A Cidade e A Loucura

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i

RACHEL TEGON DE PINHO

CIDADE E LOUCURA: ENTRE O CENSO DE 1890


E A INAUGURAO DO PAVILHO DE ALIENADOS
EM CUIAB

CUIAB
2006

RACHEL TEGON DE PINHO

CIDADE E LOUCURA: ENTRE O CENSO DE 1890


E A INAUGURAO DO PAVILHO DE ALIENADOS
EM CUIAB

Dissertao apresentada como requisito


parcial obteno do grau de Mestre, pelo
Curso de Ps-Graduao em Histria, do
Instituto de Cincias Humanas e Sociais,
Universidade Federal de Mato Grosso.
Orientadora: Prof. Dr. Ludmila de Lima
Brando

CUIAB
2006

ii

COMISSO JULGADORA

_______________________________________
Presidente: Prof. Dr. Ludmila de Lima Brando

_______________________________________
Prof. Dr. Oswaldo Machado Filho (UFMT)

_______________________________________
Prof. Dr. Leny Caselli Anzai (UFMT)

_______________________________________
Prof. Dr. Robert Moses Pechman (UFRJ)

Cuiab,

de

de 2006.

iii

minha me, Nair Leal Tegon de Pinho, e ao


meu pai, Rubens de Pinho (in memorian),
com todo o meu amor.

iv
AGRADECIMENTOS

minha orientadora, Professora Doutora Ludmila de Lima Brando, que acreditou


no tema proposto e que escancarou inmeras portas para, generosamente, compartilhar
comigo um pouco do muito que ela sabe; e mais do que isso, incitou-me a experimentar o
novo sem medo. Assim foi com o computador, com a internet, com o Messenger e, sobretudo,
com o pensamento. Desconcertantes, muitas vezes, como foram as discusses sobre a obra de
Gilles Deleuze e Felix Guatarri, entre outras, que no se restringiam ao espao reservados s
reunies do Ncleo de Estudos do Contemporneo e, como rizomas, se prolongavam para a
mesa do bar, para minha casa e tantos outros lugares. Suas aulas brilhantes, com tiradas to
inusitadas quanto pertinentes, compem o arsenal que, daqui por diante, pretendo ter sempre
comigo, todas as vezes que eu pisar numa sala de aula. A sua simplicidade, informalidade e o
respeito a mim dispensado foram fundamentais para o percurso realizado at o momento, em
que o prazer tem sido uma constante. A ela devo todas as tentativas de acerto; quanto aos
erros, possveis equvocos e/ou superficialidade com que apresento algumas possibilidades de
se pensar a cidade e a loucura, estes so de minha inteira responsabilidade.
Aos membros da banca de Exame de Qualificao, pelas valiosas sugestes.
Professora Doutora Leny Caselli Anzai, que, com simplicidade e carinho, no deixou
que eu desistisse diante de um problema delicado e, pacientemente, explicou-me as
mudanas que estavam ocorrendo nas produes historiogrficas.
Ao Professor Doutor Oswaldo Machado Filho, que me mostrou a importncia
de estar aberta a novos aprendizados e territrios da histria.
Ao Professor Doutor Robert Moses Pechman, pela forma carinhosa com que
aceitou o convite para participar da banca de defesa, mesmo tendo de encarar o calor de
Cuiab, e tambm pela grande contribuio, j que sua escrita sensvel contaminou meu
pensamento e tambm este trabalho.
Na oportunidade, quero tambm registrar meu agradecimento Professora
Doutora Maria Stella Bresciani, pela forma simptica com que me tratou e,
principalmente, pelas pistas seguras na poca em que eu, como detetive, procurei
Pechman.

v
A todos os professores do Programa de Mestrado em Histria, em especial aos
Professores Doutores Jos Carlos Leite e Joo Carlos Barrozo, pela forma gentil com que
praticam a atividade docente e com os quais eu aprendi muito; ao Professor Doutor Carlos
Alberto Rosa, que me contagiou com a sua paixo pelos arquivos e que estimulou o meu
pensamento na poca do cumprimento dos crditos do mestrado; e, finalmente Professora
Doutora Regina Beatriz Guimares Neto, por todas as recomendaes, sugestes de leituras e
suas grandes lies sobre o ofcio do historiador na atualidade.
Maurlia Valderez, grande amiga e filsofa, que contribuiu intelectualmente em
vrios momentos, com sua percepo aguada e amadurecimento intelectual, e que foi
agenciada tantas vezes que quase uma co-orientadora deste trabalho.
A Ricardo Carrion Carracedo, que se solidarizou com as minhas dificuldades
financeiras e me deu um computador, ferramenta indispensvel para fazer a dissertao, e
confesso que no sei se teria conseguido concluir no prazo sem essa incalculvel ajuda.
Ao grande amigo Jlio Coelho, que dividiu comigo dificuldades, leituras, reflexes e
muitas risadas, ajudando a aliviar as inseguranas que acomete quem faz o mestrado.
Ao Mrio Leite, Gilbert, Dagoberto, Bosco, Hlio, Regiane, Fernanda, Joo Antonio,
Luiz Vicente, Sandrinha, Miriam, Antonio, Joo Carlos Bertoli, Carol, Acir, Ins, Domingos
Svio e Clementino, Eduardo Ramalho, amigos e colegas com quem estreitei laos, como o
caso dos antigos, e os vnculos que fiz, como o caso dos novos, no convvio da sala de aula
do Mestrado em Histria, do MEL, do Ncleo de Estudos do Contemporneo, na UNEMAT,
nos acervos consultados e em tantos outros lugares.
SEDUC, que me liberou das atividades docentes no perodo de realizao do
mestrado e, sobretudo, aos professores e alunos da Escola Estadual Unio e Fora, em
Cceres, Mato Grosso, lugar onde leciono e onde mais aprendi do que ensinei.
A Lucia Muller, que muito tempo atrs me incentivou a levar adiante a pesquisa
sobre a loucura num programa de mestrado.
Ao Astrogildo Settini, meu amigo, pelo ombro e tambm pelas rotas de fuga
ocasionais, to necessrias para oxigenar o pensamento e enxergar outras direes.

vi
Aos amigos Yugi, Claudio Conte, Caia, Roberta, Andr Borges, Romyr e Elair, que
compartilharam este momento da minha vida com toda a solidariedade de que s os amigos
sabem dispor e de que me vali sempre que precisei.
Ao Zanizor Rodrigues da Silva, que, de informante na poca da minha graduao,
transformou-se em um grande amigo, no apenas meu, mas de toda minha famlia.
Ao doutor Julio Strubing Mller Neto, pelo aprendizado oportunizado na Secretaria
de Estado de Sade de Mato Grosso e pelas dicas valiosas na rea de sade mental; por meio
dele, quero estender meus agradecimentos aos meus grandes mdicos, Tio Admar Concon,
Fernanda, Tico e Dema.
Aos meus familiares de Mato Grosso, So Paulo, Campinas e Valinhos, por toda
ajuda material e emocional e pela tolerncia com que me escutaram por tanto tempo, falando
e ruminando um nico tema, no Tetela?
Aos meus filhos, Mariana, Jos Rodolfo e Rafael, que encararam comigo a difcil
tarefa de vida de estudante, com dinheiro curto em plena adolescncia e juventude, quando
comprar o verbo preferencial da maioria, e que tiveram de engolir, muitas vezes quietos, a
constncia da palavra no.
Grande paradoxo: para que eu pudesse estudar, minha filha teve de suspender
temporariamente o sonho de fazer uma faculdade para trabalhar e ajudar nas despesas da casa.
Mariana foi e tem sido, com certeza, a minha grande aliada neste caminho e a ela devo muito,
para no dizer tudo, e espero que este ttulo valha todos os dias em que ela se levantou cedo
para trabalhar, todos os nibus que ela pegou e todo sonho que ficou em suspenso.

vii

SUMRIO

RESUMO .......................................................................................................................

viii

ABSTRACT ...................................................................................................................

ix

INTRODUO..............................................................................................................

A (RE)INVENO DA CIDADE E DA LOUCURA EM CUIAB................

16

1.1 Lugares e Personagens da Cidade ...........................................................................

19

A CIDADE DISCIPLINAR ..................................................................................

46

2.1 Polcia para Quem Precisa ......................................................................................

54

A CIDADE HIGIENIZADA ................................................................................

77

CONCLUSO ................................................................................................................

117

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .........................................................................

125

viii

RESUMO

Em 1890, realizou-se em Cuiab, Estado de Mato Grosso, um recenseamento urbano que, pela
primeira vez, identifica, codifica e classifica isso que chamamos de loucura. Naquele
momento, podemos verificar que ela ainda gozava de certa liberdade, j que diversos so os
seus endereos. A identificao dos loucos da cidade foi, ento, o primeiro passo dado pelo
Estado, para civilizar a cidade e inserir a capital mato-grossense no projeto de construo da
nao, em curso no Pas em fins do sculo XIX. Para empreender tal projeto, o Estado, no se
furtou em lanar mo de tecnologias de poder diversas. Passando pelo cuidado com o
indivduo, pela disciplinarizao e normatizao dos cidados, a cidade pouco a pouco vai
revelando seus estriamentos e os perigos que a rondam, tanto por meio da adoo de inmeras
prticas tidas como modernas, como no cerceamento de tantas outras, consideradas atrasadas
e nocivas ao sonho de progresso. nesse contexto que vemos o recolhimento dos alienados
de Cuiab pelas mos da polcia, tanto Cadeia Pblica da capital como Santa Casa de
Misericrdia. Entretanto, ser com a instituio de uma outra tecnologia de poder o
biopoder , por meio de prticas de higienizao e saneamento, que veremos a intensificao
do projeto civilizatrio. Nesse quadro, a loucura passar a ser considerada como perigo social
iminente, e ao louco se atribuir um novo status, o de doente mental, e um novo endereo, o
do hospcio. A inaugurao em Cuiab, em 1928, do Pavilho de Alienados encerra este
trabalho, quando, ento, a cidade no mais expulsa os seus loucos: ela os aprisiona.

Palavras chave: cidade, loucura, higienizao, disciplinarizao, biopoder.

ix

RSUM

En 1890 a t ralis Cuiab, tat du Mato Grosso, un recensement urbain qui, par la
premire fois, identifie, codifie et classifie ce que nous appellons folie. ce moment nous
pouvons vrifier que la folie jouit encore dune certaine libert, une fois que ses adresses
taient divers. Lidentification des fous de la ville a t le premier pas donn par ltat pour
civiliser la ville et pour incluire la capitale du Mato Grosso au projet de construction de la
nation, en cours au pays la fin du XIXme sicle. Pour entreprendre tel projet ltat a
employ plusieurs technologies de pouvoir. travers le soin avec lindividu, lattitude de
discipliner et de normatiser des citoyens, la ville, peu peu, rvle ses fissures et les dangers
qui la rondent, par ladoption de pratiques varies, dites modernes et par le la ngation
dautres, considres dpasses et nocives au rve du progrs. Cest dans ce contexte que
nous regardons le receuillement des alins de Cuiab par les mains de la police, la prison
publique de la capitale et Santa Casa de Misericrdia. Toutefois, cest travers linstituition
dautre forme de tecnologie de pouvoir _ le biopouvoir _ par des pratiques dhygienisation et
dassainissement que nous regardons lintensification du projet civilisateur. Dans ce cadre la
folie passe tre considre como un danger social imminant. Le fou passe la condiction de
malade mentale et son adresse passe tre lhospice. Linauguration, Cuiab, en 1928, du
Pavilho de Alienados, renferme ce travail, au moment o la ville nexpulse plus ses fous: elle
les emprisonne.

Parole cl: ville, folie, hygienisation, discipliner, biopouvoir.

INTRODUO

Escrevia no espao.
Hoje, grafo no tempo,
Na pele, na palma, na ptala,
Luz do momento. . .

2
Paulo Leminski

A aproximao da Histria com as Cincias Sociais, Filosofia e Antropologia, em


particular, a partir de reflexes tericas a respeito do fazer histria, possibilitou a pertinncia
do estudo de temticas at ento ignoradas pela historiografia.
Foi neste ambiente que ocorreu o meu contato com o tema da loucura e os estudos de
Michel Foucault. Lembro-me da primeira vez que entrei no Hospital Psiquitrico Adauto
Botelho, em 1989, para entrevistar um mdico da instituio1. Era final de uma manh de
vero amaznico, quente e mida. O mau cheiro do ptio central e as imagens que flagrei
permanecem at hoje na minha memria e suscitaram algumas questes: Como seres
humanos podiam ser tratados daquela forma? Quem os enclausurou? Quando surgiu o
hospcio em Cuiab? Que prticas foram adotadas e/ou interditadas que contriburam para a
institucionalizao da loucura em Cuiab? Quem eram, afinal, os loucos e quando estes se
tornaram problemas? Para quem? Frente o qu?
Tantas perguntas carregadas de perplexidade levaram-me a pensar que, de acordo
com Michel De Certeau2, eu deveria dar incio fabricao da histria. O ingresso no
programa de mestrado em Histria ofertado pela Universidade Federal de Mato Grosso,
atravs da linha de pesquisa Territrios e Fronteiras: Temporalidades e Espacialidades,
possibilitou o desenvolvimento do trabalho, que ora se encontra em andamento.
Na tentativa de responder s questes iniciais, selecionei e desloquei as seguintes
fontes: mensagens governamentais; leis; decretos; portarias; ofcios; processos crimes;

Esta entrevista foi realizada com o Dr. Zanizor Rodrigues da Silva, para atender s exigncias da disciplina
Antropologia I, do curso de Histria, na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), ministrada pela
antroploga Joana Fernandes. Um dos seus desdobramentos foi o trabalho de concluso de curso A
institucionalizao da loucura em Cuiab na primeira metade do sculo XX. Cuiab, 1993. UFMT.
DE CERTEAU, Michel. A operao historiogrfica. In: A escrita da Histria. Rio de Janeiro: Forense
Universitria, 2002. p 65.

3
inquritos; peridicos; correspondncias; livros de registros de ofcios da Inspetoria de
Higiene; relatrios da chefatura de Polcia, da intendncia Municipal e da Inspetoria de
Higiene; algumas plantas, mapas, fontes iconogrficas, alm do recenseamento da capital.
Tais fontes constam dos acervos do Ncleo de Documentao Histrica e de Informao
Regional da UFMT e principalmente do Arquivo Pblico de Mato Grosso, cujo acervo do
perodo correspondente a este trabalho (1890-1931) encontra-se majoritariamente identificado
apenas pelo ano. Nessa etapa do trabalho, a busca prescinde da paixo pelo tema, j que, s
vezes, demoram-se dias, s vezes semanas, at se encontrar alguma coisa que aponte pistas ou
sinais relativos temtica, remotos que sejam. Penso que talvez esteja no esforo realizvel
de desnaturalizao e dessacralizao dos registros que torna possvel a sua transformao
em documento histrico uma das primeiras dificuldades do historiador na atualidade.
Apesar do impulso que nos d De Certeau3, quando afirma (e realiza) a cientificidade
da Histria (que no deve ser confundida com o cientificismo do sculo XIX), logo vemos
que isso no corresponde a nenhuma simplificao, ao contrrio, a historiografia torna-se cada
vez mais complexa e, como toda cincia, prescinde de regras. O movimento de articulao
entre questes, pesquisa emprica e referencial terico a operao metodolgica que
conjuga, a princpio, pelo menos duas destas regras: o lugar social e a prtica.
Nesta operao algumas perguntas foram respondidas, outras foram abandonadas e
outras tantas foram suscitadas. Destas, a questo da cidade adquiriu grande importncia para o
meu olhar. A cidade como lugar do possvel, como escreveu Peter Pl Pelbart4 como o lugar
da exterioridade por excelncia, a cidade como um universo dissonante e pluralista, mundo
do perspectivismo nietzschiano onde j no se trata de mltiplos pontos de vista sobre a
mesma coexistncia de cidados, mas mltiplas cidades em cada ponto de vista, unidos por
3
4

DE CERTEAU, Michel. A operao historiogrfica. p. 65.


PELBART, Peter Pl. Cidade, lugar do possvel. In: A vertigem por um fio: polticas da subjetividade
contempornea. So Paulo: Iluminuras, 2000. p. 43-49.

4
sua distncia e ressoando por suas divergncias5. E a rememoro meus tempos de criana,
quando, ainda morando em Campinas, meu pai nos levava de carro para conhecer lugares da
cidade. Pelos vos de braos, cabeas e cotovelos, afinal ramos oito numa Rural Willys, eu
olhava atentamente para todas as ruas, lugares e pessoas de nosso trajeto e achava que
conhecia o mundo. Muitos anos depois, foi que me dei conta de que eu conhecia apenas
pedacinhos de mundo de uma cidade e daquilo que ela se permitia mostrar, mas a eu j era
uma apaixonada pela cidade, pela em que nasci e por aquelas a que fui sendo apresentada no
decorrer da vida. Talvez isso explique, pelo menos parcialmente, a escolha da cidade como
um dos temas sobre o qual me debruo, por isso, se que posso externar o sentimento
presente neste trabalho, ele o da paixo. Todavia, esta escolha decorre tambm de questes
simples, formuladas ainda na poca da graduao em Histria, influenciada por algumas
leituras que privilegiam a cidade como objeto de estudo, das quais uma percorre todo o
trabalho, aquela formulada por Angel Rama: quantas cidades existem numa cidade?
Chegaram-me, ento, pelas mos de minha orientadora, algumas obras que tratam da formacidade, e foi assim que me apossei do seu ex-livro Cidades Estreitamente Vigiadas o
Detetive e o Urbanista, de Robert Moses Pechman, entre outras obras, que analisam a questo
da cidade e que a tratam como o lugar privilegiado pelo Estado para interditar prticas e tentar
solapar o sonho humano do labirinto, que o de se perder na multido.
Assim, entre encontros e abandonos, redefini o meu tema, que trata da cidade e da
loucura. A construo do objeto, por sua vez, implica, entre outras prticas, na articulao
entre as leituras relacionadas temtica eleita e pesquisa emprica, e deste ir-e-vir entre as
leituras e os arquivos, resultou a escolha de algumas estradas, caminhos e trilhas.

Ibid., p. 48.

5
Denomino estradas os resultados de pesquisas realizadas com um flego
extraordinrio, como o caso dos trabalhos de Michel Foucault6, que historicizou a loucura e
sua problemtica na Europa, o grande enclausuramento dos loucos, o nascimento do hospcio
na Europa, o nascimento da Psiquiatria, a tecnologia de poder disciplinar tecnologia de que
o Estado habilmente lana mo, com o objetivo de disciplinar os indivduos e a
regulamentao de sua populao por meio do biopoder. Tais questes e formulaes
conceituais esto presentes nas obras A Histria da Loucura; Vigiar e Punir; Os Anormais e a
Aula do dia 17 de Maro, publicada no livro Em Defesa da Sociedade, utilizadas como
grandes referenciais tericos deste trabalho, dadas a sua amplitude e densidade, j que
auxiliaram na anlise sobre a percepo da loucura em Cuiab, ao percorrer os deslocamentos
operados na cidade, por meio de inmeras prticas e tcnicas de poder utilizadas, para vigiar,
disciplinar, excluir, punir e regulamentar.
O conceito de civilizao apresentado por Norbert Elias7, como tambm a obra de
Robert Moses Pechman, Cidades Estreitamente Vigiadas8, cujo tema central a questo
urbana sob a perspectiva da construo de civilizao e barbrie, tambm foram utilizados
neste trabalho, j que ofereceram suporte necessrio para proceder s anlises realizadas. A
obra de Sandra Jatahi Pesavento9, O Imaginrio da Cidade: vises literrias do urbano e de
Roberto da Matta10, Carnavais, Malandros e Heris, funcionaram como guias para percorrer
as ruas da cidade e os espaos pblicos privilegiados. Serviram como percurso desta estrada.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrpolis: Vozes, 1987; A histria da loucura. So Paulo: Perspectiva,
1991; Os anormais. So Paulo: Martins Fontes, 2002; Em defesa da sociedade. So Paulo: Martins Fontes, 2002.
7
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma histria dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
8
PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista. Rio de Janeiro: Casa da
Palavra, 2002.
9
PESAVENTO, Sandra Jatahi. O imaginrio da cidade: vises literrias (...) 2. ed. Porto Alegre: UFRGS, 2002.
10
MATTA, Roberto da. Carnavais, malandros e heris... 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

6
Os caminhos, por sua vez, esto sinalizados por meio das seguintes obras: A Histria do
Medo no Ocidente: 13001800, de Jean Delumeau11, que foi fundamental para compreenso do
medo ento presente no imaginrio coletivo cuiabano, em decorrncia de vrios fatores, mas,
sobretudo, da peste, o que ser tratado ao longo do trabalho. Em O Espetculo das Raas, de Lilia
Moritz Schwarcz12, realizamos a aproximao com a Antropologia, importante referncia para
examinar a construo das identidades e a preocupao com a raa e a insero do Brasil no
mundo da cincia, e que, de certa forma se alia obra de Serge Gruzinski13, Os Pensamentos
Mestios, ao demonstrar, entre outras coisas, que o estranhamento do nosso olhar construdo
culturalmente.
Ainda no caminho, encontramos Heitor Rezende14e Vera Portocarrero15, pesquisadores
da Fiocruz, cujos trabalhos voltam-se para as polticas de sade mental no Brasil e os arquivos da
loucura, e a dissertao de mestrado de Luciana Vieira Caliman16, que trata da questo do
biopoder em Foucault. Finalmente, ainda no caminho, os convites sedutores de dois autores
audaciosos: Nicolau Sevcencko17, mais precisamente em Orfeu Esttico na Metrpole, que
privilegiou os peridicos enquanto fonte para penetrar na subjetividade da cidade de So
Paulo, na dcada de 1920, e a obra de Ludmila de Lima Brando18, A Casa Subjetiva:
Matrias, Afectos e Espaos Domsticos, que, entre inmeras possibilidades, auxiliou-me a
pensar nos rizomas e nos devires, conceitos que foram formulados por Gilles Deleuze e Felix
Guatarri e que ainda so to desconhecidos, sobretudo por aqueles que os rejeitam.

11

DELUMEAU, Jean. Histria do medo no Ocidente: 13001800 (...) So Paulo: Companhia da Letras, 1989.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das raas. Cientistas (...) So Paulo: Companhia das Letras, 1993.
13
GRUSINSKY, Serge. Os pensamentos mestios. So Paulo: Companhia das Letras, 2001.
14
REZENDE, Heitor.Poltica de sade mental no Brasil: uma viso histrica. In: Cidadania e loucura. Polticas
de sade mental no Brasil. Petrpolis: Vozes, 1994. p. 16-69.
15
PORTOCARRERO, Vera. Arquivos da loucura. (...) Rio de Janeiro, Fiocruz, 2002.
16
CALIMAN, Luciana Vieira. Dominando corpos, conduzindo aes... 2001. Dissertao (Mestrado em Sade
Coletiva) - Instituto de Medicina Social, UERJ, Rio de Janeiro.
17
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu esttico na metrpole. So Paulo: Companhia das Letras, 1992.
18
BRANDO, Ludmila de Lima. A casa subjetiva: matrias, afectos e espaos domsticos. So Paulo:
Perspectiva; Cuiab: Secretaria de Estado de Cultura de Mato Grosso, 2002.
12

7
A brilhante obra de Maria Clementina Pereira Cunha19, que pesquisou sobre o
Hospital Psiquitrico Juqueri, em So Paulo; tambm a de Yonissa Marmitt Wadi20, cujo
trabalho traz o contexto de construo do Hospcio So Pedro, em 1870, em Porto Alegre,
alm dos trabalhos que tratam deste tema na historiografia regional, como as monografias de
Loiva Canova21, Lisle Maria da Silva22, Area Assis Lamber e Sueli B. Oliveira23, entre
outros de outras reas, que, apesar de ser referncias importantes, no foram utilizadas neste
trabalho24 por privilegiar o estudo de instituies totais ou do louco institucionalizado. Este
trabalho, ao contrrio do estudo da loucura a partir do interior de seu espao disciplinador
institucional, tomou-a no mbito do espao pblico da cidade e da problematizao de uma
por outra, ou seja, da loucura pela cidade.
As trilhas finalmente se inscreveram em um desafio de outra natureza, a escrita, cuja
dificuldade penso que foi superada com o auxlio daqueles que detm tal domnio, os
escritores e poetas. Os literrios, com sua potncia criativa, enveredaram pela temtica da
loucura muito tempo antes que ns, historiadores. O Alienista, de Machado de Assis25, o
Cemitrio dos Vivos, de Lima Barreto26, e um conto de Carlos Drummond de Andrade27,
todos publicados nos sculos XIX e XX, alm de algumas obras de outros artesos da palavra,
como talo Calvino28, Edgar Allan Poe29, Franz Kafka30 e Charles Baudelaire31, foram como

19

CUNHA, Maria Clementina Pereira. O espelho do mundo. Juquery... So Paulo: Paz e Terra, 1986.
WADI, Yonissa Marmitt. Palcio para guardar doidos (...) Porto Alegre: UFRGS, 2002.
21
CANOVA, Loiva. A loucura uma loucura: as representaes sobre o louco e a ordenao do espao urbano
em Cuiab (18891931). Departamento de Histria - UFMT.2000.
22
SILVA, Lisle Maria da. Hospital de alienados: esboo para um enfoque histrico-social. UFMT - 1988.
23
LAMBER, Area Assis; OLIVEIRA, Sueli B. Histria do atendimento ao doente mental no Estado de Mato
Grosso at 1970. Cuiab, 1995. Monografia (Especializao em Enfermagem) - UFMT.
24
exceo de informaes contidas nas citadas monografias de Area de A. Lamber e Sueli B. Oliveira.
25
ASSIS, Machado de. O alienista. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
26
BARRETO, Lima. Cemitrio dos vivos. 2. ed. So Paulo: Brasiliense, 1961.
27
ANDRADE, Carlos Drummond de. Contos de aprendiz. 10. ed. So Paulo: Jos Olimpio; Civilizao
Brasileira e Editora Trs, 1973.
28
CALVINO, talo. As cidades invisveis. So Paulo: Companhia das Letras, 1990.
29
POE, Edgar Allan. Os melhores contos de Edgar Allan Poe. So Paulo: Crculo do Livro S.A. s/d.
30
KAFKA, Franz. O Processo. Lisboa: EuropaAmrica. S/d.
31
BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
20

8
locais de visita permanente para que a minha mo, no decorrer da escrita, ainda que tremesse,
no se transformasse em chumbo, impossvel de ser segurado, pelo seu peso, e, mais ainda, de
ser lido.

Cuiab, cidade fundada32 no perodo setecentista, por ocasio da descoberta de ouro,


capital33 de Mato Grosso, localizada quase no Extremo-Oeste do Brasil, o local escolhido,
neste trabalho, para se percorrer o processo civilizatrio. O marco temporal de seu incio
compreende o final do sculo XIX, que converteu a cidade em questo e a loucura em
problemtica frente ao projeto de construo da nao, desejado por governantes e
intelectuais.
Para empreender tal percurso, explicitaram-se e analisaram-se algumas prticas de
disciplinarizao e higienizao, adotadas nas primeiras dcadas da Repblica, em Cuiab, da
qual se ocuparam governantes, autoridades policiais e mdicas, entre outros, e que, neste
trabalho, so os personagens privilegiados.
Cuiab, em fins do sculo XIX, uma cidade com uma populao urbana de pouco
mais de 9.000 habitantes34, marcada pela guerra, pela peste e pela fronteira. So marcas
indelveis que os seus governantes tentaro apagar, pelo menos na parte que se traduz como

32

H controvrsias a respeito da data de fundao, como observa Sandra Pesavento: ... todo ato fundador tende
a se sacralizar... Assim, a data oito de abril, como data de fundao de Cuiab, foi sacralizada no Governo de
Dom Aquino Corra, atravs da Legislao de Mato Grosso. J o historiador Carlos Alberto Rosa rejeita essa
data e afirma que a Ata redigida por Pascoal Moreira Cabral em nenhum momento traz a palavra fundao;
esta Ata simplesmente oficializa o registro da descoberta de ouro na regio, cuja atividade era realizada desde
1716. Jornal A Gazeta. 8/4/2002. p. 2.
33
A primeira capital de Mato Grosso foi Vila Bela da Santssima Trindade, instalada em 1752 por Dom Antonio
Rolim de Moura, 1 Capito General de Mato Grosso. A transferncia de capital para Cuiab ocorreu em 1832.
34
Censo 1890 Arquivo Pblico de Mato Grosso (APMT).

9
pontos negativos. Ainda no perodo colonial, a guerra contra algumas etnias indgenas foi uma
constante, principalmente contra os Paiagus e os Guaicurus, segundo o cronista Jos Barbosa
de S35, o que implicava num ambiente de tenso permanente para os conquistadores, j que
os ataques poderiam ocorrer a qualquer momento.
A abordagem desses confrontos recorrente na historiografia regional produzida no
final do sculo XIX e incio do sculo XX, e concorre para a construo da figura mtica do
bandeirante como um desbravador destemido. Na segunda metade do sculo XIX, a guerra
contra o Paraguai (1865-1870) foi o acontecimento que evidenciou, entre outras coisas, a
fragilidade das guarnies militares de Cuiab e tambm de outras localidades prximas ao
rio Paraguai, como Cceres e Corumb, tanto quanto o distanciamento desses locais com
relao s demais provncias. A Guerra do Paraguai trouxe grandes dificuldades para o
abastecimento de gneros da Provncia de Mato Grosso, que, desde 1857, utilizava o
transporte fluvial pelos rios Paraguai e Paran, interrompido durante o conflito36.
A ocupao de Corumb pelas tropas paraguaias, por sua vez, suscitou a discusso
em torno da condio de fronteira da provncia, tema que se tornou uma questo cara no
sculo XIX e adentrou o sculo XX. As fronteiras so pensadas, neste trabalho, como
conceitos mltiplos que servem para designar a linha tnue que separa civilizao e barbrie,
os limites entre a razo e a desrazo e que, segundo a assertiva de Margarida de Souza Neves,

[...] estabelecem o espao impondervel em que um passo faz de ns


estrangeiros em terra alheia e outro nos traz de volta casa. Nela nos
reconhecemos e nos diferenciamos do outro porque a fronteira sobretudo
o marco simblico da alteridade, o traado nem sempre ntido na vida (...)
construda paulatinamente no tempo, cuja histria muito mais complexa e
menos bvia que o traado das cartas geogrficas, transforma-se num dado
de demarcao tambm de nossa memria coletiva...

35

BARBOSA DE S, Jos. Relao das povoaes do Cuiab e Mato Grosso, de seus princpios at os
presentes tempos. Cuiab: UFMT, 1975.
36
VOLPATO, Luiza Rios Ricci. Cativos do serto: vida cotidiana e escravido em Cuiab em 18501888. p 42.

10
Talvez por essas caractersticas de mobilidade oculta sob uma aparente
fixidez a idia de fronteira transborde tantas vezes seu sentido estrito e ganhe
foros de metfora eloqente para caracterizar experincias limite; para
indicar situaes especiais; para estabelecer marcos temporais significativos
(como foi o caso da Guerra da Trplice Aliana contra o Paraguai e a
epidemia de varola) para definir o limiar entre o conhecido e o que resta por
conhecer, e entre o mundo do real e o universo dos sonhos, entre o
corriqueiro e o extraordinrio, entre a lgica e o mistrio37.

Retomando o contexto da guerra, a fronteira significa tambm lugar do perigo, j


que, nessa situao, o encontro com outros povos ocorreria sob a gide da violncia.
Mas, ainda que a ocupao por paraguaios de ncleos mato-grossenses povoados
tenha-se restringido cidade de Corumb, a populao cuiabana no foi poupada de
ocorrncias nefastas. A enchente do rio Cuiab, em 1867, trouxe a destruio para parte da
cidade de Cuiab, a regio do porto. A epidemia de varola, no mesmo ano, produziu o que se
mais temia, a morte, que ceifou a vida de grande parte da populao cuiabana38. Assim, a
guerra, a fronteira e a peste produzem na regio um imaginrio e uma existncia marcados
pelo signo do medo.
Jean Delumeau, a respeito de algumas ocorrncias epidmicas na Itlia, afirmou que
elas integraram a representao mental da peste, uma vez que ao mesmo tempo identificada
como uma nuvem devoradora vinda do estrangeiro e que se desloca de pas em pas, da costa
para o interior e de uma extremidade outra de uma cidade, semeando a morte sua
passagem39, atingindo ricos e pobres indistintamente. Esse mal enraizado, implacavelmente
recorrente, a peste, em razo de seus aparecimentos repetidos, no podia deixar de criar nas
populaes um estado de nervosismo e de medo40.

37

NEVES, Margarida de Souza. Fronteiras. A Gazeta, Cuiab, 9 jul. 2002. p. 1E.


VOLPATO, Luiza Rios Ricci. Cativos do serto. p. 56-81.
39
DELUMEAU, Jean. Histria do medo no Ocidente. p. 112.
40
DELUMEAU, Jean. Histria do medo no Ocidente. p. 108.
38

11
Em Cuiab, o medo da peste nortear a adoo de algumas medidas por parte de
governantes, mdicos e autoridades policiais, tanto com o intuito de conter a propagao do
mal, quando este se aproximava, como para combat-lo, quando as evidncias comprovavam
que este era um fato. Medidas incuas, sob o ponto de vista contemporneo, mas
compreensveis para a poca, se considerarmos que at o final do sculo XIX, ignoraram-se
as causas da peste que a cincia de outrora atribua poluio do ar, ela prpria ocasionada
por funestas conjunes astrais, seja por emanaes ptridas vindas do solo ou subsolo41.
nesse ambiente marcado pelo medo que encontramos a cidade de Cuiab, em fins
do sculo XIX, ainda mantendo a cartografia representada pela iconografia42, que mostra a
disposio de suas edificaes sob a forma de uma muralha ainda que no se trate, claro,
das muralhas propriamente ditas, que, no perodo medieval, protegiam as cidades europias e
seus habitantes de possveis ataques. Na iconografia do sculo XVIII, a cidade que vemos
assim construda sugere que caberia aos seus habitantes o papel de guardies contra possveis
ataques durante um longo perodo43. Todavia, na posterior cidade moderna, sob o efeito da
implantao de uma sociedade disciplinar, a prpria cartografia ser alterada e outros atores
sero encarregados de cumprir esse papel: as estratgias de vigilncia se sofisticam porque a
cidade o lugar da exterioridade.
Mesmo se tratando da cidade disciplinada e disciplinadora, vigilante e vigiada,
constituda pelos processos de modernizao (bem como constituidora), Peter Pl Pelbart aliase a Deleuze e Guattari para dizer que a forma-cidade , sobretudo, a forma do movimento, da
fluidez, da exterioridade. Tudo que ela opera ou faz operar no oposto do movimento e da sua
fluidez resultado de sua captura pelo Estado:

41

Ibid., p. 110.
Pintura a/d. Expedio Alexandre Rodrigues. Acervo: Museu de Hamburgo/ Reproduo- IPHAN-MT.
43
Esta observao apenas uma inferncia que fazemos, j que neste trabalho no pretendemos realizar
nenhuma anlise iconogrfica ou iconolgica das imagens que porventura sejam referidas.
42

12

A cidade historicamente existe em funo de uma circulao, de entradas e sadas


cuja incumbncia fazer passar os fluxos. Como o sugerem Deleuze e Guattari,
ela faz com que aquilo que nela entre esteja suficientemente desterritorializado
para introduzir-se na rede, submeter-se polarizao, seguir o crculo de
recodificao urbano e virio. Assim a cidade rede, multiplicao, fluidez,
escape, disperso. Ela a relao com o fora ou mais radicalmente ela a prpria
Forma da exterioridade. Por essas caractersticas todas contrapem-se
inteiramente ao Estado. Pois o Estado obedece a um outro processo maqunico:
ele uma espcie de caixa de ressonncia, que faz ressoar todos os seus pontos
(em vez de faz-los fugir), por mais heterogneos que sejam, geogrficos, tnicos,
lingsticos, morais, econmicos, tecnolgicos. Nesse sentido ele faz at ressoar a
cidade e o campo, esses dois supostos arquiinimigos. Se a cidade inseparvel de
sua prpria relao com outras cidades, com sua exterioridade, com a rede das
cidades, o Estado tende, ao contrrio a uma espcie de totalizao, de fechamento,
de redundncia. A forma-cidade escape, exterioridade, disperso, a formaEstado totalizao, interioridade, estratificao. Isso significa que a cidade luta
contra o Estado. Mas tambm contra o capitalismo, com o qual pretendem
identific-la, num jogo muito complexo44

a partir deste ponto de vista que compreendemos a cidade como o local escolhido
pelo Estado nunca ela em si mesma para interditar prticas tidas como atrasada ou
prticas que tendem a escapar a qualquer controle (em geral umas e outras acabam sendo
coincidentes), alm de identificar, isolar, classificar e finalmente excluir os indivduos que
obstam o desejo premente de construo da nao que querem para si. Entre essas prticas,
encontram-se aquelas que passaram a ser classificadas como irracionais, isoladas no mbito
da loucura e os sujeitos envolvidos designados loucos, passveis de isolamento ou
excluso. Tomo de Peter Pl Pelbart45 a compreenso do louco como esse personagem
social discriminado, excludo e recluso e por loucura, que em trabalho anterior o autor
designou por desrazo, como uma dimenso essencial de nossa cultura: a estranheza, a
ameaa, a alteridade radical, tudo aquilo que uma civilizao enxerga como o seu limite, o seu
contrrio, o seu outro, o seu alm...

44
45

PELBART, Peter Pl. Cidade, lugar do possvel. p. 46-47.


PELBART, Peter Pl. A utopia assptica. In: A nau do tempo rei... Rio de Janeiro: Imago, 1993. p. 105.

13
O recenseamento de 1890 o primeiro em que a loucura em Cuiab aparece sob o
epteto de alienados, dementes e idiotas, identificados, domiciliados e dispersos em inmeros
endereos e que se avizinham e se misturam aos demais moradores. A identificao destes no
censo, como tambm em outras fontes, foi apenas a primeira de uma srie de medidas
adotadas no curso do processo civilizatrio, cuja base o pensamento racional, que
corroborar para que a loucura seja percebida como o seu outro, o seu contrrio, e que,
gradualmente, vai ser vista como uma vizinhana perigosa.
At 1928, o enclausuramento forma de excluso da loucura ainda no havia
sido realizado em Cuiab, exceto em situaes pontuais, com o recolhimento de alguns
indivduos de ambos os sexos, na cadeia pblica da capital ou na Santa Casa de Misericrdia,
uma vez que, at essa data, no havia nenhum hospcio ou espao embrionrio deste em Mato
Grosso. Mas o manicmio, no Brasil, em fins do sculo XIX, j no era uma novidade. O
primeiro deles o do Rio de Janeiro, sede do Imprio , foi inaugurado em 1852, batizado
com o mesmo nome do Imperador Pedro II, cuja localizao na poca foi cuidadosamente
escolhida, ou seja, bem longe do centro da cidade, na Praia Vermelha. A deciso de sua
criao reunia aspectos polticos e consideraes cientficas. Heitor Rezende salienta, todavia,
que tal base cientfica aportou no Brasil modificada46 e faz a seguinte considerao:
Socialmente ignorada por quase trezentos anos, a loucura acorda, indisfaradamente notria
e vem engrossar a leva de vadios e desordeiros nas cidades, e ser arrastada na rede comum
de represso desordem, mendicncia, ociosidade.47
Esse comentrio revela vrias questes relevantes, como uma percepo moral da
loucura, tal como apresenta Michel Foucault com relao Europa no perodo que antecede o

46
47

REZENDE, Heitor.Poltica de sade mental no Brasil (...) Petrpolis: Vozes, 1994.


Ibid., p. 35.

14
grande enclausuramento48; tambm salienta a preocupao com o projeto de construo da
nao, civilizao e identidade brasileira, que tem a cidade como vitrine para visualizar tal
projeto. Revela ainda o cuidado em demarcar um territrio, o do saber mdico, j que no
sculo XIX instalado no Imprio brasileiro o estado de polcia, encarregada de vigiar,
disciplinar e punir, entre outras atividades, sobretudo as de cunho moral49.
O Hospcio Pedro II foi construdo para receber pessoas de todo o Imprio, com
capacidade para abrigar 350 loucos, mas, se na data de sua inaugurao contava com 144
enfermos, pouco mais de um ano aps a sua abertura, j estava com a lotao completa50.
A transferncia de alienados mato-grossenses para a capital federal ocorreu em
apenas alguns casos isolados, no final do sculo XIX, conforme as fontes que sero
apresentadas no segundo captulo.
Com o advento da Repblica, o manicmio carioca sofreu algumas modificaes,
que acusavam o desejo de distanciamento dos republicanos de tudo que remetesse poca
anterior, a comear pelo nome: a instituio foi rebatizada com o nome de Hospcio Nacional
de Alienados. A direo foi retirada das mos das religiosas e passou a ser exercida por um
corpo mdico51, e a admisso de enfermos passou a ser regulamentada com a implantao de
diviso por sees e classes e formas de encaminhamento de pacientes52. Mas, de acordo com
Lopes Rodrigues, a introduo de um corpo mdico na instituio no significou o
estabelecimento de uma psiquiatria cientfica, j que o modelo copiado seguia os pressupostos

48

FOUCAULT, Michel. A grande internao. p. 45-78.


AMARAL, Maurlia Valderez Lucas do. Razo de Estado e Estado de Polcia. In: Constituio do sujeito,
governamentalidade e educao. 1998. Dissertao (Mestrado em Educao) - UFMT, Cuiab. p. 61-65.
50
REZENDE, Heitor. Poltica de sade mental no Brasil. p. 37.
51
Relatrio Ministerial. Ministrio do Interior. Hospcio Nacional de Alienados Rio de Janeiro, 1891. Neste
relatrio informado que o Hospcio foi desanexado da Santa Casa de Misericrdia, pelo Governo Provisrio,
em 11/1/1890, e que a retirada das irms de caridade resultou em escndalos, mas que a atual direo
encontrou inmeros documentos que comprovam os maus tratos praticados pelas religiosas contra os
pacientes. A falta de pessoal com conhecimento tcnico para prestar atendimento adequado, conforme o
relatrio, implicou na contratao de 20 enfermeiras, formadas na Escola Municipal de Paris.
52
Instrues - Assistncia Mdico-Legal de Alienados. Rio de Janeiro, 1890. Caixa 1890. Fundo Sade/APMT.
49

15
de Morel e Magnan, cujo pensamento, segundo Rodrigues patejava neste esturio levadio
das degeneraes53. Para Lopes Rodrigues, a psiquiatria cientfica s ocorreu no Brasil com
Juliano Moreira. Convm ressaltar que tal observao tem o intuito apenas de situar a
abordagem da loucura no Brasil, mais precisamente aquela preconizada pelo Estado e que foi
implantada na cidade do Rio de Janeiro espcie de laboratrio e vitrine para as demais
capitais e demonstrar como a loucura foi percebida em Cuiab no perodo anterior sua
institucionalizao.
Problema de difcil resoluo esse das relaes entre a cidade que se busca civilizar e
a loucura. Atravs das prticas de disciplinarizao e higienizao que neste trabalho so
percorridas, possvel perceber os deslocamentos, pelas mos dos cronistas do perodo, dos
governantes, das autoridades e funcionrios pblicos. Com eles talvez possamos desencavar
os segredos da cidade, tentando uma aproximao com o que brilhantemente realizou Robert
Moses Pechman, como o detetive que segue pistas para desvendar o mistrio que envolve a
cidade, desnudando-a naquilo que ela prpria no se permite dizer. As prticas apresentadas e
analisadas nesta dissertao so pensadas no como produto, mas como terreno propcio que
convergir para a inaugurao do Pavilho dos Alienados, anexo Santa Casa, em 1928,
como o primeiro passo para a transformao da loucura em doena mental, por meio da
institucionalizao do alienado e da posterior construo do seu espao de excluso, o
Hospcio, data em que o trabalho se encerra.
No primeiro captulo percorremos a cidade, seus lugares e personagens, com nfase para
os alienados, tomando como referncia o recenseamento de 1890 e outras fontes. Cuiab, nesse
perodo, carrega as marcas da peste, da guerra e da fronteira, o que nos aproxima sobremaneira da
cidade de Porto Alegre, da obra de Pesavento. digna de nota aqui, particularmente, a descrio das
ruas e seus respectivos nomes que evocavam sensaes, que vo, aos poucos, sendo substitudos,
53

REZENDE, Heitor. Poltica de sade mental no Brasil. p. 43.

16
como parte do projeto de modernizao, por nomes que sugerem acontecimentos e construo de
personalidades.

J no trabalho de Pechman, Cidades Estreitamente Vigiadas, o aspecto de

civilizao inscrito nas cidades modernas , sem dvida, uma referncia presente neste e tambm
nos demais captulos. A Histria da Loucura, de Michel Foucault, por sua vez, imprescindvel
para a aproximao de algumas teses a respeito da loucura.
O segundo captulo visa capturar a construo da cidade disciplinar/disciplinada. Discorre
sobre as prticas da Polcia explicitadas nos ofcios, relatrios e regulamentos. Essas fontes tambm
revelam os estriamentos da cidade e, neles, os indivduos considerados perigosos; a temos o louco e
o vagabundo como obstculos ao estabelecimento da ordem e da disciplina. A leitura de tais fontes
gradualmente desencobrem a cidade, expondo aquilo que ela tenta ocultar. A referncia terica mais
importante para a composio deste captulo a obra Vigiar e Punir, de Michel Foucault.
O terceiro e ltimo captulo explora as prticas mdicas do perodo e as tentativas, bemsucedidas ou nem tanto, de higienizao e saneamento da cidade e de sua populao. A questo da
raa e a hierarquizao dela decorrente tero um papel decisivo na excluso de indivduos e no
encarceramento dos loucos em espaos construdos especialmente para esse fim. A inaugurao, em
1928, do Pavilho dos Alienados, anexo Santa Casa de Misericrdia, encerra este trabalho, quando
ento o saber mdico em Cuiab j deu os primeiros passos, no sentido de tomar para si o alienado e
fazer deste o seu paciente, construindo finalmente o doente mental.

17
1 A (RE)INVENO DA CIDADE E DA LOUCURA EM CUIAB

As cidades, como os sonhos, so construdas por desejos e


medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto,
que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas
enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra coisa.
talo Calvino54

Trs de fevereiro de 189055. A aurora j anuncia a sua chegada juntamente com o homem que
vem apagar os lampies56. O cheiro da terra molhada misturada aos odores que exalam das imundcies
jogadas em qualquer lugar57 denuncia a chuva do incio da madrugada que expulsou os freqentadores do
batuque58 costumeiro das bandas do Ba59 e que quebram o silncio noturno, a despeito de antigas
proibies60. A brisa fresca do princpio da manh obriga o Senhor J.61 a ajeitar o palet e o chapu,
peas da indumentria escolhidas com apuro para a expedio que vai liderar, assim como as botas
possivelmente um pouco gastas pelo tempo, mas reforadas o suficiente para o servio. A comitiva,
composta de um amanuense62 e alguns ajudantes, aproxima-se do Senhor J. e confere o equipamento que
ser utilizado: um grande livro de capa dura; tinta, tinteiro e pincel, tudo de boa qualidade trazidos do
estrangeiro por um dos muitos vapores que abastecem as casas comerciais locais. Essas casas, que j so
muitas por estas paragens, inundam o comrcio de coisas variadas: maquinrios, tecidos, azeites, vinhos,
cristais, pianos, drogas, perfumes, louas, ferramentas, livros, ferragens, sombrinhas, entre tantas outras
necessidades antigas e novidades quinquilharias, algumas delas incorporadas ao repertrio do consumo
local, j que despertaram o interesse de alguns, e em certos casos, acabaram virando moda. Nas ruas
ainda desertas de pessoas, animais de pequeno porte circulam vontade, enganando facilmente qualquer
estrangeiro, j que de longe parecem cachorros, que tambm existem muitos pela cidade, sejam vira-

54

CALVINO, talo. As cidades invisveis. So Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 44


Este trecho no foi extrado de nenhuma fonte; trata-se, na verdade, de uma licena potica que a autora se
permitiu.
56
Indicador de Leis e Decretos. 1892. p. 1/APMT.
57
1844- Posturas Municipais. Ttulo 1 Art. 1 Fica proibido lanar nas ruas e praas da Cidade, Arrayes
Adjacentes animais mortos e outra qualquer imundcie. APMT.
58
Designao comum s danas negras acompanhadas de instrumentos de percusso. In: FERREIRA, Aurlio
Buarque de Holanda. Dicionrio da lngua portuguesa. 14. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d. p. 193.
59
Denominao antiga do atual Bairro Lixeira existente em Cuiab, localizado nas proximidades da Igreja do
Rosrio.
60
Os batuques foram proibidos em 1844, conforme o artigo 10 do Cdigo de Posturas Municipais.
61
O Senhor J., na verdade, Jos Barnab de Mesquita, responsvel pela coordenao dos trabalhos de
recenseamento da populao urbana de Cuiab. Pai de Jos Barnab de Mesquita, um dos fundadores do
Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, instalado em Cuiab em 1919, por isto citado na historiografia
como Jos Barnab de Mesquita Snior. Para evitar confuses, optou-se, nesta parte do trabalho, por tratar o
mesmo como Senhor J.
62
Funcionrio pblico de condio modesta que fazia a correspondncia ou registrava documentos. In:
FERREIRA, Aurlio Buarque de Holanda. Dicionrio da lngua portuguesa. p. 80.
55

18
latas e sejam os de raa63. Mas neste caso, so os porcos de sempre que as pessoas insistem em cri-los
soltos, ignorando por completo as reclamaes do Intendente64. Diante do Palcio do Governo, o Senhor
J. transmite as ltimas instrues desta expedio que nos prximos dias percorrer todas as casas e
casebres localizadas nas ruas, travessas e becos dos dois distritos da cidade. Nenhum morador ser
ignorado, do patro ao criado de todas as moradias, todos os seus ocupantes sero identificados,
revelados, exceo dos presos da cadeia e do corpo de soldados do Quartel, simplesmente porque,
estes, j se sabe quem so. O ranger de portas sendo abertas indica que a cidade j acordou, logo todo o
comrcio estar aberto e os meninos seguiro para a escola65. O relgio de bolso avisa: hora de
trabalhar. Da a mais um pouco j se ouvem os sinos da Catedral.

O trabalho a que se refere a narrativa de abertura o censo de 1890, registrado em


dois livros66, que traa e desenha um quadro da populao urbana de Cuiab, dividida em
primeiro distrito e segundo distrito, a exemplo da diviso administrativa da cidade. Rico em
informaes, o documento adquire quase o aspecto de fundao67, j que mapeia e
esquadrinha a cidade, indica seus lugares e individualiza os seus moradores.
O recenseamento do primeiro ano da recm-instaurada Repblica uma grande
medida que se opera no projeto de construo de civilizao inscrito na cidade de Cuiab e
que adquire contornos mais bem definidos e consideravelmente distintos daqueles iniciados
no Rio de Janeiro, poca do Imprio, no momento seguinte ao das turbulentas dcadas de 30
e 40 do sculo XIX, quando a unidade da nao j no corria o risco de se fragmentar e o
olhar daqueles que constituram (depois da Independncia) o corpo do pas e descobriram a

63

1844 - Posturas Municipais. Ttulo 2 Art. 9 A ningum se permite o ter ces soltos (exceto os de caa) nas
ruas, os quaes podero, precedendo de qualquer Autoridade policial, ser mortos por qualquer pessoa do
povo... APMT.
64
1844 - Posturas Municipais. Ttulo 1 Art. 4. APMT.
65
Cdigo de Posturas de Cuiab. 1832. 1 Todos os moradores desta cidade de qualquer condio que seja, que
tiverem Meninos livres em suas companhias de idade de seis a quatorze anos, da data desta em diante os
ponham nas Escolas Pblicas, ou nas particulares... APMT.
66
Recenseamento de Cuiab em 1890 - 2 volumes. APMT.
67
O conceito de fundao aqui utilizado o mesmo de que trata Flora Sussekind na obra O Brasil no longe
daqui.

19
paisagem nacional se desvia das cenas primordiais da constituio da nao para repousar
numa nova paisagem que se constitua: a paisagem urbana68.
Em Cuiab, tal projeto reflete uma ambio: a da cidade civilizada. Da a
necessidade de desnudar, retirando uma a uma as camadas que a encobrem e que apresentam
sua populao como uma massa amorfa.
Os trabalhos coordenados por Jos Barnab de Mesquita69, funcionrio pblico
encarregado da estatstica da capital, no s cumprem a misso comumente designada aos
cartrios de registrar nascimentos, casamentos e bitos, como tambm vo alm destes, ao
anotar os nomes de todos os moradores da sua poro urbana, as respectivas idades, o estado
civil, profisso, raa, nacionalidade, religio, e se estes sabiam ou no ler, se freqentavam ou
no a escola, alm de registrarem algum defeito fsico que porventura possussem.
Decorridos quatro meses e vinte e um dias, a tarefa de coleta de dados foi cumprida,
apesar de Barnab ressaltar algumas dificuldades no decorrer do trabalho, como a substituio
de amanuense e auxiliares abatidos pela epidemia de gripe que atingiu quase toda a populao
de Cuiab70, nesse perodo, felizmente sem nenhum bito registrado,por estar a cidade em
boas condies higinicas71.
O censo como um guia que nos conduz a inmeros lugares, suscita questes e
revela personagens. As questes levantadas dizem respeito ao desejo manifesto de alguns
governantes e intelectuais de retirar da capital a imagem de atraso e de semelhana com o
mundo agrrio e, sobretudo, ao processo de constituio de uma nova ordem social. certo
que a populao cuiabana, de certa forma, j havia experimentado o desenvolvimento urbano

68

PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas. p. 16.


Ofcio de Jos Barnab de Mesquita ao Governador Antonio Maria Coelho. Caixa 1890. Fundo Sade/APMT.
70
Ofcio de 24/06/1890 de Jos Barnab de Mesquita ao Governador de Mato Grosso Antonio Maria
Coelho.Caixa 1890- Fundo Sade- Mao Estatstica/ APMT.
71
Ofcio de 10/06/1890 do Inspetor de Higiene ao Presidente do Estado. Caixa 1890. Fundo Sade - Mao
Inspetoria de Higiene/APMT.
69

20
na poca da explorao aurfera, contudo, a estagnao e, posteriormente, o declnio desta
atividade no incio do sculo XIX72, suspendeu temporariamente o desenvolvimento de sua
poro urbana.

1.1 Lugares e Personagens da Cidade

O rio que fazia uma volta atrs de nossa casa era a


imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrs de
casa./ Passou um homem depois e disse: Essa volta que o
rio faz por trs de sua casa se chama enseada./ No era
mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta
atrs da casa./
Era uma enseada./
Acho que o nome empobreceu a imagem.
Manoel de Barros

Ruas, travessas, becos e praas, cujos nomes ainda permanecem inalterados em 1890, desde a
poca colonial, evocando sentimentos ou indicando a localizao de algum ponto importante ou endereo
de algum, podem ser compreendidos como

[...] palavras da cidade, as designaes que identificam os espaos e fazem


deles um lugar revelam o pitoresco das socialidades da poca... Romnticas
ou pitorescas, cmicas ou enigmticas, as primeiras designaes dos espaos
urbanos nos falam das vivncias de uma pequena comunidade com os seus
hbitos [...]73

72

A tese de que a estagnao e o declnio da atividade mineradora em Mato Grosso ocorreram somente no incio
do sculo XIX ao contrrio da assertiva de muitos historiadores que datam esta ocorrncia em meados do
sculo XVII defendida por Romyr Conde Garcia na tese de doutorado: Mato Grosso (18001840): crise e
estagnao do projeto colonial. So Paulo, 2003. USP.
73
PESAVENTO, Sandra Jatahi. O imaginrio da cidade. Vises literrias do urbano (...) 2. ed. Porto Alegre: Ed.
UFRGS, 2002 p. 252.

21
tal qual a Rua dos Porcos, pelo grande nmero de porcos criados no apenas nos quintais, como tambm
soltos pelas ruas; ou a Rua da Misericrdia, por causa da Santa Casa de Misericrdia instalada no incio
do sculo XIX74. Enigmas ainda no revelados sugerem perguntar o que teria ocorrido na Rua dos Aflitos?
Quantos desejos foram encerrados no Beco da Esperana? O que ou quem demorava na Travessa da
Pacincia? Que prticas ensejavam os moradores e freqentadores da Rua dos Prazeres?
Mas essas palavras da cidade de um perodo anterior encontravam-se com outras, batizadas
no perodo recente e que aludem a fatos, acontecimentos e pessoas que se deseja personificar, tais
como: Rua Baro de Melgao, 13 de Junho, Comandante Antnio Maria, Rua 7 de Setembro e Travessa
Voluntrios da Ptria, e muitos outros. V-se de imediato que se j no uma outra cidade, j se trata
de uma cidade imaginada bem diversa da primeira; so outras as expectativas que se tm dela. Estes
nomes se reportam, na sua maioria, Guerra da Trplice Aliana contra o Paraguai e passam, a partir de
ento, a se constituir como uma das marcas que a cidade carrega.
A rua do Coronel Alencastro foi o local escolhido para iniciar o recenseamento e revela a poca
de sua realizao, uma vez que nela que se concentram o Palcio do Governo, o Quartel General e a
Intendncia Municipal, alguns dos principais organismos de poder da Repblica recm-instaurada.

Este o primeiro sinal dos muitos que viro a seguir que evidenciam as mudanas
que se operavam em Cuiab naqueles tempos, tanto no que diz respeito s instituies de
poder republicano, que perseguiro o distanciamento em relao Colnia e ao Imprio
quando a Igreja, o Senado da Cmara e a Cadeia eram os principais smbolos de poder vigente
, como por meio da adoo de inmeras prticas e representaes que aqui se configuram
como o estabelecimento de um novo centro, ou o que pretendia se fosse reconhecido dali por
diante como o centro do centro da capital.
O botequim de Joaquim Mares Rich75, situado na mesma rua do Coronel, quebrava a
sisudez institucional e sugeria a possibilidade de certa aproximao informal com os rgos
pblicos. Outros vizinhos evidenciam ainda mais a superposio de temporalidades nessa
74

VOLPATO, Luiza Rios Ricci. Cativos do serto: vida cotidiana e escravido em Cuiab em 18501888.
Cuiab: Marco Zero e Editora da UFMT. 1993. p. 29.
75
Censo 1890/APMT.

22
quadra, que no era exclusivamente cvica caso do Baro do Diamantino, ento com 74
anos, nascido no finalzinho da Colnia, criado no Imprio, quando tambm se torna nobre;
vindo a morrer como um capitalista, na Repblica76. A rua era ainda marcada pela mistura:
prximos do Baro, residiam o copeiro Benedicto de Faria, a professora Luisa Hans Jacob,
sua, solteira e protestante, e Maria, lavadeira, preta, solteira, catlica e brasileira; todos sem
nenhum defeito fsico.
Na quadra lateral, os artefatos da Praa Dom Carlos77 indicam que a Repblica,
apesar de almejar laicizar-se, mantm uma certa proximidade com a Igreja e reconhece nesta
um poder perifrico ao qual pode eventualmente recorrer. Nessa praa, encontramos a
Catedral da S, ainda em estilo colonial, com um grande sino em seu campanrio, smbolo de
regulao do tempo78 que se deseja que se torne passado, e tambm o Quartel do Batalho; em
frente da Catedral, na rua 13 de Junho, a Secretaria e o Quartel da Polcia, prximos ao local
anteriormente ocupado pela cadeia, quando a rua se chamava Bela do Juiz. nesse quartel
que encontramos vrios praas, dentre os quais o de nome Manoel Loureno de Almeida,
considerado, em 1891, pelo Chefe de Polcia Emiliano Augusto de Matos, portador de todos
os indcios de sofrimento mental, o que justificar o pedido encaminhado ao Presidente do
Estado para que fosse submetido a exame mdico a fim de ser excludo da referida
Companhia, por sua incapacidade fsica79.
Os indcios mencionados pelo Chefe de Polcia parecem baseados na fisiognomonia,
que ressurgiu como cincia na segunda metade do sculo XVIII, pelas mos de Johann Caspar
Lavater, fruto de mais um cruzamento entre a histria social e a histria natural [que

76

Censo 1890/APMT.
Id.
78
A respeito das mudanas ocorridas na concepo de tempo, ver o trabalho de Edward Thompson.
79
Ofcio do Chefe de Polcia ao Presidente do Estado. 28/02/1891. Fundo Sade. Caixa 1891/APMT.
77

23
intentava seguir] a trilha de uma semitica mdica que (...) vasculhava a cidade procura de
indcios de doenas e da desordem urbana.80
Segundo Pechman,

Lavater, autor de Essais de Physiognomie, propugnava que, atravs da


fisionomia, podia-se entrever a alma: Tudo tem no exterior um sinal
distintivo, um sinal hierglifo por meio do qual um observador pode
conhecer-lhe as virtudes secretas e as propriedades. Lavater procura no
rosto o carter e a psicologia, pois para ele nada existe no homem que no
seja expresso81.

Deste modo, a cidade, pode ser entendida como um laboratrio, cujos espcimes
reinantes, os citadinos, serviro de matria-prima para estudos no apenas como os de
Lavater, mas de muitos outros, como os de Csare Lombroso, com grande repercusso no
Brasil e sobre o qual se tratar mais adiante, mais precisamente no terceiro captulo. Mas a
cidade tambm a realizao do antigo sonho humano do labirinto, como afirmou Walter
Benjamim82, e a massa humana , por sua vez, o meio mais curto para alcanar o labirinto.
Contudo, no projeto civilizatrio no qual inscrita a cidade moderna, o
esquadrinhamento e a individualizao barram o desejo utpico de perder-se na multido. A
antropologia e a estatstica constituem-se, neste contexto, em ferramentas das quais o Estado
lanou mo. Esta uma das possibilidades de compreenso do censo de 1890 na capital matogrossense e, por esta razo, prosseguimos, de certa forma, acompanhando o mapa inscrito
neste, j que elaboramos uma cartografia da cidade83, estabelecendo interfaces com os
cronistas da poca, governantes, autoridades e outros.

80

PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas. p. 245, 285.


Ibid., p. 285.
82
Ibid., p 281.
83
A utilizao dos conceitos de mapa e cartografia apia-se nos trabalhos de Delleuze e Guattari.
81

24
Mais adiante chegamos ao edifcio da Administrao do Correio, cujo papel
fundamental era o de diminuir as longas distncias entre a capital de Mato Grosso e as
cidades, vilas e povoaes do interior da Provncia e tambm desta com outras provncias, a
Capital Federal etc.; afinal, se a existncia da cidade historicamente ocorre em funo de
uma circulao, cuja incumbncia fazer passar os fluxos, conforme ressaltou Pelbart84, o
Correio seria um dos importantes instrumentos utilizados para tal.
A Biblioteca da Associao Literria, instalada tambm na Praa Dom Carlos, num
prdio acanhado, informava a lenta, contudo, gradual consolidao da atuao de intelectuais
cuiabanos, cujas produes eram disseminadas nos peridicos locais, que viriam,
posteriormente, promover a fundao tanto da Academia Mato-Grossense de Letras como do
Instituto Histrico e Geogrfico de Mato Grosso, instalados em 1919 por ocasio do bicentenrio de Cuiab, quando passaram a ocupar o endereo da casa outrora pertencente a
Augusto de Leverger, o Baro de Melgao.
As placas instaladas em inmeras edificaes que se concentravam majoritariamente
no primeiro distrito da capital indicavam o comrcio de gneros e servios variados,
comandados por negociantes, freqentados por aqueles que podiam comprar, e visitados por
viajantes cujas malas carregavam amostras de inmeras surpresas inventadas no estrangeiro.
Assim, a cidade, nessa poca j possua alguns pontos delimitados e no podia mais
ser confundida com a cidade de Zo, conforme Marco Plo, que apresentou a seguinte
descrio:

Em todos os pontos [...] alternadamente, pode-se dormir, fabricar


ferramentas, cozinhar, acumular moedas de ouro, despir-se, reinar, vender,
consultar orculos. Qualquer teto em forma de pirmide pode abrigar tanto o
lazareto dos leprosos quanto as termas das odaliscas. O viajante anda de um
84

PELBART, Peter Pl. A vertigem por um fio. p. 47.

25
lado para o outro e enche-se de dvidas: incapaz de distinguir os pontos da
cidade, os pontos que ele conserva distinto na mente se confundem... e se
pergunta... qual o motivo da cidade? Qual a linha que separa a parte de
dentro da de fora, o estampido das rodas do uivo dos lobos?85

O funcionamento dos estabelecimentos comerciais ainda no estava regulamentado


em 1890; assim, tanto fazia ser domingo, feriado, ou tera-feira, todo tipo de comrcio
permanecia aberto, pelo menos at 1893, quando foi determinada a proibio de abertura das
casas comerciais aos domingos. Essa medida provocou reaes indignadas, a exemplo do que
fez o Intendente Municipal da capital em seu relatrio anual, com crticas a tal determinao,
utilizando como argumento a Constituio Federal, naquilo que dispe sobre o respeito a
qualquer religio, conforme artigo 148. O Intendente conclui ento que Assim intuitivo que
no podemos obrigar o judeu, o luterano ou calvinista, o [...] e o budista a guardar o domingo,
como uma obedincia a religio catlica, apostlica romana[...]86. Possivelmente essa reao
tinha mais relao com os interesses econmicos que estavam em jogo do que como forma
manifesta de repdio igreja catlica. Mas, j que tal determinao no se aplicava a todos os
estabelecimentos comerciais, os demais, como barbearias e tavernas, estavam livres para abrir
suas portas diariamente, o que causava alvio aos seus proprietrios, sobretudo queles
instalados nas cercanias das instituies de poder da capital, como era o caso do Senhor Jos
da Cruz Ferreira, brasileiro, casado com Dona Ana Maria da Cruz, pai de trs filhos e
proprietrio de uma taverna, situada na Rua Antonio Joo, 2673, local que tambm servia de
residncia da famlia, s que nos fundos desse estabelecimento87.
Avanando na sua peregrinao pelas ruas de Cuiab, Jos Barnab de Mesquita e
comitiva caminham por ruas estreitas e tortuosas, tpicas das cidades mineradoras do perodo
colonial portugus, num padro de plano urbano definido por Srgio Buarque de Holanda
85

CALVINO, talo. As cidades invisveis. p. 34-35.


Relatrio semestral da Intendncia Municipal de Cuiab. 1893/APMT.
87
Quadro geral da populao urbana do 1 Distrito da capital de Mato Grosso. 1890./APMT.
86

26
como o do semeador, bem diferente da experincia colonial espanhola. Para Buarque de
Holanda,
[...] o traado geomtrico jamais pde alcanar, entre ns, a importncia que
veio a ter em terras da coroa de Castela: no raro o desenvolvimento ulterior
dos centros urbanos repeliu aqui esse esquema inicial para obedecer antes s
sugestes topogrficas. A rotina e no a razo abstrata foi o princpio que
norteou os portugueses, nesta como em tantas outras expresses de sua
atividade88.

A topografia acidentada, repleta de sobe-e-desce e escassez de calamento nos


logradouros89, mesmo na parte central do primeiro distrito no final do sculo XIX e incio do
sculo XX, implicava na dificuldade da caminhada. Na poca de chuva, entre novembro e
fevereiro, poas de gua estagnada se formavam por toda parte, sobretudo nas proximidades
do crrego da Prainha90. No perodo de seca, o p entranhava na pele, emprestando aos
citadinos um aspecto macilento e era o maior inimigo das moas, j que era impossvel
manter limpas as barras das saias e vestidos, como relata o cronista, por ocasio dos festejos
do Divino:
As matronas, verdadeiras crentes e devotas, vo a esses atos religiosos com o
fim de analisar a vestimenta das moas, reparar que uma no tem jeito para
se vestir, outra ainda que est com a barra da saia branca suja, indo todas
fazer o comentrio em casa, a seu bel prazer... 91

Como flneurs, continuamos a percorrer o roteiro por ns escolhidos, a partir


daquele elaborado por Mesquita, cruzando no caminho com alguns morfticos, confirmando o
que relatou o Provedor da Santa Casa ao Presidente do Estado sobre o fato de percorrerem as
ruas da capital alguns doentes que estavam recolhidos no Hospital So Joo dos Lzaros92,

88

HOLANDA, Srgio Buarque de. Razes do Brasil. 26. ed. So Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 109.
Cdigo de Posturas de Cuiab, 1832. Art. 4.
90
Ofcio n 46 do Inspetor de Higiene ao Secretario de Fazenda. Caixa 1912- Fundo: Sade - APMT.
91
Jornal O Comrcio. 12/05/1910. NDHIR-UFMT
92
A respeito da histria do lazareto So Joo dos Lzaros, conferir: NASCIMENTO, Heleno Braz do. A lepra
em Mato Grosso: caminhos da segregao social e do isolamento hospitalar (1924-1941). Cuiab, 2001.
Dissertao (Mestrado em Histria) - Instituto de Cincias Humanas e Sociais. UFMT.
89

27
procura de alimento para a sua subsistncia, conforme noticiou o ltimo nmero da Gazeta. O
Provedor informou que

[...] existem 6 morfticos sob a direo de um guarda mor e um servente. A


distribuio de comida feita no penltimo dia de cada ms, a cada um
doente de todos os gneros alimentcios necessrios para a alimentao de
um ms. Acontece porm que dois dos morfticos so dados ao vcio da
embriaguez com excesso e preferem muitas vezes dispor de suas raes,
ocultamente, para obterem a aguardente ou esmolarem para consegui-la....93

A fuga para a rua daqueles que estavam proibidos de circular livremente era
justificada pelo Provedor, tanto pelo vcio da bebida, como pelas precrias condies da Santa
Casa de Misericrdia e do Lazareto. Alis, esse tipo de ocorrncia servia de argumento para
vrias solicitaes de aumento da subveno de verba das instituies, nenhuma delas,
todavia, merecedora de ateno. Ao que parece, s o medo da peste persuadia o pronto
atendimento do Estado no repasse de recursos financeiros, conforme o ofcio do Presidente do
Estado, que informa o atendimento ao pedido de aumento na subveno da Santa Casa para
auxiliar as despesas daquele estabelecimento, em conseqncia do nmero considerado de
doentes afetados pela epidemia reinante que para l se dirigem em busca de tratamento94.
Pix, bolo de arroz, de queijo, de milho e de mandioca, francisquito, puxa-puxa...
Delcias que passavam sobre a cabea dos inmeros ambulantes, longe do alcance fortuito de
alguma mo ligeira, mas cujo aroma incitava o esticar de pescoos e o movimento de erguer
das cabeas, para olhar, apreciar e desejar deliciar-se com iguarias da culinria local. Tais
movimentos, que estabeleciam a quebra do fluxo contnuo do arrasto, eram facilitados pelo
ritmo e velocidade do deslocamento, feito majoritariamente a p, e garantia, de certa forma, o
retorno do tabuleiro vazio para casa ao fim do dia, ainda que o tempo idealizado pelo capital
fosse o da velocidade.
93
94

Ofcio do Provedor da Santa Casa ao Presidente do Estado. Caixa 1890- Fundo: Sade - APMT.
Ofcio do Presidente Antonio Maria Coelho. Caixa 1890- Fundo Sade- APMT.

28
Passos ligeiros eram o ritmo constante, mas no o nico, tal qual o tique-taque do
relgio, que acelera quando se desloca da marcao das horas para minutos e destes para
segundos, insuficientes, porm, para atender velocidade do tempo desejante na cidade
moderna. Os bondes puxados a trao animal cuja utilizao era feita principalmente no
deslocamento entre o primeiro e o segundo distrito, sobretudo quando o apito da sirene
anunciava a chegada de algum vapor ao porto do rio Cuiab e os animais de montaria eram
os meios de transporte utilizados at o incio do sculo XX. Ainda que no alcanassem a
rapidez almejada, eram mais rpidos, contidos e mais facilmente domesticveis do que as
pernas dos citadinos, cujos ritmos eram mltiplos.
O registro de atropelamentos causados pelos bondes, que se reportam a poucos casos
isolados95, evidenciava a diferena entre a celeridade humana e os cavalos de fora, no que
concerne agilidade. No final da dcada de 1910, os veculos automotivos foram introduzidos
na paisagem citadina cuiabana como meio de transporte coletivo96. Os trens, por sua vez,
smbolos do progresso, foram transformados em signos de um desejo utpico da cuiabania, j
que estes nunca chegaram por estas paragens.
Assim, temos na cidade a adoo de formas de tempo que gradualmente atendem s
especificidades do capital, como agilidade e rapidez, mas tambm temos outros tempos
inscritos nesta paisagem, alguns valorizados e aclamados; outros passam a ser repudiados no
projeto de civilizao.
Pelas ruas cuiabanas, h a circulao de pessoas de todos os tipos: negociantes,
desocupados, ambulantes, profissionais liberais, funcionrios pblicos, inspetores de
quarteiro e outros.
95
96

Relatrio do Tribunal da Relao. Caixa 1893. Fundo: Sade/ APMT.


O presidente do Estado de Mato Grosso, Dom Aquino, informou a contratao do fornecimento do servio de
transporte urbano automotivo na capital mato-grossense, por ocasio do bicentenrio de Cuiab. Mensagem
governamental relativa ao exerccio de 1919.

29
O fluxo de pessoas de ambos os sexos e idades pelas ruas da capital intensificava-se
por ocasio dos preparativos das festas religiosas, entre as quais se destacavam as festas de
Santo Antnio, So Joo, So Benedito e a festa do Senhor Divino, que aparece nos
peridicos locais como o principal evento dessa natureza no perodo, possivelmente por
congregar o maior nmero de pessoas, sobretudo aquelas oriundas da elite cuiabana. O
recolhimento de oferendas, comandado pelos festeiros, que se alteravam anualmente, era
cuidadosamente planejado, bem como o roteiro do percurso e a programao, ambos
divulgados nos jornais locais, conforme o anncio seguinte:

Festas do Esprito Santo


Prometem desusado esplendor as prximas festas do Esprito Santo. No nos
permitindo a escassez de espao uma notcia desenvolvida, nos limitaremos
a publicar apenas o programa de tais festas:
Maio - 1. Bando mascarado;
2, 3, 4- esmolas e a 7 leilo;
12, 13, 14 - Missas de madrugada e a noite iluminao;
15 - Missa e procisso;
16, 17, 18 - Corrida de touros...97

Alm da programao, os cronistas dos peridicos e as lentes dos fotgrafos Cludio


e Raimundo Bastos registraram o movimento nas ruas cuiabanas nas dcadas de 1910 e 1920,
sobretudo nos dias de festas, quando a populao se vestia com o requinte que lhe era
possvel, que o evento exigia e que o espao pblico reclamava.
Estamos em plenas festas! [...] Doidos pelas ruas correm velhos e matronas,
rapazes e moas, meninos e meninas, todos sobraando embrulhos e caixas
com vestidos e fatiotas, chapus e botinas para a festana do Divino e do
Janota.
As nossas ruas tornam-se deusadamente movimentadas e possudas de um
aspecto mais alegre. E as festanas tem sido concorridas; o povo move-se em
massa para assistir as esmolas, as missas de madrugada e outros atos
religiosos. O leilo foi sublime! Imaginem quantos trabalhos bonitos no
houve por l, trabalhos feitos pelas delicadas mos de nossas patrcias! E
esses mimos arrematados por quaisquer vinte mil ris!
97

Jornal O Comrcio. 07/04/1910. Ncleo de Informao Histrica e Regional (NDIHR)/UFMT.

30
Quantas brigas, arrufos e outras coisas no houve no dia do leilo, entre
namorados, noivos, visando estas discrdias para o coi no arrematar um
presentinho para a coia? [...] Chega o domingo grandioso! Nesse dia, no
h nem cozinheira, nem lavadeira, nem pessoa alguma que queira perder a
missa de festa e procisso. Os rapazes no seu smartismo com a envergadura
de um terno novo, ficam a todo transe, querendo mostrar o talhe elegante que
o alfaiate lhes fez na roupa. As moas nesse dia, fazem a exposio dos seus
chapus enormes, verdadeiros balaios, cheios de morangueiro e ramos de
So Caetano e dos ultra-magnficos vestidos de cores indescritveis cheios de
enfeites, de nove horas e ns pelas costas [...]98

O movimento frentico de pessoas pelas ruas da capital, que a cidade atraa por conta
das festas religiosas, tambm ocorria no perodo eleitoral, mas este era um povo que diferia
consideravelmente daquele que freqentava as ruas cuiabanas nos dias de celebraes
religiosas. Na descrio do cronista, neste contexto, a mulher desaparece da cena urbana, o
que no surpreende, afinal, o direito ao voto estava ainda circunscrito aos homens de posse.
Assim, o cenrio poltico se inscrevia com alguns traos caractersticos, quer pela ambincia
predominantemente masculina, quer pela presena escancarada da fraude, da corrupo e,
sobretudo, da negociata, j que o voto era encarado como mercadoria, passivo, portanto, de
ser negociado entre vendedores e compradores.
Os compradores aparecem no texto do cronista como os proprietrios das casas
comerciais locais, insinuando a identificao parcial da elite local, detentores de poder
econmico e prestgio poltico. Uma outra diferena que o cronista parece desejar
estabelecer entre o homem citadino e aquele da poro rural. Nesta comparao, o vesturio
descrito sugere a deselegncia do caipira mato-grossense contraposta elegncia do homem
urbano, apontando, talvez, o desejo manifesto do perodo de delimitar as fronteiras entre a
cidade, lugar civilizado e, portanto, moderno, e o ambiente rural, smbolo de atraso:
[...] nos dias prximos das eleies, as nossas ruas adquirem um regular
movimento: gente que passa abarcando trouxas de roupas ou caixas de
chapus de largas abas, tudo preparado para a votao. Os proprietrios das
98

Jornal O Comrcio. 12/05/1910. NDIHR/UFMT

31
nossas casas comerciais [...] tem sempre as suas lojas cheias de eleitores,
moradores, quase sempre, dos lugares afastados da capital, e que, por meio de
uma cabala desenvolvida tout a fait admiravelmente, aqui vem receber os
seus respectivos quinhes para votarem no seu Herme ou Ruy. E estes
presentes consistem sempre em ternos de brim, camisas, botinas e algumas
vezes dinheiro que alegram o pessoal votante e os fazem fanticos pela
candidatura que o comerciante lhes aponta. Ento, no dia das eleies, como
dizem, a cidade move-se e as ruas regurgitam-se de povo; uns envergam
palets muito largos com mangas curtas; outros tem as calas largussimas e
tambm curtas; outros trazem espaventosas de cores que simbolizam o partido
a que pertencem, ou enormes colarinhos que lhe ficam quase a desaparecer a
cabea, ou tambm grandes chapus enterrados at a nuca [...]99

Mas a multido cuiabana (nos momentos em que ela surge em cena revelada, e de
forma aclamada, pelas mos dos cronistas, como os mencionados anteriormente), em nada se
assemelha multido das cidades descritas pelos escritores do sculo XIX, como o fez Edgar
Allan Poe, no instigante conto O homem da Multido100 ou aquela dos Quadros Parisienses,
de Charles Baudelaire, em que o poeta se lana contra a multido, qual um esgrimista. a
partir deste Quadros que Walter Benjamim elabora a teoria do choque relativa potica de
Baudelaire101, que se evidencia no poema O Sol:

Ao longo dos subrbios, onde nos pardieiros


Persianas acobertam beijos sorrateiros,
Quando o impiedoso sol arroja seus punhais
Sobre a cidade e o campo, os tetos e os trigais,
Exercerei a ss a minha estranha esgrima,
Tropeando em palavras como nas caladas,
Topando imagens desde h muito j sonhadas.
Este pai generoso, avesso tez morbosa,
No campo acorda tanto o verme quanto a rosa;
Ele dissolve a inquietao no azul do cu,
E cada crebro ou colmia enche de mel.
ele quem remoa os que j no se movem
E os torna doces e febris qual uma jovem,
Ordenando depois que amadurea a messe
No eterno corao que sempre refloresce!

99

Jornal O Comrcio. 17/03/1910. NDIHR/UFMT


POE, Edgar Allan. O homem na multido. In: Os melhores contos de Edgar Allan Poe. So Paulo: Crculo do
Livro S.A. s/d. p 130.
101
Cf., a este respeito, BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Textos escolhidos. So
Paulo: Abril Cultural. 1980.
100

32
Quando s cidades ele vai, tal como um poeta,
Eis que redime at a coisa mais abjeta,
E adentra como rei, sem bulha ou serviais,
Quer os palcios, quer os tristes hospitais.102

Contrastando com a multido parisiense a partir da qual escreveu Baudelaire, sem


esconder sua repulsa , a multido cuiabana, ainda que no fosse uma paisagem que a cena
urbana apresentasse cotidianamente, em fins do sculo XIX e incio do sculo XX,
potencializava o frenesi das ruas, sobretudo nos dias de festa, e sobre este estado de nimo
que o cronista vai clamar: Temos com as festas (...) bem boas diverses que nos vem tirar
desta frieza produtora de neurastenia, que o estado normal desta nossa capital...103
O cenrio predileto do cronista aquele que emerge por ocasio das festas, mas o
palco privilegiado para onde seu olhar se volta o das ruas: a rua como o grande espetculo,
ou, ainda, a expresso, como anunciou Sbastien Mercier, em fins do sculo XVIII.
Segundo Pechman, tal enunciado apresenta novidade e indica mudana, uma vez que elege

[...] a rua, como o novo lugar da sociabilidade, onde o olhar, livre da


obliterao das paredes palacianas, pode vagar procura de novos objetos de
observao; e a expresso, como atributo de uma parte enorme da populao
que nunca sara do anonimato e, na rua, v-se, de repente, alvo dos olhares
dos viajantes, dos pintores, dos desenhistas, dos literatos, dos artistas em
geral104.

A multiplicidade de contextos que emergem nas cenas de rua serve como cenrio
para os cronistas, pois a desfilam personagens variados, com inmeras nuances e que
implicam num novo aprendizado. Novamente se recorre a Pechman, para tentar penetrar

102

BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. p. 319.


Jornal O Comrcio. 23/06/1910. NDIHR/UFMT.
104
PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas. p. 248.
103

33
Nesse mundo onde tudo pode se perder definitivamente, diante das
surpresas da rua preciso reaprender a olhar, a repensar a natureza dos
novos objetos a serem observados, a redimensionar o problema da aparncia
e da identidade do homem da rua. Definitivamente, estava-se diante de
problemas inusitados colocados pelas novas formas de sociabilidade que a
vida urbana evocava105.

Ora! Se era preciso reaprender a olhar, era necessrio tambm elaborar outras
ferramentas, outras lentes que possibilitassem a identificao do indivduo, sobretudo no
ambiente urbano das grandes cidades. A antropologia emerge neste contexto, como a cincia
do homem, para dissec-lo, mas esta cincia, ainda que se volte a princpio para as chamadas
sociedades primitivas, vai muito alm, quando afirma ser o prprio rosto moldado pelas
condies sociais.
Mas a nova sociabilidade inscrita nas ruas da cidade de Cuiab , para o Estado, um
problema, principalmente perante o projeto de civilizao, quando a urgncia pela
identificao torna-se imperativa. Para Pechman,

[...] novos sistemas de classificao do rosto vo deixando para trs os


fundamentos da fisiognomonia calcados na dualidade do homem e vo
cedendo lugar antropologia e estatstica nascentes, que mais do que se
preocupar com os sinais interiores do corpo que assomam-se a face, voltamse para a classificao de tipos e enumerao de populaes (...) preciso,
portanto, distinguir cada corpo do outro, cada rosto do outro a partir de uma
referncia que seja infalvel, cientfica o clculo que permita a
identificao, atravs de medies, da virtude ou do vcio que impregnam
cada rosto. A partir da, os corpos so reconhecidos como caractersticos de
uma natureza perigosa ou tpicos de uma natureza civilizada. Essa
politizao dos rostos funcionar como um derradeiro ndice de proteo
social, na medida em que servir para que se identifique, na massa, aqueles
virtualmente capazes de romper o pacto social106.

Mais uma vez, o recenseamento da populao urbana da capital mato-grossense, feito


em 1890, uma grande ferramenta, ainda que no seja a nica, de que o Estado dispe para

105
106

PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas. p. 249.


Ibid., p. 252-253.

34
desvendar os segredos da sua populao, para liquidar, ou pelo menos tentar liquidar, com a
possibilidade das rotas de fuga que o labirinto apresenta, retirando as camadas que encobrem
diferenas para compor uma populao como massa amorfa, e que necessitam ser reveladas,
identificadas, classificadas, para a, sim, poder agrupar, isolar e excluir. Retoma-se, portanto,
o caminho por ele percorrido.
Ainda na parte central do primeiro distrito da capital, na Travessa dos Voluntrios da
Ptria, situa-se a residncia do mdico Augusto Novis, com idade de 51 anos, pai de Alberto
Novis, na poca com 17 anos de idade, que seguiria a carreira do pai, vindo trs dcadas
depois ocupar o cargo de Inspetor de Higiene da capital107. Nessa casa, moravam tambm sua
me, Maria da Glria, os irmos, a av materna e a tia materna, Clementina C. Gaudie Ley.
Alm dos laos de parentesco, muitos traos os aproximam e os inserem no mesmo grupo que
a estatstica utiliza em seu sistema classificatrio pleno de distines. A aproximao se d
pela raa (conceito to caro ao sculo XIX, sobre o qual este trabalho discorrer no terceiro
captulo), j que todos so brancos. So tambm catlicos e brasileiros. As diferenas, por sua
vez, se inscrevem pelas vias do estado civil, dada a variedade de idade dos moradores, e pelas
vias da instruo. At a nenhum estranhamento, considerando que a educao de massa s
ocorreria no Brasil dcadas mais tarde108. Mas no sistema classificatrio aplicado no censo em
questo, outro trao distintivo relevante so os defeitos fsicos distinguidos com o auxlio das
referncias cientficas. assim que um corpo, um rosto, no interior de um mesmo grupo, se
distingue dos demais e se torna o seu outro. Clementina C. Gaudie Ley, a tia materna, branca,
solteira, com 36 anos, alienada mental109.

107

Ofcio n 08 de 26/01/1920 - Do Inspetor de Higiene ao Secretrio do Interior, Justia e Fazenda. Comunica a


posse do Dr Alberto Novis como Inspetor de Higiene Pblica da Capital interinamente conforme Portaria n
110. Livro de Registro de ofcios expedidos pela Inspetoria de Higiene. APMT.
108
Cf. MULLER, Maria Lcia Rodrigues. As construtoras da nao: professoras primrias na primeira
repblica. 1998. Tese (Doutorado em Educao) - UFRJ, a respeito da educao de massa no Brasil e mais
especificamente em Mato Grosso.
109
Quadro da populao urbana da capital Cuiab - 1 Distrito - 1890/APMT.

35
Mas a alienao de Clementina, tida e inscrita no censo como defeito fsico, no o
nico tipo registrado no censo que marca a diferena entre as pessoas e que delimitam as
fronteiras entre o eu e o outro. Alis, para Foucault, essa diferena consiste numa

[...] nova forma de conscincia: inaugura um novo relacionamento da


loucura com a razo; no mais dialtica contnua como no sculo XVI, nem
uma oposio simples e permanente, nem o rigor da partilha como no
comeo da era clssica, mas em ligaes complexas e estranhamente
estabelecidas110.

Idiotia e demncia se juntam a esse universo de diferentes; espcies reconhecidas


pela maioria dos mdicos europeus dos sculos XVII e XVIII, que carregam nesse perodo um
forte contedo de negatividade e que, no caso da demncia, segundo Foucault, a forma que
mais se aproxima da essncia da loucura em geral, da loucura experimentada em tudo aquilo
que pode ter de negativo: desordem, decomposio do pensamento, erro, iluso, no-razo e
no-verdade111.
No incio do sculo XIX, Pinel, mdico francs, elaborou outro conceito e salientou a
diferena entre demncia e imbecilidade, relacionando-a com a distino existente entre
imobilidade e movimento, uma vez que, segundo este,

No idiota, h uma paralisia, uma sonolncia de todas as funes do


entendimento e das afeces morais; seu esprito permanece imobilizado
numa espcie de estupor. Na demncia, pelo contrrio, as funes essenciais
do esprito pensam, mas pensam no vazio e, por conseguinte, com extrema
volubilidade112.

110

FOUCAULT, Michel. Histria da loucura na Idade Clssica. 3. ed. So Paulo: Perspectiva. 1991. p 184.
Ibid., p. 25.
112
Ibid., p 261.
111

36
Esses conceitos elaborados por Pinel apresentam uma novidade, se comparados com os da
poca clssica, j que, lentamente, a demncia vai sendo desvinculada da poro negativa e comea
a ser considerada no mbito de uma certa intuio do tempo e do movimento113.
Pinel, que viveu no perodo correspondente ao final do sculo XVIII e incio do sculo
XIX, orgulhava-se de ter presenciado o contexto da Revoluo Francesa segundo ele, ocasio
propcia para a irrupo de diversas formas de loucura. Foucault, afirma que

A noo de loucura, tal como existe no sculo XIX, formou-se no interior de uma
conscincia histrica, e isto de dois modos: primeiro, porque a loucura em sua
acelerao constante forma como que uma derivada da histria; e, a seguir porque
suas formas so determinadas pelas temporalidades do homem: assim que nos
aparece a loucura tal como ela ento reconhecida ou pelo menos sentida, bem
mais profundamente histrica, no fundo, do que ainda o por ns.114

Na capital mato-grossense, entretanto, a loucura no ser encontrada como em Paris, no


Hospital Geral, ou no Hotel de Dieux, e em vrios outros estabelecimentos onde Pinel encontrou
enclausuradas vrias de suas faces.
Na Cuiab do final do sculo XIX, vemos emergir lentamente, pelas mos do amanuense,
uma populao de alienados, idiotas e dementes esparramados pela cidade, protegidos ainda pelo
manto familiar, nesta cidade to distante do litoral. Mas este um cenrio que no perdurar por
muito tempo; s ter uma durao maior se o compararmos aos do Rio de Janeiro, So Paulo e
Porto Alegre.
O manto familiar, cujo tecido tido pelo Estado como frgil demais, ser gradualmente
rasgado, esburacado, dilacerado, at chegar ao ponto em que restem apenas pedaos de retalhos,
fragmentos de fios to podres e to frgeis, que ser necessrio mais de meio sculo para elaborar
outros pontos, tecer outros fios, reuni-los em outra trama... mas essa uma outra histria. Nesse

113
114

FOUCAULT, Michel. Histria da loucura na Idade Clssica. p. 262.


Ibid., p. 375.

37
momento da vida da cidade, o que se segue o esquadrinhamento desta populao de
outros.
Marias, Joss, Antnios, Janurias, Dionsias, Justinas, Beneditos, entre muitos
outros, iro integrar o universo comum de Clementina. O universo do no-lugar, o mundo dos
desarrazoados. um mundo que atrai como m, da mesma forma e com a mesma potncia
que a cidade, na poca em que isto ocorria nela.
Saindo da Travessa dos Voluntrios da Ptria, misturamo-nos a Mesquita e comitiva,
caminhamos uns poucos metros e logo chegamos a mais um endereo, onde diferentes se
misturam. Na rua 2 de Dezembro, coabitam a casa de n 143 Maria Cndida da Cunha, 40
anos, solteira, branca, de profisso agncia115; Leocdia da Cunha, 60 anos, solteira, branca,
de profisso agncia, e paraltica; o pequeno Martiniano, que com dez anos freqentava a
escola, seguindo as determinaes das Posturas municipais116, afinal, ainda que fosse de raa
preta, contava com o benefcio da legislao. Era nessa mesma casa em que tambm morava
Maria Xavier da Cunha, possivelmente me de Martiniano, solteira, sem profisso, com 26
anos e alienada mental.
Cruzando a ponte do Rosrio, de madeira ainda, j que a de alvenaria seria construda
somente em 1893 sobre o crrego da Prainha, nas proximidades da rua da Emancipao117, chegase Rua do Rosrio, lugar descrito como sujo e infecto, conforme relata o Inspetor de Higiene
Pblica:

O servio de asseio e limpeza desta Capital quase nulo, porque alm de ser
costume antigo do povo mandar depositar nas margens do crrego da
Prainha e na maior parte das travessas todo lixo que diariamente junta em
suas casas, a prpria carroa contratada com a Intendncia para esse fim,
115

O termo agncia aparece como profisso de inmeros indivduos, de ambos os sexos e idades, no censo de
1890. A repetio, entretanto, no implica em compreenso sobre o seu significado at este momento.
116
Posturas Municipais de Cuiab. 1832. Art. 1.
117
Relatrio da Intendncia Municipal de Cuiab. 1893 - Caixa: 1893. Fundo: Sade/APMT.

38
deposita tambm nas mesmas margens da Prainha um pouco adiante do
quartel da polcia quanto de imundcie apanha nas ruas118.

Prxima Igreja do Rosrio, construda no ncleo urbano de Cuiab ainda no


perodo colonial, freqentada predominantemente pela populao cuiabana pobre, encontra-se
a capela de So Benedito, o santo negro, cuja devoo resultou na constituio da Irmandade
de So Benedito. Nessa rua, a do Rosrio, mora o empregado aposentado Antonio Anastcio
Monteiro de Mendona, de 53 anos, branco, brasileiro e casado, juntamente com sua esposa
Ignes e seus filhos, Nunon de 11 anos, Almiran, com 7, e Palmira, de 5 anos de idade. Do
servio da casa, encarregava-se Maria de Carvalho, de 55 anos, a criada, solteira, preta,
catlica, africana e idiota. Ah, Lombroso, grande terico da degenerescncia humana!
Na mesma rua, em outra moradia, residia Jos Antunes Maciel, 45 anos, branco,
solteiro, brasileiro, catlico, que sabia ler, mas era alienado. Prximo dali, na rua de So
Benedito, vivia a alienada Januria, com meio sculo de existncia, que vem se juntar a esse
mundo dos diferentes, profisso: agncia; e o pequeno Vicente de Carvalho, com apenas 9
anos de idade e de idiotismo.
Na rua da Emancipao, a jovem Maria Joana, 15 anos, receberia a marca do
idiotismo. Em outra casa da mesma rua, no 14 quarteiro, Mesquita revela Dona Dionsia
Gonalo, viva, brasileira, com 60 anos, preta, catlica e alienada mental. J em outra casa da
mesma quadra, o jovem Eduardo da Silva Daltro, outro alienado, como Dona Dionsia,
porm, branco e solteiro.
Na Igreja do Senhor dos Passos, construda, segundo Rubens de Mendona, por um
devoto, como forma de agradecimento, vivia Antnio Claudino de Siqueira, branco, solteiro e

118

Relatrio da Inspetoria de Higiene Pblica. Caixa - 1898. Fundo: Sade/ APMT.

39
que, alm dos paramentos da igreja que provavelmente carregava, quando solicitado, dali por
diante levaria mais um ad eternum, sua revelia: o epteto de idiota.
Pelas ruas da cidade, possvel observar alguns indcios de que, lentamente, a
paisagem urbana ia sofrendo transformaes/intervenes; construes imponentes de estilo
ecltico e neoclssico estavam sendo erigidas e evidenciavam o crescimento econmico da
cidade ps-guerra. Os grandes ps-direitos desse novo modelo arquitetnico comearam a ser
introduzidos na paisagem da capital mato-grossense, no final do sculo XIX, e passaram a ser
copiados, ou melhor, improvisados, pelos proprietrios das antigas construes coloniais, por
meio de arranjos, como a maquiagem nas fachadas, por meio da instalao de platibandas
que sugeriam grandes ps-direitos, e de gradis de ferro ou balastres.
Assim, a fachada se modernizava; bastava, entretanto, cruzar a porta de entrada
dessas moradias para perceber que o interior delas continuava inalterado, mantendo uma
disposio de espaos fiel poca colonial. Tal mistura, ou combinao, podia ser visualizada
por toda a cidade e tambm nos hbitos da populao urbana cuiabana, onde antigos e novos
modelos se misturavam.
A construo de passeios pblicos seria privilegiada pelos Intendentes municipais no
decorrer dos anos seguintes, j que o aumento de circulao de pessoas pelas ruas da cidade, e
a transformao desta em lcus de civilizao, exigia a definio de lugares por onde se
poderia transitar. Assim foi, com a construo do passeio pblico da Travessa do Palcio do
Governo, na extenso do jardim pblico at o edifcio da Delegacia Fiscal, em 1893, e o
nivelamento de ruas119.

119

Relatrio Semestral da Intendncia Municipal de Cuiab - 1893/APMT.

40
Tambm se privilegiou a delimitao e construo de espaos pblicos destinados
sociedade cuiabana, como foi a gradual transformao dos assim antigos largos em jardins e
praas, com direito urbanizao que uma capital merecia, ainda que, a princpio, tmida.
Em 1893, o jardim pblico da capital recebeu uma ateno especial, por meio da
importao de diversos espcimes de plantas vivas de Montevidu, repetindo assim um
recurso j utilizado anteriormente, mas, para frustrao do Intendente da poca, essas espcies
chegaram a Cuiab quase todas mortas. A soluo encontrada para embelezar o jardim foi a
obteno de mudas e sementes na prpria cidade. A natureza impunha limites domesticao
e indicava o que poderia ser copiado e/ou importado de outros lugares. Os eucaliptos, por
exemplo, adaptaram-se bem ao novo ambiente e emprestaram s praas Ipiranga e da S um
toque e um aroma da civilidade que se tinha como modelo. Os cipestres, por sua vez, serviram
para adornar, com uma urea romntica e europia, o Cemitrio da Piedade.120
No itinerrio ziguezagueante, chega-se rua da Misericrdia, onde residia, na casa
de n 575, a senhorita Maria Silveira de Jesus, paraltica e demente; mais adiante, no nmero
578, Joana Anastcia Monteiro, 30 anos, analfabeta como Maria, que apesar do seu idiotismo,
exercia a profisso de agncia.
Seguindo ladeira acima, no alto do morro, aproxima-se da Igreja do Seminrio, quase
incendiada acidentalmente, em junho de 1890, por um menino que jogou inadvertidamente
um palito de fsforo dentro de um caixo de velas121. Em frente desta, finalmente, chega-se
Santa Casa de Misericrdia, lugar de maior concentrao de alienados, dementes e idiotas da
cidade, em 1890. ali que se encontram: Ana, brasileira e alienada; Josepha, alienada e
africana; Edwiges, brasileira como Ana e tambm como esta alienada mental e, finalmente, a

120
121

Relatrio Semestral da Intendncia Municipal de Cuiab - 1893/APMT.


Ofcio de 02/06/1890 da Secretaria de Polcia ao Presidente do Estado de Mato Grosso. Caixa 1890. Fundo:
Sade/APMT.

41
paraguaia Gertrudes, tambm uma alienada mental. Endereo requisitado, sobretudo pela
autoridade policial, quando a loucura explodia enfurecida, invadindo um territrio proibido, o
espao pblico, e tambm endereo provisrio, j que a Santa Casa se recusava a manter esse
tipo de paciente por muito tempo. Na realidade, na maioria das vezes, a admisso de
indivduos alienados era recusada, conforme se l no seguinte ofcio:

Aparecem constantemente nesta Capital pessoas atacadas de alienao


mental sem que a autoridade possa de pronto providenciar sobre seu
recolhimento em lugar seguro e apropriado por falta de um estabelecimento
que se preste a esse fim. A Santa Casa de Misericrdia desta Cidade, nico
estabelecimento de caridade que atualmente existe, acha-se em estado de no
poder receber pessoas alienadas em vista de no possuir acomodaes
prprias e suficientes, e tanto assim que por vezes tm esta Chefatura,
mandado para ali indivduos manacos que entram mas saem ao mesmo
tempo porque aquele edifcio nenhuma segurana oferece; pelo que v-se as
mesmas Chefatura na contingncia de, muitas vezes recorrer priso da
Cadeia desta Cidade para melhor recolher algum alienado que aparecem e
perturbam o sossego publico. Convm pois que se proporcione meios de ser
adquirida uma casa para alienados.122

Mas a admisso de pacientes insanos na Misericrdia podia ocorrer, ainda que


esporadicamente, mediante algumas concesses:

Tendo obtido guia para ter entrada no hospital da Santa Casa de


Misericrdia, a fim de ali tratar-se como pensionista, o sr. Balbino Antunes
Maciel, que dizem estar sofrendo de suas faculdades mentais, e no se
achando o dito hospital em condies de obstar a nao de doentes afetados
de tais enfermidades, que algumas vezes se tornam agitados e furiosos, e
mesmo para se evitar algum desastre, rogo a V. Excia, providenciar no
sentido de haver diariamente ali uma pequena guarda do Batalho de Polcia,
enquanto estiver em tratamento o referido alienado, conforme acaba de
requisitar o mdico do estabelecimento...123

122

123

Relatrio apresentado em 1894 ao Dr. Manoel Jos Murtinho, Presidente do Estado de Mato Grosso, pelo
Chefe de Polcia Tenente Pedro Antunes de Souza Ponce, com dados relativos ao ano de 1893/APMT.
Ofcio do Presidente da Sociedade Beneficiente da Santa Casa de Misericrdia, Jos Viegas de Brito, ao
Presidente Coronel Antonio Paes de Barros. (Respondido em 9-3-1904) - Caixa 1904- Fundo: Sade/ APMT.

42
Contrastando as pessoas afetadas pela alienao, como menciona o Provedor da
Santa Casa, com o restante da populao, mencionados no ofcio citado acima, apresentamos
outra opinio, que diz respeito tanto ao contingente populacional dos ditos doentes em Cuiab
e tambm do restante do Estado de Mato Grosso: [...] neste Estado, nunca houve asilo de
alienados, sendo porm recolhidos ao hospital de Caridade desta Capital, em pocas
(transactas), alguns casos raros de alienao mental, sem tendncias para aumento [...]124
Esta assertiva incita a retomada de outra observao feita, e j citada, sobre a
existncia de alienados na capital mato-grossense. Trata-se do relato feito pelo Chefe de
Polcia, em 1897, segundo o qual apareciam constantemente, na capital, lanando-nos, para
aquilo que estava em jogo naquele momento, a construo da cidade civilizada que tenta se
desvencilhar de qualquer indcio de degenerescncia que poderia ser suspeitada como inscrita
na fisionomia cuiabana.
A alienao mental era uma coisa ruim que vinha de algum lugar, fosse este lugar,
qualquer parte do Brasil ou do estrangeiro. Uma coisa porm era preciso dar como certa: a
alienao no era natural de Cuiab. Para tanto, bastava confrontar com os registros do censo
que informavam a nacionalidade dos citadinos.
Novos endereos da loucura vo, porm, brotando nas pginas dos grandes livros,
assim como a florada dos ips roxos e amarelos, que parecem ignorar a poca de seca do
cerrado.
Ah! A rua dos Prazeres! Ainda que se ignore o porqu de seu nome, ele evoca
desejos, que no se pode dizer se algum dia, na mocidade ou vida adulta, a menina Silvinia de
Arajo, com apenas 8 anos de idade, viesse conhecer, j que possua o defeito do idiotismo
que, segundo Pinel, imobiliza os sentidos. Seguindo esta definio, talvez Silvinia se
124

Ofcio n 3 de 03/02/1905 - do Inspetor de Higiene Pblica Dr. Jos Marques da Silva Bastos ao Presidente
Coronel Antonio Paes de Barros. Caixa 1905 - Fundo: Sade/ APMT.

43
encaixasse melhor no endereo ocupado por Silvria Ribeiro da Silva, brasileira, preta,
solteira, com 30 anos, profisso ajustes ofcio este exercido a despeito do seu idiotismo,
mas que coadunava com o seu domiclio, situado na Travessa da Pacincia.
E assim os endereos multiplicam-se no primeiro distrito da capital. As dementes
Clara, moradora de uma casa na Rua do Coronel Peixoto; Maria da Conceio e Justina, na
Travessa da Cmara; os idiotas Manoel e Maria Delgada Pinto, na Rua Baro de Melgao;
Benedito Pinto de Moraes, na Rua do Diamantino; Jlia, na Rua Bela Vista, em casa
relativamente prxima quelas ocupada por um grande nmero de pessoas da famlia Pinho,
mas que tambm residiam em outros endereos, como era o caso da famlia do empregado
aposentado Francisco Leite de Pinho Azevedo, com 50 anos, casado com Maria das Dores
Galvo, de 40 anos, e pais de Idalina, Nicanor, Amlia, Afra, Ana Georgina e Rachel de
Pinho, que contava, na poca do recenseamento, 14 anos. E, finalmente, os alienados: Joo
Baptista, com 25 anos, morador na rua de Nossa Senhora da Guia; Jesuna Inocncia do
Esprito Santo, com 60 anos de idade, que residia na Rua do Frei Jos, e Diocleciana
Pulcherio, casada, com 40 anos de idade, moradora da Rua de Pocon.
Na freguesia de So Gonalo, segundo distrito da capital, outros rostos da loucura
emergem. Seguindo pela Rua Baro de Melgao, na casa nmero 422, morava a alienada
Maria da Glria, e, mais adiante, na mesma rua, no nmero 462, compartilhavam o mesmo
teto Maria Timthea, solteira e alienada mental, e Anna Rosa, profisso agncia, portadora de
idiotismo.
Paralelamente a essa rua, outros prolongamentos do primeiro distrito se seguiam: o
da Rua 13 de Junho, onde vivia o jovem Joo da Costa e Faria, 14 anos, brasileiro, pardo,
catlico e com idiotismo e, na extenso da Rua Comandante Costa, Lucrcio Ramos da Costa,
20 anos, solteiro, profisso agncia, cujo defeito era o idiotismo. Mais adiante, numa casa da

44
Rua da Varginha, habitava Joana Delfina da Conceio, mais uma idiota na relao de figuras
defeituosas registradas nos dois livros do censo de 1890.
Apenas trs praas existiam no segundo distrito da capital. Na Praa Riachuelo,
residia na casa de nmero 140 a alienada mental Rita dos Santos, com 50 anos; na Praa
Aquidaban, na moradia de nmero 335, vivia com seus familiares o menino Manoel Barboza,
cujo defeito fsico era o idiotismo. Digna de nota era a Praa do General Miranda Reis, local
onde se encontrava instalado o Arsenal de Guerra, prdio imponente, de estilo neoclssico e
que fazia jus ao contexto de poca, j que, com o advento da Repblica, o exrcito adquiriu
fora e importncia jamais vistas at ento no Brasil.
Mais do que adentrar o interior do Arsenal, permanecer nele era o desejo da maioria
das famlias pobres cuiabanas, que vislumbravam nessa instituio algum futuro para os seus
meninos, por meio da Escola de Aprendizes e Artfices, que contava na poca com cinqenta
e cinco aprendizes, alm de vinte e cinco praas de operrios militares e tambm trezentos e
vinte e dois praas do 8 Batalho de Infantaria do Exrcito.125
Nessa mesma praa estava instalada a Cadeia Pblica de Cuiab, num prdio onde
volta e meia era feita a solicitao de reparos, conforme o que se l a seguir:

O Carcereiro da Cadeia Pblica desta Capital participou j haver sido


tomadas as goteiras aparecidas no telhado do mesmo edifcio, cuja
providncia vos foi solicitada em ofcio de 25 do ms prximo findo [...]126

Na poca do censo, a Cadeia contava com uma populao de sessenta e sete presos,
alguns dos quais j haviam sido sentenciados e outros ainda no, situao que dificilmente poderia
significar alguma alterao para a populao encarcerada, no que diz respeito transferncia
125
126

Quadro da populao urbana da Freguesia de So Gonalo, segundo distrito da capital. 1890/APMT.


Ofcio de 05/11/1892 do delegado Elpidio Bem de Moura ao Presidente do Estado. Caixa 1890. Fundo:
Sade/ APMT.

45
destes para outro estabelecimento, considerando que havia apenas doze cadeias em todo o Estado
de Mato Grosso naquele perodo, a despeito da constante reivindicao para transformar a cadeia
pblica da capital em penitenciria, o que no ocorreu.
Alguns membros da elite, como tambm os governantes do perodo, no mediram
esforos para conseguir essa transformao, atravs da adoo de inmeras medidas que
aparecem nos relatrios dos Intendentes Municipais, como tambm dos governadores, sob o ttulo
de Melhoramentos Urbanos127.
Apesar dos esforos de disciplinamento da capital, era imperativo propagar, como
observa quase aos berros o cronista em 1910, que

[...] o nosso Estado, continua pois, desconhecido; Cuiab, Corumb,


Cceres, etc. so tidas como cidades em cujas ruas existem espessos
matagais e onde, em pleno dia, vem-se onas, veados, cobras e toda a
espcie animal dos nossos matos, assim como bugres no meio das ruas,
derrubando transeuntes com as suas flechas envenenadas [...]
Vejam s o que pensam de ns!
Para melhor julgarem, o que o resto do Brasil idealiza de Mato Grosso e
Cuiab, transcrevemos aqui algumas linhas de uma carta de um matogrossense, atualmente em So Paulo, a um colega:
No imaginas, quanto a nossa terra desconhecida aqui... Dar-se aqui por
mato-grossense arriscar-se at a passar por uma entidade fora do vulgar,
alguma coisa que transcende os limites do natural e que requer trs pontos de
exclamao bem lanados depois de seu nome [...]
Mais adiante, outras linhas dizem assim:
J um respeitvel burgus me perguntou se, de fato, existia em Mato
Grosso gente civilizada, e, de resto, no raro ver a qualquer um que me
reconhece como mato-grossense, dizer de boca aberta e olhos esgazeados: E o senhor veio de Mato Grosso aqui? J coragem!
Vejam s isto! E em lugar de fazermos uma boa propaganda a nosso favor,
apontando as riquezas do subsolo, a uberdade de nossas selvas, o saudvel
do nosso clima, vivemos a fazer poltica...
No! Precisamos mudar de rumo, ao governo cabe dar o exemplo,
aproveitando as aptides dos seus conterrneos, onde quer que elas existam,
adversrios ou no.
127

A esse respeito Maria Stella BRESCIANI apresenta anlise sobre alguns significados dos chamados
melhoramentos no artigo: Melhoramentos entre intervenes e projetos estticos: So Paulo (1850-1950). In:
Palavras da cidade. Porto Alegre: Ed. UFRGS. 2001.

46
Chega de atraso. Bugres, bugres, no somos, mas bem possvel que l
cheguemos.
preciso a reao! Mudemos de rumo, sejamos unidos!128.

A partir dessas consideraes indignadas, cabe salientar que em nenhuma das centenas
de pginas dos dois livros do quadro da populao urbana de Cuiab encontra-se uma nica
referncia a alguma etnia indgena domiciliada em qualquer endereo que seja na cidade.
possvel inferir que talvez este silncio que se prolonga at a dcada de 10 do sculo XX e um
pouco alm dela expresse o desejo de negar qualquer proximidade com etnias que carregam as
marcas da barbrie. Era preciso afastar do mato-grossense, mais ainda do cuiabano, qualquer trao
de bugre.
Ainda que nem todos os moradores da poro urbana representassem o iderio de
civilizao desejado por alguns indivduos, j que muitas prticas persistiram por muito tempo e
denotavam atraso, esta era uma preocupao que se voltava, sobretudo, para o espao pblico da
cidade. Entre essas prticas, podemos citar a manuteno, por um longo perodo, do hbito de lanar
nas ruas as guas servidas; ou ainda, as prticas populares dos cururus, siriri e batuques,
freqentados inclusive por aqueles que deviam vigiar a observncia da moral nos costumes
citadinos, a polcia, por cujas mos chegamos cidade disciplinar, sobre a qual trataremos no
prximo captulo.

128

Jornal O Comrcio. 21/04/1910. Microfilme. Rolo 60. NDIHR/UFMT.

47
2 A CIDADE DISCIPLINAR

Ningum sabe precisar a que horas vieram busc-lo, nem o que seria feito dali pra frente com
as crianas, seus filhos, todos menores de idade. Da me, ningum falou se estava viva e por onde
andava. A taverna. Ah! Essa fazia algum tempo que no funcionava mais. Mas isso talvez no tivesse
importncia. O que importa que algum deveria ter falado alguma coisa sobre ele, seno, por que a
polcia viria para busc-lo? No houve quem o acompanhasse, mas talvez tenha sido mais ou menos assim:
Ainda era dia quando os homens cruzaram o grande porto de madeira da Cadeia Pblica e o entregaram
ao carcereiro, que o guiou ao interior do prdio. A porta da sala do Chefe estava aberta, mas seguiram
adiante, afinal no era caso de perder tempo com interrogatrio, no havia nada para perguntar,
tampouco para ouvir, tudo j havia sido dito pelo vizinho dele, um funcionrio pblico, e isso bastava.
Nenhuma conversa foi tabulada entre eles. Um conduzia, o outro se deixava conduzir. Ciente de sua
tarefa, o carcereiro seguia indiferente pelo corredor escuro, entremeado num e noutro ponto por rstias
de sol que entravam pelos buracos do telhado. Logo comearia o tempo das chuvas e os buracos
continuavam l, alis, a tendncia desses buracos era s aumentar, assim como a populao carcerria.
Era para l que eram mandados criminosos de todo tipo e de todas as partes, Cadeia Pblica da Capital,
a melhor de todo o Estado. Indiferente aos murmrios que se produziam por trs das portas fechadas, o
carcereiro prosseguiu conduo dele. Noutros tempos no teriam escutado quase nenhuma voz, j que
o lugar para onde se costumava levar gente como ele ficava do outro lado da Cadeia, mas o estrago que
um outro como ele havia feito na parede era to grande, que tentar prender algum ali era intil. Para a
primeira seo, no podia lev-lo, ali ficavam os que esperavam julgamento; para a segunda, tambm
no, essa era para os condenados; na terceira, ficavam as mulheres. Postaram-se diante de uma porta,
finalmente tinham alcanado o recinto determinado para ele. O carcereiro escolheu uma dentre as vrias
chaves que carregava na cintura, abriu a porta e o empurrou para seu interior. Ele ouviu o barulho da
tranca e demorou algum tempo para se acostumar pouca luz da cela, para ento poder enxergar o que
havia no seu interior. Primeiro viu o que pareciam sombras de corpos estirados no cho batido, depois
percebeu um grupo, amontoado num canto, muitos olhos arregalados olharam na sua direo, os corpos
quase nus, pois no podia chamar de roupa algumas tiras de pano sujo e rasgado. Ali estavam os seus
companheiros: os loucos.129

129

Esta narrativa de abertura fictcia. Apesar de utilizar informaes extradas de vrios documentos, no se
reporta a eles, que aqui serviram apenas como inspirao para introduzir o leitor no ambiente da cidade
disciplinar, diferente daquele de que tratamos no captulo anterior.

48
Em 1894, Jos da Cruz Ferreira foi conduzido cadeia pblica da capital. Sua priso
foi informada ao Governador do Estado Manoel Jos Murtinho, pelo chefe de polcia interino
Pedro Antunes de Souza Ponce, motivada pela denncia feita pelo funcionrio pblico
Antonio Modesto, que declarou na ocasio que Jos estava apresentando sinais de sofrimento
mental130.
Se o lugar no era adequado, pelo menos era melhor do que a Santa Casa de
Misericrdia, onde esse tipo de paciente era submetido aos piores tratamentos, e muitos deles,
presos a ferro, conforme constatou o chefe de polcia em diligncia realizada ao hospital,
ocasio em que verificou tantos maus tratos aplicados aos alienados que ali se encontravam,
que tratou de transferir para a cadeia o louco Antonio Antunes Ferraz, que por conta dos
suplcios recebidos na Misericrdia veio a falecer pouco tempo depois.
Que crime Jos da Cruz havia cometido? No, ele no tinha atirado em ningum.
Tampouco havia jogado pedra. Nem esfaqueado quem quer que fosse.
Apenas quatro anos haviam se passado em Cuiab desde a realizao do
recenseamento da capital e quanta mudana se percebe na sociedade cuiabana neste episdio!
Seno, vejamos. Em 1890, encontramos Jos da Cruz Ferreira como morador da casa nmero
2673, na Rua Antonio Joo, com os seguintes dados: 40 anos; taverneiro; raa parda; catlico;
brasileiro; sabia ler, mas no freqentava a escola; no possua nenhum defeito fsico, era
casado e pai de quatro filhos131. Todas essas informaes foram registradas pelo amanuense
sob a coordenao de Jos Barnab de Mesquita por ocasio do censo, que identificou,
mapeou e registrou a existncia de alienados, dementes e idiotas na poro urbana da capital,
entre outros portadores dos chamados defeitos fsicos. A identificao de cada um de seus

130

1894, Dezembro, 21, Cuiab. Ofcio n 97 do Chefe de Polcia interino Pedro Antunes de Souza Ponce ao
Presidente Manoel Jos Murtinho. Caixa 1894 Mao: Repartio de Polcia do Estado de Mato Grosso.
APMT.
131
Recenseamento Urbano da Capital Cuiab. 1890. APMT.

49
moradores se restringiu, num primeiro momento, individualizao da populao, sem que
nenhuma mudana ocorresse em relao aos mesmos. Mas, bastaram quatro anos, para
compreendermos que a individualizao era, apenas, uma das estratgias da disciplinarizao
a que seria submetida a sociedade cuiabana.
No recenseamento da capital realizado em 1890, a ausncia de relatrio que trate dos
mtodos utilizados para a confeco do mesmo e tambm a deciso sobre as categorias
eleitas, se por um lado impossibilita que se conhea a inteno que facultara a sua produo,
traz como novidade a designao de algumas categorias que, ao que parece, foram julgadas
importantes para compor a identidade da nao.
Realizado no primeiro ano da Repblica e segundo da Abolio da Escravatura, o
documento suprime o quesito escravido para, em seu lugar, aparecer raa; assim, temos as
trs raas que comporiam a identidade nacional: a branca, a preta e a parda. A escolaridade e
alfabetizao da populao denotam a influncia dos membros do Instituto Histrico e
Geogrfico Brasileiro a denominada gerao de 70132 , cujos intelectuais indicam a
importncia da escolaridade. O estado civil, por sua vez, remonta ao perodo colonial de
forma sofisticada e detalhada, uma vez que nos antigos mapas de populao aparece o nmero
de fogos existentes em cada localidade. A religio recebe o mesmo grau de importncia que
os demais indicadores e sinaliza a aproximao do Estado laico com a igreja catlica e a
submisso desta ao Governo. Quanto categoria defeitos fsicos, esta reflete a importncia
dos corpos sadios para o projeto de civilizao em curso no pas e vai mais alm, uma vez que
no prescinde do saber mdico para designar os respectivos defeitos dos indivduos. Talvez

132

A expresso gerao 70 utilizada por Robert Pechman ao tratar da gerao de intelectuais membros do
Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, que defendeu a Proclamao de Repblica e Abolio da
Escravatura. Esses intelectuais defendiam ainda grandes reformas e acreditavam que s com o auxlio da cincia
se poderia alcanar o progresso do pas. PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas. p 350.

50
seja por essa via que temos a explicao para o diagnstico feito por Antonio Modesto, o
denunciante, a respeito de Jos da Cruz Ferreira, prontamente aceito pela autoridade policial.
O recenseamento de 1890 se constitui numa espcie de marco fundador na prtica de
diagnosticar o alienado em larga escala em Cuiab e, a partir da, possibilitar um
prognstico preliminar, atravs do recolhimento do alienado cadeia ou Santa Casa de
Misericrdia. A identificao, localizao e fixao dos alienados, dementes e idiotas, por sua
vez, podem ser compreendidas tanto como a escolha de novos objetos de saber, como tambm
a dimenso de um territrio inscrito no corpo do indivduo, que carregar, dali por diante, o
epteto de alienado, considerando a inexistncia, em Cuiab, nesse perodo, de um espao de
excluso destinado especificamente para esse fim133.
Em 1894, o amanuense saiu de cena para dar lugar polcia, que passa a ser
solicitada para cumprir o seu dever: retirar do cenrio das ruas e do convvio familiar aquele
que perturba a ordem pblica, aquele que no pode mais gozar da liberdade: o alienado.
Algumas questes chamam a ateno nesse episdio. A primeira diz respeito
percepo da loucura como alienao mental, cujo diagnstico podia ser feito por qualquer
pessoa. A segunda trata da necessidade do recolhimento do alienado a alguma instituio, o
que indica que o enclausuramento j era praticado como medida necessria conteno desse
tipo de indivduo. A terceira reporta-se ao papel desempenhado pela Polcia nesse perodo,
afinal, era a essa instituio que as pessoas comearam a recorrer para solucionar o problema,
o que nos sugere a idia de que a loucura era caso de polcia. Mas do que tratava, afinal, a
Polcia? Quais circunstncias determinaram a emergncia da loucura e da pessoa do louco
como problema social, ou como problema da cidade, justificando as proposies de criao de
instituies para control-los e, eventualmente, trat-los? Ou ainda, por que teria o alienado,

133

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Flix. Mil Plats (...). Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. v. IV. p. 122.

51
em Cuiab, surgido na cena social como um problema, muito antes de as instituies que iam
acolh-lo terem sido criadas?
Tomando por base a afirmao de Angel Rama, que disse que, dentro de cada cidade
sempre houve outra cidade, vejamos algumas possibilidades de se olhar para as cidades que
se descortinam para ns.
Cuiab, em fins do sculo XIX, segundo a descrio de Joaquim Ferreira Moutinho,
era uma cidade onde o viajante, depois de uma longa e fastidiosa viagem sente-se alegre e
impressionado; porque contra toda a sua expectativa, encontra no meio de um serto inspito
e selvagem uma cidade regularmente bela, e um povo j bastante civilizado. E continua
tecendo elogios, descrevendo o cuidado com as vestimentas usadas pelos homens e mulheres
de posses e tambm sobre as formalidades presentes nas relaes sociais destes. Sobre as
edificaes, Moutinho revela uma cidade onde as casas so,

(...) pela maior parte, de mesquinha aparncia, trreas, compondo-se de sala,


loja, alcova, varanda e cozinha. Usam branque-las cal. (...) A construo
de taipa ou de adobes, e no interior da cidade rara j a casa de pau a pique.
H contudo muitas bem construdas segundo o sistema moderno, adornadas
de vidraas, com a frente a gosto das de Montevidu e Buenos Aires. H
tambm no pequeno nmero de sobrados de bonita aparncia e de
arquitetura elegante, pintados a leo, forrados de papel e perfeitamente
mobiliados, contando ali mveis de subido valor fabricados na provncia ou
em Montevidu e Buenos Aires, alguns mesmo na Corte ou na Europa,
estofados de seda, etc.134

Nas mensagens governamentais, os problemas apresentados vo da falta de esgoto


at a inexistncia de iluminao pblica, que fazia da capital, em pocas variadas, um lugar
ftido e lgubre.

134

MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Itinerrio da viagem de Cuiab a So Paulo. 1869. Mimeografado.

52
Mas nos ofcios e relatrios policiais que temos uma espcie de escritura da cidade,
daquilo que ela mesma no se permite ver. Muito mais do que lixo, entulho, gua ftida ou
edifcios modernos ao lado de antigas construes, o que ir brotar nesse texto da cidade so
fissuras, que tornam o espao citadino um espao estriado, pela interdio de prticas que
contrariavam o projeto civilizatrio.
Possivelmente estamos diante da sociedade disciplinar. A disciplina sobre a qual
vamos tratar neste captulo nada tem a ver com aquela da cidade pestilenta atravessada
inteira pela hierarquia, pela vigilncia, pelo olhar, pela documentao, a cidade imobilizada
no funcionamento de um poder extensivo que age de maneira diversa sobre todos os corpos
individuais, utopia da cidade perfeitamente governada, como observou Foucault, que viu
nessa cidade [pestilenta] a projeo de recortes finos da disciplina sobre o espao confuso do
internamento. Mas tambm considerou que a disciplina suscitada pela peste, ainda que fosse
excepcional, perfeita, era absolutamente violenta. Curiosamente, a peste despertava sensaes
contraditrias: por um lado, era temida pela iminente ameaa da morte, por outro, era
desejada pelos governantes, j que, sob o seu estado, a cidade era plenamente governada,
afinal, foi a peste que suscitou esquemas disciplinares.
No sculo XVIII, Josep Bentham apresentou a soluo da disciplinarizao da
sociedade com a formulao do esquema panptico. O Panptico de Bentham constitua-se
numa arquitetura que possibilitava a vigilncia permanente, contnua, do ver-sem-ser-visto,
projetada, a princpio, como um novo modelo de priso, escola, e outras instituies fechadas,
em que se prescindia da disciplina. Todavia, era muito mais do que isso. O panptico estava
destinado a se difundir no corpo social, com funo generalizada e papel amplificador. Para
Foucault,
o Panptico no deve ser compreendido como um edifcio onrico: o
diagrama de um mecanismo de poder levado sua forma ideal; seu

53
funcionamento, abstraindo-se de qualquer obstculo, resistncia ou desgaste,
pode ser bem representado como um puro sistema arquitetural e ptico: na
realidade uma figura de tecnologia poltica que se pode e se deve destacar de
qualquer uso especfico135.

Ainda segundo Foucault, Bentham mostrou como se pode

destrancar as disciplinas e faz-las funcionar de maneira difusa, mltipla,


polivalente no corpo social inteiro. Essas disciplinas que a era clssica
elaborara em locais precisos e relativamente fechados casernas, colgios,
grandes oficinas e cuja utilizao global s fora imaginada na escala
limitada e provisria de uma cidade em estado de peste, Bentham sonha
fazer delas uma rede de dispositivos que estariam em toda parte e sempre
alertas, percorrendo a sociedade sem lacuna nem interrupo. O arranjo
panptico d a frmula dessa generalizao. Ele programa, ao nvel de um
mecanismo elementar e facilmente transfervel, o funcionamento de base de
uma sociedade toda atravessada e penetrada por mecanismos disciplinares136.

Os aspectos negativos de punies, suplcios, de excluses to recorrentes na


poca da escravido no Brasil, quando assentar pelourinho era medida to importante quanto
a construo de igreja, palcio de governo e Senado da Cmara so deixados para trs
quando entram em cena formas sutis de vigilncia permanente, hierarquizada, a que so
submetidas todas as pessoas, j que a tecnologia poltica tem este carter de reverberao, e
que ocorre no na paralisia, na interrupo, mas no movimento. Movimento do capital, do ir e
vir de pessoas, de circulao de idias, de fluidez e que tem o espao pblico como o lugar
para onde as atenes se voltam e onde os dispositivos disciplinares podero atuar sem
estardalhao.
No que tivesse ocorrido o fim das instituies fechadas. Em Cuiab, no final do
sculo XIX, as escolas, a Santa Casa de Misericrdia, a cadeia, o Batalho de Polcia Militar
continuaram e continuam a existir, e chegam at ns, na atualidade, exceo do Arsenal de

135
136

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. p. 181.


Ibid., p. 184.

54
Guerra. Mas o que nos interessa voltar nosso olhar para outros lugares, mais precisamente
para aqueles lugares em que a disciplina parecia jamais poder alcanar, no fosse a adoo de
dispositivos disciplinares: o espao pblico.
O espao pblico tanto pode ser o lugar do trabalho, ou o caminho para este, como
pode ser o lugar onde a desordem pode reinar absoluta. O espao pblico (a rua, neste caso),
o lugar da imprevisibilidade, onde tudo pode acontecer e onde no se tem o controle de nada,
pelo menos no aparentemente. A rua parece indicar o mundo, seja pela novidade ou pelo
inusitado, e que tem como regra bsica o engano, a decepo137.
A cena das ruas o lugar onde se pode tudo ver, sem ser visto. Espcie de espetculo
a cu aberto mas no o espetculo dos teatros como o tinha sido na Antigidade Clssica,
quando, na Grcia, a grande multido lotava as arenas para assistir exibio de um
gladiador. Ou ainda, o espetculo das touradas cuiabanas, quando uma arena era montada,
com arquibancada e camarote, em lugar previamente determinado, e que atraa um grande
nmero de pessoas para assistir ao desempenho dos capinhas diante dos animais.138 Num ou
noutro caso, temos muitos olhares voltados para um ponto especfico, um pequeno alvo, que
submetido ao exame de muitos. Na sociedade disciplinar, ocorre exatamente o contrrio disso:
temos um grande nmero de pessoas vigiadas, contnua e ininterruptamente, por uma nica
pessoa, ou por um pequeno nmero de pessoas que examinar os gestos, as relaes, as
afetividades, as coisas mais insignificantes.
Mas quem que pode vigiar?

137
138

DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heris (...). p. 91.


Cf., a respeito das touradas cuiabanas, a Dissertao do Mestrado em Histria, de Marisa de Oliveira
Camargo, pela UFMT, 2005.

55
Seguindo os preceitos de Bentham, qualquer um podia vigiar e ser vigiado, o que nos
remete idia de uma vigilncia no identificvel, ou invisvel, ou ainda um olhar sem rosto,
como observou Foucault. No Brasil, essa tarefa coube polcia.

2.1 Polcia para Quem Precisa

Polcia, para quem precisa?


Policia para qu precisa de Polcia?
Tits

Em 1808, D. Joo VI criou a Intendncia Geral da Polcia, instituio estatal, espcie


de brao do rei, cujas funes no estavam muito claras poca de sua criao. Pechman situa
a dificuldade em estabelecer as atribuies da polcia nesse perodo, j que a sua instalao se
deu sem que houvesse um Cdigo Penal que definisse com maior preciso o que era crime e
os limites do comportamento, o que levou a polcia a se instituir como a divisora de guas
entre a ordem e a desordem e a fixar o padro de tolerncia da sociedade para com os
excessos da nova sociabilidade que se instaura com a corte139. Em 1894, esse argumento
ainda pde ser utilizado, apesar da promulgao do primeiro Cdigo Penal republicano
poucos anos antes140.

139

PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas. p. 94.


RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. Cor e Criminalidade. Estudo e anlise da Justia no Rio de Janeiro. (1900
1930) Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1995. p 13.

140

56
Examinando o que diz Foucault a respeito da estatizao dos mecanismos de
disciplina em especial o que ocorreu na Frana, onde esse mecanismo foi ocupado pela
polcia , teremos diante de ns um sistema que se ocupa de tudo, um aparelho coextensivo
ao corpo social inteiro, e no s pelos limites extremos que atinge, mas tambm pela mincia
dos detalhes de que se encarrega141.
Os limites provavelmente se aplicavam aos casos que resultavam em algum tipo de
crime ou delito, como homicdio, furto, roubo, agresso fsica, entre outros, mas a polcia
tambm vai se ocupar de detalhes, de tudo que acontece. Seu objeto so essas coisas de
todo instante [...] essas coisas toa142.
No Dicionrio Enciclopdico de Almeida Lacerda, publicado em 1868, temos o
seguinte significado aplicado ao verbete polcia:

I) Polcia (do latim politia; do grego polites, cidado; de polis, cidade):


governo e boa administrao do estado, da segurana dos cidados, da
salubridade, subsistncia, etc. Hoje entende-se particularmente da limpeza,
iluminao, segurana e de tudo que respeita a vigilncia sobre vagabundos,
mendigos, facinorosos, facciosos, etc.
II) Polcia (do latim polidio, de polire, polir, assear, adornar): cultura,
polimento, aperfeioamento da nao, introduzir melhoramento na
civilizao de uma nao.143

No decorrer dos anos, outros dicionrios so publicados, onde apareceram algumas


variaes de significados para designar polcia, que tanto podia ser sinnimo de polidez, como
de civilizao. Essas pequenas variaes talvez insinuem a tentativa de atribuir polcia um
significado que abrangesse a complexidade de sua funo, j que seu campo de atuao
compreendia exatamente aquele ponto intermedirio entre o poder do Estado e as instituies
fechadas, onde estas no podiam e nem podem intervir, como observou Foucault,

141

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. p. 187.


Ibid., p. 188.
143
PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas. p. 69.
142

57
disciplinando os espaos no disciplinares; mas que ela recobre, liga entre si, garante com
sua fora armada: disciplina intersticial e metadisciplina144
nesse ponto intermedirio que encontramos em Cuiab, em fins do sculo XIX,
aqueles indivduos que no esto sujeitos a nenhum mecanismo disciplinar: os loucos e os
vadios. sobre os vadios que as Instrues Policiais de 1892 vo tratar de forma contundente,
uma vez que so tidos como criminosos em potencial. Esse perigo social iminente, o
vagabundo que transita pelas ruas, que circula por todos os lugares e que ameaa a ordem
pblica, tanto pela sua presena, pelos atos que pode vir a cometer, como tambm pelo risco
de contaminar os demais indivduos, dever, a partir de ento, ser contido pela polcia.
Essas mesmas instrues estabelecem parmetros para o exerccio do poder da
polcia, quando determina que ela, sem ultrapassar os limites de suas atribuies, pode e
deve, com energia e atividade, prestar reais servios causa pblica. A polcia no pode
mais tratar com indiferena esse tipo de indivduo (aqui, o vadio) que passa a ser considerado
perigoso, mas ter que atuar compenetrados do zelo, solicitude, critrio e imparcialidade..
Localizar, identificar, disciplinar e punir (se preciso for) constituam o conjunto de
medidas que deveriam ser cumpridas, em todas as etapas, pela autoridade policial. Essas
medidas podiam ser resumidas em seis artigos normativos que tinham por finalidade reprimir
a vadiagem oriunda dos crimes e desordens.
O artigo primeiro determinava policia a identificao da profisso de todos aqueles
que circulavam pela cidade. O artigo segundo propunha a observao de todos os vagabundos
e ociosos, obrigados a arrumar algum servio que lhes garantisse o prprio sustento de forma
lcita, com comprovao, para evitar a prtica de algum crime. O artigo terceiro tratava da
sano normalizadora, j que todo aquele que no arrumasse um servio, por motivo frvolo,

144

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. p. 189.

58
seria obrigado a assinar o termo de bem viver145. O artigo quarto estabelecia a assinatura de
contrato para aqueles que tivessem arrumado algum trabalho. A hierarquia, por sua vez,
estava assegurada no artigo quinto, pela atuao do subdelegado, figura esta a quem todos os
inspetores de quarteiro da respectiva jurisdio deveriam ser submetidos. A idoneidade dos
inspetores, por sua vez, seria afianada pelos prprios subdelegados que proporiam a
nomeao de pessoas de sua confiana tanto para ocupar os cargos vagos, como para proceder
a substituio daqueles indivduos que no lhes inspirassem crdito. Por fim, no sexto e
ultimo artigo, os inspetores de quarteiro deveriam

conhecer as pessoas residentes nos quarteires de sua jurisdio, e no s


levar ao conhecimento das autoridades policiais os fatos criminosos dos
quais tiverem conhecimento como auxiliar as autoridades com as
informaes sobre os ociosos ou vagabundos, a fim de procederem contra
eles na forma das suas atribuies146.

O exame dessas Instrues aponta para a reflexo de algumas questes, como a


transformao da sociedade, a mudana na concepo do trabalho e a utilizao de tcnicas de
vigilncia utilizadas pela polcia.
Nesse perodo, a sociedade, nos padres desejveis da modernidade, ainda se
encontrava em processo de gestao. Afinal, ela estava tentando se desvencilhar da antiga
sociedade brasileira, moldada, segundo Buarque de Holanda147, por uma estrutura familiar
cujas afetividades e relaes de simpatia tornaram difcil a incorporao normal a outros
agrupamentos.

145

Segundo Pechman, Termo de Bom Viver era o compromisso das pessoas que, quando convocadas eram
obrigadas a ir sede da Intendncia Geral de Polcia, para, em presena da autoridade, l assinarem o tal
termo, se comprometendo a bem viver, isto , a viver dentro dos parmetros definidos como os da ordem.
Cf. PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas. p. 77-78.
146
Relatrio da Fora Pblica. 1893. Secretaria de Policia da Capital Cuiab. APMT.
147
HOLANDA, Srgio Buarque de. Razes do Brasil. p. 141-151.

59
A moralidade, os comportamentos, as atitudes, os vcios, as sociabilidades, o lazer,
as relaes de trabalho, a observncia s leis, o comrcio, a higiene, a sade j no podiam ser
tratados apenas no mbito familiar, ou na esfera privada. O Estado passa a se ocupar dessas
questes, tanto por meio da adoo de estratgias de disciplinarizao, como pelo
estabelecimento e fortalecimento de algumas instituies que vo circunscrever o espao
citadino.
Da educao se incumbir no apenas a famlia, mas tambm o Estado, tornando
obrigatrio o ensino primrio em Mato Grosso, a partir de 1892. Mas esta determinao no
foi cumprida de imediato, conforme as informaes contidas nos relatos governamentais de
1894 e dos anos subseqentes. A falta de professores e tambm de espao fsico destinado
para esse fim comprometiam a sua execuo segundo o que determinava a Constituio
Estadual. No que as crianas da capital no freqentassem a escola nesse perodo. Segundo o
Presidente do Estado, Antonio Cesrio de Figueiredo, as pessoas de posses optavam por
matricular os seus filhos nas escolas particulares existentes em Cuiab, sobretudo pela baixa
qualidade de ensino ofertado pelas escolas Modelo e Liceu Cuiabano, mantidas pelo governo
estadual. Alm disso, a capital carecia de mo de obra qualificada, o que demandava a
necessidade de contratar professores oriundos de outros Estados. Contudo, os salrios pagos
eram to baixos que no atraam a vinda desses profissionais para Mato Grosso. Apenas trs
escolas pblicas estavam em funcionamento: a Escola Modelo, o Liceu Cuiabano e a Escola
de Aprendizes e Artfices, sendo esta ltima recm-inaugurada e mantida com recursos da
Unio.
A sade pblica comeou a ser organizada nos primeiros anos da Repblica. O medo
de epidemias a exemplo da varola, que, como peste, causara a morte de tantas pessoas em
1867 , a preocupao com a proliferao de endemias, como tambm o grande fluxo de

60
pessoas e cargas no Porto de Cuiab contriburam para a criao da Inspetoria de Higiene
Pblica. Nos primeiros anos, sua atuao foi caracterizada pela adoo de algumas medidas
pontuais e no implicou na formulao de polticas pblicas de sade em Mato Grosso
(abordaremos este assunto no terceiro captulo). A Santa Casa de Misericrdia e O Hospital
So Joo dos Lzaros eram os nicos hospitais existentes em Cuiab destinados a prestar o
atendimento populao pobre, mas tambm atendia o Corpo de Soldados do Batalho de
Polcia Militar, que, apesar de contar com um mdico entre os seus integrantes, nunca possuiu
um hospital na sua unidade.
Da segurana do Estado se encarregava o Corpo de Polcia Militar, criado pela Lei
n. 9, de 1892, e composto de duas companhias de infantaria. O nmero de pessoas que
integrava o seu corpo era fixado anualmente e girava em torno de pouco mais de 300 pessoas,
se bem que, no decorrer das primeiras dcadas da Repblica, houve dificuldade para
completar o quadro de pessoal. Em 1894, o efetivo do Batalho compunha-se de: 1 tenentecoronel, 1 major, 1 capito-mdico, 3 capites, 3 tenentes, 9 alferes, 1 sargento ajudante, 1
sargento-quartel mestre, 1 corneteiro-mor, 1 mestre de msica, 3 primeiros-sargentos, 3
forries, 14 cabos de esquadra, 16 anspeadas, 18 msicos, 182 soldados e 3 corneteiros.
Esse nmero era tido como insuficiente para cobrir a demanda de todo o Estado, por
isso houve algumas tentativas de atrair homens para integrar o Corpo de Polcia, por meio da
concesso de benefcios e prmios todas elas, porm, frustradas. As razes para essa
situao, segundo os governadores, era a predileo pela ociosidade de muitos homens da
capital, que no percebiam que poderiam ser teis para si e para os outros. O recrutamento no
interior tambm era difcil, por razo diferente daquela observada na capital. Conforme o
Governador Manoel Jos Murtinho, o maior obstculo era a repugnncia que os homens
sentiam em relao atuao da fora policial, decorrente da ignorncia a respeito da

61
instituio, mas que poderia ser superada por meio do esclarecimento aos refratrios.
Enquanto isso no ocorria, o guarnecimento do interior era feito por meio do envio de homens
da capital. Soluo paliativa que no resolvia o problema e comprometia ainda mais o
nmero reduzido de efetivos policiais na capital.
Vale ressaltar, porm, que o recolhimento dos ociosos s fileiras do Exrcito se
configurava, num primeiro momento, num arranjo perfeito, j que resolvia, numa s medida,
dois problemas o de aumento de contingente do exrcito e o banimento das ruas de pessoas
cujas prticas eram tidas como perniciosas, e que a educao fornecida pelo Exrcito trataria
de extirpar: A caserna, nos tempos modernos, tambm uma escola de educao intelectual,
moral e cvica onde o soldado pode adquirir as qualidades de um bom cidado: alma s em
corpo so148.
O soldado que se buscava por essa poca j no era o soldado pronto, aquele cujos
traos evidenciam a aptido para o exerccio do ofcio, como no sculo XVII. Na segunda
metade do sculo XVIII, o soldado passou a ser algo que se fabrica pela disciplina, tal qual
conceituou Foucault: como conjunto de mtodos que permitem o controle minucioso das
operaes do corpo, que realizam a sujeio constante de suas foras e lhe impe uma relao
de docilidade-utilidade149.
O controle minucioso, por sua vez, deixa de lado a massa uniforme e se volta para o
indivduo, o que evidencia a estreita ligao entre a disciplina e o detalhe, em que todos os
movimentos so observados. A importncia do detalhe revelada pelos documentos que
tratam de episdios envolvendo membros da corporao militar que no se submeteram, no
se deixaram disciplinar e que foram punidos com a expulso, como podemos constatar no
ofcio expedido pelo Diretor do Arsenal de Guerra ao Governador do Estado, que solicitou
148
149

Relatrio Fora Pblica 1907 Batalho de Polcia Militar de Mato Grosso. APMT.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. p. 126.

62
inspeo de sade no aprendiz de artfice Augusto Benedito da Penha que havendo
completado a idade de 16 anos no mais poder permanecer na Companhia a que pertence por
seu mau comportamento.150
Outro episdio revela tipos de comportamentos que tambm no eram aceitos na Polcia
Militar, como foi o caso da expulso de Benedito Pacheco da Silva, que adoeceu por causa do
abuso de bebida alcolica151.
certo que nem sempre o alcoolismo desdobrava-se na expulso de um integrante da
Polcia Militar; na maioria das vezes ocorria, apenas, a abertura de algum inqurito disciplinar
para averiguao dos fatos152 .
Tiros, inquritos, expulso, priso eram as medidas usuais para conter e punir os
indisciplinados que no eram poucos , mas havia tambm aqueles que se deixavam
disciplinar. Para esses, estavam reservados os elogios. Na Polcia Militar, o atraso de sete
meses no pagamento dos soldos no gerou nenhum murmrio, muito menos revolta, conforme
trecho do relatrio anual, em 1907:

bem lisonjeira a disciplina do soldado atual [...] suportaram com muita


resignao e sem o menor murmrio um atraso de sete meses de
vencimentos com que o atual Governo encontrou a polcia e o funcionalismo
civil...
[...] os oficiais e praas foram, dada as circunstncias, forados a fazer
transaes de seus vencimentos com agiotas sem entranhas. Apenas
observou-se maior desero de praas, principalmente na guarnio de
Corumb onde a Companhia do Urucum seduziu muitas praas, pagando a
seus trabalhadores boa diria. Hoje com o pagamento em dia tem-se
verificado poucas deseres153.
150

1890, Setembro, 18, Cuiab: Ofcio do Diretor do Arsenal de Guerra ao Governador de Mato Grosso. Caixa
1890/ Mao Diretoria do Arsenal de Guerra. APMT.
151
1891, Cuiab. Ofcio do Comandante da Companhia Policial ao Presidente do Estado Manoel Jos Murtinho.
Caixa 1891- Mao: Quartel do Comando da Companhia Policial. APMT.
152
Esse foi o caso do Soldado Benedicto Antonio de Oliveira, que alcoolizado, abandonou o posto altas horas da
noite e foi espancado por dois homens. No processo do Conselho de Investigao, ao qual Benedito foi submetido,
o mesmo foi considerado culpado, mas no foi expulso da Companhia. Comando do Corpo de Polcia Militar.
Cuiab, 5 de Junho de 1896. Caixa 1897 Mao: Comando do Corpo de Polcia Militar. APMT.
153
Relatrio Fora Pblica Batalho de Polcia Militar.1907. APMT.

63
A desero motivada pelo atraso no pagamento de soldo, ao que parece, apenas
lamentada, considerando-se a dificuldade para prover o efetivo com o nmero de homens
necessrios, entretanto, percebe-se tambm a tolerncia para com todos aqueles que
desertassem para trabalhar em algum outro lugar.
O trabalho, nesse perodo, j no era visto como castigo, como o fora na poca da
escravido; passou a ser visto como uma soluo, do tipo preventivo, para crimes e desordens,
pois a vadiagem aparecia como a causadora das desordens. bvio que no era o caso de
fazer todo mundo trabalhar ao que parece, isso se restringiu parcela pobre da populao
, posto que acreditavam nas autoridades, que lhes diziam que, pelo trabalho, que se daria
a subsistncia do indivduo de forma honesta.
A esse respeito, as instrues policiais de 1892 foram muito claras. No se tratava
mais de expulsar, dos domnios da cidade, aqueles que no trabalhavam, para que levassem
suas vidas errantes bem longe da cidade154. Tampouco se tratava de encarcer-los. A
sociedade disciplinar implica em movimento, no em interrupo; a reside o aspecto positivo
dessa tecnologia poltica. Todos sero incitados ao mundo do trabalho, posto que o trabalho
exige o cumprimento rigoroso de horrio, a produtividade, a submisso ao chefe, o respeito
hierarquia, a obedincia s ordens. Neste mundo, outros atores podem ser agenciados para
fiscalizar o cumprimento de todos esses preceitos disciplinares.
Se nem o Exrcito, o Batalho, o trabalho, a escola, e nenhuma outra medida
disciplinar desse certo, ento, uma alternativa comeou a ser desenhada a partir de 1895.
Naquele ano, a Assemblia Legislativa aprovou o Projeto-Lei de implantao da Colnia

154

Em 1890. Tendo o Delegado de Polcia do 1 Termo desta Capital enviado a esta Chefatura o individuo de
nome Joo Christiano Moreira, como vagabundo e desordeiro e sendo de grande e urgente necessidade fazer
retirar desta Capital o referido individuo o qual fazia parte do grupo que promovia conflito na noite de 5 para
6 do corrente e porque tal individuo esteja no caso de assentar praa no exrcito, onde ainda pode ser til
fao por isso apresentar-vos com este, para o aludido fim.

64
Correcional, destinada prioritariamente a recolher os vagabundos e os alcolatras155. Contudo,
a aprovao da Lei no significou a sua pronta execuo; pelo contrrio, muitos anos se
passaram, at que tivssemos notcia da famosa Colnia por um peridico local:

H dezoito anos a Assemblia Legislativa estadual votou uma lei criando


uma Colnia Correcional, para escola prtica de trabalho de lavoura e
represso da vadiagem, j ento reconhecida em boa parte da populao. E
convm notar que votado o projeto e remetido sano, o Presidente Dr.
Manoel Murtinho, negou esta, devolvendo o projeto ao corpo legislativo,
presidido pelo Sr. Coronel Pedro Celestino, que o fez passar como lei, com
aprovao unnime.
Como ningum ignora, tem subsistido a necessidade da providencia tomada
por aquela lei: os lavradores carecem aprender alguma coisa que os possa
encaminhar melhor no exerccio da laboriosa profisso, e os desocupados,
seja l quais forem, devem ser retirados do vcio e da perdio, regenerando
os sujeitos ao estabelecimento de educao proveitosa [...] A represso da
vadiagem tambm pedida de todos os pontos do estado pelas autoridades
policiais em permanente dificuldades para atenderem as desordens
provocadas pelos vagabundos...156

Em Mato Grosso, em fins do sculo XIX, a lista de espcimes dos quais a polcia
estava encarregada, ser aumentada. Um novo personagem-problema ir emergir em Cuiab.
Algum que no pde ser recolhido s fileiras do exrcito, nem polcia militar, ao mundo do
trabalho, escola e a nenhuma instituio existente na capital mato-grossense naquele
perodo. Aquele que representa a imagem destorcida da sociedade, o seu espelho: o louco.
Este personagem, que pde, durante muito tempo, gozar de uma certa tolerncia
social e de uma relativa liberdade, teve, segundo Heitor Rezende, esta liberdade cerceada e
seu seqestro exigido, levado de roldo na represso a indivduos ou grupos de indivduos
que, por no conseguirem ou no poderem se adaptar a uma nova ordem social, se
constituram em ameaa a esta mesma ordem157.

155

Mensagem do Presidente do Estado de Mato Grosso, enviada Assemblia Legislativa. 1896. Disponvel em:
<www.crl.uchicago.edu/info/brazil>.
156
Jornal O Comrcio. 08/09/1910. Colnia Correcional Agrcola. Microfilme. Rolo 60. NDHIR/UFMT.
157
REZENDE, Heitor. Poltica de sade mental no Brasil. p. 29.

65
As circunstncias que determinaram a loucura como problema no Brasil, mais
especificamente na cidade do Rio de Janeiro, nas primeiras dcadas do sculo XIX, foram
semelhantes s da Europa do sculo XVI. Em ambos os casos, a deciso de encarcer-los
precedeu a construo da idia de desordem e da paz social ameaada para justificar o prprio
isolamento. Na Europa, o Grande Enclausuramento, como denominou Foucault, o
aprisionamento de devassos, profanadores do sagrado, libertinos e aquele que nos interessa
nesse trabalho, os loucos, nos antigos leprosrios assinala o nascimento de uma tica do
trabalho em que este moralmente concebido como o grande antdoto contra a pobreza [...]
portanto, um fenmeno eminentemente moral158, considerando que o louco no recebia no
Hospital Geral

159

, lugar para onde era levado, nenhum tipo de tratamento mdico. No Brasil,

as tcnicas de poder, como as disciplinas foram adotadas ainda no Imprio, muito antes do
fenmeno da industrializao ou de condies econmicas objetivas.
O Rio de Janeiro parece ter servido de modelo para Cuiab e, possivelmente, para as
demais capitais de provncia do pas onde os loucos, marginais, miserveis e vagabundos
tornaram-se alvos privilegiados da ao dos governantes, que empreenderam uma verdadeira
varredura destes nos lugares pblicos, j que se tornaram sinnimos da desordem urbana,
sendo conduzidos s cadeias pblicas e s Santas Casa de Misericrdia.
Os miserveis doentes continuavam sendo acolhidos na Santa Casa de Misericrdia,
instalada no comeo do sculo XIX, exatamente com a finalidade de receber os doentes
pobres da capital, vilas e povoaes prximas. esse o destino que comea a ser reivindicado

158

MACHADO, Roberto. Cincia e saber. A trajetria da Arqueologia de Foucault. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal,
1981. p. 64.
159
Cf. FOUCAULT, Michel. Histria da loucura, em que o autor fala do Hospital Geral, uma instituio
francesa que abrigou todos os tipos que no se ajustavam ordem, mas desprovida do carter mdico
teraputico, onde a figura do mdico era solicitada apenas nos casos de doena, quando esta configurava em
ameaa de epidemia.

66
para os alienados, que no pode mais usufruir o convvio familiar, em face de um
comportamento agora considerado imprprio e tido como atrasado.
Proliferaram os pedidos de internao dos alienados na Santa Casa de
Misericrdia, sobretudo oriundos da autoridade policial da capital, e tambm do interior. A
aceitao dos alienados na Santa Casa, por sua vez, se transforma em caso de polcia e
interveno do Governo do Estado. Muitos dos pedidos feitos nesse sentido eram recusados
sob a alegao de falta de espao e estrutura adequada para esse fim. Curioso notar que os
pedidos de internao de insanos se apiam em argumentos distintos. A maioria deles de
ordem moral. Simples interdio ou aprisionamento que no prescreve nenhuma
medicalizao, nenhuma teraputica, e prope somente que se retire de circulao aquele ser
estranho. Mas encontramos pelo menos um pedido que utiliza a expresso tratamento:

Tendo o Delegado de Polcia do Termo da cidade de Pocon me participado,


em ofcio de 6 do corrente, por mim recebido ontem a noite, que ali existe
vagando pelas ruas um indivduo de nome Plcido Vieyra da Costa, cujo
procedimento tem perturbado a ordem e sossego pblico e, sendo evidente,
pelo que se expe aquela autoridade, que, esse indivduo est sofrendo de
alienao mental, pois s assim se poder explicar a srie de desatinos, que
tem cometido, resolvi mandar conduzi-lo para o estabelecimento da Santa
Casa de Misericrdia, onde pode ser tratado, com cuidado daquela
enfermidade. 160

Cadeia ou Santa Casa de Misericrdia so as duas opes de locais de internao


do alienado mato-grossense. E no se trata de pensar nessas opes como opostas ou
excludentes: a diferena entre uma e outra restringe-se apenas nomenclatura, j que ambas
no passam de meros locais de aprisionamento, ainda que o simples fato de recolher os loucos
em um espao diferente dos criminosos na cadeia , e os doentes na Santa Casa j

160

1891, Outubro, 9, Cuiab.Ofcio n. 122 do Chefe de Polcia Joo Marino de Souza ao Presidente do Estado
Dr. Manoel Jos Murtinho.(providenciado em 09/11/1891). APMT.

67
seja o relevante indcio de uma condio quase-mdica161. No esse, porm, o ponto
importante dessas variaes de aprisionamento e de motivaes. O que h de importante
por trs disso a conscincia que j se produziu da loucura. A cadeia pblica e a Santa Casa
representam essa conscincia, de que a loucura deve ser aprisionada.
Enganam-se, porm, aqueles que pensam que os internamentos eram prerrogativas
exclusivas da polcia. Nos casos envolvendo crimes ou delitos praticados por algum alienado,
eram os magistrados quem determinava o internamento destes162, como na liminar abaixo, em
que o Juiz do Tribunal da Relao Concede habeas-corpus a Antonio Bernadino de Souza e
determina a remoo do paciente da Cadeia Pblica de Cceres para o Hospcio Nacional dos
Alienados do Rio de Janeiro163.
Nesse e nos demais casos que envolviam crime ou delito, a internao recorria
cincia mdica apenas como acessrio, espcie de ritual sumrio, pois o exame mdico
restringia-se to-somente aplicao de perguntas elaboradas pelo juiz. Nos demais casos, era
suficiente a determinao de aprisionamento dos alienados feita pela autoridade policial.
Demorariam ainda mais trs dcadas at que se construsse um local para
recolhimento dos alienados. Essa situao, aliada resistncia da Direo da Santa Casa em
receber os insanos imediatamente, fazia da cadeia o destino preferencial desses indivduos e,
na falta de boas cadeias em todos os municpios de Mato Grosso, recorria-se cadeia da
capital, local este em que a distribuio interna de seus espaos j existia justamente para
facilitar a vigilncia sobre aqueles que ali se encontravam recolhidos.

161

FOUCAULT, Michel. Histria da loucura. p. 114.


H alguns processos crimes do Tribunal da Relao de Mato Grosso que tratam de delitos ou crimes
praticados por alienados, no perodo compreendido entre 1890 e 1929, mas optei, neste trabalho, por no
enveredar por esse caminho, que trata da inimputabilidade etc.
163
Liminar do Tribunal da Relao-1921, Junho, 16, Cuiab. APMT.
162

68
[...] Os presos acham-se ali divididos por classes e sexo, conforme preceitua
o Regulamento em vigor, servindo de priso aos sentenciados o salo
denominado 1 priso e aos no sentenciados, a 2 contgua a 1, ficando a 3
priso desocupada por ter sido julgada sem segurana desde que foi
arrombada o ano passado pelo preso Luiz Marciano dAlvarenga.
H igualmente naquele estabelecimento mais duas prises sendo uma para
mulheres e outra para presos correcionais, alm da Custdia164 .

A diviso por classe e sexo abriu o caminho para que, tempos depois, se conjugasse
num mesmo aparelho um duplo fundamento: jurdico-econmico por um lado, tcnicodisciplinar por outro165 .
Quanto ao recolhimento de alienados cadeia pblica, esta era uma medida que no
significava a soluo do problema. Muitas vezes, o que ocorria era a produo de um outro
problema, j que este tipo de preso poderia causar danos edificao e implicava em aumento
de vigilncia sobre eles, conforme o relato do delegado de polcia, em 1895.

Cumpre-me comunicar-vos mais, que o alienado Manoel do Carmo que se


acha detido na Cadeia pblica desta Cidade, conseguiu arrombar a priso em
que estava, fazendo um grande buraco junto da porta e por onde conseguiu
igualmente sair ontem de manh, para fora da referida priso. To logo tive
conhecimento deste fato providenciei para que o dito alienado, em falta de
outros recursos, ficasse sob a vigilncia da guarda daquele estabelecimento,
e assim tem se conservado ele at hoje, sem haver entretanto alterao
alguma166 .

Os estragos causados pelos alienados evidenciavam as dificuldades financeiras para a


manuteno da cadeia, que tinha como despesas a manuteno fsica do prdio e a proviso
(alimentao e vesturio) dos presos pobres. As condies destes eram tidas como deplorveis
e serviam de argumento para pedidos de verbas: lastimvel o estado de alguns presos que
s possuem verdadeiros trapos, entretanto no ficaria to pesado municipalidade a

164

Relatrio da Fora Pblica. 1893. Secretaria de Policia de Cuiab. APMT.


FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. p. 208.
166
1895, Abril, 1, Cuiab. Ofcio n. 2 do Delegado de Polcia Agostinho [...] de Azeredo ao Presidente Manoel
Jos Murtinho. Caixa 1895 - Mao: Repartio de Polcia. APMT.
165

69
designao de uma pequena verba para atender a esse ato humanitrio reclamado pela
higiene167.
Entretanto, o custeio de presos ficou ainda mais complicado com a transferncia para
a cadeia da capital de presos de outros municpios. A reclamao do chefe de polcia com
relao aos gastos, apontava tambm para a questo da cidade e, nesse caso mais
precisamente, para a responsabilidade ou a despesa de cada cidade com relao aos seus
cidados: Pesa este encargo sobre a municipalidade da Capital, no obstante a maior parte
dos municpios do estado mandarem para a cadeia desta cidade os seus presos e assim carrega
ela com despesas que em grande parte pertencem a outras Cmaras fazer.
O recolhimento dos alienados cadeia, no entanto, no era visto com bons olhos pela
autoridade policial, conforme observou o chefe de polcia, por ocasio do recolhimento de
Jos da Cruz Ferreira mesma:

[...] no meu relatrio do ano passado tratei da edificao de uma casa prpria
para receber esses infelizes, e hoje mais me conveno da necessidade
urgente dessa medida. Vs que tendes se mostrado solicito em promover a
felicidade desta Ptria, que vos viu nascer, no deveis cessar os ouvidos aos
gemidos dos que sofrem, assim pois, espero tranqilo pelas vossas
providncias, visto no poder esta Chefatura de pronto remediar o mal, a que
lamenta...168

Infelizes. Essa a designao utilizada pelo chefe de polcia ao se referir aos


alienados, cuja tutela, a ele conferida, parece no mais estranhar. Todavia, as opinies
emitidas pelo dito chefe sugerem que ele j tivesse conhecimento sobre o destino adequado

167
168

Relatrio da Fora Pblica. Cuiab, 02/01/1900. APMT.


1894, Dezembro, 21, Cuiab.Ofcio n. 97 do Chefe de Polcia interino Pedro Antunes de Souza Ponce ao
Presidente Manoel Jos Murtinho. Caixa 1894 - Mao: Repartio de Polcia do Estado de Mato Grosso. APMT.

70
para os desatinados o recolhimento , ainda que a denominao Asilo ou Hospcio no
tenha sido empregada.
O discurso do chefe de polcia parece ter brotado de pginas da literatura, j que este
reclama ateno do Governador com relao aos alienados, tanto quanto o Dr. Simo
Bacamarte169 em discurso proferido na Cmara de Vereadores de Itagua, em que se voltou
contra os Vereadores e os acusou de cometer

Entre outros pecados [...] tinha o de no fazer caso dos dementes. Assim
que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na prpria casa, e, no
curado, mas descurado, at que a morte vinha defraudar do benefcio da
vida; os mansos andavam solta pela rua.170

A piedade tambm recorrente no argumento usado pelo Dr. Simo Bacamarte para
obter a concesso de criao da Casa Verde, mas esta se restringe a mera retrica j que, no
decorrer da histria, Bacamarte revelar a ambio de colocar o Brasil no topo do
conhecimento cientfico na rea psquica, recanto que, segundo este, to pouco explorado ou
quase inexplorado no pas e terreno propcio para a realizao de experimentos diversos.
Nos primeiros anos da Repblica, o Hospcio Nacional dos Alienados do Rio de
Janeiro vivia um momento delicado. Houve mudana na direo do hospital, que ficou a
cargo de mdicos, em substituio s freiras religiosas que foram afastadas. Tal mudana teve
como justificativa a necessidade de introduzir, na instituio, pessoas com conhecimento
cientfico, j que as aflies psicolgicas eram doenas, e como tal assim deveriam ser
tratadas. A alienao mental passaria a ser problema da cincia e no mais da caridade. Alm
disso, pesava sobre as freiras a acusao de praticarem barbaridades contra os internos, que

169

Dr. Simo Bacamarte o personagem de Machado de Assis, o alienista criador da Casa Verde, um hospcio
construdo pelo mesmo em Itagua, para recolher todos os loucos da cidade. In: ASSIS, Machado de. O
Alienista. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
170
ASSIS, Machado de. O alienista. p. 9-10.

71
eram conduzidos pela polcia ao Hospcio Nacional de forma to indiscriminada, que no era
raro confundir um mero miservel com um alienado171.
Isso indica que o problema para a modernidade era o indivduo de aspecto
repulsivo no espao pblico. Maltrapilho ou louco tanto faz; seu aparecimento nas ruas ter
curta durao, j que logo ser dali retirado e trancafiado em algum lugar. Foucault observou
que, na Frana, logo aps Revoluo Francesa, foi no Hospital Geral e demais instituies
totais que Pinel encontrou todos os loucos e deu incio elaborao de uma classificao da
loucura. No Brasil, em fins do sculo XIX, a medicina psiquitrica vai gradualmente se impor
como saber (com seus efeitos de poder), reivindicando a extenso de seus domnios e, por
conseguinte, a definio dos limites de atuao das vrias instituies existentes no pas,
reivindicando para si o cuidado dos loucos172.
A indiscriminao, erro, ou confuso cometida pela polcia, por sua vez, no cessou
com a mudana de direo, apesar dos protestos dos mdicos e alienistas, que passaram a
exigir que o internamento no hospcio ocorresse mediante o diagnstico feito atravs de
exame mdico. Tentava-se com isso impor o saber mdico ignorncia da polcia, j que uma
espcie de triagem passa a fazer parte do protocolo de internamento no Hospcio Na cional e
servir de modelo para as demais instituies psiquitricas instaladas em todo pas. Essa
triagem, at ento feita pela polcia, que determinava quem deveria ser retirado da rua, passa a
ser realizada pelos mdicos, que tomam para si aqueles que interessam cincia, deixando os
demais sob a gide da truculncia policial, nascida da ignorncia, isso, claro, na viso dos
detentores do saber.
Contudo, na dcada de 1920, tal prtica ainda persistia, conforme denunciou o
escritor Lima Barreto, que foi internado duas vezes no hospcio:
171
172

Relatrio Anual do Hospcio Nacional dos Alienados. Ministrio do Interior. 1891.


Cf., no terceiro captulo, a respeito do nascimento da psiquiatria.

72
A polcia, no sei como e por que, adquiriu a mania das generalizaes, e as
mais infantis. Suspeita de todo sujeito estrangeiro com nome arrevesado,
assim os russos, polacos, romaicos so para ela forosamente cftens; todo o
cidado de cor h de ser por fora um malandro; e todos os loucos ho por
ser por fora furiosos e s transportveis em carros blindados.
Os super-agudos homens policiais deviam perceber bem que h tantas
formas de loucura quanto h de temperamentos entre as pessoas mais ou
menos ss, e os furiosos so exceo; h at dementados que, talvez, fossem
mais bem transportados num coche fnebre e dentro de um caixo, que
naquela antiptica almanjarra de ferro e grade173 .

O retrato da loucura que Lima Barreto apresenta no seu Cemitrio dos Vivos muito
mais esclarecedor do que a imagem equivocada da polcia, que, ao que parece, s entende a
loucura pelo bizarro, pela deformao e pela fria, mas Barreto esclarece que havia tambm
outras impresses sobre a loucura: A loucura se reveste de vrias e infinitas formas;
possvel que estudiosos tenham podido reduzi-las em uma classificao, mas ao leigo ela se
apresenta como as rvores, arbustos e lianas de uma floresta: uma poro de coisas
diferentes174.
sobre os alienados que vagueiam sem rumo, ou num outro rumo, ritmo e tempo,
que a polcia ser acionada. ainda Lima Barreto quem nos dir o que deve nos assustar na
loucura:

Vista assim de longe, a noo do horror que se tem da loucura no parte da


verdadeira causa. O que todos julgam que a coisa pior de um manicmio o
rudo, so os desatinos dos loucos, o seu delirar em voz alta. um engano.
Perto do louco, quem os observa bem, cuidadosamente, e une cada
observao a outra, as associa num quadro geral, o horror misterioso da
loucura o silncio, so as atitudes, as manias mudas dos doidos.
H indivduos que se condenam a um mutismo absoluto, que no conversam
com ningum, no dizem palavra anos e anos. Destes, uns vivem de um lado
para outro, outros deitados; ainda outros fazem gestos, e certos outros
prorrompem em berreiros175.

173

BARRETO, Lima. O cemitrio dos vivos. p. 151-152.


Ibid., p. 186.
175
Ibid,. p. 184.
174

73
Bobo, bob, bobochera...176
Durante muito tempo, o louco pde gozar do convvio da famlia, vagar pelas
estradas, circular pelas ruas das cidades e receber os cuidados da famlia e dos citadinos, sem
ser barrados por quem quer que fosse. Entretanto, no final dos oitocentos, em Cuiab, essa
situao comear a ser alterada. Pesar sobre as famlias uma zona de silncio. Ningum
falar de seus loucos, afinal ele no motivo de orgulho e, sim, de vergonha. Ele o
obstculo do progresso e da civilizao. Isso no significa que no tivessem ocorrido
resistncias e que todos os alienados tenham sido trancafiados na cadeia, na Santa Casa ou,
posteriormente, no Asilo dos Alienados. E esta uma situao que pde ser verificada na
capital mato-grossense no perodo, bastando, para isso, confrontar o nome dos alienados,
dementes e idiotas que aparecem no recenseamento de 1890, com os nomes dos alienados que
foram posteriormente trancafiados. Quanto s cidades do interior e zona rural, possvel
inferir que essa resistncia foi muito maior que na capital, considerando que muitas famlias
tinham seus bobs integrados na vida domstica, com suas prprias tarefas, e que alguns at
mesmo eram figuras pblicas.
Este, porm, um outro tipo de silncio, diferente daquele tratado por Lima Barreto,
e que se abater apenas sobre as famlias dos alienados. A partir do recenseamento de 1890,
em que os alienados emergem como categoria defeituosa, outros textos faro meno de sua
existncia incmoda, e transbordar nos ofcios, relatos e relatrios policiais, pelas desordens
que provocam nas ruas, nas atitudes estranhas, na exploso enfurecida, e que serviro de
justificativa para sua interdio pela polcia.

176

Essas so as expresses populares empregadas em Cuiab na atualidade, pelos cuiabanos quando querem se
referir a algum louco. No jornal O Comrcio, de 21/04/1910, encontramos uma piada de poca sobre as
touradas cuiabanas, onde uma garota se dirige outra perguntando Ot qui oc t falando, bob?

74
ainda Lima Barreto, quem nos vai apresentar a viso de alguns sobre a atuao da
polcia: No me incomodo muito com o hospcio, mas o que me aborrece essa intromisso
da polcia na minha vida.177
Entretanto, eventualmente, a intromisso da polcia era solicitada pela prpria
populao para resolver casos corriqueiros, conforme noticiou o jornal O Comrcio, sobre um
episdio envolvendo dois vizinhos e um mouro178, e que demonstra que a populao j
estava inserida numa nova ordem, a ordem da disciplina.
No mesmo peridico, em outras datas, a polcia advertida a cumprir o seu papel:

Pedem-nos para que reclamemos do Sr. Desembargador Chefe de Polcia,


providncias no sentido de evitar-se que indivduos desocupados, em turmas
e aos magotes alta noite, continuem a praticar toda a sorte de desordens e
atentados, disparando tiros, pedradas e danificando casa particulares e
edifcios pblicos.
Contra tais indivduos dos quais alguns se apresentam vestidos de saia, urge
a aplicao rigorosa do devido corretivo [...]179

Em outro episdio, o redator do mesmo jornal, no apenas chama a ateno da


polcia sobre os desordeiros, como determina a esta autoridade o que fazer:

Freqentemente indivduos de m nota divertem-se em perturbar o sossego


pblico dando tiros de carabina e revlver s dez horas.
Ainda anteontem, pelas duas horas da madrugada, muitos tiros foram dados
para o lado do Rosrio e do cemitrio.
polcia cumpre deitar a mo a esses vagabundos, fazendo-os assinar termo
de bem viver.180

177

BARRETO, Lima. O cemitrio dos vivos. p. 33.


Jornal O Comrcio. Dcada de 1910. Na matria, o redator parabeniza a postura da autoridade policial, que
no se deixou sugestionar pela prtica, entre ns muito comum, da polcia intervir em assuntos para o qual no
tem em absoluto competncia Microfilme. Rolo 60. NDIHR/UFMT.
179
Jornal O Comrcio, 30/06/1910. Microfilme. Rolo 60. NDIHR/UFMT.
180
Jornal O Comrcio, 26/05/1910. Microfilme. Rolo 60. NDIHR/UFMT.
178

75
Por estes episdios, possvel inferir que, para a populao, a ordem pblica e
disciplina no incio do sculo XX j se apresentam como dimenses desejadas da vida urbana;
podemos observar, em uma outra escala, a disciplinarizao progressiva, em que o cidado j
incorporou a idia de cidade disciplinada e, portanto, est mergulhado na nova ordem,
sabendo muito bem quando e a quem recorrer ao constatar desordens e indisciplinas. As
intervenes da polcia j no eram mais compreendidas como intromisso, desde que se
restringisse a estas questes e, sobretudo, s ocorrncias do espao pblico. Quando, porm, a
polcia civil adentrava o interior de outras instituies, como foi o caso de um episdio
envolvendo as polcias civil e militar, isso provocava algumas rusgas no interior do aparelho
estatal, demonstrando que os conflitos sobre os campos de atuao no se restringiam queles
provocados pela arrogncia do saber mdico, tido como superior polcia Foi isso que
ocorreu em Cuiab, quando o chefe de polcia determinou o desligamento de um soldado do
Batalho de Polcia Militar, alegando estar o mesmo apresentando indcios de sofrimento
mental. Na ocasio, o comandante do Batalho no titubeou em recorrer ao Regimento para
lembrar ao chefe de polcia os limites de sua atuao181 .
Os conflitos entre as polcias militar e civil se manteriam no incio do sculo
seguinte. Segundo Ribeiro,

[...] no incio do sculo XX a polcia j exercia as funes administrativas e


judicirias que, teoricamente, so bastante distintas. Naquela poca havia a
polcia militar que deveria acumular apenas as funes judicirias e a
polcia civil, que deveria se limitar a exercer as funes administrativas. Na
prtica, alm de estarem em constante disputa de autoridade e competncia,
as duas polcias acabavam exercendo as duas funes indistintamente182.

181

Quartel do Comando da Companhia Policial Cuiab, 2 de maro de 1891 - do Capito Comandante


Jos dos Santos Ferreira. Of. N. 81. APMT.
182
RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. Cor e criminalidade (...) p. 36-37.

76
Conflitos parte, o certo que a polcia estendeu seu raio de ao para todos os
lugares. Cuidando dos vivos e dos mortos, zelando pelo estabelecimento da ordem, fosse por
meio de instrues, portarias ou decretos, ou qualquer outro instrumento disciplinador.
Segundo Amaral, a disciplina penetrara no exrcito, nas escolas, nas reflexes sobre ttica,
na aprendizagem, na educao e na ordem das sociedades183.
A populao, por sua vez, foi o seu grande alvo, e se nem todos se submeteram
disciplina, no foi por falta do uso de tecnologia de poder, nem por ignorarem a
multiplicidade de tipos existentes. A preocupao com a populao no obedeceu a nenhum
apelo humanitrio e, sim, sua importncia para o fortalecimento do Estado. Por essa razo,
todos os fenmenos a ela relacionados vo se constituir em objetos para o saber e alvos para
a relao de poder. Sade, longevidade, natalidade, atitudes, produo, fertilidade, etc, sero
objetos das mais variadas tcnicas e de interminveis campanhas184.
Foucault quem nos demonstra que, ainda que o problema da populao no seja
novo nas sociedades ocidentais, o sculo XVIII, na Europa, possibilitou sua generalizao e
sua politizao. No Brasil, um sculo depois, vemos que um poder sobre a vida, em seus
fenmenos de conjunto, passa a ser exercido, enquanto antes havia somente descontnuas
incitaes para modificar uma situao pouco conhecida. H a aplicao de novos tipos de
saber e aparelhos de poder permitindo a manipulao e a interveno direta na populao, o
que se constitui como particularidade do final do sculo XIX. Emergncia de novos tipos de
saber e poder, que Foucault denomina de tecnologia biopoltica. Tecnologia da observao e
do exame das populaes, nascimentos, bitos, medio estatstica, mapeamento dos
fenmenos, ou seja, tudo que possa ocasionar uma subtrao de foras da populao e,
conseqentemente, do Estado.
183

AMARAL, Maurilia Valderez Lucas do. Constituio do sujeito, governamentalidade e educao. 1998.
Dissertao (Mestrado em Educao) Instituto de Educao, UFMT, Cuiab. p. 44.
184
Ibid., p. 56.

77
Percebe-se, ento, o desenvolvimento de um poder em que a preocupao recai sobre
a sade da populao, que privilegia o prolongamento da vida tanto quanto mais for possvel e
sempre mais desejvel. Afastando todos os acidentes, corrigindo suas incapacidades.

Poder este que serviu de base para a construo da nao e afirmao da


burguesia como classe dominante. A sexualidade, o racismo, a
degenerescncia, a medicina, a norma e a famlia so analisadas como
dispositivos privilegiados que possibilitam seu exerccio na trama mais tnue
da sociedade.185

assim que chegamos ao conceito de biopoder, elaborado por Foucault, e que pode
ser mais bem compreendido nas suas palavras:

Dizer que o poder, no sculo XIX, tomou posse da vida, dizer pelo menos
que o poder, no sculo XIX, incumbiu-se da vida, dizer que ele conseguiu
cobrir toda superfcie que se estende do orgnico ao biolgico, do corpo
populao, mediante o jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma
parte, e das tecnologias de regulamentao de outro186.
As disciplinas do corpo e as regulaes da populao constituem os dois
plos em torno dos quais se desenvolveu a organizao sobre a vida187.

A aplicao de tais tecnologias implicar, ao Estado, lanar mo de outros agentes,


alm da polcia, para regular e controlar as populaes, desenvolvendo um conjunto de
tcnicas de poder direcionadas aos indivduos. nesse contexto que vemos o saber mdico
alm de outros no menos importantes, mas que no interessam neste trabalho
desempenhar seu papel, e sobre suas prticas que visam higienizao da cidade e sua
populao que vamos tratar no prximo captulo.

185

CALIMAN, Luciana Vieira. Dominando corpos, conduzindo aes: Genealogia do biopoder em Foucault.
Dissertao (Mestrado em Sade Coletiva). 2001. Instituto de Medicina Social. Rio de Janeiro, UFRJ.
Disponvel em <www.pepas.org.com>.
186
FOUCAULT, Michel. Aula do dia 17 de Maro de 1976. In: Em defesa da sociedade. Martins Fontes. So
Paulo. 2002. p. 302.
187
FOUCAULT, Michel. Histria da sexualidade. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal.1999. v. I, p. 131.

78
3 A CIDADE HIGIENIZADA

Sete dias de viagem e o paquete Rio Verde188 finalmente atraca no cais do Porto. Algumas
pessoas se aproximam, mas apenas o Chefe de Polcia sobe na embarcao. Conversa com o Comandante
e logo outro homem embarca tambm. um mdico. O Comandante informa os passageiros sobre a
inspeo de sade. Medida desagradvel, mas necessria, sobretudo por causa dos boatos de alguns casos
de varola em Corumb189. O mdico inspeciona primeiro a tripulao e depois seus passageiros. A
presena das autoridades funciona como uma espcie de barreira, chamada pelos governantes de cordo
sanitrio, que impede a sada e entrada de qualquer pessoa suspeita de contaminada dos vapores,
lanchas e chatas. Sinal de civilizao, at parece o Rio de Janeiro... L fora, a cidade. Mas, da
embarcao, a nica vista possvel a do Porto, espcie de prtico da cidade, j que o rio sua estrada
e o cais, parada obrigatria para todos os que chegam a Cuiab. O Porto um lugar mutante. De dia, o
ritmo frentico das trocas, movimento intenso, barulho... As pessoas cruzam os arcos do Mercado do
Peixe, um belo edifcio neoclssico, carregando tudo quanto tipo de mercadoria, inclusive o prprio
peixe, pescado ali mesmo, na barranca do rio Cuiab ou em algum outro ponto de pesca do mesmo rio.
Nas imediaes do mercado, as ruas esto enlameadas, bem diferentes daquelas do primeiro distrito,
caladas com pedra cristal190, e que, quando molhadas, sob a luz do crepsculo, adquirem a aparncia de
p-de-moleque recm sado dos fornos de fundo de quintal. Mas no Porto, com as chuvas, as ruas
parecem mesmo melado mole, circundando as casas de moradia, algumas tavernas e bolichos191. As
construes maiores e mais novas so, na sua maioria, filiais das casas comerciais de Corumb e Cceres.
No interior destas, homens de negcio, trajados com smartismo192, evidenciam a prosperidade da
atividade. Comea a escurecer. As portas das lojas so fechadas e o movimento desaparece. como se a
escurido tragasse de uma s vez o barulho, o movimento, as pessoas. O Porto da noite um outro Porto.
s vezes, alguma sombra sugere a presena de algum, mas quem se atreve a perambular em lugar to
escuro e silencioso? Um ladro? Um vagabundo? Ou um louco? Os postes de iluminao no passam de
enfeite dos tempos modernos, j que, desde que foram instalados, nunca funcionaram plenamente193
se bem que, nas principais ruas do primeiro distrito, a famosa iluminao eltrica mal d conta de
188

O viajante que partia de Corumb, com destino Capital da Provncia, encontrava como alternativa de
empresa a Cia. Lloyd Brasileiro [...] Normalmente, a durao dessas viagens era de seis a sete dias, podendo
levar at doze, caso o Rio Cuiab apresentasse baixo volume de gua. In: REYNALDO, Ney Iared.
Comrcio e navegao no rio Paraguai (1870-1940). Cuiab: Editora UFMT, 2004. p. 109.
189
Ofcio do Inspetor de higiene Dr. Dormevil Jos dos Santos Malhado ao Presidente do Estado de Mato
Grosso, em que informa a existncia de dois casos de varola em Corumb. 07/12/1891. Caixa - 1891 - Mao:
Inspetoria de Higiene. Fundo: Sade/ APMT.
190
No final do sculo XIX e incio do XX, as ruas do primeiro distrito de Cuiab receberam o calamento de
pedra cristal. Lata 1911. APMT.
191
Pequeno comrcio varejista, existente at hoje em Cuiab, sobretudo nos bairros mais antigos, onde se podem
encontrar produtos variados.
192
Expresso inglesa utilizada para atribuir elegncia ao vesturio.
193
As reclamaes sobre a falta de iluminao nos arredores de Cuiab aparecem com freqncia nos peridicos
locais da poca, a exemplo da nota publicada na edio do dia 5/5/1910, pelo Jornal O Comrcio, que diz o
seguinte: a falta de iluminao tornam-nas (as ruas) intransitveis a noite, a menos que o transeunte no se
arrisque a uma queda. Microfilme Jornal O Comrcio - Rolo 60. NDIHR/UFMT.

79
iluminar mais do que um metro alm do poste. Algum j sugeriu o retorno da iluminao a leo de
peixe, mas dizem que quem pensa assim no quer o progresso. O silncio do lugar s quebrado pelo
barulho irritante dos mosquitos, que parecem reinar absolutos nas margens do rio em poca de cheia.
Alis, muito mosquito acaba sendo um bom aviso para a navegao: sinal de que o rio continua enchendo.
O nico movimento que ainda persiste no Porto da noite o do paquete. O Chefe de Polcia e o mdico
encerram, satisfeitos, o trabalho, afinal no h ningum doente, e se despedem do Comandante. A
embarcao est liberada, finalmente os passageiros podero pisar em terra firme... Um alvio para
quem retorna para casa, para os que vieram a negcios ou ainda para aqueles que vm embalados pelo
sonho de progresso, de fazer fortuna na terra que tudo d e onde s faltam braos...

Homem de cincia, s cincia.


Nada o consterna fora da cincia.
Simo Bacamarte, 1882194

No eram apenas pessoas e mercadorias que desembarcavam no cais do Porto de


Cuiab, em fins dos oitocentos, aps a famigerada Guerra do Paraguai. Das embarcaes,
chegavam modas de todos os tipos e gostos. Desde aquelas que podiam ser vistas em dias de
festa nos trajes apurados das moas, senhoras, rapazes e homens; ou nos detalhes das novas
edificaes: uma escada, um guarda-corpo de ferro trabalhado, um belo lustre, ou at algum
mvel; ou ainda nos azeites e outras iguarias que chegavam do Velho Mundo e forneciam
certa sofisticao aos jantares e almoos das famlias abastadas, em dia de comemorao. Mas
outra a moda de que nos interessa tratar. A moda que aportou tambm em Cuiab era a
cincia.
Falo em moda, porque a cincia no chegava em formato de teses ou artigos; ela
vinha mesmo na forma fast food, pronta para o consumo, embalada em manuais e conselhos,
rapidamente publicados nos inmeros peridicos locais, aparentando uma aplicabilidade

194

Citado em SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das raas.

80
imediata, uma aceitao sem reservas, ou ainda uma nsia de ficar em dia com mais um signo
do progresso. Decididamente, a cincia estava chegando a Cuiab.
Segundo Lilia Schwarcz,

[...] no caso brasileiro, a sciencia que chega ao pas em finais do sculo no


tanto uma cincia de tipo experimental [...] O que aqui se consome so
modelos evolucionistas e social-darwinistas originalmente popularizados
enquanto justificativas tericas de prticas imperialistas de dominao195.

ainda Schwarcz que complementa:

Nas grandes cidades a entrada desse iderio cientificista difuso se faz sentir
diretamente a partir da adoo de grandes programas de higienizao e
saneamento. Tratava-se de trazer uma nova racionalidade cientfica para os
abarrotados centros urbanos, implementar projetos de cunho eugnico que
pretendiam eliminar a doena, separar a loucura e a pobreza196.

Mas que prticas saneadoras e higienizadoras foram adotadas em Cuiab na primeira


Repblica? De que forma essas prticas estavam articuladas com o projeto civilizatrio?
Sobre quais idias essas prticas estavam aliceradas? Quando a loucura ou o louco passa a
ser um problema mdico psiquitrico? Quais as condies de possibilidades histricas disso?
Quais foram os dispositivos discursivos e no discursivos adotados?
sobre essas questes que iremos tratar neste captulo, que est dividido em duas
partes. Na primeira, abordaremos as prticas de higienizao e saneamento adotadas na
capital, sobretudo aquelas que tratam das endemias, contidas nos relatrios, mensagens,
ofcios, atestados e alguns peridicos. A problemtica da loucura, por sua vez, ser tratada na
segunda parte.
195

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das raas. Cientistas, instituies e questo racial no Brasil. (18701930). So Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 30.
196
Ibid., p. 34.

81
Em Cuiab, o programa de higienizao e saneamento foi adotado com certa
dificuldade e muitas resistncias, considerando-se que nem toda novidade foi bem recebida
pelos cuiabanos. Nada que se compare, claro, ao episdio de repdio vacinao no Rio de
Janeiro, no incio do sculo XX, que ficou conhecido como Revolta da Vacina197.
A preocupao sanitria, em fins do sculo XIX, muda de direo. Desloca-se o
olhar das famosas epidemias os chamados dramas temporrios da morte multiplicada
para o problema da morbidade, ou ainda para o problema das endemias, conceituada por
Foucault como

[...] a forma, a natureza, a extenso, a durao, a intensidade de doenas


reinantes numa populao. Doenas mais ou menos difceis de extirpar e que
no so encaradas como as epidemias, a ttulo de causas de mortes mais
freqentes, mas como fatores permanentes e assim que as tratam de
subtrao das foras, diminuio do tempo de trabalho, baixa de energia,
custos econmicos, tanto por causa da produo no realizada quanto dos
tratamentos que podem custar. Em suma, a doena como fenmeno de
populao198.

Trata-se, nesse momento, do aparecimento de uma nova tecnologia de poder, no


mais centrada no corpo ou no corpo individual, como foi o caso da tcnica de poder
disciplinar. Essa nova tecnologia no exclui a tcnica disciplinar sobre a qual j tratamos
no captulo anterior , mas a embute por vrias razes, sobretudo porque a nova tecnologia
de outro nvel, est noutra escala, tem outra superfcie de suporte e auxiliada por
instrumentos totalmente diferentes199. Essa nova tcnica de poder no-disciplinar se aplica
vida dos homens, multiplicidade dos homens, no do homem-corpo, como foi o caso da
disciplina, mas do corpo espcie, sujeito a todo tipo de processos prprios da vida, como o
nascimento, a morte, a doena etc. Ou, se preferirem, no se trata mais da anatomopoltica do
197

Cf., a respeito da Revolta da Vacina, SEVCENCKO, Nicolau. A Revolta da vacina. Mentes insanas em
corpos rebeldes. So Paulo: Scipione, 1993.
198
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. p. 290-291.
199
Ibid., p. 289.

82
corpo humano, como tinha sido na Europa, em fins do sculo XVIII, mas, sim, de uma
biopoltica da espcie humana. Tecnologia esta que foi denominada por Foucault como
biopoder.
Natalidade, mortalidade, longevidade, juntamente com os problemas polticos e
econmicos, so, provavelmente, segundo Foucault, os primeiros objetos de saber e os
primeiros alvos de controle dessa biopoltica.
Nessa perspectiva, as medies estatsticas adquirem extrema relevncia200 da,
mais uma vez, a importncia do recenseamento urbano de Cuiab em 1890 , mas no
apenas elas: o mapeamento dos nascimentos, os atestados mdicos que informam sobre o
estado de sade dos trabalhadores civis e militares, as inspees de higiene. E, ainda, o
registro de enfermidades, a deteco de anomalias diversas. tambm sobre esse conjunto de
fenmenos que vemos a interveno da biopoltica.
O leque de endemias existentes em Cuiab no perodo compreendido entre 1890 e
1929, e que as autoridades pretendiam eliminar, era consideravelmente variado: a temida
varola, a sfilis, a febre amarela, a tuberculose, a ancilostomase, a gripe, entre outras. Essas
endemias vo exigir do Estado

[...] a introduo de uma medicina que vai ter, agora, a funo maior de
higiene pblica, com organismos de coordenao dos tratamentos mdicos,
de centralizao da informao, de normalizao do saber, e que adquire
tambm o aspecto de campanha de aprendizado da higiene e de
medicalizao da populao201.

200

Isso no significa que, em Mato Grosso, o servio de estatstica estivesse funcionando plenamente. A esse
respeito, o Governador Pedro Celestino, em 1909, props a criao de uma seo especial de estatstica a
cargo do Tesouro do Estado, sob o seguinte argumento: O subsdio que a estatstica presta a economia
poltica, e sem a qual no pode haver sistematizao segura do comrcio, industria e da higiene. Disponvel
em < www.crl.uchicago.edu/info/brazil>.
201
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. p. 291.

83
Nos combates a tantos males, os mdicos desempenharam um papel fundamental,
e, paulatinamente, foram sendo inseridos nos programas de saneamento adotados pelo
Governo do Estado, atravs da Inspetoria de Higiene Pblica202. Mas a medicina no atuava
de forma autnoma; volta e meia os mdicos requeriam o auxlio do chefe de polcia para
exercer sua atividade, a exemplo das inspees sanitrias nas embarcaes oriundas de
Corumb e de outros lugares, principalmente quando havia suspeita de doena.
Mas no somente as endemias, a natalidade, as incapacidades biolgicas diversas e a
mortalidade sero visadas pelo biopoder, que as eleger como seu primeiro campo de saber e
domnio, j que muitos outros viro, no decorrer do sculo XX. A preocupao se voltar,
tambm, para as relaes entre a espcie humana e o seu meio,

[...] sejam os efeitos brutos do meio geogrfico, climtico, hidrogrfico: os


problemas, por exemplo, dos pntanos, das epidemias ligadas a existncia
dos pntanos durante toda a primeira metade do sculo XIX. E, igualmente,
o problema desse meio, na medida em que no um meio natural e em que
repercute na populao; um meio que foi criado por ela. Ser
essencialmente, o problema da cidade203.

No conjunto desses domnios sobre os quais a biopoltica vai extrair seu saber e
definir o campo de interveno de seu poder, Foucault observa algumas coisas importantes. A
primeira o aparecimento de um novo elemento a populao como problema a um s
tempo cientfico e poltico. A segunda a natureza dos fenmenos, posto que estes
repercutiro na economia e na poltica e s se tornam pertinentes no nvel da massa. E a
terceira coisa importante, segundo Foucault, a implantao, pela biopoltica, de mecanismos
que tm certo nmero de funes muito diferentes que eram dos mecanismos disciplinares.

202

A Lei n 18 de 09/11/1892 estabeleceu o servio de higiene pblica a cargo de um Inspetor Geral e de


Delegados, nos municpios de Mato Grosso. Indicador das Leis e decretos do Estado de Mato Grosso. (18901935). APMT.
203
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. p. 292.

84
Inserem-se a as previses, as medies estatsticas, as medies globais, usadas no para
mudar um determinado fenmeno ou um indivduo, mas, sim, intervindo naquilo que so as
determinaes desses fenmenos no que ele tem de global, diminuindo a morbidade e
prolongando o tempo de vida das populaes, por meio do estabelecimento de mecanismos
reguladores globais, em que pese sobre os indivduos, no uma disciplina, mas uma
regulamentao. Essa nova tecnologia poltica no se volta mais, como a disciplina, apenas
para o corpo, mas tambm para a vida; uma tecnologia onde os corpos so recolocados nos
processos biolgicos do conjunto.
No aspecto sanitrio, a capital mato-grossense era um caldeiro de problemas,
principalmente se considerarmos a teoria dos miasmas204, to em voga poca. Nos relatrios
produzidos pela Inspetoria de Higiene, as crticas versam, em sua maioria, sobre o grande
nmero de buracos de tamanhos variados que atravessam certas ruas desta cidade, sobre a
recusa de parte da populao em seguir o conselho do Inspetor de desinfetar as guas
servidas e putrefatas antes de terem sada para a rua205 e, ainda, sobre a aparncia, ou a falta
de higiene visvel no espao pblico da cidade. Alis, a sujeira era outro item que constava
das reclamaes dos Inspetores de Higiene, que considerava:

[...] o servio de asseio e limpeza da Capital quase nulo, porque alm de


ser costume antigo do povo mandar depositar nas margens do crrego da
Prainha e na maior parte das travessas todo lixo que diariamente junta em
suas casa, a prpria carroa contratada com a Intendncia para esse fim,
deposita tambm nas mesmas margens da Prainha um pouco adiante do
quartel da polcia quanto de imundcie apanha nas ruas.
Ora, atravessando este crrego toda a extenso da cidade e achando-se suas
margens sempre imundas certamente as exalaes que dali se desprendem
tornam-se [...] prejudiciais a salubridade pblica, havendo, portanto,
urgncia em mandar limp-las e no mais permitir que se deposite lixo
nessas passagens, a fim de evitar novas visitas de febres diversas e de
epidemias que possam aparecer e desenvolver-se repentinamente.
204

205

Emanao meftica oriunda de animais ou plantas em decomposio. In: FERREIRA, Aurlio Buarque de
Holanda. Dicionrio da lngua portuguesa. p. 920-921.
Relatrio da Inspetoria de Higiene Pblica. Cuiab, 5 de Outubro de 1897. Caixa: 1897. Fundo : Sade.
Mao: Inspetoria de Higiene Pblica. APMT.

85
Convm pois afastar do centro da cidade todos os focos de miasmas
deletrias que viciam a atmosfera, proibindo-se a criao de porcos dentro da
cidade206.

Nos relatrios, alm das queixas contnuas sobre o estado sanitrio da cidade, o
hbito das pessoas de lanarem s ruas as guas servidas, o lixo e os animais mortos; as
crticas voltam-se para a m localizao do matadouro, para os animais soltos pelas ruas, as
edificaes mal ventiladas e a ocupao espacial da cidade. Nesse aspecto, os mdicos atuam,
at a primeira metade da dcada de 1920, quase como urbanistas, redesenhando o espao
citadino e as ideais condies dos seus equipamentos. Nos ofcios, por sua vez, temos uma
maior riqueza de detalhes a esse respeito, se comparados aos relatrios, como o que tratou da
construo do Matadouro Pblico, onde o Dr. Dormevil Jos dos Santos Malhado traz ao
Presidente do Estado a seguinte recomendao:

So condies indispensveis para estabelecer Matadouro: Edific-los o


mais distante possvel dos centros populosos ou mesmo fora da cidade, isollos e coloc-los em uma posio elevada, cerc-lo de altos muros e estes de
rvores que, pelo seu crescimento faam uma espcie de barreira
infranquevel aos miasmas que possam desenvolver-se, dar-lhes bastante ar
e prov-los de gua em abundncia para fazer-se grandes e freqentes
lavagens.
O Matadouro inaugurado nesta Capital est longe de satisfazer as citadas
condies, podendo por isso tornar-se um foco de infeco para os
habitantes da rua do Conde dEu, do Beco Quente e para os que fazem o seu
comrcio na circunvizinhana do vale. Em vista do exposto peo a V. Excia
para determinar, com urgncia, a mudana de Matadouro para alm da casa
do Acampamento Couto de Magalhes, prximo as barrancas do rio ou outro
qualquer ponto que oferea iguais ou superiores vantagens, pois assim se
preveniro grandes males, que, necessariamente, proviro de uma alterao
na sade pblica207.

206

207

Relatrio da Inspetoria de Higiene Pblica. Fundo Sade. Caixa 1898. Mao: Inspetoria de Higiene Pblica.
APMT.
Ofcio do Inspetor de Higiene Dr. Dormevil J. dos S. Malhado ao Presidente do Estado. Cuiab, 10 de
Dezembro, 1891. Fundo: Sade. Caixa: 1891. APMT.

86
Na relao homem e seu meio, temos assim uma grande lista de problemas a serem
resolvidos, ou pelo menos mitigados, como o reordenamento do espao urbano, obras de
saneamento, servio regular de coleta de lixo, abertura e alargamentos de ruas, construes de
novos equipamentos, como o Mercado Municipal, entre outros. Na regulamentao sobre as
populaes frente s endemias, as medidas compreenderam desde campanhas educativas,
distribuio de medicamentos, exames mdicos at medidas impositivas que afetavam o
corpo do indivduo, como foi o caso da vacinao obrigatria.
A varola, no final do sculo XIX, ainda provocava muitas mortes, mas, ao que tudo
indica, a prtica peridica de vacinao e revacinao, alm do isolamento e desinfeco dos
domiclios onde a doena fosse detectada, teve como resultado o desaparecimento gradual da
doena. A ltima epidemia de varola, no perodo 18901929, ocorreu no governo de
Generoso P. L. de S. Ponce, em 1907, e atingiu os municpios de Corumb, Cceres,
Livramento Diamantino, Brotas, alm da capital. Nesta cidade, criou-se um hospital208, nas
dependncias da Santa Casa de Misericrdia, onde os doentes foram submetidos aos cuidados
dos mdicos civis e militares. Instalava-se assim, na capital, uma espcie de operao de
guerra a cidade ideal: a cidade em estado de peste por meio de sua diviso em diversas
zonas e a designao de comisses de sade (uma para cada zona), que tinham a incumbncia
de identificar os doentes e transferir os indigentes para o hospital. O fim da epidemia tambm
foi o fim desse hospital de isolamento209.
Sobre a vacinao da populao urbana, vejamos o que informou o Dr. Jos Marques
em relao ao ano de 1897:

208

209

A denominao hospital foi utilizada pelo Presidente do Estado de Mato Grosso, Generoso Ponce,
provavelmente para distinguir esse local, onde os infectados pela varola receberiam atendimento mdico, das
demais dependncias da Santa Casa de Misericrdia, cuja administrao estava a cargo de irms religiosas e
que tinha muito mais um carter assistencialista do que mdico-teraputico.
Mensagem do Presidente de Estado Generoso P. L. de S. Ponce Assemblia Legislativa. 1908. Disponvel
em <http//www.crl.uchicago.edu/info/brazil>.

87
O povo geralmente falando no est convencido da grande utilidade da
vacina, e s a procura nos casos extremos como aconteceu ultimamente,
quando alguns indivduos levianos trataram de espalhar que havia varola em
uma das casas da Boa Morte: assim que, atemorizados com o boato,
comeou o povo a afluir em maior nmero a procura de vacina210.

O medo da morte, prenunciada pela notcia de casos de varola e da corrida


vacinao, era compreensvel, afinal, a epidemia de 1867 ainda estava fresca na memria da
maioria da populao cuiabana. Notcia de varola, fosse ela boato ou no, significava risco de
morte, mas era apenas sob essas condies que a populao procurava a vacina, o que a
transformava em ao isolada e pontual, totalmente desvinculada de outras prticas, ainda que
o servio de vacinao funcionasse com regularidade, todas as quintas-feiras, sem
interrupo211.
A vacina ou linfa vacnica utilizada em Cuiab era, majoritariamente, oriunda do
Instituto Vacnico do Rio de Janeiro, mas inmeras foram as reclamaes do Inspetor de Mato
Grosso a respeito da m qualidade da vacina. A esse respeito, a denncia formulada pelo
Inspetor de Higiene, Dr. Jos Marques da Silva Bastos, baseava-se tanto na demora no
transporte da mesma, quanto na data de sua fabricao212. O Diretor do Instituto Vacnico
Municipal do Distrito Federal, Baro de Pedro Afonso, todavia, rejeitou prontamente a
denncia:
Tenho a dizer-vos que a nossa vacina continua a ser preparada e distribuda
com o mximo cuidado, dando resultados excelentes por toda a parte.
Conquanto acredite que haja alguma outra causa para o insucesso apontado,
entretanto vamos ter especial cuidado remetendo para Mato Grosso vacina
preparada no mesmo dia ou na vspera da sada do Vapor213.

210

Relatrio da Inspetoria de Higiene Pblica. Caixa 1897. Fundo Sade. APMT.


Ofcio do Dr. Dormevil Jos dos Santos Malhado ao Presidente do Estado. Cuiab, 7 de Dezembro de 1891.
Fundo: Sade. Caixa: 1891. Mao: Inspetoria de Higiene. APMT.
212
Ofcio do Inspetor de Higiene Dr. Jos Marques da S. Bastos ao presidente do estado. Cuiab, 12 de Maio de
1896. Fundo: Sade. Mao: Inspetoria de Higiene. Caixa: 1896. APMT.
213
Oficio n 508 do Diretor Geral da Secretaria de Justia e Negcios Interiores Baro de Pedro Afonso ao
Presidente do Estado de Mato Grosso. Fundo: Sade. Mao: Ministrio da Justia e Negcios Interiores.
Caixa: 1896. APMT.
211

88
Apesar das promessas do Baro, o problema se manteve inalterado por um bom
tempo, se considerarmos que, em 1904, o Inspetor de Higiene de Mato Grosso no s criticou
a pssima qualidade da vacina produzida no Rio de Janeiro, como tambm recomendou ao
Presidente do Estado a aquisio de tubos de linfa vacnica do Rio Grande do Sul, da
Argentina e do Paraguai214.
Para proceder vacinao, o saber mdico agenciar outros dispositivos, sobretudo
aqueles que mantm uma relao mais estreita com determinados setores da populao, como
o caso das escolas. A matrcula dos alunos na capital de Mato Grosso passa a ser
condicionada emisso de atestados assinados pelos professores informando se o aluno foi ou
no vacinado, e se era, ou no, portador de molstia contagiosa215. Mas, aos poucos, essa
medida caiu em desuso e s voltou a ser aplicada em 1923, como reprimenda do poder
pblico aos estudantes da capital que relutaram em ser vacinados, em 1922216. certo que
essa no foi a primeira vez que os estudantes se rebelaram contra a vacinao. Em 1918, o
Inspetor de Higiene Dr. Mario Corra recorreu ao Secretrio do Interior, Justia e Fazenda,
Dr. Benito Esteves, para que este tomasse alguma providncia contra as alunas do 4 e 5 ano
da Escola Modelo, que se mostraram refratrias vacina. Desconhecemos, entretanto, qual a
providncia tomada pelo Secretrio217.
Quanto aos funcionrios civis da Unio, estes passam a ter a respectiva sade
examinada pelo Inspetor de Higiene, a partir de 1896, por determinao do Ministrio do
Interior, Justia e Negcios Interiores218, e para a Inspetoria de Higiene que so
encaminhados os atestados mdicos juntamente com os pedidos de licena de sade
214

Ofcio n 6 do Inspetor de Higiene Dr. Jos Marques da S. Bastos ao Presidente do Estado Cel. Antonio Paes
de Barros. Cuiab, 28 de Junho de 1904. Fundo: Sade. Mao: Inspetoria de higiene. Caixa: 1904. APMT.
215
No Mao: Instruo Pblica. Caixa 1892. H inmeros atestados de alunos solicitando matricula nas escolas
da capital, assinados pelos professores e encaminhados ao Inspetor escolar. APMT.
216
Mensagem do Presidente de Estado Pedro Celestino Corra da Costa. Ano: 1923. Disponvel em
<http//wwwcrl.uchicago.edu/info/brazil>.
217
Ofcio n 77 de 16/8/1918. Livro de Registro de Ofcios da Inspetoria de Higiene. Livro II. APMT.
218
Ofcio n 5. Cuiab, 28 de Novembro de 1896. Fundo: Sade. Caixa: 1896. APMT.

89
temporria ou afastamento definitivo dos funcionrios. As doenas que constam
majoritariamente nesses atestados so incmodos nervosos, hemorridas, anemia, tuberculose
pulmonar, epilepsia (considerada doena incurvel e transmissvel) e alcoolismo219.
Mapas de mortalidade, com detalhamento sobre causa mortis, passam a ser
confeccionados com regularidade a partir da dcada de 1910 e constam da maioria das
mensagens presidenciais, mas, antes mesmo de ocorrer a sua produo, comum
encontrarmos, nas referidas mensagens, o registro do aparecimento de alguma endemia ou
epidemia na capital e tambm nos municpios do interior, como tambm as medidas adotadas
pelo Poder Pblico, principalmente em caso de epidemia.
As doenas causadoras dos maiores ndices de morte do perodo (18901929)
sofreram algumas variaes. No final do sculo XIX, ainda era a varola, enquanto no sculo
XX, cede-se lugar s afeces do aparelho digestivo e peste branca220. No que a incidncia
de tuberculose em Cuiab fosse muito alta221, como em So Paulo ou no Rio de Janeiro222,
mas um caso isolado que fosse era motivo de preocupao tanto dos governantes como das
autoridades sanitrias; afinal o que estava em jogo era a vida da populao.
E se a morte ceifava a vida de uma s vez, as endemias possuam uma ao lenta, mas
devastadora, roubando as foras e diminuindo a capacidade de produo. Destas, a
ancilostomase foi a que se multiplicou com maior voracidade em Cuiab e nas cidades do
interior. Esse tipo de verminose era popularmente conhecido como opilao, e produziu,
nessas localidades, nas primeiras dcadas do sculo XX, um grande nmero de opilados, que
219

Os atestados mdicos esto arquivados nas inmeras caixas do Fundo Sade. APMT.
Peste branca: assim que era tratada a tuberculose na Primeira Repblica.
221
exceo do ano de 1925. Segundo o Governador Dr. Mario Corra da Costa, a tuberculose pulmonar a
maior devastadora humana, fazendo mais vtimas do que a verminose, a gripe, o alcoolismo e a sfilis
reunidas.
In:
Mensagem
de
Presidente
de
Provncia

MT.
Disponvel
em
<http//wwwcrl.uchicago.edu/info/brazil>.
222
Segundo Lilia Schwarcz, de 1868 a 1914, tinha ocasionado 11.666 bitos, nmero que transformava o Rio
de Janeiro na cidade com maior incidncia de casos de tuberculose em nvel mundial. In: O espetculo das
Raas. p. 225.
220

90
levavam a injusta pecha de preguiosos. Como diria Monteiro Lobato: o mato-grossense no
era preguioso; era, sim, doente, o que exigia do Estado a adoo de algumas medidas.
O cuidado com a vida ou, como observou Foucault, o fazer viver deixar morrer, no
qual se inscreve essa nova tecnologia de poder, o biopoder, que tem essa capacidade de
regulamentao, pode ser visualizado em Cuiab por meio do conjunto de medidas de
higienizao e saneamento adotado pelo Poder Pblico e tambm pelos discursos proferidos
por alguns de seus governantes na Assemblia Legislativa, de cujos trechos selecionamos
dois, proferidos em 1901 e 1902, pelo Governador Antonio Pedro Alves de Barros, que
consideramos exemplares:

[...] a vida humana representa por toda parte um capital precioso, confiado
guarda dos governos e que esse capital sobe de preo naqueles Estados,
como o nosso, onde a populao escassa e o seu aumento difcil
conseguir por meio da imigrao. [...] Jules Rochard, no Congresso de Haia
em 1884, afirmou: 1 Toda despesa feita em nome da higiene economia; 2
Nada mais dispendioso que a molstia, a no ser a prpria morte; 3 Para as
sociedades no h desperdcio mais ruinoso do que da vida humana. (1901).
Como obtempera um distinto autor de direito administrativo, to atrasado o
ponto de vista de Rosseau como o de Spencer, um com a estipulao de seu
contrato e outro com a sua aplicao da lei da luta pela existncia, quando
concluem ambos pela necessidade de abandonar o indivduo ao seu prprio
destino, limitando-se ao Estado o papel de juiz do campo no grande torneio
da vida poltico-social para recolher os mortos e cumprimentar os vitoriosos.
Os prprios pases onde mais predomina o esprito do individualismo
nomeadamente a Inglaterra que o tipo clssico do liberalismo mais
intransigente, ali esto todos, sem exceo de um s, a alargar cada vez mais
a esfera do poder poltico em todos os negcios da comunho.223

Os Relatrios dos Inspetores de Higiene, por sua vez, atuavam como uma espcie de
eco dos governadores e forneciam munio a estes, tanto por meio da descrio detalhada do
estado sanitrio da capital, principal foco de problemas a ser resolvido nos princpios da

223

Mensagem do Governador Antonio Pedro Alves Barros dirigida Assemblia Legislativa em 1902.
Disponvel em <www.crl.uchicago.edu/info/brazil>.

91
Repblica em Mato Grosso, como pelo pedido de ateno sade, por parte dos
parlamentares mato-grossenses, reivindicando aumento de verbas.

da maior utilidade que, sem medir nem pesar sacrifcios, os homens do


Estado encarem os preceitos e leis higinicas como um dever social do
maior alcance para com a humanidade, proporcionando-lhe todos os meios
favorveis sade, convendo portanto que se afastem para longe do centro
desta cidade todos os focos de miasmas deletrios que possam produzir
afeces ou molstias de mau carter.224

So nos ofcios e atestados mdicos, muito mais do que em relatrios e mensagens


governamentais, que a prtica do saber mdico vai se mostrar cotidianamente, revelando as
faces encobertas da cidade, daquilo que este saber pretende sanear, higienizar, eliminar,
separar e regulamentar.
A desinfeco dos domiclios ocupados por alguma pessoa doente era uma medida
adotada desde o final do sculo XIX. Se, at ento, em caso de epidemia, procedia-se
queima de roupas e utenslios do doente para evitar a propagao da doena225, a partir de
1913, a desinfeco dos recintos, ocupados por infectados, ser praticada com maior
regularidade, aps a contratao, pela Inspetoria de Higiene, de um capataz e dois
serventes226.

224

225

226

Relatrio da Inspetoria de higiene Pblica. Cuiab, 5 de Outubro de 1897. Fundo : Sade. Caixa 1897.
APMT.
Neste caso, a doena era a temida varola. A ultima epidemia que se tem registro na capital mato-grossense,
data do ano de 1907. As vtimas fatais que esta produziu foram sepultadas no cemitrio Cai Cai, por ordem
do Governador. Ofcio do Hospital Provisrio do Isolamento ao Presidente do Estado Cel. Pedro leite Osrio.
Caixa 1907. Fundo Sade. APMT.
Ofcio n. 39 de 08/07/1913 do Inspetor de Higiene Dr. Marinho Rego onde o mesmo comunica ao
Governador de Mato Grosso a designao de um capataz e de dois serventes para o servio de desinfeco.
Livro de Registro de Ofcios expedido pela Inspetoria de Higiene. Livro I. APMT.

92
Na ateno s ruas, os pedidos dos inspetores dirigidos ao intendente da capital
giram em torno do fechamento de buracos227, do cuidado com as guas servidas e o lixo228.
Alguns ofcios so curiosos, como o que comunica ao intendente da capital a separao de
estricnina para a extino de ces229.
Alm das endemias, dos hbitos considerados atrasados e/ou nocivos sade e da
falta de higiene da populao, outra questo que afligia os mdicos, nos anos 10 do sculo
XX, era o charlatanismo. Era uma poca em que os mdicos e farmacuticos brasileiros
estavam estabelecendo a autoridade do seu saber, argumentando que somente o mdico
poderia curar a populao doente e que remdio bom era aquele vendido em farmcias
autorizadas pela Inspetoria de Higiene.
A atividade dos charlates tambm era considerado um grande problema (ou perigo),
porque o combate a essas prticas clandestinas exigia rapidez nas aes de reprimenda e o
charlato era um tipo de criminoso que tinha, como uma de suas caractersticas, a mobilidade.
Theophilo Rodolfo de Carvalho foi, durante trs anos, uma pedra no sapato da
Inspetoria de Higiene e dos mdicos e farmacuticos cuiabanos. Proprietrio de um comrcio
de drogas medicinais (produtor e vendedor de remdios denominados Disenteria, Opilao e
Peitoral da Vida) e trabalhando sem autorizao das autoridades sanitrias na Rua Joaquim
Murtinho, foi acusado de charlatanismo, intimado e multado vrias vezes, entre os anos 1915
e 1918. Em 1917, comunicaram a instalao de seu comrcio na cidade de Pocon, mas, no
227

Ofcio n 132 de 05/05/1916. Do Inspetor de Higiene ao Intendente da Capital, em que solicita providncias
no sentido de obstruir um bueiro existente na Rua Ricardo Franco dando passagem, no s a imundcie
como tambm a matria fecal. Livro II de registro de Ofcio da Inspetoria de Higiene. APMT.
228
Ofcio n. 49 de 17/04/1917. Do Inspetor de Higiene interino Dr. Caio Corra ao Intendente Geral da Capital.
...havendo verificado pessoalmente, que, na rua da Emancipao junto a ponte denominada do Mundo e
tambm da que fica em frente da Travessa do Palcio, se deposita lixo, com manifesta transgresso das regras
de Higiene e atendendo a que as duas referidas pontes se acham localizadas na parte mais central da cidade,
venho solicitar de V. Excia., as necessrias providncias no sentido de ser coibido semelhante abuso....
Livro II. APMT.
229
Ofcio n. 114 de 20/12/1913, em que o Inspetor de Higiene informa ao Intendente da capital que preservou
cento e cinqenta doses de strychinina a sete meio centigramas destinado a extino de ces. Livro II. De
registro de Ofcios da Inspetoria de Higiene. APMT.

93
mesmo ano, Theophilo voltaria cena cuiabana. Seu nome s deixou de aparecer nos ofcios
da Inspetoria de Higiene em 1918, quando o caso foi parar nas mos da polcia230.
O cuidado com a sade da populao, por sua vez, prescindir de estratgias
diversificadas. Destas, podemos citar tanto aquelas que ficaram circunscritas a um nmero
reduzido de pessoas o incentivo dos intendentes municipais concedido aos muncipes para
a construo de habitaes higinicas231, a distribuio de medicamentos homeopticos aos
pobres232 e a aquisio de medicamentos alopatas como tambm as estratgias de maior
alcance: nesse caso esto includos a distribuio de folhetos s famlias das cidades e a
publicao de conselhos de sade nos jornais locais, em especial na capital. Esses conselhos
eram importados de outros lugares; provavelmente vinham do Rio de Janeiro, no s por ser a
capital federal, mas tambm por sediar a Faculdade de Medicina, cuja poltica de preveno,
portanto, de combate s doenas, distinguia-se daquela adotada pelos mdicos baianos, que
consideravam que o doente que estava em questo233. Dos inmeros conselhos publicados,
Os Dez Mandamentos da Sade um dos que abarcam a maior variedade de temas, como
podemos observar:

230

I.

Deves dormir sete a oito horas por noite, tendo um repouso perfeito e uma
vida sexual moderada;

II.

Deves ser cuidadoso com a tua alimentao de modo que sejam os


alimentos puros bem preparados, tomados a horas certas em quantidade
suficientes, mas sem exageros

Ofcios n. 28, 51, 55 de 1915; n. 105, 110, de 1916; n 03, 38, 57, de 1917 e n 50 e 92, de 1918. No ano de
1916, existem vrios ofcios, multas, intimao, apreenso de drogas de Theophilo Rodolfo de Carvalho, que
se apresentava como farmacutico diplomado, apesar de as averiguaes comprovarem que ele no era
titulado. Livros I e II de Registro de Ofcios da Inspetoria de Higiene. APMT.
231
Resoluo n. 76 de 29/11/1911. Regulamenta por meio de sete artigos a iseno de impostos e a doao de
terrenos, para os cidados que construrem habitaes higinicas. Lata 1911/D. APMT.
232
Resoluo n 85 de 21/12/1912. Concede ao cidado Joo F. de C. Caldas, o auxilio anual de [...] para a
compra de medicamentos homeopticos que o mesmo senhor vem filantropicamente distribuindo desde
muito tempo populao desprovida de recursos, desta capital. Lata 1912/B. APMT.
233
A respeito da criao das faculdades de medicina no Brasil e as correntes tericas das faculdades de medicina
da Bahia e do Rio de Janeiro, ver o trabalho de Lilia Moritz SCHWARCZ. O espetculo das raas.

94
III.

Deves morar em casa bem arejada; em que se evite as poeiras,


substituindo o espanador e as vassouras por dispositivos que limpem sem
levantar poeira, certo de que uma casa pobre e asseada melhor para a
sade que uma casa sem asseio;

IV.

Deves dormir com a janela do quarto aberta para se dar o renovamento do


ar e sua movimentao, no deixando no quarto as roupas usadas, no
entrando nele com as botinas sujas de terra e outras coisas existente nas
ruas, no cuspindo, nem escarrando no cho;

V.

No deves ter em sua casa ces, gatos, baratas, percevejos, moscas,


mosquitos, pulgas e ratos. Usados dos processos aconselhados para acabar
com os mosquitos, com as moscas, percevejos e com as pulgas;

VI.

Deves cuidar da latrina da tua casa em ordem a estar ela sempre limpa e
com gua corrente, sendo til nela por desinfetantes;

VII.

Deves evacuar em latrina e no deves andar descalo, pois assim


consegue evitar a ancylostomose;

VIII.

Deves ter cuidado com a gua que bebes, em ordem de serem as caixas
lavadas em quinze dias, devendo ser filtradas ou fervidas em pocas de
epidemias de febre tifide e de disenteria;

IX.

Deves ter cuidado com as doenas contagiosas evitando-se estar em


comum com os doentes vacinando-se e revacinando-se para evitar a
varola, sempre que houver mortandade de ratos em casa, no ficando
perto de um tuberculoso que fala, no se expondo a apanhar doenas
venreas, para o que, em ultimo caso, deves usar dos conselhos
ministrados pelos dispensrios respectivos, no abusando e nem usando
de bebidas alcolicas, no entregando a excesso e nem ao uso de cocana,
pio e ter e no fazendo as refeies sem lavar as mos;

X.

Deves tomar banho todos os dias, ter uma vida moderada sem afronta as
intempries e observar os mandamentos acima referidos, com o uso dos
quais ters boa sade e forte a descendncia. Em suma: ama a higiene sob
todas as coisas e a sade do seu prximo como se fosse a tua prpria234.

Nesta espcie de sntese dos conselhos, como podemos designar Os dez


Mandamentos da Sade, se considerarmos a variedade dos temas e prticas abordados, a
sexualidade aparece tambm como questo, ou ainda, como observou Foucault, como um
outro domnio do biopoder que, no sculo XIX, adquire grande importncia. Tal importncia,
ainda segundo Foucault, prende-se a vrias razes, especialmente, de um lado, a sexualidade,
enquanto comportamento exatamente corporal, que implica num controle disciplinar de
vigilncia permanente (separao de pessoas por sexo no interior da cadeia, escolas e

234

Jornal O Mato Grosso. Edio n. 1.816, de 22/10/1922. Cuiab. APMT

95
hospitais) e de outro, pelos seus efeitos procriadores, em processos biolgicos amplos que
concernem no mais ao corpo do indivduo, mas a esse elemento, a essa unidade mltipla
constituda pela populao235.
Corpo e populao; disciplina e regulamentao. na encruzilhada dessas questes
que encontramos a sexualidade, e sobre os efeitos procriadores decorrentes dela, que vemos
emergir no Brasil, no incio do sculo XX, a produo de discursos que alertam sobre o perigo
da degenerescncia teoria formulada primeiramente por Morel, na Frana do sculo XIX,
segundo as palavras de Foucault:

[...] fundamentada no princpio da transmissibilidade da tara chamada


hereditria, foi o ncleo do saber mdico sobre a loucura e a anormalidade
na segunda metade do sculo XIX. Muito cedo adotada pela medicina legal,
ela teve efeitos considerveis sobre as doutrinas e as prticas eugnicas e no
deixou de influenciar toda uma literatura, toda uma criminologia e toda uma
antropologia236.

Em 1918, a publicao do artigo Do Conceito de Eugenia no Habitat Brasileiro, de


autoria do Prof. Dr. Joo Henrique, na revista semanal Brazil Mdico237, evidenciava a
preocupao, em voga, da rea mdica, com as deficincias gerais da populao, defendendo
os princpios da eugenia, que tinha como objetivo, segundo o autor,

Conhecer as causas explicativas da decadncia ou levantamento das raas,


visando a perfectibilidade da espcie humana, no s no que respeita o fsico
como o intelectual. Os mtodos tem por objetivo o cruzamento dos sos,
procurando educar o instinto sexual. Impedir a reproduo dos defeituosos
que transmitem taras aos descendentes. Fazer exames preventivos pelos
quais se determina a sfilis, a tuberculose e o alcoolismo, trindade
provocadora da degenerao. Nesses termos a eugenia no outra coisa
seno o esforo para obter uma raa pura e forte 238.

235

FOUCAUL, Michel. Em defesa da sociedade. p. 300.


Ibid., p. 301.
237
Revista semanal vinculada Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, publicada pela primeira vez em 1887.
Sobre as tendncias da publicao, cf. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das raas, a partir da p. 218.
238
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das raas. p. 231.
236

96
Esse tipo de doutrina dividia opinies no interior da rea mdica, j que havia, de um
lado, aqueles que defendiam a noo de contgio e, de outro, os que acreditavam na idia de
infeco, como escreveu Schwarcz:

[...] nota-se a mesmo que de forma breve, uma tentativa de adaptao dessas
noes realidade local: nesse caso aponta-se a correlao entre imigrao e
a entrada de molstias estranhas ao nosso habitat, vinculando assim a doena
a determinadas raas imigrantes239.

Por outro lado, estas idias, ainda segundo Schwarcz, coadunavam com
reivindicaes polticas dos acadmicos da Faculdade de Direito de So Paulo, que buscavam
impedir a entrada no pas de imigrantes asiticos e africanos. Esses jovens intelectuais
acreditavam ser necessrio orientar os polticos na seleo das boas raas, o que na prtica
significava muita orientao a ser dada, considerando o grande nmero de imigrantes que
entrou no pas, em fins do sculo XIX e incio do sculo XX.
Essa postura, a do estabelecimento de uma seleo de raas, nada mais do que o
retrato do funcionamento do racismo, compreendido aqui no da forma simples e tradicional
do dio ou desprezo de uma raa por outra, mas, sim, como nos indica Foucault, como
mecanismo do Estado para efetivao do biopoder. Foucault diz que o racismo,
primeiramente, o mecanismo que opera o corte entre o que deve viver e o que deve morrer,
[] uma maneira de defasar no interior da populao uns grupos em relao aos outros. Tem
ainda uma segunda funo, exemplificada por Foucault com a frase lapidar: quanto mais
voc matar, mais voc far morrer, que no pode ser compreendida como uma relao
guerreira, mas de uma maneira que inteiramente nova e que compatvel com o exerccio
do biopoder, j que uma relao biolgica. Nas palavras de Foucault, A morte do outro, a

239

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das raas. p. 231.

97
morte da raa ruim, da raa inferior (ou do degenerado, ou do anormal) o que vai deixar a
vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura240.
sobre as causas da degenerescncia em Mato Grosso que, em 1913, o inspetor de
Higiene Pblica Dr. Estevo A. Corra da Costa vai alertar:

O paludismo, a molstia de Chagas e vrias outras infeces merecem


combate [...].
Essas infeces, que muito deprimem o organismo, so a causa do
abestardamento da raa que se nota em algumas localidades do Estado, onde
os degenerados abundam.
E sem chegar ao extremo dos incapazes fsicos e mentais, aos quais o Estado
pode e deve dar assistncia, h a multido numerosa dos enfraquecidos,
vencidos na luta pela vida, e que levam a pecha de ociosos quando apenas
so doentes, representando, como os primeiros elementos de progresso do
Estado, que sero perdidos, no sendo tratados241.

Fazer viver, deixar morrer...


um dever do Estado, ou ainda, um direito sobre a vida que s o Estado moderno
possui, na mesma medida, ou com o mesmo poder, que anteriormente o soberano dispunha
sobre a morte. Curar enfermidades, intervir nos fenmenos, nem tanto para modific-los, mas
para regular a sua intensidade. sobre a vida que o Estado, por meio da articulao
disciplinaregulamentao, vai atuar. E nesse caso, tirar a vida, segundo Foucault,

[...] s admissvel, no sistema de biopoder, se tende no vitria sobre os


adversrios polticos, mas a eliminao do perigo biolgico e ao
fortalecimento, diretamente ligado eliminao do perigo biolgico e ao
fortalecimento, diretamente ligado a essa eliminao da prpria espcie ou
da raa. A raa, o racismo, a condio de aceitabilidade de tirar a vida
numa sociedade de normalizao. Quando vocs tm uma sociedade de
normalizao, quando vocs tm um poder que , ao menos em toda
superfcie e em primeira instncia, em primeira linha, um biopoder, pois
bem, o racismo indispensvel como condio para poder tirar a vida de
algum, para poder tirar a vida dos outros. A funo assassina do Estado s

240
241

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. p. 305.


Relatrio Anual da Inspetoria de Higiene Pblica, relativo ao ano de 1912. Fundo Sade. Caixa 1913. APMT.

98
pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo do biopoder,
pelo racismo242.

Tirar a vida aqui, diz Foucault, no pura e simplesmente assassnio direto, mas tudo
aquilo que pode ser assassnio indireto, como o fato de expor a morte, de multiplicar para
alguns o risco de morte, ou, pura e simplesmente, a morte poltica, a expulso, a rejeio,
etc.243.
Temos a, um momento em que ganha fora um racismo onde se estabelece uma
estreita relao entre a teoria biolgica do sculo XIX o evolucionismo e o discurso do
poder. O evolucionismo, ao qual se refere Foucault, entendido no sentido lato, como o
conjunto de noes como hierarquia das espcies sobre a rvore comum da evoluo, luta
pela vida entre as espcies, seleo que elimina os menos adaptados, e que se tornou, em
poucos anos do sculo XIX, uma maneira de pensar vrias coisas, dentre as quais, o fenmeno
da loucura, a partir do momento em que era preciso tornar possvel, num mecanismo de
biopoder, isolar e trancafiar o louco.
Mas quem que far da loucura o seu domnio?
Na Europa, em fins do sculo XVIII e incio do XIX, surge em cena a psiquiatria,
que comea a se constituir como um ramo especializado da higiene pblica. Como observou
Foucault:

Antes de ser uma especialidade da medicina, a psiquiatria se


institucionalizou como domnio particular da proteo social, contra todos os
perigos que o fato da doena, ou de tudo o que se possa assimilar direta ou
indiretamente doena, pode acarretar sociedade. Foi como precauo
social, foi como higiene do corpo social inteiro que a psiquiatria se
institucionalizou244.

242

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. p. 306.


Id.
244
FOUCAULT, Michel. Os anormais. p. 148.
243

99
E para poder existir como saber, a psiquiatria teve de proceder a duas codificaes
simultneas. A primeira, a codificao da loucura como doena. Assim, todos os erros, os
distrbios, as manias, os desvios, as iluses poderiam ser definidos como patolgicos por
meio de um conjunto de procedimentos de anlise (registros, observaes, nosografia, fichas
clnicas etc.), permitindo realizar uma aproximao entre essa higiene pblica ou essa
precauo social com o saber mdico. A segunda, necessria na constituio desse saber, foi a
codificao da loucura como perigo, ou como portadora de perigos, conforme diz Foucault:

a psiquiatria, por um lado fez funcionar toda uma parte da higiene pblica
como medicina e, por outro, fez o saber, a preveno e a eventual cura da
doena mental funcionarem como precauo social, absolutamente
necessria para se evitar um certo nmero de perigos fundamentais
decorrentes da existncia mesma da loucura245.

Na Europa, essa dupla codificao vai ter, como salientou Foucault, uma histria
longussima, no decorrer de todo o sculo XIX. A psiquiatria, por sua vez, atinge o seu ponto
forte com o encontro dessas duas codificaes, que se desdobraro em um s e mesmo tipo de
discurso, de anlise e de conceitos, resultando na considerao da loucura como doena e
como perigo.
A loucura, classificada como monomania suicida, monomania homicida, passa a ser
perigo social j codificado, que se torna doena de domnio exclusivo da cincia mdica,
relacionada higiene pblica: a psiquiatria. A partir de meados do sculo XIX, ainda na
Europa, temos a noo de degenerao que vai ser diferente da noo de monomania. A
degenerao implica no isolamento, no estabelecimento de um recorte, j que configura uma
zona de perigo social e que receber um estatuto de doena. Foucault considera que o sculo

245

FOUCAUL, Michel. Os anormais. p. 149.

100
XIX o perodo forte da psiquiatria e o perodo onde esses conceitos fracos foram
formulados.
possvel ver a fraqueza dos conceitos, tanto quanto o fortalecimento da psiquiatria,
nos atestados mdicos emitidos em Cuiab, em fins do sculo XIX e incio do XX. O atestado
emitido em 1904, pelo Dr. Jos Marques da S. Bastos, mdico da Polcia Militar diz:

Atesto que o corneteiro da 1 Companhia do Batalho de Polcia Militar


deste Estado de nome Isaias Rodrigues de Oliveira est sofrendo de
repetidos acessos de epilepsia, molstia contagiosa que o torna incapaz do
servio ativo sendo da maior convenincia que seja dispensado do servio
ativo em vista do seu sofrimento246.

Um outro episdio parece evidenciar ainda mais essa fraca formulao conceitual.
Foi quando o escrivo dos Feitos da Fazenda, Loureno Justiniano de Oliveira, adoeceu
gravemente, segundo relatou sua esposa Joana Antunes de Oliveira, em requerimento dirigido
ao Presidente do Estado, em 1911, onde a mesma solicitou licena mdica para seu marido247.
Vrios atestados mdicos foram produzidos pelo Inspetor de Higiene Dr. Jos Marques da
Silva Bastos, a partir deste requerimento. Curiosamente, temos, para a mesma pessoa, vrios
diagnsticos, tais como: perturbao nervosa, nevralgia cerebral e sofrimento das faculdades
mentais.
Outra questo se sobreps, em grau de importncia, a essas codificaes gerais da
loucura, colocada e demonstrada, insistentemente, pela psiquiatria: o carter perigoso do
louco. Na constituio do saber/poder da psiquiatria, ao passar a exercer o domnio sobre a
higiene pblica e a proteo social, sua ambio encontrar os segredos dos crimes que
podem habitar toda loucura, ou ento o ncleo da loucura que deve habitar todos os
indivduos que podem ser perigosos para a sociedade, como observou Foucault.
246
247

Fundo Sade. Caixa 1904 - Mao: Batalho de Polcia Militar. APMT.


Requerimento de 12/6/1911. Mao: Fazenda Nacional. Caixa: 1911. Fundo: Sade. APMT.

101
nesse quadro que a psiquiatria procedeu a duas grandes operaes, uma dentro do
manicmio e outra fora dele. No interior do manicmio, a psiquiatria realiza o papel de
deteco de qualquer perigo possvel inscrito na loucura. Fora do manicmio, ocorre um
processo semelhante, j que a psiquiatria tambm ir detectar o perigo que a loucura traz
consigo248, mesmo quando uma loucura suave, mesmo quando inofensiva, mesmo quando
mal perceptvel. A reside a grandeza e a cientificidade da psiquiatria; nessa capacidade e
autoridade que tem de justificar-se como interveno cientfica e autoritria, uma vez que ela
pode identificar o perigo onde ningum mais o percebe, e somente ela tem esta
competncia/poder, por tratar-se de um conhecimento mdico.
por essa razo que Jos da Cruz Ferreira, Balbino Antunes Maciel, Joana de tal e
alguns outros, sero recolhidos cadeia pblica de Cuiab. Porque so loucos, logo, so
perigosos, ainda que sua loucura seja do tipo suave.
Nesse perodo, ainda no havia em Cuiab nenhum alienista, porm, a grande
maioria dos mdicos que residia na capital mato-grossense teve sua formao na Bahia ou no
Rio de Janeiro, e, em fins do sculo XIX, Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, e Nina
Rodrigues, na Bahia, foram, seno os nicos, os maiores disseminadores das teorias
psiquitricas elaboradas na Europa.
No Rio de Janeiro, a atuao de Juliano Moreira no Hospcio Nacional constituiu um
marco na psiquiatria, segundo alguns estudiosos das polticas de sade mental no Brasil249,
no s pela introduo de tratamentos mdicos aos loucos que ali eram recolhidos desde a
inaugurao da instituio poca em que o nico tratamento dispensado aos internos era o

248

A prerrogativa do saber psiquitrico, na deteco da loucura perigosa, tambm vai ser o argumento utilizado
pelos psiquiatras frente aos juristas com relao aos criminosos que cometem algum crime sem motivo. No
Arquivo Pblico de Mato Grosso, existem processos crimes exemplares, especialmente no arquivo do
Tribunal da Relao, mas neste trabalho optamos por no utilizar essas fontes, por entender que implicaria
em procedermos tambm a outras anlises.
249
Cf., a esse respeito, o trabalho de Heitor REZENDE, Polticas pblicas de sade no Brasil.

102
tratamento moral , como tambm na elaborao de circulares e protocolos de internamento,
que foram remetidos a todas capitais do pas, como esta circular de 1896:

O art. 70 do Regulamento da Assistncia mdico-legal de alienados, anexo


ao Decreto n. 1559 de 7 de outubro de 1893 e de que vos envio um
exemplar impresso, faculta aos Estados remeter enfermos para o Hospcio
Nacional de alienados, a fim de serem a recolhidos e tratados, mediante uma
diria de $200 em relao a cada um, salvo o caso de contrato celebrado com
autorizao do governo.
A exemplo do que fez o Estado do Rio de Janeiro, e de acordo com a
disposio do citado artigo na parte concernente ao contrato, sugiro-vos o
alvitre de contratar esse Governo com o Diretor da Assistncia a remessa de
um nmero dado de enfermos para o Hospital Nacional de Alienados
obrigando-se a uma contribuio, que ser fixada no aludido documento e
pago semestralmente.
Desta forma, haver vantagem no s para o servio pblico, como para os
infelizes que precisarem dos benefcios que aquela instituio destinada a
prestar, pois ter o Governo mais um elemento para o clculo da receita
provvel da Assistncia e ficar a administrao desse Estado dispondo no
referido estabelecimento de certo nmero de lugares, que podero ser
aproveitados, s primeiras manifestaes da molstia, sem a demora
resultante das prvias diligncias a que ora se procede em cada caso
particular. Sade e Fraternidade250.

A internao no Hospcio Nacional, no final do sculo XIX, no se dava mais como


na poca da sua inaugurao (1852), ou seja, aberta para abrigar todos os loucos do Imprio e
subvencionada pelo imperador251; a partir dessa data, passa ento a restringir a gratuidade
apenas aos alienados pobres da cidade do Rio de Janeiro; quanto aos demais insanos providos
de recursos, estes passaram a ter condicionada sua internao mediante o pagamento de diria
por parte do interno, atravs de sua famlia, ou a celebrao de contrato entre a instituio e os
governos estaduais. Esta determinao, ao que parece, funcionou como uma espcie de
obstculo para que ocorresse a transferncia de alienados de Mato Grosso para o Rio de

250

Circular n. 370 do Ministrio do Interior ao Presidente do Estado. Rio de Janeiro. 1896. Fundo Sade.
APMT.
251
ELIA, Francisco Carlos da Fonseca. Doena mental e Cidade: O Hospcio de Pedro II. Fundao Casa de Rio
Barbosa. Ministrio da Cultura: Rio de Janeiro, 1996.

103
Janeiro, salvo dois casos isolados localizados nas fontes consultadas por ns252, cujas dirias,
em um dos casos, provavelmente foram pagas pela famlia do doente, atravs do
acautelamento dos bens deste, por determinao judicial, como foi o caso seguinte:

Tendo chegado ao conhecimento deste Juzo que acha-se sofrendo de suas


faculdades intelectuais o Tenente Coronel reformado do exrcito Horcio
Vieira de Souza residente nesta Cidade, que daqui partiu em princpio do
ms de Agosto do ano passado, tendo seguido para essa Capital, de onde por
ordem do Comando do Distrito Militar fora remetido para a Capital Federal
com destino ao Hospcio Nacional de Alienados e convivendo acautelar
alguns bens que ele aqui possui; mas sendo atualmente difcil a este Juzo
proceder o necessrio exame mdico na pessoa do referido Tenente Coronel
para poder iniciar o competente exame de interdio, tenho a honra de
solicitar-vos as necessrias providncias a fim de exigir-se daquele Comando
uma informao constante de quaisquer papis, termo ou auto porventura ali
existes a respeito do estado de desarranjo mental do dito Tenente Coronel, e
remeter-se a este Juzo para o aludido fim..253.

Quanto aos praas do exrcito, diagnosticados como alienados, esses deveriam ter
um encaminhamento diferenciado dos militares de alta patente, conforme preconizavam as
determinaes contidas no Decreto n. 806 de 29 de julho de 1892, a saber:

As praas do exrcito que forem recolhidos ao Hospcio Nacional de


Alienados devero ser transferidas para o Asilo dos Invlidos da Ptria, ao
qual ficaro pertencendo at que restabelecidas, tenham de regressar aos
respectivos corpos. A. de 5 de Maio de 1897 ao ajudante General 254.

No caso de Cuiab, entretanto, no encontramos um nico documento que mencione


a transferncia, para o Rio de Janeiro, de algum praa do exrcito de Mato Grosso.
Geralmente, ele era simplesmente desligado das fileiras do batalho, a exemplo do que

252

Em 1921, o Tribunal da Relao concedeu habeas corpus a Antonio Bernardino de Souza e determinou a
remoo do paciente da cadeia pblica de Cceres para o Hospcio Nacional dos Alienados do Rio de
Janeiro. No foi possvel localizar o seu processo crime. Caixa 1921. Fundo: Sade. APMT
253
Ofcio do Juiz de Direito Vilela de Oliveira Marcondes de Cceres ao Vice-Presidente do Estado de Mato
Grosso Coronel Antonio Cezario de Figueiredo, em 14 de fevereiro de 1898. Caixa 1898 Mao: Juzo de
Direito. APMT.
254
Fundo Sade. Caixa 1898 Mao: Conselho de Guerra. APMT.

104
ocorreu com o corneteiro Isaias, por determinao do mdico da corporao, registrada no
mesmo atestado em que se diagnosticava a sua doena.
Mas na educao, ou melhor, no interior dos estabelecimentos de ensino pblico e
privado da capital, que podemos observar a utilizao concomitante das tecnologias de poder
disciplinar e de regulamentao, ou o biopoder. Em 1918, a Assemblia Legislativa aprovou
uma portaria que instituiu o servio de inspeo mdico-sanitria, valendo-se dos seguintes
argumentos:

Considerando que a inspeo mdico-escolar tem dado bons resultados


desde a sua primeira organizao, na Blgica, em 1874 sendo de notar que
neste pas, as crianas, quando necessitam, recebem tambm, na escola,
alguns medicamentos, o que seria muito desejvel que se fizesse entre ns;
Considerando que essa instituio um dos meios componentes de
regenerao e revigoramento de nossa raa de que preciso, sem tardana,
tratar e tal como est encarada no presente projeto no onera os cofres
pblicos;
Considerando que no basta instruir e educar o homem, mas que
imprescindvel, a bem dos interesses da Nao torn-lo forte e sadio para sua
maior eficincia [...]

A seguir, alguns de seus artigos:

Art. 1 - Fica institudo o servio anual de inspeo mdico-sanitria nos


estabelecimentos de ensino primrio, secundrio, pblicos e particulares.
nico - Essa inspeo ser feita:
I- Na Capital por um ou mais facultativos nomeados pelo Governo sob
proposta do Inspetor de Higiene que a presidir.
[...]
Artigo 2 - A inspeo compreender:
I- O exame do prdio escolar e suas dependncias sob o ponto de vista
higinico.
II- O exame do material escolar.
III- A verificao do estado de sade dos professores, alunos e empregados.
[...]

105
Artigo 5 - Diagnosticada a morpha, tuberculose pulmonar aberta, ou
qualquer outra molstia contagiosa, e a alienao mental, em perodo de
incurabilidade, sero concedidos ao professor ou empregado enfermo os
favores de que trata o art. 151 do Regulamento baixado com o Decreto n.
265 de 22 de Outubro de 1910, si no tiverem direito aposentadoria e
contarem bons servios ao Estado.
[...]
Art. 8 - Os alunos que estiverem afetados de molstias infecto-contagiosas
ou repugnantes sero retirados da escola, temporria ou definitivamente a
juzo do medico.
Art. 9 - Os professores so obrigados sob pena de multa de 50$000 a
100$000, a levarem sem demora ao conhecimento do Governo o
aparecimento de um caso de molstia contagiosa ou repugnante no seu
estabelecimento de ensino.
Art. 10 - O professor ou empregado julgado na inspeo, incapaz, por
motivo de molstia contagiosa ou alienao mental, para o exerccio do
magistrio poder requerer ao Governo nova inspeo mdica por
facultativos que no tenham tomado parte na primeira.
Art. 11 - Alm da inspeo mdico-sanitria anual de que trata a presente
lei, o Governo poder determinar outras sempre que as autoridades escolares
ou qualquer interessado lhe comunique a existncia de molstia contagiosa
nos estabelecimentos de ensino.
[...]
Art. 14 - O Poder Executivo fica autorizado a baixar as instrues
necessrias boa execuo desta lei255.

O mero afastamento, temporrio ou definitivo, dos diagnosticados como alienados


mentais alunos, professores e funcionrios das unidades escolares , foi a medida adotada
em Cuiab, enquanto no houve um lugar destinado especialmente para esse fim. Afinal de
contas, nesse caso, enviar qualquer um destes para a cadeia pblica ou para a Santa Casa de
Misericrdia seria capitalizar inimigos polticos, j que, para os adversrios, tal deciso
poderia ser vista como a transposio para a realidade de uma atitude que s a literatura
ousou256. Alis, o encarceramento de alienados na cadeia pblica da capital era, como as
coisas de alcova, assunto que as autoridades s comentavam no mbito local.

255

256

Parecer n 16 da Assemblia Legislativa, que institui o servio de inspeo mdico-sanitria nos


estabelecimentos de ensino. Mao: Assemblia Legislativa. Caixa 1918. Fundo: Sade. APMT.
Seguir o exemplo de Simo Bacamarte, o alienista de Machado de Assis e criador da Casa Verde de Itagua,
era algo que no encheria de orgulho nenhuma autoridade.

106
Em 1905, o Inspetor de Higiene Pblica Dr. Jos Marques da Silva Bastos
encaminhou ofcio ao Presidente do Estado Cel. Antonio Paes de Barros, em que esclarecia
a conduta do Poder Pblico em relao aos portadores de alienao, e informou o seguinte:

Tenho a honra de acusar o recebimento do ofcio n. 5 de 31 do ms de


janeiro prximo findo que por ordem de V. Excia me foi dirigido pelo Sr
Secretario do Estado, conjuntamente com a cpia do telegrama do exmo Sr
Ministro do Interior pedindo informaes.
Respondendo, cumpre-me o rigoroso dever de informar a V. Excia que,
neste Estado, nunca houve asilo de alienados, sendo porm recolhidos ao
hospital de Caridade desta Capital, em pocas (transactas), alguns casos
raros de alienao mental, sem tendncias para aumento: casos de histeria e
epilepsia tambm custam a aparecer, notando-se um ou outro caso de praas
dos Batalhes tanto do Exrcito como da Polcia257.

O plano de instalao de um hospcio em Cuiab, pela construo de um pavilho ou


asilo de alienados, era tema, volta e meia introduzido nos discursos de alguns governantes,
mdicos e chefes de polcia, que estavam em dia com as novidades da cincia, mas sem que
nenhuma medida fosse colocada em prtica. Esta, s comeou a ser esboada em 1911, no
governo de Pedro Celestino Corra da Costa que, em discurso Assemblia Legislativa,
anunciou:

O Hospital da Santa Casa, subvencionado pelo Estado, e o de So Joo dos


Lzaros, so os nicos estabelecimentos de caridade que temos, destinados
ao tratamento de indigentes e alienados. Nenhum dele porm, preenche
satisfatoriamente os seus fins humanitrios, pela impossibilidade absoluta de
prove-los de uma direo interna dedicada econmica e que se desvele pelos
doentes, fiscalizando o servio dos enfermeiros e tudo o mais que entende
com o relativo bem estar daqueles.
A Santa Casa no comporta a assistncia aos alienados, que exigem
acomodaes adequadas e tratamento diferente dos ministrados nas
enfermarias comuns.
Atento o nmero j avultado desses infelizes, muitos dos quais suscetveis de
cura, existentes nesta capital e nos municpios do interior, faz-se precisa a
construo de um hospcio de alienados, que poder ser anexo a Santa Casa,
em local apropriado de vasta rea, que serve de quintal quela casa.
257

Ofcio n. 3 do Inspetor de Higiene Pblica Dr. Jos Marques da Silva Bastos ao Presidente Coronel Antonio
Paes de Barros. Caixa 1905 Mao: Inspetoria de Higiene. Fundo: Sade. APMT.

107
Cumprido ao Estado velar por todas classes sociais, me conveno de que
decretarei verba especial para esse fim de modo a poderem ser socorridos os
doentes de enfermidades mentais, como a caridade e a sociedade
reclamam258

Em 1913, no havia nenhum sinal de Pavilho de Alienados, apenas uma Resoluo


da Assemblia Legislativa autorizando ao Poder Executivo o repasse de verbas para as obras
do Pavilho de Cirurgia, que estava sendo construdo em terreno anexo Santa Casa de
Misericrdia259. Mas a notcia das obras do Pavilho de Alienados nos chega em 1915, por um
pedido de parecer do Tesouro do Estado, solicitando a abertura de crdito de 30:0000$000
para cumprimento da resoluo Legislativa n. 676 de [...] 1914, visto j estar quase concluda
a construo do Pavilho de Alienados260. O Chefe de Polcia, em seu Relatrio Anual, louva
a notcia e critica a prtica de recolher os loucos na cadeia, por ele considerada abusiva,
desumana, indigna, portanto, das alevantadas tendncias da moderna civilizao e contrria ao
altrusmo e aos conselhos emanados pelos mais exmios cultores da psiquiatria261.
Contudo, ainda no seria dessa vez que Cuiab anunciaria aos doutores da psiquiatria
que a capital mato-grossense j possua um hospcio ou coisa parecida. As famosas obras de
1915 novamente acabaram tendo uma outra destinao. Dessa vez, funcionaria no espao
recm-construdo uma enfermaria infantil.
Dcada de 1920. Prossegue o cotidiano da capital mato-grossense com um calendrio
marcado ora pelos tempos de chuva, ora pela seca; ora pelo frenesi das festas religiosas com
toda a programao pertinente esmolas, procisses, leiles e touradas , ora pela agitao,
fofocas e conchavos em pocas de eleies: disputas, alternncia no poder de grupos rivais, etc.

258

Mensagem proferida pelo Governador Pedro Celestino Corra da Costa Assemblia Legislativa em 1911.
Disponvel em <wwwcrl.uchicago.edu/info/brazil>.
259
Resoluo n 624 de 1913. Mao: Assemblia Legislativa. Fundo: Sade. APMT
260
Ofcio do Tesouro do Estado de Mato Grosso. Mao: Tesouro do Estado. Caixa 1915. Fundo: Sade. APMT.
261
Relatrio Anual da Chefatura de Polcia referente ao ano de 1914. Caixa 1915- Mao Chefatura de Policia.
Fundo: Sade. APMT.

108
Na fisionomia da cidade, algumas coisas haviam mudado desde 1890: o Jardim
Alencastro, j com o gradil de ferro instalado em seu entorno262, tornou-se o espao pblico
mais freqentado pela sociedade cuiabana, lugar onde as famlias se encontravam, casais se
conheciam, namoravam e noivavam, podendo apreciar, aos domingos, a execuo de peas
musicais pela Banda de Msica Municipal263 e que tinham sua segurana garantida por dois
guardas municipais, uniformizados e armados de sabre264. Mas havia tambm outras opes
de lazer nas cercanias do Jardim Alencastro, para aqueles que podiam pagar: a programao
do Teatro Amor e Arte, vizinho do Mercado Municipal, na rua Joaquim Murtinho265, ou
ainda, assistir, no Cine Parisien, aos filmes Mulher Corsria; ltima Aventura; Cawboy, o
Valento; Violeta; ou Mentira, entre outros. Os famosos filmes mudos, que saam das
mquinas de fazer cinema movidas a energia eltrica, chegaram capital aps a instalao,
em 1919, do primeiro gerador movido a vapor, na antiga hidrulica, no Porto Geral, s
margens do rio Cuiab266.
Essas mudanas iam acontecendo gradualmente e, pelas razes mais diversas,
coadunavam com o projeto de construo da nao e com o desejo de progresso. Assim foi
em 1919, por ocasio das comemoraes alusivas ao bicentenrio de fundao de Cuiab, a
importante instalao, em Cuiab, do Instituto Histrico e Geogrfico de Mato Grosso e da
Academia Mato-Grossense de Letras, afinal, nesse projeto de gestao de uma civilizao,
como salientou Pechman, os intelectuais e letrados desempenharam um papel fundamental na

262

Ofcio do Intendente Municipal de Cuiab Avelino de Siqueira, 1911. Lata 1911/D. APMT.
Resoluo n. 93. Autorizao para a criao de uma Banda de Msica Municipal. Lata 1912/B. APMT.
264
Resoluo n 103. Intendncia Geral do Municpio de Cuiab. Lata 1912/B. APMT.
265
Resoluo n 75 de 1911. Autorizao para a construo de dois edifcios, um para o Mercado Pblico e outro
para o Teatro Municipal. Lata 1911/D. APMT. Vale ressaltar, porm, que no houve construo do teatro,
mas, ainda assim, at o final da dcada de 1930, funcionou um teatro num barraco de zinco da sociedade
annima Amor e Arte. In: ALENCASTRO, Anibal. Anos dourados dos nossos cinemas. Antigas salas de
projees de Mato Grosso. Edio Secretaria de Estado de Cultura de Mato Grosso: Cuiab, 1996.
266
ALENCASTRO, Anibal. Anos dourados dos nossos cinemas (...)
263

109
construo e legitimao de uma histria nacional, com todos os heris possveis de se
inventar.
Inmeros prdios pblicos, por sua vez, receberam melhoramentos para os festejos
do bicentenrio. A Santa Casa de Misericrdia, que novamente se encontrava sob a direo
das freiras religiosas, para alegria do Governador Dom Aquino Corra, teve a fachada da
edificao reformada, ainda que nenhuma reforma como esta alterasse o quadro nosolgico da
capital. A tuberculose, nesse mesmo ano, foi a principal causa de morte dos cuiabanos,
seguida das infeces do aparelho digestivo e respiratrio. Mas havia um outro problema:
grande parte dos bitos tinha causa ignorada, j que a emisso de atestados podia ser feita por
qualquer pessoa, com anuncia do chefe de polcia, por falta de mdico legista. Esse problema
seria resolvido, pelo menos na capital, por meio da Lei n. 810, que fixou os vencimentos para
a contratao de um mdico legista e que, tambm, tratou de outras coisas, como a expedio
de um novo Regulamento Policial, a criao do servio de identificao e estatstica da
chefatura de polcia, a determinao da construo de uma Colnia Correcional, anexa ao
Campo de Demonstrao, e tambm a construo de um pavilho de alienados, anexo Santa
Casa de Misericrdia267.
No ano seguinte, mais precisamente no dia oito de abril de 1920, foi lanada a pedra
fundamental de construo do Pavilho de Alienados, anexo Santa Casa de Misericrdia,
conforme declarou o Governador Dom Aquino, em sua mensagem proferida Assemblia
Legislativa, ainda em 1920, para melhorar e completar alguns servios afeitos Polcia. Na
mesma ocasio, defendeu, diante dos parlamentares mato-grossenses, a criao de um
Gabinete Mdico Legal e de um necrotrio, para assegurar eficcia aos servios do mdico
legista, ou a permisso da Santa Casa para usar o necrotrio da instituio.

267

Mensagem de Presidentes de Provncia do Estado de Mato Grosso. 1920. Disponvel em:


<www.crl.uchicago.edu/info/brazil>.

110
Nas ruas, ambulantes, transeuntes, carroas prosseguiam nos respectivos caminhos,
desviando de buracos, de cachorros... Os automveis268, por sua vez, podiam dar-se ao luxo
de percursos mais longos e em menor espao de tempo, rumo ao Porto, espera de algum
vapor, ou para as bandas do Coxip, para admirar a bela ponte de ferro sobre o rio do mesmo
nome.
Para as escolas da capital, novos mobilirios foram sendo adquiridos, cuidando para
que fossem os mais adequados, os mais modernos, os mais higinicos, j que toda esta
aquisio passava pelo crivo do Inspetor de Higiene Dr. Alberto Novis269 que, como mdico e
Inspetor de Higiene do Estado, dispunha de saber e autoridade para opinar sobre esse e
tambm outros assuntos relacionados higiene, ao saneamento e s doenas, quaisquer que
fossem elas.
Mas no apenas novos mobilirios eram introduzidos nas escolas da capital. Folhetos
explicativos sobre a ancilostomase e outras endemias eram distribudos aos professores que,
por sua vez, deveriam disseminar esses saberes entre os alunos. Era a cincia fazendo escola.
Em 1921, passado o tempo de festas, outro cenrio emerge nas mensagens de
governantes, definindo prioridades e adiando projetos em andamento. As obras de construo
do Pavilho de Alienados foram paralisadas, segundo Dom Aquino, em funo da crise
financeira, que determinou a suspenso das obras do novo e grandioso pavilho dos alienados,
j em adiantada construo num dos flancos da Santa Casa. Na falta de estabelecimento

268

Segundo Anibal Alencastro, o primeiro automvel de Cuiab foi vendido em 1919 pela empresa dos Irmos
Dorsa.
269
Estudando detidamente o desenho do mobilirio escolar que me foi apresentado para dar informao sob o
ponto de vista higinico, cabe-me o dever de discordar da disposio do encosto dos bancos obrigando o
aluno a uma posio de flexo forado da coluna vertebral, o que no deixa de ser uma atitude viciosa
podendo causar deformao da mesma e aconselho, pois a dar esse encosto uma ligeira inclinao para traz
de acordo com o modelo adotado em Zurique pelos ilustres professores Hermam Meyer e Hormer e
estampado no tratado de higiene de Julio Amaral, 3 edio, a pgina 1043, fig. 240 que a meu ver satisfaz
inteiramente as condies de integridade anatmica e fisiolgica. In: Ofcio n. 33 de 28/05/1920 - Do
Inspetor de Higiene Dr. Alberto Novis ao Secretario do Interior, Justia e Fazenda. Livro II de registro de
Ofcios expedidos pela Inspetoria de Higiene. APMT.

111
apropriado, a cadeia pblica da capital continuava mantendo, entre os seus encarcerados,
dezenove alienados indigentes270, incluindo tambm mulheres. Em 1921, o chefe de polcia
informou ao presidente do Estado a existncia, na cadeia, de quatro mulheres atacadas de
alienao mental, visto no haver estabelecimento hospitalar destinado para esse fim271 e, na
Santa Casa de Misericrdia, no endereo da Travessa das Laranjeiras, em um dos quartos da
qual achava-se recolhida uma demente, [...] contguo a esta casinha foi construdo outro
quartinho onde , por carncia de compartimento melhor, acha-se recolhido outra demente272.
Decididamente, a construo do Pavilho de Alienados, anexo Santa Casa, obra
tantas vezes mencionada e subvencionada pelo Poder Pblico, ao que tudo indica, continuou
adiada, nos anos subseqentes. A grande maioria dos alienados, por sua vez, continuava sendo
recolhida cadeia pblica da capital, e sobre as condies deste lugar, que, em 1926, o
ento Governador Mario Corra da Costa, discorrer:

de pena a impresso da primeira visita que fiz a esse estabelecimento. A


cadeia pblica da Capital, apresenta hbitos primitivos, no existindo a mais
elementar higiene. Os presos no tem cama para dormir, sendo que as
poucas que ali esto acham-se todas desmanteladas, com estrados em
frangalhos, sem colches, sem travesseiros e sem lenis. As prises no
tem luz, nem ar, conservando-se freqentemente ftidas, porquanto a
defeco dos presos feita dentro das prprias celas, em latas vazias de
querosene. [...] Na mesma cadeia, por falta de um asilo de alienados, pois
ainda est em construo o pavilho que para esse fim o Governo mandou
fazer em terreno contguo a Santa Casa de Misericrdia, acham-se recolhidos
vrios dementes, inclusive mulheres que vivem no mais completo
descuido273.

Alm das pssimas condies da cadeia, da demora na construo do pavilho de


alienados, o que implicava no encarceramento dos alienados e dementes, a questo da ordem

270

Mensagem de Presidente de Provncia de Mato Grosso. 1921. Disponvel


<www.crl.uchicago.edu/info/brazil>.
271
Ofcio do Chefe de Polcia Albano Antunes de Oliveira. Caixa 1921. Fundo: Sade. APMT.
272
Relatrio Beneficente da Santa Casa de Misericrdia. Cuiab, 1923.
273
Mensagem do Presidente de Provncia. 1926. Disponvel em <www.crl.uchicago.edu/info/brazil>.

em

112
na cidade, segundo o Governador Mario Corra, esbarrava num outro problema: a
inexistncia de uma Colnia Correcional Agrcola, para recolhimento dos vadios de ambos os
sexos, maiores de quatorze anos, apesar de ter sua criao autorizada desde 1895274.
No ano seguinte, de todos os problemas acima mencionados, pelo menos um parecia
que seria resolvido, o do encarceramento dos alienados na cadeia pblica da capital,
considerando que as obras estavam chegando ao fim, conforme declarou o Governador Mario
Corra da Costa:

Prosseguem-se as obras do Hospcio275 dos Alienados contratadas com o


Senhor Taborelli por 99:999$000, o qual se acha em fase de acabamento.
O prdio consta de duas sees, sendo uma destinada aos homens e outra s
mulheres.
Para corrigir falhas existentes no projeto primitivo foi o governo forado a
mandar executar obras em acrscimo, como a modificao da fachada,
colocao de grades, servindo de parapeito aos compartimentos abertos276.

A essa poca, os jardins da cidade e o Palcio da Instruo, construo imponente,


localizada ao lado da Igreja Matriz, receberam novos melhoramentos. No Palcio da
Instruo, o antigo muro de arrimo foi substitudo por balastres de alvenaria e fez-se a
instalao de ladrilhos de cimento no ptio externo. A Praa da Repblica ganhou canteiros e
jardins e alguns ornamentos, compondo dessa forma, na opinio do Governador Mario Corra
da Costa, um conjunto harmonioso. Ainda segundo Mario Corra, o Jardim Alencastro,

274

Mensagem de Presidente de Provncia. 1926. Disponvel em: <www.crl.uchicago.edu/info/brazil>.


A utilizao da palavra hospcio em lugar de pavilho no significa, ainda neste caso, alguma mudana
efetiva com relao ao local designado para o recolhimento dos alienados da capital, apesar de no podermos
ignorar que a instalao de grades serviria para garantir o aprisionamento dos alienados, contudo, a
designao hospcio parece indicar a simpatia do mdico e Governador Mario Corra introduo das novas
teorias psiquitricas que circulavam no pas no mesmo perodo, sobre as quais j trataremos.
276
Mensagem do Governador Mario Corra proferida Assemblia Legislativa em 1927. Disponvel em:
<www.crl.uchicago.edu/info/brazil>.
275

113
apresenta atualmente um aspecto que ajudado pela magnfica e poderosa iluminao eltrica
impressiona bem e o coloca em situao igual s melhores praas dos grandes centros277.
E se os melhoramentos dos equipamentos pblicos citadinos colocaram a capital de
Mato Grosso em p de igualdade com as grandes cidades do pas, a concluso das obras do
pavilho de alienados, por sua vez, fez com que Cuiab ficasse em dia com uma das ltimas
novidades da cincia, j que a existncia de um local especialmente construdo para
recolhimento dos insanos, era sinal de progresso, de civilizao. Mas, ao trmino da
construo, o Governo decidiu que os alienados da cadeia ocupariam apenas uma parte do
pavilho, que foi dividido e destinado a outro fim, sob o argumento de que:

O prdio construdo para a colocao de alienados no apresentava uma


disposio apropriada ao fim que se destinava, prestando-se mais ao
estabelecimento de enfermarias.
Assim, resolvi [o Governador Mario Corra da Costa] fazer algumas
modificaes, adaptando-o a um hospital para mulheres e crianas278.

Nas primeiras dcadas do sculo XX, o debate no campo da psiquiatria no Brasil


sobre outras formas de tratamento dos doentes mentais afastava-se cada vez mais do chamado
tratamento moral, praticado tanto na Europa, em fins do sculo XVIII, como no Brasil, mais
precisamente daquele praticado no Hospcio Nacional do Rio de Janeiro, durante a gesto de
Teixeira Brando, conforme acusou Lopes Rodrigues. Rodrigues sustentava que a psiquiatria
verdadeiramente cientfica no fez sua entrada no hospital e na assistncia pblica com a
simples tomada do poder pelos mdicos. Segundo Heitor Rezende, para Rodrigues,

[...] o pensamento universal deste campo do saber patejava neste esturio


levadio das degeneraes de Morel e Magnan, continuava a se estagnar a
denominada psiquiatria francesa e todo pensamento psiquitrico nacional

277
278

Mensagem de Presidente de Provncia. 1928. Disponvel em: <www.crl.uchicago.edu/info/brazil>.


Id.

114
no se arejava fora das cercanias da idiotia adquirida, da melancolia e do
delrio crnico de evoluo sistemtica279.

Com a nomeao de Juliano Moreira para a direo do Hospcio Nacional deciso


tomada pelo Presidente Rodrigues Alves, em 1903 , a chamada psiquiatria cientfica se
materializou, j que, segundo Rezende, Moreira fez do microscpio o olho da razo, da
pesquisa o fulcro de sua mgica oficina, do escalpelo o silogismo, da lmina a dialtica [...]
em vez do livro, o doente280. Data da mesma poca, a nomeao de Oswaldo Cruz frente da
direo dos servios de sade pblica. Assim, a Sade Pblica e a Psiquiatria deram-se as
mos na tarefa comum de sanear a cidade, remover a imundcie e a morrinha, os focos de
infeco que eram os cortios, os focos de desordem que eram os sem-trabalho maltrapilhos a
infestar as cercanias do porto e as ruas do centro da cidade281, ainda que nessa tarefa tenha
cabido psiquiatria um papel complementar, secundrio, menos espetacular para os registros
da histria, o de recolher as sobras humanas no processo de saneamento, encerr-las no asilo e
tentar, se possvel, recuper-las de algum modo282.
Dos tratamentos utilizados na poca, Rezende observa que apenas a praxiterapia e o
chamado open-door podem ser considerados como de valor teraputico. Esses dois tipos de
tratamento consistiam, basicamente, na introduo dos pacientes a algum tipo de trabalho,
em instituies fechadas ou em ambientes abertos, onde se pretendia reproduzir a vida de
uma comunidade rural283.
No que isso fosse uma novidade, afinal Pinel, um sculo antes, em visita feita a um
hospcio de indigentes onde os doentes deviam trabalhar, comparou esse lugar e esses
pacientes ao ambiente onde eram internados os abastados, e observou que, no primeiro caso,
279

REZENDE, Heitor. Polticas de sade mental no Brasil (...). p. 43.


Ibid., p. 44.
281
Ibid., p. 45.
282
Id.
283
Ibid., p. 46.
280

115
os pacientes lhe pareceram mais tranqilos, o que levou Pinel a concluir pelo valor teraputico
do trabalho284.
Ainda Rezende que afirma que, no Brasil, a adeso poltica de construo de
colnias agrcolas se deu tanto por excluso das outras estratgias teraputicas cujos
resultados eram duvidosos como por ter encontrado ambiente poltico e ideolgico
propcio ao seu florescimento, uma vez que as necessidades do incipiente capitalismo
brasileiro tinham, nas concepes e atividades em relao ao trabalho, prevalecentes desde o
tempo da colnia, um srio obstculo285.
Em 1930, Cuiab ainda era o mesmo caldeiro de problemas no que diz respeito
tanto ocupao do espao urbano286, quanto ao seu quadro nosolgico, mudando apenas a
ordem das doenas causadoras de mortalidade, j que a tuberculose, nesse ano, alcanou o
primeiro lugar, seguida das infeces do abdmen e as respiratrias. Quanto ao Estado, o
Governador de Mato Grosso, Anibal de Toledo, manteve junto aos parlamentares estaduais as
mesmas reclamaes de governantes que o antecederam, como o problema da baixa densidade
demogrfica do Estado e a necessidade de o Governo estimular a produo agrcola. Com
relao aos alienados, por sua vez, a idia de implantao de colnias agrcolas se coadunava
com a decantada vocao agrria brasileira, seguindo, talvez, o discurso de Jlio Prestes, no
mesmo ano, que afirmou: O fazendeiro o tipo representativo da nacionalidade e a fazenda

284

REZENDE, Heitor. Polticas de sade mental no Brasil (...). p. 47.


Id.
286
Ao assumir o Governo, Anibal de Toledo deparou-se com a possibilidade de mudana da cadeia pblica da
capital do segundo distrito para um edifcio, cujas obras estavam em fase de concluso, localizado na Praa da
Repblica. O Governador, no entanto, no concordou com a mudana e utilizou como argumento tanto as
objees feitas pelos cuiabanos, como o modelo adotado em outras capitais do pas, que instalava esse tipo de
instituio nos arredores da cidade, e no na sua poro central. In: Mensagem de Presidente de Provncia.
1930. Disponvel em<www.crl uchicago.edu.info/brazil>.
285

116
ainda o lar brasileiro por excelncia, onde o trabalho se casa com a doura da vida e a
honestidade dos costumes completa a felicidade287.
Diante de tal quadro, novos atores sero inseridos para dar cabo de solucionar tais
problemas, conforme declarou Anibal de Toledo:

Os grandes problemas de Mato Grosso so, entretanto, mais de engenharia


do que da medicina. a instalao dos servios de esgotos, a canalizao
das guas pluviais, o abastecimento de gua potvel filtrada, o aterro de
charcos e lagoas e guas paradas que permeiam e circundam muitas de suas
cidades e vilas, a canalizao do crrego da Prainha, enfim essa srie
imensa de obras de engenharia sanitria, cuja necessidade est aos olhos de
todo mundo...288.

A adoo de uma nova teraputica que a medicina psiquitrica se encarregou,


portanto, de disseminar por meio da fundao de hospcios-colnias, como o do Juqueri,
instalado em So Paulo, por Franco da Rocha , conjugada com a introduo de um novo
campo de saber para ordenar o espao citadino e regulamentar as prticas de sua populao, o
do engenheiro, prenunciando o que viria depois destes os urbanistas, como observou
Pechman , possibilitou as condies para a desativao definitiva do Pavilho dos
Alienados anexo Santa Casa de Misericrdia em Cuiab e a inaugurao de um novo
endereo da loucura: o Asilo dos Alienados.
O Asilo dos Alienados foi fundado em 1931289, quando foram para l transferidos
todos os alienados da cadeia pblica290. Sua localizao, na sada de Cuiab, e a topografia do
terreno, prximo s margens do Rio Coxip, quase nos remetem a outros tempos. Tempo
em que uma grande nau ia navegando ao longo de guas calmas, levando sua carga insana.

287

REZENDE, Heitor. Polticas de sade mental no Brasil (...). p. 48.


Mensagem de Presidente de Provncia. 1930. Disponvel em <wwwcrl.uchicago.edu/info/brazil>.
289
Relatrio do Departamento de Sade do Estado de Mato Grosso. 1945. APMT.
290
Isso no significa que a prtica policial de recolher os loucos na cadeia tenha cessado com a inaugurao do
Hospcio de Cuiab.
288

117
Mas, estes so outros tempos e, ao contrrio da Nau dos Loucos, a cidade desse tempo no
escorraar mais seus loucos. Ela os aprisionou...

118

CONCLUSO

Algumas questes estimularam a produo deste trabalho e atravessaram todo o


percurso realizado com a utilizao de escalas cujas variaes, penso eu, ainda que no
cubram toda a superfcie do tema afinal, no se pretendeu aqui fazer a histria de um
perodo e, sim, de um problema (e aqui, valho-me dos textos de Michel Foucault, em especial
A Poeira e a Nuvem, onde o autor explicita a diferena entre ambos) , pelo menos revelam,
desencobrem, estimulam, indicam caminhos outros para se pensar a problemtica da loucura e
a cidade.
Destas questes, retomo pelo menos uma delas, ainda que sumariamente, nesta
concluso: a formulao da loucura como um problema urbano em Cuiab, em fins do sculo
XIX e primeiras dcadas do sculo XX, inscrita em prticas que se constituem como
tecnologias de poder. Disciplina, normatizao, biopoder...
Esses conceitos, formulados por Michel Foucault, pouco a pouco iam brotando nas
inmeras fontes consultadas no decorrer da pesquisa emprica, algumas das quais
apresentadas ao longo dos trs captulos, em decorrncia das minhas escolhas, com todos os
erros ou acertos a implicados, seja por julg-las mais apropriadas, mais interessantes ou por
instalarem inmeros pontos de dvida. Paul Veyne j havia observado que, quando nos
deparamos com algo que mexe com as nossas certezas, podemos desconfiar: a deve haver
algo interessante.
Dentre as fontes, o recenseamento urbano de Cuiab de 1890 adquiriu, grande
importncia, principalmente para a construo do primeiro captulo, j que nele eu podia ver
uma espcie de radiografia da cidade, com alguns dos estriamentos existentes, considerados,

119
naquele contexto, como as suas principais fissuras. O recenseamento funcionou como guia, e,
como flneuse imaginria, conduzi-me por alguns dos trajetos percorridos pelo recenseador
Jos Barnab de Mesquita e comitiva. Nesse caminho, visitei lugares da cidade, mas este no
foi um simples caminhar por ruas, travessas, praas e largos. A comitiva, ou o mapa por ela
produzido, proporcionou-me mais do que andar pela cidade, mais do que seguir seus passos
pelas ruas de Cuiab. Com os recenseadores, uma a uma, vi abrirem-se as portas de todas as
casas e casebres da cidade, talvez sem a menor cerimnia, afinal, eles os recenseadores
no eram pessoas quaisquer: eram funcionrios pblicos, dispunham da autoridade conferida
pelo Estado para, por exemplo, entrar na casa das pessoas, interrog-las/observ-las e
classific-las segundo diversas categorias, na maioria das vezes indicando juzo de valor, e,
desse modo, exteriorizando (para felicidade do historiador) algumas das idias veiculadas no
perodo.
Fonte preciosa que possibilita inmeras reflexes considerando a variedade de
temas nela contidos , para este trabalho, indicou que a loucura em Cuiab, a partir de 1890,
passou a ter nome, idade, endereo, estado civil, raa etc..., codificada como alienao mental,
demncia e idiotia, todos esses inscritos na categoria: defeitos fsicos.
Mas a eleio dos critrios utilizados no censo de 1890 apontava, tambm, para o
que estava em jogo naquele momento: a construo da nao, e a cidade adquire a grande
importncia, j que foi o lugar escolhido para veicular essa idia. Todavia, a cidade que se
tem em fins do sculo XIX, no Brasil, marcada pela rusticidade e pela quase ausncia de
delimitaes entre o ambiente rural e urbano. Outro problema se apresenta neste sentido: o
das populaes da cidade. Era preciso civilizar esta populao, torn-la cidad, distanciando-a
o mximo possvel da imagem de atraso, de rusticidade, estabelecendo, dessa forma, as
diferenas entre o ambiente urbano e o rural, entre o homem da cidade e o homem do campo.

120
Tarefa difcil esta de construir uma nao num pas onde havia tanto atraso,
segundo os governantes e outras autoridades da poca, na comparao que se fazia, sobretudo,
com a Inglaterra e a Frana as grandes referncias do Brasil em fins dos oitocentos, para
designar avanos, desde o final do perodo colonial. Tarefa difcil tambm esta de civilizar um
povo, com tantas prticas arraigadas, tantos vcios, conforme os conhecedores da lei e da
disciplina; tantos maus hbitos, segundo os preceitos da higiene e da cincia. E j que no
havia ainda uma nao, nem cidade que pudesse ser assim designada, muito menos o povo
desejado, era imperativo constru-los.
Lanando mo de teorias cientficas em voga e experimentos diversos, inmeras
medidas foram tomadas para a realizao deste ambicioso projeto. Adotaram-se tecnologias
de poder de disciplinarizao, estabelecendo, assim, o Estado de polcia, como denominou
Foucault, o conjunto de prticas de interdio e vigilncia permanente sobre os indivduos. E
foi sobre isso que os relatrios, ofcios, entre outras tipologias documentais da Chefatura de
Polcia de Mato Grosso, nos foram revelando, tirando as camadas encobertas da cidade,
tornando visvel aquilo que ela prpria queria esconder. Resistentes ao estabelecimento dessa
nova ordem, os loucos, pouco a pouco, so encarcerados, isolados e retirados da cena urbana.
Se, em alguns casos (talvez os primeiros), isso se deu com certa cerimnia, em outros,
possivelmente no, j que muitos dos alienados encarcerados na cadeia pblica da capital nem
registro sobre os motivos do seu recolhimento mereceram: estavam presos e pronto; por ora,
isso bastava.
Mas a constituio do louco como problema urbano, ou ainda, a percepo do louco
como um perigo social iminente, vai alicerar-se em outras bases, quando entram em cena o
projeto de construo da nao e a constituio de uma populao civilizada. Para realizao
de tamanho projeto, o Estado lana mo da cincia, pela utilizao tanto das disciplinas

121
quanto de outras tecnologias de poder, no mais voltada apenas para o indivduo ou para o
detalhe. Populao, relao homem e ambiente ambiente compreendido como produzido
pela ao humana , endemias, sexualidade e raa so os temas dos quais a nova tecnologia
de poder utilizada, o biopoder, vai ocupar-se.
Mais do que uma simples dicotomia entre normal e anormal, a loucura aquilo que
subverte a ordem, a regulamentao que o Estado, por meio das tecnologias de poder em uso,
estabelece. Subvertendo, subvertido, espelho distorcido da imagem na qual o homem quer se
ver, a loucura sai dos campos da desrazo e classificada, codificada e aprisionada. No
faltar quem a queira ter como seu domnio, para fazer dela o seu objeto. Assim, um novo
campo de saber constitudo para lidar com isso que, dizem, escapa compreenso, como os
demais conjuntos de coisas imediatamente explicveis. E se uma cincia , com esse fim,
inventada a psiquiatria , seu objeto, a loucura, para e por ela reinventada. Engana-se,
entretanto, quem pensa que esta inveno tenha significado o fim do aprisionamento dos
loucos na cadeia da capital, nem mesmo no momento imediatamente posterior ao da
inaugurao do Asilo dos Alienados que se deu pouco mais de vinte anos depois da
primeira tentativa, em 1915, de se criar um lugar especialmente destinado aos loucos , nem
na atualidade.
Alienao mental, idiotismo, demncia, psicoses, manias, neuroses, distrbios... A
lista s faz aumentar, e temos, ao longo do sculo XX e incio do sculo XXI, a inveno de
novos endereos da loucura, que no mais loucura e, sim, doena mental, como tambm,
novas formas de aprisionamento e tratamento.
Hospcio, hospital-dia, residncias teraputicas, eletrochoque, valium, haldol,
tryptanol, rohypnol e todas as rimas possveis, existentes e que ainda viro a existir. Triste...
tudo muito triste, mas havia aqueles que escaparam e ainda h quem escape, na atualidade,

122
que no se deixa nem se deixou submeter, pelo menos at ser, de alguma nova maneira,
capturado...
Um homem nu rodopia, gira, salta, abaixa, levanta, corre, ri, at gargalha.
Movimentos rpidos, frenticos, geis, inesperados, eletrizantes, descontnuos... Tudo nele
inesperado... Parece evocar alegria e liberdade... Parece at uma festa... Seu riso pura festa...
Parece at que ele dana...
Essa imagem veiculada no noticirio de uma emissora de televiso local, em janeiro
de 2004, informa tratar-se de um insano que ziguezagueou nu por entre carros, em uma das
avenidas mais movimentadas da capital. Entre o escrnio e o assombro, os comentaristas
contemporneos enaltecem as aes do policial que conduz o homem ao interior do carro, sem
saber para onde lev-lo. Nesse caso, talvez o louco, problema do incio do sculo XXI nos
centros urbanos, ainda mantenha alguma proximidade com o louco do final do sculo XIX e
incio do XX, afinal eis ainda a polcia se ocupando deles, mas a proximidade pra a. Desde
ento, muita coisa j mudou e continua mudando.
Na dcada de 60 do sculo XX, teve incio na Itlia um movimento pela luta
antimanicomial, movimento construdo por estudiosos e profissionais da rea de sade mental
e que extrapolou as fronteiras, tanto as geopolticas como as do pensamento. E nessa
perspectiva que podemos pensar nas grandes mudanas que se vm operando desde ento. No
belssimo texto Um Desejo de Asas, Peter Pl Pelbart fala de anjos, da infelicidade dos anjos
de Win Wenders e do devir anjo, mas fala tambm da grande idia elaborada por Flix
Guatarri, que prope que a heterogeneidade precisa ser construda e, para se fazer isso, nas
palavras do prprio Pelbart, significa que no basta reconhecer o direito s diferenas
identitrias, com essa tolerncia neoliberal to em voga, mas caberia intensificar

as

diferenciaes, incit-las, cri-las, produzi-las, e prossegue afirmando ser essa umas das

123
coisas mais fascinantes e difceis de se fazer no trabalho com os psicticos (e, penso eu, que o
mesmo fascnio e dificuldade esto inscritos tambm no nosso olhar em relao aos
psicticos); dificuldade e fascnio, ainda segundo Pelbart,

[...] de multiplicar formas de conexo, de linguagens, de abordagens de


entendimento. Pluridimensionar o campo. Recusar a homogeneizao sutil
mas desptica em que incorremos, s vezes sem querer, nos dispositivos
que montamos quando os subordinamos a um modelo nico, ou a uma
dimenso predominante. Aceitar esse paradoxo de que quando um
dispositivo est dando certo demais que ele j no serve mais, que quando
um grupo est demasiadamente bem sucedido alguma processualidade foi
emperrada, que quando entendemos muito bem porque deixamos de
entender um bocado, que quando estamos muito sos porque j estamos
muito neurticos291.

Em 2003, a Secretaria Municipal de Sade de Cuiab divulgou a notcia da


instalao, na capital, de residncias teraputicas e a transferncia, para estas casas, dos
pacientes crnicos dos hospitais psiquitricos Adauto Botelho e Neuropsiquitrico. Na mesma
poca, foi anunciada pela imprensa local a extino dos leitos credenciados pelo Sistema
nico de Sade, para atendimento de pacientes psiquitricos do Neuro. Na ocasio, um
telejornal ps no ar o depoimento de uma psicloga que, quase chorando, lamentava o
descredenciamento, e comentou algo assim: Olhe que tristeza ver isso tudo vazio.
No d para ficar indiferente a episdios dessa natureza. Foi ainda Pelbart que, num
encontro sobre doena mental292, alertou que a desospitalizao dos doentes mentais no
garantia o fim dos manicmios e mais, que era, e ainda , necessrio desmontar os
manicmios mentais. Grande desafio proposto por Pelbart, este de derrubar certezas e
desnaturalizar algo que est cristalizado. E foi estimulada por esse desafio que decidi estudar

291

PELBART, Peter Pl. Um desejo de asas. In: A nau do tempo rei. 7 Ensaios sobre o Tempo da Loucura. Rio
de Janeiro: Imago, 1993. p. 23.
292
PELBART, Peter Pl. Manicmio mental a outra face da clausura. Texto apresentado no encontro em So
Paulo, em 18/05/1989, e organizado pelo Plenrio de Trabalhadores em Sade Mental, em comemorao ao Dia
da Luta Antimanicomial. In: Sade e loucura 2. Direo de Antonio Lancetti. Hucitec: So Paulo, 1990.

124
a problemtica da loucura em face da questo urbana, afinal toda cidade tem os seus outros,
os seus doidos, que, quando soltos pelas ruas, servem de chacota para as crianas e tambm
so usados pelos adultos para amedrontar a meninada em tom ameaador: L vem o doido!
Alm do mais, a temtica da loucura levou muito tempo para que recebesse
tratamento acadmico por parte da historiografia. Antes de ns, historiadores, os escritores j
haviam enveredado por este tema das mais diversas formas e isto explica as razes pelas quais
eu tenha me aproximado tanto de obras literrias e tenha feito delas o meu local de visitao
constante.
Assim, este trabalho vem com a ambio de tentar demonstrar que todo
estranhamento do nosso olhar em relao ao fim dos manicmios a Rdio Tant de Santos,
aos grupos teatrais como o Ueinzz do pessoal de A Casa de So Paulo e coordenado por Peter
Pl Pelbart, as residncias teraputicas em Cuiab (com grandes inscries sobre os seus
moradores pintadas em seus muros) e tantos outros um estranhamento que foi construdo
histrica e culturalmente. O recorte temporal (18901928), por sua vez, deu-se igualmente
pela influncia da inteno explicitada anteriormente e dos resultados da pesquisa emprica, e
porque tambm (aqui imitando Pechman e sua posio com relao aos urbanistas) no tenho
estmago para adentrar nenhum hospcio. Mas...

O pulso ainda pulsa


O pulso ainda pulsa
Peste bubnica, cncer, pneumonia
Raiva, rubola, tuberculose, anemia
Rancor, cisticercose, caxumba, difteria
Encefalite, faringite, gripe, leucemia
O pulso ainda pulsa (pulsa)
O pulso ainda pulsa (pulsa)

125

Hepatite, escarlatina, estupidez, paralisia


Toxoplasmose, sarampo, esquizofrenia
lcera, trombose, coqueluche, hipocondria
Sfilis, cimes, asma, cleptomania
E o corpo ainda pouco
E o corpo ainda pouco
Reumatismo, raquitismo, cistite, disritmia
Hrnia, pediculose, ttano, hipocrisia
Brucelose, febre tifide, arteriosclerose, miopia
Catapora, culpa, crie, cibra, lepra, afasia
O pulso ainda pulsa
O corpo ainda pouco
Ainda pulsa
Tits - O Pulso293

293

Disponvel em <http://www.letras.mus.br>.

126

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