A Logica Da Desordem
A Logica Da Desordem
A Logica Da Desordem
A lgica da desordem
O modelo de excluso territorial que define a cidade brasileira muito mais do que a expresso das diferenas sociais e de renda, funcionando como uma espcie de engrenagem da mquina de crescimento que, ao produzir cidades, reproduz desigualdades
por Raquel Rolnik
Em menos de 40 anos, entre as dcadas de 1940 e 1980, a populao brasileira passou de predominantemente rural para majoritariamente urbana. Impulsionado pela migrao de um vasto contingente de pobres, esse movimento socioterritorial, um dos mais rpidos e intensos de que se tem notcia, ocorreu sob a gide de um modelo de desenvolvimento urbano que privou as faixas de menor renda de condies bsicas de urbanidade e de insero efetiva cidade. Alm de excludente, tal modelo mostrou-se tambm altamente concentrador: 60% da populao urbana vivem hoje em 224 municpios com mais de 100 mil habitantes, dos quais 94 pertencem a aglomerados urbanos e regies metropolitanas com mais de 1 milho de habitantes. Concentrando incrementos econmicos/demogrficos em algumas regies do territrio e esvaziando as demais, esse movimento concentrador tambm no nvel intra-urbano: em cada municpio caracterizado pelo crescimento e pela dinmica urbana, as qualidades urbansticas se acumulam em setores restritos, locais de moradia, negcios e consumo de uma minoria da populao moradora. Essas reas, ditas de mercado, so reguladas por um vasto sistema de normas, leis e contratos, que tem quase sempre como condio de entrada a propriedade escriturada e registrada. ela a beneficiria do crdito e a destinatria do habite-se. Os terrenos que a lei permite urbanizar, assim como os financiamentos que a poltica de crdito imobilirio tem disponibilizado, esto reservados ao restrito crculo dos que possuem recursos e propriedade formalizada da terra em seu nome. Para as maiorias, sobram as terras que a legislao urbanstica ou ambiental vetou para a construo ou no disponibilizou para o mercado formal, ou os espaos precrios das periferias e as viagens cotidianas cidade. Embora no exista uma apreciao segura do nmero total de famlias e domiclios instalados em favelas, loteamentos irregulares, loteamentos clandestinos e outras formas de assentamentos marcados por alguma forma de precariedade urbanstica e irregularidade administrativa e patrimonial, possvel afirmar que o fenmeno est presente na maior parte da rede urbana brasileira. No vasto e diverso universo dos 5.564 municpios que existem hoje no Brasil, so raras as cidades que no tm uma parte significativa de sua populao assentada precariamente1 . Excludos do marco regulatrio e dos sistemas financeiros formais, os assentamentos precrios foram autoproduzidos por seus prprios moradores com os meios que se encontravam sua disposio: salrios baixos, insuficientes para cobrir o custo da moradia; falta de acesso aos recursos tcnicos e profissionais; e terras rejeitadas ou vetadas pela legislao ambiental e urbanstica para o mercado imobilirio formal. Assim, em terrenos frgeis ou reas no passveis de urbanizao, como as encostas ngremes e as vrzeas inundveis, alm das vastas franjas de expanso perifrica sobre as zonas rurais, vai sendo produzida a cidade fora da cidade, desprovida das infra-estruturas, equipamentos e servios que caracterizem a urbanidade. Ausentes dos mapas e cadastros de prefeituras e concessionrias de servios pblicos, inexistentes nos registros de propriedade dos cartrios, esses assentamentos tm uma insero ambgua nas cidades onde se localizam. Modelo dominante de territorializao dos pobres nas cidades brasileiras, sua consolidao progressiva, mas sempre incompleta e dependente da ao discricionria do poder pblico. Ao delimitar as fronteiras que separam os regulares/formais dos irregulares/informais, o modelo de excluso territorial que define a cidade brasileira muito mais do que a expresso das diferenas sociais e de renda, funcionando como
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uma espcie de engrenagem da mquina de crescimento que, ao produzir cidades, reproduz desigualdades2 . Em uma cidade dividida entre a poro rica, legal e infra-estruturada e a poro pobre, ilegal e precria, a populao em situao desfavorvel acaba tendo muito pouco acesso s oportunidades econmicas e culturais que o ambiente urbano oferece. O acesso aos territrios que concentram as melhores condies de urbanidade exclusivo para quem j parte deles. Finalmente, a lgica da desordem se completa com o carter predatrio do modelo, que condena a cidade como um todo a um padro insustentvel do ponto de vista ambiental e econmico. Em primeiro lugar, a concentrao das oportunidades em um fragmento da cidade e a ocupao extensiva de periferias cada vez mais distantes impem um padro de circulao e mobilidade dependente do transporte sobre pneus e, portanto, de alto consumo energtico e potencial poluidor3 . Em segundo lugar, a ocupao das reas frgeis ou estratgicas do ponto de vista ambiental como mananciais de gua, complexos dunares ou mangues decorrente de um padro extensivo de crescimento por abertura de novas fronteiras e expulso permanente da populao mais pobre das reas ocupadas pelo mercado. Esse padro, regido por um mercado vido por lucros rpidos e confrontado com um territrio que sempre pareceu ser uma vastido sem limites, ditou a lgica de produo do novo, expandindo os limites da cidade de forma fragmentada e a partir de iniciativas de proprietrios de terra e loteadores, ou arrasando e removendo o tecido construdo para acolher os outros produtos imobilirios destinados s parcelas solventes dos moradores urbanos. E a engenharia urbana mecanicista, que procurou transformar a cidade em mquina de produo e circulao, tratou sua geografia natural os rios, os vales inundveis, as encostas como obstculo a ser superado, terraplenando, aterrando e caucionando as guas, num desenho que procura minimizar as perdas territoriais para o insacivel mercado de solos. O modelo urbanstico concentrador, excludente e predatrio, que estruturou a lgica da desordem de nossas cidades na passagem para uma economia e sociedade modernas, tem origens profundas na formao histrico-poltica brasileira. Trata-se, nas palavras de Ronaldo Vainfas, da obsesso diablica pela riqueza fcil4 , que perpassou o sistema colonial e regeu, entre outros, os ciclos do acar, do tabaco, do ouro e dos diamantes. Evidentemente, tal modelo, inscrito na ordem administrativa que regula a cidade, no foi fruto de pactuao. Sua lgica marcada por dois elementos constitutivos de nossa cultura poltica: a indistino e a ambigidade entre o pblico e o privado e entre o real e o legal. Se essa foi a lgica predominante de estruturao de nossas cidades ao longo do processo de urbanizao, as transformaes que definiram a nova fase do capitalismo impactaram fortemente a ordem urbanstica. Como aponta Loc Wacquant: Junto com a modernizao econmica acelerada, provocada pela reestruturao global do capitalismo, a cristalizao de uma nova diviso internacional do trabalho (fomentada pela velocidade frentica dos fluxos financeiros e dos trabalhadores atravs de fronteiras nacionais porosas) e o desenvolvimento de novas indstrias de uso intensivo do conhecimento baseadas em revolucionrias tecnologias da informao e geradoras de uma estrutura ocupacional dual, produziu-se a modernizao da misria: a emergncia de um novo regime de desigualdade e marginalidade urbanas5 . Desemprego e desindustrializao No caso brasileiro, os efeitos dessas transformaes se fizeram sentir principalmente nas metrpoles, em especial naquelas que se constituram na fase do capitalismo fordista, quando as esperanas de modernizao e integrao por meio do emprego formal, da casa prpria e do acesso educao e ao bemestar alimentaram identidades coletivas e fertilizaram as lutas pela incluso territorial e a reforma urbana. Nos anos 1990, o desemprego (decorrente do processo de automao ou da destruio de um parque industrial outrora protegido por barreiras alfandegrias) e a agenda do ajuste estrutural (que limitou o gasto pblico, reduzindo as possibilidades de distribuio de benefcios) transformaram a geografia da pobreza urbana e da vulnerabilidade social, com impactos profundos na dinmica de agregao societria do territrio popular e nas relaes reais- ou simblicas que este estabelece com o restante da cidade6 . Essas mudanas introduziram novas variveis para a estruturao da cidade. As grandes reas da produo fordista foram sendo substitudas por uma economia de fluxos, desterritorializando-se e deixando grandes reas urbanizadas vazias, muitas vezes contaminadas, pelo caminho. O territrio popular se densificou, sobre uma base urbanstica frgil e tosca, fruto de intervenes fragmentadas, desconectadas e descontnuas, definidas e executadas na temporalidade da poltica. O espao metropolitano da era industrial tambm se transformou, expandindo-se sobre a zona rural, redefinindo as fronteiras urbanas e espalhando enclaves como condomnios, hipermercados e shopping centers.
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A antiga dualidade centro-periferia se desfez, para dar lugar a uma nova: lugares seguros versus lugares violentos. A captura de assentamentos precrios pelo comrcio varejista de drogas imps, nesses territrios, uma nova sociabilidade, violenta e implementada de forma paralela aos aparatos de segurana do Estado. Embora presente em apenas alguns dos assentamentos precrios do pas, a territorializao das favelas pelo trfico de drogas contribuiu para construir no imaginrio urbanstico a identificao de todas as favelas e periferias precrias do pas com lugares violentos. Para citarmos novamente Wacquant, a nova marginalidade mostra uma tendncia a aglomerar-se em reas irredutveis e aonde no se pode ir, que so claramente identificadas tanto por seus prprios residentes como por pessoas externas como poas urbanas infernais, repletas de privao, imoralidade e violncia, onde somente os prias da sociedade tolerariam viver. O impacto dessa configurao vai, no entanto, alm do aprofundamento da segregao socioespacial, limitando a permeabilidade entre os territrios populares e o restante da cidade. A essa formao de enclaves fora do controle estatal corresponde, na outra ponta do espectro, a auto-segregao das elites e classes mdias, gerando esta tambm territrios de exceo. Os chamados lugares seguros so espaos fechados e exclusivos, nos quais a multiplicidade da cidade no penetra. So cercados, murados, vigiados por cmaras e protegidos por dispositivos eletrnicos e um exrcito de seguranas privados. Entre esses dois plos, a cidade das ruas, estruturada a partir de espaos e equipamentos pblicos, fenece, exposta e desprotegida, por no contar com comandos e milcias nem com aparatos sofisticados e guardas particulares 7 . Imediatamente, o mercado traduz esse definhamento em produtos imobilirios, estimulando, com a ajuda de estratgias de marketing, o desejo por um paraso assptico, homogneo, imune s tenses e conflitos: vale dizer, fora da cidade. Fragmentao social do territrio A instalao das classes mdias e altas nas periferias em assentamentos de baixa densidade conectados a rodovias reatualiza a fora do modelo centrpeto, que um dos responsveis pela insustentabilidade de nosso sistema urbanstico8 . A fragmentao sociopoltica territorial resultante dessa reconfigurao representa no apenas uma nova forma de estruturao urbana, mas um desafio para a noo mesma de cidade, na medida em que, nas palavras de Marcelo Lopes Souza, induz a uma eroso bastante real das condies de exerccio da cidadania e busca de autonomia, requisitos indispensveis para a construo de um desenvolvimento urbano includente e sustentvel.
Raquel Rolnik urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e relatora especial do Direito `Moradia Adequada do Conselho de Direitos humanos da ONU. Foi diretora de Planejamento da cidade de So Paulo (1989-1992) e Secretria Nacional de Programas Urbanos do Ministrio das Cidades (2003-2007).
1 A pesquisa Perfil Municipal (Munic-IBGE 2000) revela a presena de assentamentos irregulares em quase 100% das cidades com mais de 500 mil habitantes e 80% das cidades com populaes entre 100 mil e 500 mil. At nos municpios com menos de 20 mil habitantes, os assentamentos informais aparecem em mais de 30% dos casos. De acordo com estimativas do Ipea, baseadas em metodologia do UN-Habitat e em dados do Censo Demogrfico, esto nessa condio aproximadamente 40,5% do total de domiclios urbanos brasileiros, ou 16 milhes de famlias, das quais 12 milhes tm renda familiar mensal abaixo de cinco salrios mnimos. 2 Expresso empregada por Joo Sette Whitaker Ferreira no livro O mito da cidade global O papel da ideologia na produo do espao urbano (So Paulo, Vozes/Editora Unesp/Anpur, 2007). 3 Sistemas de transporte de alta capacidade, baixo consumo energtico e baixo potencial poluidor, como os trens e metrs, requerem concentrao de viagens e, portanto, alta densidade de ocupao ao longo das linhas, o que, do ponto de vista do modelo de cidade, bastante distinto da necessidade de levar cotidianamente multides dispersas a seus locais de trabalho e devolv-las a suas casas no final do dia. A crise atual do modelo de mobilidade urbana, que atinge principalmente as metrpoles, com conseqncias nos congestionamentos veiculares e nos processos de aquecimento global decorrentes da emisso de gases de efeito estufa, um dos sintomas das deseconomias e impactos ambientais provocados por esse modelo. 4 Ronaldo Vainfas, A arte de furtar, Folha de S.Paulo , Caderno Mais, 3/6/2007. 5 Loc Wacquant, Parias urbanos: marginalidad en la ciudad a comienzos del milenio , Buenos Aires, Manantial, 2007. 6 Orlando Santos Jr. e Luiz Csar de Queiroz Ribeiro, Democracia e segregao urbana: reflexes sobre a relao entre cidade e cidadania na sociedade brasileira, Revista Eure , volume XXIX, Santiago do Chile, dezembro de 2004. 7 Marcelo Lopes de Souza, O desafio metropolitano: um estudo sobre a problemtica scio-espacial nas metrpoles brasileiras, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2000. 8 A perversidade, nesse caso, que um dos principais argumentos de venda desses produtos so justamente suas caractersticas ecolgicas!
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