Sobre "Coração" e "Saudade"
Sobre "Coração" e "Saudade"
Sobre "Coração" e "Saudade"
SEMINRIO 2:
CORAO, EDMONDO DE AMICIS E SAUDADE, THALES DE ANDRADE.
SO PAULO
2015
(Finalizao do 2 semestre de 2014)
1. CONSIDERAES INICIAIS
A literatura infantil, como toda literatura, sofre diversas mudanas no decorrer do tempo,
seja na estrutura formal, seja nos assuntos por ela abordados. Neste trabalho tratar-se-o os
primrdios da Literatura Infantil e Juvenil, no perodo da Primeira Repblica, focando
especialmente em duas obras: Corao, obra do italiano Edmondo de Amicis, largamente
traduzida para diversos pases, at os dias de hoje, e Saudade, do brasileiro Thales de
Andrade, uma das primeiras obras escrita no Brasil totalmente voltada para a aprendizagem
infantil. Traaremos um paralelo entre as caracterstica presentes em ambas as obras, sendo
que so diferentes de outras obras que surgiram em um perodo posterior, com Monteiro
Lobato e outros autores.
2. CONTEXTO HISTRICO
Corao, de Edmondo de Amicis, foi publicado na Itlia, no final da segunda metade do
sculo XIX, em 1886, e, rapidamente, ganhou tradues em diversos idiomas. No Brasil, a
primeira traduo foi publicada em 1891, cinco anos aps a publicao no idioma original.
Saudade, de Thalles de Andrade, um pouco posterior. Foi publicado na primeira metade
do breve sculo XX, em 1919.
Estes livros foram publicados no auge de um perodo de grandes transformaes, em
diversos aspectos. O sculo XVIII, com a Revoluo Francesa e o Iluminismo, entre outros
fatos, comeou a trazer mudanas no modo de ver o mundo. O desenvolvimento das cincias
comeou a dar passos mais largos e o pensamento racional comeava a ganhar cada vez mais
espao no imaginrio coletivo. O sculo XIX, por conseguinte, foi bastante antagnico: havia
um sentimento de decadncia por tanta coisa que comeava a acontecer e, ao mesmo tempo,
continuidade deste processo de mudana de paradigmas, que veio ganhar um verdadeiro
boom no sculo XX. O grande desenvolvimento tecnolgico e cientfico que temos hoje, a
ascenso da Internet e o aumento significativo dos meios de comunicao trouxeram grandes
mudanas s sociedades, de modo geral. Como podemos observar rapidamente, um longo
caminho foi trilhado para que tudo isso viesse a se concretizar. Caminho longo, que, ao
mesmo tempo, pequeno diante dos bilhes de anos de existncia da Terra e, mais ainda, do
Universo.
A literatura, por ser expresso cultural escrita, consegue documentar e trazer consigo
grande parte do pensamento predominante na sociedade. Ou ainda, a depender da inteno do
autor, o pensamento de uma minoria, que quer ter voz. Pra que falar de todas essas coisas? Os
livros que estaro aqui em discusso so destinados ao pblico infanto-juvenil, no mesmo?
Ser que tais transformaes aparecem neles? A resposta sim. O fim do XIX e o incio do
XX foi um perodo de grandes transformaes polticas, em especial. No Brasil, o fim da
Monarquia e o incio de um novo regime a Repblica. Na Europa, o momento de
unificaes de estados nacionais, dentre eles, a Itlia.
A leitura era encarada como base para uma nao civilizada, que buscava como
modelos ideais pases como Frana e Portugal. O que era apresentado nos livros era um
exemplo, uma base de normas e comportamentos a serem seguidos. Esta conscincia
exemplar no trazia valores originais, entretanto reforava os ideais que eram fortes na
Europa. Da a consolidao e perpetuao do cristianismo, do liberalismo, resqucios da
sociedade feudal, aristocracismo e, apesar de, na poca, ter sido assinada a lei urea, o
predomnio de uma ideologia escravista. O que mais chama a ateno , hoje, com todo o
desenvolvimento intelectual presente em nosso pas, que apesar de suas defasagens, tem
1
Ttulo de um dos captulos do livro A formao da leitura no Brasil, no qual Marisa Lajolo e Regina
Zilberman fazem um trabalho cronolgico de como foi a formao da escola no Brasil, em especial das
atividades de leitura. Buscaram mostrar de que modo foram construindo o nosso pblico leitor, comentando as
razes pedaggicas, aliadas ao contexto histrico.
crescido a passos bem lentos, sermos, ainda, to preconceituosos. Apesar de o Brasil ter a
imagem de ser o pas miscigenado. E no s a imagem, ser um pas de mistura, de escambo,
da juno de diversas culturas, entretanto, paradoxalmente, (pseudo)moralista e que no
convive bem com as diferenas.
Crticas contemporneas parte para no desviarmos de nosso foco, o Brasil, desde o
sculo XIX, busca adequar a realidade de acordo com o que entende como naes civilizadas.
comum, por exemplo, em conversas corriqueiras ouvir o famoso tinha que ser no Brasil,
nos Estados Unidos no assim, na Europa diferente. Pode at ser que o Brasil tenha
muito a mudar, no exclumos tal fato, entretanto a crtica feita a este forte sentimento de
colonizado e de enxergar o Brasil sempre como sendo inferior. Ao observarmos e estudarmos
este perodo percebemos o quanto isto se fortaleceu nos primrdios da Repblica e s veio
crescendo ao longo dos anos.
O ressentimento na sociedade brasileira est enraizado em nossa dificuldade em nos
reconhecermos como agentes da vida social, sujeitos da nossa histria, responsveis
coletivamente pela resoluo dos problemas que nos afligem. Suas razes remontam
tradio paternalista e cordial de mando, que nos matem subordinados em uma
relao de dependncia filial e servil em relao s autoridades polticas ou
patronais na expectativa de ver reconhecidos e premiados o bom comportamento
e a docilidade da classe. (KEHL, 2005: 172)
A primeira artimanha dos governantes brasileiros, do fim do XIX e incio do XX, para
propor uma reforma educacional e incutir/formar uma nao culta e civilizada era a aposta
no crescimento do mercado editorial, em especial com forte investimento na literatura
didtica. Ocorria, assim, uma reforma pedaggica e literria. A preocupao era com a
formao do imaginrio das futuras geraes. Alm dos autores brasileiros, que comeavam a
despontar ( do fim do sculo XIX que temos muitas obras-primas de nossa literatura, alm
do surgimento e sucesso de um de nossos maiores romancistas, Machado de Assis), a aposta
de aumentar o nvel de cultura era a traduo de romances estrangeiros, em especial que
fossem voltados ao pblico em idade escolar. Corao estava entre eles. A traduo de
compndios escolares tambm foi bastante presente.
Apesar de todo este investimento em livros e a busca da formao slida de um
pblico leitor, um enorme passo para que tudo isso fosse bem realizado era esquecido: havia
toda a promessa de uma reforma educacional, mas, desde aquele tempo, no se valorizava o
professor e, muito menos, planejava-se um programa de formao de professores.
O General Abreu Lima, interessado nos problemas nacionais, publica, em 1835, o
Bosquejo histrico, poltico e literrio do Brasil, criticando com agudeza as lacunas
Entretanto, resultado mesmo comea a ser visto em 1859, quando tropas francesas, junto
com Giuseppe Garibaldi e o apoio de movimentos populares piemonteses, entram em guerra
com o Imprio Austro-Hngaro para dominar dois dos principais reinos da Pennsula Itlica, o
de Piemonte e o de Sardenha. As famlias austracas ainda queriam relutar em entregar, mas
acabam cedendo.
Um ano depois, h a incorporao das duas Siclias, mas sem o apoio dos franceses, que
retiraram suas tropas temendo movimentos socialistas. Em 1861, so anexados os reinos que
estavam sob o domnio da Igreja. Com o apoio da Prssia, o reino de Veneza foi anexado em
1866. A capital do estado da Igreja Catlica, Roma, anexada em 1870. A Igreja, porm, s
reconhece o Estado Italiano, em 1929, com o Tratado de Latro. E, como recompensa aos
estados perdidos, criado o Vaticano, alm do recebimento de indenizaes.
4. A LITERATURA INFANTIL NO SCULO XIX
No Brasil, a literatura propriamente voltada para crianas comeou com tradues.
Seguindo a Europa (latina) como seu principal modelo, muitas obras foram traduzidas e
adaptadas, antes de escritores comearem a produzir uma literatura prpria. A escolha dessas
obras a serem traduzidas estiveram sempre sob tutela da escola, que escolhia a literatura
infantil com base nos seus valores e princpios. Havia uma meta clara sobre os valores ticos e
morais esperados do cidado dessa poca, e esses valores eram a primeira coisa e ser levada
em conta, na hora de moldar as novas geraes.
Em seu livro, Dicionrio Crtico da Literatura Infantil e Juvenil, Nelly Novaes Coelho
lista algumas caractersticas gerais encontradas em maior ou menor proporo em
praticamente todas as obras do perodo:
Nacionalismo e fervor patritico: o cidado deve sempre se ver como parte da ptria,
que mais importante do que sua vida individual.
Quase todas essas caractersticas, seno todas, esto muito presentes em ambas as obras
que sero analisadas aqui.
Os valores que essa sociedade crist burguesa esperava incutir em suas crianas tambm
so muito claros e visveis, na literatura infantil da Primeira Repblica, nos permitindo notar
facilmente as expectativas sociais do perodo:
Conforme comentamos algumas linhas acima, o sculo XIX foi para a Itlia um perodo
de grandes mudanas. Apesar de a configurao territorial do pas ter sido recm formada
graas a movimentos nacionalistas, o nacionalismo da Itlia como nao, no tinha ainda
grandes foras, aps o perodo revolucionrio. Era preciso incutir na sociedade italiana o amor
pela ptria, o respeito pelo pas para defend-lo, honr-lo, segundo queriam os governos.
bvio que no s os governos. Para que uma nao possa se desenvolver e crescer, em
diversos aspectos, preciso que o povo minimamente colabore para que aes progressistas
sejam efetivas. Um dos mecanismos usados, no s pela Itlia, mas por vrias naes foi se
utilizar da literatura como meio de instruo exemplar sociedade. Corao foi um destes
livros. E acabou tornando-se um sucesso editorial na Itlia e em vrias partes do mundo.
O sucesso de Corao deu-se por ser um livro indicado para crianas, mas que
atendia aos interesses previstos pelos adultos. Para modificar o modo de pensar de uma
sociedade, um dos passos educar as geraes mais jovens nos moldes desejados. Atravs
da narrativa confessional do garoto Hennrique, De Amicis conseguiu mostrar exemplos de
como as crianas deveriam tomar determinadas aes ou atitudes, em situaes cotidianas.
Os ensinamentos do livro se do, diretamente, por cartas que os pais do protagonista
enviam ao filho, quando ele passa por alguma situao que eles acham ter sido errada ou que
o menino devia ter agido de outro modo. Uma carta notvel uma das primeiras do livro em
que o menino no est com vontade de ir escola e o pai lhe diz que seria uma vergonha ter
um filho ignorante, que no queria ser ningum na vida. O estudo, no livro, mostrado com
o intento de ser fator de ascenso social. preciso estudar para ter uma melhor posio na
sociedade, para ser rico. Como o personagem principal vem de uma famlia de boas condies
o pai engenheiro o garoto precisa superar as expectativas ou, minimamente, permanecer
as mesmas condies da famlia.
O livro exacerbadamente moralista-cristo. Apesar de ter se desvencilhado a Igreja
de questes polticas, no perdeu foras a religio catlica e seus ensinamentos para a
conjuntura social como um todo. A ptria exaltada, para que o nacionalismo se fortalea,
conforme se esperava idealmente. A bondade, a humildade e a generosidade so virtudes
exaltadas e esperadas nas aes de Henrique e seus amigos. A questo de com quem o menino
se relaciona importante tambm, pois a amizade um valor preservado e o menino deve
estar afastado das ms companhias, pois a questo diga-me com quem tu andas, que eu direi
quem tu s valorizada pelos pais. Paradoxalmente, os amigos so tratados sempre como
coitados. Os pais os punem, de modo que o menino sempre fique numa posio de
superioridade. J que so ricos, os outros so subalternos.
Figuras de autoridade, como rei, soldados e o professor so exaltadas e mostradas que
so dignas de respeito. O carter moral indica tais questes. O trabalho como meio de
dignificao do homem tambm uma tnica do livro. Tudo isso para o novo regime que
estava sendo implantado e precisava de um novo leitor, de um novo homem, de um novo
cidado, de um novo italiano. No Brasil, o livro fez sucesso, pois estvamos vivendo um
perodo de mudanas polticas.