Freyre Casa-Grande Quadrinhos E Pref e Poesia
Freyre Casa-Grande Quadrinhos E Pref e Poesia
Freyre Casa-Grande Quadrinhos E Pref e Poesia
Foi o estudo de antropologia sob a orientao do professor Boas que primeiro me revelou o negro e o mulato no seu justo valor separados dos traos de raa os efeitos do ambiente ou da experincia cultural. Aprendi a considerar fundamental a diferena entre raa e cultura; a discriminar entre os efeitos de relaes puramente genticas e os de influncias sociais, de herana cultural e de meio. Neste critrio de diferenciao fundamental entre raa e cultura assenta todo o plano deste ensaio. (Gilberto Freyre, trecho do Prefcio 1 edio de Casa Grande & Senzala).
CASA-GRANDE & SENZALA EM QUADRINHOS* Quando os portugueses, a partir de 1532, iniciaram efetivamente e colonizao do Brasil, j tinham uma experincia de cem anos de vida nos trpicos. Cem anos de frica. Isso sem falar no conhecimento, de mais de um quarto de sculo, da ndia. Por seu clima e por suas condies geogrficas, Portugal se aproximava mais da frica do que da Europa. E a paisagem do Brasil no era muito diferente da paisagem da frica. Foi a influncia dos trpicos sobre os homens e os valores do Velho Mundo que amoleceu a rigidez de certos costumes europeus, predispondo, assim, o portugus para uma colonizao que tambm exigia adaptao e tolerncia. O Brasil era uma continuao da frica ou da ndia. A prpria mulher indgena, de pele morena, lembrava a moura encantada essa espcie de sereia das lendas e das tradies lusitanas. Sobretudo quando se banhava nos rios. Alm disso, o colono portugus tendia a misturar-se, pelo casamento ou por qualquer outra forma de unio. A princpio com as ndias... e depois com as mulheres negras por ele trazidas da frica. Essa facilidade em misturar-se era maior no portugus do que em qualquer outro povo europeu. (pp. 9-10) ... Por outro lado, a colonizao no Brasil teria sido uma obra mais de particulares do que do governo portugus. So os portugueses os primeiros colonos europeus que se estabeleceram na Amrica em verdadeiras colnias, vendendo, para tal fim, tudo o que possuam nas suas terras de origem. As primeiras mes de famlia, as primeiras sementes, o primeiro gado... as primeiras moendas de acar... os primeiros animais de transporte, as primeiras plantas alimentcias, os primeiros instrumentos agrcolas... os primeiros escravos do eito tudo isso foi, entre eles, de iniciativa particular. Caracterizavam o sistema colonial portugus os seguintes elementos: a explorao da riqueza vegetal; a agricultura; o sistema de sesmarias (terrenos concedidos, sob certas condies, a quem quisesse cultivar)... o regime do eito; a utilizao da gente nativa, no s como instrumento de trabalho, mas tambm como elemento para a formao da famlia. Os portugueses no trouxeram para o Brasil preferncias por sistemas polticos ou por essa ou aquela raa ou nao. Apenas exigiam eles que os colonos fossem cristos... (pp. 13 14) A sociedade brasileira foi em toda a Amrica a que melhor manteve em harmonia as relaes de raa. Embora sem ir ao excesso, incontestvel ter sido valiosa a interpenetrao das duas culturas: a branca
Trechos extrados do livro de: PINTO, Estevo. Casa-Grande & Senzala em quadrinhos/ Gilberto Freyre. Adaptao Estevo Pinto 3. ed. So Paulo: Global, 2005.
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(representada principalmente pelo portugus) e a amerndia (representada pelas populaes nativas do Brasil). Facilitou a mistura das duas raas a preferncia da mulher gentia pelo homem branco: sonhava a nossa ndia em ter filhos pertencentes a um povo que considerava superior, pois, segundo as suas idias, s tinha valor o parentesco pelo lado paterno.(p.16) Dos nossos ndios herdamos muitos costumes e elementos culturais. Por exemplo: o leo vegetal para cabelo; a rede... o processo de coivara (p. 17) Alguns brinquedos ou jogos infantis [...] numerosos contos, lendas e supersties populares... estando presente ainda hoje, entre as crianas brasileiras, a crena nos bichos do mato... Na obra de explorao e conquista dos sertes, o nosso amerndio era o guia, o canoeiro, o soldado, o caador e o pescador. O mameluco, descendente do branco com o ndio, prestou relevantes servios nessas atividades (p.19) ... Os ndios do Brasil incutiam nos culumins, muitos agouros e supersties. Os culumins, por exemplo, usavam botoque nos lbios, ou dentes de animais pendurados no pescoo. Mesmo na atualidade, comum, sobretudo no Norte, o uso entre as crianas de dentes de animais, de mechas de cabelo e figas de madeira. No contato de duas culturas, uma mais atrasada e outra mais avanada, quase sempre a segunda procura destruir ou exterminar na primeira tudo que supe ser contrrio moral ou aos interesses dos dominadores. Assim fizeram os jesutas, educando o culumin maneira dos europeus. O culumin tornou-se, assim, cmplice do invasor na obra de tirar da cultura nativa os seus elementos mais originais. Tornou-se inimigo dos pajs, das danas, dos maracs sagrados, das sociedades secretas. Mas longe estavam os padres de querer a destruio da raa indgena; queriam era v-la domesticada e aos ps de Nosso senhor. E deu-se, ento, uma verdadeira inverso dos princpios: o filho tomou o encargo de educar o pai. Conta o Padre Montoya que, certa vez, conseguiram os missionrios fazer um velho feiticeiro danar. As crianas riram e mangaram do velho paj, que, da em diante, teve de sujeitar-se a servir de cozinheiro dos padres. (pp 26 27). ... Decorrido, porm, o perodo herico das atividades jesuticas, vrias misses quase se transformaram em armazm de mercadorias ( o acar, o mate, o cacau). E os indgenas passaram a ser verdadeiros escravos. Eram peas, maneira do acar, do mate, do cacau. Desse modo, muitos indgenas deram para fugir para o mato, abandonando mulheres e filhos. Ocorreu, assim, a dissoluo de numerosas famlias crists de caboclos, com resultante aumento da mortalidade infantil. Causa de muito despovoamento foram ainda as guerras de represso. Terrveis eram os castigos e suplcios aplicados aos ndios.(p.29) Nenhuma cultura, nenhuma gente, nenhum povo depois do portugus exerceu maior influncia na cultura brasileira do que o negro. Quase todo brasileiro traz a marca dessa influncia. Da negra que o embalou e lhe deu de mamar. Da sinhama que lhe deu de comer, ela prpria fazendo com os dedos o bolo de comida. Da preta velha que lhe contou as primeiras histrias de bichos e mal-assombrados. Os negros trazidos da frica tinham, de modo geral, uma cultura mais desenvolvida que a dos indgenas. Alm disso, o negro se adaptava melhor aos trpicos. Ao contrrio do ndio ou do caboclo que no suportava bem o rigor do sol. Em termos modernos, o negro era extrovertido (alegre, fcil, divertido, acomodatcio, confiante) e o ndio um introvertido (triste, difcil, bisonho, relutante e desconfiado). (p.35)
Culumin ou curumin, nomes que os tupis davam s crianas. Kunumy para os homens e kugnatin para as mulheres.
verdade que nem todos os negros trazidos da frica tinham o mesmo grau de cultura. Uma carta de Henrique Dias, escrita aos holandeses, j fala nos Minas, nos Ardas e nos Angolas. Barlus, que escreveu a biografia de Maurcio de Nassau, tambm fala da variedade dos negros. Joo de Laet, outro cronista do tempo de Nassau, fez igualmente referncia aos negros da Guin. (p.37) Alm da mucama, da cozinheira, da velha contadora de histrias, havia ainda a ama de leite para ensinar s crianas as primeiras palavras de gria, os primeiros nomes portugueses errados, as primeiras expresses populares (vote!, oxente!, hum-hum). Logo que a criana brasileira comeava a andar, os pais davam-lhe por companheiro um molequinho. Isso, sobretudo, nas casas-grandes. O molequinho era um camarada de brinquedos, mas tambm o leva-pancadas do ioi. (p.46) ... Meu branquinho feiticeiro, doce ioi/ meu irmo, adoro teu cativeiro/ branquinho do corao. Em nenhuma das modinhas antigas se sente melhor o visgo de promiscuidade nas relaes de sinhsmoos das casas-grandes com mulatinhas das senzalas. Relaes com alguma coisa de incestuoso no erotismo s vezes doentio. mesmo possvel que, em alguns casos, se amassem o filho branco e a filha mulata do mesmo pai. Fala-nos um cronista annimo, em 1817, da grande lubricidade dos negros de engenho; mas adverte-nos que estimulada pelos senhores vidos de aumentar seus rebanhos. Na realidade, nem o branco nem o negro agiam por si, muito menos como raa, ou sob a ao do clima, nas relaes de sexo e de classe. Exprimiu-se nessas relaes o esprito do sistema econmico que nos dividiu, como um deus poderoso, em senhores e escravos. (p.48) ...Os casamentos dessa poca, nas casas dos ricos, eram mais espalhafatosos. Festa de durar uma semana. Matavam-se porcos, perus e bois. Armavam-se barracas para acomodar os convidados. Alguns negros eram alforriados em sinal de regozijo; outros dados noiva de presente ou dote. Danas europeias na casa-grande; samba africano no terreiro. Havia, em regra, confraternizao entre os senhores e os escravos. Os escravos no s eram batizados como se permitia que conservassem certos costumes de origem negra. A instituio dos reis do Congo, por exemplo. Os reis do Congo faziam suas danas africanas, ao mesmo tempo em que rezavam a So Benedito ou a Nossa Senhora do Rosrio, ambos pretos como eles. (p.50-51) Foi o negro que animou de maior alegria a vida domstica do brasileiro, marcada pela melancolia do portugus e pela tristeza do ndio. Foi o africano quem deu vivacidade aos so-joes de engenho; quem animou os bumbas meu boi, os cavalos-marinhos, os carnavais e as festas de Reis. Os negros trabalhavam quase sempre cantando. Nos engenhos, tanto nas plantaes como nos tanques de lavar roupa. Cantando, mesmo quando enxugavam o prato, faziam doce e pilavam o caf. E, nas cidades, carregando sacos de caf ou pianos. Em alguns engenhos, era costume receber visitas com negros cantando. exato que, no raras vezes, o banzo, isto , a saudade da frica, vinha entristecer esse quadro alegre. Houve negros que, de tanta saudade, definhavam at morrer. E outros que se matavam, comendo terra ou praticando outros atos nocivos. Mas, em regra geral, ao tempo do Imprio e do Brasil Colnia, os cantos dos negros encheram de alegria a vida de nossos antepassados a vida das casas-grandes e das senzalas, cenrio de tantos acontecimentos importantes para a Histria, a partir do sculo XVI, da sociedade brasileira. (p.60)
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A alma do brasileiro, Que o portuga femeeiro Fez e o mau fado quis Infeliz!
Que importa? l desgraa? Essa histria de raa, Raas ms, raas boas Diz o Boas coisa que passou Com o franci Gobineau Pois o mal do mestio No est nisso. Est em causas sociais, De higiene e outras que tais: Assim pensa, assim fala Casa Grande & Senzala. Livro que cincia alia A profunda poesia Que o passado revoca E nos toca
Poema escrito em 1926 e publicado no livro "Talvez Poesia", Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1962. 4