Mostrar, Narrar e Cantar - RBEC

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Mostrar, narrar e cantar: anlise da dramaturgia/teatro de Chico Buarque e Fernando Marques

Nayara Brito1 [email protected] Digenes Maciel2 [email protected]


Resumo: Toma-se, mediante uma digresso terico-crtica vazada no paradigma crsico, circunscrito teoria szondiana em torno do drama moderno , a dramaturgia de Chico Buarque de Hollanda (em pera do malandro, 1978) e a de Fernando Marques (em ltimos, 2008), duas comdias musicais, para a anliseinterpretao de como, no mbito da produo do drama moderno/contemporneo brasileiro, podemos verificar a passagem das formas ainda centradas nos recursos do naturalismo ou do realismo psicolgico e social para aquelas que rumam soluo destas contradies, ao se formalizarem em formas que tocam as tcnicas picas propostas por Bertolt Brecht (1967), vistas como possibilidades de escrita de uma dramaturgia no-aristotlica, conforme descreve Gerd Bornheim (1992). Nas peas que compem o nosso corpus, a anlise-interpretao recai sobre um recurso especfico desta tcnica de teatro, a saber, a msica, sendo o autor da pera um compositor de referncia da nossa msica popular brasileira e o outro, autor de ltimos, um estudioso e um seguidor esttico da tradio daquele primeiro. Na dramaturgia de pera do malandro e ltimos, as canes aparecem como corpos estranhos, no termo brechtiano, refratrios dramaturgia cerrada. Palavras-chave: Dramaturgia no-aristotlica; Teatro pico; Msica. Abstract: It is taken by a theoretical-critical tour leaked in the Szondis theorys paradigm around the modern drama the dramaturgy of Chico Buarque de Hollanda (in pera do malandro, 1978) and Fernando Marques (in ltimos, 2008), two musicals, for the analysis and interpretation of how, within the production of modern/contemporary Brazilian drama, we can see the passage of the forms has focused the resources of naturalism or realism of the psychological and social for those who flock to the solution of these contradictions, to formalize the ways in which play epics techniques proposed by Bertold Brecht (1967), seen as possibilities of writing a non-Aristotelian drama, as describe Gerd Bornheim (1992). In the plays that make up our corpus, the analysis and interpretation fell on an specific feature of this technique of theater, the music, with the author of the pera a renamed composer of our popular Brazilian music and the other, the author of ltimos, an follower esthetic of the tradition of the first one. In pera do malandro and ltimos, the songs appear as strange-bodies, in Brechts terms, refractory to playwriting closed. Key-words: Non-Aristotelian drama; Epic Theater; Music.

Uma breve introduo Neste artigo, tomamos a dramaturgia de Chico Buarque de Hollanda (em pera do malandro, 1978) e a de Fernando Marques (em ltimos, 2008), duas

Aluna da graduao em Comunicao Social pela UEPB, bolsista do PIBIC/CNPq e atriz do PINEL Ncleo de Pesquisa e Experimentao Teatral. 2 Professor Doutor-B, Departamento de Letras e Artes/UEPB, atuando no Programa de Ps-Graduao em Literatura e Interculturalidade.

comdias musicais, para a anlise-interpretao de como, no mbito da produo do drama moderno/contemporneo brasileiro, verifica-se a passagem das formas dramticas ainda centradas nos recursos do naturalismo ou do realismo psicolgico e social atreladas s tentativas de salvamento da forma dramtica, em que os elementos pico-narrativos ainda aparecem como contraditrios em relao forma, mas que eclodem para resolver tal contradio, revelada nas escolhas dos assuntos abordados como temos em Eles no usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, de 1958, texto emblemtico dos incios do teatro pico brasileiro, que tematiza uma greve operria para aquelas que rumam soluo destas contradies, ao se formalizarem em formas que tocam as tcnicas picas propostas por Bertolt Brecht (1967) como as montagens do teatro musicado, como o show Opinio (1964), Liberdade, Liberdade (1965), Arena conta Zumbi (1967), j imersas nas discusses sobre o teatro pico e suas vinculaes polticas, naquele contexto ps Golpe de 1964 como possibilidades de escrita de uma dramaturgia no-aristotlica, conforme descreve Gerd Bornheim (1992). Esta dramaturgia, contrariando o esquema determinado pela tradio do aristotelismo (ou como tambm se chama, do drama absoluto), se constitui pelo recurso quebra do dilogo dramtico meio verbal exclusivo do drama e depositrio das relaes intersubjetivas e, conseqentemente, pela irrupo do pico-narrativo, levando subverso das unidades de tempo e espao, como tambm a de ao una, rompida pela insero de corpos estranhos, como as canes, mesmo que, em alguns momentos, elas ainda possam se inserir na constituio da fbula. Assim, se props, como objetivo geral desta pesquisa, analisar-interpretar textos dramatrgicos dos autores acima mencionados, com vistas ao entendimento de como, no conjunto das produes do drama moderno/contemporneo brasileiro, surgiram formas que rompiam com a forma do drama e rumavam ao pico-narrativo, mediante a insero de recursos estilstico-formais prprios do teatro pico: neste caso, considerando a caracterstica dos textos dados, escolhemos para anlise-interpretao as canes.

1. A crise Surgido da crise da forma do drama burgus, na segunda metade do sculo XIX, o drama moderno passou a incorporar recursos estilsticos de outros gneros, destacando-se a tentativa primeira de salvar a forma dramtica cerrada e, depois, a busca pela soluo/superao de sua prpria crise, mediante a plasmao de uma nova

forma, que ruma epicizao. Como j se tornou comum afirmar (Cf. SZONDI, 2001), no havendo mais como a forma do drama burgus representar os novos contedos, que no mais se vinculavam exclusivamente representao da burguesia e de seus modos de vida, sempre tidos como seus pressupostos formais, e com a emergncia do cotidiano, por exemplo, das classes subalternas, do operariado, etc., enquanto objetos da representao, precipita-se uma nova forma que caminha para a resoluo da ao que no mais cabia naquela forma tradicional. Considerado enquanto forma potica histrica e cannica desde os escritos de Lukcs (1990), Peter Szondi (2001) considera a tradio do drama moderno mediante um paradigma da crise formal, verificvel num movimento dialtico em relao transformao temtico-conteudstica, intimamente atrelada ao processo social em mutao, pensada como um processo a que se chamar de uma teoria da mudana estilstica que explica o rumo da forma antiga (em crise) para sua superao, plasmada num drama-pico. Ou seja, os elementos conteudsticos e formais novos implodem a forma antiga e contraditria em relao a eles, operando uma mudana para um estilo em si no-contraditrio, consolidado, assim, em uma nova forma a que se chama de drama moderno. Nessa passagem, rompe-se com os paradigmas cannicos da teoria do drama que, grosso modo, no estariam mais atuando na plasmao e compreenso da produo dramatrgica do teatro moderno e contemporneo. O teatro pico brechtiano, neste horizonte, seria apenas uma das possibilidades de se chegar s novas formas em que a contradio entre a temtica pica e a forma dramtica resolvida por meio do vir-a-ser formal da pica interna (SZONDI, 2001, p. 97). Ou seja, no podemos perder de vista que Szondi no toma o teatro de Bertolt Brecht como um divisor de guas, mas como uma forma que tentava dar conta de problemas dados em um momento determinado e em lugares esp ecficos (Cf. RODRIGUES, 2005, p. 18). Ao tomarmos o princpio dramtico como o que est centrado no dilogo intersubjetivo, na mmesis e na ao subordinados a um texto constituinte de uma totalidade; o pico seria qualquer quebra dessa equao, revelada na dramaturgia enquanto formalizao esttica da estrutura social, ou na encenao, sendo uma dessas possibilidades a tcnica brechtiana, por exemplo. E esta , com certeza, uma questo bastante pertinente teoria. J na dramaturgia clssica verificamos a utilizao de elementos musicais. Conforme a diviso aristotlica da Tragdia em seis partes: mito, carter, pensamento, elocuo, espetculo e melopia sobre a melopia, que se configura como a parte musical da Tragdia, Aristteles apenas diz que o seu ornamento principal: a parte

cantada, seja por um ator, seja pelo coro (o prodo, primeira entrada do coro, e os estsimos, demais participaes desse coletivo), que tida como uma parte nica, singular (Cf. ARISTTELES, livro VI, p. 39). Os cantos podem se apresentar nos episdios, como monoda, em que um nico ator canta, tambm chamados cantos de cena, ou como kommi, que um canto lamentoso ora cantado por um ator ou por atores e ora pelo coro. Curiosamente, sobreviveu ao tempo, para o drama, apenas a modalidade falada, expressa em dilogos, mesmo que possamos encontrar, ainda, uma forma equivalente quela, por exemplo, na pera. O dilogo entre personagens, que era, na tragdia tica, apenas um dos elementos formais, acabou tornando-se no transcurso histrico da forma o seu centro, excluindo os outros ou mesmo marginalizando-os. Mais ainda, a forma do drama acaba por se tornar uma armadura em que se encaixam (ou no se encaixam) assuntos, quase sempre selecionados por um critrio de classe o drama seria a forma em que se representariam os modos de vida da burguesia. Europa de 1880 ano que Szondi identifica como sendo o comeo da crise vivencia a Segunda Revoluo Industrial, que alterou intimamente o modo de vida das pessoas: de pequenas aldeias (comunidades) camponesas, milhares de famlias migraram para as cidades industrializadas, onde o vizinho um total desconhecido, onde no se tem a noo exata da cadeia econmica da qual faz parte, onde o trabalho quase chega ao limite de exaurir a humanidade das pessoas, pela alienao e explorao que tais relaes impem. Do que podemos provocar: h, ainda, relaes interpessoais? Essa crise nas relaes humanas chega dramaturgia atravs de uma interiorizao das falas dramticas, basta pensarmos nos dilogos improdutivos to presentes, por exemplo, na dramaturgia de Tchkhov,3 que levou a uma relativizao dos trs pilares fundamentais da forma do drama, a saber, (i) um fato, que desenvolvido num (ii) tempo presente e mediante (iii) dilogos intersubjetivos, todos de carter absoluto (SZONDI, 2001), ou seja, cerrados como possibilidade nica de composio do cosmos fictcio. assim que se precipita

[...] uma nova forma que, paulatinamente, adere ao monlogo interior, reduo para o ato nico, narrao ou ao uso de ferramentas de encenao [...] para resolver, assim, o contedo que no mais cabia naquela forma tradicional. [...] Em Ibsen, o passado dominante e, assim, o elemento
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Raymond Williams (2010) cita um trecho de A Gaivota, de Tchkhov, em que, num dilogo entre Trepliov e Srin [...] as falas de Trepliov sobressaem tanto, que fazem da cena quase um monlogo. (Williams, 2010, p. 159). A cena logo no incio do texto e as falas de Trepliov so verdadeiros bifes entrecortados por frases curtas de Srin.

intersubjetivo substitudo pelo de ordem intrasubjetiva; em Tchkhov, a vida ativa vai cedendo espao ao onrico e o dilogo vai se transformando num conjunto de reflexes monolgicas; (MACIEL, 2010, p. 20-1-2).

Dos ncleos que mais avanavam, no incio do sculo XX, no sentido de buscar solues para as dificuldades trazidas pelos novos assuntos, Berlim mostrou de modo mais preciso a tendncia de desenvolvimento do teatro moderno foi o chamado teatro pico. A partir do desenvolvimento de sua teoria, Brecht elabora um esquema, j bastante conhecido, onde elenca, de modo comparativo, as caractersticas formais do teatro pico e do teatro dramtico (sendo a utilizao da msica um diferencial entre as formas). Usamos aqui o termo comparativo na tentativa de nos aproximar da explicao que o prprio Brecht deu para seu esquema: trata-se de um deslocamento de peso de uma das formas para a outra (Cf. BORNHEIM, 1992), que parece referir proporo de sentimento e razo contida em cada uma das formas. Isso porque a impresso forte que fica da leitura desse esquema a de oposio entre pico e dramtico, ou entre razo e emoo. Nas Notas sobre Mahagonny (a teoria do pico se d a propsito da pera, inicialmente), Brecht (1967) fala que o texto, elemento constituinte do todo, no deve ser nem sentimental nem moralizante, deve mostrar a moral e a sentimentalidade. Na verdade, a concepo de que o esquema uma oposio total entre pico e dramtico fruto de interpretaes equivocadas. Ele parece sugerir o teatro pico como uma forma radicalmente racional de arte, que no admitiria a presena de sentimento, quando o que ele pretende canalizar as emoes na direo de objetivos especficos. Gerd Bornheim (1992) quem estabelece o uso dos termos dramaturgia fechada e dramaturgia aberta para designar as formas que ficaram mais conhecidas como dramaturgia aristotlica e no-aristotlica, nos termos do prprio Brecht. J se falou sobre a estrutura concebida por Aristteles. Mas esta segunda proposta, em poucas linhas Bornheim (1992, p. 317) a comenta: a ao se move com relativa liberdade no espao e no tempo, no d tanta ateno causalidade, as cenas se sucedem com independncia e contiguidade, e mais alguns particulares. Apesar de a dramaturgia no-aristotlica ter a variao por regra, algumas caractersticas comuns podem ser apontadas, segundo o mesmo terico:

(a)

relativizao da ao: o universal em relao ao particular, o comparante e o comparado, o horizonte maior em relao ao menor (lembrar da ao do heri pico que representa os

ideais de uma realidade maior) e a prpria posio crtica do espectador, que relativiza a ao; (b) ruptura da ao: alcanada a partir da utilizao de corpos estranhos, que perturbam a unidade e a continuidade da ao na medida em que a comenta so as canes. No teatro pico o ator e no a personagem que canta e seu canto se dirige diretamente ao pblico. As canes tambm

relativizam a ao, por seu carter de exemplaridade, se assemelhando s parbolas4. Contudo, ela no interfere na ao ou nas decises das personagens e no funciona como fala, mas pode se contrapor ao que dito nela, se a inteno for ironizar. uma pausa, um interldio. Com os sucessivos rompimentos, a ao perde sua unidade; (c) distanciamento da ao: as canes, os comentrios, o prlogo, o eplogo e os monlogos so alguns dos elementos que podem ser responsveis por realizar tal distanciamento, assim como a quebra da unidade de espao e de tempo. Os planos pico e dramtico se realizam em dimenses espaotemporais distintas e autnomas, mas complementares. Espao e tempo tornam-se relativos e compara-se a concomitncia de mais de um plano de ao.Assim, entendese que a esfera dramtica satisfaz as exigncias sensitivovisuais do espectador e dominada pelo princpio de percepo. A esfera pica mostra o real atravs da palavra. Sua busca pela percepo intelectual: [...] a esfera dramtica o que posto em cena, e a esfera pica o que participado ao pblico a partir da cena; [...] a realidade esttica debate-se [...] ente o modo de percepo e o modo de representao. [...] o plo pico tende a tornar-se determinante do dramtico. (BORNHEIM, 1992, p. 324); (d) ao que instiga a tomada de decises: j na postura do ator deve-se perceber a inteno de provocar o espectador. Na sua

Uma parbola uma histria contada dentro da narrativa, do enredo pico. Ela se apresenta como um smile e faz uma analogia com a prpria pea na qual est inserida, relativizando a ao a ela (BORNHEIM, 1992).

interpretao deve haver crtica. Ele deve mostrar mais do que ser; (e) continuao da ao: a estrutura aristotlica, que dividia a ao una em atos, substituda por pequenos fragmentos de aes, unas e independentes entre si, identificadas geralmente como quadros, que no seguem a lgica da causalidade. De modo que se diz da dramaturgia pica ou no-aristotlica que ela obedece a uma descontinuidade de aes. Todavia, a ao continua para alm do teatro e a soluo para os problemas apresentados em cena nem sempre (quase nunca) dado no espetculo. Ela exigida do espectador, que deve continuar a ao fora do teatro (BORNHEIM, 1992). Vemos, atravs desses pressupostos, o papel que a msica assume na construo das formas dramticas no-aristotlicas.

2. Sobre pera do malandro

pera do malandro (1978), de Chico Buarque, surgiu como uma adaptao da pera dos trs vintns, de Bertold Brecht (que por sua vez fez uma releitura de uma pera de John Gay, a pera dos mendigos, escrita dois sculos antes) num contexto posterior primeira recepo da obra brechtiana no Brasil. Mas o que o autor brasileiro fez no foi uma mera traduo da pea alem: Chico Buarque criou uma variante brasileira (Cf. SARTINGEN, 1998, p. 96), interpretando todos os elementos da pea para a realidade sociocultural do nosso pas, ou trazendo a temtica da pera dos trs vintns para o horizonte de expectativa do pblico brasileiro (Cf. FRUNGILLO, 1996, p. 66). A msica de Chico Buarque teve um papel importante na hora de abrasileirar a pera de Brecht. Antes de mais nada, ela garantiu, por assim dizer, a boa recepo do pblico, estando Chico na posio de grande compositor da msica popular brasileira no ano em que a pea foi escrita e encenada5, 1978. E apesar de tambm algumas delas seguirem as sugestes temticas das composies de Kurt Weill e Brecht para a pera

Segundo o prprio autor, a certa altura, as apresentaes da montagem da OM pareciam mais um show musical que um espetculo teatral, pois o pblico cantava em coro as msicas j conhecidas, principalmente depois da gravao de algumas delas por artistas da chamada MPB (cf. SARTINGEN, 1998, p. 115).

dos trs vintns (como Moritat Von Mackie Messer O Malandro; Polly Teresinha; Jenny dos Piratas Geni e o Zepelim), a prpria forma em que as canes de Chico foram compostas, como sambas ou mambos, por exemplo, operam uma traduo para o universo cultural brasileiro (ou, numa esfera maior, para a cultura latino-americana), criando um dilogo com o pblico. Assim, o que poderia se tornar uma desvio esttica ou tcnica de Brecht, que rejeita a empatia do espectador em relao obra, acaba se tornando algo extremamente brechtiano: o pblico sentia-se provocado a tomar uma atitude, como propunha Brecht, ao entender que o que se passa no palco tambm se passa, na verdade, com ele prprio. Pode-se dizer que a dificuldade em analisar o ltimo dos textos de Chico Buarque para teatro encontra-se na complexidade da prpria relao teatro-dramaturgia, que se agrava no caso do teatro musical, visto surgir uma terceira linha na relao, fechando a cadeia: dramaturgia-teatro-msica6. Pois que tal estrutura torna impossvel a apreenso de gabinete da unidade da obra, o que deixa as pesquisas sempre incompletas e/ou cheias de lacunas. A infinidade de possibilidades de montagem 7 por parte dos encenadores e diretores , j de cara, um quesito que foge aos objetivos deste estudo. No utilizaremos montagem A ou B como objeto de crtica, antes nos deteremos ao texto pera do malandro, de Chico Buarque, enquanto dramaturgia continente de elementos picos, notadamente no recurso msica, enquanto formalizao dos corpos estranhos brechtianos. O texto da OM dividido da seguinte maneira: uma introduo, um prlogo para o primeiro ato, que contm trs cenas, um prlogo para o segundo ato, que contm sete
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Analisando este texto, Arturo Gouveia (2004) fala em polissemia estrutural da OM e prope anlises particulares para cada um dos pares de relaes. Sobre o primeiro, Literatura e teatro, ele fala da incapacidade de mensurao das montagens enquanto objetos de estudo, problema que no ocorre com o texto escrito, registro definitivo. O segundo trata da relao entre Literatura e msica, e a o autor feliz ao colocar que a leitura, somente, das letras das canes no cobre todo o universo semntico de sua elaborao, uma vez que ritmo, matria instrumental, vocal, enfim, tudo o que compe a parte musical tambm comunica e significa. Por ltimo, ele analisa as diferenas existentes entre o roteiro/sequncia de canes que aparecem no livro e no disco, lanado como lbum do compositor Chico Buarque mais do que como trilha musical da pea. H, por exemplo, uma cano que est na pea, mas no no disco (Sempre em Frente) e outra que est no disco, mas no na pea (Uma cano desnaturada). As vozes que ouvimos no CD tambm no so registros dos atores, exceo de O Meu Amor, cantada po r Marieta Severo e Elba Ramalho, que faziam as personagens Teresinha e Lcia na primeira montagem do texto. Manteve-se, contudo, semelhana quanto ao gnero e ao nmero das vozes: Tango do Covil foi gravada pelo MPB-4, grupo composto por quatro vozes masculinas. Na pea esta cano cantada pelos seis atores que fazem os capangas de Max. Do mesmo modo se deu a gravao de Ai, se eles me pegam agora, feita pelas Frenticas, grupo musical composto por cinco mulheres, enquanto que, na pea, a msica cantada por seis prostitutas. J Folhetim e Teresinha, gravadas respectivamente por Nara Leo e Zizi Possi, so cantadas na pea tambm por vozes femininas e singulares.
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No Brasil as montagens de maior repercusso que se tem registro so trs: as duas primeiras so a montagem do Rio, em 1978, e a de So Paulo, de 1979, ambas sob direo de Lus Antnio Martinez Corra. A terceira montagem de maior destaque foi a produo de Charles Meller e Cludio Botelho, de 2003.

cenas, um intermezzo, um eplogo ditoso e um eplogo do eplogo, numa estrutura que quer retomar as peras que lhe so referncia, acima mencionadas. introduo, em que a dimenso metateatral se instala (com a apresentao das personagens do primeiro plano da ao fictcia e discusses sobre a produo teatral do perodo e o anncio do segundo plano por essas mesmas personagens existe uma pera se passando dentro da pera de Buarque), segue o primeiro prlogo. Ele cantado por Joo Alegre, o autor da pea dentro da pea, que aparece batucando numa caixinha de fsforos. A msica O Malandro, uma pardia de Chico Buarque para Die Moritat von Mackie Messer, msica de Kurt Weill para a pera dos trs vintns. A Moritat... uma cano narrativa, em que so enumerados os crimes impunes de Mackie Messer (FRUNGILLO, 1996, p.53). Na OM, essa msica inicial revela para o espectador a situao do malandro dentro da escala da malandragem, que vai do bandido mais ral (representado pela figura de Joo Alegre) at os ianques, grupo mais poderoso da economia capitalista. O Malandro uma das canes que segue a mesma lgica conteudstica da sua correspondente em Brecht. E, apesar de Chico ter usado instrumentos prprios do samba na hora de grav-la, a melodia permaneceu a mesma da verso alem, o que certamente causou e ainda causa certo estranhamento na recepo. A msica seguinte vai aparecer na primeira cena. Viver do Amor, cantada por Vitria, introduzida pela fala anterior (de Duran), que diz Agora dona Vitria vai -lhe ensinar como que se faz pra viver do amor. A letra desta cano presta significado cena, independentemente da msica. Se fssemos consider-la apenas, numa leitura direta do texto, poderia funcionar como continuao da ao, ainda no plano dramtico, dadas, principalmente, as formas verbais utilizadas: Vitria, de fato e simplesmente, explica como o trabalho de uma prostituta (o texto da cano se dirige a Fichinha, funcionria recm-contratada da firma de Duran, um prostbulo). Contudo, o fenmeno musical (que poderamos chamar de a forma como a letra se apresenta) impede que a sequncia da cena se d de modo direto e cumpre a funo da msica no teatro pico: quebra a unidade e a linearidade da ao pois, num drama, no consideraramos verossmil que uma personagem comeasse a cantar, o que se adqua, por exemplo, s convenes do gnero pera. Sobre a semntica da msica, enquanto elemento isolado, podemos considerar o ritmo em bolero como coerente ao contedo da letra (na dcada de 1940, ano fictcio da pea, era dos estilos musicais mais tocados nos cabars do Brasil).

A terceira msica Tango do Covil. Tambm anunciada pelas falas anteriores, mas diferentemente do que ocorre na cena em que surge Viver do Amor, aqui j se indica que vir uma cano, o que impede que funcione, na sequncia, como fala dramtica das personagens. Neste caso, a msica se faz mais importante, pois ela d o tom de ironia que no pode ser concebido pela leitura isolada da letra. Ora, um tango, ritmo que nos remete a uma postura elegante, forte, de passos marcados. , alm disso, um ritmo elitizado e, no entanto, cantado na cena por contrabandistas, que trajam smokings amarrotados e se apresentam num esconderijo. Mais: a letra vai rebaixando o nvel da linguagem e do vocabulrio, que se tornam chulos, medida que avana. Nela, Teresinha, noiva de Max (a cena se d pouco antes do casamento dos dois), elogiada por seus capangas com os adjetivos que seguem uma ordem gradativa: mais linda princesa, dama mais gostosa, mais tesuda, de bunda mais sublime. H, pois, um paradoxo propositado entre letra e ritmo. Ainda servindo aos propsitos picos, a msica ocupa um espao na cena relativamente grande, que d maior eficcia ao distanciamento e quebra da ao: depois de cantada a letra, a orquestra continua tocando at que cada um dos cinco (Geni exceo) funcionrios de Max dance com Teresinha. Na seqncia da msica, Max apresenta, um a um, os seus funcionrios, no dando a eles voz para se constiturem como sujeitos, mantendo, assim, uma tessitura pica dessas personalidades, distanciadas dos atores, e fazendo deles objeto de sua narrao. Na mesma cena aparece a msica Doze Anos. Aqui, a orquestra comea a tocar ainda durante as falas (como sugere a rubrica), pontuando um pequeno dilogo, de frases curtas, entre Max e Chaves, e continua ainda pouco depois que a letra acaba. A letra, de certa forma, faz referncia ao poema Meus oito anos, de Casimiro de Abreu, sendo esta mais uma sada encontrada por Chico para abrasileirar a pera, j que o poema bastante conhecido do repertrio brasileiro, sendo encontrado em praticamente todos os livros didticos do ensino bsico. A msica, assim como o poema, revela o sentimento de saudosismo de Max e Chaves: na OM, a infncia dos dois j recheada de pequenas malandragens (Sair pulando muro/ Olhando fechadura/ E vendo mulher nua). O tempo em que a msica permanece na cena destaca o dilogo e a confraternizao entre Max e Chaves, como uma cena dentro da outra uma forma bem brechtiana de quebrar a fluxo da ao8.

A Kanonensong de Brecht tambm fala da amizade antiga entre Machteath e Tiger Brown, personagem de funo semelhante ao Chaves (Tigro) da OM. Esses se conheceram no exrcito ingls, e a est a crtica de Brecht, que acusa o facismo alemo, usando como exemplo-metfora o servio

A msica seguinte ainda se insere na mesma cena. O Casamento dos Pequenos Burgueses, cujo ttulo faz referncia a uma pea de Brecht, O casamento do pequeno burgus. Na cena do casamento de Polly e Mac, na pera dos trs vintns, so cantadas trs msicas: a Kanonensong, Die Seeruber Jenny oder Trume eines Kchenmdchens e Hochzlied fr rmere Leut. Esta ltima conta a histria de um casamento no qual o noivo no sabe onde a noiva arranjou o vestido para a cerimnia e ela no sabe o nome dele9 (FRUNGILLO, 1996, p. 60). A lgica da relao letra-msica de O casamento dos pequenos burgueses se assemelha quela empregada no Tango do Covil: o ritmo, em mambo, alegre, afinal, Teresinha e Max esto casados e comemoram essa unio. Contudo, a letra fala de uma relao matrimonial que se mantm sob a aparncia de casamento perfeito ao longo dos anos, um casamento onde, na realidade, sempre reinou o desamor e a guerra conjugal. Basta conferirmos a primeira estrofe: Ele faz o noivo correto/ E ela faz que quase desmaia/ Vo viver sob o mesmo teto/ At que a casa caia/ At que a casa caia. Apesar de cantada por Max e Teresinha, a letra se refere a ele e ela na 3 pessoa, que confere o carter de distanciamento entre o intrprete/ator e a personagem. Teresinha, que vem em seguida, possui correspondente na pera dos trs vintns Der song Von Ja und Nein. Na verso alem, Polly cortejada por trs rapazes at se encantar (sob a lua de Soho) por um quarto amante, Macheath, o menos conveniente para os negcios de seu pai. A Teresinha de Chico Buarque tem referncia numa cantiga/moda bastante conhecida do repertrio do cancioneiro popular brasileiro (Teresinha de Jesus/De uma queda foi ao cho...). Na OM, Teresinha se decide por ficar com o terceiro cortejador, que advinha seus desejos de mulher. Sendo cantada pela personagem homnima e em primeira pessoa, a cano poderia servir, assim como Viver do Amor, funo dramtica, caso traduzisse/reproduzisse a fbula da pea. No entanto, ela obedece ideia apontada por Bornheim (1992), segundo a qual a msica, enquanto elemento pico, relativiza a ao. Na letra da cano temos um eulrico contando sobre trs cortejadores de diferentes estilos de conquista da mulher amada, que tentaram seduzi-lo. Na cena, Teresinha/Polly confirma para seus pais sua unio com Max Overseas/Machteath. Percebemos, assim, que a narrativa menor (a letra da cano) funciona como parbola para a narrativa maior, ou seja, a cena. O
ingls. Chico Buarque evitou mencionar o servio militar para no ter problema com a censura, uma vez que a abertura poltica em 1978 ainda era duvidosa. 9 Na OM a cena do casamento comea com Max orientando seus capangas a procurar o vestido de nilom, que ele importou diretamente da 5 Avenida de Nova Iorque para Teresinha. Mais frente, quando o juiz vai perguntar aos noivos se aceitam casar-se, Teresinha surpreendida ao descobrir nome verdadeiro de Max Sebastio Pinto pronunciado pelo juiz.

lirismo est presente na letra e no ritmo (cantiga), que indica o estado apaixonado da personagem e ao mesmo tempo quebra o clima da cena, em que Duran e Vitria aparecem com os nervos alterados, ocasionando, mais uma vez, o distanciamento. O primeiro ato se encerra com a cano Sempre em Frente. Pouco podemos falar sobre esta cano, que no est inserida no disco da pera. Mas basta dizer que a rubrica anterior ltima fala da cena pede que a orquestra ataque um hino marcial, ritmo que acorda com o contedo do dilogo precedente, sobre direitos trabalhistas e do cidado, legislao, Estado, etc. A ltima fala, de Duran, adquire, assim, o carter de discurso poltico, em parte por ter a marcha como msica de fundo. Quanto letra, esta fala em braos, pernas, musculatura, nervos, tripas e pulmo a servio de uma cabea que conduz um corpo so. Entendemos que tambm aqui h uma relativizao da ao, mas que, neste caso, abarca um contexto mais amplo, saindo do universo do texto/teatro e tocando a realidade, numa passagem bastante ao gosto de Brecht. , segundo Rabelo,
[...] uma representao alegrica do relacionamento ideolgico de Duran com as prostitutas, de Getlio Vargas e sua classe com o povo brasileiro durante o Estado Novo, dos Estados Unidos com os pases subalternos e, como se ver, das elites econmicas e militares ps64 com a nao brasileira. (RABELO, 1998, p.176).

O segundo ato se inicia de forma semelhante ao primeiro: h um novo prlogo a msica Homenagem ao malandro, tambm cantada por Joo Alegre, que volta cena. Como bem aponta Malheiros (2007), esse segundo prlogo uma atualizao do primeiro: ele apresenta a nova condio/situao do malandro, que se alterou ao longo da pea e que reflexo das mudanas ocorridas no sistema. A chegada da era industrial inviabiliza os velhos trambiques, condicionados a lucros nfimos e a riscos constantes diante da malandragem federal. E na voz de Teresinha, nas suas falas no decorrer deste ato, alm da crtica contida nas msicas, que esta situao se elucida. A nica sada se oficializar, quer dizer, fazer parte da ordem, podendo at aposentar a navalha e tornar-se trabalhador assalariado. O segundo ato mostra a tentativa de entendimento, por parte de Duran, Chaves e Max, dessa nova situao, e o surgimento desse novo tipo de malandro, regular, profissional, oficial, federal, com gravata e capital. A Homenagem... se d em ritmo de samba. uma composio original de Chico, no sendo pardia de nenhuma msica da pera de Brecht. A cena que segue se abre com Folhetim. Segundo a rubrica indica, a msica introduzida (com a parte instrumental, ao piano) no final da cena anterior. A ao se passa num bordel, onde as prostitutas preparam cartazes para a passeata organizada por

Duran. Apenas uma delas canta o samba-cano, junto ao piano. A letra parodia ou parbola do trabalho que exercem, narrando a sua dinmica/rotina, contando que tipo de relao elas tem a oferecer. Em nenhum momento da pea vemos essas mulheres no exerccio de sua atividade. Apenas so narradas as farras e episdios que se passam nos bordis. Vemos a um exemplo do que aponta SZONDI (2001) em relao contradio formal-conteudstica do drama: na OM, seguindo a tcnica pica-brechtiana, apresenta uma estrutura solucionadora para tal crise. Se a ao, ou os ncleos de ao, se passam num presente, o que passado (como os episdios ocorridos nos bordis) no mostrado ao espectador/leitor (o que poderia acontecer mediante o recurso ao flashback, por exemplo); , antes, narrado, seja na fala de um personagem, seja na letra de uma msica, como o caso. A msica faz, ento, o que cena nenhuma fez, ou, antes, narra aquilo que no foi mostrado. O modo como a cena montada, quando segue as indicaes da rubrica, retrata bem o modelo de cabar dos anos 1940, ano em que se passa a ao: uma mulher (possivelmente uma prostituta) cantando junto ao piano. Note-se que no determinado qual delas canta a msica, embora na pea tenhamos identificadas por nome seis personagens prostitutas. Talvez, seja um modo de nivelar todas a uma mesmo tipo, de mesmas caractersticas. A msica seguinte Ai, se eles me pegam agora. Ela marca o trecho da cena em que as prostitutas se divertem experimentando novas meias, de nilon, presente de Max. Todas cantam e danam. A letra pouco acrescenta cena: fala da possvel reao de seus pais caso as vissem em trajes de puta (no exerccio de sua profisso). A msica interfere, de fato, na cena, no momento em que Max, sapateando (j no final da msica, em ritmo de fox-trot), no v, ou finge no ver, Vitria entrar com Chaves e outros policiais (no sentido de desmoralizar seus inimigos, Max chega a puxar Vitria e a danar com ela, obviamente a seu contragosto). Se eu fosse o teu patro introduzida por um dilogo anterior, que acontece entre as prostitutas e os contrabandistas, e pode funcionar como uma continuao dele, obedecendo, portanto, funo dramtica. A msica d sequncia seguinte fala de Jussara: Te digo mais. Eu mesma, numa outra encarnao, no dia em que eu for patro, ah... Sai de baixo!. Sobre a cena e a msica, Rabelo pode falar melhor:

As prostitutas e os capangas discutem a explorao desumanizadora a que esto submetidos. Ainda mais marginalizados nos novos tempos [era industrial] suas atitudes acerca dos seus patres oscilam entre a demonizao e o agradecimento [...] nada mudar na estruturao social estabelecida

[...] A cano, dividida em duas partes, uma cantada por eles e outra por elas, mostra duas atitudes distintas a serem exercidas por cada um dos grupos, caso um dia o impondervel ou a providncia os faam patres. Eles prometem oprimir e explorar seus subalternos atravs [...] da coao fsica. Elas [...] atravs da coao sentimental. (RABELO, 1998, p. 181-2).

O assunto que domina a cena e, por conseguinte, a cano, caracterstico do teatro e da dramaturgia brechtianos (relao entre patro/empregador e empregado). A cena se encerra com a msica. Na cena seguinte temos O Meu Amor, umas das canes do musical que ficaram mais conhecidas. A cena segue sua curva dramtica prpria, em crescendo, a partir da entrada de Teresinha, e culmina com a msica, que tambm pode funcionar como continuao da discusso entre Teresinha e Lcia: elas tentam ganhar a briga argumentando e mostrando as aventuras e os feitios sexuais de Max com cada uma (mais um recurso narrativo, que se insere na rea de soluo da crise do drama visto abandonar a formar dramtica e lanar-se ao pico). Disputam o amor de Max. A orquestra continua tocando, mesmo depois que elas acabam de cantar, quando a briga sai do mbito verbal para o fsico. O ritmo em bolero pontua a sensualidade e o erotismo contidos na letra e com os quais Teresinha e Lcia se referem ao seu amado. A msica seguinte, Geni e o Zepelim, extensa tanto em relao letra quanto por seu andamento moderado, ocupando boa parte da cena. Cantada por Genival (a Geni), sua letra narra uma fbula em que um zepelim gigante surge sobre uma cidade na inteno de destru-la, mas decide poupar a todos do mal iminente caso Geni, eulrico da cano, durma com ele. Na OM a cano tem carter de exemplaridade e se assemelha a uma parbola10. Desse modo, a ao relativizada em funo da msica. Rabelo (1998) chama ateno para o fato de que tanto na msica como na pea Geni est mais prxima dos marginalizados, mas ainda serve aos grandes malandros: ele destaca a semelhana entre o trecho da pea em que Vitria, Duran e Chaves imploram para que Geni diga onde Max est e parte da msica em que o bispo, o prefeito e o banqueiro imploram para que Geni durma com o comandante do Zepelim. Segundo Malheiros (2007), a cano tem uma fora pica ou pica-brechtiana porque quebra a ao, que vinha em crescendo e havia gerado uma expectativa e uma curiosidade (em Chaves, Duran e Vitria, personagens, mas tambm nos espectadores/leitores) que s

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Na pera de Brecht, Die Seeruber Jenny oder Trume eines Kchenmdchens, ou Jenny dos Piratas, a terceira das canes cantadas no casamento. Na cena, Polly quem interpreta a msica que ouviu Jenny, copeira de um bar de Soho, cantar num botequim. Em Jenny dos Piratas, o eu-lrico sonha ser um dia seqestrado por um navio de piratas.

ser satisfeita aps o trmino da cano, quando Geni finalmente revela o paradeiro de Max. A melodia triste e ritmo lento de Pedao de Mim do um ar romntico e melanclico ao final da cena seguinte. a despedida entre Max e Teresinha, o fim da relao dos dois, mas pode-se tambm fazer outra leitura: a ruptura entre o antigo modelo de produo, personificado em Max, e a era industrial, na figura de Teresinha. Tal dicotomia j se anuncia no dilogo improdutivo que precede a msica: enquanto Teresinha fala sobre a nova era, sobre o progresso, Max se preocupa em salvar a prpria vida, ou o corpo, como ele enaltece, ainda com fome, sede e teso, que se encontra ameaado por Duran. A letra da cano, como bem observa Rabelo (1998, p. 187), reatualiza o mito do andrgino, exprimindo o sentimento de mutilao que afeta os amantes quando se separam.. Aqui, a letra da cano e a fbula/enredo da cena se contradizem, pois que Teresinha, bem verdade, no lamenta a separao com Max, estando os dois com percepes de mundo completamente diferentes. A prxima cena apresenta o final ou os finais da pea, marcado por recursos bem executados na busca do distanciamento brechtiano: a pea reassume seu carter metateatral, voltando ao primeiro plano da ao, no qual (re)aparecem o produtor e Joo Alegre. H uma confuso quanto ao final da pea de Joo, que decide modific-lo no ltimo momento, para a contrariedade de Vitria. Enquanto ela, Joo e o produtor vo resolver a questo nos bastidores, todos os demais atores ficam em cena tentando entreter o pblico at que seja decidido qual ser o final da pea. nesse momento que eles discutem os problemas reais de produo de teatro no Brasil, marcando assim a metateatralidade do texto de Chico Buarque. Quando Vitria volta ao palco, seguida de Joo Alegre que, num conversvel dos anos 40, parece ter sido subornado pelo produtor, anuncia-se o primeiro final da pea, nominado no texto de eplogo ditoso. Da pra frente a pea toda cantada. Para este eplogo, Chico faz uma pardia de alguns trechos de rias famosas das peras clssicas, a saber: "Carmen" de Bizet; "Rigoletto", "Aida" e "La Traviata" de Verdi; e "Tannhuser" de Wagner. A letra de Chico mostra um final feliz para todos os personagens, com as intrigas desfeitas, os novos arranjos acertados e a era industrial em pleno vigor. Mas de to perfeito e exageradamente feliz (lembrar que os finais de peras so sempre grandiosos e estapafrdios) o final chega a se tornar absurdo, ridculo, revelando mais um recurso de distanciamento (RABELO, 1981 p. 189) e talvez uma crtica prpria pera dramtica.

Findo este, temos o eplogo do eplogo. Joo Alegre, sozinho no palco, canta O Malandro n 2, uma segunda verso para Die Moritat Von Mackie Messer. A letra fala sobre o fim do velho malandro carioca, assassinado (literalmente) pela economia industrial e suas novas necessidades e relaes. S h espao agora para o malandro oficial de que trata a letra de Homenagem ao Malandro. Anteriormente mencionamos uma cano que, embora se encontre no disco, no se insere no texto da OM e, embora tenhamos dito que o que nos interessa nesse estudo entender a funo pica das canes no contexto da escrita dramatrgica, consideramos vlida a anlise desta ltima cano, entendendo-a como integrante, sim, do contexto do enredo, embora fora do livro. Uma cano desnaturada foi composta para a adaptao de Ruy Guerra da OM para o cinema. Ela tem uma correspondente na pera dos trs vintns, a Anstatt-da song. Ambas as msicas apresentam a mesma lgica na trama: elas so cantadas no momento em que os pais de Teresinha/Polly descobrem que a filha est vivendo um romance com um homem no aceito pela famlia, pois representa uma ameaa aos seus negcios. Os Peachum culpam o clima romntico que a lua de Soho trs e a imaginao da filha pela deciso tomada. J os Duran culpam o prprio crescimento e o fim da infncia, que fazem com que a filha se mostre independente e apresente vontades prprias, nem sempre correspondentes com as de seus pais. Lamentam, ento, todos os cuidados e ateno dedicados educao da filha, ainda na infncia, rogando poderem voltar no tempo evitar/recusar todo o amor dado. A cano um misto de delicadeza (a parte musical sugere uma cano de ninar) e crueldade, em versos como E eu te negar meu colo/ Recuperar as noites que atravessei em claro/ [...] Deixar-te arder em febre/ [...] Quebrar tua boneca/ Raspar os teus cabelos/ [...] No cho que engatinhastes salpicar mil cacos de vidro.

3. Sobre ltimos

Dando prosseguimento pesquisa, aps um primeiro esboo sobre as canes da OM e seu significado enquanto componentes de uma dramaturgia pica, encontramos uma maior dificuldade ao iniciar o trabalho em torno de ltimos: comdia musical em dois atos, de Fernando Marques, segunda obra do nosso corpus de anlise: a inexistncia de textos que tratem sobre esta pea, em particular, ou sobre o trabalho do prprio autor. Assim, acabamos por nos restringir introduo do livro, de autoria de Ilka Marinho Zanotto, que nos fala sobre a tese de doutorado de Fernando Marques,

intitulada Com os sculos nos olhos: teatro musical e expresso poltica no Brasil, 19641979, defendida na UnB em 2006, e sobre as leituras compulsivas do autor em torno do tema, das quais parece ter resultado, alm da referida tese, a obra em questo.11 Zanotto se refere a ltimos como a pea/espelho dos trabalhos desenvolvidos por Fernando Marques em torno do teatro musical brasileiro de Vianinha e Flvio Rangel, Guarnieri, Boal e Ferreira Goulart, Dias Gomes, Chico Buarque e Paulo Pontes, o que pode ser bem entendido a partir da leitura da estrutura ou da construo esttica em que se apia o texto de Fernando:

[...] na adaptao de Z, [Fernando Marques] acrescenta o poder do verso e a fora aliciadora da msica, sublinhando momentos decisivos, tcnica bchneriana (tcnica emulada por autores expressionistas em geral e por Brecht, em particular: a de iluminar um todo atravs de cenas fragmentrias). (in MARQUES, 2008, p. 15)

Fernando bebeu, pois, dessa mesma fonte. O enredo de ltimos busca fundamento num fato real, ocorrido em meados de 1997: quando os moradores de um conjunto habitacional conhecido como Fazenda da Juta, na zona leste da cidade de So Paulo, foram violentamente forados desocupao pela Polcia Militar. A ao da pea se passa algumas horas antes da desocupao e tem como personagens seres annimos e como em Chico, Brecht e Gay marginalizados pela sociedade. Tanto que nem sequer possuem uma identidade prpria, um nome: so assim conhecidos como o Homem da Bicicleta, a Senhora, o Catador, o Ladro, o Ator, o Msico, a Televiso, o Annimo, a Annima, os Policiais 1, 2 e 3 e Fernando Fernando, nico personagem que possui um nome (reforado e ironicamente homnimo ao prprio autor). O primeiro ato inicia com uma msica, Pedras por Pes. Na rubrica que a antecede, o autor sugere a msica como um baio que deve lembrar o Nordeste das feiras livres (Cf. MARQUES, 2008, p. 29). A letra desta cano fala sobre aquilo o que nos ficou entendido/conhecido como vida severina: quando diz [...] ele mil, mil e ningum so os mesmos milhares de nordestinos que, to semelhantes entre si, acabam por tornarem-se um amontoado chamado ningum. So os Severinos de Joo Cabral (2004, p. 46): Somos muitos Severinos/ iguais em tudo na vida /[...] iguais em tudo e
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O prprio dramaturgo tece alguns comentrios sobre a sua relao com o teatro musical, numa nota que segue introduo de Ilka. Nela, o autor fala sobre duas experincias anteriores, com esse universo: no incio dos anos 1990, o show Meus irmos: Gershwin, a partir de verses feitas por ele para algumas canes dos norte-americanos George e Ira Gershwin. Em 1995, comps trs canes a propsito da encenao de Woyzeck, de Georg Bchner, pelo diretor Tullio Guimarees. Foi quando surgiu a ideia de adaptar, em verso, a pea de Bchner, projeto consumado em 2003 com a publicao de Z, como ficou intitulada a verso. Nesse meio tempo, quis compor outro musical, original, da resultando ltimos. Junto ao diretor, ator e dramaturgo brasiliense Andr Amaro, comeou a pensar o argumento do que viria a ser a pea, cujas primeiras verses datam de 1998.

na sina:/ a de abrandar estas pedras/ suando-se muito em cima; Ele no sabe mas/ a morte o acompanha com suas ps morremos de morte igual/ mesma morte severina:; ou quando Fernando fala em Virgens e coronis/ senhor e servo ao som das vinte mil leis/ [...] o cantador/ cordis [...] fala em elementos que atravessam a histria da cultura nordestina, sem deixar de fora, claro, o clich: Vem a chuva, lava o cho/ e se a chuva no chegar?. Essa msica inicial da comdia de Fernando cantada, segundo indicao do texto, pelo ator que faz o Homem da Bicicleta. msica segue um pequeno solilquio, em versos, em que o personagem se apresenta como um mascate, oferecendo (aos espectadores) as mil especiarias que traz consigo. A rubrica indica que este solilquio pode ser interpretado entre a fala e o canto, maneira dos cantadores de viola. Observese que a forma como o personagem se apresenta tem carter pico-brechtiano no sentido de que a msica estabelece, na personagem, a relao de sujeito-objeto de si mesma (o Homem da Bicicleta representa, pois, os milhares de nordestinos que habitam as grandes capitais e metrpoles brasileiras). A prpria fala que segue refora essa relao (Uma vez apresentado/ [...] dou a visita por finda,/ foi bonita e, mesmo, linda./ Apaream os atores.) e marca o distanciamento e o carter anti-ilusionista da pea. Em algumas rubricas ao longo do texto, quando se vai propor as msicas, ressalta sempre que quem a canta o ator e no o personagem, como Brecht entendia que devia ser. Numa estrofe curta de seis versos, a Senhora, que surge, apresenta rapidamente o seu drama pessoal, que a faz juntar-se aos ltimos: Eu dormia em minha casa/ senhora de minhas tralhas/ meu quarto-sala-cozinha./ As guas criaram asa/ e derrubaram as calhas./ Agora estou sozinha.. Segue, ento, um dilogo curto em que o Homem da Bicicleta tenta consol-la at que, semelhante ao momento anterior, ele anuncia a chegada de mais personagens cena, com a fala: Vamos chamar ao/ os molambos do Brasil.. Nesse momento, executa-se mais uma msica, homnima ao ttulo da pea ltimos , um samba. Quem a canta so o Catador e o Ladro, que se alternam. As estrofes cantadas por cada qual, especificamente, falam/narram a sua rotina e a sua atividade. desse modo, to pico, que as personagens se apresentam, de forma ainda mais direta, neste caso, que a do prprio Homem da Bicicleta, vez que aqui os verbos so conjugados em primeira pessoa

Catador (cantando) Eu vivo a escovar os tesouros que salvo do lixo e livro o po dormido dos garotos com as jias que vendo Sem nome nos cartrios, sem mistrio, vou vivendo, eu vou e sei que se apagar s vo ficar as ninharias no nicho [...]

vivendo

Ladro Eu sigo a colher os bagulhos que escolho nas casas e levo longas horas devassando a virgindade das portas Enquanto tantos dormem, eu suando a horas mortas, no importa, s sei que se acertarem o meu peito no acertam as asas [...] (MARQUES, 2008, p. 34).

O refro carrega parte da crtica social que predomina no texto. em momentos como este que Fernando Marques revela mais nitidamente seu lado engajado e as suas influncias do teatro poltico. Tanto o refro quanto o ltimo verso parecem, como a prpria rubrica indica, ser dirigidos ao pblico e para os atores entre si.
Todos Vou dizer! Prazer em conhec-lo com sade, capaz de acordar e arregalar os olhos sobre os povos que exigem jantar j So vidas reunidas sob as pontes que vo desabar, moleques amarelos mas ferozes querem vir se vingar Voc que se imagina um ser humano vai se achar um covarde (MARQUES, 2008, p. 35).

No quadro seguinte, j todos os personagens esto em cena. E mais uma ganha voz: a Annima. quando o Homem da Bicicleta, em meio ceia coletiva, roga para que algum cante, completando aquele momento assim galante. A Annima, ento, se oferece: Eu canto. Canto direito.. Segundo a rubrica sugere, ela dirige-se para o centro da cena (marcando a quebra entre os planos dramtico e pico) para cantar o regue12 que recebe seu nome. Mais uma vez com a letra da msica que a personagem se apresenta (tambm em primeira pessoa) e mostra o que , na verdade: uma prostituta: Eu saio rua, ando nua sob a roupa,/ [...] com os peitos feito frutas venda,/ a mulher que os idiotas desejam eles me beijam, bem. Como o grupo em questo rene os desabrigados e desvalidos, a certa altura da pea prope-se, entre o Homem da Bicicleta e a Senhora, um campeonato de sofrimento. Contudo, o personagem nominado de Ator sugere que deixem o campeonato para a manh seguinte, quando todos estaro descansados, e prope-se a cantar uma msica para embalar o sono de todos. Ele toma um violo e, segundo a rubrica, muda de atitude, torna-se enftico, assumindo o personagem (Cf. MARQUES, 2008, p. 45). Essa postura que assume semelhante, pois, a da annima na hora de cantar, que vai para o centro do palco marcando o deslocamento da ao para o plano pico. Ainda antes, porm, quando todos se acomodam para dormir, ele profere

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Vamos grafar os ritmos aqui de forma abrasileirada, como faz o autor: reggae regue; jazz js; funk fanque; rock roque.

um discurso a um interlocutor avulso (o pblico, possivelmente) sobre a necessidade que o homem tem de brigar e o seu gosto por sangue. Aps essa fala, inicia a msica, que finaliza o segundo quadro. A msica O Jogo, um js. Ela funciona como um comentrio ou um arremate da fala anterior. Todas as caractersticas que ele atribuiu raa humana, como Ns gostamos de lutar!/ De dominar, de agredir,/ de tomar, de destruir,/ gostamos de sentir raiva, ele traduz como um jogo, quer dizer, ele entende o conjunto das relaes humanas como um jogo, cuja regra crua sempre existiu e continuar a existir. Apesar do contedo ferino da letra, o ritmo em jazz ralentado, visto que o Ator est acalantando o sono dos ltimos. O terceiro quadro inicia-se com uma msica, cantada e executada pelo ator que faz o Msico e um grupo que o acompanha. o baio-fanque Tema do Torneio, que introduz o campeonato de dor. A rubrica indica como a cano deve aparecer: os msicos a executam enquanto os demais personagens preparam o cenrio para o campeonato de sofrimento que ir comear. No decorrer do quadro, a cano, sem letra, poder voltar, marcando cada uma das intervenes no campeonato. O Msico no participa da ao, comenta-a. (Cf. MARQUES, 2008, p. 48). E, de fato, a letra narra o que a cano mostra:
Msico Tudo quase pronto para o grande encontro Vem que vai acontecer [...] Vamos ter agora O que o povo adora ver [...] Tudo quase certo J estamos perto Vem que vai acontecer (MARQUES, 2008, p. 49).

E continua em ciclos, repetindo suas dez estrofes, at que, de fato, a cena esteja pronta para acontecer diante do pblico. De certa forma a msica sustenta/completa a cena. H na letra um chamado para que o pblico assista e seja tambm pblico do torneio/campeonato (Tudo nos lugares/ Saiam de seus lares/ Vem que vai acontecer.) e, ao mesmo tempo, se olharmos sob a tica do teatro pico, um chamado para que as pessoas saiam de seus lares e saiam s ruas para ver de perto as mazelas que assolam a sociedade da qual tambm fazem parte, sendo algumas dessas mazelas narradas logo em seguida. Do ponto de vista musical, a melodia e a harmonia nada teem de muito elaboradas. So, ao contrrio, de fcil recepo sonora, j que a cano se repete em ciclos por um perodo indeterminado.

O campeonato disputado, pois, pela Senhora e pelo Homem da Bicicleta, que contam histrias de horror e piedade que aconteceram consigo. A dada altura, a Senhora deixa de narrar os episdios tristes de sua vida e passa a cant-los. Ou antes, canta um, especificamente: a relao com seu marido. Anuncia este momento pedindo aos msicos que comecem a tocar. o bolero Rotinas, cuja letra fala da sua vida matrimonial, baseada mesmo em uma rotina que consiste em estar sempre submissa ao marido, dando-lhe casa, comida e roupa lavada, sem mais esperana de receber reconhecimento ou carinho em troca. Em primeira pessoa, ela fala de uma suposta amante do marido e da vontade de deix-lo, desistindo sob a cobrana da sociedade para que represente o papel da mulher casada, dona de casa (s vezes penso em deix-lo/ em deixar de ser tola/ [...] Mas logo lembro das louas/ e calo como ensinaram, representando o papel). Sobre o ritmo, interessante observar a diferena no tratamento da Senhora e da Annima, como j foi esboado anteriormente: para esta usou-se o ritmo de regue, mais comum aos jovens, enquanto que para a Senhora a msica um bolero, ritmo mais antigo. A prxima msica s vem aparecer no segundo ato. o roque No toque esta mulher, cantada pelo Annimo e pelo Catador. Eles disputam o amor da Annima, contudo, de uma forma no to inflamada quanto como acontecia com Lcia e Teresinha na OM, quando cantavam O Meu Amor. Fernando recorre mais uma vez crtica social: quando fala em Est no ar:/ cena de sangue, de bangue-bangue/ no Brasil.../ Cena de filme, cena de cime se refere aos crimes passionais que costumamos ver noticiados na televiso brasileira. No quinto e ltimo quadro finalmente aparece a figura do prefeito Fernando Fernando, que vem para travar um acordo (que, na verdade, nunca acontecer) com os ltimos. Sua entrada introduzida pelo fanque Baro de Esmolas, cantado pelo Catador. Segundo a rubrica indica, o prefeito entra danando, meio comicamente, paradoxalmente letra da msica, que fala da realidade de um morador de rua (O clima [da cena] simultaneamente sombrio e bufo [Cf. MARQUES, 2008, p. 86]). A letra, em primeira pessoa, comenta, tambm, um pouco da descrena (nos polticos, mas tambm no Deus) que deve assomar quem vive esta realidade, dura ao ponto de se tornar espcie de beco sem sada:
Catador Carrego doenas, as mesmas que tem o meu co Liberto das crenas e das esperanas em vo [...] Apenas humano,

achei de nascer no Brasil Azar ou engano, eu sou qualquer um e sou mil [...] No peo desculpa e seja o que Deus no quiser (MARQUES, 2008, p. 87-8).

Os versos Azar ou engano,/ eu sou qualquer um e sou mil recuperam o sentido dos versos cabralianos mencionados quando do comentrio sobre Pedras por Pes. Aqui, porm, no so s os nordestinos que se reduzem a um em seu sofrimento comum, mas toda a parcela de brasileiros que o autor resolveu representar atravs dos ltimos marginalizados, que sofre com o descaso pblico. O resultado do confronto que acontece ainda nesse quadro entre as foras da ordem e os ltimos a morte do prprio Catador, que havia cantado a cano anterior. Assim que essa morte fica clara para o pblico, a Annima debrua-se sobre o corpo e canta a ltima cano do musical, Deus dos Encontros, uma balada. Segundo a rubrica, deve ser cantada de forma branda mas firmemente, como quem conta uma histria (Cf. MARQUES, 2008, p. 92), numa interpretao de carter pico-brechtiano. A cano um lamento histria de amor que finda com a morte do Catador. A letra mostra que nem no quesito amor/relacionamento os ltimos podem se realizar, sendo que at isso retirado deles e, na cena, do modo mais brusco pelo chamado poder oficial.
Annima Deus que no sabe o que faz Certa vez fui gostar e depois de me dar demais, [...] Deus que separa e rene os casais, [...] Pela ltima vez gostar eu, que nunca serei feliz (MARQUES, 2008, p. 92-3).

A ltima fala do texto apenas refora seu cunho poltico, na medida em que, quebrando mais uma vez a iluso teatral, impe a necessidade urgente de refletir sobre o verdadeiro torneio: no o que se apresentou no palco, mas aquele da vida, para onde os espectadores, afinal, retornam:
Ator Amigos: o campeonato de dor comea agora. O torneio de fato, no de teatro l fora.

Concluses Aps a leitura dos referenciais terico-crticos sobre dramaturgia-teatro e seu processo histrico, propondo como recorte para o referido estudo o drama moderno/contemponeo brasileiro em sua tangente com o teatro pico, ou noaristotlico, e suas caractersticas, foi possvel observar, pois, a aplicao que Chico Buarque e Fernando Marques, autores das peas acima mencionadas, fizeram das tcnicas e possibilidades de escrita dramatrgica surgidas a partir da crise definida por Szondi (2001), com particularidade para aquela desenvolvida por Bertold Brecht, e que ficou conhecida como teatro pico-brechtiano, sendo um dos artifcios dessa tcnica o uso da msica. Gerd Bornheim (1992), a partir dos escritos de Brecht, elucidou as principais caractersticas desse chamado teatro pico que o difere do drama absoluto (ou aristotlico), quais sejam: a relativizao da ao; a ruptura da ao; o distanciamento da ao; a ao que instiga a tomada de decises; e a continuao da ao. Nos textos que compuseram o nosso corpus de anlise, cada um desses pode ser percebido e provocado pela existncia de um elemento a que Brecht chamou de corpo estranho: a msica. O teatro pico-brechtiano se caracteriza, tambm, pelos meios com que o texto comunicado, que podem ser atravs do canto e da fala (como o era nas Tragdias gregas, como vimos em Aristteles). A msica retorna no drama moderno e, particularmente, no teatro pico como uma parte refratria antiga estrutura. E causa, contrariando uma tradio que j se instalara, a do drama cannico, um estranhamento no processo de recepo das obras, ou aquilo que Brecht chamou de distanciamento. Tanto na pera do malando quanto em ltimos a msica responsvel por este distanciamento, assim como por realizar os outros fatores que Bornheim (1992) destacou. Mostrar, narrar e cantar so, pois, trs meios possveis e complementares de se estruturar e se comunicar um texto, estando presentes na OM e em ltimos. A complexidade das relaes humanas em seus contextos intra/inter/extrasubjetivos exige diferentes modos de formalizao para serem postos e expostos a um pblico, ou a este pblico contemporneo. E em a msica sendo um meio expressivo por natureza e de competncia, seja em suas letras ou atravs de suas melodias/harmonias/ritmos, e de modo especial a nossa msica popular, que tanto fala do povo e ao povo, o teatro e

dramaturgia moderna s teriam mesmo a ganhar incorporando esse elemento suas produes.

Referncias Corpus: BUARQUE, Chico. pera do Malandro: comdia musical. So Paulo: Cultura, 1978. MARQUES, Fernando. ltimos: comdia musical em dois atos. So Paulo: Perspectiva, 2008. Inclui CD (33:47 min.): digital, estreo. Discografia: BUARQUE, Chico. pera do Malandro. Compact disc digital udio. So Paulo: PolyGram, 1979. 1 CD (53:39 min.): digital, estreo.

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