Tree by Tolkien": J.R.R. Tolkien e A Teoria Dos Contos de Fadas
Tree by Tolkien": J.R.R. Tolkien e A Teoria Dos Contos de Fadas
Tree by Tolkien": J.R.R. Tolkien e A Teoria Dos Contos de Fadas
Floresta de Lothlrien.
ndice
Introduo ........................................................................................................................6
Captulo I: J.R.R. Tolkien e a Defesa dos Contos de Fadas e da Verdade do Mito ........11
1.1. J.R.R. Tolkien e a Defesa dos Contos de Fadas .................................................20
1.2. J.R.R. Tolkien e a Defesa da Verdade do Mito ..................................................35
Concluso.........................................................................................................................169
Anexos .............................................................................................................................191
Anexo A: Mythopoeia............................................................................................192
Anexo B: The Lay of Erendil ...............................................................................198
ndice de Imagens
Introduo
Este mesmo prazer sentido com a actividade de docente verifica-se tambm na sua
produo literria, uma vez que Tolkien iniciou o processo de escrita do seu
imaginrio, em primeiro lugar, para satisfazer uma vontade interior e um gosto
pessoal, depois para entretenimento do seu ncleo familiar e de amigos, e s
depois para gudio de um elevado nmero de admiradores annimos.
O legado destes autores vai muito para alm da mera narrao de histrias e
aventuras, e Tolkien no escapou regra, pois as suas obras constituem um vasto
repositrio de lendas e mitos, assim como todo um imaginrio construdo at ao
mnimo detalhe: lnguas, mapas, raas, costumes, cronologias Middle-earth e
Aman no se tratam apenas de nomes, mas de microcosmos dentro do continente
podem ser inseridos no cmputo de escritos sobre a criao de uma mitologia para
Inglaterra, no Captulo III essa problemtica no se coloca. The Silmarillion faz
seguramente parte da mitologia criada por Tolkien, porm a leitura de Erendil
the Evening Star, ao tratar das semelhanas e disparidades em relao teoria
dos contos de fadas, procurar destacar um fio condutor presente em praticamente
todos os textos de Tolkien: os temas, os motivos, os smbolos, os mitos e a forma
de construir personagens e espaos.
Procurando-se, ainda, simplificar a leitura deste trabalho, dever ser referido que,
dentro do esplio literrio de Tolkien, se verificam diferenas quanto grafia de
algumas palavras, assim como nem todos os autores citados seguem a mesma
ortografia de Tolkien. No trabalho tentou adoptar-se sempre a mesma grafia, a
qual pode no conferir com as citaes, nas quais se manteve o original do autor
citado. Uma destas diferenas ortogrficas recai sobre o vocbulo Farie, mas
visvel tambm no nome de algumas personagens e lugares.
10
nome deriva da sua profisso ou estatuto, como por exemplo Rainha das Fadas,
Rei dos Elfos ou Cozinheiro. Para o termo conto de fadas, pelo contrrio, e, apesar
de designar um gnero, optou-se pela utilizao de minsculas, uma vez que
Tolkien o nico que referencia a Fantasia desta forma e usa o termo
indiscriminadamente para nomear tambm a forma literria. A redaco deste
trabalho obedeceu aos princpios propostos pela Modern Language Association
(Gibaldi, MLA Handbook for Writers of Research Papers. 6 edio).
11
nfase acrescentada.
12
O uso aqui da palavra familiar tem um significado amplo: J.R.R. Tolkien autor de obras que
se inserem no gnero fantstico, do qual a mais paradigmtica The Lord of the Rings, sendo por
isso um gnero que lhe era comum; por sua vez, Tolkien desenvolveu a histria dos Hobbits no
seio familiar, atravs de contos que inventava para os seus filhos, logo o gnero da Fantasia
envolvia toda a sua vida, desde a famlia produo literria.
13
Furtado refere que os estudos sobre a Fantasia tm vindo a seguir duas abordagens
diferentes. Numa das abordagens, encontramos autores de obras fantsticas, os
quais tambm se dedicaram teorizao sobre a literatura fantstica, como por
exemplo H.P. Lovecraft, Montague Summers ou Raymond Rog, que adoptaram
uma posio mais subjectiva, centrada nos artifcios literrios, nos efeitos
14
Brian Attebery, por sua vez, considera duas premissas: em primeiro lugar, se
tivermos em conta o constante crescimento do corpo crtico sobre o gnero
fantstico nos ltimos tempos, podemos concluir que o fantstico um gnero
estabelecido e reconhecido; em segundo lugar, sendo um tema to estudado, tudo
o que importante referir acerca da Fantasia, j ter sido tratado. Na realidade,
estas duas premissas so falsas e Attebery ir demonstr-lo ao longo de Strategies
of Fantasy (1992).
Para a segunda premissa, a de que tudo ter j sido referido sobre a Fantasia,
Attebery refora a relatividade inerente teoria crtica, pois h sempre algo que
fica por dizer, algo a acrescentar, emendar ou confirmar, fazendo uma listagem de
autores e obras crticas que abordam diferentes perodos e vertentes da Fantasia.
15
16
Though they are contrasting modes, mimesis and fantasy are not
opposites. They can and do coexist within any given work; there are no purely
mimetic or fantastic works of fiction. Mimesis without fantasy would be nothing
but reporting ones perceptions of actual events. Fantasy without mimesis would
be a purely artificial invention, without recognizable objects or actions. (3)
17
Esta ltima autora reservou ainda um dos captulos de A Rhetoric of the Unreal:
Studies in Narrative and Structure, Especially of the Fantastic (1981) para uma
anlise do fantstico em J.R.R. Tolkien, captulo no aconselhvel queles que
apreciam The Lord of the Rings. Por um lado, porque as descries, to
caractersticas de Tolkien, so tidas como dispensveis, assim como os mapas e
algumas personagens, como Gimli, Legolas, Boromir, Merry e Pippin so tambm
desnecessrias, e, por outro lado, porque a autora comete alguns erros de contedo
referindo, por exemplo, que Arwen irm de Elrond (251).
Uma outra obra, The Fantastic in Literature (1976) de Eric Rabkin, considera que
a verdadeira Fantasia mostra uma realidade que se contradiz a si prpria, que
muda as suas prprias regras internas, que se auto-subverte, linha seguida por
Rosemary Jackson. O fantstico pode contradizer aquilo que se conhece como
real, porm mantm-se fiel s regras da subcriao, s suas regras, levando o leitor
a acreditar nos acontecimentos impossveis apresentados. Quando tal acontece, o
18
19
Existem, no entanto, temas recorrentes nos textos fantsticos que podem ajudar o
leitor na sua tarefa. Com base em Dorothy Scarborough, Peter Penzoldt, Roger
Caillois e Louis Vax, Todorov enumera as temticas mais comuns: o recurso a
fantasmas ou aparies, o vampirismo, lobisomens, bruxas e bruxaria, seres
invisveis, espectros de animais, patologias da personalidade, como por exemplo a
loucura, alteraes no espao e no tempo, regresses, pactos com o diabo, almas
atormentadas, mortos que regressam vida, a esttua, figura, armadura ou
autmato que ganha vida, as maldies, o quarto, apartamento, casa ou rua
apagados do espao, a cessao ou repetio de tempo (100-101), a metamorfose
(109), as transgresses sexuais (131-39), entre um nmero imenso de outras
temticas.
20
As citaes do ensaio On Fairy-Stories so referentes edio Tolkien, Tree and Leaf (2001),
a qual inclui ainda o poema Mythopoeia, Leaf by Niggle e The Homecoming of Beorhtnoth
Beorhthelms Son.
21
Farie contains many things besides elves and fays, and besides dwarfs,
witches, trolls, giants, or dragons: it holds the seas, the sun, the moon, the sky;
and the earth, and all things that are in it: tree and bird, water and stone, wine
and bread, and ourselves, mortal men, when we are enchanted. (9)
Em relao questo da origem dos contos de fadas, Tolkien refere que esta est
envolta numa teia de complexidade:
mitologia e no folclore. Os seus estudos deram origem reunio de um vasto repertrio de contos
populares e contos de fadas, que compilou e editou em doze volumes desde The Blue Fairy Book
(1889) a The Lilac Fairy Book (1910). Lang escreveu uma srie de outras obras direccionadas para
crianas, mas o pequeno J.R.R. Tolkien gostava especialmente de The Red Fairy Book (1890),
com o qual tomou contacto com as Volsungasaga e que lhe despertou o interesse por drages
(Carpenter, The Oxford Companion To Childrens Literature 302-03).
22
diz a voz popular, e foi isso mesmo que permitiu a existncia de contos
semelhantes com elementos diferentes e vice versa.
A origem dos contos de fadas pode ser difcil de datar, contudo, podemos afirmar
que a publicao dos Kunstmrchen alemes, no final do sculo XVII, constitui
um marco importante no surgimento da Fantasia moderna. Aps longos sculos de
ensino ligado religio, ao catolicismo e parquia, com o latim a dominar os
currculos escolares de uma elite masculina, cujos manuais apenas consideravam
as fbulas de Esopo como aconselhveis para as crianas, a indstria de livros
infantis, um fenmeno bastante recente, comeou a dar os primeiros passos em
Inglaterra com a traduo dos contos populares dos irmos Jacob e Wilhelm
Grimm para ingls, sob o nome German Popular Stories, em 1823. Entre os
contos mais populares destacam-se Rumpelstiltskin e Branca de Neve, mas
no geral, e apesar de nos dias de hoje alguns dos contos serem considerados como
perturbadores para as crianas, muitas compilaes, imitaes e reedies de
contos de fadas e contos tradicionais foram publicadas nas primeiras dcadas do
sculo XIX (Hunt 1-25).
23
aumentando e o conto de fadas foi sendo recriado e readaptado com o passar dos
tempos.
24
Outra concepo errnea dos contos de fadas a sua ligao com a literatura
infantil. As crianas so em geral o pblico-alvo dos contos de fadas, devido
associao com a mente imatura e dada a invenes, a fantasias da criana,
todavia, alguns contos de fadas lidam com assuntos to profundos e adultos como
a emancipao e entrada na idade adulta e outros problemas psicolgicos do
crescimento: (...) ultrapassagem das feridas narcsicas dos conflitos edipianos,
das rivalidades fraternas, das dependncias infantis; obteno de um sentimento
6
De forma a reforar esta concepo generalizada da fada enquanto ser minsculo, vejamos a
seguinte citao de A Handbook to Literature: () [Fairy tale is] a story relating mysterious
pranks and adventures of spirits who manifest themselves in the form of diminutive human beings.
These spirits possess supernatural wisdom and foresight, a mischievous temperament, the power to
regulate the affairs of human beings for good or evil, and the capacity to change their shape.
(Holman 190).
25
26
O conto de fadas, tal como acontece com o conto popular, caracteriza-se pela sua
simplicidade a nvel formal, com uma intriga reduzida e personagens estticas7,
isto porque se insere na literatura tradicional de transmisso oral, passada de
gerao em gerao sem suporte material de fixao (Reis, Dicionrio de
Narratologia 78-86). Hoje em dia, o conto de fadas perdeu parte do seu poder de
seduo, porque o contador de histrias deixou de ser o repositor por excelncia
do conto ao ser substitudo pelos livros. Os livros para crianas actuais so muito
infantis, ou seja, possuem verses muito simplificadas do conto original e as
ilustraes vieram restringir a imaginao da criana.
But fairy-stories offer also, in a peculiar degree or mode, these things: Fantasy,
Recovery, Escape, Consolation (...) (Tolkien, On Fairy-Stories 46): a par de
um contributo pedaggico, existem quatro aspectos ou elementos que fazem do
conto de fadas um gnero narrativo benfico ao indivduo. Curiosamente, Tolkien
coloca a Fantasia dentro do conto de fadas e no o inverso.
7
fsica, psquica e social diminuta, cujo retrato obedece a uma conveno. Estas personagens so
esteretipos e valem pela sua funo na narrativa: o prncipe e a princesa, a bruxa, a av... So
muitas vezes personagens sem um nome, mas com uma designao alusiva sua funo,
parentesco ou posio social (Reis, Dicionrio de Narratologia 411-12).
27
28
Em relao aos quatro elementos dos contos de fadas, Verlyn Flieger defende o
seguinte: (...) the primary element is Fantasy, for the other three derive from it.
Fantasy is both a mode of thinking and the created result of that thinking.
(Flieger, Splintered Light 24). Ligada imaginao, a Fantasia no uma
manifestao divina inexplicvel, mas um acto de criao consciente que produz
um mundo paralelo, um Secondary World.
29
30
O conto de fadas pode ter um Final Feliz, mas o trajecto at ele envolve
sofrimento e coragem. O heri, muitas vezes vtima das circunstncias, obrigado
a abandonar a sua casa e a ir em busca de um objecto mgico, de aventuras, de um
tesouro, de si prprio, mas a sada de casa pode tambm ser uma expulso: a
madrasta ordenou que Branca de Neve fosse levada para a floresta e morta, e os
pais de Hansel e Gretel abandonaram-nos na floresta.
31
As trinta e uma funes apresentadas por Vladimir Propp obedecem a uma ordem,
podendo algumas estar ausentes ou aparecerem sempre agrupadas. No iremos
proceder identificao de todas as funes, apenas destacaremos aquelas, a que
Tolkien tambm faz meno, como essenciais dentro do conto de fadas. Segundo
Propp, o conto maravilhoso distingue-se pela existncia de uma proibio (a me
proibiu o Capuchinho Vermelho de seguir pelo caminho da floresta), seguida da
inevitvel transgresso. O heri, o qual posto prova, inicia uma demanda,
parte, porque o conto maravilhoso implica uma viagem e a deslocao entre dois
reinos, no podendo ocorrer no espao familiar do lar. A demanda do heri
implica ainda a recepo de um objecto mgico propiciador de poderes mgicos,
32
que o heri, humano, no possui. O conto oferece sempre a vitria do heri sobre
o seu agressor, logo tem sempre um Final Feliz.
A listagem de Propp foi muito importante como base de trabalho para autores
posteriores. Porm, consideramos que as suas funes podem revestir-se de um
carcter redutor, pois considera o conto de fadas como uma frmula e despoja-o
da sua essncia, uma vez que no contempla os conceitos de Consolao,
Recuperao e Escape, a Fantasia e as vertentes pedaggica e ldica. Desta forma,
o conto de fadas encarado como uma estrutura fixa, que pode sofrer algumas
alteraes, mas no muitas, no sendo tido em linha de conta o efeito produzido
no leitor pela fantasia, pelo estranho e pelo poder de seduo de um contador de
histrias, que vive por detrs de cada Era uma vez, h muito, muito tempo, num
reino muito distante...
Tolkien vai mais longe do que Propp ao afirmar que um conto de fadas lida com
maravilhas (Tolkien, On Fairy-Stories 14), ou seja, com situaes ou
elementos fora do quotidiano, como a capacidade de os animais falarem, ou a
possibilidade de as personagens terem um corao mvel, isto , h nos contos
de fadas a noo de que a vida ou a fora de um homem ou criatura pode residir
noutro local ou fora do seu corpo (a fora de Sanso estava nos seus cabelos) (17).
Um verdadeiro conto de fadas ainda fecundo em objectos mgicos, como os
anis, pentes envenenados, espelhos mgicos, varinhas de condo e mantos de
invisibilidade, tal como Propp tambm menciona, e em seres mgicos e
sobrenaturais.
33
34
Concluindo, o conto de fadas segundo J.R.R. Tolkien decorre no reino dos perigos
e das aventuras, no reino de Farie, nem sempre sobre fadas, h uma relao
com a magia e o uso de objectos mgicos, no pode tratar de um sonho ou uma
iluso, os animais podem falar, existe sempre uma proibio e um vilo, dirige-se
tanto a crianas como a adultos, mas mais importante que tudo a fantasia e a sua
utilizao para a criao de um Secondary World, onde decorrem as aventuras e as
provaes. O verdadeiro conto de fadas oferece sempre um Final Feliz
(Eucatstrofe), permitindo ainda a Recuperao, o Escape e a Consolao, por um
lado, e, por outro, provocando uma reaco no leitor:
35
As citaes do poema Mythopoeia so referentes edio Tolkien, Tree and Leaf (2001).
36
37
38
Anos mais tarde, Tolkien afirma que o Shire ter sido criado imagem de
Sarehole, esse paraso rural onde vivera: The Shire () is in fact more or less a
Warwickshire village of about the period of the Diamond Jubilee (230).
A religio catlica ficou para sempre ligada luta e ao sofrimento da me, cujas
convices moldaram em Tolkien um carcter devoto aos ensinamentos, rituais e
vivncias catlicos. A educao que vir a dar aos quatro filhos, o seu casamento
e at mesmo a sua produo literria denotam a influncia da me e do
catolicismo que lhe transmitiu.
The Hobbit (1937), The Lord of the Rings (1954-55), The Silmarillion (obra
editada e publicada postumamente pelo seu filho Christopher Tolkien em 1977),
ou at mesmo obras menos conhecidas como Leaf by Niggle (1945) e Smith of
Wootton Major (1967), espelham indirectamente as suas concepes crists da
39
O interesse pela filologia, visvel desde tenra idade, foi crescendo a par dos
estudos, mas Tolkien dedicava-se tambm a leituras extracurriculares sobre a
mitologia nrdica, to diferente da mitologia clssica que estudava em King
Edwards School. Um antigo professor, George Brewerton, recordado do gosto de
Tolkien por Chaucer e pelo Anglo-Saxo, ofereceu-lhe um livro de iniciao ao
Old English (Collins 31). Com um conhecimento mais aprofundado da lngua
utilizada antes da conquista normanda, Tolkien l no original e apaixona-se pelo
poema em Old English, Beowulf, sobre o qual vem a escrever, em 1936, uma
defesa que apresenta no ciclo de conferncias Sir Israel Gollancz. O ensaio,
Beowulf: The Monsters and the Critics, publicado nesse mesmo ano, reflecte a
sua viso de um poema at a incompreendido, como refere Jane Nitzsche em
Tolkiens Art (1979): In the Beowulf lecture Tolkien attempted to resolve the
long-standing critical debate over whether the poem was pagan or Christian by
concluding that it was both: Germanic heroic values and Christianity coexist
within the epic. (Nitzsche 3).
Entre jogos de rugby, um namoro distncia e em segredo com Edith9, e as
disciplinas da universidade, Tolkien foi desenvolvendo o que comeou por ser um
passatempo de adolescncia e se veio a tornar na lngua lfica Quenya. Esta era
uma lngua com um elevado grau de complexidade, com uma morfologia, sintaxe,
Tolkien tinha 16 anos quando conheceu Edith Bratt, trs anos mais velha. O padre Francis no
aprovou o namoro, mas, em 1913, quando Tolkien atingiu a maioridade (21 anos) tornaram
pblico o noivado e casaram-se em 1916, aps a converso de Edith ao Catolicismo.
40
Verlyn Flieger menciona a relao entre a criao das lnguas e a criao da mitologia, referindo
que o Quenya constitui um veculo e um repositrio da tradio: In creating his mythology for
England, he created as well a language to be its vehicle, Quenya, which he called Elven-latin,
and said he intended it to be a language of lore, whose phonology is directly and intentionally
modelled on the phonology of Finnish. (Flieger, Interrupted Music 31).
11
Quenya a lngua lfica falada em Aman (The Blessed Realm), para onde foram os Elfos que
seguiram a luz (Calaquendi, ou os falantes da luz), ou seja, uma lngua superior, a qual veio dar
origem ao Sindarin. Para criar esta ltima lngua Tolkien baseou-se na fonologia, sintaxe e
semntica do Galico, sendo que o Sindarin, lngua comum dos Elfos, falado pelos Elfos que
optaram por ficar em Middle-earth, tambm conhecidos como Moriquendi, ou os falantes da
escurido. Sobre esta temtica das lnguas lficas, cf. Verlyn Flieger, Splintered Light Logos and
Language in Tolkiens World, especialmente os captulos 9, 10 e 11.
41
No fundo, J.R.R. Tolkien conseguiu canalizar toda a sua vida e vivncias para um
mesmo objectivo: a criao de um Secondary World, com razes num mito
cosmognico com uma construo muito semelhante apresentada no Gnesis,
com raas e organizaes sociais adequadas ao desenvolvimento do seu amor pela
filologia, com acontecimentos histricos e batalhas com influncias dos ideais
germnicos e medievais de cavalaria, com personagens e acontecimentos
interligados com os contos de fadas.
Tolkien, com os conhecimentos que adquiriu das lnguas islandesa e finlandesa, leu no original
as sagas islandesas do sculo XIII compiladas por Snorri Sturluson, Prose Edda e Elder Edda,
tambm conhecida como Poetic Edda, assim como o Kalevala, com textos recolhidos e
compilados pelo finlands Elias Lnnrot.
13
Deste clube faziam parte Christopher Wiseman, R.Q. Gilson e G.B. Smith (Coren 22).
42
14
Clive Staples Jack Lewis (1898-1963) foi tutor de Ingls na Universidade de Magdalen, em
43
Lewis gostava de ler e de inventar histrias. Entre as leituras preferidas da infncia estavam os
contos de Beatrix Potter, Gullivers Travels, as histrias de Arthur Conan Doyle, Mark Twain e E.
Nesbit. J na adolescncia leu The Faerie Queene de Edmund Spencer, romances de William
Morris e Siegfried and the Twilight of the Gods com ilustraes de Arthur Rackham, entre outros
(Carpenter, The Inklings 4-5).
16
reunia semanalmente: um dia de manh, geralmente s teras-feiras, no bar Eagle and Child, ao
qual o grupo chamava Bird and Baby, e um dia noite, s quintas-feiras, nos aposentos de Lewis
na Universidade de Magdalen. As reunies tiveram incio na dcada de 30 e nelas procedia-se
leitura e crtica de manuscritos originais dos membros do grupo (Pearce 76-77).
17
Warren Hamilton Warnie Lewis (1895-1973), apesar de ser um oficial da Marinha Real,
partilhava com o irmo mais novo, C.S. Lewis, o gosto pela literatura, tendo publicado alguns
livros sobre histria francesa do sculo XVII (Carpenter, The Inklings 257-58).
44
In a hole in the ground there lived a hobbit (Tolkien, The Hobbit 11), assim
comea o livro que catapultou a fama de Tolkien para fora do seio acadmico,
dando a conhecer uma escrita de certa forma simples, mas rica em referncias
mitolgicas e em conhecimentos vindos da sua dedicao pessoal e profissional a
textos antigos em Old e Middle English e em Old Norse.
Contudo, The Lord of the Rings no pode ser considerada como uma verdadeira
sequela de The Hobbit, o prprio autor o afirmou numa carta a C.A. Furth da
editora Allen & Unwin, em 1939:
I think The Lord of the Rings is in itself a good deal better than The
Hobbit, but it may not prove a very fit sequel. It is more grown up but the
audience for which The Hobbit was written has done that also. () The writing
45
of The Lord of the Rings is laborious, because I have been doing it as well as I
know how, and considering every word. (Carpenter, The Letters of J.R.R. Tolkien
42)
The Lord of the Rings caracteriza-se por uma atmosfera ficcional bem diferente:
um grande nmero de personagens, descries longas e pormenorizadas,
preocupao com referncias exteriores obra, nomeadamente para desenvolver e
localizar personagens, locais e acontecimentos de The Hobbit e The Silmarillion
46
(no conhecido pelo pblico na altura da publicao de The Lord of the Rings), e
ainda pela utilizao de diferentes planos narrativos com histrias a decorrer ao
mesmo tempo. A trilogia , ento, complexa de mais para constituir uma sequela
de The Hobbit, no se negando, contudo, a continuidade narrativa a nvel das
personagens, acontecimentos e espaos geogrficos. Para mais, o prprio termo
trilogia no ser o mais correcto, sendo que a obra s foi dividida em trs
volumes por questes comerciais (Carpenter, The Letters of J.R.R. Tolkien 16465), pois havia por parte dos editores o receio de o pblico no gostar do estilo
mais narrativo e descritivo da obra, acrescentando-se a falta de papel que se fez
sentir no perodo da Guerra Fria.
Tal como foi referido anteriormente, os clubes literrios em que Tolkien tomava
parte, e em especial os Inklings, foram o palco onde decorreram os ensaios e a
antestreia de The Hobbit e The Lord of the Rings, em termos metafricos.
Contudo, Tolkien era contido em relao sua escrita, cuja exposio pblica foi
faseada. Aps uma conversa sobre deuses e gigantes da mitologia nrdica,
Tolkien mostrou a Lewis o poema sobre o amor entre Beren e Lthien e, ao
constatar o seu agrado, comeou a ler-lhe em voz alta excertos de The Silmarillion
(Carpenter, The Inklings 29-31). Lewis fez inmeras propostas de alterao dos
textos, mas Tolkien, apesar de no concordar com as sugestes, continuou a
mostrar-lhe os seus escritos.
C.S. Lewis e J.R.R. Tolkien possuam estilos literrios dspares, mas a predileco
por deuses e mitos escandinavos, por drages e gigantes, assim como por todo um
imaginrio medieval de justas, senhores e conquistas unia-os enquanto leitores e
escritores. Se C.S. Lewis se confessou desde incio um grande apreciador e
entusiasta da escrita de Tolkien, o inverso no se verificou, e, quando Lewis
comeou a ler nas reunies dos Inklings as histrias de Narnia, Tolkien no se
mostrou muito impressionado (Pearce 89). Porm, The Lion, the Witch and the
Wardrobe (1950) e os subsequentes seis livros sobre Narnia no deixaram de ser
47
Owen Barfield, que tambm participou em algumas das reunies dos Inklings, era
amigo de C.S. Lewis, com quem aderiu Anthroposophical Society, por volta de
1922. Esta sociedade, e outras que se formaram em meados do sculo XIX e a
partir do incio do sculo XX21, tinha como membros acadmicos e estudiosos que
se dedicavam recolha e compilao de contos populares e de fadas, numa
tentativa de explicar temas comuns, mas, de igual modo, para fazer um estudo
18
Oxford University Press, que fora transferida para Oxford devido II Guerra Mundial (Carpenter,
The Inklings 259).
19
Inicialmente agnstico, C.S. Lewis tinha-se convertido ao cristianismo, neste caso Igreja
Anglicana.
20
Owen Barfield (1898-1997), escritor, jornalista e advogado, foi um amigo ntimo de Lewis e
participava algumas vezes nas reunies dos Inklings. Entre as suas obras destacam-se Poetic
Diction (1928) e What Coleridge Thought (1971), entre muitas outras (255).
21
folclore, no qual se salienta o trabalho elaborado pelos irmos Grimm, j referido anteriormente
neste trabalho.
48
Dentro dos estudos comparativos que defendem a existncia de uma ligao entre
os temas dos contos, temas estes considerados como universais, destaca-se The
Golden Bough de Sir James Frazer e os estudos dos Formalistas Russos, referidos
anteriormente. Todavia, estes primeiros estudos no eram muito profundos, indo
pouco alm da recolha, ou no saindo do campo da filologia, e Owen Barfield ao
aliar o seu estudo antroposofia de Rudolph Steiner22, vem sugerir a
interconeco entre o mito e a linguagem e a existncia de uma unidade
semntica: ancient semantic unity (Flieger, Splintered Light 35).
22
Em relao Antroposofia de Steiner e sua influncia sobre Barfield, Flieger refere: Through
Steiner, Barfield came to believe that that [sic] the universe was the product of design and was
suffused with meaning and, moreover, that imagination can be used quite as well as logic and
reason to gain a better understanding of that universe and to comprehend the phenomena of the
world around us.(Flieger, Splintered Light 36). A Antroposofia diz que o processo de evoluo da
humanidade e do universo antropocntrico, uma vez que a tomada de conscincia do homem,
em relao ao que o rodeia e a si prprio, que tem levado separao dos mundos natural e
sobrenatural: This increasing consciousness, now at a stage of complete separation from the
natural and supernatural worlds, is a necessary step in the progression to full consciousness, a final
step of full self-awareness both of our human individuality and our union with God and the
universe.(36). Esta ainda uma filosofia que no entra em conflito com o cristianismo, da o
agrado de Tolkien.
49
Poetic Diction (1928) de Owen Barfield comeou por ser um estudo, um trabalho
de investigao sobre o vocbulo ruin e a sua evoluo semntica, mas o seu
enfoque viria a ser alargado a uma anlise da problemtica do sentido e da
percepo das palavras. Verlyn Flieger expe as seguintes ideias acerca de Poetic
Diction:
The genesis of Poetic Diction was a study Barfield had begun in 1922 for
his B.Lit. Thesis on the history and changing meaning of the word ruin. By 1928,
the study of ruin was one chapter in the larger, more comprehensive Poetic
Diction, subtitled A Study in Meaning. The focus had expanded from the changes
in one word to the whole question of meaning and of the relation of perception to
word and of word to concept. (Flieger, Splintered Light 37)
J.R.R. Tolkien, o qual dedicou grande parte da sua vida ao estudo da histria e
evoluo das lnguas e das palavras, partilhava com Barfield a crena na unidade
semntica, ou seja, para ele as palavras exprimiam, aquando da sua origem, a
percepo do homem em relao a dado objecto ou realidade, incorporando-o/a.
Por outro lado, a sua defesa de que as palavras so a expresso de mitos foi ao
encontro da concepo de mitologia de Tolkien. Novamente Flieger acerca da
teoria de Barfield:
50
For the lover of words, or philologist, every Word is a window into the
past. () The word is, in fact, the sum of all its forms and meanings and uses
over time, insofar as those are recoverable through philological research.
Language records a cultures habits and concerns, its physical
environment and its myth. (Attebery 28)
51
Attebery destaca, ainda, o facto de ser o conhecimento das estruturas das lnguas,
especialmente do Ingls, o factor que catapultou a escrita:
It could well be said that the English language wrote LOTR [The Lord of
the Rings], but with J.R.R. Tolkien as active collaborator. Without his erudition
and his imaginative understanding of the connotative and contextual, as well as
structural, properties of language, the text could not have come into being. (29)
Ter sido no seio dos Inklings que Tolkien entrou em contacto com as teorias de
Barfield. Porm, dentro deste clube, os debates no se resumiam a temas
acadmicos e literrios, abrangendo questes filosficas, religiosas e metafsicas.
Lewis abordava com frequncia a problemtica da veracidade dos Evangelhos, em
cuja palavra Tolkien acreditava e baseava a sua filosofia de vida. Segundo uma
ptica muito pessoal de Tolkien, os Evangelhos contavam, ainda, um conto de
fadas:
52
The man who described myth and fairy-story as lies was C.S. Lewis.
On the fifth version of Mythopoeia (that in which the opening words He looks
at trees became You look at trees) my father wrote JRRT for CSL, and again
on the sixth, adding Philomythus Misomytho. (Tolkien, Tree and Leaf vii)
53
Lewis had never underestimated the power of myth. Far from it, for one
of his earliest loves had been the Norse myth of the dying god Balder. Now,
Barfield had shown him the crucial role that mythology had played in the history
of language and literature. But he still did not believe in the myths that delighted
him. Beautiful and moving though such stories might be, they were (he said)
ultimately untrue. As he expressed it to Tolkien, myths are lies and therefore
worthless, even though breathed through silver.
No, said Tolkien. They are not lies.
Just then (Lewis afterwards recalled) there was a rush of wind which
came so suddenly on the still, warm evening and sent so many leaves pattering
down that we thought it was raining. We held our breath.
When Tolkien resumed, he took his argument from the very thing that
they were watching. (Carpenter, The Inklings 42-43)
Christopher Tolkien refere no Prefcio de Tree and Leaf uma nota feita pelo seu
pai numa das verses finais de Mythopoeia, a qual identifica este cenrio do
passeio em Magdalen e o sbito vento como o contexto onde nasceu a sua
mitopeia (Tolkien, Tree and Leaf viii). Ter sido, ento, a partir daquele
acontecimento especfico no tempo, que Tolkien, acometido de uma inspirao
54
You look at trees, he said, and call them trees, and probably you do not
think twice about the word. You call a star a star, and think nothing more of it.
But you must remember that these words, tree, star, were (in their original
forms) names given to these objects by people with different views from yours.
To you, a tree is simply a vegetable organism, and a star simply a ball of
inanimate matter moving along a mathematical course. But the first men to talk
of trees and stars saw things very differently. To them, the world was alive
with mythological beings. They saw the stars as living silver, bursting into flame
in answer to the eternal music. They saw the sky as a jewelled tent, and the earth
as the womb whence all living things have come. To them, the whole of creation
was myth-woven and elf-patterned. (Carpenter, The Inklings 43)
Nesta conversa est reflectida a viso de Barfield, apesar da sua ausncia nessa
noite, a partir da qual Tolkien trabalhou a sua teoria da verdade ltima do mito e
da sua primitiva ligao linguagem, palavra. Segundo a sua concepo, o
homem dos tempos antigos via o mundo sua volta de forma diferente, atribuindo
s coisas uma conotao mtica fruto da sua viso: uma estrela prata viva em
chamas e o firmamento uma tenda repleta de pedras preciosas:
55
Esta era a forma como o homem percepcionava o mundo e foi atravs dessa
percepo que o descreveu, ou seja, o mundo em seu redor, a natureza, os
elementos, transmitiam ao homem sensaes, energias, que ele captou e as quais
estavam patentes no nome que utilizou para as nomear. Se hoje, para o homem
moderno, uma rvore apenas um elemento do mundo vegetal e uma estrela um
corpo celeste, para o homem antigo a rvore e a estrela eram mais do que isso,
pois eram componentes de um mundo repleto de mitos e figuras mitolgicas,
segundo Tolkien, de um mundo: myth-woven and elf-patterned.
23
Cf. Anexo A.
56
24
nfase acrescentada.
25
As referncias simblicas luz e ao som foram trabalhadas a partir de Dicionrio dos Smbolos
57
J.R.R. Tolkien manteve-se sempre fiel s suas convices, tanto religiosas como
profissionais, defendendo at ao final da sua vida a unio entre as lnguas e
literaturas em Oxford. O reconhecimento pela sua longa luta acadmica chegou
em 197126 quando, j vivo, a Universidade de Merton o convidou para Membro
Honorrio Residente e a rainha Isabel II lhe atribuiu o CBE (Companion of the
Order of the British Empire) (Collins 95-99). At falecer, em 1973, Tolkien
esteve sempre rodeado por livros e alunos, com os quais debateu muitas ideias.
26
58
59
27
George R.R. Martin (1948 ) escreveu vrias obras fantsticas, como por exemplo Fever
Dream (1982) ou, mais recentemente, a coleco A Song of Ice and Fire iniciada em 1996 e para a
qual se encontra a escrever os quinto e sexto volumes. Martin mais conhecido como guionista,
tendo sido o produtor da srie televisiva Beauty and the Beast e editor do guio de alguns
episdios de The Twilight Zone (Haber 231).
60
George R.R. Martin, voltando citao inaugural deste captulo, fala de como o
ser humano comeou a fazer uso da fantasia, colocando a sua origem na prpria
mente humana, a qual, no encontrando uma explicao lgica, plausvel para
aquilo que ficava fora do alcance da sua viso, tentou preencher esses espaos
desconhecidos com maravilhas e terrores. Segundo Martin e dentro da mesma
perspectiva abordada no Captulo I, o exerccio da Fantasia explicar o
desconhecido, dar visibilidade ao invisvel, utilizando para isso elementos
maravilhosos e de assombro, pois o medo daquilo que estava para alm do
familiar, do conhecido, dava asas imaginao.
No ter sido, porm, o temor, mas antes uma certa curiosidade que, aliada ao seu
amor pela literatura e pela lngua, tero originado em Tolkien a vontade de dar ao
seu pas, Inglaterra, uma dimenso mitolgica e uma tradio pica, de forma a
suprimir uma lacuna que existia, segundo Tolkien, em relao histria do povo
ingls. T.A. Shippey, grande defensor do universo literrio de Tolkien, refere esta
questo:
61
[]), partly as a result of the early Industrial Revolution, which led to the
extinction of what remained rather before the era of scholarly interest and folktale collectors like the Grimms. If Tolkien was to create an English mythology,
he would first (given his scholarly instincts) have to create a context in which it
might have been preserved. (Shippey 268)
28
Na mitologia islandesa, rica em histrias sobre drages, existe um conjunto de sagas do sculo
XIII compiladas por Snorri Sturluson, Prose Edda (textos em prosa) e Elder Edda (textos
poticos), e na mitologia finlandesa encontramos o Kalevala, j referidos anteriormente. Verlyn
Flieger refere, em Interrupted Music, a grande importncia que esta ltima obra operou em
Tolkien: Lnnrot compiled, selected, and put into narrative order songs of creation and heroism,
incantations and shamanism, and the vagaries of ordinary human life. In so doing, he gave
Finnland, for two hundred years the fief alternately of Sweden and Russia, its own mythic and
literary heritage its own mythic, therefore national identity. () It seems clear that Tolkien
envisioned himself doing exactly that, constructing a world of magic and mystery, creating a
heroic age that, although it might never have existed, would give England a storial sense of its own
mythic, therefore national, identity, but with this difference that his work, unlike Lnnrots,
would be a fictive construct. (Flieger, Interrupted Music 29).
62
Middle-earth foi, deste modo, o cenrio escolhido para receber a sua mitologia,
que comeou por ser algo muito pessoal, com a qual at o prprio autor se sentia
pouco seguro:
Do not laugh! But once upon a time (my crest has long since fallen) I had
a mind to make a body of more or less connected legend, ranging from the large
and cosmogonic, to the level of romantic fairy-story () which I could dedicate
simply to: to England; to my country29. It should possess the tone and quality that
I desired, somewhat cool and clear, be redolent of our air (the clime and soil of
the North West, meaning Britain and the hither parts of Europe: not Italy or the
Aegean, still less the East), and, while possessing (if I could achieve it) the fair
elusive beauty that some call Celtic (though it is rarely found in genuine ancient
Celtic things), it should be high, purged of the gross, and fit for the more adult
mind of a land long now steeped in poetry. I would draw some of the great tales
in fullness, and leave many only placed in some scheme, and sketched. The
cycles should be linked to a majestic whole, and yet leave scope for other minds
and hands, wielding paint and music and drama. Absurd. (Carpenter, The Letters
of J.R.R. Tolkien 144-145)
29
nfase acrescentada.
63
64
65
Leaf by Niggle um pequeno conto que Tolkien escreveu por volta de 1938-39,
numa altura em que iniciou uma srie de textos para continuao de The Hobbit
(1937), vindo a ser publicado em 1945 no jornal Dublin Review. Em 1964, Leaf
by Niggle foi novamente publicado em conjunto com On Fairy-Stories,
passando o livro a designar-se Tree and Leaf. O prprio Tolkien justifica a
publicao conjunta em Introductory Note da primeira edio:
Tree and Leaf (2001), edio que inclui ainda Mythopoeia e The Homecoming of Beorhtnoth
Beorhthelms Son.
66
Subcriao/Criao
Subcriador/Criador
so
conceitos
aprofundados
A abertura do conto processa-se da seguinte forma: There was once a little man
called Niggle, who had a long journey to make. (Tolkien, Leaf by Niggle 93).
Niggle -nos apresentado como um pequeno homem, no sendo dito se se trata de
um hobbit, o qual estava perante a iminncia de uma grande viagem. Esta viagem,
conclui-se no final do conto, de cariz simblico podendo representar a morte, a
passagem para um estado para alm da vida, como tambm a luta, o trabalho
rduo de um artista nem sempre recompensado e nem sempre apreciado.
Niggle um artista, um pintor que trava uma luta contra o tempo, pois pretende
finalizar a sua pintura antes de partir para a viagem. A pintura compe-se de uma
tela de enormes dimenses onde ele comeou por pintar uma folha, depois uma
rvore e mais rvores, ao ponto de estar perante uma floresta com montanhas
como cenrio31. Devido a um conjunto de distraces exteriores, nomeadamente
por parte do seu vizinho Parish, j coxo e a precisar que o mdico consultasse a
sua esposa, e o qual Niggle ajudou com uma certa relutncia e demora,
acrescentando-se ainda a preguia que sempre o acometeu, Niggle no conseguiu
terminar a tela antes da chegada da carruagem que o levaria at Estao.
Ao longo do conto so muitos os elementos que devero ser vistos num plano
simblico, como por exemplo a carruagem, o Bagageiro na estao de comboios
que grita o seu nome, a Enfermaria para onde conduzido, ou as Vozes que
31
67
32
Tolkien nunca considera a sua obra como alegrica, mas Niggle , de certa forma, um
68
Aps a morte e a clausura surge a libertao para dentro do seu prprio quadro
inacabado, o qual dever concluir com a ajuda do vizinho. Os dois terminam a
pintura, dentro da qual Niggle segue o seu caminho at s montanhas. Estas so,
no fundo, as fases para a evoluo espiritual. No mundo fsico temos um Niggle
egosta e preguioso, mas com a morte transita para a Enfermaria, a qual constitui
um limbo, um purgatrio onde Niggle julgado. Depois desta fase -lhe permitido
subir mais um degrau entrando no seu quadro, onde o trabalho, em conjunto e
harmonia com Parish, o conduz ao caminho da Montanha, ou seja, ascenso
espiritual.
Kocher, que dedica uma parte do Captulo VII: Seven Leaves de The Fiction of
J.R.R. Tolkien a este conto Leaf by Niggle, refere:
69
Probably every writer making a secondary world, a fantasy, every subcreator, wishes in some measure to be a real maker or hopes that he is drawing on
reality: hopes that the peculiar quality of the secondary world (if not all the
details) are derived from reality, or are flowing into it. (Tolkien, On FairyStories 70-71).
a Farie.
70
A noo de Escape, por seu turno, est presente segundo aquilo que Tolkien
considera o Grande Escape: And lastly there is the oldest and deepest desire, the
Great Escape: the Escape from Death. (68). A morte de Niggle no dolorosa e
no um fim em si, mas sim uma progresso e uma transio, ou seja, uma fuga
para uma outra dimenso, que no implica o final da vida espiritual. A par deste
Escape morte temos a Consolao de um Final Feliz: a morte no mais que o
momento em que se d a Eucatstrofe, a tal reviravolta feliz.
71
de Niggle, feita em vida e depois dela, nada ir restar. Nem todos os artistas ou
subcriadores vem o seu trabalho reconhecido, mas o importante deixar a obra
terminada.
O aspecto explcito est relacionado com a figura de Niggle e com o seu trajecto
enquanto pintor. O conto mostra-nos Niggle em luta contra o tempo, a preguia e
as muitas distraces exteriores, sacrificando-se atravs do trabalho, apesar das
dificuldades artsticas, produtivas. Num plano inicial e terreno da histria, Niggle
um artista incompreendido e no apreciado. Num plano posterior e espiritual,
Niggle um Artista ou um Subcriador, o qual deu forma a um mundo imaginrio
utilizando para isso o pincel, as tintas, a tela e o seu poder criativo: a imaginao.
72
Neste caso especfico, o Artista um pintor, mas tambm poderia ser um escultor,
um arquitecto ou um escritor34.
O aspecto implcito, por outro lado, est intimamente ligado aos conceitos de
Folha e rvore, tambm eles o elo de ligao entre Leaf by Niggle e On
Fairy-Stories, tal como Tolkien afirma na Introductory Note primeira edio de
Tree and Leaf, a qual foi j referida previamente neste captulo.
34
Num plano mais remoto, o pequeno Niggle reflecte alguns traos que o identificam com o seu
autor: muitos afazeres em simultneo, o amor pelas rvores e uma obra que ganhou vida prpria,
crescendo em todas as direces quase descontroladamente.
73
desenhar despontou, ganhou forma e a tela foi-se enchendo de folhas, mas o facto
de no possuir conhecimentos suficientes sobre o mundo vegetal e os seus ciclos
de vida, no lhe permitiu evoluir em termos pictricos, nem desenhar uma rvore
cujos ramos suportassem as suas folhas.
Para aprender a desenhar uma rvore, Niggle morreu, pois s assim conseguiu o
que Tolkien apelida de Recuperao (um dos quatro elementos do conto de fadas,
j abordados no captulo anterior) e, com ela, uma nova viso do mundo real e
tambm do mundo inventado. Acerca do trabalho daqueles que se iniciam agora
na laboriosa tarefa de recolha de folhas, isto , leitura ou observao de obras
literrias e/ou pictricas j existentes, e que se deparam com um problema de criar
algo de novo, Tolkien menciona:
It is easy for the student to feel that with all his labour he is collecting
only a few leaves, many of them now torn or decayed, from the countless foliage
of the Tree of Tales, with which the Forest of Days is carpeted. It seems vain to
add to the litter. Who can design a new leaf? The patterns from bud to unfolding,
and the colours from spring to autumn were all discovered by men long ago. But
that is not true. The seed of the tree can be replanted in almost any soil, even in
one so smoke-ridden (as Lang said) as that of England. (56)
74
no contexto alargado da floresta, mas v-la para alm do que ela , num sentido
metafrico ou simblico:
We should look at the green again, and be startled anew (but not blinded)
by blue and yellow and red. We should meet the centaur and the dragon, and then
perhaps suddenly behold, like the ancient shepherd, sheep, and dogs, and horses
and wolves. This recovery fairy-stories [sic] help us to make. In that sense only a
taste for them may make us, or keep us, childish.
Recovery (which includes return and renewal of health) is a re-gaining
regaining of a clear view. I do not say seeing things as they are and involve
myself with the philosophers, though I might venture to say seeing things as we
are (or were) meant to see them as things apart from ourselves. We need, in
any case, to clean our windows; so that the things seen clearly may be freed from
the drab blur of triteness or familiarity from possessiveness. (57-58)
Numa carta escrita sua tia, Jane Neave, em 1962, Tolkien refere acerca de Leaf
by Niggle:
75
It was written (I think) just before the War began, though I first read it
aloud to my friends early in 1940. I recollect nothing about the writing, except
that I woke one morning with it in my head, scribbled it down and the printed
form in the main hardly differs from the first hasty version at all. I find it still
quite moving, when I reread it.
It is not really or properly an allegory so much as mythical. For
Niggle is meant to be a real mixed-quality person and not an allegory of any
single vice or virtue. (Carpenter, The Letters of J.R.R. Tolkien 320-321)
Tolkien insistiu sempre numa perspectiva mtica e nunca alegrica para abordar a
sua obra. Neste caso especfico Niggle dever ser encarado enquanto ser humano,
com qualidades e defeitos, e no como uma personagem alegrica representativa
de determinado vcio ou virtude. Se se seguir o conselho de Tolkien, e se optar
por uma abordagem mtica deste conto, conclui-se que os vestgios mitolgicos
em Leaf by Niggle apontam para alguns mitos cristos, como por exemplo a
parbola de Job, o Jardim do den e a rvore da Vida.
76
semelhante viso divina, se aceitar o que a vida lhe traz de bom e de mau, pois
s a aceitao permite evoluir, encontrar respostas e atingir a sabedoria.
77
Para Niggle desenhar uma folha era fcil, mas desenhar uma rvore significava
estar em comunho com o divino e conseguir a elevao espiritual, significava
tambm estar em harmonia com o mundo exterior e compreend-lo ao ponto de o
reproduzir subcriando.
Dentro da extensa obra literria de J.R.R. Tolkien, Leaf by Niggle uma obra
nica, pois no se trata nem de uma obra de crtica literria, como por exemplo
On Fairy-Stories (1939) ou Beowulf: The Monsters and the Critics (1936),
35
78
nem pode ser, primeira vista, enquadrada na globalidade de obras sobre a Terra
Mdia. A sua singularidade torna-a uma obra de excepo, no podendo ser,
contudo, ignorada por quem estuda a problemtica da subcriao de uma
mitologia para Inglaterra, no fundo, o objecto em estudo neste captulo.
Ento, qual a pertinncia desta obra para a subcriao de uma mitologia para
Inglaterra?
Leaf by Niggle, The Lord of the Ring ou The Silmarillion partilham de uma
viso de esperana na existncia de uma morada celeste aps a morte, no primeiro
simbolizada pela subida de Niggle Montanha e nos outros dois pelas referncias
s Undying Lands, situadas a ocidente da Terra Mdia fora dos crculos do
mundo.
79
Tolkien declara, contudo, que no existe qualquer relao entre o conto Leaf by
Niggle e o seu legendrio ou (...) body of more or less connected legend (...)
(144):
Tolkien alega que Leaf by Niggle e Farmer Giles no esto inseridos nos
escritos sobre o mito cosmognico de Middle-earth, o qual deveria preencher a
lacuna existente na mitologia inglesa, uma vez que, inicialmente e como j foi
mencionado a propsito de Leaf by Niggle, a sua escrita foi mais ou menos
espontnea e no ter existido, da parte do escritor, a conscincia ou a inteno de
o fazer. Aps vrias leituras, porm, o leitor chega concluso que at mesmo
estes contos podem conter contribuies para a construo de uma mitologia para
Inglaterra.
80
81
Todas as citaes e referncias a estes dois contos so retiradas de uma edio conjunta sob o
nome de Tales from the Perilous Realm, publicada postumamente pela primeira vez em 1997,
sendo a edio utilizada de 2002. A edio inclui Farmer Giles of Ham, The Adventures of
Tom Bombadil, Leaf by Niggle e Smith of Wootton Major.
38
Um verdadeiro conto de fadas deve ser entendido aqui como um conto de fadas de acordo
82
39
nfase acrescentada.
40
Tanto Farmer Giles of Ham como Smith of Wootton Major so de facto contos, pois no
83
Farmer Giles of Ham um conto herico de pendor irnico, contado num tom
muito divertido, que Tolkien escrevera, tal como acontecera com Leaf by
Niggle, numa altura em que tentava desenvolver uma sequela para The Hobbit.
Apenas foi publicado em 1949, mas j se encontrava escrito, ainda que numa
verso muito reduzida, em 1939, tendo sofrido algumas alteraes at sua
publicao final. Por seu turno, Smith of Wootton Major teve origem num
pedido, em 1964, de uma editora americana, a Pantheon Books of New York, para
que redigisse um Prefcio para uma nova edio de The Golden Key de George
MacDonald. O Prefcio nunca chegou a ser composto, mas o conto foi publicado
em 1967.
84
An excuse for presenting a translation of this curious tale, out of its very
insular Latin into modern tongue of the United Kingdom, may be found in the
glimpse that it affords of life in a dark period of the history of Britain, not to
mention the light that it throws on the origin of some difficult place-names.
(Tolkien, Farmer Giles of Ham 3)
Little Kingdom o nome do reino onde decorre a aco, mais uma vez a
preferncia pela pequenez to constante em Tolkien, e Ham o nome da vila onde
vivia o agricultor Giles. Existe na descrio desta pequena vila uma certa
nostalgia por uma sociedade pr-industrial e uma apologia da pacatez da vida
rural. Ham pode mesmo conter alguns pontos de contacto com o Shire de The
Lord of the Rings ou The Hobbit, vejamos a seguinte citao:
41
entre o natural e o sobrenatural () (Furtado 64), que neste conto conseguida atravs deste
Prefcio.
42
Ao contrrio do que acontece noutros escritos, neste Tolkien declara directamente tratar-se de
uma histria que poder ajudar a compreender melhor um dado momento da histria inglesa, logo,
e apesar da ironia, este mais um elo na tentativa de criar uma mitologia para Inglaterra.
85
gidius de Hammo was a man who lived in the midmost parts of the
Island of Britain. In full his name was gidius Ahenobarbus Julius Agricola de
Hammo; for people were richly endowed with names in those days, now long
ago, when this island was still happily divided into many kingdoms. There was
more time then, and folk were fewer, so that most men were distinguished.
However, those days are now over (). Ham was only a village, but villages
were proud and independent still in those days. ()
The time was not one of hurry or bustle. But bustle has very little to do
with business. Men did their work without it; and they got through a deal both of
work and of talk. There was plenty to talk about, for memorable events occurred
very frequently. But at the moment when this tale begins nothing memorable had,
in fact, happened in Ham for quite a long time. (5-6)
He had his hands full (he said) keeping the wolf from the door: that is,
keeping himself as fat and comfortable as his father before him. The dog was
busy helping him. Neither of them gave much thought to the Wide World outside
their fields, the village, and the nearest market.
But the Wide World was there. (6)
86
Farmer Giles had a dog. The dogs name was Garm. Dogs had to be
content with short names in the vernacular: the Book-latin was reversed for their
betters. Garm could not talk even dog-latin; but he could use the vulgar tongue
(as could most dogs of his day) either to bully or to brag or to wheedle in.
Bullying was for beggars and trespassers, bragging for other dogs, and wheedling
for his master. Garm was both proud and afraid of Giles, who could bully and
brag better than he could. (5)
87
Ao contrrio do seu dono, o qual tinha um extenso nome em lngua latina, Garm
era apenas Garm e nem sequer era um co assim to corajoso. Apesar de tudo
desempenhava a sua funo de guarda e avisava o seu dono sempre que algo de
anormal ocorria gritando: Help! Help! Help! (8, 17). A sua aflio era tal que
Giles, ainda que refilando, saa de casa para se certificar que o aviso do co era
verdadeiro.
Ter sido por um mero acaso que Giles, seguindo o alerta dado por Garm, se
levanta da cama, pega na arma43 e dispara tudo o que tinha ao seu alcance contra o
gigante invasor. Ao feri-lo no nariz, o gigante foge e Giles aclamado heri.
Apesar do herosmo que lhe foi atribudo pelos restantes habitantes, Giles no o
heri valente e astucioso dos contos de fadas, agindo por medo e sem pensar:
(...) Farmer Giles saw him [the giant] and was scared out of his wits. He
pulled the trigger without thinking, and the blunderbuss went off with a
staggering bang. By luck it was pointed more or less at the giants large ugly
face. Out flew the rubbish, and the stones and the bones, and the bits of crock and
wire, and half a dozen nails. And since the range was indeed limited, by chance
43
A arma em questo chamada blunderbuss e mais uma vez Tolkien faz uso da sua ironia para a
descrever: (...) Some may well ask what a blunderbuss was. Indeed, this very question, it is said,
was put to the Four Wise Clerks of Oxenford () (Tolkien, Farmer Giles of Ham9). Em
seguida apresenta a sua definio que , segundo Kocher, igual definio dada pelo Oxford
English Dictionary, em cuja 1 edio Tolkien trabalhou como lexicgrafo: This quotation
corresponds word for word with the definition of blunderbuss given in the Oxford English
Dictionary. Of course the Four Wise Clerks of Oxenford must then be the four editors of the
Dictionary: James A.H. Murray, Henry Bradley, W.A. Craigie, and C.T. Onions. Since Tolkien
was Rawlinson Professor of Anglo-Saxon at Pembroke College, Oxford, when the Dictionary was
first printed in 1933, and helped in its preparation, the blunderbuss incident takes on the aspect of
a private joke with his colleagues () (Kocher 179).
88
and no choice of the farmers many of these things struck the giant: a piece of pot
went in his eye, and a large nail stuck in his nose. (10)
Giles teme o gigante, mas uma srie de factores conduzem ao seu sucesso: os
avisos do co, tambm ele amedrontado, permitem-lhe ganhar tempo e alcanar a
blunderbuss antes de o gigante destruir a sua casa, e o ferimento causado no
gigante, apesar de ligeiro, foi o suficiente para o afastar. Qualquer um poderia ter
feito o mesmo, pois Giles reagiu por instinto, atingindo o gigante por mera sorte,
contudo este um tipo de heri presente em muitos outros textos de Tolkien.
Trata-se de um heri acidental, pouco provvel, devido sua diminuta valentia e
vida pacata que leva, um heri que no parte aventura, mas que devido a todo
um conjunto de acontecimentos e peripcias forado a agir e acaba por realizar
algumas proezas. Este o heri destinado a s-lo, independentemente da vontade
de o ser ou no, ao ponto de, mesmo no saindo de casa, ser colocado prova por
Farie.
89
Sendo uma pequena parte do Reino dos Perigos, Little Kingdom tambm um
local onde o perigo est sempre iminente e onde podem ser encontradas vrias
figuras mticas e sobrenaturais. O gigante que invade as terras de Giles, destruindo
tudo sua passagem, constitui uma fora desmedida a combater. No incio da
narrativa, Giles descrito como um jovem de barba ruiva (Ahenobarbus [5]),
com uma vida calma e estvel, mas, por outro lado e devido sua pacatez, com
uma vida parada no tempo, sem evoluo espiritual. Aps o combate com o
gigante, Giles transforma-se, adquire uma personalidade mais marcada e o seu
percurso at aos encontros e dilogos com o drago um percurso evolutivo em
termos espirituais, adquirindo, no final do conto, o estatuto de Lord of Ham (56)
e ascendendo a um patamar superior de maturidade simbolizado pela sua longa
barba branca.
() But at last, waking suddenly, he [the dragon] set off in search of that
tallest and stupidest of the giants, who had started all the trouble one summers
night long before. He gave him a piece of his mind, and the poor fellow was very
much crushed.
90
A blunderbuss, was it? said he, scratching his head. I thought it was
horseflies! (57)
Face proeza cometida perante o gigante, Giles foi aclamado e saudado por
todos. O prprio Rei enviou a Giles uma carta designando-o como sbdito leal e
presenteou-o com um cinto e uma espada. Mais uma vez, Tolkien ridiculariza a
situao, porque o Rei nunca usara a espada e esta estava fora de moda:
() The King sent a belt and a long sword. To tell the truth the King had
never used the sword himself. It belonged to the family and had been hanging in
his armoury time out of mind. The armourer could not say how it came there, or
what might be the use of it. Plain heavy swords of that kind were out of fashion at
court just then, so the King thought it the very thing for a present to a rustic. (1314)
44
Thor pertence ao panteo dos deuses nrdicos e um dos filhos de Odin, o deus dos deuses.
Thor o deus do cu e do trovo, trazendo sempre consigo o martelo Miollnir, que utiliza nas lutas
contra os gigantes (Philip 187).
45
91
O Rei incauto e arrogante oferece a Giles mais do que uma simples espada,
oferece-lhe poder. A espada um objecto mgico poderoso, que pertencera a
Bellomarius, um grande caador de drages (23). O proco de Ham ao ler as runas
escritas na lmina identifica-a como sendo Caudiomordax, ou Tailbiter, e pode ser
tida como uma espada superior a todas as grandes espadas da histria, como por
exemplo a Excalibur de Artur, a Durendal de Rolando ou a Andril de Aragorn,
porque possua a capacidade de transformar em heri quem quer que a
empunhasse. Sempre que um drago esteja a cinco milhas de distncia,
Caudiomordax salta da bainha, e em combate ela que desfere os golpes nos
pontos fracos do drago.
46
Chrtien de Troyes (circa 1135-circa 1190) considerado como o criador da epopeia corts de
lngua francesa, sendo o autor de sete romances, dos quais seis reportam s aventuras dos
Cavaleiros da Tvola Redonda e s lendas arturianas, ou seja, matria da Bretanha, como por
92
In the absence of schools, books are the best answer, and Lull47 goes on
to discuss in detail the duties of a knight. His first duty, he says, is to defend the
faith of Christ against unbelievers, which will win him honour both in this world
and the next (). He must also defend his temporal lord, and protect the weak,
women, widows and orphans. He should exercise his body continually, by
hunting wild beasts () and by seeking jousts and tournaments. Under the King,
he should judge the people and supervise their labours (). (Keen 9-10)
Referncia a Ramon Lull, um eclesistico castelhano do sculo XII, que defende o ideal do
93
48
Em Farmer Giles of Ham, o Rei ultimava os preparativos para a festa quando o drago invadiu
o reino (Tolkien, Farmer Giles of Ham18-19) e, em Sir Gawain and the Green Knight, o Rei
Artur e os Cavaleiros da Tvola Redonda encontravam-se, no incio da narrao, reunidos para
celebrar o Natal (Sir Gawain and the Green Knight 22).
94
No final da histria, Giles forma uma corte magnificente, da qual vem a ser Rei, e,
para guardar o drago e o tesouro, rene doze jovens cavaleiros, os
Wormwardens, que mais no so do que uma nova ordem de cavalaria. O facto de
Giles se tornar regente de um novo reino s possvel porque Giles nunca jura
lealdade ao Rei de Little Kingdom, apesar de lhe ter pago um tributo at se tornar
no Rei gidius Draconarius, subindo assim ao mais alto posto de um cavaleiro, o
de rei cavaleiro.
95
But the knights did nothing; their knowledge of the dragon was still quite
unofficial. ()
Yet the excuses of the knights were undoubtedly sound. First of all, the
Royal Cook had already made the Dragons Tail for that Christmas, being a man
who believed in getting things done in good time. It would not do at all to offend
him by bringing in a real tail at the last minute. He was a very valuable servant.
(Tolkien, Farmer Giles of Ham 18)
Para alm disso, recusam-se a reagir sem notificao prvia, uma vez que o
cdigo de honra da cavalaria assim o exigia. A notificao prvia para um duelo
era to importante, que mesmo o drago recusa lutar contra Giles se este no lhe
disser o seu nome e no o desafiar primeiro:
You have concealed your honourable name and pretended that our
meeting was by chance; yet you are plainly a knight of high lineage. It used, sir,
to be the custom of knights to issue a challenge in such cases, after a proper
exchange of titles and credentials. [said the dragon] (30)
96
Aps o acordo feito com o drago, no qual este prometera a Giles no destruir
Ham e no qual compra a sua liberdade em troca de uma parte do seu tesouro, e
verificando Giles que o drago no cumprira a promessa feita perante a
Caudiomordax, um grupo de cavaleiros do Rei acompanha Giles montanha onde
vive o drago. Neste episdio, Giles lidera enquanto os cavaleiros discutem quem
deve ir na retaguarda. No ser, por isso, de estranhar, tendo em conta o
comportamento destes cavaleiros, que os drages mais novos nunca tenham visto
um cavaleiro e o julguem como uma figura mtica49.
atravs deste mundo s avessas, que Tolkien projecta a sua teoria sobre o conto
de fadas, tambm ela tratada por outros autores de forma avessa. Seguindo a sua
convico de que os contos de fadas no estavam a ser respeitados, que estavam a
ser mal-interpretados e confundidos com fbulas ou literatura de viagens, Tolkien
escreve um conto onde inclui os elementos do conto de fadas, mas eleva-os a um
tal cmulo de ironia, que temos uma caricatura do prprio conto de fadas, ou seja,
um conto que troceja consigo mesmo.
49
97
There was a village once, not very long ago for those with long
memories, not very far away for those with long legs. Wootton Major it was
called because it was larger than Wootton Minor, a few miles away deep in the
trees; but it was not very large, though it was at that time prosperous, and a fair
number of folk lived in it, good, bad, and mixed, as is usual. (Tolkien, Smith of
Wootton Major 147)
Estas so as frases que iniciam o conto, situando a vila num espao e tempo
indeterminados na memria de alguns indivduos, fazendo desde logo o
contraponto com os habitantes das regies vizinhas: () not very far away for
those with long legs. Se os outros indivduos tinham pernas longas, pode ser
inferido que os habitantes de Wootton Major tinham pernas pequenas, o que
remete novamente o leitor figura do hobbit, tal como acontece com Niggle ou
Giles. Os habitantes de Wootton Major partilham, de igual forma, com os hobbits
o gosto por festas e pela comida, mas a caracterstica mais interessante desta vila
a maneira como se organizam socialmente em torno do Great Hall:
It had a large Kitchen which belonged to the Village Council, and the
Master Cook was an important person. The Cooks House and the Kitchen
adjoined the Great Hall, the largest and the oldest building in the place and the
most beautiful. () In the Hall the villagers held their meetings and debates, and
their public feasts, and their family gatherings. (147)
Wootton Major era conhecida pelos dotes dos seus artesos, mas especialmente
pela sua gastronomia, sendo o Cozinheiro um indivduo de grande importncia, ao
ponto de ser eleito por um conselho independente e de ter ao seu encargo a
organizao de todas as festas. Wootton Major funcionava como uma guilda dos
98
Durante a Idade Mdia surgiram as chamadas guildas de ofcios, que podiam ser
associaes de mercadores ou de artfices, cujo objectivo era a proteco de
interesses e a entreajuda de pessoas que desempenhavam o mesmo ofcio (Grande
Enciclopdia Portuguesa e Brasileira, vol. XII, 876-77). Neste caso especfico de
Wootton Major temos uma guilda muito especial, pois no estava constituda para
proteger os interesses econmicos, mas para promover o bem-estar social dos
cidados atravs do convvio e da troca de ideias mesa das refeies.
50
99
In the village there were in fact several families that did miss Alf for
some time. A few of his friends, especially Smith and Harper, grieved at his
going, and they kept the Hall gilded and painted in memory of Alf. Most people,
however, were content. They had had him for a very long time and were not sorry
to have a change. But old Nokes thumped his stick on the floor and said roundly:
Hes gone at last! And Im glad for one. I never liked him. He was artful. Too
nimble, you might say.(177-178)
A partida de Alf, o Rei dos Elfos, pode ser encarada como a partida de Tolkien,
tal como refere Kocher: () in Smith of Wootton Major Tolkien broke his
wand and drowned his magic books. (Kocher 201-202). A nostalgia presente em
relao a Farie tambm a admisso, no final da vida do escritor, que, apesar da
longa luta, a Fantasia no ocupou ainda o seu lugar enquanto gnero literrio
reconhecido e que continua a ser deturpado.
100
Dentro do conjunto das festas mais importantes da vila e que o Cozinheiro deveria
preparar, distinguia-se The Feast of Good Children, a qual ocorria todos os
Invernos e para a qual eram convidadas algumas crianas, mas a mais esperada de
todas era The Twenty-four Feast, que tinha lugar de vinte e quatro em vinte e
quatro anos e para a qual apenas vinte e quatro crianas eram convidadas. Nesta
festa o Cozinheiro deveria esmerar-se ao mximo para fazer o Grande Bolo, pois
era raro um cozinheiro conseguir fazer dois durante os seus anos de servio.
Faltavam ainda sete anos para o prximo Grande Bolo, quando o Master Cook
decidiu reformar-se e, apesar de Alf ser o seu aprendiz h j algum tempo, as
pessoas decidiram nomear um homem da vila e elegeram Nokes.
51
Em Old Norse o termo para designar elfo era alf e em Anglo-Saxo lf (Flieger, On the
Footsteps of lfwine 183), existindo ao longo de todo o imaginrio de Tolkien personagens cujo
nome formado a partir destes vocbulos, como aqui Alf.
101
Tolkien, ao longo da sua vida acadmica, travou uma rdua luta contra aqueles
que no acreditavam na Fantasia, personificados aqui na figura de Nokes, o qual
trivializa, reduz mesmo ao ridculo, o conceito de fada atravs do Grande Bolo
que faz para a Festa dos Vinte e Quatro. Nokes no era um cozinheiro muito
dedicado e Alf que ultima os preparativos para a festa e para o bolo, seguindo os
intentos de Nokes:
His chief notion was that it should be very sweet and rich; and he decided
that it should be entirely covered in sugar-icing (at which Prentice had a clever
hand). That will make it pretty and fairylike, () Ah! Fairylike, he said, that
gives me an idea; and so it came into his head that he would stick a little doll on
a pinnacle in the middle of the Cake, dressed all in white, with a little wand in her
hand ending in a tinsel star, and Fairy Queen written in pink icing round her feet.
(Tolkien, Smith of Wootton Major 151)
Na feitura do bolo e nas ideias de Nokes residem algumas das concepes erradas
sobre as fadas, contra as quais Tolkien se debateu em On Fairy-Stories e as
quais j foram abordadas no Captulo I. O Grande Bolo, branco e com a pequena
fada no topo, constitui uma noo equivocada de Farie, Reino dos Perigos e das
Aventuras, sendo a fada um ser mgico semelhante ao Elfo e no um ser
minsculo como aquele utilizado por Nokes para representar a Rainha das Fadas.
52
102
No dia da festa, vinte e quatro crianas esto reunidas para a Festa do Grande
Bolo. Nokes faz as honras dizendo s crianas que dentro do bolo esto alguns
brindes, neste caso vinte e quatro moedas e a pequena estrela. Contudo, alerta-as
que a distribuio das moedas depende do sentido de justia da Rainha das Fadas,
a qual uma criatura traioeira:
At last the Cook took the knife and stepped up to the table. I should tell
you, my dears, he said, that inside this lovely icing there is a cake made of
many nice things to eat; but also stirred well in there are many pretty little things,
trinkets and little coins and what not, and Im told that it is lucky to find one in
your slice. There are twenty-four in the Cake, so there should be one for each of
you, if the Fairy Queen plays fair. But she doesnt always do so: shes a tricky
little creature. You ask Mr Prentice. (153)
A atitude de Nokes para com Alf, o aprendiz, sempre de desafio, porque este lhe
dissera que a estrela era fay, uma estrela de Farie, e Nokes no acredita em
fadas. Quando, depois de comido o bolo pelas crianas, se verifica que nenhuma
encontrou a estrela, Nokes volta a troar da magia:
103
Bless me! said the Cook. Then it cant have been made of silver after
all; it must have melted. Or perhaps Mr Prentice was right and it was really
magical, and its just vanished and gone back to Fairyland. Not a nice trick to
play, I dont think. (154)
A estrela era de facto mgica e o menino de nove anos que a engoliu nem se
apercebeu disso, sendo que o efeito da fantasia s se far sentir seis meses depois
na Primavera, quando a natureza renasce para um novo ciclo de vida. A estrela
fora engolida pelo filho do ferreiro, sendo esse tambm o seu nome, Smith, o qual
acorda no dia do seu dcimo aniversrio para uma nova realidade. Ao abrir a
janela de manh, ouve o chilrear dos pssaros como uma msica que vinha do
ocidente e vem-lhe lembrana algo h muito esquecido:
104
A partir do dia em que colocou a estrela na fronte, Smith desenvolveu uma bonita
voz, cantando canes nunca antes ouvidas e que todos vinham escutar. Com o
tempo, tornou-se no ferreiro de Wootton Major e a forma como trabalhava o metal
era muito apreciada pela sua beleza e resistncia, e isso deve-se boa influncia
da estrela fay no processo de subcriao.
105
dentro das fronteiras de Farie e em seu redor, apenas mencionado este episdio
em que Smith assiste chegada dos Elfos guerreiros nos seus navios brancos de
uma batalha em Dark Marches contra o exrcito de Unlight. Semelhanas com
Mordor e os Dead Marshes e o exrcito de Sauron so evidentes, mas no so
dados quaisquer pormenores das batalhas. No havendo um perigo declarado,
Smith percorreu Farie protegido pela estrela:
But he had business of its own kind in Faery, and he was welcome there;
for the star shone bright on his brow, and he was as safe as a mortal can be in that
perilous country. The Lesser Evils avoided the star, and from the Greater Evils he
was guarded. (157)
Tal como foi mencionado no Captulo I, Tolkien defende que um indivduo para
entrar em Farie dever estar sob o efeito de um encanto, neste caso Smith tem a
estrela mgica, mas o facto de conseguir entrar e sair de Farie no lhe d o
direito de falar sobre ou de se lembrar com nitidez daquilo que viu: In that realm
a man may, perhaps, count himself fortunate to have wandered, but its very
richness and strangeness tie the tongue of a traveller who would report them.
(Tolkien, On Fairy-Stories 3). Por outro lado, o facto de poder entrar em Farie
no lhe d o direito de se sentir em casa, pois um viajante em Farie est sempre
de passagem e precisa da autorizao da Rainha das Fadas:
She laughed as she spoke to him, saying: You are becoming bold,
Starbrow, are you not? Have you no fear what the Queen might say, if she knew
this? Unless you have her leave. He was abashed, for he became aware of his
own thought and knew that she read it: that star on his forehead was a passport to
106
go wherever he wished; and now he knew that it was not. (Tolkien, Smith of
Wootton Major 160)
Este episdio, no qual ocorre o segundo encontro de Smith com a Rainha das
Fadas, ainda muito importante, na medida em que d ao leitor a viso de um
indivduo suportando sozinho o peso da vergonha por todos aqueles que no
acreditam em fadas, a vergonha da humilhao causada quele ser majestoso e
belo reduzido a uma bonequinha com uma varinha de condo no topo do Grande
107
Bolo. Contudo, a imensa sabedoria da Rainha das Fadas lembra-o que no deve
envergonhar-se pelos actos dos outros e que a utilizao da boneca melhor do
que se no existisse qualquer memria de Farie.
() At lenght he looked up and beheld her face and her eyes bent
gravely upon him; and he was troubled and amazed, for in that moment he knew
her again: the fair maid of the Green Vale, the dancer at whose feet the flowers
sprang. She smiled seeing his memory, and drew towards him; and they spoke
long together, for the most part without words, and he learned many things in her
thought, some of which gave him joy, and others filled him with grief. Then his
mind turned back retracing his life, until he came to the day of the Childrens
Feast and the coming of the star, and suddenly he saw again the little dancing
figure with its wand, and in shame he lowered his eyes from the Queens beauty.
But she laughed again as she had laughed in the Vale of Evermorn. Do
not be grieved for me, Starbrow, she said. Nor too much ashamed of your own
folk. Better a little doll, maybe, than no memory of Faery at all. For some the
only glimpse. For some the awaking. Ever since that day you have desired in
your heart to see me, and I have granted your wish. But I can give you no more.
Now at farewell I will make you my messenger. If you meet the King, say to him:
The time has come. Let him choose. (163)
Chegou a hora da escolha, a qual Smith ainda no sabe que ser a sua prpria
escolha, e mais uma vez esta escolha prende-se com a fantasia, pois necessrio
abdicar da estrela para que outra criana conhea Farie, abdicando em
108
simultneo das visitas a Farie. A escolha dever ser livre e a prxima criana a
usar a estrela nunca saber que pertencera a Smith.
Smith no devolve a estrela sem ressentimento, mas todo um percurso tinha sido
feito no sentido de alert-lo para a inevitabilidade de se presenciar algumas coisas
apenas uma vez na vida: nem todas as crianas de Wootton Major estiveram
presentes na Festa dos Vinte e Quatro quando Smith tinha nove anos, logo a
pertencera a um grupo restrito de escolhidos; a nica estrela mgica do Grande
Bolo estava-lhe destinada, pois algum o escolhera tal como ele deveria escolher
agora. Uma nica vez, em Farie, observou a rvore do Rei, danou com a
Rainha das Fadas e partilhou dos seus pensamentos. Para alm disso, o seu tempo
chegara, tinha 57 anos, estava cansado e urgia renovar esta herana que dava
acesso a Farie: Smith escolhe Nokes of Townsends Tim, filho da sua cunhada e
neto de Nokes, talvez na tentativa de quebrar uma linha de indivduos avessos
fantasia.
Durante as suas viagens por Farie, Smith v a rvore do Rei apenas uma vez:
() he saw the Kings Tree springing up, tower upon tower, into the sky, and its
light was like the sun at noon; and it bore at once leaves and flowers and fruits
uncounted, and not one was the same as any other that grew on the Tree. (158).
Esta a Tree of Tales que Tolkien menciona em On Fairy-Stories e que
constitui a semente e a raiz de todo o trabalho criativo. tambm a rvore de
Niggle representando a sua nova viso da arte, uma viso recuperada que se
prende com o conceito de Recuperao de Tolkien. A imagem da rvore do Rei
simboliza um degrau na evoluo de Smith enquanto caminhante em Farie,
assim como tambm o foram os encontros com a Rainha, e medida que vai
acumulando estas vises, apesar de Smith no estar consciente disso, vai
aproximando-se o dia da escolha e a passagem de testemunho, que marca o fim
das viagens em Farie. O crescimento, a evoluo de Smith -nos referida pelo
seu filho Ned quando o v chegar com a flor branca oferecida pela Rainha,
109
No que diz respeito construo dos viles para estes dois contos, Tolkien
apresenta-nos um vilo diferente, no temos uma bruxa m ou uma madrasta
malvada, mas situaes de perigo. O mal e a existncia de planos diablicos no
110
H nos dois contos a Recuperao de uma nova viso e o incio de uma nova
ordem, assim como ambos permitem uma fuga, ou Escape, ao mundo real para
espaos alternativos. A Consolao tanto do heri como do leitor conseguida
atravs da esperana em novas eras: uma na qual o homem dialoga com os seus
monstros e os liberta, outra na qual compreende a sua fragilidade humana e passa
111
112
113
54
Christopher Tolkien (1924 -) partilhava com o pai o gosto pelas lnguas antigas como Old
English, Old Norse e Middle English, assim como pela poca medieval.
114
115
though I have (in the cracks of time!) laboured at these things since about 1914, I
have never found anyone but C.S.L. and my Christopher who wanted to read
them; and no one will publish them. (Carpenter, The Letters of J.R.R. Tolkien
130).
Christopher Tolkien e C.S. Lewis seriam, portanto, os nicos indivduos com um
suficiente conhecimento interno sobre a obra e a sua evoluo, os nicos que
partilharam com o autor as dificuldades da escrita, e que debateram com ele ao
longo de muitos anos as principais questes inerentes a uma obra to vasta. C.S.
Lewis faleceu ainda antes de Tolkien, em 1963. Deste modo Christopher Tolkien,
que herdara conjuntamente com seus irmos todo o esplio literrio do pai, herda
tambm a vontade e a tarefa de mostrar ao mundo o grande imaginrio de Middleearth.
Utiliza-se aqui a designao imaginrio, porque a tarefa de Christopher Tolkien
no se resumiu apenas publicao de The Silmarillion, como tambm, e tal
como j foi referido no Captulo II, de Unfinished Tales of Nmenor and Middleearth (1980), obras nas quais Christopher Tolkien incluiu textos inacabados
relacionados com os Homens e, em particular, com os regentes da ilha de
Nmenor e do continente de Middle-earth. O material deixado por J.R.R. Tolkien
era to extenso, que Christopher Tolkien editou ainda a coleco em doze
volumes intitulada The History of Middle-earth (1983-1996), a qual constituda
pelos textos, anais e poemas de The Silmarillion e sem a qual seria impossvel
entender a complexidade que envolveu o processo de escrita.
Quase toda a obra de J.R.R. Tolkien se debrua sobre a histria e a cronologia das
eras de Middle-earth, uma mitologia imaginada de um Mundo Secundrio com
elementos, personagens e temas mitolgicos, a qual constitui todo um imaginrio,
todo um legendrio conhecido, entre aqueles que se dedicaram ao estudo de
116
Tolkien, como The Silmarillion, do qual faz parte, entre muitas outras obras,
The Silmarillion.
A construo de todo este imaginrio acompanhou o autor durante quase toda a
sua vida, tendo evoludo a partir de um nome curioso que Tolkien encontrou, por
volta de 1913-14, no poema em Old English, Crist, atribudo a Cynewulf:
arendel:
ala arendel
engla beorhtast
ofer middangeard
monnum sended.55
(Noad 35)
O nome Erendel despoletou em Tolkien o desejo de escrever mais sobre este ser,
que os estudiosos traduziam como luz ou raio de luz (Monteiro 38). Em 1914,
Tolkien escreve o poema The Voyage of Erendel the Evening Star, alargando
o significado do nome para Estrela da Noite, tambm chamada Estrela da
Manh ou Estrela da Alva, designao comum dada ao planeta Vnus.
Contudo, as viagens de Erendel, um marinheiro que viaja pelo firmamento, no
contm ainda referncias claras e estruturadas daquilo que viria a ser a sua
mitologia, tendo Tolkien considerado que o primeiro poema a conter referncias
precisas a ela seria The Shores of Fary (1915), onde se menciona Taniquetil56,
Valinor57 ou Eglamar58 (Noad 36).
55
Uma possvel traduo ser: Oh, Erendel, brightest of angels, sent to men above Middle-
Taniquetil a mais elevada montanha de Arda, situada nas Undying Lands. conhecida pelo
seu cume coberto de neve e por ser a morada de Manw e Varda (Day 216).
57
Valinor o Reino dos Valar, situado nas Undying Lands ou Reinos Sagrados (244-45).
117
58
Eglamar ou Eldamar o Reino dos Elfos, que se situa nas Undying Lands (Day 72-3).
118
Entre a escrita do poema The Voyage of Erendel the Evening Star, por volta
do ms de Setembro de 1914, e o poema The Shores of Fary em meados de
1915, altura em que Tolkien frequentava o seu ltimo ano enquanto estudante em
Oxford, Tolkien continuava a encontrar-se com Christopher Wiseman, R.Q.
Gilson e G.B. Smith nas reunies do T.C.B.S.. Na reunio das frias de Natal em
casa de Wiseman em Londres, a qual Tolkien apelidaria, para sempre nas suas
cartas, de Council of London (Carpenter, The Letters of J.R.R. Tolkien 10), ter
nascido a ideia de criar uma mitologia para proporcionar a Erendel um contexto.
Aps o poema The Shores of Fary, no qual j menciona os reinos lficos
sagrados, o autor comeou a escrever sobre um marinheiro do sculo V, Eriol, o
qual navegara desde as regies centrais da Pennsula da Dinamarca, seguindo
sempre para ocidente at aportar na ilha lfica Tol Eressa59 (Noad 38). Em Tol
Eressa, Eriol ouve contar as histrias dos Elfos, que compila e insere no Golden
Book. Essas histrias relatam os acontecimentos da Queda de Gondolin e as
viagens de Erendil60, s quais Tolkien deu o nome genrico de The Book of Lost
Tales.
Tolkien trabalhou nestes textos por volta de 1916 e durante o perodo de
convalescena, devido ao facto de ter contrado a chamada Febre das Trincheiras
no palco de guerra em Frana. A par dos textos, desenvolveu lxicos para as
lnguas Quenya e Goldogrin ou Gnomish61 que acompanhariam os relatos de
Eriol.
59
Tol Eressa ou Ilha Solitria o nome da ilha onde habitavam os Elfos em Eldamar. A sua
Os nomes sofrem algumas alteraes de verso para verso. No poema The Voyage of
Erendel the Evening Star, encontramos Erendel com e e em The Silmarillion com i.
61
119
62
Tal como foi referido anteriormente no Captulo I, a Fantasia faz uso de alguns mecanismos para
validar as histrias, neste caso Tolkien utiliza uma personagem, que simultaneamente o narrador,
para melhor enquadrar os relatos.
63
120
121
Um dos textos feitos para servir como elo de ligao entre as obras publicadas e a
mitologia por publicar ter sido Of the Rings of Power and the Third Age, mas
este permanece um texto de cuja escrita pouco se sabe, uma vez que no existe
nas cartas de Tolkien uma explicao para a sua elaborao, o que acontece para
muitos outros textos:
A lot of labour was naturally involved, since I had to make a linkage with
The Hobbit; but still more with the background mythology. That had to be rewritten as well. The Lord of the Rings is only the end part of a work nearly twice
as long which I worked at between 1936 and 53. (I wanted to get it all published
in chronological order, but that proved impossible.) (Carpenter, The Letters of
J.R.R. Tolkien 216)
Depreende-se que a ligao mencionada ser o texto Of the Rings of Power and
the Third Age. Todavia, alteraes deveriam ainda ser levadas a cabo na totalidade
dos textos produzidos at ento, sendo que este excerto faz parte de uma carta de
1955.
No final da dcada de 50, Tolkien altera a histria da criao do mundo, a qual
passa a figurar em dois textos distintos, por um lado, Ainulindal e a msica da
criao do mundo, e por outro, Valaquenta com a genealogia e poderes dos Valar.
Como j foi referido, at ao final da sua longa vida, Tolkien escreveu ensaios,
notas, rascunhos e narrativas que lidavam com os diferentes aspectos do mundo
criado, de maneira a consolidar a sua mitologia, mas uma preocupao que o
acompanhou sempre foi a forma desse mundo: Ilvatar criou um mundo plano, no
qual coexistiam os Reinos Sagrados de Aman e os territrios de Middle-earth que
122
criou para os seus filhos, Elfos e Homens. S depois do grande cataclismo, que
afundou a ilha de Nmenor e retirou Aman dos crculos do mundo, que este se
tornou redondo. Tolkien considerava que a criao de um mundo plano era uma
lacuna, de qualquer modo a sua mitologia era demasiado extensa e estava
demasiado centrada nesse aspecto para possibilitar uma rectificao.
Apesar de algumas contradies com o mundo tal e qual o conhecemos, por
exemplo o facto de a terra ser inicialmente plana e o sol e a lua serem criaes
posteriores ao prprio mundo, Arda o nosso mundo e o imaginrio conta a sua
histria antiga. As contradies nem so assim to profundas se se tiver em
considerao que os textos se encontram num nvel mitolgico, e se se proceder a
uma leitura tendo em mente a teoria da verdade do mito abordada no Captulo I.
We make still by the law in which were made (Tolkien, Mythopoeia 87), ou
seja, o homem ao criar segue sempre a lei que regeu a sua prpria criao, sendo
incapaz de criar algo que no lhe tivesse sido anteriormente transmitido. Esta
transmisso , num plano mitolgico, fruto da forma como o homem percepciona
o mundo envolvente, o que no significa que os sentidos captem obrigatoriamente
a realidade.
Alguns dos crticos de Tolkien apontaram estas contradies como falhas na sua
literatura, ignorando toda uma teoria e uma concepo mitolgica por detrs da
criao de The Silmarillion. A incompreenso deste universo mitolgico ter
sido tambm a razo pela qual a editora Allen & Unwin recusou publicar os
textos65, j que no dever ter entendido a sua importncia para uma melhor
compreenso do contexto quer de The Hobbit quer de The Lord of the Rings, ou
65
A recusa de publicar os textos relativos a The Silmarillion deu-se desde 1937, ano da
publicao de The Hobbit, at ao final da vida de Tolkien, que os ter submetido editora por
diversas vezes.
123
ter temido que o pblico no estivesse preparado para uma leitura sem a
excitao, o perigo e as aventuras dos anteriores.
Sem ser publicado, The Silmarillion transformou-se num projecto privado, do
conhecimento de apenas alguns indivduos. No final de 1929, Tolkien deu a ler a
C.S. Lewis o poema sobre o amor de Beren e Lthien, apresentando, deste modo,
Lewis ao seu imaginrio (Pearce 68). Nos anos seguintes, Lewis ter sido o
primeiro leitor dos seus textos, inclusivamente de The Hobbit, como j foi referido
no Captulo I, assim como os restantes membros dos Inklings.
Contudo, a escrita de The Silmarillion foi descontnua, a prpria cronologia dos
acontecimentos narrados confusa, e s a publicao de The Silmarillion (1977)
e, em especial, de The History of Middle-earth (1983-1996) veio esclarecer a
sucesso dos eventos e a evoluo sofrida pelos textos ao longo de tantas dcadas
de escrita. No presente captulo, sero analisadas as verses dos textos includas
em The Silmarillion. Referncias a qualquer um dos volumes de The History of
Middle-earth s sero feitas se a sua pertinncia assim o justificar.
No incio da dcada de 50 do sculo XX, Tolkien ultimava The Lord of the Rings,
fazendo as ltimas leituras e rectificaes, e foi com desagrado que recebeu, mais
uma vez, a recusa de Sir Stanley Unwin em relao a uma publicao conjunta
com The Silmarillion. Tolkien considerava que The Lord of the Rings, sendo uma
obra mais extensa e complexa do que The Hobbit, necessitava de informaes
adicionais relativas formao do mundo, diviso das famlias lficas entre
aqueles que procuraram a luz de Aman e aqueles que permaneceram em Middleearth, s muitas batalhas contra Morgoth e Sauron, e aos antepassados dos
Homens. Somente com a publicao conjunta das duas obras poderiam os lugares,
pelos quais passou a Irmandade do Anel, ganhar a devida densidade histrica e
mitolgica, poderiam as personagens ser vistas enquanto participantes ou
descendentes de participantes em determinados acontecimentos, que marcariam o
124
125
A opo pela raa lfica est ligada, como refere Flieger, ao gosto por figuras
mticas do folclore do norte da Europa, mas tambm ao interesse pela prpria
palavra:
Neste caso, Tolkien criou todo um universo onde a raa lfica ocupava um lugar
privilegiado, sendo os Elfos chamados Firstborn ou The Children of Ilvatar, e
conferiu-lhes muitos atributos: a imortalidade, a sabedoria, a sensibilidade e os
sentidos mais apurados. Como contraponto criar mais tarde os Homens, Second
People ou The Followers entre outras designaes, aos quais atribuiu uma ddiva:
a morte. A oposio entre mortalidade e imortalidade constitui o grande tema de
The Silmarillion, tal como Tolkien refere numa das suas cartas de 1956, j citada
no Captulo II:
126
() the mystery of the love of the world (): talvez seja esta a grande
moralidade adjacente a todo o imaginrio. Independentemente da raa a que
possamos pertencer, existe um mistrio que nos rege desde a criao at ao final
dos tempos, um mistrio que um desgnio divino, transcendente, e o qual
desconhecemos, mas que est relacionado com a nossa funo neste mundo e com
o amor que desenvolvemos por ele, levando-nos a desejar a imortalidade. O apego
dos Homens ao mundo fsico contrasta com a vontade dos Elfos em o abandonar,
pois o peso dos anos e as perdas constantes, assim como a contnua evoluo dos
tempos, f-los desejar a morte como passagem para um plano perdido e
imutvel66.
Contudo e seguindo uma concepo crist ligada ao mistrio das intenes
divinas, a figura de Deus criada por Tolkien tinha um plano grandioso, do qual
revelou apenas partes, guardando para si os motivos e intenes.
De acordo com a teoria de Tolkien, Eru, o deus nico e criador, tambm chamado
Ilvatar ou He that is Alone, o responsvel pela concepo e arquitectura de
Arda, logo o Criador. Contrariamente ao que Pearce defende em Tolkien O
Homem e o Mito, a criao do mundo no assim to semelhante ao Gnesis (96),
tendo com ela apenas alguns pontos de contacto. Segundo o Livro do Gnesis, a
criao do mundo levou sete dias e iniciou-se da seguinte forma:
Quando um Elfo morre em batalha o seu esprito espera numa espcie de limbo, Hall of
Awaiting ou House of the Dead, onde o Vala Nmo ou Mandos, senhor do destino, acolhe as almas
at que Ilvatar os convoque no fim dos tempos (Tolkien, The Silmarillion 19).
127
Deus disse: Faa-se luz. E a luz foi feita. Deus viu que a luz era boa e
separou a luz das trevas. Deus chamou dia luz, e s trevas, noite. Assim, surgiu
a tarde e, em seguida, a manh: foi o primeiro dia. (Gnesis 1,1-5)
Nothing is evil in the beginning. Even Sauron was not so, affirms
Gandalf at Elronds Council. The opposite view would be Manichaean, accepting
the existence of a creative force in evil equal in power to that of the good.
Tolkien firmly rejects it. When Sauron turns to evil he does so by choice, and is
diminished in consequence. Evil is a diminution. (Kocher 68)
128
To Melkor among the Ainur had been given the greatest gifts of power
and knowledge, and he had a share in all the gifts of his brethren. He had gone
often alone into the void places seeking the Imperishable Flame; for desire grew
hot within him to bring into Being things of his own (). (Tolkien, The
Silmarillion 4)
67
Bocio em De Consolatione Philosophiae (tratado de 522-25 d.C.) refere que o Mal no existe,
simplesmente a ausncia do Bem, pois o Mal adveio de uma escolha de Satans e de Ado e Eva
e tratou-se de um exerccio voluntrio do livre-arbtrio. Deus o ser superior que move as esferas
do mundo, o primum-mobile, e s ele pode criar (Shippey 128).
129
E! Let these things Be! And I will send forth into the Void the Flame
Imperishable, and it shall be at the heart of the World, and the World shall Be;
and those of you that will may go down into it. () Ilvatar had made a new
thing: E, the World that Is. (9)
A tarefa de criar incumbida aos Valar ser longa, sofrendo alguns reveses devido
destruio operada por Melkor, o qual foge para Middle-earth e l se esconde.
Sete Valar e sete Valier contribuiro com os seus poderes para o desenvolvimento
de Arda. De notar que os Valar so entidades com poderes demirgicos, mas as
suas construes dependem de uma viso muito pessoal de Tolkien aliada aos
extensos conhecimentos sobre as mitologias grega, romana e germnica68. Os
Valar, apesar de se poderem comparar a determinado deus ou deusa, so deuses
que conjugam diferentes caractersticas e personalidades, no agindo sempre em
conformidade com um esteretipo. Os Valar so multifacetados e possuem
68
As referncias simblicas e mitolgicas dos Valar foram trabalhadas a partir das seguintes
obras: Pierre Grimal, Dicionrio da Mitologia Grega e Romana; Rudolf Simek, Dictionary of
Northern Mythology; Neil Philip, Livro Ilustrado de Mitos Contos e Lendas do Mundo; Jol
Schmidt, Dicionrio de Mitologia Grega e Romana; Jean Chevalier, Dicionrio dos Smbolos; e
Thomas Bulfinch, O Livro de Ouro da Mitologia.
130
131
132
hold Varda most in reverence and love. Elbereth they name her, and they call
upon her name out of the shadows of Middle-earth, and uplift it in song at the
rising of the stars. (16-17). A esposa de Manw uma divindade de contornos
mais cristos, uma vez que Varda, ou Tintall, The Kindler, ou Elbereth, o nome
pelo qual conhecida entre os Elfos, a portadora da luz e por ela que aqueles
que sofrem clamam em momentos de aflio69. Varda adorada como uma santa,
muito semelhante Virgem Maria.
Contrariamente a Odin, o qual teve trs esposas, Frigg, Terra e Grid, e pelo menos
nove filhos, Manw teve apenas uma companheira e no existem referncias a
descendentes, pois os deuses de Aman so fruto de um mesmo acto de Ilvatar,
funcionando como extenses de deus, todas com idntica importncia.
Ulmo, Senhor das guas, vive sozinho e nunca abandona Middle-earth e os Elfos,
com quem fala atravs da msica das guas (17). Ulmo equivalente a Neptuno
da mitologia romana ou Poseidon da grega, o deus que rege os mares, os rios e
oceanos, assim como a fora das guas e as tempestades. Na mitologia nrdica
no existe propriamente um deus das guas, e no mito da criao do mundo
refere-se que no incio dominavam o gelo e o fogo. medida que o gelo foi
derretendo, o seu gotejar converteu-se no gigante Ymir, a partir do qual Odin e os
seus irmos, Vili e Ve, moldaram todas as coisas existentes no mundo: da carne
do gigante fizeram a terra, dos dentes e ossos as rochas e pedras, e do sangue os
rios, lagos e oceanos.
Segue-se Aul, senhor de todas as substncias que constituem Arda, pedras
preciosas, ouro e outros metais e, por isso, um grande ferreiro e mestre dos
artesos. Aul casado com Yavanna, The Giver of Fruits, responsvel pelo
69
Em Weathertop, Frodo ao ser atacado pelos Black Riders grita: O Elbereth! Gilthoniel!
133
134
vive em Lrien, espao de cura e recuperao, onde a sua mulher, Est, encarna a
figura ancestral da curandeira, da mulher sbia que utiliza as plantas e as energias
do cosmos em benefcio daqueles que padecem de algum mal, quer fsico, quer
espiritual.
Nienna, a carpideira, toma como suas as dores dos outros, permitindo uma cura
mais rpida. O seu papel o de alvio das dores e da sensao de peso perante a
angstia, assemelhando-se a Varda e a Virgem Maria, mas tambm a Freyja, que
chorava lgrimas de ouro ou figura da Banshee da tradio celta. As Banshee ou
women of the fairies eram entidades que avisavam a chegada da morte,
chorando (Microsoft Encarta Encyclopaedia 2000). Varda, Yavanna e Nienna
formam uma trilogia feminina de grande fora, proporcionando a Middle-earth e a
seus habitantes a luz, o crescimento e o alvio da dor.
Tulkas detentor de fora e valentia e a sua esposa, Nessa, amante da dana e
detentora de grande velocidade (19-20). Tulkas, tal como os deuses Ares e Marte
das mitologias grega e romana respectivamente, simboliza a fora bruta, o
combate corpo a corpo, a guerra. Contudo, Tulkas tem uma atitude diferente, pois
utiliza a sua fora em benefcio de uma causa maior, a luta contra Melkor e
Sauron, nunca se vangloriando ou massacrando inocentes.
Por fim, Orom o terrvel caador de monstros e bestas casado com Vna, a
sempre jovem (20). Orom irrita-se facilmente e a sua ira terrvel, mas tudo faz
para proteger Middle-earth, local que nunca abandona. A sua constante luta contra
criaturas do mal tem alguns paralelos com o deus Thor, o qual caava gigantes
com o seu poderoso martelo. A sua esposa Vna encarna uma figura recorrente
nos contos de fadas tradicionais, a sempre jovem. Ela simboliza a pureza e a
bela donzela que a todos agrada. As flores nascem e os pssaros chilreiam quando
ela passa e a sua juventude ilumina o mundo.
135
Com os Valar vieram ao mundo outros seres, os Maiar, cuja tarefa correspondia
ao auxlio na obra da criao. Porm, os Maiar eram hierarquicamente inferiores
aos Valar: With the Valar came other spirits whose being also began before the
World, of the same order as the Valar but of less degree. These are the Maiar, the
people of the Valar, and their servants and helpers. (21).
Nos dois primeiros livros de The Silmarillion, Ainulindal e Valaquenta, so
narradas as peripcias que envolveram a criao dos primeiros seres e os
primrdios do mundo, que, ao contrrio da narrao bblica, no assume logo a
sua forma final: de incio o mundo plano e dele fazem parte Middle-earth e
Aman, o Reino da Terra e o Reino Sagrado; a luz provm de duas Lmpadas, uma
a norte e outra a sul de Middle-earth, e os habitantes so os Valar e os Maiar, seus
ajudantes.
Em Quenta Silmarillion, Melkor destri as Lmpadas que Varda criara e Yavanna
faz crescer as Duas rvores de Valinor, Telperion e Laurelin, tambm elas
destrudas por Ungoliant, a aranha gigante que lhes sugou a luz e a vida. S ento
aparecem o Sol e a Lua e com eles o dia e a noite.
Fugindo aos desgnios de Ilvatar, Aul cria os Anes dizendo que o fizera
porque: (...) he is the son of his father. (38). Est aqui presente a viso de
Tolkien do homem que cria porque foi criado imagem de seu Criador, mais
exactamente a viso de um homem como um subcriador. Eru, deus de compaixo,
perdoa Aul e faz dos Anes seus filhos adoptivos, os quais deveriam permanecer
num sono profundo at chegada de seus filhos de eleio, os Elfos. O
nascimento dos Elfos implica que os Valar abandonem o Reino da Terra, e s
neste ponto se pode considerar que a sua tarefa criadora est terminada, ainda que
algumas intromisses possam ainda ocorrer.
136
Se a criatura de Deus cria imagem do seu criador, ento os monstros criados por
Melkor so um espelho de Deus? Esta uma das polmicas geradas em torno da
concepo crist do universo de Tolkien. De incio e segundo a tradio crist,
como j foi referido neste captulo, Deus criou todas as coisas, no fazendo a
separao entre o Bem e o Mal. O Mal foi originado pela queda de Lcifer, logo o
Mal menor do que o Bem, porque se trata de uma deformao do prprio Bem.
Tolkien tambm defende esta viso do Mal diminudo, referindo em relao aos
orcs e outros monstros ao servio de Melkor, que estes constituem corrupes
(Carpenter, The Letters of J.R.R. Tolkien 178) de seres criados por Eru: os orcs
so degeneraes de Elfos e Sauron de um Maia.
Os Elfos so o povo das estrelas e por conseguinte de Varda, os Homens so o
povo do sol e da lua, os quais foram criados a partir de um fruto dourado da
rvore Laurelin e de uma flor prateada da rvore Telperion, que Yavanna e
Nienna fizeram nascer das rvores j mortas. Ainda que em situaes diferentes o
nascimento das duas raas, que aparecem em grupo e no a partir de um elemento
original como o caso da histria bblica do nascimento da espcie humana,
acompanhado pela luz.
Na carta de 1951 enviada a Milton Waldman, Tolkien menciona o seguinte acerca
da luz em The Silmarillion:
It [The Silmarillion] receives its name because the events are all threaded
upon the fate and significance of the Silmarilli (radiance of pure light) or
Primeval Jewels. By the making of gems the subcreative function of the Elves is
chiefly symbolized, but the Silmarilli were more than just beautiful things as
such. There was Light. There was the Light of Valinor made visible in the Two
Trees of Silver and Gold. These were slain by the Enemy out of malice, and
137
Valinor was darkened, though from them, ere they died utterly, were derived the
lights of Sun and Moon. (148)
138
A luz vida e origina a vida, mas de igual modo um elemento estimulador das
capacidades dos seres. A raa lfica ao abrir os olhos contemplou a noite e as
estrelas, e a viso da luz das estrelas teve como resultado imediato a linguagem,
uma vez que os Elfos comearam a nomear as coisas em seu redor:
A prpria designao dada s diferentes famlias dos Elfos est relacionada com a
sua aproximao ou afastamento da Luz de Valinor. Depois do nascimento dos
Elfos, Melkor, sempre atento aos acontecimentos de Middle-earth, conseguiu
raptar alguns Elfos. Em conclio e com o intuito de salvaguardar a condio
desprotegida dos Filhos de Ilvatar, os Valar decidem traz-los para Valinor. Os
primeiros Elfos a chegar a Valinor, os Vanyar, foram liderados por Ingw, o
Senhor dos Elfos e o preferido de Manw e Varda, porque no mais regressou a
Middle-earth (50). Em segundo lugar chegaram os Noldor liderados por Finw e,
em terceiro, os Teleri, cujo lder, Elw Singollo70, se apaixonou no caminho pela
Maia, Melian, no acompanhando o seu povo at Valinor. Os Vanyar, Noldor e
Teleri so os Calaquendi ou os falantes da luz, pois viram a Luz de Valinor.
Todos os Elfos que permaneceram em Middle-earth so os Moriquendi ou os
70
Elw Singollo ou rei Thingol of Doriath ser o rei dos Sindar ou Elfos Cinzentos, porque
permaneceram em Middle-earth, longe da luz de Valinor. Do seu casamento com Melian nascer
Lthien (Day 221).
139
140
it for himself alone, he descended through fire and wrath into a great burning,
down into Darkness. And darkness he used most in his evil works upon Arda, and
filled it with fear for all living things. (23)
O desejo de querer possuir a luz uma metfora para a eterna tentativa do homem
de se igualar a Deus, tratando-se de um motivo recorrente na literatura, como so
os casos de Ado e Eva, Fausto ou Prometeu, que cometem o pecado do orgulho
intelectual, mas que sero punidos por isso. A punio de Melkor a queda, tanto
fsica, porque perdeu a sua beleza, como espiritual, uma vez que este ser
anteriormente elevado e espiritualmente iluminado passa a viver na sua fortaleza
de Utumno, longe da luz de Valinor e reinando atravs das trevas e do terror.
Estamos perante uma queda sem retorno, pois Melkor nunca demonstra
arrependimento, eternizando a guerra, o crime e a mentira, ao contrrio do que
acontecera com Aul, cujo desejo de criar seres a quem instruir, o fez passar para
alm dos seus limites enquanto Valar criando os Anes. Contudo, o seu
arrependimento e continuao no caminho de Eru mereceram-lhe a compaixo
deste ltimo.
Os motivos do desejo da luz e da queda andam a par e passo, uma vez que
frequente a perda de valores e a cegueira quando se procura a luz com demasiada
ambio. Fanor71 tambm um paradigma da busca da luz e consequente queda,
estando a sua histria carregada de uma forte carga paradoxal. Ao aprisionar a luz
e glria das rvores dentro de trs jias, Fanor transformou aquilo que era puro
em artefactos de orgulho e avareza, e, se de incio o seu objectivo era preservar a
luz, depressa se deixou encantar pelo brilho, guardando s para si a luz que a
71
Fanor, prncipe dos Noldor, cujo nome significa esprito de fogo, era detentor de grande
habilidade para os trabalhos com a forja. A sua grande criao so os trs Silmarils, os quais
encheu com a luz das rvores dos Valar, mas a ele tambm atribuda a criao das Palantri ou
seeing stones (Day 92-3).
141
todos pertencia. A luz pura das rvores ir conduz-lo escurido, a si e aos seus
sete filhos, e o brilho dos Silmarils ir ceg-lo. No fundo, a sua maior criao ir
lev-lo destruio, inaugurando toda uma sucesso de acontecimentos trgicos
para os Noldor e para os seus filhos.
A queda de Fanor ser gradual e descendente, no havendo por parte deste,
sempre acometido de um temperamento inflamvel, uma tentativa para libertar a
luz aprisionada. Nem quando Ungoliant destri as rvores, Fanor permite que os
Silmarils sejam utilizados para as ressuscitar, acusando os Valar: Then he cried
aloud: This thing I will not do of free will. But if the Valar will constrain me,
then shall I know indeed that Melkor is of their kindred. (83).
O roubo dos Silmarils ir desencadear o maior erro cometido por Fanor. Melkor,
a quem Fanor amaldioa e chama Morgoth, The Black Foe of the World (32),
foge para a sua fortaleza de Angband e coloca os Silmarils na sua coroa de ferro,
significando o domnio sobre a luz e um perodo de escurido em Middle-earth.
Contra tudo e contra todos, Fanor reune um grupo de Elfos e parte em busca das
jias. Pela primeira vez, Elfos exercem a fora sobre Elfos e morrem s mos de
Elfos; a matana de Alqualnde, que origina a grande ira de Eru e a Profecia
acerca do fim dos Noldor.
Durante eras a Profecia ser cumprida, destrundo os Noldor e todos aqueles que
desejem os Silmarils, at que as jias se perdem para sempre: uma cai para um
abismo da terra, outra nas profundezas do mar e outra permanecer no cu
brilhando como uma estrela.
O desejo de possuir uma tentao e uma transgresso, e o desejo pela luz
conduziu Melkor e Fanor ao declnio. No h, porm, por parte dos Homens este
fascnio pela luz, talvez porque o seu nascimento ocorre aps a morte das rvores
e o roubo dos Silmarils.
142
143
A terra prometida de Nmenor, ddiva dos deuses aos Homens, foi destruda no
dilvio, significando que a mo que d tambm a mo que tira, pois a mo da
justia. Seres de compaixo, os Valar so tambm seres de uma ira implacvel,
muito semelhantes concepo crist de Deus do Antigo Testamento, onde
imperava a lei de Salomo: olho por olho, dente por dente. Contudo, so poucas
as vezes em que se verifica esta caracterstica, e, de uma maneira geral, esto
presentes em The Silmarillion os ensinamentos de Jesus Cristo do Novo
Testamento: perdoa para seres perdoado, se te baterem d a outra face.
De acordo com Anne C. Petty, em Tolkien in the Land of Heroes, a queda ocorre
em todas as raas, no implicando, todavia, a queda dessa raa:
The gods fall from grace through pride, races and nations fall from
power, and individuals fall when they make wrong or misguided choices. The
theme of an angelic fall in Tolkiens world has its seeds in his beliefs as a
Christian and devout Catholic, but his literary version of The Fall (on the
threefold level of gods, nations, and individuals) is non-sectarian. (Petty 29)
144
145
72
Cf. Anexo B.
146
147
numa poca em que o poder de Morgoth e suas terrveis criaturas est no seu
auge.
Arvernien o porto seguro e o refgio de uma legio de Elfos perseguidos, mas a
ameaa permanece. Tuor, o qual avisara, alguns anos antes, o rei Turgon de
Gondolin sobre a iminente destruio da cidade, aviso esse que recebera do
prprio Ulmo, o deus dos oceanos, era um Mortal com fortes ligaes aos Valar.
Com o intuito de pedir auxlio aos Valar, constri um barco e navega com sua
esposa, Idril, para ocidente. As viagens em direco s Undying Lands estavam
estritamente proibidas, quer aos Homens, quer aos Elfos, e aos pais de Erendil
jamais ser permitido o regresso a Middle-earth. Nos contos de fadas, segundo a
teoria de Propp referida no Captulo I, existe sempre uma proibio e quem a
transgredir, independentemente dos motivos, incorre numa punio, da os pais de
Erendil no poderem mais regressar.
Nos contos de fadas, as referncias temporais e espaciais so, de um modo geral,
indeterminadas, vagas. Contudo, existem menes precisas em relao ao tempo e
espao em que decorre a histria de Erendil: este nasceu no ano 504 aps o
nascimento do sol e da lua e a queda de Gondolin ocorreu no ano 511, para
mencionar apenas algumas datas; os locais so igualmente identificveis:
Gondolin, o rio Sirion, Arvernien... Estes pertencem, porm, a um tempo e espao
imaginrios, os quais s existem dentro do contexto da mitologia de Tolkien, no
sendo possvel report-los para a realidade do Mundo Primrio.
Erendil cresceu no porto de Arvernien, na Baa de Balar, onde casou com
Elwing, a filha do rei Dior de Doriath e herdeira do Silmaril que seu av, Beren,
retirara da coroa de Morgoth. Ambos possuem ascendncia humana e lfica,
simbolizando a unio das raas na luta contra o Mal. Para alm disso, tinham na
sua posse a jia que originara tantas contendas.
148
Yet Erendil could not rest, and his voyages about the shores of the
Hither Lands eased not his unquiet. Two purposes grew in his heart, blended as
one in longing for the wide Sea: he sought to sail thereon, seeking after Tuor and
Idril who returned not; and he thought to find perhaps the last shore, and bring
ere he died the message of Elves and Men to the Valar in the West, that should
move their hearts to pity for the sorrows of Middle-earth. (Tolkien, The
Silmarillion 295)
O mar equivale a uma grande barreira a transpor, estando Erendil consciente que
a sua travessia implicaria exceder os limites impostos pelos Valar. A
concretizao do seu duplo objectivo residia, todavia, para alm desses limites e
Erendil, acometido de uma forte inquietao, viajava pelo mar em busca de uma
soluo.
Com o tempo, Erendil adquiriu o estatuto de lder dos Elfos e Homens que
viviam na foz do rio Sirion, mas a sua nsia aumentou tanto que decidiu pedir a
Crdan, o grande construtor de barcos, que construsse Vingilot e partiu para o mar
alto. Nem Elwing, nem os seus filhos, Elros e Elrond, o acompanharam, porque
um verdadeiro marinheiro tem o mar como amante e no mistura o amor ao mar
com o amor famlia.
De acordo com a teoria abordada no Captulo I sobre os contos de fadas, o conto
de fadas implica o abandono do espao protegido do lar e o incio de uma
149
74
Celegorm, Caranthir e Curufin j tinham morrido, dando-se assim cumprimento Profecia sobre
150
Then Maglor desired indeed to submit, for his heart was sorrowful, and
he said: The oath says not that we may not bide our time, and it may be that in
Valinor all shall be forgiven and forgot, and we shall come into our own in
peace.
() And Maedhros answered: But how shall our voices reach to
Ilvatar beyond the Circles of the World? And by Ilvatar we swore in our
madness, and called the Everlasting Darkness upon us, if we kept not our word.
Who shall release us? (304)
But the jewel burned the hand of Maedhros in pain unbearable; and he
perceived that it was as Enw had said, and that his right thereto had become
void, and that the oath was vain. And being in anguish and despair he cast
himself into a gaping chasm filled with fire, and so ended; and the Silmaril that
he bore was taken into the bosom of the Earth.
And it is told of Maglor that he could not endure the pain with which the
Silmaril tormented him; and he cast it at last into the Sea, and thereafter he
151
wondered ever upon the shores, singing in pain and regret beside the waves.
(305)
salvao/destruio,
perdo/condenao,
luz/escurido.
Estas
152
contrariando a vontade divina algo pode ainda ser feito. Esperana e abnegao
caracterizam as atitudes de Erendil, colocando-o num nvel superior de virtude.
Tal como foi j tratado no Captulo I, a esperana, tanto do heri que colocado
prova, como do leitor que vive as suas aventuras, essencial para o desfecho feliz
e uma caracterstica do verdadeiro conto de fadas. Flieger refere o seguinte em
relao ao papel da esperana na teoria de Tolkien sobre os contos de fadas: (...)
fairy stories are based on hope, not despair, and however terrifying the adventures
while they are occurring, they always culminate in the happy ending. (Flieger,
Splintered Light 21).
Erendil no um heri solitrio, sendo auxiliado na concretizao do seu
objectivo por Elwing. No incio das suas viagens, Erendil um marinheiro em
evoluo e cada viagem que realiza constitui mais um passo no sentido do seu
crescimento psicolgico, pois cada viagem um momento de regenerao e de
obteno de maturidade. Sendo um marinheiro, um escolhido, um eleito, porque
nem todos os indivduos esto preparados e talhados para enfrentar a mutabilidade
do mar, mas tambm um peregrino em busca da sua espiritualidade, Erendil
realizou as suas primeiras navegaes sozinho. No entanto, tendo atingido a
maturidade necessria e tendo em conta a dimenso do seu objectivo, a presena
de Elwing torna-se fulcral.
Etimologicamente, Elwing resulta da conjugao de duas palavras em lngua
Quenya: l que significa estrela e wing que significa espuma (Tolkien,
The Silmarillion 394). O prprio nome, escolhido por Dior, seu pai, cria um
paralelismo entre Elwing e o smbolo da gua e da estrela, e talvez devido a esta
designao, que Elwing se tornou na guardi do Silmaril e a nica capaz de
atravessar o oceano debaixo de uma tempestade.
153
Thus Maedhros and Maglor gained not the jewel; but it was not lost. For
Ulmo bore up Elwing out of the waves, and he gave her the likeness of a great
white bird, and upon her breast there shone as a star the Silmaril, as she flew over
the water to seek Erendil her beloved. On a time of night Erendil at the helm of
his ship saw her come towards him, as a white cloud exceeding swift beneath the
moon, as a star over the sea moving in strange course, a pale flame on wings of
storm. And it is sung that she fell from the air upon the timbers of Vingilot, in a
swoon, nigh unto death for the urgency of her speed (). (296-297)
154
Elwing vive perto da proteco deste deus que age imediatamente aquando do
ataque a Arvernien.
Com o seu poder, Ulmo eleva Elwing das guas, apesar de ela constituir um ser
com ligaes ao elemento aqutico e, partida, no correr um risco to elevado, e
transforma-a numa grande ave branca, em cujo peito brilha o Silmaril. Segundo
Schmidt, na tradio greco-romana, as aves eram utilizadas como animais de
sacrifcio, sendo ofertadas aos deuses (Schmidt 51). Porm, se por um lado
Elwing uma ave que atravessa a tormenta sem garantias de alcanar o barco de
Erendil, por outro ela uma ave de grande porte, cuja luz da jia a torna
comparvel a um farol no meio da tempestade. Elwing pratica o sacrifcio,
carregando a luz da vida e da salvao.
De acordo com Chevalier, as diferentes mitologias fazem referncia a histrias
nas quais deuses e heris se transformam ou so transformados noutros seres ou
objectos, sendo a metamorfose o resultado de uma recompensa ou de um castigo
(Chevalier 450). Na literatura fantstica, a metamorfose , de igual forma, um
motivo recorrente, assim como nos contos tanto de fadas como nos populares, tal
como foi abordado no Captulo I.
A metamorfose de Elwing assinala a passagem de um plano terreno para um plano
divino, ocorrendo a caminho dos territrios sagrados de Aman e no no sentido de
Middle-earth. Atentemos na seguinte citao de Ruth S. Noel:
155
156
Nestes versos cantados por Bilbo, Elwing descrita como a luz que atravessa a
escurido e ela prpria que coroa o marido com o Silmaril, curiosamente a
mesma jia que estava encastoada na coroa de Morgoth, o senhor da escurido.
Em termos metafricos, a mudana de portador da jia, anteriormente smbolo da
regncia de Morgoth, poder significar o princpio de um novo reinado e de uma
nova ordem, ou seja, a Recuperao de uma nova viso do mundo.
Numa perspectiva mais potica deste episdio, comparando com aquela de The
Silmarillion, Bilbo apresenta a luz do Silmaril como chama (flame) ou como luz
viva (living light), remetendo o leitor para a origem dessa luz, que Ilvatar
separou da Chama Imperecvel, o incio de todas as coisas. De salientar so as
referncias cromticas: no comeo da estrofe impera a escurido (darkness),
contudo, no final, o mar cinzento (grey), ou no fosse o mar um factor
intermdio entre a escurido de Middle-earth e a luz de Aman, mas tambm a
fronteira entre o oriente e o ocidente, isto , de acordo com o imaginrio de
Tolkien, entre o profano e o sagrado, entre o terreno e o espiritual.
() by paths that seldom mortal goes () um verso que alude a uma tradio
potica herica adoptada por muitos autores ao longo dos tempos, como por
exemplo Lus de Cames, uma vez que este verso apresenta at afinidades com o
terceiro verso da primeira estrofe do Canto Primeiro de Os Lusadas: Por mares
nunca dantes navegados (Cames 71). Todavia, The Lay of Erendil na voz de
Bilbo contm caractersticas, no da poesia herica portuguesa, mas da poesia
herica anglo-saxnica, especialmente do seu mais paradigmtico poema Beowulf.
Beowulf um poema narrativo baseado na figura herica do guerreiro Beowulf e a
sua histria central remonta ao sculo V, sculo das invases das ilhas Britnicas
pelos Anglos, Saxes, Jutos e Frsios, apesar do ano da escrita ser incerto e
posterior, sendo datado do sculo VIII (Beowulf 11). Tolkien tinha um especial
157
apreo por este poema e pela poesia herica e Erendil uma personagem
construda com base nos heris anglo-saxnicos.
Erendil semelhana de Beowulf um jovem cuja proeza, fora e coragem no
o deixam ceder ao desnimo, assim como no se deixa derrotar perante os seus
adversrios. Da mesma forma que se verifica nos poemas hericos, Erendil
recompensado pela fama, fama essa que perdura mesmo depois da morte do heri,
conferindo-lhe um carcter imortal. No caso de Erendil, este opta pela
imortalidade75, mas a sua viagem diria pelo firmamento uma morte simblica.
No se encontram, todavia, em Erendil os valores germnicos que se verificam
em Beowulf, como o direito vingana, a preocupao com a glria e a fama ou a
exibio da riqueza pessoal, sendo Erendil uma personagem com um perfil mais
filantrpico e desprovida de valores materiais. Erendil, que funciona como
elemento unificador de duas raas e de duas dimenses, tem um esprito menos
guerreiro que Beowulf. O herosmo das suas aces que ser o responsvel pelo
seu enaltecimento no The Lay of Erendil, da mesma forma que Beowulf o foi.
O lay era um poema curto, que se destinava a ser cantado ao som de uma harpa e
que narrava um episdio herico (Holman 263). Este tipo de balada ou cano,
assim como tambm os poemas anglo-saxnicos, de um modo geral, eram
marcados por caractersticas oralizantes, pois, no seio de uma populao iletrada,
o seu objectivo era que fosse declamado ou cantado para uma plateia. Bilbo,
seguindo esta tradio do lay, faz uso de diversos recursos estilsticos que esto
75
Manw exige que Erendil e Elwing, descendentes tanto da raa humana como da lfica, optem
por uma das raas, de forma a serem julgados. Erendil escolhe a raa dos Elfos, pois essa fora
tambm a opo de Elwing: Then Erendil said to Elwing: Choose thou, for now I am weary of
the world. And Elwing chose to be judged among the Firstborn of Ilvatar, because of Lthien;
and for her sake Erendil chose alike, though his heart was rather with the kindred of Men and the
people of his father. (Tolkien, The Silmarillion 299-300).
158
directamente relacionados com o tom oral, como por exemplo as repeties (his
shining shield, his bow, his arrows [Tolkien, The Fellowship of the Ring
306]), as aliteraes (Night of Naught [307]), assonncias (and Eldamar,
beheld afar [308]), rima interna e externa (to haven white he came at last, / to
Elvenhome the green and fair / where keen the air, where pale as glass [308]) e
jogos de vocbulos (and words unheard were spoken then [308]).
Regressando citao da pgina 155 que se refere oferta do Silmaril a Erendil,
a estrofe termina com o seguinte verso: from east to west he passed away (307).
Este verso tem uma dupla valncia: por um lado pela oposio entre o oriente e o
ocidente, por outro pela referncia passagem.
Como foi anteriormente considerado, a oposio entre o oriente e o ocidente, ou
seja, entre Middle-earth e Aman, um dos grandes temas da mitologia
desenvolvida por Tolkien, constituindo ainda a gnese de outras dicotomias, como
a da luz/escurido ou imortalidade/morte. Num sentido simblico, no Dicionrio
dos Smbolos de Chevalier, refere-se que as menes ao ponto cardeal do oriente
aparecem muitas vezes como antagnicas ao ocidente, sendo o oriente um plo de
espiritualidade, de sabedoria, contemplao e ligado ao lado mais esotrico da
vida e ao nascimento do sol. O ocidente encarado como um plo de
materialismo, agitao, vida activa e relacionado com o pr-do-sol (Chevalier
491). Estas conotaes no esto, porm, presentes no imaginrio de Tolkien,
facto que se deve influncia da mitologia celta, em especial irlandesa.
Pela sua situao geogrfica no globo terrestre, a Irlanda, por ser uma ilha,
representa um centro espiritual, o qual s se torna acessvel atravs do voo ou
navegao, e o ocidente constitua para os irlandeses o mar aberto desconhecido.
Desde sempre, os Celtas imaginaram a localizao do outro mundo sob a forma
de ilhas situadas a ocidente e nesta imagem do mundo que Tolkien vai basear a
construo das Undying Lands a ocidente de Middle-earth. O motivo da viagem
159
Medieval Irish mythology contained more than one location for the
Otherworld, where the Tuatha D Danann76 lived. One location, probably the
earlier and/or original conception, was within the sdhe77, underground in
general. Another location was beneath a lake, under both earth and water. ()
The other location of the Otherworld is an island over the ocean to the west, a
place sometimes called Hy Brasil, which is actually the origin of the name of the
country Brazil in South America. (Jones 83)
76
Tuatha D Danann ou fairy folk eram seres mgicos que habitavam nas brumas do norte da
Sdhe o nome dado aos montes fnebres do Neoltico, cuja construo se atribui aos Tuatha D
160
Segundo a lenda, os Tuatha D Danann habitavam a Irlanda antes da chegada dos filhos mortais
de Mil, conhecidos por Milesians. De forma a partilharem o territrio da ilha, dividiram-na: a parte
superior ficou para os mortais Milesians, a parte inferior para o povo ferico dos Tuatha D
Danann (Jones 82).
161
para uma nova existncia ligada luz e ao mundo celeste como forma de expiar o
seu pecado, o de ter entrado no nvel do divino, no plano do criador.
Na carta enviada a Milton Waldman, em 1951, e includa em jeito de introduo
em The Silmarillion por Christopher Tolkien, J.R.R. Tolkien procede a uma breve
explicao dos diversos contos que constituem a sua mitologia. Vejamos como
apresenta o conto de Erendil:
There are other stories almost equally full in treatment, and equally
independent and yet linked to the general history. () And the tale, or tales, of
Erendil the Wanderer. He is important as the person who brings the Silmarillion
to its end, and as providing in his offspring the main links to and persons in the
tales of Later Ages. His function, as a representative of both Kindreds, Elves and
Men, is to find a sea-passage back to the Land of the Gods, and as ambassador
persuade them to take thought again for the Exiles, to pity them, and rescue them
from the Enemy. (Tolkien, The Silmarillion xix)
162
uma escolha: sendo descendentes das duas raas, devero optar pela imortalidade
dos Elfos ou pela mortalidade dos Homens:
The doom of the Elves is to be immortal, to love the beauty of the world,
to bring it to full flower with their gifts of delicacy and perfection, to last while it
lasts, never leaving it even when slain, but returning and yet, when the
Followers come, to teach them, and make way for them, to fade as the
Followers grow and absorb the life from which both proceed. The Doom (or Gift)
of Men is mortality, freedom from the circles of the world. Since the point of
view of the whole cycle is the Elvish, mortality is not explained mythically: it is a
mystery of God of which no more is known than that what God had purposed for
Men is hidden: a grief and an envy to the immortal Elves. (xv)
163
164
In this matter the power of doom is given to me. The peril that he
ventured for love of the Two Kindreds shall not fall upon Erendil, nor shall it
fall upon Elwing his wife, who entered into peril for love of him; but they shall
not walk again ever among Elves or Men in the Outer Lands. And this is my
decree concerning them: to Erendil and to Elwing, and to their sons, shall be
given leave each to choose freely to which kindred their fates shall be joined, and
under which kindred they shall be judged. (299)
Apesar de poderem escolher livremente a que raa pertencer, facto que constitui
uma recompensa, Erendil e Elwing so castigados da mesma forma que os pais
de Erendil j o tinham sido. A recompensa e o castigo so proporcionados pela
mesma entidade, mostrando que o equilbrio e a justia esto na base da
construo dos Valar enquanto personagens.
Este episdio da evocao de Erendil espoleta ainda a interveno dos deuses na
ltima grande batalha contra Morgoth, a War of Wrath, a qual culminar com a
derrota e encarceramento do senhor da escurido, assim como na recuperao dos
dois Silmarils que permaneciam na sua coroa. A batalha foi de tal modo violenta,
que depois dela tudo ficou diferente: rios secaram ou mudaram de curso, Morgoth
foi acorrentado e uma era de escurido chegou ao fim (303). S a vontade de
165
166
para nomear apenas alguns. A luta contra o drago e a sua aniquilao constituem
o duelo e a vitria sobre o Mal supremo e origina a obteno de uma grande
recompensa: um tesouro e riquezas materiais, invencibilidade em combate,
imortalidade ou a instaurao de um reino do Bem.
O exrcito de Morgoth, para alm de uma legio de drages, estava repleto de
criaturas mticas, muitas delas exclusivas da mitologia de Tolkien, como os
Balrogs ou os Orcs. Estas criaturas exerciam o seu poder atravs do terror e a sua
maior arma era o fogo, da a importncia da cooperao de Erendil, um ser
iluminado e altrusta que enfrentou a ira divina. Erendil caracterizado como
destemido, capaz de defrontar o perigo, mas acima de tudo, ele possua tambm
uma arma que lhe permitia combater o fogo com o fogo: o Silmaril.
Fanor, mestre dos Silmarils, os quais foram feitos com os cristais da terra e a luz
das rvores de Valinor (Tolkien, The Silmarillion 68), utilizara ainda o fogo, o da
sua forja de arteso e o seu prprio fogo interior, uma vez que at o seu nome
associado a este elemento: (...) his [Fanor] spirit burned as a flame (60) e
Curufinw was his name, but by his mother he was called Fanor, Spirit of Fire
(...) (63). Ao envergar o Silmaril durante a Batalha da Ira, Erendil fez uso de
muitos poderes, inclundo o fogo do esprito de Fanor, destrundo com a luz da
jia a escurido de Morgoth, com o fogo de Fanor o fogo do drago Ancalagon e
com a sua abnegao o poder malfico e o domnio ditaturial de Morgoth e suas
criaturas monstruosas. O fogo de Fanor perdurar na estrela/Erendil, tambm
chamada the Flammifer of Westernesse ou Flame of the West.
Ruth S. Noel em The Mythology of Tolkiens Middle-earth refere que existem
algumas histrias na mitologia germnica, nomeadamente na escandinava, sobre
esta personagem Erendil. Nessas histrias, Erendil descrito como um
marinheiro e como sendo a estrela da manh (Noel 111-112). Contudo, a verso
de Tolkien possui uma maior complexidade, tal como foi tratado neste captulo.
167
Noel alude ainda utilizao, por parte de Tolkien, da crena germnica que
encara as estrelas como jias, simbolizando a esperana e a funo de guia:
That land the Valar called Andor, the Land of Gift; and the Star of
Erendil shone bright in the West as a token that all was made ready, and as a
guide over the sea; and Men marvelled to see that silver flame in the paths of the
Sun.
Then the Edain set sail upon the deep waters, following the Star ().
Then they went up out of the sea and found a country fair and fruitful, and they
were glad. And they called that land Elenna, which is Starwards; but also
Anadn, which is Westernesse, Nmenr in the High Eldarin tongue. (Tolkien,
The Silmarillion 311)
168
Hail Erendil, of mariners most renowned, the looked for that cometh at
unawares, the longed for that cometh beyond hope! Hail Erendil, bearer of light
before the Sun and the Moon! Splendour of the Children of Earth, star in the
darkness, jewel in the sunset, radiant in the morning! (298)
169
Concluso
De acordo com Tolkien, o conto de fadas era um gnero literrio mal interpretado
e confundido com o conto popular, com a literatura de viagens ou mesmo com a
170
fbula, facto que se devia a uma incompreenso por parte dos acadmicos e do
pblico em geral acerca da sua definio, origem e utilizao. No ensaio On
Fairy-Stories, Tolkien procurar reformular as concepes errneas sobre os
contos de fadas, numa tentativa de enaltecimento do gnero.
171
O conto de fadas dever conter sempre uma moralidade, facto que se prende com
o seu carcter pedaggico, mas fundamental que possua tambm um carcter
ldico, aspecto que conseguido com a introduo de objectos mgicos,
maravilhas, encantamento e criaturas mticas e mgicas.
172
Tzvetan Todorov refere que a Fantasia ocupa uma posio intermdia entre o
Maravilhoso, no qual os acontecimentos fantsticos so aceites pelos padres de
referncia do leitor, e o Estranho, no qual os acontecimentos so explicados por
leis da razo e aceites como naturais. Para alm disso e para a instalao do
fantstico, o texto deve fazer prevalecer a hesitao face aos eventos, ou, segundo
173
O importante que a histria mantenha a sua coerncia interna, o que pode ser
conseguido tambm atravs do tratamento de temas do domnio pblico e que so
aceites mesmo sendo fantsticos e sobrenaturais. Todorov inmera uma srie de
temas utilizados pela Fantasia que, apesar de extraordinrios, so reconhecidos e
admitidos pelo leitor, como por exemplo os fantasmas, o vampirismo, a
metamorfose ou a cessao ou repetio de tempo.
174
C.S. Lewis, por seu turno, no acreditava na verdade por detrs dos mitos e o
poema Mythopoeia foi escrito por Tolkien para lhe explicar a sua teoria.
Tendo por base o ensaio On Fairy-Stories e a teoria dos contos de fadas, e ainda
Mythopoeia e a teoria da verdade do mito, Tolkien inicia o processo de
Subcriao de uma Mitologia para Inglaterra, no qual a criao de um mundo
secundrio ocupa um lugar privilegiado.
Dentro da sua vasta obra, Tolkien distingue os textos sobre o seu imaginrio The
Silmarillion, os quais esto directamente relacionados com a sua inteno de
subcriao de uma mitologia para Inglaterra, e os textos fora dessa mitologia (j
referidos anteriormente neste trabalho). Entre muitas obras e textos passveis de
estudo, mas cuja dimenso e quantidade seria impossvel de incluir neste trabalho,
optou-se por The Lay of Erendil como paradigma de The Silmarillion e para
exemplificar um texto pertencente a The Silmarillion, e por trs contos fora
desse imaginrio, Leaf by Niggle, Farmer Giles of Ham e Smith of Wootton
Major. Contudo, at mesmo estes trs ltimos, apesar da opinio contrria do
autor, contm pontos de contacto com The Silmarillion, especialmente no que
175
diz respeito construo dos espaos, dos temas e das personagens, e aos
smbolos e referncias mitolgicas.
Leaf by Niggle, tal como foi tratado no Captulo II, o conto mais prximo da
teoria defendida em On Fairy-Stories devido s referncias simblicas rvore
e Folha e devido abordagem dada ao conceito de Subcriao, mas a
proximidade est relacionada, de igual forma, com o tempo da escrita, ambos de
1938-39, aproximadamente.
176
Tree of Tales, Mythical Tree ou Tree of Amalion, desenhada por Tolkien para ilustrar a
sua teoria dos contos de fadas enquanto repositrio de mitos.
177
178
179
O acto de Giles, ao libertar o drago, criatura lendria e fantstica, pode ser visto
como a libertao da prpria Fantasia, presa a ideias pr-concebidas e quase
considerada como um gnero a perseguir, da a pardia aos ideais de cavalaria e
prpria construo de um conto de fadas. Ham um mundo s avessas que
procura, mediante o uso da ironia e da caricatura, recuperar a viso do leitor
comum face Fantasia. O mesmo se verifica em Smith, ainda que num ambiente
menos jocoso e mais pessimista, uma vez que ele, ao designar o prximo detentor
da estrela, facilita a manuteno de uma linha de amantes de Farie, renovando o
acesso a esse espao mal compreendido.
180
O Escape do heri estimula o Escape do leitor, o qual foge sua realidade para
entrar no tempo e no espao mgicos de um conto de fadas. O Escape do leitor
deve-se a uma identificao com as provaes do heri, assim como ao
encantamento causado pelos contos de fadas, pois o facto de o tempo ser um
tempo distante e indeterminado, o espao ser estranho mas mgico o suficiente
para cativar o leitor, e as personagens serem confrontadas com situaes
simultaneamente fantsticas e quotidianas, leva o leitor a pensar que a histria at
podia ser verdadeira.
181
182
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site
191
ANEXOS:
192
Anexo A:
MYTHOPOEIA
To one who said that myths were lies and therefore worthless, even though
breathed through silver.
Philomythos to Misomythos
193
194
195
196
197
79
198
Anexo B:
THE LAY OF ERENDIL
199
200
201
202
80
Verso integral de The Lay of Erendil retirada de Tolkien, The Fellowship of the Ring 306309.
203