Caminhos Da Escrita Dramática em Portugal Final Séc XX
Caminhos Da Escrita Dramática em Portugal Final Séc XX
Caminhos Da Escrita Dramática em Portugal Final Séc XX
SCULO XX
Maria Joo Brilhante
Lisboa, Maio de 2003
Centro de Estudos de Teatro
linha e Os
Visigodos foram
representadas no Teatro Nacional em 1961 e em 1969, e Salazar
Sampaio pde ver ainda, no ano seguinte, A batalha naval levada
cena do teatro da Casa da Comdia. Mas a travessia dos anos 70 ser
dura para este autor e para o novo teatro portugus, que desafiava a
censura e sofria a total interdio: um jogo do gato e do rato que
explica alguns traos da criao literria e das prticas artstica em
Portugal, refiro-me aos jogos de palavras com duplos sentidos, ao
hermetismo, ao tom aforstico e stira. Prossegue a sua actividade
de tradutor de teatro iniciada com textos de Pinter et Beckett
(influncias bem presentes no seu teatro) e s com a abolio da
censura e a queda do regime em Abril de 74, os seus textos voltaro
aos palcos. A partir de 76, textos escritos durante a dcada anterior e
novos textos, por vezes encomendados por grupos de teatro, sero
representados por todo o pas.
Entre a vasta produo do dramaturgo, distingo: Os Preos, de
1976, Conceio ou um crime perfeito, de 1980, O Desconcerto, de
1982, Fernando (talvez) Pessoa, de 1982, O meu irmo Augusto, de
1989. Com uma actividade ininterrupta at ao ano em curso, Jaime
Salazar Sampaio viu reunida em vrios volumes pela Imprensa
Nacional-Casa da Moeda a sua obra, gesto que consagra a sua criao
e o projecto consequente de escrita que a animou.
A dramaturgia de Salazar Sampaio constituiu, por conseguinte,
um acto de resistncia contra a censura, o que justifica em parte a
ambiguidade e o hermetismo dos seus textos de antes da Revoluo.
Tendo adoptado o modelo do teatro do absurdo[1], Salazar Sampaio
no fez parte do grupo de escritores seus contemporneos que
seguiram outro modelo, o do teatro pico de Brecht, mais doutrinrio
e de interveno. Mas o seu projecto no era menos poltico ao
denunciar o desconcerto dos valores humanos no seio de uma
sociedade burguesa que pactuava com o fascismo, por temer a
desordem e a diferena
A agilidade do dilogo, o humor e a hbil maquinaria dramtica,
afinada pelo assduo dilogo que pode travar com os encenadores e
os actores dos seus textos, no deixaram de constituir exemplo para
alguns dos escritores que irei referir.
Quanto a Sttau Monteiro, inicia a sua actividade como romancista,
mas com Felizmente luar!, drama que pe em cena o momento
histrico da revoluo liberal de 1817/1820 e a falhada sublevao do
general Gomes Freire de Andrade, heri ausente da aco dramtica,
que se distinguir como dramaturgo. A partir do sucesso desse texto
publicado em 1961 (incio da guerra colonial), imediatamente
apreendido pela polcia poltica e s representado aps o 25 de Abril
de 1974 (em 1978), Sttau Monteiro prosseguir no exlio (em
Inglaterra) a sua actividade literria dividido entre a escrita de
romances e novelas e peas de teatro que sabe no poderem ser
representadas em Portugal, apesar de s em palcos portugueses
fazerem sentido, pois todas falam da ausncia de liberdade e visam
sua
recepo,
ficavam
O
espectador/leitor
assume
a
posio
de
destinatrio, voyeur (particularmente no 2 acto), mas no fica
implicado. Sem recorrer a efeitos do teatro pico, Lusa Costa Gomes
cria, atravs da linguagem verbal e de situaes do quotidiano mais
banal, um distanciamento que pe em evidncia a mecnica social
assente na ausncia de pensamento crtico pela submerso na
ideologia dominante, no poderio da vertente material da existncia
humana, no carcter fortuito das relaes interhumanas.
A linguagem, por seu turno, surpreendentemente viva e
enrgica, isto , deixa de ser, como em muito teatro anterior,
exclusivamente suporte de mximas e aforismos, veculo de
ideologemas, a que as vozes dos actores dariam expresso, para se
autonomizar numa pluralidade de registos, onde sobretudo
dominante o trabalho de montagem e reescrita satrica de frases
feitas, lugares comuns, slogans, citaes de textos de jornais e
sobretudo de revistas femininas, fragmentos de discurso tornados
insignificantes pela banalizao do seu uso quotidiano e de que a
autora insiste em exibir a vacuidade. O registo coloquial do dilogo
obtido atravs da fragmentao e da elipse, o que tem consequncias
dramatrgicas:
a
incompletude
da
informao
obriga
o
espectador/leitor a preencher aporias, a reconstruir uma totalidade e
a tomar conscincia do senso comum que domina o mundo em que
vivemos.
OITAVA MULHER H o problema da Amaznia, o problema do lixo
txico, o problema da energia nuclear. Para prevenir a catstrofe:
fazer muito exerccio fsico, evitar o colesterol. Beber leite magro.
Sobretudo no pensar nas florestas como um todo, mas em uma
rvore de cada vez. Morre esta, morre aquela. Morre aquele peixe,
morre aquela gaivota. Uma gaivota no faz a Primavera.(...)[14]
O ttulo da pea aponta para uma reiterada negatividade que
atinge o tempo, o espao e a dimenso humana. Aparentemente
enigmtico, ele ganha sentido medida que vemos desfiarem-se
sonhos,
desejos
no
realizados,
frustraes,
desencontros,
desentendimentos, numa terra de ningum, num pequeno mundo
onde as personagens so marionetas que do voz a discursos
estereotipados (a astrologia, a condio feminina, as seitas, a
ecologia) e impessoais. Como se se fizesse o retrato de um grupo
social, a pequena burguesia, cheia de aspiraes no concretizadas,
mergulhada na sua viso mesquinha da realidade.
MULHER B (escandalizada) A amizade, o amor, Deus, so coisas que
no te interessam?
(Nessa altura o Homem D comea a movimentar-se com dificuldade
para junto da Mulher A, que continua de p junto cama)
HOMEM B Mas tu sabes quem aquela gente? So agentes da CIA!
(Pausa. Com nfase) Agentes da CIA! Usam a capa de seita religiosa e
recrutam palermas nos pases para onde vo e esses palermas
pregam essas merdas do amor universal e da fraternidade a outros
cretinos que renem ainda mais idiotas para os ouvirem ler a Bblia.
(...)
(...)
Zarco (na boca de cena berra intensamente e esfaqueia sacos de
plasma que tem agarrados cintura)
Estou farto desta merda. Estou farto de ser carne para canho, para o
inconsciente colectivo!!! Quero ser real! Real, foda-se!!! Custa assim
tanto?!!!
Roxo (entra com Sombra agarrado a si)
Eu no disse que o gajo se passou.
(Zarco tenta afastar-se quando os v. Sombra senta-se ajudado por
Roxo e este para Zarco) Eih! Eih! Anda c! (Zarco aproxima-se
cauteloso) Anda c, porra! Anda c, no tenhas problemas (insiste e
arranca-lhe os headphones) Que merda ests a ouvir?
(Zarco no o deixa ouvir. Tira-lhe os headphones. Roxo agarra-o)
Sombra
Deixa o gajo em paz!
Roxo (d uma joelhada entre as pernas de Zarco e pontapeia-o at
este ficar imobilizado no cho)
desaparece! Estou cheio...(tenta ouvir os headphones) Isto no
msica! Foda-se, o gajo passou-se completamente!! (larga os
headphones e pega na ponta-e-mola)
Sombra
O que que ests a fazer? Enlouqueceste?![26]
Podemos concluir que mesmo a reescrita do modelo dramtico
tradicional acaba, na mais jovem escrita teatral, por ser contaminada
pela hibridez que caracteriza a cultura ocidental dita ps-moderna.
Da encontrarmos ao lado de uma referncia s Fleurs du Mal de
Baudelaire ou ao dipo, um esboo de poema, a citao de notcias
dos jornais, o significativo ttulo de um filme com James
Dean, Rebel without a cause, o discurso da vulgarizao cientfica
mais na moda (as bactrias antiexplosivas) ou a vulgata filosfica do
momento com, por exemplo, a referncia ao fim da histria. A
informao voltil, de ouvir dizer, banalizada, parodia e destrona o
conhecimento e a cultura das elites; o real desaparece sob o imprio
da citao e do simulacro.
Roxo (gargalha)
s muito esperto (coloca o p sobre o pescoo de Sombra) grande
cobra!...julgas-me parvo...(gargalhada) sempre tiveste medo que
parte dos teus rgos fossem para alimento vivencial de polticos e
outros pulhas da ordem, mas se fossem para artistas...
(gargalhada)...mas so os pulhas da ordem que nos cercam...(
disparado um tiro.Roxo sem largar o sorriso recebe-o entre os olhos e
cai mortalmente, largando a navalha que Sombra agarra)
Sombra (gesticula)
Okay o gajo est arrumado (ouve-se outro tiro que atinge na mo
onde tem a navalha. Surpreso tenta com uma mscara de medo
procurar explicao. Com a mo esquerda agarra a navalha e rola ao
ouvir outro tiro e protege-se com o cadver de Roxo, mas larga-o e
arrasta-se at boca de cena e senta-se na ponta do palco) Por favor
HOMEM Bom dia, em que posso ser-lhe til? Breve silncio, a mulher
olha-o fixamente s suas ordens, faa o favor...Breve silncio Esteja
sua vontade...Deseja o catlogo da loja? No quer sentar-se? Breve
silncio, a mulher senta-se Muito bem, vou buscar-lhe o
catlogo...Deseja conhecer o esplio mais antigo?...Este sculo?...Tem
preferncia por alguma poca? (...) Disponha, estou sua disposio.
O homem coloca-se atrs da mulher, silncio, a mulher vai fixando
alguns pontos em seu redor e nunca d ateno ao catlogo
MULHER Eu ia a subir para o miradouro de Santa Luzia...Silncio
HOMEM Sim?...
(...)
MULHER Eu o hbito dos miradouros e este de Santa Luzia sempre
me atraiu, muito, muito bonito. Breve silncio Tenho passado muitas
vezes a no passeio, olho a montra da sua loja e continuo para cima,
outras vezes, claro, quando venho para baixo, e sento-me um pedao
ali na S Catedral...e, l est, refresca tudo o que h dentro de ns e
que ns no sabemos exactamente o que seja. Sorriem Nunca tinha
visto essa placa a na porta.
HOMEM Como?
MULHER A placa que est na porta.
HOMEM Ah, sim, a placa.
MULHER Toque a campanha por favor...Ring the bell please...Silncio
(...)
MULHER Poderia comentar de mil maneiras, meu caro senhor mas
no vou faz-lo, deixe-me apenas dizer-lhe que o acho muito
atraente. Silncio No acredito que o ring the bell seja uma frase
inocente.
HOMEM Essa agora!
MULHER verdade.
HOMEM Como assim?
MULHER No lhe ocorreu inocentemente, tenho a certeza. No fundo
intuiu que uma mulher como eu havia de aparecer-lhe na loja
disponvel para falar consigo sobre a atraco que exerceu sobre ela.
Alis, a frase nem sua, um dito comum, uma frase do mundo.
(...)
HOMEM Mas a senhora entrou aqui livremente.
MULHER Graas a Deus, mas embora delicada a frase imperativa.
Uma pessoa vai na rua e ring the bell please. No me vai levar a mal
mas gostava de fazer amor consigo.[30]
Abel Neves prope ao espectador/leitor uma srie de amostras
de uma totalidade perdida ou da impossibilidade de representar uma
totalidade que tornasse nica a experincia humana. A dinmica de
cada uma dessas amostras assenta em trs momentos: primeiro a
criao e gesto de uma expectativa, depois o aguar da curiosidade
deixando adivinhar as implicaes da situao e por fim a revelao
surpreendente daquilo que estava implcito na situao criada. O
texto constri-se volta de um motivo mnimo: a festa de aniversrio
de um amigo, o momento de separao de um casal, a filmagem de
um anncio publicitrio, a contratao dos servios de uma
prostituta, uma frase escrita porta de um Antiqurio. Esta economia