Mosaicoprimevo Abilio Pacheco
Mosaicoprimevo Abilio Pacheco
Mosaicoprimevo Abilio Pacheco
Abilio Pacheco, nasceu em Juazeiro (BA), viveu a primeira infncia em Coroat (MA), dos 07 aos 27 morou em Marab, e hoje reside em Belm (PA). Estudou Eletricidade no SENAI-Marab, fez Magistrio na Escola Estadual Dr. Gaspar Vianna, cursou Licenciatura Plena em Letras na UFPA-Marab e Mestrado em Letras Estudos Literrios na UFPA-Belm. Trabalhou como eletricista, foi bibliotecrio por cinco anos e h dez atua no magistrio. H quatro anos leciona no Centro Federal de Educao Tecnolgica do Par, onde atualmente coordena o Curso de Letras. Aos 17 anos obteve o primeiro destaque em certames literrios com o poema Elegia de Maria. Publicou Poemia (poesia) em formato semiartesanal em 1998. Escreve tambm contos e crnicas, e est com uma idia de narrativa longa em gestao.
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Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) Fundao Cultural do Par Tancredo Neves ______________________________________________________
P116m Pacheco, Abilio Mosaico primevo / Abilio Pacheco. Belm: Edio do autor, 2008. 53p. ISBN: 978-85-908905-0-8 1. Poesia Paraense. 2. Literatura Paraense. I. Ttulo.
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ao leitor, leitora,
o tenho certeza se uso comum ou vulgar escrever algo ao leitor nos dias de hoje, mas o fao pois assim desejo, e comeo lembrando o prlogo de Gonalves Dias aos seus Primeiros Cantos, especialmente porque gosto desse vate que de um modo ou de outro me conterrneo, segundo porque senti vrias vezes o desejo de pr no ttulo de meu livro uma espcie de parfrase ao ttulo do primeiro livro dele, s no o fiz porque descobri que outro autor de Marab fez o mesmo, e terceiro porque no prlogo h algo muito importante para os versos deste livro: eles foram compostos em pocas diversas debaixo de cu diverso e sob a influncia de impresses momentneas, por isso no tm unidade de pensamento entre si, alm disso, certo que esses poemas escrevi para mim e que ficarei feliz se algum se agradar deles, mas se no se agradarem... sempre certo que tive o prazer de ter composto. Disse para algumas pessoas prximas que estava reunindo os poemas que escrevi desde os 15 ou 16 anos at hoje com a inteno de publicar alguns deles: os melhores eu iria guardar e os piores seriam publicados. imperioso que eu acrescente exatamente isto: so poemas de qualidade literria oscilante; provvel que algum leitor crtico escolha um ou outro para sua antologia pessoal, mas tambm provvel que esse mesmo leitor se chateie por ler cinco ou dez poemas pssimos. As pessoas que me so mais prximas (e que conhecem um pouco da minha verve crtica) devem se perguntar o porqu de alguns poemas to ruins estarem nesta publicao. A estes e aos leitores crticos respondo que alguns fazem parte de minha histria pessoal como (pretenso) escritor e vou dar apenas um exemplo. O poema Elegia de Maria, alm de ter sido musicalizado pelo amigo Paulo Cardoso (de Marab), o que confere (e conferiu) ao texto uma outra interpretao nesse caso ampliada do texto, foi
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o primeiro poema com que obtive algum destaque em certames literrios. Com ele fiquei em 1 lugar no concurso nacional de poemas Irene Santini, organizado pela Casa do Poeta Brasileiro de Praia Grande, litoral de So Paulo, quando tinha 17 anos. Se hoje o poema no me agrada (pelo menos no tanto quanto na poca) e desejo no mais v-lo ou l-lo, nem por isso devo exclulo, assim como no posso tirar do leitor o benefcio da dvida e o prazer do julgamento. No fim deste volume, resolvi pr uma segunda edio do POEMIA, que em 1998 publiquei 300 exemplares em forma de livro semiartesanal, ou seja, fiz capa em cartolina cortada em A4, o miolo em folha de papel sulfite e fiz toda a tiragem em impressora jato de tinta para depois (eu mesmo) grampear e vender. Muito gostaria ainda de conversar sobre os poemas que seguem, mas cada linha que escrevo aqui para voc ler um tempo que lhe furto e que voc poderia usar para ler logo-de-uma-vez os textos ou quem sabe fazer algo de til e importante. Afinal, o sol doira sem literatura. Abilio Pacheco
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prefcio
osaico primevo traz-nos poemas que interrogam sobretudo a palavra potica (minha palavra a minha busca / de uma vida inteira, em todo mundo / e ela dorme encantada sombra), a memria afetiva e a paisagem urbana. A cidade, como na poesia de Baudelaire e de Age de Carvalho, interpelada em poemas como Noturno: H noite em mim! H noite em ti, Cidade / E nesta noite imensa Solido / Que desliza pelo meu corpo em vo / Enquanto a tua poesia me invade., fazendo do eu lrico um novo flneur, sempre a errar, brio de luz, pelas ruas (Deambulo em trapos pelas ruas...) O tempo outro tema importante de Mosaico primevo leiam-se poemas como Dezembros, Rquiem ao tempo presente e Rquiem for Rmulo No primeiro texto citado, a passagem do tempo reveste-se de uma suave melancolia, na interrogao da existncia humana e sua relao constitutiva com a fugacidade das horas: Quando Dezembro chegar / Estarei na face fria / Do mesmo espelho que h anos / A rir de mim para mim / Vem sempre me revelar / O que o tempo vem esculpindo / Em meus rosto dezembral. No plano da linguagem, h trechos que nos apresentam achados imagticos, sem os quais no se alcana a poesia noturna e melanclica de Mosaico primevo. no trtaro do tinteiro / o sono das trevosas Frias.; A morte uiva no cio / faminta noite fria; o crdio relgio da vida; Um dia, ave liberta em nuvens / colorindo o brilho silente;. O plano imagtico, contudo, no faz seno ressaltar a interrogao do humano, sua fragilidade, sua angstia diante do tempo e da morte, o amor e a ausncia dele. Sem tal indagao, no que no se seja poeta, no se homem, a falta que ama de que nos fala Drummond. Associados a essa busca pela imagem, tm-se experimentos que evocam a tradio concretista e sua tentativa de abandonar o
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verso tradicional por uma poesia verbivocovisual, como se v em Epigramagrrio e Epigramalone. No falta, ainda, uma potica, que Escritura: Tecer versos , por fora, fazer sulcos em penedos, / Singrar as pedras todas do mar de si ao avesso, / Derramar suores em gotas no fero vigor do remo. [...] navegar por entre as rochas / E extrair exangues lascas verges por dentro e por fora. Nessa potica vibra um otimismo pelo poder de o verbo potico proporcionar, ao leitor, uma desmineralizao das horas: Para que tu, s tu possas sugar o cerne dos versos / Acumulados em poas pelos teus olhares ttricos / Que desmineram as horas e se desmentem eternos. Assim, o Mosaico primevo, montado pela argcia e pelo labor de Abilio Pacheco, incita-nos, pela beleza imagtica, a reavivar nosso interesse pela poesia, dimenso verbal interrogante por excelncia, e pela vida. Prof. Slvio Holanda (Professor de Literatura Portuguesa da UFPA)
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epigramagrrio
No Prelo
Se a minha palavra a minha busca de uma vida inteira, em todo mundo e ela dorme encantada sombra de um livro raro, qui encontr-la-ei num alfarrbio, num sebo, numa biblioteca pblica... Quem sabe minha resposta ainda esteja no prelo.
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Ernias
Fatigado escrevo em transe imerso em denso sono, entre alaridos e vozes e sob luzes vertiginantes. Escrevo, mas s no basta! Garatujo! Esgaravato no trtaro do tinteiro o sono das trevosas Frias. Tremo e temo, porm teimo. Que perigos reservados para quem avana em vo na tarefa de acord-las? Entretanto, insisto: escrevo! E elas, por meus esgaravos soltam gritos ensurdantes uivando injrias infames.
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Aborrecidas e em garras levantam-se as justiceiras avanam-me sem retardo e roubam-me de toda voz. Tento ainda um verso toa mas, de mim despertas, dizem que nenhum mortal como eu tem direito de invoc-las.
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Escritura
A Eliton Moreira e Ademir Braz Tecer versos , por fora, fazer sulcos em penedos, Singrar as pedras todas do mar de si ao avesso, Derramar suores em gotas no fero vigor do remo. ferir, quilha da fragata, as artrias espumosas Das altas internas vagas. navegar por entre as rochas E extrair exangues lascas verges por dentro e por fora. talhar a cerrados pulsos as pedras finas, mas duras. E lapidar relevos pulcros em fendas pouco profundas. um rduo trabalho infruto, que s lega palmas sujas. Mas preciso faz-lo! Algum deve abrir as ostras Abismadas em seu peito para junt-las a outras Iguais na casca e no meio, mesmo que estejam ocas. Por fim: crer que vale a pena mineralizar as lavras Como fulcros ao poema e inertes todas deix-las Inativas pelas fendas palavras amortalhadas. Para que tu, s tu possas sugar o cerne dos versos Acumulados em poas pelos teus olhares ttricos Que desmineram as horas e se desmentem eternos.
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Tessitura Noturna
A Joo Cabral de Melo Neto
Um latido apenas no protege a rua ele precisar sempre que os ces o apanhem e o lancem a outros ces e a outros latidos tal que somados todos (latidos e ces) na noite formem (no arcabouo da matilha) uma redoma protetora em torno da rua.
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Retrato II
A Ceclia Meireles
Eu tambm no tinha este rosto assim tenso, assim denso, assim calvo, nem olheiras e rugas nem cabelos alvos. Eu no tinha estes olhos de agora to rubros, to turvos, to vagos, nem esta mo incerta, nem dedos fracos. Mal venho notando esta mudana que lenta, constante e suave do espelho vem desbotando a minha face.
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II Antes, o buraco da Palmeiras, Antes ainda, a Fbrica de biscoitos, Antes mais antes ainda, os caboclos tiravam aas das palmeiras, Antes mais antes que antes, os jesutas rezavam missas sob as palmeiras, Antes mais antes que antes-antes, os ndios espreitavam as onas por trs das palmeiras.
III Hoje, no h ndios, jesutas, caboclos, aas ou biscoitos ou mesmo a Fbrica. S o buraco. Um buraco (de) concreto, em que as palmeiras se queixam da falta de vento.
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IV Na belle poque de Belm, os telhados recendiam a po. Na belle poque da casa de po, os telhados recendiam... ah! po!
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Ru(g)as
Flanarei pela existncia da cidade por sobre as guas (nunca mais pelas caladas, hoje submersas nas ruas) sobre a vida que sua da pele dos meus poucos tantos anos. J nem flano mais (com o corao exilado de mim) por entre os transeuntes. Talvez eu que no exista (nem resista) nesta cidade, nesta praa (quem sabe noutra praa doutra cidade), como este vo entre as pessoas nos bancos, este vo do canudo num copo de guaran.
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Escribaria
... e surgem-me alguns garatujos, caambas roem o lixo, riscam o asfalto bas de rolim, comuta a chuva com o sol cegante, trilam buzinas e sirenes, brinda-se nas mesas a saideira da saideira, ecoam mesmssimas msicas... A rua das gaivotas... arruadas gaivotas,
primeiro de maro.
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Memrias de Maro
A Paulo Cardoso
Quando amanheo... leito manso e lento Nesta manh sob este sol silente A cidade desperta calmamente Ao meu olhar atnito e em tormento. Uma canoa tangida pelo vento Com as lembranas da ltima enchente Em mim desliza e a cidade sente, margem, nos degraus, um leve alento. Mas a tristeza morre neste instante Quando, no Pontal, o Itacainas Vem, farto de canoas, desaguar... E sou, portanto, este olhar brilhante Cheio de lembranas, de botos, de buinas... Que corre lento assim de encontro ao mar...
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Noturno
A Marab
H noite em mim! H noite em ti, Cidade E nesta noite imensa Solido Que desliza pelo meu corpo em vo Enquanto a tua poesia me invade. Negra noite em ns, terra to querida E enquanto as guas refletem a lua E meu peito tenro arde nesta rua Esta noite nos serve de guarida. E este colar de luzes sobre as guas Brilha e mergulha nos olhos de mim E o vento lento tange o tempo e assim Vai tangendo tambm as minhas mgoas. E j no h mais em mim Solido Nem tantas trevas na alta madrugada Que nos enche de luz enluarada E banha de lirismo esta cano.
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Mas o sol vem quebrando a noite agora E despertam os galos nos quintais Que lanam acordes a tantos mais Tangendo de ns dois a noite embora. Fico aturdido e ento olhar-te tento Com esses olhos brios de luzes tuas, Sigo andando atnito pelas ruas Na espera de encontrar um novo alento.
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Andana
Carrego meus males todos juntos no mesmo bolso, juntos do mesmo lado no peito esquerdo. Sigo assim meio de lado puxando de uma perna e arrastando meu corpo torto pela rua muda.
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Procura
Entre os silncios noturnos, grito-me o teu nome que mal vaga em vo pelas paredes de mim; pois tantas so as vozes, entrecortadas, entrecruzadas, vozes s vezes bablicas, buzinas, apitos e roncos, miados, latidos e urros, todas vivendo em mim, que o meu grito se perde pelas frestas da porta rompe a rua silente e desperta os olhos de mim.
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Nereida em Salinas
A nereida Deurilene Sousa
...seguro tua mo e contigo navego (corpo velido) pelas alvssimas planuras ondulantes dos lenis de areia da enseada do quarto do chal pelos vagas: ondas suaves, sussurros de sereia, corais em solo e em si bemol! Deixemo-nos levar por este canto navegante e nenhum arrecife nos h de avariar a nave.
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Horas Passadas
A minha me Maria Cordeiro
Eu andava sozinho nos jardins da minha memria tentando sentir o perfume das flores murchas no tempo. Havia uma ironia colorida nas folhas espalhadas pelo cho e uma tristeza profunda onde antes havia uma rosa. Hoje... nenhuma abelha me traz as flores murchas no tempo, horas que no voltam mais.
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A mesma rua ainda observa imvel porta, janela e paredes da casa, onde moram os nossos velhos, pai e me, onde as aranhas pacientes esperam, teia urdida intacta, pelos insetos que tardam a vir, onde pandora parece nunca ter aberto sua caixinha, onde, porm, o relgio de hora em hora nos lembra que tempo passa, onde ns moramos sempre meninos a brincar de enterrar tesouro, fazer mapas, armar arapucas e pegar pombos, onde tarde ouvimos as histrias que nosso velho sargento ainda conta, onde h galinhas, marrecos, patos, perus, capotes, porcos, ces, gatos e uma gara de asa quebrada, onde h uma laranjeira, uma mangueira, um jenipapeiro, uma s saudade dentro de dois coraes e uma solido abissal, que s eles conhecem.
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Se vou me embora Papai no demora! Volta logo ou fica aqui! o meu corao Que te ouve Falar assim para mim.
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Inteligncia Artificial
(ou Pinquio ps-moderno)
Minha fada cor de cu, Por mil pares de anos Repito-te o mesmo pedido: Faze comigo o que fizeste com o filho de Gepeto. Mas, acima de nossas cabeas Toda nova era glacial passou E com ela os filhos de Japeto. Por mil pares de anos te peo... Para que me transformes no que sempre fui, Sem que nunca tenha sido de verdade.
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Pela floresta de grutas e rochedos, noite a dentro, vida a fora, ambas inteiras, comigo meus ces, meus gatos, meus medos e desejos e do candeeiro, a luz, em corpo esguio de mulher. Onde o pssaro azul? No cemitrio? No vale? Nalgum arvoredo? A coruja sbia... silente. Os mortos sonsos... sabentes. O pssaro em canto algum da floresta, ou da noite, ou da vida. Sequer uma dica, sequer uma pista. E durante a noite toda, a busca v. Mas, pela manh, bem vista no lugar de sempre engaiolado e tmido, o pssaro em casa.
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Luzes da Cidade
A Charles Chaplin
Deambulo em trapos pelas ruas... E vejo voc, serena e cega, alva e bela, com uma cesta plena de flores claras. Sbito amo-te! como uma criana a outra. Simples como a rosa branca que recebo e ponho na lapela. Fao de tudo para que mesmo vendo-me trapalho voc contemple as luzes da cidade.
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Brincadeira
No teu telhado, miam gatos e os demnios brincam com anjos de pega-pega. No teu quintal, ladram ces e os demnios brincam com anjos de corre-corre. No teu silncio, roncam homens e os demnios brincam com anjos de esconde-esconde. Mas, na tua ausncia: acordam-se os homens, emudecem-se os ces, adormecem-se os gatos e os demnios correm dos anjos; quase so pegos no trisca.
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Habitao
H um silncio seco percorrendo as paredes da casa: Ratos roem roupas sujas esquecidas nos sofs, fazem seus ninhos entre os nossos tecidos e mijam nas louas adormecidas sobre a pia; Baratas revoam sobre a mesa da sala so insetos burocrticos, biblifilos, alfarrbicos que se fartam nos papis, cartas, revistas e jornais que h dias esto reunidos na mesa de jantar; Grilos entoam acordes de rias desafinados e muriocas lhes riem finos gargalhos; Formigas carregam as migalhas da ltima ceia da ceia de ontem, da ceia de sempre; Uma nica mariposa tenta a morte em vo na luz da sala; E aranhas ressecadas nos telhados podres permanecem estticas teia urdida Enquanto os gatos, os ces, os homens esto perdidos pelo mundo.
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Habitat
Sempre so meus os olhos que habitam esta casa: paredes de tbuas despregadas, ratos podres pelos cantos, sapatos empoeirados nos tapetes, comida estragada nos lixeiros, caibros comidos por cupins, telhas quebradas no telhado, vrias trancas nas janelas, teias de aranha nos portais, fogo engordurado por descuido, quadros mal pregados nas paredes, livros espalhados pelo cho, roupas sujas sobre a mesa, porta e fechadura arrombadas a tiro; e os meus olhos assustados e despertos j no habitam mais em mim.
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Casa ou in-Habitat
telhados em srie srios cumeeiras retilneas ou bifurcadas portas solenemente trancadas janelas ad eternum cerradas mudas paredes surdas olhares trancafiados, prisioneiras bocas, gritos retidos gente!? muros mundo(s)
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Construo
Na tarde quente de sol areia pedra barro tnue terra tenra ocas cores curas duro muro nu
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Dezembros
Ao meu irmo Ezequiel Pacheco Neto
Quando Dezembro chegar Meu mano e uns conhecidos Reunidos todos em festa De copos cheios na mo Cantaro, me abraaro E ho de quebrar Em meio a risos e risos Uns ovos em meus cabelos. Quando Dezembro chegar No serei mais o mesmo Contarei mais umas rugas Uns tantos fios a menos E outros claros a mais. Quando Dezembro chegar Estarei na face fria Do mesmo espelho que h anos A rir de mim para mim Vem sempre me revelar O que o tempo vem esculpindo Em meus rosto dezembral.
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Quando Dezembro chegar Terei juntas mais duras Movimentos mais lentos Mos um pouco mais trmulas Cansados olhos castanhos Ralos cabelos grisalhos E no entenderei gria alguma Que os meus filhos disserem. Quando Dezembro chegar Onde estaro os amigos? Os ovos? Os copos?... Quebrados!? Os filhos estaro casados. O espelho velho embaado. Os filhos dos filhos crescendo. E os olhos de mim... quebrados.
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preciso enterrar nossos mortos J no ouvimos mais os fogos de artifcio estourando luzes nos olhos do cu preciso enterrar estes corpos J no ouvimos mais o som dos taris, dos surdos, dos tan-tans, nem dos pratos preciso enterrar nossos vizinhos seu co atropelado, seu gato baleado, seu jardim pisoteado, suas crias envenenadas J no ouvimos mais tantos tiros ou melhor ouvimos, ouvimos uma saraivada gritos de uma aurora baleada despertamos em plena guerra preciso enterrar nossas asas, nossas penas, instrumentos de nossos mais belos vos J no ouvimos mais o som das trombetas o som das desafinadas trombetas que os anjos, os demnios e os anjos tocam preciso enterrar nossos entes J no ouvimos mais os troves prenunciadores de chuvas invernais
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alis, ouvimos os troves, ouvimos nossas lgrimas que se quebram nossos prantos, dentes que se rangem preciso enterrar estas horas J no mais ouvimos os relgios nem as pedras que se precipitam nem os tiques do tempo (taque) porta nem mesmo as flores que morrem murchas preciso. preciso enterrar nossos olhos, nossos dentes, nossas lnguas, nossos tmpanos. J no mais nos ouvimos a ns J no mais nos ouvimos J no mais... preciso!
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No dia que Rmulo morreu, caiu uma chuva semelhante a esta e a cidade como de praxe tentava nas ruas refletir o cu. Ser que anjos choravam? E outros tocavam trombetas? No dia que meu colega de sala morreu, a tarde inteira pesava em mim sua grande mo. No entanto, eu no me dera de acordo com o ocorrido, nem me dera conta do peso daquelas guas. No dia que meu amigo morreu meu Deus, por que tanta gua? , a Presidente Vargas era um charco s, um enorme espelho dgua para nada. No era a rua da tarde no sonho em que todo de branco ele me veio visitar.
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Quando Rmulo morreu, no chorei. Nem no dia, nem depois. (Chorarei ainda?) que... Ser que... Talvez seja porque a lembrana que me h dele vivo! Deve ento de ele no ter morrido. Mas toda vez que chove como agora pesa em mim as lgrimas no carem!
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Elegia de Maria
Maria deitada na cama na lida profana da noite na noite soturna do quarto olha as horas paradas e espera o brilho da aurora e espera o sol de amanh. No corpo frgil o sustento frtil odor de hortel, nos beijos, pancadas na cara gemidos, carcias e dor; estranhos estames fincados (vibrante delrio frentico) gros de plen gozados, nas entranhas carne em flor. Depois de tanto sofrer no martrio noturno, o vrus maldito da morte lhe leva a um longo suplcio na solido do seu quarto, na solido da espera.
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Maria velha levada ao fim dos dias to cedo. No existe mais sonho. No existe mais quimera. No existe mais fantasia. No existe mais ... Maria.
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Elegia da Noite
Entre penumbras e sombras sobras e restos de cores de luzes ausentes... abertas asas de ave em secreto luar de estrelas : vives! Entre orvalhos de aurora cantares de galos e galos em matinais cores... claros horizontes abertos estrelas falecidas : morres!
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Aurora Frrea
A morte uiva no cio faminta noite fria e h demnios insanos tocando suas trombetas em desafinados acordes (explosivos sons exangues). A morte noite que finda devora os corpos em chamas entre ferros contorcidos na locao trinta e nove. E o sangue nos lbios da morte mistura-se ao brilho da aurora numa cinza manh de Sexta.
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ltimo Ocaso
No lento passar das horas (amargo silncio da tarde) o sangue corre nas veias do homem no leito de dor. Na brevidade das horas o crdio relgio da vida bombeia o sangue no corpo do homem no leito de dor. Na brevidade da vida contadas horas de espera contadas horas de angstia contados minutos de dor.
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Ocaso
Um pssaro sob o sol da tarde: Um dia, ave liberta em nuvens colorindo o brilho silente; Hoje, um olhar tmido entre grades e um desejo pulsando no peito. Mas o tempo vai se apertando contra o vazio do ventre e o passarinho triste sob o sol da tarde a pino entre fortes grades definha. Ento, ao som dos raios solertes a ave liberta em vo bate as asas da alma pelo azul do infinito...
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epigramalone
O sonho O sonho
vai vo
e e e e
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2 edio
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Projeto grfico e editorao eletrnica Elizabete N. R. Lopes Reviso Abilio Pacheco Impresso e acabamento Grfica da UFPA
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) Fundao Cultural do Par Tancredo Neves _____________________________________________________
P116m Pacheco, Abilio Poemia / Abilio Pacheco. Belm: Edio do autor, 2008. 27p. 1. Poesia Paraense. 2. Literatura Paraense. I. Ttulo.
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[...] Poemia revela-nos um poeta com gosto pela linguagem clara, contida, refletida que busca desvendar os mistrios da soturna noite urbana com um olhar que apenas se insinua por entre personagens meio perdidas. O anonimato dos seres que povoam esse universo, as conversas captadas de raspo, as sucessivas imagens aliadas ao condensamento dos textos do uma rapidez de caleidoscpio ao poema, instigando-nos a procurar nas entrelinhas, lendo e relendo, aquilo que no localizvel de imediato na superfcie. Poemia pode ser lido como mero passatempo sem maiores conseqncias mas certamente se presta a algo muito maior a quem se aventurar a extrair dele significaes universais. Na verdade, um poema que trata de sensaes sentidas em pretrito imperfeito: que se prolongam e no param nunca. Eliane Machado Soares
Professora de Lingstica do Campus Universitrio do Sul do Par
O tema principal deste livro gira em torno do olhar do eu-potico, durante uma noite, para a cidade, com todos os seus encantos e desencantos. A idia que durante a noite muita coisa acontece nas cidades. As pessoas se mostram mais. O que chamamos de conscincia cede espao espontaneidade, ao ilgico, ao popular. Em sntese: um olhar humano durante a noite. H no texto, talvez por focalizar bares, casas noturnas, vrios elementos carregados de significado, imagens que denotam um homem bastante regional. E essas caractersticas lingsticas fazem o perfil de nossa regio: uma gelada, tiragosto, e os traos da garonete no poema IV. Os versos so irregulares, mas h uma simetria no que diz respeito a distribuio dos mesmos, assim como no tamanho do poema. A metfora noite pode estar sendo construda com a seguinte carga semntica: A noite enquanto um espao propcio ao encontro, ao devaneio, espontaneidade, mas tambm noite pode significar a falta de perspectiva, a curta viso daqueles que valorizam o externo, o aparente, por falta de condies reais de percepo. a chamada morte em vida.
A escurido da noite, a impossibilidade de uma viso ntida das coisas, o elemento comum ente noite, espao do dia sem luz do sol, e a falta de senso crtico das pessoas. Para finalizar uma imagem forte: ...olhares em retinas brias por sobre os copos que beijam lbios dormentes. Gilson Penalva
Professor de Teoria Literria do Campus Universitrio do Sul do Par
B B P P P P P B P
O O O O O O O O O
E E E E E E E E
M M M S M S M M M
I A I A A I A I A I A A I A I A
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I O sol sobre a cidade Lana seu ltimo olhar Com um aceno de adeus. A noite surge no bar Com seu relgio dourado De estrelinhas, sons e tons.
II Parece to sugestivo Aquele cigarro aceso Com dentes nos lbios rosados E um olhar de serpente Remetido via sensitiva De uma mesa a outra.
III A Noite senta no bar, Pede uma gelada e Comea a beber, beber, beber... Mas no h conselho que chegue Nem quem lhe tire o copo. A Noite est inflexvel E triste E s...
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IV A garonete com outra gelada Usa uma blusinha de ala (sem suti) Um cabelo castanho avermelhado, Um batom seduo e Uma mini-saia colada Para agradar os clientes.
V A Noite devora no bar um tira-gosto salgado mal temperado e cru: entorna mais uma garrafa e lambe nos lbios midos um amargo lquido etlico.
VI Voc por aqui! O amigo conseguiu uma carta de alforria? Hum! Para todos os efeitos fui bater uma redonda com a turma no clube. Entendeu? Fique tranqilo.
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VII A Noite arrota no bar (como um trovo) e tic do relgio d tique no tempo
(tac).
VIII Tem-se que ser moderna. Eu se fosse voc, Fulana, Fazia isto... e o Fulano, do lado, ferve.
IX A Noite dana no bar Um bolero, uma salsa, um merengue, Um shot, uma valsa, um rock-and-roll Depois suada e cansada Senta-se entre nuvens claras Ouvindo uma MPB.
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X Uma mulher chora num canto E outra lhe d conselhos: ... presta ateno numa coisa: Homem pisa quando sabe Que a mulher t gostando dele. Tu tem que fingir que no gosta... vai por mim!...
XI A Noite observa no bar que os olhos se lanam olhares em retinas brias por sobre os copos que beijam lbios dormentes.
XII Quem falar de amor explicitamente, sobre a mesa do bar entre um copo e outro entre uma cerveja e outra? Talvez (no) seja preciso Consultar as entrelinhas...
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XIII A Noite depara-se no bar com um relgio hipnotizante nu, na parede suja, tocando ponteiros tontos, E fica olhando espantada a nudez incansvel que move os ponteiros por vezes repetidas vezes repetidas hipnticas...
XIV Um infido amigo Depois de um gole, Faz um gesto e Solta um sorriso breve e Podre de falsidade. O outro que ouve Revolve uns trapos recentes Entre muitos outros em Meio s traas de um Ba de lembranas: Ela me disse que havia bebido muito e ele tambm. Pint o clima. No deu pra controlar. Rol. Fica puto, Esbraveja e sai.
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XV A Noite vomita no bar, Depois de tanto beber, E o relgio devora o tempo Lentamente Pouco a pouco h horas.
XVI Sai com aquela menina ali, chegando de moto. Cara, mas boa. A gente fez isto assim... T vendo que a mulher L em casa no topa Um negcio desse. E o outro responde: uma base.
XVII A Noite ressurge no bar Atnita, trpega e tonta Com seu vestido de lua Com pernas de vara verde E olhos enrubrecidos
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XVIII A rua, em frente, escura, porm plida, adormece asfltica. De repente: um carro rasga o silncio do asfalto, pneus cantam ao longe, gritam os vidros num poste, geme a cara no volante exangue e resta um tom fnebre na buzina chorando pela madrugada a dentro.
XIX Enquanto o relgio lento Tange as estrelas que brilham No toldo azul-marinho Que nos cobre, A noite boceja no bar, Abre uma boca de escurido E seus olhos incandescentes Marejam orvalhos plvios.
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XX A conta paga com cheque, Mas no importa o valor, Pois a noite esta ganha, Os problemas esquecidos E a solido vencida. Abre a porta do carro Com o peito estufado de orgulho Se sentindo mais macho E querendo que todos o vejam E fiquem morrendo de inveja. Entra no carro e sorri Pensando no que certamente Ouvir na manh seguinte.
XXI A Noite adormece no bar Amarrotada, assanhada e triste Debruada sobre a mesa; O vento lhe faz um afago E o tempo, no relgio, lhe acalenta Com sua eterna cantiga de ninar: Tic tac Tic tac Tic tac
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o presidem. Assim, a Noite dionsiaca seu oposto, mas ao mesmo tempo sua complementao. Sendo dionisaca, a Noite se torna criao e se coloca distante da verdade apolnea, pois igualmente territrio do desviado, do brio e do louco. E de fato, a Noite o locus do eterno retorno, da des-represso, do xtase e dos estados hipnticos, onricos ou fronteirios entre o real e a imaginao. Contudo, a Noite no aniquila o Dia. Quando toma seu lugar no discurso social abre as portas para a possibilidade de reinventar o cotidiano solar, ou antes, lanar sobre ele um olhar especulativo sobre as diferenas entre os dois locus. Essa relao suplementar Dia-Noite, na produo de Pacheco, j se antecipa em poemas como epigramagrrio, conforme trecho a seguir:
a p lavra em terra a palavra em terra o sono. o sonho.
E em Ernias:
Fatigado escrevo em transe imerso em denso sono, entre alaridos e vozes e sob luzes vertiginantes (...) Garatujo! Esgaravato no trtaro do tinteiro o sono das trevosas Frias.
Em ambos, o teor especulativo da relao est amalgamada com o prprio fazer potico. A relao DiaNoite se faz na ambivalncia entre termos como terra-sono e terra-sonho no epigramagrrio. Aqui, os termos funcionam como imagens poticas estabelecendo limites para cada territrio, mas tambm evocam o processo construtivo do poema: o jogo com a expresso lavrar a terra estabelece conjuntos significativos ligados constituio da palavra e, conseqentemente do poema.
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bouo da matilha)/ uma redoma protetora/ em torno da rua) e pela dimenso psquica incrustada (redoma protetora). Os latidos caninos se constituem (tambm) como rastros do tempo e no tempo. E nesse sentido resta dizer que o fluxo do tempo sem dvida umas das marcas dessa produo, tal qual marca na produo de
Processo parecido ocorre em Ernias. A relao DiaNoite est mais uma vez na busca pela intermediao entre os dois locus (Fatigado escrevo em transe/ imerso em denso sono,/ entre alaridos e vozes). Termos e expresses como transe e denso sono estabelecem a associao penumbrosa entre duas zonas: a do real (representado por um eu oculto, mas que se coloca efetivamente como sujeito) e a da imaginao (que se cumpre justamente pela imposio das imagens onricas que invadem a ao da escrita). Mas a mesma relao Dia-Noite se faz na prpria natureza noturna das Ernias. Habitantes do Trtaro como entidades punitivas, filhas da deusa Nix (Noite) na verso de squilo, essas criaturas representam a fora vingativa contra o deslocamento da Ordem. O trao da escrita se faz na necessidade de expor o processo criador mergulhado nesse universo noturno, como metfora da dificuldade em lidar com o carter fugidio, orgistico e libertador, mas por vezes pavoroso, que a Noite condensa. Vale ressaltar ainda que muitas vezes a produo de Ablio Pacheco se deixa sulcar profundamente pelas correlaes intertextuais. No conjunto dos poemas, dos quais fazem parte os que compem Poemia, destaco o poema Tessitura Noturna, homenagem do poeta a Joo Cabral de Melo Neto. Cumpre observar que nesse caso a intertextualidade se efetiva como busca pela natureza noturna das coisas (veja pgina 16). O jogo entre galo (do poema de Melo Neto) e co (no poema de Pacheco), com o segundo tomando o lugar do primeiro, modificando-o sem anul-lo, ultrapassa a conotao simblica o co como guia e guarda na noite e na morte, da mesma forma que se faz companheiro no dia e na vida e encadeia significaes que perpassam pela dimenso social (tal que somados todos/(latidos e ces) na noite/ formem (no arca-/
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outro poeta, Age de Carvalho, com o qual Pacheco tambm dialoga intertextualmente em outra oportunidade. Na economia dessas relaes, imprescindvel destacar que h um poema de Carvalho, verdadeiro exerccio intertextual com a obra de Melo Neto, que de certa forma expressa consideravelmente os dilemas insuperveis, trazidos pelo (e no) tempo. Trata-se do poema Canto de Galo: Na madrugada dormida, onde a chama (agora apagada) do dia reclama o fogo das manhs, um galo canta (apodrecendo rgido ao passar das horas)
Para alm dos dilogos entre os poetas minha inteno observar que, justo ou no, o tempo passa e nesse passar tudo apodrece, at mesmo o incansvel galo cabralino e ageano, mas nesse processo, prevalece a repetio de cada noite a reclamar por novas manhs e de cada nova manh que, uma vez cansadas da azfama cotidiana, reclamam sucessivamente por uma nova noite. Essa idia de fluxo contnuo igualmente vlida para a produo de Pacheco, mas aqui a sede de especulao procura localizar o problema desse fluxo a partir do carter mais profundo e ao mesmo tempo mais visvel das condies e situaes que constituem a Noite. Desse modo, como dito antes, os poemas de Pacheco esto aqui marcados por tempos de contemplao, mas estes se enfeixam em outras possibilidades, ampliando consideravelmente o universo das significaes, pois esses tempos se traduzem em objetos-signos representativos de um territrio, o da Noite: uma porta, um balco, uma mesa de bar. Assim, Poemia no apenas a incurso do olhar humano por entre as frestas da noite nos bares. Poemia um mosaico, construdo pela dilacerao da experincia diurna que se re-faz na cadncia noturna: dilogos lanados ao lu, que pairam no tempo e tornam-se signos compostos em estilhaos, simulacros
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das vozes pomicas da Noite, arrebatadas da memria ao bel prazer do eu-potico: vozes que ressoam nas impresses desse sujeito espreitador das vozes de outrns. Nesse processo de espreitamento, a base tcnica dessa escritura a sinestesia. A polissemia sgnica , sem dvida, instaurada de maneira mais evidente a partir do recurso da percepo cuidadosa, porm contnua e aparentemente desavisada dos sentidos: so as impresses captadas que inseminam a significao das palavras pescadas no universo bomio das cidades. E na construo dos sentidos vale a universalidade das palavras-efeitos. Assim, a conta melhor seria dizer a noite paga com cheque, percebida segundo os tons e semi-tons dos rudos e dos silncios da Noite, desde o crepsculo:
O sol sobre a cidade Lana seu ltimo olhar Com um aceno de adeus. A Noite surge no bar Com seu relgio dourado De estrelinhas, sons e tons.
Esses sons e semi-tons pousam igualmente sobre outras formas perceptivas, como por exemplo, os movimentos dos objetos, que se confundem aos sentimentos (poema XII). Em Poemia, o poeta , de fato, um exato espreitador de iluses. Das iluses construdas no labor do Dia e despojadas no alvorecer da Noite. Assim, cumpre-se um dilogo discreto e por vezes doloroso entre a poesia e a psicologia de um dado cotidiano noturno, pois a Noite, enquanto smbolo representa o locus do grotesco, do fantasmagrico, das tenses misteriosas do inconsciente. Vista por esse prisma, a Noite torna-se repositrio e expresso do recalcado. No espao do bar dessa Noite pomica, os indivduos materializam esses recalques e vo purgar as suas desiluses, como no poema III e em:
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A Noite vomita no bar, depois de tanto beber, e o relgio devora o tempo lentamente pouco a pouco h horas.
Contudo o bar tambm o territrio da procura por tudo aquilo que ficou em suspenso ou se tornou presa de adiamentos no decorrer do Dia. Desse modo, o mesmo espao de deglutio e de excreo das misrias o mesmo que alimenta a dimenso dos desejos e da possibilidade de gozo em relao ao outro:
Parece to sugestivo Aquele cigarro aceso Com dentes nos lbios rosados E um olhar de serpente Remetido via sensitiva De uma mesa a outra.
(...)
A Noite observa no bar que os olhos se lanam olhares em retinas brias por sobre os copos que beijam lbios dormentes.
Esse , enfim, o espao-tempo que se espraia em Poemia: universo noturno dos bares, quiosques, bodegas e semelhantes. Nesse caso, no importa bem o gnero do local, pois so solcitas nessa obra as imagens e atores arquetipicamente bem colocados em seus papis. Contudo, o desejo de individuao deslocado e prevalecem imagens de vrios eu-universais, alegorias dos tantos indivduos que circulam na noite, como aquele que senta no bar/Pede uma gelada e comea a beber, beber, beber.... Ou do indivduo que traduz a constituio da Noite sob outro vis: o de quem forja sua movimentao a partir dos estatutos da consumio. Na concepo de Pacheco a garonete que:
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usa uma blusinha de ala (sem suti) um cabelo castanho avermelhado, um batom seduo e uma minissaia colada para agradar os clientes.
Essa garonete to imediatamente reconhecvel na memria, tal qual aquele amigo que conseguiu uma carta de alforria da Esposa, da Ordem diurna, de Si mesmo cuja incurso na Noite uma forma de purgar o Dia, mas, paradoxalmente a Noite ainda a extenso de seu exlio, pois o tempo, como ceifeiro, logo se coloca entre ele e as indeterminaes to prprias do territrio da noturnidade:
A Noite arrota no bar (como um trovo) e tic do relgio d tique no tempo
(tac).
Sendo universo transformado em texto, Poemia convoca os elementos da Noite para ler o Dia. O verbo encarna-se de experincia humana tornando-se aquilo que, em Signos em Rotao, Octvio Paz chama de poesia prtica. Por outro lado, em Poemia, o Amor uma espcie de vetor da busca (Uma mulher chora num canto / e outra lhe d conselhos). Os indivduos aqui so nivelados a partir das pulses inerentes personificao que alcanam perante o amor, assim, nsia, carncia, tristeza, frustrao ou raiva so sentimentos to interagentes no mbito indivduo-ambiente, nesses poemas, que passam a ser o prprio registro desses indivduos no espao potico. Afinal, como afirma ainda Octavio Paz em A Outra Voz o amor, a inveja e a clera so paixes que, por meio de uma operao de linguagem se transformam em pessoas, no de carne e osso, mas imaginrias... Assim, essa Noite pomica e bbada de lcoois e desejos o topos da purgao: inventrio do amor querido, do amor preterido, do amor procurado, do amor que se quer materializado no corpo do outro. Essa noite tambm o
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espao da semi-carnavalizao, pois completa no ser para a Noite, a quebra da disciplina, das regras apolneas do Dia. De qualquer maneira, Dionsio se faz presente, afrouxando as rdeas entre mesas, entre corpos que danam, entre olhares que se lanam...
em retinas brias por sobre os copos que beijam lbios dormentes
Mas esse espao tem um limite construdo pela prpria ao do sujeito nele envolvido. Uma vez externados todos os dilemas do Dia, a Noite...
adormece no bar amarrotada, assanhada e triste debruada sobre a mesa; o vento lhe faz um afago e o tempo no relgio, lhe acalenta com sua eterna cantiga de ninar Tic tac Tic tac Tic tac
A embriaguez dos corpos e dos sentidos generalizase nesses apstatas e atores da Noite, diversificadamente distribudos em um cenrio noir, merc de um tempo, hipnotizante, tempo tonto, tempo brio, porm ciclco e exato o suficiente para, esgotado nos ponteiros do relgio, conduzir todos ao desfecho da noite, quando o sujeito, re-alimentado nas suas iluses, retorna aos dilemas do tempo linear, apolneo, enfim a uma nova manh e a um novo Dia:
Entra no carro e sorri pensando no que certamente ouvir na manh seguinte
Tnia Sarmento-Pantoja
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Abilio Pacheco (...) anexa um exemplar de Poemia, que recebemos com uma agradvel dedicatria. O nome sugestivo. Um misto, talvez, de poema x Bomia. Da leitura que estamos fazendo, deduzimos que Abilio pretende, em seus versos descompromissados, louvar a noite e os momentos de descontrao em um bar qualquer, procurando sentir a vida e os seus motivos. H doze anos que fugimos a esses momentos feiticeiros. Humberto Del Maestro em Literatura & Arte Maro de 1999 n 411, Serra ES Com muita alegria recebi seu excelente Poemia. Suas poesias so timas, mostrei para algumas pessoas que gostaram bastante. Acho que estamos no mesmo barco, ou seja, fora da grande mdia massificante, lutando por idias que acreditamos. Guido Viaro Curitiba PR O tempo e a impermanncia dos atos, das pessoas, dos momentos. A quase gratuidade de tudo, a frivolidade que transparece nos dilogos e atitudes do homem comum, formando verdadeiro mosaico humano/urbano, que tem como fundo a noite. Porm, no uma noite qualquer, a noite de Abilio constitui um alter ego do poeta-observador, que, numa atitude socrtica, capta o visvel e invisvel que o cerca. Enquanto o relgio implacvel alimenta o escoar do tempo. Em seu primeiro livro solo, Abilio demonstra segurana no manuseio da linguagem, lapidando cuidadosamente cada poema, explorando a fora do verso curto, num trabalho de minuciosa colagem, que resulta no poema maior Poemia, que confere ttulo Obra. No deixa de ser curioso, observar que essa estrutura corresponde tanto ao nome do Alternativo quanto ao da Editora do Autor, o que indica sua forma de perceber e revelar o mundo. Ricardo Alfaya Rio de Janeiro RJ
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Ao leitor / leitora Prefcio Epigramagrrio No Prelo Ernias Escritura Tessitura Noturna Brevssimo Ensaio sobre a Cegueira Retrato II O largo (do) buraco da Palmeira Ru(g)as Escribaria Memrias de Maro Noturno Andana Procura Nereida em Salinas Horas passadas Revisita Casa Bipaterna Cantiga de Ninar Alyne Inteligncia Artificial A demanda do Pssaro Azul Luzes da Cidade Brincadeira Habitao Habitat Casa ou in-Habitat Construo Dezembros Rquiem ao Tempo Presente Rquiem for Rmulo Elegia de Maria Elegia da Noite Aurora Frrea ltimo Ocaso Ocaso Epigramalone Prefcio primeira edio Quarta capa da primeira edio Poemia Um breve passeio pelas imagens pomicas... Trs palavras a mais sobre o Poemia
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Ablio, Os desenhos iniciais, penso, quero, sinto, gosto da folha 45: metamorfo de fluidos smen, lgrimas, chuva, sangue, lquido amnitico... ciclo, corpo se desfazendo Cores: branco, preto, vermelho. O melhor seria o fundo preto como num sonho. Espero para melhor o risco
Rose Lourinho
Mosaico primevo, montado pela argcia e pelo labor de Abilio Pacheco, incita-nos, pela beleza imagtica, a reavivar nosso interesse pela poesia, dimenso verbal interrogante por excelncia, e pela vida. Prof. Slvio Holanda
Poemia no apenas a incurso do olhar humano por entre as frestas da noite nos bares. Poemia um mosaico, construdo pela dilacerao da experincia diurna que se re-faz na cadncia noturna: dilogos lanados ao lu, que pairam no tempo e tornam-se signos compostos em estilhaos, simulacros das vozes pomicas da Noite, arrebatadas da memria ao bel prazer do eu-potico: vozes que ressoam nas impresses desse sujeito espreitador das vozes de outrns. Profa. Tnia Sarmento-Pantoja
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