Analise Estilista de Missa Do Galo
Analise Estilista de Missa Do Galo
Analise Estilista de Missa Do Galo
RESUMO: O presente trabalho prope uma reflexo acerca do estilo como elemento
constitutivo dos gneros discursivos, atravs de uma anlise estilstica do contoMissa do
Galo, de Machado de Assis. A anlise o estilo em um texto do gnero literrio torna o
estudo ainda mais interessante, medida que percebemos o quanto a linguagem literria
rica em recursos de estilo, cujos traos subjetivos do autor fazem da leitura um
momento instigante e prazeroso. Com base em pesquisa bibliogrfica, o artigo
pretendediscutir a concepo de linguagem como interao dialgica e social, os
gneros discursivos e seus elementos constituintes, assim como a importncia do estilo
na esfera discursiva. Esperamos que as contribuies trazidas sejam de valia para o
leitor, de modo que lhe traga maior compreenso sobre o assunto e interesse na
produo de outros trabalhos nesta rea de pesquisa.
Palavras-chave: linguagem; dialogismo; interao social; gneros do discurso; estudo
do estilo; conto literrio.
1 INTRODUO
Pensando acerca do trabalho final a ser desenvolvido para a Disciplina de Estudo
do estilo, surgiu a ideia de analisar um conto de Machado de Assis. O motivo da
escolhasimples: trata-se de um escritor cujo estilo incomparvel, envolvente,
apaixonante. No por acaso que Joaquim Maria Machado de Assis foi um dos
escritores mais estudados pelas escolas literrias brasileiras do sculo XIX e continua
sendo tema atual no mbito acadmico e pblico. Dentre suas obras, h uma diversidade
de gneros, demonstrando, assim, sua habilidade com a linguagem tanto como jornalista
quanto como escritor. Todavia, no gnero literrio que ele marca sua trajetria,
deixando uma vasta produo de poemas, contos, romances e peas teatrais.
Mikhail Bakhtin, a linguagem uma forma de interao social, tendo como objetivo a
comunicao, de modo que o seu princpio o dilogo. Logo, sendo o dilogo um
produto de trocas sociais, o discurso produzido atravs de tal interao reflete as
condies de vida de uma determinada comunidade lingustica, enfatizando, assim, o
carter histrico-social e ideolgico da linguagem. Acerca disso, Bakhtin diz ainda que
a palavra veicula, de maneira privilegiada, a ideologia; a ideologia uma
superestrutura, as transformaes sociais da base refletem-se na ideologia, portanto, na
lngua que as veicula. (BAKHTIN, apud CIALDINE, 2012, p. 20). Nessa perspectiva,
vemos que a linguagem, constituda atravs de interaes dialgicas, compreende
diferentes realizaes discursivas, ou seja, a lngua efetuada em forma de discursos ou
enunciados, sejam orais ou escritos. Bakhtin diz que a linguagem no falada no
vazio (apud BRAIT, 1997, p. 95), ou seja, ela acontece numa situao histrica e social
concreta no momento e no lugar da atualizao do discurso.
Visto que h vrios aspectos que esto implcitos nas realizaes discursivas,
podemos constatar que tudo o que dizemos apresenta uma inteno. O discurso no
neutro. Nossa fala est carregada dos valores que construmos historicamente, das
crenas que nos foram sendo passadas atravs das geraes e das vozes de outras
pessoas, cuja polifonia tambm aparece nesse discurso. Uma vez que o enunciado
possui um carter persuasivo, ele modificado consoante o objetivo que pretendemos
atingir, seguindo critrios determinados socialmente e mantendo uma relao direta com
a esfera social de uso. Portanto, percebemos que no existe apenas um tipo de
enunciado ou discurso, mas diversos.
OS GNEROS DISCURSIVOS
enunciados constitudos historicamente e que mantm uma relao direta com a esfera
social de uso. O estudo dos gneros desenvolvido por Bakhtin levou em conta o
dialogismo do processo comunicativo ao invs da classificao das espcies discursivas,
modificando o rumo dos estudos sobre gneros. Em seu ponto de vista, os gneros
discursivos deveriam ser estudados no apenas sobre o exame da retrica, mas
principalmente sobre as prticas prosaicas, pois a esfera mais ampla das formas
culturais no interior das quais outras esferas so experimentadas, dispondo da
manifestao de pluralidade. Em busca dessa pluralidade que Bakhtin preferiu o
romance como foco de seus estudos, j que esse gnero surge como possibilidade de
combinaes de discursos e de gneros.
Organizando os gneros discursivos, a fim de distinguir as esferas de uso da
linguagem em processo dialgico-interativo, Bakhtin classifica-os em primrios e
secundrios. Os gneros primrios compreendem os enunciados da comunicao
cotidiana, predominantemente orais, pertencentes da comunicao verbal espontnea,
tais como bilhete, conversa telefnica, bate-papo e e-mail. E os secundrios pertencem
esfera de comunicao cultural mais elaborada, tais como romance, ensaios, gneros
jornalsticos. So predominantemente escritos e absorvem os gneros primrios,
transformando-os, uma vez que estes perdem seu contexto imediato. Independente se a
dinmica dialgica da troca entre sujeitos discursivos se d por meio de gneros
primrios ou secundrios, Irene Machado (apud, BRAIT, 2005) explica que os gneros
discursivos esto vinculados aos enunciados concretos introduzidos por uma abordagem
lingustica centrada na funo comunicativa, descartando a ideia de mundo individual
do falante. Nesse sentido, Machado acrescenta, dizendo que:
Bakhtin analisa a dialogia entre ouvinte e falante como um processo de
interao ativa, quer dizer, no est no horizonte de sua formulao o clssico
diafragma espacial da comunicao fundado na noo de transporte de
mensagem de um emissor para um receptor, bastando, para isso, um cdigo
comum. Para Bakhtin, tudo o que se afirma sobre relao falante/ouvinte e da
ao do falante sobre um ouvinte passivo no passa de fico cientfica, um
raciocnio raso que desconsidera o papel ativo tanto de um quanto de outro
sem o qual a interao no acontece (MACHADO, apud BRAIT, 2005, p.06).
Essas consideraes enfatizam a funo dos enunciados, que nada mais que
estabelecer uma relao comunicativa entre falante e ouvinte e vice-versa, de forma
responsiva. A produo de um enunciado requer uma resposta ativa de um ouvinte, de
modo que, se falamos algo para que sejamos ouvidos, se escrevemos algo para que
algum leia, sempre esperando um retorno do ouvinte ou leitor, pois o discurso no
sozinho. Esperamos uma resposta ativa.
o termo estilstica j ser mencionado no sculo XIX, no comeo do sculo XX que ele
passa a destacar-se como cincia lingustico-literria, tendo Charles Bally3 como
precursor na rea da estilstica da lngua, e Leo Spitzer4 na rea da estilstica literria.
Posteriormente, havia outros estudiosos na rea como Jules Marouzeau, Marcel Cressot,
David Crystal, Derek Davy, Benedetto Croce, Karl Vossler. A Estilstica, antes de se
firmar como cincia, fez surtir muitos conceitos a respeito do que estilo, sendo essa
questo uma fonte de discusso at hoje. A palavra estilo deriva do latim stillus, o qual
era um instrumento afiado usado, na Antiguidade, para escrever em pequenas tbuas.
Logo, tal definio serviu para confundir gregos e romanos com a ideia de que estilo
representava o prprio ato de escrita.Depois, surgiu outra concepo, a de que estilo
provinha ou de uma ideia avaliativade bom ou mau no campo da cincia Retrica ou do
ato de dispor e classificar diferentes estilos em estamentos de acordo com suas
caractersticas ou provenincias. Mais tarde, com o Romantismo, a definio de estilo
foi se aproximando dos atos de fala e de escrita, repletos de impresses individuais tanto
do escritor quanto do falante sobre do mundo.
Segundo Pierre Guiraud5 (apud FERREIRA, p. 56), estilo uma noo
flutuante, que sempre ultrapassa os limites em que pretende fech-la, um desses termos
caleidoscpicos que se transformam no prprio instante em que nos esforamos
parafixa-los. Para linguista Roman Jakobson (apud FERREIRA, p.62), estilo o que
est presente nas mensagens em que h elaborao da mensagem por si mesma. J para
Bakhtin (2010, p.268), onde h estilo, h gnero. Consoante seus estudos, o estilo
integra a unidade de gnero do enunciado como seu elemento, de forma que seu estudo
somente ser correto e eficaz se considerar a natureza do gnero dos estilos lingusticos,
baseando-se no estudo prvio das modalidades de gneros do discurso. Nesse sentido,
ele traz uma nova ideia acerca de estilo, de forma que o estudo no delimita o estilo de
linguagem como objeto de anlise independente, mas no contexto dos gneros
3
Charles Bally (1865-1947), linguista suo e estudioso da lngua francesa, foi editor das notas dos alunos
das classes de Saussure que, mais tarde, foram compiladas na obra Curso de Lingustica Geral.
4
Leo Spitzer (1887-1960), austraco, iniciou seus estudos estilsticos ao escrever sobre os neologismos do
escritor Rabelais.
5
Pierre Guiraud, linguista francs, escreveu a definio no livro A Estilstica, sendo publicado em
Portugual pela Editora Presena.
Nessa perspectiva, que podemos dizer que o estilo coletivo, porque est
inserido dentro de um gnero que se caracteriza pela sua tipicidade e por determinados
elementos de base marcados pela permanncia. Contudo, o estilo tambm individual
porque se concretiza atravs dos enunciados que so unidades reais de comunicao,
assumidos por sujeitos marcados pela singularidade. Portanto, o estilo apresenta traos
do falante/escritor, atravs do qual este demonstra sua subjetividade, e do gnero cujo
enunciado pertence, representando aspectos mais coletivos, socioculturais.
Refletindo acerca das consideraes postas at aqui, esperamos que o leitor
tenha compreendido o porqu da necessidade de retomarmos tantos conceitos, pois no
h como pensarmos em estudo do estilo sem o reconhecimento de sua indissocivel
relao com o discurso e seus gneros. Assim como no h como pensarmos em
discurso sem entendermos que ele representa a realizao das interaes dialgicas, as
quais representam o envolvimento entre linguagem e sociedade. E nesse contexto que
partiremos para a anlise do conto machadiano Missa do galo(ver anexo 1).
caracteriza-se como um gnero secundrio, uma vez que sua estrutura representa a
comunicao cultural, uma elaborao mais rebuscada da escrita. Esse tipo de texto
compreende uma esfera de linguagem literria, de maneira que seu estilo marcado
principalmente por uma linguagem artstica, despreocupada com os padres da
gramtica normativa e com o sentido literal do lxico. O conto literrio caracteriza-se
predominantemente pelo tipo de texto narrativo. Ele compreende uma narrativa mais
breve, cuja histria formada por poucas personagens, tempo e espao limitados.
marcado por um enredo que traa um desenrolar de acontecimentos, clmax, que o
ponto alto da histria, e desfecho. A narrativa conta algo do passado, cujo narrador pode
ser um mero observador, que acompanha a vida das personagens, ou fazer parte da
histria, sendo tambm personagem.
A narrativa que temos em Missa do galo(ver anexo 1) contada pela prpria
personagem. Trata-se de um homem que conta um episdio vivido em sua juventude.
Por volta de 1861, o ento jovem Nogueira, sai de Mangaratiba para ao Rio deJaneiro
por conta de estudos preparatrios. Ele se hospeda na casa do escrivoMeneses, vivo
de uma de suas primas e casado com Conceio, que se resignacom uma relao
extraconjugal do marido. O escrivo dorme fora de casa uma vezpor semana dizendo
que vai ao teatro. Na casa, tambm vivem D. Incia, me deConceio, e duas
escravas.A histria se passa nas vsperas de Natal, uma das noites em queo escrivo
ausenta-se de casa. Nogueira combinara com um vizinho de acord-lo meia noite para
irem Missa do galo, por issoresolve esperar, j pronto, na sala da frente,a fim de no
incomodar as pessoas da casa. Enquanto l o romanceOsTrs Mosqueteiros,
surpreendido por Conceio. Comeam aconversar. O tempo vai passando, prolongamse osassuntos, riem, aproximam-se bastante e falam baixo para no acordaremD. Incia.
Logo, o vizinho chama o jovem para a missa, encerrando assim o dilogo.No Ano
Novo, Nogueira vai para Mangaratiba. Ao retornar, em maro, oescrivo havia morrido.
Nunca mais encontrou Conceio. Soube depois que elahavia se casado com o
escrevente do marido.
Por meio desse resumo, podemos perceber que a conversa dos dois, a qual
compreende poucas horas, o tempo da narrativa, e a sala de estar, o lugar onde se
desenvolve a trama. Em contrapartida, o conto apresenta uma dimenso maior, uma vez
que o estilo da linguagem, a forma como o enunciado foi construdo envolve o leitor,
fazendo com que uma simples conversa parea intrigante e complexa, com diversas
interpretaes. Em Missa do galo vemos nitidamente algumas marcas do estilo que so
o dialogismo, heterogeneidade discursiva, polifonia, intertextualidade,subjetividade do
autor edesvio da norma culta gramatical.
Inicialmente, observemos o dialogismo e heterogeneidade discursiva no texto de
Machado. O conto apresenta dois tempos da narrativa: o tempo da enunciao, o qual
narrador conta o acontecimento a algum; e o tempo do enunciado, que representa o
momento do fato narrado, quandoo narrador-personagem conversa comConceio.
Logo, temos duas situaes onde se estabelecem interaes dialgicas.Analisemos a
passagem a seguir: Nunca pude entender a conversao que tive com uma senhora, h
muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. (...) Havendo ajustado com um vizinho
irmos missa do galo, preferi no dormir; combinei que eu iria acord-lo meia-noite
(ASSIS, 2007, p.433). Nesse trecho percebemos que h um dilogo entre o narrador e
algum a quem ele conta o fato, de forma que sua fala ajustada, adequando as aes
para o passado. Partindo do princpio de que o falante espera uma resposta ativa do
ouvinte,
percebemos
que
uma
comunicao
entre
escritor/narrador
O narrador utiliza outras vozes para ratificar seu ponto de vista a respeito de Conceio,
dizendo que, assim como ele a considera uma boa mulher, boa esposa, outras pessoas,
assim tambm a definiam:uma santa. Essas outras pessoas cujas vozes so mencionadas
caracterizam o humor irnico de Machado de Assis, medida que elas parecem
representar a sociedade carioca da sua poca, a qual mantinha um falso moralismo, to
criticado pelos escritores realistas. Continuando, o narrador compara a personagem
Conceio a uma maometana, reforando mais uma vez a subjetividade do autor atravs
Jos Maria Boutckosky da Silva autor do artigo O humor machadiano em O alienista, publicado na
revista Conhecimento Prtico de Literatura.
7
Roberto Sarmento Lima autor do artigo Trapaas Machadianas: artimanhas que esconde a narrativa
de Memrias Pstumas de Brs Cubas, publicada na Revista Discutindo Lngua Portuguesa.
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6 CONSIDERAES FINAIS
Comeste estudo buscamos demonstrar que o estilo um doselementos essenciais
na definio dos gneros discursivos. Machado de Assis, atravs de seu estilo, marcou a
literatura brasileira, demonstrando seu poder de criao atravs da linguagem.
Os gneros literrios encantam com seu estilo diferenciado, fazendo com que o
leitor ultrapasse os limites do sentido das palavras, dando diferentes significados aos
textos, atravs da relao que estabelece entre o enunciado e suas experincias de vida.
Assim, esperamos que o que foi apresentado aqui tenha contribudo para melhor
entendimento acerca do estudo do estilo lingustico, qui sirva para incentivar a
produo de outros trabalhos nessa mesma rea de pesquisa.
7 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS:
ASSIS, Machado de.Seleo de GLEDSON, John. Missa do Galo. In: 50 contos de
Machado de Assis. So Paulo: Companhia das Letras, 2007.
BAKHTIN, Mikhail M. Esttica da criao verbal. 5 ed. So Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2010.
BRAIT, Beth (org). Bakhtin e a natureza constitutivamente dialgica da linguagem. In:
Bakhtin, dialogismo e construo do sentido. Campinas, SP: Editora da UNICAMP,
1997.
11
em
_____________________Alexandre
Dumas.
Disponvel
em
http://pt.wikipedia.org/w/index.php?search=alexandre+dumas+escritor&title=Especial
%3APesquisar&fulltext=1Acesso em 27.09.2012.
______________________ Joaquim Manuel de Macedo. Disponvel
http://pt.wikipedia.org/wiki/Joaquim_Manuel_de_MacedoAcesso em 27.09.2012.
em
______________________
Maometano.
Disponvel
http://pt.wikipedia.org/wiki/Maometano Acesso em 27.09.2012.
em
12
ANEXO 1
MISSA DO GALO
NUNCA PUDE entender a conversao que tive com uma senhora, h muitos
anos,contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um
vizinhoirmos missa do galo, preferi no dormir; combinei que eu iria acord-lo
meia-noite.
A casa em que eu estava hospedado era a do escrivo Meneses, que fora casado,
emprimeiras npcias, com uma de minhas primas A segunda mulher, Conceio, e a
me destaacolheram-me bem quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses
antes, aestudar preparatrios. Vivia tranquilo, naquela casa assobradada da Rua do
Senado, com osmeus livros, poucas relaes, alguns passeios. A famlia era pequena, o
escrivo, a mulher,a sogra e duas escravas. Costumes velhos. s dez horas da noite toda
a gente estava nosquartos; s dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e
mais de uma vez,ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse
consigo. Nessasocasies, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam socapa; ele no
respondia, vestia-se,saa e s tornava na manh seguinte. Mais tarde que eu soube que
o teatro era umeufemismo em ao. Meneses trazia amores com uma senhora, separada
do marido, edormia fora de casa uma vez por semana. Conceio padecera, a princpio,
com a existnciada combora; mas afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou
achando que era muitodireito.
Boa Conceio! Chamavam-lhe "a santa", e fazia jus ao ttulo, to facilmente
suportava osesquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado,
sem extremos,nem grandes lgrimas, nem grandes risos. No captulo de que trato, dava
para maometana;aceitaria um harm, com as aparncias salvas. Deus me perdoe, se a
julgo mal. Tudo nelaera atenuado e passivo. O prprio rosto era mediano, nem bonito
nem feio. Era o quechamamos uma pessoa simptica. No dizia mal de ningum,
perdoava tudo. No sabiaodiar; pode ser at que no soubesse amar.
Naquela noite de Natal foi o escrivo ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862.
Eu jdevia estar em Mangaratiba, em frias; mas fiquei at o Natal para ver "a missa do
galo naCorte". A famlia recolheu-se hora do costume; eu meti-me na sala da frente,
vestido epronto. Dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ningum.
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Tinha trschaves a porta; uma estava com o escrivo, eu levaria outra, a terceira ficava
em casa.
Mas, Sr. Nogueira, que far voc todo esse tempo? pergun-tou-me a me de
Conceio.
Leio, D. Incia.
Tinha comigo um romance, Os Trs Mosqueteiros, velha traduo creio do
Jornal doComrcio. Sentei-me mesa que havia no centro da sala, e luz de um
candeeiro dequerosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro
de D'Artagnan efui-me s aventuras. Dentro em pouco estava completamente brio de
Dumas. Os minutosvoavam, ao contrrio do que costumam fazer, quando so de espera;
ouvi bater onze horas,mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um pequeno
rumor que ouvi dentro veioacordar-me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da
sala de visitas de jantar;levantei a cabea; logo depois vi assomar porta da sala o
vulto de Conceio.
Ainda no foi? perguntou ela.
No fui, parece que ainda no meia-noite.
Que pacincia!
Conceio entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia um roupo
branco,mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de viso romntica, no
disparatadacom o meu livro de aventuras. Fechei o livro, ela foi sentar-se na cadeira que
ficavadefronte de mim, perto do canap. Como eu lhe perguntasse se a havia acordado,
semquerer, fazendo barulho, respondeu com presteza:
No! qual! Acordei por acordar.
Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos no eram de pessoa que
acabasse dedormir; pareciam no ter ainda pegado no sono. Essa observao, porm,
que valeriaalguma cousa em outro esprito, depressa a botei fora, sem advertir que
talvez no dormissejustamente por minha causa, e mentisse para me no afligir ou
aborrecer J disse que elaera boa, muito boa.
Mas a hora j h de estar prxima, disse eu.
Que pacincia a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E
esperar sozinho!
No tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando
me viu.
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No entendi a negativa; ela pode ser que tambm no a entendesse Pegou das
pontas docinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto , o joelho direito, porque
acabava de cruzar aspernas. Depois referiu uma histria de sonhos, e afirmou-me que s
tivera um pesadelo, emcriana. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se assim
lentamente, longamente, semque eu desse pela hora nem pela missa. Quando eu acabava
uma narrao ou umaexplicao, ela inventava outra pergunta ou outra matria e eu
pegava novamente napalavra. De quando em quando, reprimia-me:
Mais baixo, mais baixo. . .
Havia tambm umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir;
mas os olhos,cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se
ela os houvessefechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim
embebido na suapessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, no sei se apressada ou
vagarosamente. Himpresses dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas.
Contradigo-me, atrapalho-me.Uma das que ainda tenho frescas que em certa ocasio,
ela, que era apenas simptica,ficou linda, ficou lindssima. Estava de p, os braos
cruzados; eu, em respeito a ela, quislevantar-me; no consentiu, ps uma das mos no
meu ombro, e obrigou-me a estarsentado. Cuidei que ia dizer alguma cousa; mas
estremeceu, como se tivesse um arrepio defrio voltou as costas e foi sentar-se na
cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vistapelo espelho, que ficava por cima
do canap, falou de duas gravuras que pendiam daparede.
Estes quadros esto ficando velhos. J pedi a Chiquinho para comprar outros.
Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negcio deste homem.
Umrepresentava "Clepatra"; no me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres.
Vulgaresambos; naquele tempo no me pareciam feios.
So bonitos, disse eu.
Bonitos so; mas esto manchados. E depois francamente, eu preferia duas
imagens,duas santas. Estas so mais prprias para sala de rapaz ou de barbeiro.
De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro.
Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moas e
namoros, enaturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em
casa de famlia que no acho prprio. o que eu penso, mas eu penso muita cousa
assim esquisita. Seja oque for, no gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da
Conceio, minhamadrinha, muito bonita; mas de escultura, no se pode pr na
parede, nem eu quero. Estno meu oratrio.A idia do oratrio trouxe-me a da missa,
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lembrou-me que podia ser tarde e quis diz-lo.Penso que cheguei a abrir a boca, mas
logo a fechei para ouvir o que ela contava, comdoura, com graa, com tal moleza que
trazia preguia minha alma e fazia esquecer amissa e a igreja. Falava das suas
devoes de menina e moa. Em seguida referia umasanedotas de baile, uns casos de
passeio, reminiscncias de Paquet, tudo de mistura, quasesem interrupo. Quando
cansou do passado, falou do presente, dos negcios da casa, dascanseiras de famlia, que
lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas no eram nada. No mecontou, mas eu sabia
que casara aos vinte e sete anos.J agora no trocava de lugar, como a princpio, e quase
no sara da mesma atitude. Notinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar toa
para as paredes.
Precisamos mudar o papel da sala, disse da a pouco, como se falasse
consigo.
Concordei, para dizer alguma cousa, para sair da espcie de sono magntico, ou
o que querque era que me tolhia a lngua e os sentidos. Queria e no queria acabar a
conversao;fazia esforo para arredar os olhos dela, e arredava-os por um sentimento
de respeito; mas aidia de parecer que era aborrecimento, quando no era, levava-me os
olhos outra vez paraConceio. A conversa ia morrendo. Na rua, o silncio era
completo.
Chegamos a ficar por algum tempo, no posso dizer quanto, inteiramente
calados. Orumor nico e escasso, era um roer de camundongo no gabinete, que me
acordou daquelaespcie de sonolncia; quis falar dele, mas no achei modo. Conceio
parecia estardevaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e
uma voz quebradava: "Missa do galo! missa do galo!"
A est o companheiro, disse ela levantando-se. Tem graa; voc que ficou
de iracord-lo, ele que vem acordar voc. V, que ho de ser horas; adeus.
J sero horas? perguntei.
Naturalmente
Missa do galo! repetiram de fora, batendo.
V, v, no se faa esperar. A culpa foi minha. Adeus at amanh.
E com o mesmo balano do corpo, Conceio enfiou pelo corredor dentro,
pisandomansinho. Sa rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja.
Durante amissa, a figura de Conceio interps-se mais de uma vez, entre mim e o
padre; fique isto conta dos meus dezessete anos. Na manh seguinte, ao almoo falei
da missa do galo e dagente que estava na igreja sem excitar a curiosidade de Conceio.
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Durante o dia, achei-acomo sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a
conversao da vspera. Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de
Janeiro em maro, oescrivo tinha morrido de apoplexia. Conceio morava no
Engenho Novo, mas nem avisitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o
escrevente juramentado domarido.