As Ganhadeiras Mulher e Resistência Negra em Salvador No Século XIX
As Ganhadeiras Mulher e Resistência Negra em Salvador No Século XIX
As Ganhadeiras Mulher e Resistência Negra em Salvador No Século XIX
As relaes escravistas nas ruas de Salvador do sculo XIX s e caracterizavam pelo sistema de ganho. No ganho de rua, principalmente atravs do pequeno comrcio, a mulher negra ocupou lugar destacado no mercado de trabalho urbano. Encontramos tanto mulheres escravas colocadas no ganho por seus proprietrios, como mulheres negras livres e libertas que lutavam para garantir o seu sustento e de seus filhos. As escravas ganhadeiras, como s e chamavam, eram obrigadas a dar a seus senhores uma quantia previamente estabelecida, a depender de um contrato informal acertado entre as partes. O que excedesse o valor combinado era apropriado pela escrava, que podia acumular para a compra de sua liberdade ou gastar no seu dia-a-dia.] Geralmente os senhores respeitavam as regras do jogo, embora a legislao fosse omissa sobre este assunto. Somente a partir da chamada Lei do Ventre Livre, em 1871,foi facultado aos escravos o direito de acumular um p e c l i ~ Esta . ~ prerrogativa favoreceu particularmente os escravos e escravas de ganho, que conseguiam fazer economias devido sua ocupao, bem inseridos que estavam na economia monetria da poca. Contudo, n50 era tarefa fcil para a escrava pagar a diria ou a semana do senhor e ao mesmo tempo poupar. A rentabilidade variava de ocupao
* Mestra em Hist6ria pela UFI3a. Agradco a Joo Jos Reis pela leitura cuidadosa e
pelas sugcslficbs. Sobrc c.sci-avos d r ganho consultar Jacob Gorender, O escravismo~colonial, So Paulo, tica, 1978, p. 462; Klia Maltoso, Ser escruvo no Brasil, So Paulo, Brasiliense, 1982, pp. 140-143: I~xilaMczari Alyranti, Ofeitor ausente, Rio de Janeiro. Vozes, 1988, p. 49: Luiz Carlos Soarcs, " Os cscravos de ganho no Rio de Janeiro do sculo XIX", Revista Brasileira cie llistrricr. nV 16, (1988), pp. 107-142: Joo Reis. Rebelito escrava no Bmsil, So Paulo, 13rasilicnsc, 1986, pp. 197-215. dcntrc outros.
Colecio cius leis h 1111pdrio cio Brasil, Tomo XXXI, Parte I. Rio de Janeiro, Tipografia Iinpcrial, 1871, pp. 197-215, artigo 4 (pargrafos 1 e 2).
para ocupao, e dependia tambm de fatores como idade, sade, habilidades p e s ~ o a i s Existia .~ um valor de mercado, base para os clculos de produtividade da ocupao. Um anncio de 1839 oferecia pagar 10 mil ris mensais a uma ama-de-leite, o que dava como diria em torno de 330 ris. Com base no inventrio de Gregrio Maximiano Ferreira, feito em 1847, Maria Jos Andrade estabeleceu que a renda auferida com escravos no ganho variavam com a ocupao e o sexo: um carregador de cadeiras pagava ao senhor 400 ris por dia, uma lavadeira ou uma engomadeira pagava 240 ris cada. Segundo a autora, valorizava-se mais o trabalho masculino em at duas vezes o valor estabelecido para os oficios feminino^.^ A situao sofria alteraes quando se tratava de mulheres libertas e suas ocupaes, o que veremos adiante. As escravas ganhadeiras podiam residir ou no com os senhores, dependendo da vontade destes e um pouco da delas tambm. Caso fosse permitida a morada fora da casa do senhor, a escrava responsabilizava-se por sua alimentao e moradia, mas os senhores recebiam sem maiores preocupaes a quantia estipulada, em dias pr - fixados. provvel que, nesses casos, a importncia devida ao senhor fosse menor do que nos casos em que este desse casa e comida a escrava. Segundo Wetherell, escrevendo em 1845, o produto do trabalho da escrava em Salvador "permitia ao dono viver na ociosidade na medida em que possua de dois a trs ou mais escravos".~ste sistema tornava os escravos, conforme Spix e Martius, "capital vivo em ao", j que, segundo eles, os senhores recuperavam em trs anos o valor pago por eles, principalmente nos perodos em que a economia baiana favorecia o trabalho das ganhadeiras e ganhadores. E os viajantes criticavam a ganncia dos senhores, que tornava "tristissima a condio dos que eram obrigados a ganhar diariamente uma certa quantia".6 Apesar disso, o tipo de relao certamente interessava s escravas, se no do ponto de vista econmico porque viver longe do senhor tornavaas mais livres de seu controle. Alm disso, o ganho era uma das principais portas para a conquista da alforria. As mulheres libertas experimentavam uma situao no ganho diferente das escravas, pois no seu trabalho no interferiam os senhores e os
Maria Jos Andrade, A mode4bra escrava em Salvador, 1800-1888, So Paulo Corrupio, 1988, p. 132 Idem, p. 133.
James WethereU, Brasil apontamentos sobre a Bahia, Salvador, Banco da Bahia, s/d, p. 29
Johan Spix e Karl Von Martius, Viagern pelo Brasil 1817-1820,volume 2, So Paulo, EDUSP, 1981, p.141.
produtos da venda Ihes pertenciam totalmente. Apesar dessa diferena, desempenhavam a mesma funo social que as escravas, circulando a vender produtos alimentcios e outros. Quanto ao retorno financeiro no ganho, este dependia da ocupao especfica a que se dedicavam e das oscilaes de mercado. Segundo um censo de 1849, da freguesia de Santana, em Salvador, as africanas libertas estavam distribudas entre as seguintes tarefas, conforme tabela IV abaixo. Observa-se logo que a grande maioria dos libertas se dedicavam ao pequeno comrcio, sendo raras as empregadas no servio domstico. Com efeito, 71%das africanas libertas negociam, proporo que sobe para 79%s e acrescentarmos aquelas que declararam vagamente viverem "do ganho". Tabela IV Ocupaes de libertas na freguesia de Santana - 1849 Origem Ocupao Domstica Qui tandeira Mercandeja Costureira Lavadeira Cozinheira Alugada N egocios Mendiga Proprietr. "Ganho" Pedreira Vive d e escr Sust.filhos Roceira S/Especific. Total
FONTE: Censo Freguesia de Santana - 1849, APEBA, Srie Escravos, mao 2898 Africana Nag Jeje Tapa Angola Mina Bornu
Total
As libertas comercializavam produtos como hortalias, verduras, peixes, frutas, comida pronta, fazendas e louas. Embora no formassem um
grupo homogneo, as vendedeiras conseguiam mais facilmente integrarse no pequeno comrcio urbano, retirando desses negcios o necessrio para a sobrevivncia e at alcanando alguma prosperidade. Haviam certas posies nesse pequeno comrcio cuja margem de lucro era bastante generosa. Esse tipo de atividade no era estranho a s negras importadas pelo trfico negreiro, pois que em muitas sociedades africanas delegavam-se s mulheres a s tarefas de subsistncia domstica e circulao de gneros de primeira necessidade. Muitas ganhadeiras africanas eram provenientes da costa Ocidental da Gica, onde o pequeno comrcio era tarefa essencialmente feminina, garantindo a s mulheres papis econmicos importantes. Esta explicao no exclui mulheres dos grupos bantos, que praticavam i~rualmente o comrcio ambulante em suas t e r r a 7 De acordo com a origem tnica das africanas libertas da Freguesia de ,Santana em 1849, as nags representavam 3395, os jejes 20%, formando ambas a maioria das ganhadeiras. Outras etnias como angola, bornu e minas, foram representadas por nmeros insignificantes (6%). Observamos, porm, que as declaradas como simplesmente "africanas" somavam 41%, ai incluindo-se provavelmente muitas nags e jejes. A maioria jejenag decorre da direo do trfico naquele perodo, concentrado no Golfo de Benin, terra dessas africanas. A ausncia de crioulas libertas neste levantamento se explica por ter sido o censo feito para melhor controlar os africanos. Assim, ficamos sem poder comparar o peso das crioulas no mercado de ganho. Acreditamos, no entanto, que elas eram mais encontradas no servio domstico. Embora no estivessem absolutamente donas das ruas, a s africanas eram maioria no ganho, pelo menos ao longo da primeira metade do sculo XIX. A tarefa de vendedeira exigia, como Maria Odila observou em seu estudo sobre mulheres em So Paulo, uma espcie de "faro para o n e g c i ~ " . ~ E isto as aliicanasj traziam d a h c a , onde eram consideradas exmias comerciantes. Kidder informa que para essa ocupao geralmente ''eram escolhidos os escravos mais espertos e de melhor aparncia, de ambos os sexo", e no era raro que esses escravos revelassem um "grande tato e tino corner~ial".~ O
Maria Odila S. Ilias, Quotidiano e poder ein So Paulo no sculo XIX, So Paulo, Brasiliense, 1984, p. 116. Ver tambem Mai-y Karasch, Slave Life in Kio rle Janeiro 18081850, Tese de Ph.D., University of Wisconsin, Miineo, 1972, p. 507. Dias, Quotidiano e poder, p. 119. Daniel Kiddcr, Keininiscnciasde viagens eperutiun&nciuno Brasil, So Paulo, Martins Editora, 1972, pp. 73-74.
certo que o bom desempenho da funo dependia da habilidade em lidar com a freguesia, atrair e conquistar com a qualidade de seus produtos e preos cmodos a clientela, geralmente composta de outros escravos que compravam para os senhores ou para si, alm de pessoas livres de baixa renda. Essas qualidades eram observadas por pessoas que desejassem uma negra para o servio de ganho, como se verifica no anncio abaixo: Jos da Costa compra dois escravos para fora da terra. Uma crioula ou mulata de 14 para 16 anos, para mocamba [sic], outra da Costa 20/30 anos, para andar vendendo fazenda na rua, que seja corpulenta e bem ladina para este fim.lo Enfim, era preciso ser muito "ladina", como pedia o anncio acima citado, ou seja, astuta, que dominasse o portugus e, bvio, conhecesse o servio. O sucesso das ganhacleiras que se dedicavam a venda de peixe e de "diversos gneros", com renda diria de at 4 mil ris, em 1849, faz crer que souberam desempenhar seu papel muito bem. O sucesso se refletia, sobretuclo, no controle que as ganhadeiras vieram a ter sobre o comrcio varejista de produtos perecveis. J no final do sculo XVIII, Vilhena notou que elas praticamente monopolizavam a distribuio de peixes, carnes, verduras e at produtos de contrabandoll. Com freqncia, as ganhadeiras s e aliavam a negros para receptarem produtos furtados e revend-los, como ilustra o caso da preta Claudina, detida a porta de um Trapiche quando recebia de um preto acar roubadolz . Informa Vilhena que as negras, atravs de um sistema de especulao de mercado e atravessamento, a que chamavam carambola ou cacheteria, controlavam a circulao de certos produtos bsicos de alimentao na cidade13. bem possvel que este "monoplio" ainda existisse durante o sculo XIX. Kidder, em 1839, observou a mesma situao das negras ganhadeiras descritas por Vilhena14.Dez anos depois, em 1848, Wetherell
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" Iws dos Santos Vilhena, A Raltia no sculo W I I I , Salvador, Itapu, 1969, vol I, 1969, pp. 93, 127-130.
descreveu mecanismo semelhante utilizado pelas ganhadeiras para monopolizar os produtos de primeira necessidade. Segundo ele, o peixe era vendido exclusivamente por "ganhadeiras peixeiras", que recebiam todo o produto dos pescadores, para revender no varejo. O mesmo processo era s ganhadeiras utilizado na distribuio das frutas, repassadas diretamente A que, em razo disso, muito influenciavam ou at mesmo determinavam o preo desses p r o ~ l u t o s . ~ ~ Alm de circularem com tabuleiros, gamelas e cestas habilmente equilibradas sobre as cabeas, as ganhadeiras ocupavam ruas e praas da cidade destinadas ao mercado pblico e feiras livres, onde vendiam de quase tuclo. Em 1831, foram destinadas ao comrcio varejista com tabuleiros fixos as seguintes reas urbanas: o campo lateral da igreja da Soledade, o campo de Santo Antonio em frente a Fortaleza, o largo da Sade em frente a roa do Padre S, o campo da Plvora, o largo da Vitria, o largo do Pelourinho, o Caminho Novo de So Francisco, a praa das Portas de So Bento, largo de So Bento, largo do Cabea, a praa do Comrcio, o Caes Dourado. Para peixe e fatos de gado e porco foram unicamente destinados o campo em frente aos currais, no Rosarinho, ou Quinze Mistrios, a praa de Guadalupe, a praa de So Bento, o largo de So Raimundo e a rua das Pedreiras, em frente aos Arcos de Santa Brbara.16 O mapeamento dos pontos de venda das negras mostra que estavam espalhadas pela cidade em locais estratgicos. Encontravam-se em reas de intensa movimentao comercial, como a praa do Comrcio e o Caes Dourado, mas tambm em reas de carter residencial, conforme mapa abaixo. Wetherell assinala que os mercados, de modo geral, eram dos lugares mais pitorescos da cidade, onde encontrou "montanhas de legumes, frutas, etc...,a sombra de esteiras, - algumas delas formando uma espcie de cabana e outras apenas amarradas a algumas varas e formando como teto". Sob esses toldos sentavam-se as vendedoras. Vestiam trajes do mesmo modelo, mas de fazendas devaiiadas cores, colorindo o cenrio urbano. Algumas traziam, como na fiica, seus filhos atados As costas com "pano da Cota" ou soltos entre tabuleiros, em meio a frutas e aves.17Apresenados filhos ali perto parece indicar que essas mulheres labutavam sozinhas pela sobrevivncia. Algumas provavelmente deixavam os filhos em casa, o que
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Wcthcrcll, Brasil, p. 41
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nem sempre era seguro. A menor Joana, filha de uma ganhadeira em Cachoeira, conta o registro policial, "tendo ficado s em casa,[ ...I e aproximandese do fogo, incendiaram-selhe os vestidos, sem que ningum socorresse por atribuir os vizinhos a effeitos de castigos domsticos os gritos que ela dava". A menina, desesperada, atirou-se para a rua por uma janela, falecendo devido a gravidade das queimaduras.18 O prncipe Maximiliano tambm observou grupos de vendedeiras instaladas ao longo dos passeios, de ccoras, vendendo frutas. Havia nesses grupos negras de todos os tipos e idades. Vestiam roupas leves, apropriadas para o trabalho nos dias quentes. Muitas j estavam marcadas pelo tempo. Notavam-se suas muitas rugas, pele acinzentada e cabelos brancos. Algumas, j bastante velhas, bebiam cachaa enquanto mercavam "com voz estridente, loguazes e com ar de troa, goiabas, bananas, cocos e muitas frutas...".19 Essa situao nem sempre imperou em Salvador. No perodo colonial uma legislao portuguesa concedia a exclusividade do comrcio varejista as mulheres brancas. O comrcio varejista permaneceu por muito tempo a nica atividade aberta s mulheres livres na sociedade escravista20. Mais tarde este privilgio foi extendido, por fora do uso, a mulheres das mais variadas condies sociais, as negras inclusive. No raro, proprietrios bem sucedidos colocavam tambm suas escravas no ganho. Vilhena notou que: das casas mais opulentas desta cidade, onde andam os contratos, e negociaes de maior porte, saem oito, dez, e mais negras a vender pelas ruas a prego a s cousas mais insignificantes, e vis; como sejam iguarias de diversas qualidades, mocots, isto mo de vaca, carurus, vataps, mingau, pamonha, canjica, isto papa de milho, aca, acaraj, bob, arroz de coco, feijo de coco, angu, po-de-l de arroz, roletes de cana, queimados isto rebuscados a 8 por um vintm, e doces de infinitas qualidade^...^^
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l9 Maximiliano de Habsburgo, Bahia 1860, Salvador, Fundao Cultural do Estado, 1982, pp. 81-82.
20 Luiz B. Mott, "Subsdios histria do pequeno comrcio no Brasil", Revista de Ilistrz'a, vol. 53, n. 105, (1976).
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Essas mulheres, ambulantes ou trabalhando em pequenas quitandas, realizavam importante funo de "harmonizar as duras condies da maioria escrava e dos desclassificados sociais", compradores assduos dos seus produtos.2L As vendedeiras de comida nas ruas, tinham ao lado fogareiros sempre acesos ia ara cozinhar e assar as gulodices que vendem a seus compatr~ios".~%stes eram seus principais Gegueses. Podiam tambm improvisar cozinhas, onde colocavam pratos prontos e quentes, preparados a base de farinha de mandioca, feijo, carne seca, alua, frutas, verduras, alimentos feitos com midos de boi, cujo processamento domstico se baseava em tcnicas da culinria indgena e africana. No era incomum encontrar, junto a s barracas de comidas, negros sentados, fazendo suas refeies em meio a muita conversa e goles de cachaa. O hbito de beber cachaa era bastante comum entre os negros. Mcwimilianode Habsburgo considerou a embriaguez dos negros "benfazeja e Ipida", pois ajudava-os a suportar as dificuldades da vida sob a escravi~ l oNa . ~verdade, ~ a embriaguez de pessoas pobres e de cor preocupava as autoridades, que elaboraram leis municipais estabelecendo a punio dos brios que vagavam arrumando barulho pela cidade.25Em contrapartida as medidas repressivas, realizava-se o comrcio clandestino de cachaa, que podia chegar a ambientes deveras controlados. E nisso as negras tambm contavam. Por exemplo, em 1837 foi presa a cabra Maria Manoella por "introduzir agoardente na prizo do A l j ~ b e " . ~ ~ Mas o que as ganhadeiras mais vendiam mesmo era sobretudo comida, e em segundo plano tecidos e miudezas. Nas quitandas, como eram chamadas as pequenas vendas e barracas, forneciam "peixes, carne mal assada a que do o nome de moqueca, toucinho, baleia no tempo da pesca, hortalias e t ~ "Nos .~~ tabuleiros, que podicamser &os em pontos das ruas ou carregados na cabea, eram oferecidos outros tantos produtos e utensilios, como "pastis, fitas, linhas, linho e outros objetos necessrios ao uso caseiro.28 Da lista de produ-
22 1,uciano Fiyuei'edo e Ana Maria Magaldi, "Quitandas e quitutes: um estudo sobi-e rrbeldia c transgrcsso feminina numa sociedade colonial", Cadernos de Pesquisa, n. 54, (1985), p.51.
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tos venclidos pela cidade pelas negras libertas recenseadas na freguesia de Santana, em 1849, incluam-se peixe, banana, tecidos, verduras, frutas, sapato, mingau, aca e aberm. As negras de tabuleiro impressionaram vrios viajantes. O prncipe Maximiliano de Habsburgo, admirou-se com a habilidade com que elas equilibravam estas "caixas" sobre o toro amarrado a cabea, conseguindo atravessar, elegantemente, toda a confuso da cidade.29 Wetherell, alguns anos antes, escrevera que o hbito de sustentar com destreza objetos na cabea, alm de ajudar a tornar o corpo reto, deixava as mos livres para o trabalho. A habilidade das mulheres era tanta que no importava o volume dos objetos: "Uma laranja, uma xcara, uma garrafa, uma vela acesa, qualquer coisa levada na cabea".30 As atividades realizadas pelas ganhadeiras, apesar de importante para a distribuio de bens essenciais a vida urbana, preocupava as autoridades. Elas faziam seu trabalho de maneira itinerante ou fixavam-se em pontos estratgicos da cidade, servindo de elementos de integrao entre uma populao considerada perigosa pelas elites. Este fator poltico, somado ao esforo do Estado para organizar e controlar a vida urbana no sculo XIX, levaria a muitos embates entre ganhadeiras e autoridades policiais.
Controle e negociao
A preocupao em controlar as negras de ganho no foi peculiar a Bahia urbana oitocentista. Pode ter sido prpria de lugares e momentos em que as ganhadeiras, por diversas razes tiveram presena expressiva. Em Minas, eram vistas como elementos perigosos pela liberdade de circulao que tinham atravks das lavras, possivelmente contrabandeanclo ouro e acoitando negros fugidos." Tambm em So Paulo do s6culo XIX foram criadas medidas que limitavam a liberdade d e movimento das negras vendedeiras, proibindo-as de sarem da cidade e obrigando-as a fecharem as quitandas depois da A v e - M a ~ i a . ~ ~ No sculo XIX, as leis deixariam de proibir a participao negra no varejo, mas continuariam a tentar um controle seguro. Constantemente a s negras defrontavam-se com as autoridades municipais, especialmente fiscais que exigiam o cumprimento de posturas. Estas continham medidas
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ldein p. 125.
3uWetl~ci-cll, Rrusil, p.62. 31Figucrcdo e Magaldi, "Quitandas e quitutes", p. 50. 32Vei-Dias, Quotidiano e poder, p. 121.
relativas a economia do abastecimento, disciplinando a distribuio, preo e qualidade de determinados produtos, alm de estabelecer os regras de pesos e meclidas. Era terminantemente proibido aos senhores colocarem seus escravos no ganho sem autorizao expressa da Cmara Municipal. O mesmo era vlido para as libertas que desejassem comercializar qualquer tipo de gnero. Para instalar-se no pequeno comrcio era necessrio pedir licena municipal e pagar uma taxa de matrcula. Nas Leis de oramento provincial encontramos a evoluo das taxas pagas por "licena a africanos livres ou libertos de ambos os sexos para poderem mercadejar": a taxa de 10 mil ris estabelecida em 1848, aumentando para 20 mil em 1850. Observe-se que a lei s menciona que os afkanos pagariam esta taxa, em especial as africanas, porque elas controlavam este setor do comrcio. Pelo texto da lei, os nascidos no Brasil, crioulas por exemplo, estariam isentos. Trata-se, portanto, de uma legislao cliscriminatria, bem tpica dos anos que s e seguiram a revolta dos mals em 1835. Eram leis que procuravam dificultar a vida dos africanos libertos, consiclerados indesejveis, buscando for10sa retornar a frica. A nica concesso do legislador foi quando escreveu, em 1848, que o governo procuraria fazer com que a taxa "no recaia sobre aquelles, que tiverem to diminuto negcio, que no possam suportar".33 As vendedeiras eram obrigadas a manter seus instrumentos de trabalho, particularmente pesos e medidas, de acordo com a regulamentao municipal. Quando os fiscais da Cmara constatavam irregularidades, a s infratoras eram punidas com multa ou cadeia. A poltica de fiscalizao do pequeno comrcio remonta ao perodo colonial, quando da criao das feiras livres. Esta fiscalizao pode, segundo Luiz Mott, ser vista por dois prismas: como uma tentativa de evitar que os compradores fossem ludibriados pelos lavradores ou comerciantes desonestos, e tambm como um recurso que a Cmara utilizava para aumentar sua arrecadao, pois, alm das multas, a cada aferimento cobrava-se uma taxa que era uma parte destinada aos funcionrios, outra parte aos cofres A mesma legislao procurava proteger os consumidores e pequenos comerciantes contra atravessadores e grandes m o n o p ~ l i s t a sDurante .~~ o sculo XIX, porm, nota-se, a insistncia do poder pblico em restringir a atividade comercial dos negros e mulatos, forros e escravos, especialmente dos africanos. Qual-
33 ColleGo de Leis e resolues (iu Assei~iblia Legislatiua Provincial, Bahia, Typografia Constilucional, 1845, passim e Lei no. 344 de 5.08.1848.
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Idem, p. 99.
quer tipo de atividade comercial tinha que passar pelo foro da Tesouraria Municipal, responsvel pela arrecadao tributria, controle e fiscalizao das ocupaes da economia "informal", podendo aquele rgo conceder ou negar licenas para a prtica desses negcios. Apesar das medidas de represso ao pequeno comrcio, que remontam ao sculo XVIII, quando encontramos alvars, decretos e posturas proibindo a gente de cor o exerccio dessa atividade, e mais tarde em Salvador, a partir de 1835, em virtude da revolta dos Mals, a complexiclade da vida urbana e a escassez de bens alimentcios fizeram com que este comrcio "negro" fosse mais tolerado. Segundo Mott, "sem as negras vendedeiras das ruas, seria praticamente impossvel viver no Rio de Janeiro, Salvador e Recife, durante os sculos XVIII e XIX.36A partir de meados do sculo XIX, ocorreu um processo de urbanizao crescente. Salvador era um importante porto de exportao, com ruas pavimentadas, casas comerciais de grande porte, algumas manufaturas, instituies de crdito, rede de esgoto (ainda que extremamente precria), encanamento de gua em certos locais. As ruas a noite eram iluminaclas por lampies a base de leo de baleia, embora estes nem sempre estivessem acesos, deixando a cidade as Nesse perodo a populao na cidade crescia significativamente, acelerando o processo de urbanizao. Tinha cerca de 41 mil habitantes em 1800 e 108 mil em 1872. Esse povo sofria uma carncia crnica de produtos alimentcios, reflexo de uma economia voltada para a produo aucareira destinada a exportao, relegando a agricultura de alimentos a um plano secunclrio. Alm disso, a regio interiorana que abastecia a cidade so6ia periodicamente de secas prolongadas ou chuvas intensas, que prejudicavam a agricultura e a pecuria. Foi ento num setor problemtico que s e inseriram as ganhadeiras, realizando o comrcio de produtos inclispensveis para a populao da cidade. A desenvoltura das negras nesse setor preocupava as autoridades pela facilidade com que podiam estabelecer redes cle atravessamento e outras atividades de que, de certa forma, dependiam a ordem econmica e poltica. Aliava-se, por exemplo, o vai-evem das mulheres a algum trfico proibido e/ou comunicao com negros aquilombados. Em 1835, ganhadeiras foram acusadas de fornecer comida aos rebeldes mals e participar da c o n ~ p i r a oH . ~ ~tambm o caso da
37 R(+, Kebelido escrava, pp. 206-207: "Devassa do levante dc escravos ocorrido em Salvador crn 1835", Anais do APEBA, 38 (1968) pp. 77-78. * Reis. Hebelido escrava, p. 242
me do abolicionista Luiz Gama, Luiza Mahim, quitandeira acusada de participar de vrias conspiraes de escravos.39 Mas os regulamentos nem sempre eram obedecido pelas negras, que fugiam avigilncia, burlando as medidas de controle, frequentemente com a cumplicidade rle seus senhores ou simplesmente por falta de recursos para cumprirem obrigaes fiscais e outras. Este ltimo fator dava margem a que agentes da Tesouraria perseguissem essas mulheres, impondoIhes multas por elas consideradas injustas e abusivas. Elas, ou seus senhores, reagiam por meio de constantes queixas ao Presidente da provncia e a outras autoridades, apontando irregularidades, contestando as multas, pedindo sua anulao. Com freqncia, alegavam desinformao e pobreza. Em junho de 1850, por exemplo, a africana liberta Margarida Igncio de Medeiros, maior de 40 anos, moradora a rua da Palma, na freguesia de Santana, escreveu ao Presidente da provncia para "implorar a graa de alivi-la clas multas honerozas de 50$000 ris annuais a titulo de axarce a supplicante arrolada em annos anteriores". A liberta justificava-se dizendo que no exercera atividade de comrcio porque estava sofrendo de "molstias internas" durante o perodo em que foi multada. Alm disso, alegou ser me de trs filhos que dependiam do seu trabalho, e por no poder pagar a multa ficava "inibida de agenciar para os ditos seus filhos, e para si a alimentao por meio da vendagem de uma panela de mingau".40Por sua vez, em 1869, a crioula Maria das Mercs, tambm pobre, moradora na estrada do Cabula, reclamava contra a Tesouraria de uma multa de 40 mil ris, quando a lei estabelecia um valor menor, de acordo com o local do negcio. Maria clas Mercs havia instalado em sua prpria residncia, sem a clevida licena, uma pequena venda "onde expe ao consumo dos viandantes algumas garrafas de ag~ardente".~' Instalar comrcio de forma clandestina, em pontos determinados da cidade, ou explorar comercialmente o cmodo da casa que dava para 6-ente da rua, era por-se na mim de fiscais que, volta e meia, aplicavam multas ou, ainda pior, fechavam as vendas at que as negras regularizassem a situao. A preta Maria Vicncia foi multada em 1837 no valor de 10 mil ris por no ter matriculado sua barraca, sia a rua de Santa Brbara, na Cidade Baixa. 42 Em
39 Sud Mcnucci, O Precursor do Abolicionis~no(Luiz Gai~iul, So Paulo, Editora Nacional, 1938, p. 20.
1878, foi verificada a infrao da Postura 63 por duas crioulas, "por estarem no trnsito vendendo mercadoria^".^^ Os embates com os fiscais municipais podiam ser amenizados, a depender de relaes estabelecidas pelas ganhadeiras com pessoas socialmente privilegiadas. As crioulas acima mencionadas contaram com essa proteo. A favor delas intercedeu um certo Manuel Estevo Ribeiro, responsabilizando-se pela infrao, mas negando-se depois a pagar o valor de 10 mil ris da multa. Na mesma postura foi incursa a escrava Delmira, "por estar no trnsito vendendo mercadorias sem a devida autori~ao".~~ Esta no teve ningum que viesse em seu socorro, nem seu senhor. Mas havia quem preferisse obedecer a lei. Se escrava, a obrigao de legalizar o negcio ficava a cargo do senhor. Eles pediam e renovavam s averiguaes fiscais. Tratando-se de negra licenas, submetendo-se A liberta, ela prpria dirigia-se, atravs de ofcio, Tesouraria, solicitando a licena para exercer atividades no comrcio. Eis um tpico pedido de licena: "Jacintha do Carmo, africana liberta diz que desejando mercadejar, vem pedir a V.Exma. a precisa licena, visto que para obt-la necessrio tal aut~rizao".~~ Contudo, estar em dia com a fiscalizao no evitava definitivamente as perseguies dos fiscais, que sob qualquer pretexto as molestavam e as puniam. Em 1849, Sabina Maria da Conceio alegou que "tendo pago todas as obrigaes tributrias, e inclusive de 1848, saiu para negociar certa de estar praticando um ato lcito, foram apreendidos os gneros comestveis pelo fiscal da Freguesia do Pillar e apesar de provar estar em dia com a lei nada adiantou, o fiscal arrastou os seus gneros".46 Alguns anos depois (1854) foi denunciado o mesmo tipo de arbitrariedade pela proprietria Rita de Cssia de Jesus Ramalho, cuja escrava ganhadeira Senhorinha fora presa e confiscada sua "caixa de vidros contendo sapatos, uns lenos, e trs cortes de vestidos, e outras miudesas". Segundo a senhora, a escrava tinha tudo em ordem, a licena da Mesa de Vendas provincial e a vara de medir devidamente aferida. O fiscal que prendeu Senhorinha apenas exercera seu "furor de multar", incliscriminadamente. Numa segunda petio, ela pedia para pagar a multa, apesar de injusta, para que a ganhadeira pudesse ser solta e voltasse a trabalhar.47
431dcm,postura 64.
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Idein.
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As ganhadeiras foram alvo de constantes perseguies e at extorses, no s por parte dos fiscais, mas de sabiches e particulares, a exemplo do pardo Jos Alexandre, preso por andar exigindo dzimas de peixes s ganhadeiras. O pardo havia forjado credenciais da Cmara, com sua prpria letra, para intimidar e extorquir a s ganhadeiras. Alm do pagamento exigilo, tambm confiscava suas mercadorias. Na verdade, a lei no exigia o tipo de taxa que ele cobrava, apenas a licena, matrcula e o pagamento de um imposto pr- estabelecido, a depender da ocupao.48 Mesmo dispostas a regularizar suas atividades no comrcio, a s n e g a s de ganho, particularmente as libertas, tinham primeiro de transpor obstculos burocrticos e outros. Aafricana Ritta Ferraz, liberta, em 1849 pediu para pagar o imposto de vendagem e nenhuma resposta lhe foi dada pela Tesouraria. Ritta reclamava que o prazo para pagamento estava terminando, ficando ela prejudicada, sem poder realizar suas vendas.49Estes pequenos negcios garantiam a subsistkncia dessas mulheres e muitas vezes tambm a de suas famlias. Essas dificuldades com a burocracia e a falta de meios para renovar o estoque de mercadorias podiam paralisar suas atividades e colocar em risco aquela sobrevivncia. Em 1849, Joana Francisca da Conceio, africana liberta, 60 anos, moradora na freguesia da S, escreveu que "d'um pequeno giro no mercado de legumes tira sua subsistncia, mas por falta de meios deixou de continuar por espao de dois annos. Foi obrigada a pagar o imposto de 200 mil ris pelos dois anos sem venda, alm de multa de 100 mil r i ~ " Sem . ~ dvida um nus altssimo para uma pobre velha. Havia quem acreditasse que a vida no ganho fosse melhor e mais amena do que em outras ocupaes como, por exemplo, a lavagem de roupa. Compartilhava dessa opinio Jacintha do Carmo, africana liberta, moradora na rua dos Barris, 73, freguesia de So Pedro. Ela s e dirigiu a Tesouraria pedindo licena para "mercadejar, visto que por suas foras j no pode ocupar-se de seu servio de lavagem de roupa". Implorava ela rjpida deliberao, pois no podia "estar parada sem agenciar os meios de vida para poder subsistir-se." Concluiu alertando "para que s e no veja depois forada a pagar rn~ltas...".~~ As negras de p n h o tornaram-se representantes tpicas de um grupo de mulheres que permaneceu discriminado e oculto da Histria, conseguindo
48APEBA,SPrie Judiciria, mao 2680 (23.01.1831).
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']Idem.
enfrentar de maneira peculiar as flutuaes do mercado e a s medidas de vigilncia e controle social. Fugindo aos lugares a elas destinados na sociedade escravista, ascenderam a condio de pessoas de relativa importncia na economia de Salvador, particularmente por realizarem a circulao de bens alimentcios essenciais. Apesar da vigilncia fiscal e policial imposta aos negcios exercidos por africanos, as mulheres, parecem ter s e sado bem, ao ponto, inclusive, de poderem monopolizar alguns setores de comrcio, como vimos anteriormente. O tipo de atividade discutido neste artigo pressupunha a liberdade de circulao e uma permanncia demorada nas ruas. Esta "regalia" possibilitou as negras a construo de um universo prprio, formado por elas mesmas, seus fornecedores e clientes africanos. Uma rede econmica que era tambm social e at poltica. Construir este universo dependeu das oportunidades oferecidas pelo mercado, do interesse do senhor e sobretudo da ousadia em lanar-se nas incertezas da vida quotidiana de uma sociedade escravista e discriminadora, e a conquistar algum espao. Para a escrava essa conquista podia s e traduzir na obteno da alforria, atravs da compra com dinheiro arduamente ganho no comrcio de rua. A passagem da escravido A liberdade no era pouco tortuosa.