Etica Biocentrica
Etica Biocentrica
Etica Biocentrica
Carlos M. Naconecy
Resumo.............................................................................................................. 4
1 Introdução...................................................................................................... 5
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Resumo
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Introdução
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custo/benefício. A Ética Ambiental, cujo desenvolvimento data do inicio dos anos 70 e ocupa
hoje uma diversidade de publicações e encontros acadêmicos, adicionou uma nova
dimensão a esta área do pensamento. Trata-se dos valores ou fins que deveriam orientar a
conduta humana em relação ao que não é apenas humano. Em outras palavras, parte ou o
todo da Natureza deixam de ser instrumentos ou recursos para o nosso uso, mas portam um
valor intrínseco, o qual deve ser por nós respeitado. Se o objeto de respeito moral é o ser
vivo, estaremos lidando com uma Ética Biocêntrica, cujo expoente mais conhecido é Albert
Schweitzer. Schweitzer denunciou que “a grande falha de todos os eticistas até agora tem
sido que eles acreditam que devem lidar apenas com as relações do homem para o homem.
(...) Um homem é ético somente quando a vida, enquanto tal, for sagrada para ele, a vida
das plantas e dos animais, bem como a dos seus companheiros humanos.” vii Com efeito,
muito da força do Biocentrismo provém da sua radical rejeição e resistência às tradições
antropocêntricas. Evidentemente, devido a esta mesma radicalidade, uma Ética da Vida é
acusada de, no melhor dos casos, irrealista, e, no pior, de anti-humanista.
Krebs nota que comumente falamos em “matar pessoas” e “matar animais”, mas não
em “matar plantas”, o que significa que o senso comum deve lembrar-se que uma planta
está viva. viii Referimo-nos à colheita do trigo, em vez da “matança do trigo” numa fazenda.
Por outro lado, as intuições morais do senso comum quanto ao valor da vida apresentam
uma certa inconsistência ou fragilidade, como salienta Agar. Podemos entoar
majestosamente a frase “toda vida é preciosa”, e, simultaneamente, não nos sentirmos
comprometidos a atos de salvamento de folhas de grama prestes a serem pisoteadas num
jardim. ix De qualquer modo,
Voltemos ao caso anterior, apresentado por Lynch e Wells, em que um animal ataca
uma pessoa na selva, sendo tal fato presenciado por uma testemunha (humana) armada.
Em primeiro lugar, atirar no animal sem uma reflexão prévia poderia ser, por si mesma, uma
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ação antiética. Em segundo, adotar um procedimento decisório aleatório, como o “cara ou
coroa”, a fim de eliminar a possibilidade de parcialidade ou inclinação tendenciosa em favor
de um dos dois indivíduos, não seria considerado uma atitude de alguém moralmente
admirável. Em terceiro, decidir “nada fazer”, pois os interesses vitais de outros estão em
questão, e não os nossos próprios, significaria uma motivação egocêntrica - e a Ética deve
nos orientar a agir mesmo quando não estamos direta ou materialmente envolvidos. Numa
quarta possibilidade, a testemunha, enquanto partidária da Ecologia Profunda, protestaria
que não é correto dividir ontologicamente a Natureza em sujeitos e objetos, como
metafisicamente independentes. Humanos e não-humanos são constituídos pelas suas
relações, diria ela, como elos de uma rede biosférica. Tal resposta não seria satisfatória,
pois, no exemplo, sendo o humano caçado e o animal caçador igualmente vértices da Teia
da Vida, o ataque no animal e a fuga humana configurariam apenas mais uma instância
particular de um tipo de relação ecológica, a ser eticamente respeitada. Em quinto lugar,
poderia ser sustentado que deveríamos atirar no humano a fim de alimentar os grandes
predadores (que estão no caminho da extinção), dando uma pequena contribuição na
redução do impacto ambiental da superpopulação humana no planeta. E, finalmente, se o
humano no cenário proposto fosse Adolf Hitler, poder-se-ia pensar em deixá-lo ser pego pelo
animal, devido à inocência moral contrastante do último.
A Ética diz respeito essencialmente à razão prática – não teorética ou especulativa.
Isto implica a capacidade dar conta das pressões concretas das circunstâncias do
relacionamento humano/não-humano, na qual, na imensa maioria das vezes, é o não-
humano que se encontra em perigo letal. De fato, pareceria deplorável a atitude daquele que
parasse para pensar antes de salvar a vida de um ser humano ameaçado de morte iminente.
A questão é por que isso se modifica quando se trata de uma vida não-humana ameaçada.
Lançaremos mão aqui de casos-limite, método típico da Ética Aplicada, os quais, todavia,
não nos devem fazer esquecer das decisões inescapáveis para os seres humanos, já que a
mais prosaica atividade humana imaginável impacta, direta ou indiretamente, os demais
organismos vivos do planeta.
Cabe ressaltar que se tratará neste ensaio de uma Ética da Vida – não de uma Ética
para o uso da vida, do manejo dos organismos vivos, de administração racional e prudente
de recursos animados. Esta distinção é importante dada à imensa utilidade ou valor dos
organismos vivos não-humanos para os humanos: econômica, como suporte de vida,
recreacional, cientifica, como diversidade genética, estética, de simbolização cultural,
histórica, para formação de caráter, terapêutica e religiosa. Como sublinha Kawall, “... a tese
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é que todos os seres vivos (mesmo bactérias, formigas e a grama) têm algum status moral –
não porque eles são bonitos ou úteis aos humanos, mas simplesmente em virtude de
estarem vivos.” xi Esta diferença axiológica e normativa entre o Biocentrismo Moral e uma
Ética Conseqüencialista Humanista Prudencial é clara. Para o Humanismo Prudencial, por
exemplo, uma árvore importa (i.e., seu bem, sua saúde botânica) porque ela nos beneficia
(adicionando oxigênio na atmosfera, removendo dióxido de carbono, fornecendo madeira,
propiciando sombra, etc.). O Biocentrismo Moral, em contraste, atentaria para o bem direto
das árvores, o bem para elas mesmas, e nossas obrigações decorrentes disso.
Micróbios e outras criaturas unicelulares, como bactérias, deveriam ser também alvos
de preocupação prudencial. De fato, os micróbios são responsáveis pelos ciclos dos
principais nutrientes e elementos químicos da biosfera, como o carbono, ferro e muitos
outros. Sem as bactérias, não haveria a fixação do nitrogênio da atmosfera e a
desnitrificação, o que significa que os humanos e todas as outras formas de vida no planeta
não poderiam existir. Bactérias também são responsáveis pela operação do nosso sistema
digestivo, fertilidade do solo e o crescimento de plantas. Ou seja, se não houvesse
microorganismos, a vida no planeta entraria em colapso, o que indica o valor instrumental
máximo dessas entidades.
Essas razões instrumentais para atentarmos para os efeitos das ações humanas
sobre as populações de micróbios não são, entretanto, razões (morais) para atribuição de
status moral direto ou obrigações morais diretas para com microorganismos. Contrastando
com essa infinidade de valores instrumentais, há um outro tipo de valor, objeto por
excelência da Filosofia Moral, que faz com que o Biocentrismo Moral se constitua em uma
Ética Não-Antropocêntrica. Isso significa que
ele não implica que apenas humanos têm valor inerente ou valor intrínseco. Ele não implica
que o valor de todas as entidades não-humanas é derivado do valor dos seres humanos. Ele
não implica que o valor de todas as entidades não-humanas é dependente da sua valoração
pelos seres humanos. Ele não implica que as únicas demandas do mundo sobre os agentes
morais humanos sejam seu próprio desenvolvimento e o desenvolvimento de outros
humanos. Ele não posiciona os humanos num lugar especial e privilegiado na natureza (ou
fora dela). Ele não atribui aos indivíduos um estatuto moral especial meramente na base da
sua pertença à espécie Homo sapiens. xii
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sencientes (e.g., amebas), considerando o valor de sistemas e entidades holísticas como
derivado do valor dos indivíduos vivos. Essa escola pauta o valor dos primeiros a partir do
valor dos últimos. Isso significa que não trataremos aqui do status moral de coletividades
ecológicas ou espécies biológicas. xiii Tampouco se fará foco sobre a Vida enquanto
processo planetário do qual os seres vivos são parte, cujo status moral poderia ser
defendido em face da criatividade positiva da Natureza, autogerada e autoperpetuante. xiv À
luz desse contraste metafísico e axiológico, o Biocentrismo Moral Atomista irá retirar sua
força normativa de um contexto pragmático, na medida em que, na prática da ação concreta
cotidiana, haverá escassas situações nas quais a ação de um agente, enquanto indivíduo
pessoal, terá um impacto significativo em um determinado ecossistema, na ecosfera como
um todo, ou na riqueza ou diversidade da vida tomada em sua totalidade.
O debate contemporâneo em Ética Ambiental tem envolvido uma série de argumentos
e justificativas a respeito de quais entidades na Terra têm valor moral e, portanto, merecem
nossa consideração ética. A posição compartilhada pelos diferentes filósofos das diferentes
linhagens teóricas é que tal consideração deve ser estendida para além do Homo sapiens. A
questão disputada, por sua vez, gira em torno de quão longe tal extensão deve avançar,
abrigando os animais com capacidades semelhantes às humanas, todos os seres
sencientes, todos os seres vivos, ou mesmo todos os sistemas naturais. O foco deste ensaio
será “todos os seres vivos”. Assim, no segundo capítulo desta investigação, trataremos dos
esqueletos lógicos e as noções básicas das Éticas da Vida, as quais estabelecem um
contraste, de um lado, com as tradições antropocêntricas (que excluem todos não-humanos
da esfera da consideração moral direta), e, de outro, com uma Ética Animal (que exclui os
não-sencientes, como plantas e insetos xv ). Uma forte defesa em prol da extensão da Ética
em torno da senciência já foi elaborada na obra Ética & Animais xvi , de nossa autoria.
Veremos, no próximo capítulo, as razões para o transporte da considerabilidade moral até a
fronteira que circunscreve a categoria do ser vivo.
No terceiro capítulo, analisaremos primeiramente a adequação do conceito de “vida”
para desempenhar um papel-chave em teoria moral, algo aparentemente mais problemático
que os conceitos alternativos de senciência, racionalidade e habilidade discursiva. A seguir,
trataremos do por que devemos tratar os organismos vivos como intrinsecamente valiosos e,
conseqüentemente, o problema moral em matar qualquer coisa que é capaz de morrer.
Filósofos como Albert Schweitzer, Paul Taylor, Nicholas Agar e Robin Attfield avançaram
justificativas nessa direção.
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No quarto capítulo, veremos que o Biocentrismo Moral pode ser defendido numa
versão monista, como em Schweitzer e Taylor, ou pluralista, como em Goodpaster e Attfiield.
Na modalidade monista entende-se que ser uma entidade viva é o único critério válido de
status moral. No Monismo Biocêntrico, a vida orgânica é tanto necessária quanto suficiente
para um estatuto moral pleno. Tal concepção acolhe duas teses: (1) todos os organismos
vivos têm status moral e (2) eles têm exatamente o mesmo status moral. O Monismo
Biocentrista conduzirá a uma concepção igualitarista em Ética. Em contraste, na versão
pluralista, vida é suficiente para algum status moral, mas não para um pleno status. Isto que
dizer que o valor da vida pode ser suplementado por outros tipos de valor. Essa versão
pluralista implicará uma abordagem não-igualitarista em Ética. Em outras palavras, o
Monismo/Igualitarismo defende que o valor intrínseco é uma questão de “tudo ou nada”.
Uma entidade está qualificada à consideração moral ou não está. O Pluralismo/Não-
Igualitarismo, por sua vez, afirma que tal valor é uma questão de grau, e, dada a
possibilidade de vários graus de valor moral, cada organismo deve ser respeitado
correspondentemente. A tese comum nesta versão é que quanto maior a complexidade de
um organismo vivo, maior o seu significado moral. Neste caso, a gradação do valor moral
diminuiria da vida consciente para a não-consciente.
Uma teoria que defendesse que tudo tem o igual direito de existir enfrentaria
dificuldades na resolução de conflitos morais e dilemas éticos em cenários concretos de
interação humano/não-humano. Na versão igualitarista do Biocentrismo Moral, uma vez
decidido que uma entidade viva é intrinsecamente valiosa, não fará sentido perguntar quanto
valor tal entidade porta. Ora, nas situações em que os interesses de um organismo só
puderem ser atendidos a expensas de outro, estará criado um dilema moral. Se um micróbio
tem o mesmo valor moral de um humano, isso significa que devemos parar de respirar (ou
respirá-lo)? Se tudo o que é vivo tem valor intrínseco, devemos, nas circunstâncias
concretas da vida cotidiana, decidir no “cara ou coroa” quem deve viver?
Sobreviver significa matar para comer e deixar que nossos sistemas imunológicos matem
milhões de bactérias invasoras. É, portanto, pragmaticamente impossível para nós respeitar
os valores de todos os seres vivos individuais. Este fato da vida apresenta ao biocentrista
uma escolha difícil. Uma possibilidade é a de que o valor da vida não-senciente está tão
sobrecarregado a ponto de tornar o biocentrismo uma ética para Deus, mas certamente não
para humanos. Deus, presumivelmente, tem a dupla vantagem da onipotência e não ter que
viver próximo às suas criações. Alternativamente, podemos procurar aliviar o peso
biocêntrico. xvii
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A problemática igualitarista/não-igualitarista guiará a investigação a uma análise do
“principio de igualdade entre espécies” xviii , freqüentemente evocado por filósofos da Ética
Animal. No debate em Ética Aplicada, tal princípio é criticado reiteradamente por estar
fundado numa ontologia arrogante e privilegiante da superioridade de humanos (ou de
primatas, de mamíferos ou dos animais em geral). Será mostrado que a articulação de uma
hierarquização entre as espécies não significa elaborar um ranking humanocêntrico ou
zoocêntrico. Uma justificação de prioridades morais pode ser construída a partir da gama de
interesses dos diferentes organismos, esta fundada na gama de suas vulnerabilidades e
necessidades, e esta, por sua vez, fundada na gama de capacidades de cada tipo de forma
de vida. Esse mecanismo de calibragem comparativa sistemática de bens entre os
diferentes tipos de vida tem o objetivo de, sobretudo, evitar que um desejo trivial ou uma
predileção humana ocasional recebam mais atenção moral que a vida e o bem-estar de
insetos e plantas num cálculo moral. xix
No quinto capítulo, analisaremos se a virtude do Respeito pela Vida - ou o que
chamamos aqui de “Bio-Respeito” - tem a potencialidade de se constituir em uma plataforma
de atitudes moralmente apropriadas, em conformidade com uma Ética da Vida. O tratamento
da problemática biocêntrica por meio de uma Ética da Virtude ofereceria uma promessa de
resposta à crítica standard de que, embora o valor biocêntrico seja moralmente genuíno, ele
se encontra tão excessivamente disseminado na natureza a ponto de se apresentar como
irrelevante para todos os propósitos práticos. Com efeito, uma revisão na principal
publicação acadêmica periódica em Ética Ambiental, a norte-americana Environmental
Ethics, revelaria que, nos últimos anos, a Ética da Virtude se apresenta em uma das mais
férteis abordagens nesta área. As noções normativas ligadas a virtudes, como respeito (pela
vida), compaixão (pelo sofrimento), benevolência (com o bem-estar de animais, plantas e
ecossistemas) e humildade (na não manipulação genética da natureza) aparecem
freqüentemente como palavras-chave nas publicações nesse campo.
Por consenso, entende-se que a tarefa de uma Ética Ambiental, enquanto área de
investigação filosófica, é a de fornecer uma plataforma teórica para a promoção de
comportamentos, políticas e atitudes moralmente adequadas na relação do humano com o
não-humano. O Biocentrismo Moral constitui-se assim em uma modalidade de Ética
Ambiental, uma vez que se refere à natureza animada, viva. Por outro lado, a presente
investigação poderia ser classificada como integrante da Bioética (do grego “bios”, vida),
uma vez que a vida e o ser vivo são os objetos da mesma. Na opinião de Krebs xx , a
expressão “Ética da Natureza” seria a mais apropriada. A razão disto é que, usualmente, sob
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a etiqueta “Bioética”, encontram-se reflexões e publicações que não tratam da moralidade da
vida e da morte em geral – seja ela humana, animal ou vegetal. Em vez de um pensar sobre
o status moral de animais e plantas, o que comumente se entende por Bioética hoje é quase
um sinônimo de Ética Médica. Por outro lado, classificar uma Ética Biocêntrica como uma
subdivisão das Éticas Ambientais também seria algo impróprio, uma vez que o termo
“Ambiental” carrega um verniz pesadamente antropocêntrico. Os temos “ambire” (do latim,
andar ao redor, cercar, rodear) e o correlato “oikos” (do grego, ambiente) parecem sugerir
que animais e plantas se reduzem ao entorno natural do Homo sapiens, meros “oikoi” dos
humanos. A autora propõe a expressão “Ética da Natureza” para uma investigação desse
tipo, uma vez que trata de todas as questões morais em relação à parte do mundo que não
foi criada pelo seres humanos, mas que está sob sua influência. xxi
Por fim, algumas notas de esclarecimento: ao longo deste estudo, no benefício da
conveniência da brevidade gramatical, a palavra “animal” será utilizada não tecnicamente,
como usualmente o é, referindo-se aos animais de outras espécies que não a humana, não
obstante os humanos serem, stricto sensu, uma espécie animal. Da mesma forma, a palavra
"homem" e os pronomes pessoais a ela relacionados farão referência à espécie humana, e
não ao gênero. Não obstante, optou-se por evitar o uso do termo "homem" em favor de "ser
humano", definido aqui biologicamente como qualquer membro da espécie mamífera Homo
sapiens, em vista de eventuais aspectos particularmente masculinos do tema abordado,
considerados especialmente relevantes por alguns teóricos contemporâneos. De outra parte,
o emprego dos prefixos hifenizados "não-" e anti-“, ao longo do texto, libertando-se na estrita
conformidade às normas ortográficas vigentes, visou realçar as posições de negação e
oposição àquilo que for representado pelo termo constante no lado direito do hífen.
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