Sílvio Gallo - O Que É Filosofia Da Educação - Anotações A Partir de Deleuze e Guattari
Sílvio Gallo - O Que É Filosofia Da Educação - Anotações A Partir de Deleuze e Guattari
Sílvio Gallo - O Que É Filosofia Da Educação - Anotações A Partir de Deleuze e Guattari
Pretendo, com este artigo, aplicar certos princpios da filosofia trabalhados por Gilles Deleuze filosofia da educao. Ao faz-lo, tenho clareza disso, estarei "roubando" conceitos deleuzianos mas, como veremos
adiante, no universo deste filsofo o roubo de conceitos wna atitude
extremamente criativa: retomar um conceito filosfico recri-lo, darlhe novas e antes insuspeitas- s vezes, at mesmo improvveis- significaes. Penso que a compreenso que Deleuze - em colaborao com
Flix Guattari- construiu da filosofia pode ser de muita valia para pensarmos o sentido e a tarefa da filosofia da educao em nossos dias.
* *Professor do Departamento de Filosofia e Histria da Educao - Universidade de campinas -UNICAMP- e Diretor da Faculdade de Filosofia, Histria e Letras - Universidade Metodista de Piracicaba /UNIMEP..
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conceito deve ser criado que ele remete ao filsofo como quele
que o tem em potncia, ou que tem sua potncia e sua competncia (...) Que valeria um filsofo do qual se pudesse dizer: ele no
criou um conceito, ele no criou seus conceitos? 11
O golpe que Deleuze e Guattari desferem contra as noes correntes de filosofia certeiro. A filosofia tem uma ao criadora (de
conceitos) e no uma mera passividade frente ao mundo. Os dois
No podemos identificar a filosofia com nenhuma dessas trs atitudes porque nenhuma delas especfica da filosofia. "a contemplao.
a reflexo, a comunicao no so disciplinas, mas mquinas de
constituir Universais em todas as disciplinas. " 14 Por outro lado,
prprio da filosofia criar conceitos que permitam a contemplao, a reflexo e a comunicao, sem os quais elas no poderiam ser.
Se a filosofia ganha densidade e identidade como a empresa de criao conceitual, ento cai por terra e perde o sentido a questo sempre dis-
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cutida da utilidade da filosofia, ou mesmo o anncio reincidente da sua
morte, de sua superao: "se h lugar e tempo para a criao dos conceitos, a essa operao de criao sempre se chamar filosofia, ou
no se distinguir da filosofia, mesmo se lhe for dado outro nome. " 15
Bem, se o ato filosfico consiste na criao de conceitos, devemos,
filosoficamente, perguntar: o que um conceito?
Essa questo nunca foi privilegiada na histria da filosofia; o conceito foi sempre tomado como um dado, um "sempre j presente", algo
que no precisa ser explicado. Para dizer de outra maneira, raras vezes
encontramos na histria um esforo de "conceituao do conceito". Mas
se o conceito criao, necessrio que se saiba exatamente o que
ele, e quais as condies e possibilidades de sua produo. necessria
uma verdadeira "pedagogia do conceito".
Podemos defmir o conceito como sendo uma aventura do pensamento que institui um acontecimento, vrios acontecimentos, que permita um ponto de visada sobre o mundo, sobre o vivido. PoderamQs,
aqui, lembrar a clebre afirmao de Merleau-Ponty: "a verdadeira
filosofia consiste em reaprender a ver o mundo"; parece ser disso
que falam Deleuze e Guattari quando exprimem a ao do conceito:
um reaprendizado do vivido, uma ressignificao do mundo. por isso
que o conceito exclusivamente filosfico. A cincia, por exemplo,
no cria conceitos; ela opera com proposies ou funes, que partem
necessariamente do vivido para exprimi-lo. O conceito mais como
um sobrevo (essa imagem reincidente em Deleuze: o conceito como
um pssaro que sobrevoa o vivido, o que levou criao de um belo
livro pstumo 16 ). Para dar inteligibilidade a esta definio, vejamos as
caractersticas bsicas dos conceitos.
Primeiro, todo conceito necessariamente assinado; cada filsofo,
ao criar um conceito ressignifica um termo da lngua com um sentido propriamente seu. Podemos tomar como exemplo: a Idia de Plato; o cogito
de Descartes; a mnada de Leibniz; o nada de Sartre; o fenmeno de
Husserl; a durao de Bergson ... A assinatura remete ao estilo filosfico
de cada um, forma particular de pensar e de escrever. "O batismo do
conceito solicita um gosto propriamente filosfico que procede com
violncia ou com insinuao, e que constitui na lngua uma lngua da
filosofia, no somente um vocabulrio, mas uma sintaxe que atinge o
sublime ou uma grande beleza." 17 A partir disso, Alliez criou a bela
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pios planos de imanncia que se opem, se complementam ou mesmo so
indiferentes entre si, convivendo todos numa simbiose rizomtica:
O plano de imanncia toma do caos determinaes, com as
quais faz seus movimentos infinitos ou seus traos diagramticos.
Pode-se, deve-se entlJo supor uma multiplicidade de planos, j
que nenhum abraaria todo o caos sem nele recair, e que todos
retm apenas movimentos que se deixam dobrarjuntos( ...) Cada
plano opera uma seleo do que cabe de direito ao pensamento,
mas essa se/elJo que varia de um para outro. Cada plano de
imanncia Uno-Todo: nlJo parcial, como um conjunto cientifico, nem fragmentrio como os conceitos, mas distributivo, um
'cada um'. O plano de imanncia folhado. 27
O que
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De volta do caos, do mundo dos mortos, o filsofo traz variaes
conceituais, o cientista traz variveis funcionais e o artista traz variedades afetivas. Todas as trs figuras - do filsofo, do cientista e do
artista -, cada uma de seu modo, contribuem, portanto, para que a
multiplicidade seja possvel, para que as singularidades possam brotar
e para que no sejamos sujeitados a viver sob a ditadura do Mesmo,
que o que busca nos impor a opinio, atravs da literatura pasteurizada, das mdias homogeneizantes e mesmo de certas "filosofias" que,
longe de buscar a criao de conceitos, contentam-se em ficar numa
"reflexo sobre ...". Lutando com o caos, filosofia, cincia e arte aprendem que, de fato, no ele o real inimigo: "diramos que a luta contra
o caos implica em afinidade com o inimigo, porque uma outra luta
se desenvolve e toma mais importncia, contra a opinio que, no
entanto, pretendia nos proteger do prprio caos" 33 A batalha contra
a opinio a mais importante, "pois da opinio que vem a desgraa dos homens. " 34
A filosofia , pois, um esforo de luta contra a opinio, que se
generaliza e nos escraviza com suas respostas apressadas e solues
fceis, todas tendendo ao mesmo; e luta contra a opinio criando conceitos, fazendo brotar acontecimentos, dando relevo para aquilo que
em nosso cotidiano muitas vezes passa desapercebido. A filosofia
um esforo criativo.
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velhos conceitos estereotipados como esqueletos destinados
a intimidar toda criao, sem ver que os antigos filsofos, de
que so emprestados, faziam o que j se queria impedir os
modernos de fazer: eles criavam seus conceitos e no se contentavam em limpar, em raspar os ossos, como o crtico ou o
historiador de nossa poca. Mesmo a histria da filosofia inteiramente desinteressante, se no se propuser a despertar um
conceito adormecido, a relan-lo numa nova cena, mesmo a
preo de volt-lo contra ele mesmo. 36
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Mas no dificil perceber que um tal filsofo da educao no
seria l muito bem visto; afinal, "pensar suscita a indiferena geral. E
todavia no falso dizer que um exerccio perigoso. somente
quando os perigos se tornam evidentes que a indiferena cessa,
mas eles permanecem freqentemente escondidos, pouco perceptveis, inerentes empresa. " 38
Pensar filosoficamente a educao pode ser perigoso - tomemos
em conta o que a criao de conceitos pode desvelar, as multiplicidades
que podem ser colocadas em jogo, as interconexes que podem ser produzidas - mas produz uma indiferena generalizada. No justamente
isso que encontramos em muitos alunos? E, pior, em muitos colegas docentes, em muitos burocratas dos rgos pblicos e privados ligados
educao, e mesmo na sociedade como um todo? Qual a importncia e
repercusso que publicaes de filosofia da educao tm no Brasil hoje,
mesmo no meio acadmico?
urgente, portanto, que busquemos uma filosofia da educao criativa e criadora, que no seja to incua. Ela deve ser perigosa, deve ser
o veneno e o remdio. necessrio que corramos o risco, que mergulhemos nesse caos povoado de opinies. Nas margens do Aqueronte,
no podemos titubear, com medo de no conseguir voltar do mundo dos
mortos. O mundo dos mortos aqui, quando sucumbimos opinio generalizada. Precisamos do mergulho no caos, precisamos das guas do
Aqueronte para, nelas, reencontrar a criatividade. S criando conceitos,
assumindo uma feio verdadeiramente filosfica que a filosofia da
educao poder ter um futuro promissor.
Notas
Sobre a questo do Deleuze-historiador da filosofia e do Deleuzefilsofo, ver as obras j citadas de Allie.z, Deleuze Filosofia Virtual e de Machado, Deleuze e a Filosofia.
Guattari (1930-1993) foi uma personalidade mltipla. Analista, rompeu com Lacan, o papa da psicanlise na Frana e fundou a anlise
institucional, criando mais tarde, j com Deleuze, a esquizoanlise,
que se prope a desedipianizar a produo do desejo, liberando seus
fluxos. Mas Guattari foi tambm um ativista poltico e um terico
de primeira linha, com produo ampla e variada. Foi, certamente,
um dos grandes intelectuais deste final de milnio, com o pensamento voltado para o futuro.
BADIOU, Alain. Deleuze - o clamor do Ser. Rio de Janeiro: JorgeZahar Editor, 1997, p. 47.
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11
12
13
14
Ibidem, p. 15.
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15
Ibid., p. 17.
16
17
18
Ibidem, p. 31.
19
lbid., p. 32.
20
lbid., p. 33.
21
lbid., p. 34.
22
lbid., p. 37.
23
lbid., p. 61.
24
lbid., p. 52.
25
26
27
lbid., p. 68.
28
lbid., p. 85.
29
Ibid., p. 92.
30
31
lbid., p. 108.
32
lbid., p. 260.
33
lbid., p. 261.
34
Ibid., p. 265.
35
lbid., p. 109.
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