VALENTIM, Marco Antonio - Extramundanidade e Sobrenatureza (Projeto de Pesquisa Doutorado)
VALENTIM, Marco Antonio - Extramundanidade e Sobrenatureza (Projeto de Pesquisa Doutorado)
VALENTIM, Marco Antonio - Extramundanidade e Sobrenatureza (Projeto de Pesquisa Doutorado)
como cincia mais digna de comandar as demais, a nica cincia livre, a nica que
em vista de si mesma: assim como chamamos livre o homem [nthropos] que em
vista de si mesmo [ho hauto hneka] e no de um outro (Aristteles, 1998, I-1, 982b).
Todos os homens [nthropoi] desejam por natureza o saber a primeira palavra da
Metafsica. Kant, por sua vez, elege como mxima primeira do entendimento humano
pensar por si, a mxima de uma razo jamais passiva, isto , jamais cativa da
natureza, a libertar-se da heteronomia, do preconceito e da superstio, em
suma, da cegueira enquanto necessidade de ser guiado por outros (Kant, 2002, 40,
Ak. 158-159). Sapere aude! a exortao kantiana dirigida ao so entendimento
humano. Mas o que explica que orientaes filosficas to diferentes uma voltada
aos primeiros princpios e causas do ente em si, a outra s faculdades e limites do
conhecimento objetivo exibam essa mesma caracterstica? H razo profunda para a
semelhana formal entre esses dois discursos da filosofia?
Acredito ser possvel mostrar que h um desgnio comum metafsica e
revoluo copernicana, desgnio intimamente relacionado reivindicao de
fundamentalidade que elas compartilham, a saber: o compromisso de primeira ordem
com a possibilidade da constituio de um sentido propriamente (eminentemente, ou
mesmo, exclusivamente) humano. Assim, o carter de fundamento reivindicado pela
sopha e pela Aufklrung, duas manifestaes igualmente originrias do discurso
filosfico, parece estar associado a uma virtude antropogentica como sua condio e
finalidade: a capacidade de constituir a humanidade do homem como um posto
autorreferencial de eminncia, imune a catstrofes (sobre-)naturais.
Em uma de suas formulaes mais expressivas, que pode ser encontrada nas
lies de Alexandre Kojve sobre a Fenomenologia do esprito, o Conceito de
antropognese explicado precisamente nos termos das condies scio-espirituais para
se atingir o ideal da autonomia do homem (o ser humano como ser-para-si).
Trata-se da criao de um mundo real objetivo, um mundo no-natural, um mundo
cultural, histrico, humano mediante a libertao do homem da angstia que o ligava
natureza dada e sua prpria natureza inata de animal, sua primitividade
(Kojve, 2002, p. 28). A interao dialtica entre senhor e escravo, que Kojve
interpreta como relao social fundamental (idem, p. 15), mostra que o mundo
humano implica necessariamente um elemento de dominao e um elemento de
sujeio, existncias autnomas e existncias dependentes (idem): homens e animais,
senhores e escravos, civilizados e brbaros, esclarecidos e supersticiosos. A sociedade
2
s humana pelo menos na origem [!] sob essa condio (idem), estruturando-se
internamente por meio da incessante atualizao da potncia antropogentica de
liberao do humano para si mesmo e, para tanto, atravs da supresso e da submisso
do que se experimenta como alteridade, como no-humanidade. A humanidade enquanto
tal consiste na ao de transformar um mundo hostil a um projeto humano em um
mundo que esteja de acordo com esse projeto; essencialmente humana porque
humanizadora, antropognica, essa ao, completa Kojve, comea pelo ato de imporse ao primeiro outro com que se depara (idem, p. 17).
Por mais gerais que sejam, essas indicaes mostram que h um vnculo estreito
e talvez mesmo essencial entre fundamentalidade e antropognese na constituio do
discurso filosfico: a tendncia para um pensamento fundamental, prprio do homem,
exprimiria justamente o elemento de dominao e sujeio implicado pela formao
do mundo humano.
Ontologia fundamental
No por acaso que Aristteles, tendo formulado o primeiro princpio da
cincia primeira (a impossibilidade de admitir-se ao mesmo tempo que algo e no
), compara aquele que pretendesse recus-lo a um vivente supostamente no-humano, a
uma planta (considerada, claro, como de todo carente de discurso) (cf. Aristteles,
1998, IV-4, 1006a). A humanidade do homem repousaria sobre a impossibilidade de um
sentido, no-humano ou mesmo humano, que fizesse exceo ao princpio da cincia
primeira. Na Metafsica, essa cincia no seno a que trata do ente enquanto ente,
sendo celebrada pela tradio filosfica sob o ttulo de ontologia. Seria essa cincia em
si mesma antropogentica, algo como um dispositivo privilegiado de humanizao do
mundo hostil, de sua adequao ao projeto humano de si?
Uma tal concepo de ontologia proposta por Giorgio Agamben, em O aberto:
o homem e o animal, na forma de um conjunto de teses sobre o conceito de
antropognese. Destaca-se em especial a segunda delas, que encerra uma lapidar
definio. Nesta se reinterpreta, em sentido eminentemente poltico, a tradio
ontolgica ocidental:
2) A ontologia ou filosofia primeira no uma incua disciplina acadmica, mas
a operao, em todo sentido fundamental, em que se leva a cabo a
antropognese, o devir humano do vivente. A metafsica est presa desde o
princpio nesta estratgia: ela concerne precisamente quele met que cumpre e
guarda a superao da physis animal em direo da histria humana. Essa
superao no um fato que se cumpriu de uma vez e para sempre, mas um
evento sempre em curso, que decide a cada vez em cada indivduo acerca do
3
Na interpretao de Agamben, que, alis, parte de uma discusso sobre a antropognese segundo
Kojve, a ontologia fundamental representada principalmente pela preleo de Heidegger sobre os
Conceitos fundamentais da metafsica: mundo-finitude-solido (Freiburg, 1929-30).
3
Pode-se dizer que o projeto ontolgico-fundamental se estende, ao menos em sua formulao primeira,
ao longo de pelo menos cinco textos principais, alm de Ser e tempo: a preleo de 1927 sobre os
Problemas fundamentais da fenomenologia, que retoma e prolonga o tratado publicado no mesmo ano
especialmente atravs da discusso da diferena ontolgica; a preleo de 1928 sobre Princpios
fundamentais da lgica a partir de Leibniz, em que se esclarece o sentido da ontologia fundamental como
projeto da prpria transcendncia humana; o tratado de 1929, Da essncia do fundamento, que
concentra a preleo anterior e contribui decisivamente para o esclarecimento do conceito existencial de
mundo; o livro Kant e o problema da metafsica (1929), em que se interpreta a filosofia transcendental de
Kant como empresa de fundamentao da metafsica a partir de uma antropologia filosfica a ser
reformada e aprofundada pela ontologia fundamental de Ser e tempo; e, por fim, a preleo de 1929-30
sobre os Conceitos fundamentais da metafsica: mundo-finitude-solido, que, concentrando-se
particularmente na questo da diferena de ser entre o mundo humano e a vida animal, culmina com a
indicao de que a histria, enquanto acontecimento fundamental, constituda pelo projeto humano do
ser dos entes em geral.
4
Cf., por exemplo, Heidegger, 1993, 6, p. 22-27; idem, 43a, p. 208; e especialmente 2005, 13a, p.
172-176.
5
Cf. Heidegger, 1993, 4, 9 e 18.
4
propondo-se como centro ontolgico de referncia, tanto para si mesmo quanto para
todo outro ente possvel.
Como no poderia deixar de acontecer, as consequncias de tal mudana de foco
da ontologia so, especialmente para modos no-humanos de ser, drsticas: se o homem
(o ser-a, Dasein) constitui por si s, independentemente de vnculo ou aliana com o
que quer que seja, o lugar do ser, o ser dos entes outros se determina prioritariamente
em funo de possibilidades humanas de ser si-mesmo, ou ainda, na linguagem da
ontologia existencial, de ser-no-mundo. A natureza mesma um ente que vem ao
encontro dentro do mundo (Heidegger, 1993, 14, p. 63), isto , dentro de um contexto
do qual o homem, compreendido como ser-a ou existncia, o centro nico de
referncia: Mundo , em tudo isso, a designao para o ser-a humano no cerne de sua
essncia (idem, 2004a, p. 154). Todo nexo ontolgico entre o humano e o humano,
entre o humano e no-humano e mesmo entre o no-humano e o no-humano remete,
portanto, relao compreensiva que somente o homem mantm com o ser enquanto
tal, como sua suprema condio:6 a transcendncia, pela qual o ser-a humano
ultrapassa todos os outros entes em direo do seu prprio mundo.
possvel perceber como o projeto de uma ontologia fundamental tende a
acirrar maximamente a vocao antropogentica do discurso filosfico. A ttulo de
antropognese, nele encontramos, em lugar da ideia da superao da animalidade pela
humanidade,7 a peremptria recusa, feita sob a gide da crtica ao humanismo, da
possibilidade de pensar a humanidade do homem sob a perspectiva do no-humano. Em
uma famosa passagem da Carta sobre o humanismo (1946), na qual Heidegger discute
e reitera o projeto da ontologia fundamental, lemos que, afastando-se das
interpretaes humanistas do homem como animal rationale, como pessoa, como
essncia espiritual-anmico-corprea,
[...] o pensamento em Ser e tempo contra o humanismo. Porm, essa oposio
no significa que tal pensar se bata para o lado contrrio do humano [auf die
Gegenseite des Humanen] e advogue o no-humano [das Inhumane], que ele
defenda a inumanidade [Unmenschlichkeit] e degrade a dignidade do homem
[des Menschen]. Pensa-se contra o humanismo porque ele no ala
suficientemente alto a humanidade do homem [die Humanitas des Menschen].
[...] o homem jogado pelo ser mesmo na verdade do ser, para que, existindo
6
conforme a isso, a guarde, a fim de que o ente aparea, como ente que , luz
do ser. [...] O homem o pastor do ser (Heidegger, 2004b, p. 330).
A expresso de Agamben, que, colocando a questo dos limites do pensamento do ser, designa com
ela a condio do animal, no-humano, liberto da antropognese: Deixar ser o animal significar ento
deix-lo ser fora do ser. A zona de no-conhecimento ou de ignoscncia [ignorncia/inocncia] que
est aqui em questo est mais alm tanto do conhecer quanto do no conhecer, tanto do desvelar quanto
do velar, tanto do ser como do nada. Mas o que assim deixado fora do ser no , por isso, negado ou
removido, no , por isso, inexistente. um existente, um real, que foi mais alm da diferena entre ser e
ente (Agamben, 2002, p. 167). Parece-me que a fora do pensamento de Agamben como intrprete de
Heidegger reside aqui em indicar, contra a perspectiva antropogentica, a existncia do que jaz fora do
ser, isto , alm do escopo possvel da ontologia fundamental, determinando-a em sua possibilidade
como que de fora (ou ainda, desde radicalmente dentro, pois tambm o homem um vivente, fora do
ser). Por outro lado, a limitao provvel desse pensamento est em aparentemente assumir a
impossibilidade de uma outra ontologia, no-antropogentica, como se a ontologia fundamental fosse a
consumao da experincia e do conceito, humanos e no-humanos, do ser em geral (o seu contraposto
sendo a ignoscncia do que jaz fora do ser). Com efeito, deixar ser o animal fora do ser uma tarefa
indicada por Agamben como possvel, de algum modo, a partir da ontologia heideggeriana: Por isso, a
categoria suprema da ontologia de Heidegger se enuncia: deixar ser (idem, p. 166).
6
oportuno notar que essa dimenso de contgio entre humanidade e no-humanidade, compreendida
por Heidegger como mbito demarcado pela no-essncia do homem, constitui, para Lvi-Strauss,
precisamente o campo de investigao prprio da antropologia, a zona de indiscernibilidade entre
natureza (vida) e cultura (mundo): Mas nem sempre a distino fcil assim. Frequentemente o estmulo
fsico-biolgico e o estmulo psicossocial despertam reaes do mesmo tipo, sendo possvel perguntar,
como j fazia Locke, se o medo da criana na escurido explica-se como manifestao de sua natureza
animal ou como resultado das histrias contadas pela ama. Mais ainda, na maioria dos casos, as causas
no so realmente distintas e a resposta do sujeito constitui verdadeira integrao das fontes biolgicas e
das fontes sociais de seu comportamento. Assim, o que se verifica na atitude da me com relao ao
filho ou nas emoes complexas do espectador de uma parada militar. que a cultura no pode ser
considerada nem simplesmente justaposta nem simplesmente superposta vida. Em certo sentido
substitui-se vida, e em outro sentido utiliza-a e a transforma para realizar uma sntese de nova ordem
(Lvi-Strauss, 1976, p. 39-40).
10
Cf. Heidegger, 2004b, p. 326; e, especialmente, idem, 2010, 50, p. 307-310, onde se recusa a
possibilidade ontolgica da coexistncia (Mitdasein) com o animal, tomado como paradigma da nohumanidade, com base na tese de que ele essencialmente privado de mundo, ou seja, carente da
condio pela qual somente se tornaria possvel a transponibilidade (Versetzbarkeit) entre existncia
humana e vida animal, o seu ser-com (Mitsein).
11
Cf. Kant, 1986, p. 15-16.
7
Nesse trecho, Haar comenta, de um ponto de vista crtico, o que considera uma
parcialidade da ontologia existencial: a recusa em conceder facticidade da existncia,
ou seja, ao carter pelo qual ela se vincula a outrem no-humano (no-existente), o
estatuto de origem ontolgica do mundo, que, pelo contrrio, se supe projetado a partir
de um livre poder-ser para possibilidades, bem como a tendncia, intimamente
associada quela recusa, a interpretar o carter ftico do existir unilateralmente a partir
12
Porm, o homem no apenas um ser-vivo [Lebewesen], que, junto a outras faculdades, possui
tambm a linguagem. Muito antes, a linguagem a casa do ser, na qual, morando, o homem eksiste
[eksistiert] na medida em que, guardando a verdade do ser, pertence a ela (Heidegger, 2004b, p. 334).
8
(idem, 2009, p. 7) e, de outro, promover o efeito reverso das suas ontologias sobre a
metafsica ocidental, ensejando assim uma transformao radical dos conceitos
ontolgicos desta ltima e, em especial, a inveno de outro modo de criao de
conceitos que o modo filosfico (idem, p. 20). A aplicao da ideia de ontologia ao
pensamento no-ocidental dos povos da Amrica indgena justificada pelo propsito
de tomar a contrapelo uma manobra frequente contra o pensamento indgena, qual
seja, a de enquadr-lo em uma ontologia, a nossa, suposta como universalmente
vlida, por meio de sua reduo a prticas de sentido que somente ela tornaria possveis
(crena, representao, conhecimento, viso de mundo etc.) (cf. Viveiros de Castro, s/d,
A imagem do vnculo, 11). Por conseguinte, atribuir a esse pensamento outro a
condio de ontologia significa, antes de mais nada, reconhecer a possibilidade de um
outro sentido (idem), isto , de um pensamento irredutvel e talvez incomensurvel
com o nosso: a possibilidade de uma ontologia no-antropogentica.
Tendo-se em mente o conceito da antropognese, tal ontologia deve poder exibir
pelo menos dois traos, bastante gerais mas no menos decisivos: a afirmao do
descentramento radical do humano e a recusa prvia de fundamentalidade perante outras
formas de pensamento. De fato, ambos parecem achar-se indissoluvelmente reunidos na
ideia do perspectivismo cosmolgico, na qual se exprime, segundo etnografias
dedicadas ao seu estudo,13 o pensamento amerndio: the conception, common to many
peoples of the continent, according to which the world is inhabited by different sorts of
subjects or persons, human and non-human, which apprehend reality from distinct
points of view (Viveiros de Castro, 2012a, p. 45).
Nesse outro mundo que foi descoberto em nosso sculo, 14 a experincia que
cada sujeito humano/no-humano faz do mundo consiste em uma passagem contnua
entre modos de apresentao, humanos e no-humanos, do prprio mundo enquanto
contexto de diferena e relao entre perspectivas ou pontos de vista. De acordo com
isso, sem consistir na propriedade de uma espcie nem no modo de ser de um ente, a
humanidade o nome para a forma geral tomada pelo sujeito sujeito, humano e
no-humano, que criado por uma perspectiva implicada em outras perspectivas, que
ativam outros sujeitos, no-humanos e humanos (cf. Viveiros de Castro, 2012a, p. 99100). Por conseguinte, se o mundo habitado por humanos e no-humanos como
sujeitos de pontos de vista, se esses sujeitos veem-se a si mesmos como humanos e aos
13
14
Para um recenseamento de algumas dessas etnografias, cf. Viveiros de Castro, 2012, p. 49-53.
A expresso de Montaigne (cf. 2010, p. 141).
10
De forma por demais abstrata, tento resumir nessas linhas o que originalmente objeto de uma densa
exposio (cf. Viveiros de Castro, 2012).
16
Como exposio do conceito de diferena que serve de base a essa interpretao da ontologia
perspectivstica amerndia (diferena intensiva pura, ou multiplicidade), conceito ao qual aludo aqui
apenas exteriormente, cf. sobretudo Viveiros de Castro, 2009, p. 79-86.
11
contedos em vista da unidade do ser que o seu poder de interao com outras
perspectivas, o de fazer proliferar a multiplicidade (Viveiros de Castro, 2009, p. 9): 17
em suma, a sua virtude cosmopoltica, no sentido de participar de uma zona de
intercmbio maximamente intenso com a alteridade nos planos mtico, xamnico,
onrico, metamrfico de articulao entre humanos e no-humanos (idem, 2011a, p.
356).
Imprio do Uno
Evidentemente, a noo de cosmopoltica como campo de alterao entre
perspectivas de todo avessa, na verdade simetricamente oposta, noo filosfica
introduzida por Kant no clebre opsculo sobre a Ideia de uma histria universal de um
ponto de vista cosmopolita [weltbrgerlich], onde o termo designa o ponto de vista
em que se considera
o plano oculto da natureza para estabelecer uma constituio poltica
[Staatsverfassung] perfeita interiormente e, quanto a este fim, tambm
exteriormente perfeita, como o nico estado no qual a natureza pode
desenvolver plenamente, na humanidade, todas as suas disposies (Kant, 1986,
p. 20).
Trata-se, nesse caso, da prpria idia de Estado enquanto ideal da formao (Bildung)
humana. Tal como enunciado na passagem, e em testemunho do seu carter
antropogentico, o ponto de vista cosmopolita toma claramente por fundamento a tese
com a qual se inaugura a antropologia filosfica: O objeto mais importante no mundo,
a que o homem pode aplicar todos os progressos na cultura, o homem, pois ele o seu
prprio fim ltimo (Kant, Antropologia de um ponto de vista pragmtico, Prefcio,
apud Heidegger, 2004a, p. 153-154). Em Da essncia do fundamento, essa tese de
Kant, que afirma o homem como nico habitante do mundo propriamente dito,
explicitamente retomada por Heidegger para a fundamentao e explicao do conceito
ontolgico-existencial de mundo (cf. 2004a, p. 142-155). Consistindo na herana
kantiana, no surpreende que, ao ser transportado para o cerne da ontologia
fundamental, o conceito kantiano de mundo possa trazer consigo nada menos que o
ideal poltico da Aufklrung o Estado cosmopolita , convertido em condio
existencial de possibilidade da histria enquanto formao do mundo humano. Em uma
das sees finais da supracitada preleo de 1934, publicada sob o ttulo Lgica. A
17
Com efeito, a ideia de que dizer as coisas segundo a sua unidade consign-las
incompletude faz contraponto direto tese ontolgica fundamental com que se abre o
livro IV da Metafsica: Mas o ente se diz de mltiplos modos, embora segundo [o] um
e certa natureza nica [prs hn ka man tin physin] (Aristteles, 1998, 1003a).
13
Atesta-se com essa contraposio algo decisivo: assumido por Aristteles como
primeiro fundamento da discursividade humana, o princpio da antropogense
ontolgica (o princpio da identidade) adquiriria, na ontologia dos Guarani, antes que
o pretenso mutismo das plantas,18 um sentido radicalmente outro: O Uno: fixao da
morte. A morte: destino do que uno (Clastres, 1979, p. 169). Trata-se do pensamento
do no-Uno (idem), isto , da relao entre os mltiplos modos de ser precisamente
enquanto resistem sua subsuno analgica unidade do sentido prprio (apropriado e
aproprivel por um discurso exclusivamente humano), permanecendo, com isso,
refratrio classificao dos modos de ser em uma hierarquia categorial: pois O Mal
o Uno, e a sua linguagem, que o pensamento antropogentico toma como constitutiva e
normativa de todo fazer sentido, enganadora (idem).
Sobrenatureza
Face diferena do pensamento do no-Uno, ao que o torna outro e irredutvel
tradio ontolgico-poltica ocidental no no sentido de estar privado de algo como o
princpio da identidade, mas sim no sentido de ter dado possibilidade desse
princpio e de sua ontologia um sentido verdadeiramente oposto , no s se pode como
talvez se deva perguntar, sobretudo para tentar experimentar os limites da antropognese
filosfica: qual o seu conceito de ser? Ou melhor, revertendo-se o teor ainda
ocidentalizante da pergunta: qual o estatuto virtual do que ns mesmos
compreendemos como ser nesse outro mundo que o nosso sculo ainda est por
deixar de encobrir?19
18
oportuno aqui referir o perspicaz comentrio de Christiane Bailey, presente em um estudo justamente
intitulado A vida vegetativa dos animais: a destruio heideggeriana da animalidade como reduo
biolgica: O argumento dos Conceitos fundamentais da metafsica no inteligvel seno se
consideramos que, para Heidegger, a vida animal no essencialmente distinta da vida vegetal: a vida,
dir Heidegger em 1929-30, isto , a maneira de ser do animal e da planta (281) (Bailey, 2007, p.
109); unicamente porque Heidegger pensa os comportamentos animais a partir do modelo dos
movimentos tropsticos dos vegetais que ele pode deixar ao silncio o problema da relao dos animais
com o tempo, pois que por definio os tropismos so indiferentes situao, isto , ao que vem antes da
excitao e ao que vir depois. Isso que os caracteriza a sua indiferena ao tempo. Um ente puramente
tropstico ou txico ainda poderamos dizer: puramente instintivo no pode aprender nem antecipar
absolutamente nada: ele rigorosamente o representante de sua espcie e no tem histria individual
(idem, p. 111). Esse comentrio indica a reiterao, por parte de Heidegger, da deciso do sentido
aristotlica. Nos dois casos, o vegetal tomado como exemplo ou prottipo da inaptido para o sentido e
o discurso: segundo Aristteles, seria como uma planta aquele que no observasse discursivamente o
princpio da cincia primeira; para Heidegger, sendo privado de mundo, isto , de todo acesso ao
enquanto que (cf. idem, p. 113), o animal essencialmente mais prximo da planta e mesmo da pedra
sem vida do que do homem que fala (cf. Heidegger apud Bailey, 2007, p. 82).
19
Mundo cujos habitantes tm, segundo a etnografia de Montaigne, uma tal maneira [radicalmente
contra-existencial] de se expressar na sua linguagem que chamam os homens de metades uns dos
outros: [...] tinham visto que havia entre ns homens repletos e abarrotados de toda espcie de
comodidades, e que suas metades eram mendigos s suas portas, descarnados de fome e pobreza; e
14
Sem poder interpret-la mais a fundo no presente (ecoam aqui as vozes, alm
principalmente do prprio pensamento nativo e de seus intrpretes, de Nietzsche,
Benveniste, Clastres, Deleuze, Whitehead, Proudhon, Oswald de Andrade etc.) gostaria
de destacar nessa resposta o elemento, de raiz etnogrfica, que parece central no
conceito cosmopoltico de ser (ser como devorao), por determinar implicitamente
as noes de sujeito como posio pronominal e agncia como predao
[ontolgica]: a ideia de sobrenatureza, o ponto de vista do inimigo (cf. idem, 1992).
Haurida do pensamento amerndio, essa ideia explicada, em conjuno
essencial com as ideias de natureza e cultura, nos seguintes termos:
Following the analogy with the pronominal set (Benveniste 1966a, b) we can
see that between the reflexive I of culture (the generator of the concept of
soul or spirit) and the impersonal it of nature (marking the relation with
bodily alterity), there is a position missing, the you, the second person, or the
other taken as other subject, whose point of view is the latent echo of that of the
I. I believe that this analogy can aid in determining the supernatural context.
The typical supernatural situation in an Amerindian world is the meeting in
the forest between a humanalways on his/her own and a being which is at
first seen merely as an animal or a person, then reveals itself as a spirit or a dead
person and speaks to the human. These encounters can be lethal for the
interlocutor who, overpowered by the non-human subjectivity, passes over to its
side, transforming him/herself into a being of the same species as the speaker:
dead, spirit or animal. He/she who responds to a you spoken by a non-human
accepts the condition of being its second person, and when assuming in
his/her turn the position of I does so already as a non-human. The canonical
form of these supernatural encounters, then, consists in suddenly finding out
that the other is human, that is, that it is the human, which automatically
dehumanises and alienates the interlocutor and transforms him/her into an prey
object, that is, an animal. As a context wherein a human subject is captured by
achavam estranho como essas metades daqui, necessitadas, podiam suportar tal injustia, que no
pegassem os outros pela goela ou ateassem fogo em suas casas (Montaigne, 2010, p. 156-157).
20
16
Na ultrapassagem, o ser-a se dirige, antes de mais nada, ao ente que ele , a ele como ele mesmo. A
transcendncia constitui a ipseidade [Selbstheit]. Contudo, de novo, nunca imediatamente apenas a ela,
mas a ultrapassagem se refere nisso mesmo, a cada vez, ao ente que o ser-a mesmo no ; mais
exatamente: na ultrapassagem e por meio dela que somente se pode distinguir e decidir no interior do
ente quem e como um si mesmo e o que no []. Na medida, porm, em que o ser-a existe como si
mesmo e apenas nesta medida , ele pode se comportar para com o ente que, contudo, deve ser
ultrapassado antes disso. Ainda que sendo em meio ao ente e envolvido por ele, o ser-a enquanto
existente sempre j ultrapassou a natureza [grifo meu] (Heidegger, 2004a, p. 138-139).
18
a da priso mgica das coisas (idem, p. 261), para faz-lo chegar, por meio de um
desvio atravs do mundo, ao seu prprio si-mesmo [eigenen Selbst] (idem, p. 269).
Em outros termos, , enfim, como se a sobrenatureza, enquanto ponto de vista de
Outrem, no passasse de figura imprpria (nada outro que) da ipseidade do humano, o
nico sujeito hegemnico possvel, sendo em si mesma carente de sentido.
Consoante a tudo isso, Heidegger acusa uma privao fundamental no ser-a
mtico: Contudo, o mana no concebido como modo de ser [als Seinsart begriffen]
no ser-a mtico, mas sim representado ele mesmo como aquilo que atado ao mana,
isto , como um ente (Heidegger, 1991, p. 269). No seria possvel ser mais claro:
semelhana do selvagem da Nova Holanda celebrizado por Kant,22 o ser-a mtico ,
enquanto tal, incapaz de formar um conceito (Begriff) de ser, estando limitado por si
mesmo, por seu estar-entregue ao mana, a represent-lo impropriamente como um
ente. Assim, ele no se torna capaz de pensar ontologicamente, isto , para Heidegger,
explicitamente a partir da diferena ontolgica entre ser e ente o que significa
tambm, e necessariamente: em vista de si mesmo.23 Como comenta Christiane Bailey
(inclusive com base em outros textos da ontologia fundamental), primitividade e
impropriedade parecem estar de tal modo ligadas no pensamento de Heidegger que se
chega a assimilar a situao ontolgica do homem primitivo do animal, pois tanto em
um quanto no outro nada ainda objetivado (2011, p. 86-87).24
22
19
25
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