriano Peixoto quebrando as garrafas e caindo na frente da
rapaziada do banco!
Bet calminha na Avenida Rio Branco, perfeitamente cônscia da carga pesada do
lugar!
Bet fazendo-se puta, os homens cantando, fodendo, fodendo-se, faturando e catando
o auge da vida, o clímax do meio e o orgasmo do ato!
Bet chorando humanamente sensível como a vi, chorando o roubo da antiga foto do
pai!
Bet fazendo-se engraçada em sua afirmação de teimosia personificada, dizendo:
“Bebo porque gosto de beber!” Já bêbada de cair, dizia ainda: “Eu não tô bêbada
não!”
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Bet lesando os outros e por eles sendo lesada; já não molhando de lágrimas felizes o
seu lindo lenço de organdi, oferecido por aquele homem autoritário que lhe ensinara
a leiloar o corpo e emprestar a alma a quem lhe desse algo ou pagasse mais.
Bet começando um diário e só a mim mostrando os trechos dele!
Bet acordando risonha, mangando dela, da vida chata em si, de todos os homens que
a conheceram, de você que não a conheceu e até de mim que escrevo agora sobre
ela!
E Bet viva, sendo apenas mais um dos navegadores daquele Rio Branco poluído por
mortais!
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XIV
A euforia era enorme. Dir-se-ia que as três Marinhas de Guerra da “Unitas” tinham
atracado no porto do Recife em louvor às mil Marias que lá se encontravam e que,
há muito ansiosas, aguardavam aquela data!
Eram tantos os homens que aquela força tarefa trouxera que parecia terem sido, em
plena zona da Rio Branco, derramados propositalmente em benefício das mulheres
necessitadas de lá.
Os marinheiros venezuelanos eram bem mais tímidos do que os norte-americanos e
brasileiros que nas mesmas águas tinham navegado!
Os dólares andavam de mão em mão. Durante aqueles três dias, só se viam as
cobiçadas cédulas verdes. Ao contrário dos alemães, os norte-americanos eram
exibicionistas de primeira classe.
Salvo poucas exceções, novos encontros tinham sido marcados por eles no próximo
porto que seria o de Salvador.
Os presentes variavam desde cigarros, perfumes, talcos, shampoos, sabonetes e
cordões de ouro. Mas sinceramente não me lembro de alguém ter presenteado uma
mulher com uma flor.
Para Elaine, foi bom porque o acaso favoreceu a, dando lhe como mais alto michê
norte-americano o médico de um dos navios da esquadra “Unitas” . Nessa época o
filho menor dela estava com uma tosse que a tinha feito gastar todo o seu
faturamento em medicamentos e o menino de modo nenhum obtivera resultado
positivo, mas os remédios que para o garoto o médico norte-americano presenteara
surtiram logo efeito.
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XV
ANALISE DE LOCAIS
– Pois tenha cuidado, aqui tem muito isso, mulher que fizer amizade já sabe é pra
isso, portanto, é bom evitar.
– Tá, ok., obrigada por me avisar.
– Você puxa fumo?
– Não.
– Então olha, estás vendo aquela placa ali, eu moro lá, você toma esse dinheiro que
dá pra sua diária de hoje (me entregando Cr$ 3.500,00) e_ à noite eu estou no
Flórida.
– Está certo, mas como é o seu nome?
– Márcia. Ah, sim! Ia me esquecendo de dizer: toma cuidado com a polícia, pois
policial só quer meter de graça, ele chama uma de nós e se a gente não aceita,
mesmo que a gente não pegue fumo, daí a alguns instantes somos autuadas em
flagrante com a peste da maconha no bolso, para logo ir passar a noite no xadrez.
Portanto já tô te dizendo, quando um polícia se aproximar de você, tome cuidado
com os bolsos da calça e vá se saindo.
– Tudo bem, mas tome o dinheiro que eu tenho aqui ainda:
– Nada disso, fique com ele que você pode precisar, e não tem pressa pra me
devolver.
– Ok. Até a noite.
Como se vê, por incrível que pareça, existe entre as meretrizes alguns resquícios de
lealdade!
A zona de Fortaleza eu não conheci, mas elas afirmam não ser boa devido ao alto
índice de lésbicas.
A zona de São Paulo não é atração para nenhuma mulher daqui, pois a barra é
“pesada”, sendo freqüentes os homicídios.
A maioria conhece a zona de Santos e diz ser a melhor para se ganhar dinheiro. No
entanto, tem se de andar bem vestido e cuidar da aparência. Acrescente se também
que a agressividade lá é bem maior do que aqui, no Recife.
Se não me refiro aos outros pontos de meretrício, devo isso à raridade de
informações que de algumas recebi, pois quase todas são agressivas. E em diálogo
nem é bom falar.
Talvez, quem sabe, algum pesquisador dê continuidade a este trabalho que
empreendi depois de ver e experienciar na realidade brutal.
Pra completar essa pequena análise de locais, devo dizer que na zona também existe
o “intercâmbio meretricial”, ou seja, enquanto as meretrizes de Maceió vêm para cá,
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XVI
LADRÕES E OPINIÕES
A maioria dos ladrões que atuam na zona é contra o assassinato pós-roubo! Quase
todos os ladrões da Rio Branco me chamaram de índia, devido aos meus cabelos, e
outros me chamavam de Mãezinha, pois muitas vezes eu era vista por eles quando
me fazia acompanhar dos meus filhos, obviamente, do outro lado da ponte.
Hoje, um deles me contou uma história um tanto diferente quanto ao rumo de vida
que leva.
– Sabe, índia, hoje não consegui comer nada, disse Alfredo.
– Por quê? Dinheiro faltando? perguntei.
– Antes fosse isso! Roubei um cara ontem à noite ali na ponte. Dei uma pesada tão
forte nele que depois ouvi um estalo. Quando olhei pra trás, já com a carteira do
homem no bolso, notei que a perna dele havia caído e aquilo foi demais para mim.
Não agüentei ver o cara se esforçando pra botar a canela dele no lugar e voltei pra
ajudar, mas o danado é que quando fui chegando perto dele, me lembrei que de
canela doente não entendia nada quanto mais de canela de pau e aí foi que eu senti
um negócio ruim cá dentro. Eu pensei, sou mais puto que as putas. Elas quando se
deitam com um aleijado, ajudam o cara a tirar a roupa e tudo fazem pra não bater na
canela do cara. Sou pior que todas porque roubei um aleijado que nem pode se
defender! Juro a você, índia, eu tava me sentindo puto mesmo, e para aliviar, resolvi
entregar a carteira ao cara.
– E ao entregar a carteira, ele ficou muito agradecido, não?
– Que nada! o sujeito além de aleijado era daqueles que tudo passa na cara.
– Como assim?
– Escuta mesmo, índia, o que foi que o cara disse, quando pegou a carteira de volta,
depois de eu ter pedido um monte de desculpas a ele.
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XVII
Precisamente 13 é o número dos dias que completa hoje a crise econômica da zona.
Quem não gosta de se deitar com brasileiro tem como único remédio para o seu mal
aproximar-se dele, pedir lhe um cigarro, um copo de cerveja e às vezes até
alimentação.
Os ladrões também estão queixosos, pois nem carteira de gringo os seus olhos
alcançaram mais. Para completar a calamidade, a cerveja hoje subiu 10% no preço,
isto quer dizer que também no bar São Francisco o movimento fracassou!
Os motoristas de táxi deram mais tempo aos seus cochilos noturnos por não terem
sequer um casal para levar.
Algumas mulheres se contentam em amarem outras. Isto não se deve só ao receio
que sentem de correr o risco de mais uma dispendiosa gravidez!
No Órion, Chanel e Black-tie, os garçons estão sentados. Em Adilias, as mulheres
conversam entre si. Das bocas dos que estão no bar São Francisco a palavra que sai
é uma só: “merda! “
Na “casa de Atenas”, os pratos pararam no lugar, pois também não há gregos para
quebrar louça em meio à dança.
Se continuar assim por mais 10 dias, a zona vai mesmo à falência e as prostitutas
lisas, sem dúvida alguma, serão levadas à demência.
As partes de galinha assada e de churrascos que o menino vende junto ao São
Francisco ficaram estragadas, o prejuízo é grande. Nem o pipoqueiro consegue
vender nada!
Chega um táxi e dele descem três chineses. As mulheres se aproximam deles, com
toda educação. Daí a pouco, só se vê balbúrdia e estilhaços de copos e garrafas
quebradas.
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XVIII
O DESEMBARCADO
Por ter ficado desembarcado, a primeira providência que o sujeito toma é ir à Cia. do
seu navio. A Cia. informa lhe com precisão a data em que o navio chegará noutro
país e a única coisa que pode fornecer lhe é a passagem com data marcada. Isto quer
dizer que até o embarque, ele terá que se virar por aqui. Diante desta situação, ele
segue uma estratégia só sua em busca da mina. A mina é a prostituta que tudo possa
lhe garantir.
Um tanto dramática é a situação do desembarcado, pois enquanto ele não empreende
a conquista, passa dias de fome e noites dormidas sobre calçadas.
As prostitutas mais espertas evitam no, para não se tornarem vítimas da sua tática. A
fim de conseguir o seu intento, ele usa o seguinte processo:
1) Observa as mulheres, catando aquelas que não tenham homem nem gigolô.
2) Ao encontrar uma mulher livre de tais compromissos, porém disposta a gastar, ele
aproxima se, convida a para beber e fazendo na mesa uma despesa mínima, paga a
conta com alguns trocados que lhe restam na carteira, mas em momento algum desse
encontro ele diz que está desembarcado.
3) Usa de argumentos amorosos para com a mulher, faz tudo para agradá-la, até que
a mesma concorde em dormir com ele.
4) Ao amanhecer, no quarto, ele alega que o seu pagamento de trabalho no navio
ainda não saiu, e, em meio a carícias, promete à mulher que haverá de encontrá-la à
noite e tudo ficará melhor entre os dois.
5) Faz questão de provar que não é ciumento, inclusive, pede-lhe que de maneira
alguma deixe de faturar com outros enquanto o espera.
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6) Ao amanhecer do segundo dia com a mulher, ele diz que esqueceu a carteira no
navio.
7) No terceiro dia, ele estabelece um cerco de carinhos e lamentos, contando que
está desembarcado, não conhece ninguém que possa ajudá-lo, a não ser ela, e que
todos os seus pertences seguiram no navio.
8) Promete que se ela lhe der roupa, alimentação e moradia, pertencerá somente a
ela, até o dia da sua partida e não permitirá sequer bate papo com outras mulheres.
Só depois de estabelecido o pacto entre os dois, ele pára nos arredores para
conversar com amigos que se encontram na mesma situação.
O relacionamento do desembarcado com a prostituta que o acolhe torna se tão sólido
que quando o mesmo consegue embarcar, ela lhe presenteia dinheiro na esperança
de receber cartas suas.
A medida que as cartas chegam, a choradeira dele vai aumentando nas entrelinhas, e
é aí então que ele aplica o “golpe da fronteira” pedindo a ela que lhe envie dinheiro
para poder voltar aos seus braços, pois está ganhando pouco e não agüenta mais a
saudade. A partir deste pedido, já caída de amores pelo indivíduo, a prostituta passa
a ter mais uma preocupação com o seu faturamento, isto é, trocar os cruzeiros por
dólares, enviá-los com urgência para o sujeito, até cansar-se de esperar a sua volta.
Diante disso tudo, não podemos estranhar por que todo desembarcado faz questão de
mencionar: “As melhores putas do mundo são as brasileiras”.
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XIX
Os russos chegaram, mas não saíram do navio, tampouco lá alguém entrou. Soube
que eles estavam distribuindo cigarros, jogando as carteiras às mulheres que lá iam.
Uma delas me perguntou se eu queria ir com ela. Sem pestanejar, aceitei o convite e
fui. O horário era entre duas e três
da madrugada. Mas, chegando lá, vi como era feita a distribuição dos cigarros.
As mulheres desciam os beirais do cais e lá faziam strip-tease, completo ou não.
Terminado o ato, os cigarros eram lançados a elas. Mas cismaram comigo, que um
tanto isolada a tudo assistia, e pediram que fizesse o mesmo.
Aquela altura, não adiantava dizer que nunca fizera strip-tease, ademais na beira do
cais. Elas insistiam e apontavam para os russos que também pra mim acenavam.
Sinceramente, não pensava nos cigarros, pois em casa eu ainda tinha um certo
estoque de cigarros estrangeiros que ganhara, sem ter sido necessário fazer strip-
tease, mas eu pensava na necessidade de continuar benquista com elas em função do
meu trabalho que ainda estava por terminar.
Creio que devo ter ficado corada pela primeira vez em minha vida, pois senti as
faces arderem quando comecei a tirar as roupas e me espantei, quando diante das 12
carteiras de cigarros que os russos tinham jogado para mim, um curioso aproximou-
se tentando pegar uma das carteiras. Gritaram logo as mulheres e os russos para o tal
homem. E aí uma delas se aproximou acompanhada das outras e avançaram para o
homem dizendo: “Não pega em nada daí! Quem tirou as roupas foi ela, o cigarro é
todinho dela, e ai de você se roubar uma dessas carteiras!”
O fato mais espantoso deu se comigo quando cheguei em casa. Os cigarros russos,
apesar de variados, eram mesmo os piores que em minha vida de fumante já
experimentei.
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Se algum dia você for à Rússia, faça nos um favor, leve como souvenir nosso um
pacote de Hollywood ou até mesmo Continental, para que eles saibam o que é
cigarro.
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XX
O ALEMÃO HEINZ
A sirena do Órion toca, anunciando a sua abertura. São 21 horas. O toque da sirena
parece me o apito da fábrica, a chamar as operárias do sexo comercializado,
indicando lhes que o expediente já começou. Mas se aqui soar o toque da Alvorada,
duvido que alguém consiga despertar!
Há uma porção de chilenos desembarcados e, como algumas mulheres sabem que
eles estão de bolsos lisos, não se aproximam deles.
Os chineses foram embora ontem. Os verdadeiros homens aqui nunca pisaram ou
daqui se foram também.
Em mim algo ainda permanece, essa desgraça ou ventura, nem sei, de continuar a
escrever. Às vezes tenho vontade de conseguir um molotov e fazê-lo explodir aqui a
fim de limpar essa área da minha cidade, porém, lembro me de que a violência
jamais será a solução.
A sujeira está entranhada não só nas ruas, como também nas almas das pessoas que
por aqui passam. Tenho a sensação, às vezes, de estar agindo como uma ladra,
roubando de certa forma o lugar de alguém aqui!
Conheci ontem um homem egoísta e presunçoso, o alemão Heinz. Seria aquela
criatura a peça indispensável ao tabuleiro do xadrez econômico do seu país!
Usava ele, sempre em suas conversações, a palavra “princípio”. Fazia mesmo
questão de frisá-la onde quer que estivesse. No entanto, o seu princípio básico era
unicamente o dinheiro, a mola necessária de qualquer economia.
O expert das leis da oferta e da procura gabava-se de ter estudado durante dez anos a
ciência da economia e agora mais que antes sentia se apto a aplicar tudo o que
aprendera num país subdesenvolvido como é o nosso.
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XXI
PERCENTUAIS
Se em termos de percentuais eu fosse contar, diria que 40% das prostitutas, refiro me
às da zona da Rio Branco, cuidam de sua saúde por conta própria. Já em cabarés
espalhados pelo centro da cidade, a maioria só se cuida quando se sentem já
ameaçadas.
A maioria é adepta de Umbanda, e alguns dos rituais relacionados a despachos de
macumba são praticados no reduto do meretrício. As outras apenas acreditam em
Deus; embora não sejam praticantes, no entanto, dizem se católicas romanas.
Uma minoria tem gigolô e outra tem “homem” . É comum se ouvir na zona a
expressão “meu homem”. É aquele que ajuda a mulher financeiramente, lhe permite
o faturamento com outros, sexual e ternamente só ele tem a posse dela!
50% têm responsabilidades como família ou filhos para sustentar.
90% usam maquiagem e, em matéria de vestuário, as calças compridas ainda são por
elas preferidas!
40% fazem questão de só faturar se for ali mesmo, devido ao medo que sentem dos
casos acontecidos em apartamentos ou a caminho deles.
50% não fazem questão de acompanhar os homens a motéis e 10% vão para
qualquer lugar.
50% são viciadas em tóxicos, 30% já experimentaram maconha, mas o vício mesmo
não adotaram e 20% não se interessam por fumo, droga ou qualquer tipo de tóxico.
10% são alcoólatras.
Quanto aos homens, os motivos que os trazem aqui são diversos: beber, observar e
conhecer. Muitos fogem da rotina sexual. São os bem casados, mas que se dizem por
demais cansados da posição “papai e mamãe” mantida em relações sexuais com as
suas esposas.
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Em muitos desses casos, eles adoram a esposa que os faz sentir esse problema. Para
evitar contendas no lar, preferem escapar para a zona.
E quanto às esposas, em virtude da educação religiosa recebida, privam o marido e
ao mesmo tempo são tolhidas de pisar os terrenos dos verdadeiros prazeres sexuais.
Dessa forma lamentavelmente julgo que a dona de casa também contribui para a
prostituição!
Os rapazes que desconhecem os prazeres do sexo a dois, quando aqui chegam
guiados por amigos, parentes ou até mesmo sozinhos, são tão ridicularizados quanto
elas aduladas por eles. Se os pais presenciassem tal .fato, aí sim, haveriam de
reconhecer quão necessária é a educação sexual, cuja responsabilidade cabe
totalmente a eles próprios.
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XXII
PREVIDÊNCIA ORGANIZADA
E por que não descobrir através de pesquisas comprovadas as aptidões das mulheres
da zona e, diante dessas aptidões, abrir, mas abrir mesmo, as portas do mercado de
trabalho, dando lhes emprego?
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E para aquelas que não têm necessidades financeiras e aqui vêm todas as noites, por
que os grupos de psiquiatras e psicólogos de todo o Estado não aplicam tratamento
gratuito?
Essas mulheres aparentam saúde, mas na verdade são doentes psíquicas.
Ora, se para esses “doutores da mente” é tão fácil aplicar ou recomendar tratamento
de eletro-choque, por que é difícil aplicar um tratamento de amor onde apenas se dá
ternura?
Se para esse pessoal é fácil mandar o IBOPE colher dados à porta das casas da
cidade grande, a fim de saber e divulgar que canal da televisão é preferido, em que
candidato a maioria vai votar, que melhorias o prefeito realizou, se é fácil programar
e ver realizadas pesquisas de tal quilate que visam a informar o povo, sem benefício
algum para esse povo, por que não se fazem pesquisas que informem sobre os heróis
do amendoim, que não só trabalham na zona, mas em todos os cantos dessa
“Veneza” , que tem o nome bonito de “Brasileira”?
Garanto que o povo, apesar de tímido, é inteligente (afinal vale salientar que muito
antes dos norte-americanos lançarem o Skylab, o brasileiro inventou o avião!). Esse
povo pode ajudar o Juizado de Menores a encontrar a solução que ainda não
encontrou, para que os heróis do amendoim estejam à noite dormindo aquecidos
pelo carinho dos pais ou das pessoas, que em nome dos menores ocupam cargos
públicos.
Os heróis do amendoim, na maioria, estudam e as suas ambições de descanso variam
desde uma carroça de pipocas a um tabuleiro de confeitos que ofereça maior certeza
de lucro. Aí estão por necessidade de sobrevivência ou para atender aos desejos de
suas abomináveis famílias!
Os menores trabalhadores necessitam de apoio das autoridades competentes! Por
que não criar um órgão de orientação e assistência aos menores trabalhadores? Creio
que vale até lembrar que o desamor não é o único responsável pelo crime do
solitário!
O desamor vai tomando conta de tudo e fazendo os sérios perder tempo, sim, porque
é perder tempo colocar policiais nas portas de escola, para impedir nelas a entrada
de tóxicos. Afinal de que adianta tentar vigilância, se em casa o relacionamento dos
pais é de constante agressão?
As autoridades talvez não saibam que os principais traficantes de tóxicos são figuras
bastante respeitadas, às vezes detentoras de cargos públicos.
As campanhas devem ser feitas conscientizando os pais de que o tóxico é uma fuga
e é isso o que os jovens estão fazendo, tentando fugir de uma realidade, porque
muitas vezes é o desamor dos pais que os expulsa da própria comunidade!
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XXIII
O bordel de Teresa Rocha, por ser o mais próximo da minha casa, permitia-me
travar outros contatos, quando as noites chuvosas me impediam de ir até a Avenida
Rio Branco.
Mas as minhas paradas nos cabarés do centro foram tão poucas que a minha
presença não chamou a atenção.
Enquanto na Avenida eu não tinha amizade com as “colegas”, nas casa de Teresa eu
não só analisava tudo o que me rodeava, mas também conversava amigavelmente,
bebia com todas e escrevia carta para os “machos” quando algumas me pediam. Ao
som de Zé Ramalho, Brevenido Granda e de outros, compunha poemas à meia luz,
no sofá do salão. No outro dia datilografava os à tarde, no salão contíguo, que era
justamente o das mesas.
Das Teresas que lá havia, uma delas não acreditou que na zona do Rio de Janeiro a
barra fosse pesada. Tirou o dinheiro que tinha na caderneta de poupança, comprou
passagem pra ela e o amante, e se mandaram. Gastou tudo lá e voltou sem um
centavo. Como era a mulher que mais faturava na casa de Teresa Rocha, no mesmo
quarto de antes tornou a deitar-se com homens. Mas o faturamento dela hoje foi bem
diferente dos primeiros que havia feito há muito tempo lá. Enquanto sob o chuveiro
ela retirava de si o esperma do cliente, maliciosamente ele a roubava, levando a sua
calça comprida, blusa colante e todo o dinheiro que até aquela hora ela com outros
ganhara e num dos bolsos da calça se encontrava. Só sei que do rosto daquele corpo
alto de morena bonita as lágrimas rolaram às portas do cabaré, enquanto as outras a
ridicularizavam. A acomodação do meretrício em que vivia começou a apunhalá-la.
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É lógico que, durante esse meu tempo de meretrício opcional, não houve apenas
carretéis fáceis de se enrolar, isto é, os homens bons pra faturar.
Todavia, se neste livro não conto episódios de violências contra meu corpo, em
partes que jamais pensei que humano algum buscaria prazer com tanta voracidade, é
porque amo aquilo que se chama “privacidade”. Felizmente a minha ainda só a mim
pertence. E as coisas ruins é bom esquecer.
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XXIV
Na Avenida Rio Branco, era de madrugada quando ele chegou com um amigo.
Aquele homem, de certa forma, me atraiu. E não foi difícil dele me aproximar.
Perguntou-me se o acompanharia à cerveja. Respondi lhe que sim, e daí a instantes
começamos a dialogar.
Apesar de ser ele um sujeito maduro em relação à idade, confesso que foi a sua
intelectualidade que deveras no início de tudo me atraiu.
Conversamos apenas o suficiente e assim demos ênfase à nossa aceitação,
complementando a mais tarde com a nudez e proximidade aconchegante dos nossos
corpos. Nossas almas já se haviam despido no salão.
No quarto, às vésperas da sua saída, ele me disse em latim a expressão usual dos
homens que lidam com as leis: “Alea jacta est”.
Refleti bem no que ele dissera e concordei, pois realmente a sorte está-lançada a
cada momento em que a verdade tem de aparecer.
A cada volta dada pela chave na fechadura de um quarto de bordel, muito embora o
gosto dos beijos dados lá dentro nem sempre trazem à lembrança favos de mel!
A sorte está-lançada.
A cada minuto ou segundo em que os olhares se encontram e antagonicamente
permutam entre si desejo, ódio ou atenção!
A cada mês, semana ou quinzena em que o pagamento entra no bolso do indivíduo
que não sabe usar o dinheiro!
O primeiro tapa do dia no rosto de uma delas, aqui no São Francisco, acaba de ser
dado!
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A prostituta mais nova tem 14 anos de idade. Na zona do Pina a novata conta
somente 11 anos. Os livros afirmam que a prostituição é a profissão mais antiga da
humanidade!
As donas de cabaré são exemplos vivos de autoritarismo ditatorial!
A aquisição de gonococo tornou-se fato comum na zona e o importante é ainda saber
tratar!
A voz do coração, esta sim, deve ser ouvida haja ou não muitas estrelas no céu.
Tânia Lúcia olha o seu relógio e, com um sorriso triste, lembra-me a hora
perguntando me se hoje não vou trabalhar. Respondo lhe que não, pois o trabalho às
noites já terminei. Afinal o que eu tinha pra fazer na Avenida Rio Branco já fiz.
Espero que o resultado não tenha sido somente essas páginas escritas que os seus
olhos acabam de percorrer.
De minha parte, finalmente o recesso que tanto almejei aproxima se. Deveria estar
contente, mas o sério de toda conscientização me alerta continuamente. Esse recesso
de que falo não me traz a paz que esperava nele encontrar; ao contrário, fica a
ironizar até no teclado da máquina que, sob o comando do meu cérebro, lentamente
permite que numa folha de papel em branco alguma estrofe possa ainda cair!
Já não faço versos...! Talvez a verdade seja bem diferente, nunca os fiz. Resta me o
consolo de saber que essa mulher a quem amo chamada Poesia, em algum lugar,
neste momento, continua a ser cantada.
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