A Revolta Dos Macabeus e A Origem Do Poder

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Projeto de Estudos Judaico-Helenísticos - PEJ

Coordenador: Prof. Vicente Dobroruka

Universidade de Brasília
IHD - Dpto. de História
Brasília -DF- 70910-900 www.pej-unb.org

“A REVOLTA DOS MACABEUS E A IDEOLOGIA DO PODER”


XIV CICLO DE DEBATES DO LHIA, 08-12 DE NOVEMBRO 2004

Rosana Marins dos Santos Silva

Mestranda em História / UFRJ

Prof.Dr. André Chevitarese


PEJ - LHIA 2004 - Rosana Marins dos Santos Silva

Resumo / abstract

This brief study has the intention of breaking with the


traditional approaches regarding the Revolt of the
Maccabees, which insist on just enumerating religion as the
only probable cause of this rebellion in Palestine in the
2nd century B.C. However, I intend in this little study to
examine other latent causes that contributed to the armed
conflict between the Jews and Anthiocus IV.

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A Revolta dos Macabeus e a ideologia do poder

Quando Antíoco III, o Grande, vence os exércitos dos


Ptolomeus, os judeus de Jerusalém o apoiam nesta luta,
segundo Flávio Josefo1. O partido selêucida em Jerusalém
está mais forte do que o ptolomaico. Por isso, Jerusalém é
contemplada com um decreto de Antíoco III, em 197 a.C., que
contém as seguintes especificações:

1. Que seja dada uma contribuição real para os


sacrifícios, em animais, vinho, óleo, incenso, flor de
farinha, trigo e sal;
2. A madeira retirada da Judéia e do Líbano para os
trabalhos de construção do Templo e dos pórticos está
isenta de taxas;
3. Todos os membros do povo judeu devem viver segundo
as leis de seus pais;
4. O senado (gerousia), os sacerdotes, os escribas do
Templo e os cantores do Templo, ficam isentos da
capitação, do imposto coronário e da taxa sobre o
sal;isenção de impostos durante;
5. Três anos para os atuais habitantes da cidade e para
aqueles que vierem nela morar até determinada data,
para que a cidade seja repovoada mais depressa.

É interessante observarmos as medidas de Antíoco III


sobre os impostos. A madeira para a restauração do Templo
está isenta do imposto alfandegário, que incide sobre todas
as mercadorias em circulação. O senado e os funcionários do
Templo ficam isentos da capitação, imposto pessoal
recolhido dos adultos. Ficam isentos também do imposto

1
Josefo. Antigüidades judaicas (AJ) 12.456.

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coronário: a coroa de folhas é, para os gregos, o símbolo


da vitória, concedida aos vencedores dos jogos ou a um rei
vitorioso. Com o tempo, as cidades começam a oferecer aos
seus reis coroas de ouro ou uma soma equivalente em
dinheiro. O que antes era espontâneo acaba
institucionalizado e tornado obrigatório, podendo somente o
rei conceder a isenção. Ainda: o senado e o Templo ficam
isentos da taxa sobre o sal. Esta taxa é conhecida na
Palestina e na Babilônia. Provavelmente paga-se determinado
valor ao governo, ou talvez, na Palestina, que tem boas
salinas, se aceite o produto “in natura”.
Os habitantes da cidade, finalmente, são isentos
durante 3 anos do phóros, o tributo, em prata ou em
produtos, exigido de uma província, de um templo, de um
éthnos ou de uma cidade, este último sendo o caso de
Jerusalém.
Deve-se observar que, com este decreto, Antíoco III
reforça o papel da aristocracia, associada há muito ao
poder através da gerousia e que, sob outro aspecto, liga o
destino do ethnos (nação) judeu às decisões reais. Pois as
leis dos antepassados (a Torá) devem ser obedecidas não
porque assim o decidem os judeus, mas porque o quer o
governo selêucida2.
Apesar de parecerem benevolentes, estas medidas não
devem, entretanto, nos enganar, pois não superam as
decisões comuns tomadas em relação a outras cidades,
naquela época.
Quanto à esta atitude podemos inseri-la dentro do
conceito de Gramsci de hegemonia. Ele normalmente usa a
palavra hegemonia para designar a maneira como um poder
governante conquista o consentimento dos subjugados ao seu

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Hans G. Kippenberg. Religião e formação de classes na antiga Judéia.
São Paulo: Paulinas, 1988. P.77.

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domínio. Um grupo ou classe dominante pode assegurar o


consentimento a seu poder por meios ideológicos, mas também
pode fazê-lo alterando a tributação de maneira favorável
aos grupos de cujo apoio necessita ou criando uma camada de
operários relativamente opulente e, portanto, razoavelmente
inerte.
Podemos estão definir hegemonia como um espectro
inteiro de estratégias e práticas pelas quais um poder
dominante obtém um consentimento ao seu domínio daqueles
que subjuga. Conquistar a hegemonia, segundo Gramsci, é
estabelecer liderança moral, política e intelectual na vida
social, difundindo sua própria visão de mundo pelo tecido
da sociedade como um todo, igualando, assim, o próprio
interesse com o da sociedade em geral. Na verdade pode-se
afirmar que qualquer forma de poder político, para ser
durável e bem fundado, deve pelo menos evocar certo grau de
consentimento dos subalternos.
Apesar de tudo isso, é preciso ir além na interpretação
dos fatos. Além das razões estratégicas e políticas dos
Selêucidas para incentivar a helenização dos judeus, razões
já apresentadas, há motivos econômicos para o conflito que
o processo desencadeia.
É que o sistema político grego tradicional, como
adotado pelos Selêucidas, não dispõe de um mecanismo fiscal
para o recolhimento do tributo. Ou seja: não há uma
burocracia profissional que administra as finanças do
Estado. Assim, nos reinos helenísticos a função de recolher
o tributo é arrendada à aristocracia dos povos dominados,
proporcionando-lhe lucros financeiros e influência política
junto ao governo estrangeiro.
Por outro lado, deve-se levar em conta que a noção
grega de Estado é concretizada no Oriente: ou na pólis, uma
associação de cidadãos livres e autônomos baseada na

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vizinhança ou no ethnos, uma relação de parentesco baseada


na solidariedade dos laços de sangue.
Giordani explica que “três grandes princípios presidem
à formação da pólis: independência, autonomia (poder
próprio) e autarquia (autogestão). A cidade era tudo para o
cidadão grego. O verbo politeuestaí, que significava ‘tomar
parte nos negócios públicos’, também significava
simplesmente “viver”3.
Ora, Judá é e permanece um éthnos também na
administração selêucida. Mas o próprio Antíoco III, o
Grande, com seu decreto de 197 a.C., reforça os privilégios
da aristocracia, criando as condições para a sua
emancipação da hierocracia e para o predomínio da pólis
sobre o éthnos. “A autonomia étnica, que foi concedida
oficialmente à Judéia, trouxe em si elementos que ofereciam
à aristocracia das cidades novas possibilidades”4.
A lei, baseada na vontade do rei Selêucida - que
reivindica tal direito como “direito de lança” por ser o
conquistador - e não nas tradições dos antepassados
codificadas na Torá, cria condições para que a aristocracia
judaica substitua as leis étnicas por leis políticas.
Contudo o que aqui nos interessa é perceber como se faz
o recolhimento do tributo na Judéia. A aristocracia - por
exemplo, os Tobíadas e seus associados - recolhe dos
camponeses 1/3 do produto das colheitas e metade da
produção das frutas. Vende, certamente com ganhos, estes
produtos e paga aos seus senhores selêucidas
determinada quantia em prata. Talvez cerca de 300 talentos
anuais segundo 1Mc 11:28.

3
Mário C. Giordani. História da Grécia. Rio de Janeiro: Petrópolis,
Vozes, 2001. P.150.
4
Kippenberg, op.cit. p.78.

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Flávio Josefo também testemunha que os impostos são


cobrados pela aristocracia, quando comenta o decreto de
Antíoco III. Diz Josefo: “Os nobres arrendaram nas suas
próprias cidades paternas o direito de cobrar o tributo, e,
depois que eles recolheram a quantia fixada, a pagaram aos
reis”5.
Assim, a aristocracia começa a pressionar sempre mais
na direção da helenização total, como modo de quebrar as
barreiras da tradição de solidariedade baseada na aliança.
Seu enriquecimento fácil, baseado na tributação e na
manutenção de seus privilégios, choca-se com as normas da
Lei. A solução será pedir a Antíoco IV Epífanes a
eliminação da Lei. Some-se a isso a precariedade financeira
dos Selêucidas e o mecanismo começa a ficar claro.
Daí a conclusão de Kippenberg de que o verdadeiro
conflito entre os cidadãos hierosolimitanos, eclodido no
período de governo de Antíoco Epífanes, estava estabelecido
sobre o esforço dos aristocratas por alterar a situação de
Jerusalém6. A lógica deste a arrendamento do Estado visava
a reduzir o direito de cidadania desta faixa dos
aristocratas, e fazer dos produtores, como objeto de
conquista, simples moradores, sem direito de cidadania.
Transformar Jerusalém em pólis , na qual uma camada
cultural adaptada tem direitos de cidadania, era o desejo
dos judeus helenizadores. No entanto, somente quando o
direito sagrado da terra foi tocado é que se deu o
conflito. Por isso, seria errado deduzir daí que a
revolução tivesse um objetivo religioso. Sua meta era a
reforma da constituição da Judéia.
Segundo as leis israelitas, a terra é dom de Iahweh ao
povo. Israel tem a posse da terra, mas não é seu

5
AJ 12.459.
6
Kippenberg, op.cit. p.86.

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proprietário. O livro do Deuteronômio, escrito a partir do


século VIII a.C., repete isto sempre (Dt 12:1-10; 20.29;
13:13; 16:5; 18:20 etc). Dt 12:1, por exemplo, está dito:
“São estes os estatutos e as normas que cuidareis de pôr em
prática na terra cuja posse Iahweh, Deus de teus pais te
dará, durante todos os dias em que viverdes sobre a terra”.
A terra em Israel é classificada como nahala ( herança,
posse), como em Dt 12:9-10; 19:10; 20:16 e tantos outros
lugares. Pode-se até negociar a terra, mas somente dentro
de determinadas normas. O direito que regulamenta a venda
da terra é o chamado ge’ulla (resgate da terra). Quem tem o
direito de compra é apenas o parente do lado masculino da
família. A venda da terra pode proteger o proprietário
empobrecido de pagar tributos e impostos a estrangeiros,
como pode protegê-lo também de ser vendido como escravo
permanente a estrangeiros. O resgate da terra é baseado no
conceito de hesed (fidelidade), uma solidariedade que
sustenta a relação comunitária no nível do clã.
Compare-se esta concepção israelita da posse da terra
com a concepção grega, onde a terra pode ser dada a quem o
rei determinar, porque ela lhe pertence por direito de
conquista. O conflito jurídico é evidente.
Ora, como no interior do clã a estratificação social
avança bastante nos períodos persa e grego, a aristocracia
judaica que aí surge tende a excluir os mais pobres. Por
outro lado, a manutenção das regras do parentesco exigida
pela Lei e confirmada por Antíoco III prejudica os
interesses da aristocracia.
Que os motivos desta luta são também econômicos,
gerados pelo arrendamento estatal dos impostos à
aristocracia, não resta dúvida. Mas é preciso lembrar que
há uma coincidência de interesses dos sacerdotes e levitas
empobrecidos com os interesses dos camponeses. Por isso

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lutam lado a lado. Sacerdotes e levitas vivem da


contribuição dos camponeses, pois o culto e o sacerdócio
não têm propriedades, excetuando-se, é claro, uns poucos
sacerdotes da nobreza. Os sacerdotes prestam serviços em
Jerusalém só de tempos em tempos, morando no mais, em suas
cidades e aldeias. O financiamento do culto fica, na
maioria das vezes, por conta do Estado.
Assim, a classe sacerdotal sem terras está interessada
no controle público das terras, como manda a Lei, e não na
privatização da propriedade da terra, que é a tendência da
aristocracia filo-helênica. Só assim os sacerdotes podem
ter certeza das contribuições para o Templo e para o
sustento de suas famílias.
Se a terra pertence a Iahweh, como diz a Lei, e os
sacerdotes são os intermediários entre Iahweh e o povo,
através da instituição do Templo, a sua sobrevivência está
garantida. Mas se a terra pertence ao rei, como o quer o
direito do conquistador grego, os sacerdotes que não
pertencem à aristocracia e não se associam aos gregos são
prejudicados.
Portanto, ao analisarmos detidamente obra de Josefo e
dos Macabeus encontraremos evidências de que o processo de
helenização era em grande medida, um conflito judeu
intramuros, por isso os macabeus empunharam inicialmente
suas armas contra seus próprios compatriotas, e não contra
os representantes do rei selêucida. Senão vejamos 1Mc 1:11-
15:

por esses dias apareceu em Israel uma geração de


perversos, que seduziram a muitos com essas palavras:
‘vamos, façamos aliança com as nações circunvizinhas,
pois muitos males caíram sobre nós desde que deles nos
separamos’. Agradou-lhes tal modo de falar. A alguns
dentre o povo apressaram-se em ir ter com o rei, o que
lhes deu autorização para observarem os preceitos dos

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gentios. Construíram, em Jerusalém, uma praça de


esportes, segundo os costumes das nações,
restabeleceram seus prepúcios e renegaram a aliança
sagrada. Assim associaram-se aos gentios e se venderam
para fazer o mal.

Diante da referida evidência textual, podemos fazer


quatro observações: primeiro, as iniciativas para a
transformação de Jerusalém em pólis partiram da própria
comunidade judaica; nenhuma referência é feita na
documentação que venha sugerir ou indicar oposição às ações
de Jasão, o sumo-sacerdote que liderou o processo de
helenização da cidade; nenhum dos textos antigos acusam
Jasão de alterar o culto a Javé praticado no Templo de
Jerusalém ou de ter proibido as práticas normais do
judaísmo; quando da visita de Antíoco IV a Jerusalém, mesmo
de textos violentamente contrários ao referido rei, não há
nenhuma ação contrária da cidade nestas narrativas contra o
rei ou a Jasão.
Em outras palavras, o caso não ocorreu conforme o
relato de 1Mc 1:41-42 de que Antíoco queria fomentar uma
cultura ou religião unificada em seu império. O problema
foi, como observado em 1Mc 1:11, que os helenistas de
Jerusalém consideravam a tendência dos judeus de se
isolarem, cultural e religiosamente, um obstáculo para o
progresso e desenvolvimento. O desejo de romper esse
isolamento e ser aceito na sociedade das nações, ou seja,
distanciar-se da forma de vida que os gregos consideravam
bárbara, era o que estava por trás dos esforços dos judeus
helenistas.
As historiografias modernas que tratam deste
acontecimento têm interpretado, com frequência, Antíoco
Epífanes como o autor de todo o mal em questão, e a
violenta supressão da religião judaica que aconteceu na

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década de 160 a.C fosse apenas fruto de sua paixão


incontida pela helenismo. Contudo, podemos estabelecer que
uma acusação injusta tem sido feita contra o governador
selêucida. Na verdade, este foi, sem dúvida, apenas um
instrumento na mão dos judeus helenistas. Inclusive Josefo
põe na boca de Lísias, no período do reinado de Demétrio I,
a acusação de que o decreto de Antíoco Epífanes partiu de
Menelau, com intenções claras de acelerar a helenização da
Judéia (Antiguidades Judaicas 12. 484).
É claro que Antíoco não foi nenhum modelo de virtude,
mas é razoável supor que, embora a proibição contra a
prática do culto judaico, que está em 1 Mc 1.41-51, tenha
realmente sido subscrita pelo rei, provavelmente foi
decidida pelo sumo sacerdote Menelau e seus adeptos entre
os judeus helenizados de Jerusalém, pois Josefo assim o faz
em sua obra .
Daí concluímos que a revolta dos macabeus tem em si
sementes de conflitos políticos, mudança do status da
cidade de ethnos para pólis, econômicos, ambição por parte
dos mais ricos de enriquecerem por meio acumulação de
terras, e culturais, uma vez que a aristocracia judaica via
seus próprios costumes como o viam os gregos, como bárbaros
e arcaicos.
Portanto, discordamos da conclusão dada pela principal
fonte narrativa deste evento, os livros de Macabeus, de que
o conflito armado instaurado em 167 a.C. tenha sido por
causas religiosas. Na verdade é isto que estes autores
querem nos fazer acreditar. Mas, os motivos deste conflito
estão direitamente ligados a uma tendência característica
do povo judeu fragmentar-se entre si gerando instabilidade
social e conflito civil motivados pela ambição de alguns e
conservadorismo radical de outros.

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