Tomaz de Oliveira, Rafael - o Conceito de Princípio Entre A Otimização e A Resposta Correta PDF
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CINCIAS JURDICAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO
NVEL MESTRADO
So Leopoldo
2007
So Leopoldo
2007
O48c
Catalogao na Publicao:
Bibliotecrio Eliete Mari Doncato Brasil - CRB 10/1184
AGRADECIMENTOS
RESUMO
As presentes reflexes tiveram por objetivo colocar, de um modo filosfico, a
pergunta pelo conceito de princpio, suscitando, pelos procedimentos da fenomenologia
hermenutica, a desobstruo das sedimentaes produzidas pela linguagem jurdica, para
apanh- lo em seu modo de acontecer. Isto porque, na lida cotidiana dos juristas, o termo
princpio empregado de diversas maneiras que apontam para significados opostos. Para
compreender estes significados foi preciso imergir at uma dimenso profunda, no interior da
qual aparecessem os fundamentos que esto por trs de cada um deles. Essa dimenso
fundamental, que de certo modo sustenta o discurso sobre o direito, foi colocada tendo na
filosofia do direito de Kant seu ponto de estofo. Colocando Kant como elemento capilarizador
da reflexo filosfica sobre o direito, foi possvel perceber como se edificou a tradio sobre a
qual esto assentadas as principais teorias do direito que se construram no continente durante
a primeira metade do sculo 20. Isso nos permitiu mostrar como que Robert Alexy herdeiro
de uma aporia inconcilivel: o fenmeno e a coisa em si; a razo pura terica (positivismo
normativista kelseniano) e a razo pura prtica (o positivismo axiolgico de Radbruch).
Assentado sobre esta aporia, Alexy construiu um procedimento artificial, um discurso
justificador da deciso judicial que continua asseverando a tese da discricionariedade que j se
encontrava presente em teorias positivistas, como a de Hans Kelsen. Desse modo, preparamos
o horizonte discursivo adequado para introduzir os aportes dworkianos, procurando apresentar
a integridade do direito e a tese da resposta correta relida a partir da nova crtica do direito
de Lenio Streck como uma alternativa (necessria) para romper com as teses que defendem
discricionariedades judicias que ainda povoam o imaginrio dos juristas.
PALAVRAS -CHAVE: Conceito de Princpio; Fenomenologia Hermenutica; Resposta Correta;
Integridade do Direito; Discricionariedade.
ABSTRACT
The reflections expressed in this work had as their objective to phrase
philosophically the question for the concept of principle, using the procedures of
hermeneutical phenomenology to give rise to the deconstruction of sedimentations produced
by legal language, catching them in their way of happening. We proceed this way because in
jurists everyday life the word principle is employed in different ways, leading to opposite
meanings. To understand such meanings we had to dive into a deep dimension into which the
basis behind each one would appear. Such a fundamental dimension, which in a way supports
the discourse about Law, was placed having Kants legal philosophy as its central point.
Placing Kant as an element to spray philosophical thought on Law it was possible to realize
how was edified the tradition over which are settled the main legal theories built in the
Continent during the first half of the 20th century. This allowed us to show how Robert Alexy
inherits an irreconcilable aporia: the phenomenon and the thing in itself; the pure theoretical
reason (Kelsens normative positivism) and the pure practical reason (Radbruchs axiological
positivism). Settled over this aporia, Alexy built an artificial procedure, a justifying discourse
to legal decision that continues to assert the discretionary thesis which was already present in
positivist theories as Hans Kelsens. This way we prepared a discursive horizon fit to
introduce Dworkins contributions, trying to present the integrity of law and the right answer
thesis refashioned by Lenio Stecks new legal criticism as a (necessary) alternative to
break free from discretionary thesis which still fill the imaginary of legal thinkers.
10
SUMRIO
INTRODUO.......................................................................................................................13
11
CAPTULO III
FENOMENOLOGIA
HERMENUTICA
DIREITO:
12
4.2.2. Robert Alexy e sua Teoria da Argumentao racional como um caso especial do
discurso prtico geral..........................................................................................................154
4.2.3. Reafirmao da pergunta pelo conceito de princpio a partir de uma digresso sobre o
problema da cincia, do valor e das concepes de mundo ...............................................159
4.3. O confronto entre Dworkin e Alexy a partir da pergunta pelo conceito de princpio. ....164
4.3.1. O problema envolvendo o conceito de norma. .........................................................166
4.3.2. O problema envolvendo a distino (ou diferena) entre regras e princpios ..........171
4.3.3. O mtodo do juiz Hercules (o direito como integridade) e o procedimento da
ponderao: O procedimentalismo alexyano contraposto ao substancialismo de Dworkin
............................................................................................................................................174
4.4. Os princpios como introduo do mundo prtico no Direito (Streck) ...........................183
13
INTRODUO
1. Apresentao do Tema
Mas em que consiste precisamente aquilo de que sou acusado de
ignorar? O que so princpios jurdicos, e de que modo diferem os
mesmos das regras jurdicas? Tal como so usados pelos autores
jurdicos, os princpios incluem freqentemente um vasto conjunto
de consideraes tericas e prticas, das quais apenas algumas so
relevantes para as questes que Dworkin pretendeu suscitar 1 .
As questes colocadas por Hebert Hart em resposta s crticas de Ronald Dworkin
includas no posfcio do seu O Conceito de Direito, certamente tm algo importante para nos
dizer. Em tempos de ps-positivismo e do enfrentamento, pelos mais diversos setores das
teorias jurdicas, daquilo que se pode chamar indeterminao do direito e da (in)evitabilidade
de discricionariedades judiciais, o conceito de princpio aparece como ponto de convergncia
das mais distintas posies. Isto porque, detectada a discricionariedade judicial como o
principal problema do positivismo jurdico, os princpios passaram a ser articulados, dos mais
diversos modos, como fatores minorativos do poder discricionrio do juiz no momento da
deciso. Todavia, o conceito de princpio longe est de uma determinao rigorosa.
Continuamos sem saber ao certo o que so os princpios e em que medida eles so distintos
das regras. Isso reverbera de uma maneira significativa no cenrio jurdico brasileiro, no
interior do qual a ode ao ps-positivismo como o movimento que elevou os princpios
condio de norma e o culto a um novo constitucionalismo do o tom do debate, na onda de
nossa ainda claudicante redemocratizao. Nessa medida, so as teorias de Ronald Dworkin e
de Robert Alexy embora o segundo seja chamado a intervir com maior freqncia que o
primeiro aquelas sobre as quais, com maior vigor, o ps-positivismo busca ancorar seus
postulados. Entretanto, cada um destes autores assenta sua posio em diferentes
pressupostos, o que, por sua vez, conduz a um conceito de princpio e uma distino deste em
relao s regras/normas 2 que se do de diferentes modos.
HART, Hebert L. A. O Conceito de Direito. Traduo de A. Ribeiro Mendes. 3 ed. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 1996, p. 322 Ps-escrito em resposta aos crticos.
2
Frise-se o seguinte: para efeitos desta pesquisa a prpria distino que se realiza entre norma e regra deve ser
olhada com algum cuidado. Isto porque o uso do termo regra proveniente do ingls rule que, na tradio do
direito anglo-saxo, produz um conceito muito aproximado ao continental de norma. Portanto, a classificao
efetuada por autores como Robert Alexy no interior da qual se distinguem, como espcies do gnero norma,
14
regras e princpios, pode ser problematizada. No decorrer da exposio retornaremos com freqncia a esse
ponto que nos parece extremamente relevante para o deslinde da questo. Por enquanto, limitamo -nos a afirmar
este problema para que, durante a leitura do texto, sempre que se colocar em evidncia a distino entre regras e
princpios, saibamos nos posicionar, de forma crtica, diante da questo envolvendo o termo norma e a possvel
elevao dos princpios condio de norma jurdica. Afinal, se o termo regra guarda alguma relao com a
distino que os anglo-saxes efetuam entre rules e principles, no deveramos, entre ns, procurar iluminar a
questo a partir de uma possvel diferena entre norma e princpios? No estaramos como que contando um
mito ao afirmar, abstrata e estruturalmente, a distino entre regras e princpios como espcies do gnero
norma?
3
Nesse sentido, so importantes as contribuies de Josef Esser e seu esforo comparativo para determinao do
conceito de princpio e de norma no direito anglo-saxo e continental, ou na tradio romano-germnica (Cf.
ESSER, Josef. Principio y Norma en la Elaboracin Jurisprudencial del Derecho Privado. Traduo de Eduardo
Valent Fiol. Barcelona: Bosch, 1961).
4
Como exemplo deste tipo de abordagem podemos citar Eros Grau em seu livro A Ordem Econmica na
Constituio de 1988, obra na qual o autor produz um denso estudo sobre o conceito de princpio recorrendo
inclusive ao exemplo de Chin Perelman no direito Belga como princpios gerais do direito mas, ao mesmo
tempo, citando e articulando, de maneira indiscriminada, posies de Dworkin e Alexy, que procuram abordar o
problema dos princpios no contexto da indeterminao do direito, da discricionariedade judicial e da
fundamentao das decises judiciais; portanto, num significado que se aproxima mais daquele que nomeamos
pragmtico-problemtico (Cf. GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econmica na Constituio de 1988:
Interpretao e Crtica. 17 ed. So Paulo: Malheiros, 2007).
15
em janeiro de 2007 ao Ministrio da Justia para futura votao em plenrio 5 (de se perguntar:
se so eles princpios, qual a necessidade do legislador defini- los, expressamente, no texto de
uma legislao qualquer? Representaria isso uma espcie de reforo hermenutico para que
se tenha certeza de que aquilo um princpio? Mas porque chamar de princpio algo que, no
interior do texto legislativo, tem o mesmo valor que as demais disposies normativas?).
Outra questo muito interessant e, situada ainda no mbito do direito processual, aparece na
forte tendncia verificada em recentes publicaes onde aparece um uso indiscriminado do
termo princpio chegando, no limite, criao ad hoc de uma srie de novos princpios,
como se o vetusto elemento inovador das teses de doutoramento produzidas no mbito do
direito viesse da descoberta de novos princpios6 .
Todos os pontos aqui levantados indicam e reivindicam uma terapia conceitual
em torno dos significados dos usos do termo princpio no mbito do conhecimento jurdico.
Hart nos lembra muito bem: tal como so usados pelos autores jurdicos, os princpios
incluem freqentemente um vasto conjunto de consideraes tericas e prticas que nem
sempre so especificadas por aqueles que utilizam o termo para justificar alguma
interpretao que faam do direito. Porm, ao contrrio do que pensava o mestre ingls,
entendemos que essa terapia, bem como a prpria determinao do conceito de princpio, no
poder ser efetuada por uma simple s anlise do positivo, ou seja, do mero uso efetivamente
real que os juristas fazem do termo princpio. H aqui a necessidade do salto para no
cairmos na superficialidade de uma ingnua ontologia do nomos. Portanto, entre a
(importantssima) terapia conceitual e a determinao do conceito, deve-se interpor um nvel
de investigao que d conta da prpria profundidade na qual o tema est envolvido. Isso, por
si s, leva-nos em direo a uma interrogao filosfica. Mas no apenas isso. Implica, esse
interpor, num modo de fazer filosofia e no de um filosofar qualquer. Trataremos mais
adiante deste modo de filosofar. Por enquanto, procuraremos explicitar a ultrapassagem que,
atravs da filosofia, pretendemos realizar sobre a temtica do conceito de princpio.
Texto
disponibilizado
pelo
Instituto
Brasileiro
de
Direito
Processual
no
site:
www.direitoprocessual.org.br/dados/file/enciclopedia/cbpc acessado em 28.11.2007.
6
Por todos, Cf. BEDAQUE, Jos Roberto dos Santos. Efetividade do Processo e Tcnica Processual. So Paulo:
Malheiros, 2006, p. 45. Nesta obra o autor apresenta o denominado princpio da adequao ou adaptao do
procedimento correta aplicao da tcnica processual, que por sua vez decorre do duvidoso princpio da
instrumentalidade das formas (segundo o qual todo ato processual eivado de nulidade relativa, mas que cumpra a
finalidade a que se prope no contexto do sistema processual, deve ser aproveitado), que tambm aparece de um
modo ad hoc na obra de Cndido Dinamarco A Instrumentalidade do Processo (Cf. DINAMARCO, Cndido
Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 12 ed. So Paulo: Malheiros, 2005).
16
Cf. STEIN, Ernildo. Pensar pensar a diferena. Filosofia e conhecimento emprico. Iju: Uniju, 2002, p. 69.
17
18
A questo dos fundamentos matemticos da modernidade, Heidegger explora no texto Que uma coisa?
enquanto que em Kant e o Problema da Metafsica embora a questo do matemtico tambm retorne
fortemente produz uma interpretao muito peculiar que v na Critica da Razo Pura no uma simples teoria
do conhecimento, mas sim uma primeira e verdadeira fundamentao da Metafsica (Cf. HEIDEGGER, Martin.
Que uma Coisa. Doutrina de Kant dos princpios transcendentais. Traduo de Carlos Morujo. Lisboa:
Edies 70, 1992; HEIDEGGER, Martin. Kant y el Problema de la Metafsica. Traduo de Gred Ibscher Roth
Pnuco: FCE, 1954).
19
representa uma relevante diferena com relao aos modos matemticos de se trabalhar com o
conceito de princpios, nos quais a antecipao j propriamente a realidade do conceito (ou
pretende ser). Assim, temos em Dworkin um valioso ponto de apoio para nossas reflexes, ao
mesmo tempo em que a explicitao das principais diferenas de sua teoria com a teoria de
Alexy nos possibilita lanar luz no espao discursivo em que esto situados estes dois autores,
corriqueiramente tratados em justaposio, mas que, lidos com certo cuidado, revelam
dessemelhanas pouco aparentes primeira vista.
deste modo que nos situamos entre a otimizao de Alexy e a resposta correta
em Dworkin, sendo que no entre est guardado o enigma que persegue o pensamento jurdico.
Enigma este que no necessariamente deve ser resolvido para que tenhamos melhores
solues jurdicas dos casos, leis, constituies etc., mas precisa simplesmente continuar a ser
lembrado para assim preservar a dignidade de um pensamento jurdico que, embora se
movimente no estranho, no se perde na iluso de que o direito apenas . O direito acontece
num horizonte de sentido onde desde sempre j se instalou a transcendncia. Perceber isso j
, de algum modo, situar-se para fora de qualquer naturalismo sobre o direito e representa
uma constante tentativa de se olhar para as questes jurdicas fundamentais como o caso
do conceito de princpio percebendo nelas esse horizonte de sentido.
20
diferena especfica entre os dois modos em que empregamos o termo mtodo afirmando que
o mtodo da modernidade sempre acabado e definitivo. So frmulas previamente
determinadas que, se seguidas corretamente, iro garantir com certeza e segurana o resultado
pretendido. J o mtodo (enquanto fenomenologia ) sempre precrio e provisrio e no
permite sua total apreenso e domnio. Tanto assim que Martin Heidegger a quem
devemos o desenvolvimento do mtodo fenomenolgico para alm das conquistas
husserlianas nunca chegou a expor com preciso quais seriam os contornos de seu
mtodo. Mtodo este que receber ainda o adjetivo de hermenutico.
O filsofo tratou de seu mtodo, de modo provisrio, no pargrafo 7 de Ser e
Tempo, embora seja possvel encontrar elementos formais, prprios do mtodo
fenomenolgico em toda obra, principalmente nos pargrafos 5 e 6 (onde se trata da
analtica do ser-a como descobrimento do horizonte para uma interpretao do ser em geral, e
da tarefa de uma destruio das ontologias tradicionais). Alm destes dados referentes a Ser e
Tempo, podemos mencionar o curso Ontologia Hermenutica da Faticidade de 1921, que
em seu pargrafo 14 traz algumas cons ideraes sobre a fenomenologia. H tambm um curso
de 1927, intitulado Os Problemas Fundamentais da Fenomenologia, no qual Heidegger
retoma a questo do mtodo procurando ressaltar alguns aspectos relevantes que no
haviam sido explicitados em Ser e Tempo.
Podemos dizer que este o panorama geral e topogrfico daquilo que foi escrito
por Heidegger a respeito do mtodo fenomenolgico.
Quanto ao mtodo propriamente dito, interessam-nos particularmente trs
pontos que o prprio Heidegger oferece como descrio, e que parecem exprimir, de um
modo englobante, aquilo que o mtodo fenomenolgico comporta. So elas: a) a reduo;
b) a destruio; c) a construo. Para compreender o que significam estas trs estratgias da
fenomenologia hermenutica, podemos remeter a uma frase situada no pargrafo 7 de Ser e
Tempo que pode ser considerada uma espcie de ncleo de toda a fenomenologia
hermenutica. Nela Heidegger diz: Por encima de la realidad est la posibilidad. La
compresin de la fenomenologa consiste nicamente en aprehenderla como posibilidad9 .
preciso saber transpor-se para o mbito em que Heidegger formula tais consideraes, para
que essa frase possa ser suficientemente compreendida.
HEIDEGGER, Martin. Ser y Tiempo. Traduo de Jos Eduardo Rivera. Madrid: Trotta, 2003, ver pg. (do
alemo 38-39).
21
10
Quanto a isso, Ernildo Stein aponta para o fato surpreendente de Heidegger ter herdado um elemento
fundamental de seu pensamento dos arraiais neokantianos que sabidamente era combatido pelas intenes do
movimento fenomenolgico. Afirma Stein: a diferena ontolgica, cuja envergadura se desdobrou muito com o
labor do filsofo, lhe foi ao menos possibilitada pelas anlises de Emil Lask. O pensamento de Heidegger que se
quer nos antpodas do problema gnoseolgico, contudo, lhe deve algo de essencial (STEIN, Ernildo. Uma Breve
Introduo Filosofia. 2 ed. Iju: Uniju, 2005, p. 83).
11
Convm, neste particular, transcrever uma citao um pouco longa de Stein, mas que nos parece importante
para a elucidao da questo posta: Heidegger pergunta como se d o ser do ente em geral e como se d o ser do
homem. Isso, de incio, se resumiria na problematizao daquele ente atravs do qual se abre qualquer
possibilidade de espao em que algo se d. Essa a abertura originria do ser a enquanto ser-no-mundo. No sera se abre a possibilidade de qualquer encontro (essa a palavra que ir substituir, em Heidegger, a expresso
imediatamente dado, de Husserl). Assim, a temtica fenomenolgica, para Heidegger, se situa da seguinte
maneira: 1. O modo como se do os entes intramundanos no a esfera do simplesmente objetivo. 2. O modo
como se d aquele que constitui e seu ser no podem ser pressupostos como objetivos. 3. No basta perguntar
pelos diversos modos como se d o ente. Mas o importante perguntar como possvel o prprio dar-se. Como
possvel que algo seja descoberto?, perguntar Heidegger. O fato de algo estar descoberto, manifesto e de poder
ser encontrado se d porque tudo o que encontramos experimentado enquanto ente. Desse modo, a pergunta
pelo sentido do ser e a pergunta pela abertura do ser-a coincidem. O sentido do ser e a faticidade do ser-a
tornam-se inseparveis como problemas (STEIN, Ernildo. Uma Breve Introduo Filosofia. op.cit., p. 92-93).
12
Neste sentido, temos as lies de Lenio Streck: O ser no uma generalidade, dir Heidegger. Com o ser
chegamos aos entes. O ser existe para dar sentido aos entes. No vemos o ser; vemos o ente no seu ser. neste
sentido que Heidegger pensa as bases da diferena ontolgica (ontologische Differenz) (STRECK, Lenio.
22
numa dupla estrutura que percorre toda linguagem e que sempre opera conosco no momento
em que pensamos ou fazemos algo e reduzimos esse pensar e esse fazer a enunciados. Como
um conceito operativo, que acontece na compreenso do ser-a de uma maneira profunda, a
compreenso do ser possibilita que o ser-a se relacione com os entes na dimenso que
efetivamente aparece na superfcie do discurso humano. O que se mostra a superfcie ntica
dos enunc iados. Porm, neste mostrar-se h algo que permanece oculto: o ser que j foi
compreendido.
Desse modo, temos por descrito o que significa o primeiro ponto levantado por
Heidegger e que caracteriza a fenomenologia: a reduo. Ou seja, pela reduo preciso
deslocar o olhar do ente em direo ao ser, de modo que aquilo que permanece oculto no que
se mostra, possa se manifestar 13 .
Mas a possibilidade que caracteriza o mtodo fenomenolgico se manifesta
tambm num procedimento regressivo atravs da histria da filosofia (autores como Gnter
Figal falam em repetio fenomenolgica 14 ), procurando destruir as sedimentaes que se
formam na linguagem e endurecem a tradio. Ou seja, trata-se de ler a tradio de modo que
seja possvel perceber nela possibilidades que ficaram inexploradas por uma srie de
encobrimentos. Neste sentido, Gadamer assevera:
Para que algo se mostre necessrio um desentranhamento do
encoberto, a fim de que ele possa chegar a mostrar-se. Portanto, a
palavra fenomenologia no significa apenas descrio daquilo que
dado, mas inclui a supresso do encobrimento que no precisa
consistir apenas em falsas construes tericas 15 .
Esta afirmao de Gadamer importante na medida em que, com Heidegger, temse uma verdadeira renovao da inteno da filosofia e do prprio mtodo fenomenolgico:
quanto filosofia, Heidegger a libera do corte opressivamente terico que a marcava desde
Martin Heidegger. In: Dicionrio de Filosofia do Direito. Vicente de Paulo Barreto (Coord.). Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, p. 427).
13
Quanto ao uso do termo reduo, Heidegger faz a seguinte ressalva: Adoptamos as um trmino central de la
fenomenologa de Husserl, valindonos de la exp resin pero no de su contenido. Para Husserl la reduccin
fenomenolgica, que por primera vez elabor de forma expresa en las Ideas para una fenomenologa pura y una
filosofa fenomenolgica (1913), es el mtodo de la reconduccin de la mirada fenomenolgica desde la actitud
natural propia del hombre que vive en el mundo de las cosas y de las personas hasta la vida transcendental de la
consciencia y sus vivencias notico-noemticas, en las cuales se constituyen los objetos como correlatos de la
consciencia. Para nosotros la reduccin fenomenolgica significa la reconduccin de la mirada fenomenolgica
desde la comprensin, siempre concreta de un ente hasta la comprensin del ser de ese ente (proyectada sobre el
modo de su estar develado) (HEIDEGGER, Martin. Los Problemas Fundamentales de la Fenomenologa.
Traduo de Juan Jos Garci Norro. Madrid: Trotta, 2000, p. 47).
14
Cf. FIGAL, Gnter. Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade. Traduo de Marco Antnio Casanova.
Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2005, p. 34.
15
Cf. GADAMER, Hans-George. Hermenutica em retrospectiva. A virada hermenutica. Vol. II. Traduo de
Marco Antnio Casanova. Petrpolis: Vozes, 2007, p. 16.
23
24
destruio um prejuzo no qual a tradio tenha que ser totalmente removida, a partir da
instituio de uma espcie de grau zero, seno que a destruio implica numa apropriao
positiva do passado que sempre possibilita a construo de novos projetos.
Reduo, Destruio e Construo so elementos do mtodo fenomenolgicohermenutico que no podem ser pensados fora daquilo que Stein nomeia como a dupla
vertente do mtodo: a vertente molar e a vertente molecular18 . Na vertente molar se opera
uma leitura regressiva da histria da filosofia na perspectiva de liberar aque las possibilidades
que os encobrimentos presentes na prpria tradio tendem a esconder. Enquanto que, na
vertente molecular, tem-se como ponto de partida a micro-anlise da cotidianidade do ser-a
na perspectiva de fazer aparecer as prprias possibilidades deste ente que permanecem
encobertas pelo relacionar-se cotidiano com os entes que ignora aquela compreenso no
temtica do ser que somente uma interrogao e interpretao fenomenolgicas podem trazer
tona 19 .
Cf. STEIN, Ernildo. A Questo do Mtodo na Filosofia. Um estudo do modelo heideggeriano. 3 ed. Porto
Alegre: Movimento, 1991.
19
Cf. PAISANA, Joo. Fenomenologia e Hermenutica. As relaes entre as filosofias de Husserl e Heidegger.
Lisboa: Editorial Presena, 1992, p. 198.
20
Essa segunda perspectiva aparece em autores como Robert Alexy e em sua tese da argumentao jurdica
como caso especial do discurso prtico geral (Cf. ALEXY, Robert. ALEXY, Robert. Teoria de la
Argumentacin Jurdica. Traduo de Manuel Atienza e Isabel Espejo. Madrid: CEC, 1989; ALEXY, Robert. El
concepto y la validez del derecho. Traduo de Jorge M. Sea. 2 ed. Barcelona: Gedisa, 1997). No decorrer da
investigao a posio de Alexy ser problematizada com maior ateno. De h muito Lenio Streck denuncia as
Teorias da Argumentao Jurdica como discursos adjudicadores (capas de sentido) ou construes contrafctuais
de discursos sobre a realidade. Diz bem Streck que filosofia no lgica. Alias, como veremos adiante, com
Heidegger a filosofia libertada do corte terico que a oprime. Temos, ento, um novo modo de fazer filosofia
que procura colocar entre parnteses o ideal dominante desde de Descartes, que se radicaliza no sujeito
epistemolgico do positivismo, em favor dos contextos histricos das vivncias fticas. (Neste sentido Cf.
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdio Constucional e Hermenutica. Uma nova Crtica do Direito. 2 ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, em especial o Captulo V; STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso.Constituio,
Hermenutica e Teorias Discursivas da Possibilidade necessidade de respostas corretas em Direito. 2 ed. Rio
de Janeiro: Lumen juris, 2007).
25
mostrar como que a relao entre filosofia e direito pode ir alm de qualquer tipo de
aplicao.
Com efeito, no item anterior, quando abordamos o mtodo feno menolgico
hermenutico, sempre estavam em jogo embora no tenha m aparecido explicitamente dois
nveis de estruturao do pensamento. Chegamos a mencionar uma dupla estrutura que
comporta uma dimenso profunda e uma dimenso rasa, o que pde ser iluminado a partir da
diferena ontolgica. Heidegger trabalhar com essa dupla estrutura, em dois nveis, a partir
da diferena entre logos hermenutico e logos apofntico. Como aduz Lenio Streck, a
fenomenologia hermenutica apresenta um duplo nvel: no nvel hermenutico, de
profundidade, a estrutura da compreenso; no nvel apofntico, os aspectos lgicos,
expositivos21 .
O nvel hermenutico implica a compreenso e interpretao organizadora e
estruturante das nossas relaes com os instrumentos (ou utenslios) e as coisas no mundo;
enquanto que no apofntico chegamos a explicit- las em termos lgico-objetivos. Ocorre que,
na esteira da diferena ontolgica, no possvel separar estes dois nveis, que sempre
acontecem numa unidade, embora o nvel hermenutico possa estar encoberto (e no mais das
vezes est) pela prpria linguagem que diz o apofntico. Essa impossibilidade de separao se
d, inclusive, em termos temporais, entendido em seu sentido vulgar, no sentido de um
antes e um depois. Ou seja, no h uma prioridade temporal do hermenutico em relao ao
apofntico, mas sim uma espcie de privilgio, uma vez que no apofntico se mostra, se
predica, ou se comunica algo que j foi compreendido e interpretado no logos hermenutico.
O enunciado, que se mostra apofa nticamente, sempre um modo derivado de interpretao.
Voltaremos a tratar disso mais tarde. Por enquanto, importante perceber como o conceito de
hermenutica com que Heidegger opera permite descobrir, no prprio ser-a, a idia de
compreenso, possibilitando ver como agir enunciativo ou todo operar com entes sempre
mediado por esse processo hermenutico-compreensivo.
Sendo assim, em toda pergunta jurdica em que nos envolvemos num problema
conceitual como o caso dos princpios, sempre esto em jogo como pressupostos o como
hermen utico e todas as questes existenci rias envolvidas na compreenso.
Desse modo, no se trata de aplicar o mtodo fenomenolgico ao direito ou,
tampouco, aplicar conceitos da analtica existencial ao universo ntico do direito, mas sim
21
26
de perceber como todo processo compreensivo em torno dos conceitos jurdicos carrega
consigo esse elemento hermenutico. Nessa medida, modifica-se o modo de colocar a
pergunta e a preciso de olhar para o problema e identificar nele as pseudo-questes,
implicando na libertao de uma idia naturalista e ingnua sobre o direito, entre outras
questes igualmente importantes. Trata-se, portanto, de um operar com conceitos jurdicos
sempre buscando desvelar as possibilidades hermenuticas que neles esto envolvidas. Por
certo que isso implica numa impossibilidade de passagem direta das solues apresentadas
por Heidegger a problemas filosficos do conhecimento, para solucionar, de forma ad hoc,
problemas jurdicos.
Todavia, algumas destas solues heideggerianas no podem ser, de modo
algum, ignoradas pelo direito. So questes que atuam, sobretudo, na estrutura do pensamento
e que devem transformar o prprio modo de colocar os problemas jurdicos. Entre elas
podemos citar: 1) a dissoluo do dualismo entre conscincia e mundo e entre sensvel e
supra-sensvel atravs do conceito de ser-no- mundo e das idias de sentimento de situao e
de compreenso; 2) a superao do esquema sujeito-objeto pela estrutura ante-predicativa do
logos hermenutico; 3) a determinao da possibilidade em detrimento da realidade e o
desenvolvimento de uma vigilncia sobre a tradio que esteja atenta s sedimentaes da
linguagem e aos encobrimentos de novas possibilidades.
Estes trs elementos, associados a outros de igual e fundamental importncia
como so a questo da verdade e o desenvolvimento da temporalidade como horizonte de
sentido do ser, nos permitem ver em Heidegger um verdadeiro paradigma filosfico, que
produziu uma filosofia de standard de racionalidade. O conceito de standard de
racionalidade afirmado por Ernildo Stein procurando distinguir esse modo de fazer filosofia
de outros dois: a filosofia ornamental em que se utilizam algumas frases e conceitos
filosficos em um trabalho qualquer porque isso demonstra maior erudio e garante um
carter mais belo pesquisa; e a filosofia de orientao no interior da qual se busca uma
tica ou filosofia moral e se retira uma lio para a vida. S se tem filosofia de standard de
racionalidade junto queles filsofos que oferecem um paradigma novo. Esse paradigma
novo deve possibilitar um filosofar como o filsofo (mtodo) e com o filsofo (linguagem).
Sendo mais preciso, um paradigma filosfico que oferea um standard de racionalidade deve
desenvolver: 1) um modo de filosofar (mtodo); 2) um modo de dizer (linguagem); 3) uma
teoria da verdade; 4) uma teoria da realidade.
27
28
22
Cf. STEIN, Ernildo. Diferena e Metafsica. Ensaios sobre a desconstruo. Porto Alegre: Edipucrs, 2000.
Portanto, trata-se da pergunta por algo que se pode chamar de a priori compartilhado, cuja tematizao
prpria da filosofia. Este tipo de conhecimento se distingue radicalmente de outras formas a priori de
conhecimento, como o caso da lgica ou da matemtica. Estes ltimos, tambm so conhecimentos ditos a
priori, porm, no procuram articular algo que j se sabe, mas que ainda no foi explicitado, mas, ao contrrio,
elas examinam o que est implicado nas coisas que j sabemos ou que podemos assumir hipoteticamente.
Todavia, esta definio preliminar no pode ser recebida sem nenhum tipo de ressalva, principalmente no que
tange ao diverso modo com que se ocupam do conhecimento a Filosofia e a Cincia positiva. Por isso, so
29
importantes as observaes de Ernest Tugendhat: Quando nos confrontamos pela primeira vez com a temtica
especificamente filosfica do a priori, facilmente camos no erro de transferir para ela as estruturas que so
familiares no saber cientfico ou mesmo pr-cientfico. por isso que se aponta das palavras para as coisas, sem
se considerar que a filosofia no se relaciona com as coisas do mesmo modo que as cincias (Cf.
TUGENDHAT, Ernest. Lies Introdutrias Filosofia Analtica da Linguagem. Traduo de Ronai Rocha.
Iju: Uniju, 2006, p. 30, grifamos). Essa questo aparecer com maior clareza no decorrer da pesquisa.
23
De se ressaltar que o conceito de transcendental remete tradio kantiana e pode ser encarado como
totalidade da subjetividade (eu transcendental). Todavia, no nesse sentido que afirmamos o carter
transcendental de nossa aproximao da temtica proposta. Falamos do transcendental no sentido que lhe d a
fenomenologia hermenutica, a partir da qual poderamos falar de um transcendentalidade fraca, no mais
ligada subjetividade, mas sim ao modo prtico de ser-no-mundo. No decorrer da investigao procuraremos
esclarecer melhor essa questo.
24
O problema do conceito de princpio e a relao desenvolvida em face do conceito de Direito no meramente
aleatria. Com ela, fazemos meno ao clebre debate entre Hebert Hart e Ronald Dworkin que teve lugar na
segunda metade do sculo 20 no interior das discusses tericas sobre o conceito de Direito. Em 1961, Hart
publicou a primeira edio do seu O Conceito de Direito, obra que se apresentava como uma reformulao
global do positivismo jurdico. Em seu livro, Hart criticava as teses de J.L. Austin e, ultrapassando os limites da
common law, criticava tambm algumas das principais teses do positivismo normativista de Hans Kelsen. Seu
objetivo era colocar e responder, de forma mais precisa, a pergunta: o que Direito? Essa resposta procurada
por ele a partir de uma ateno linguagem que os advogados, juzes, legisladores e os cidados em geral
utilizam ao referir-se a assuntos jurdicos, tendo como pano de fundo as anlises desenvolvidas pela filosofia
analtica da linguagem de Austin e Wittgenstein. Num resumo bastante genrico, e nos limites daquilo que
interessa a esta pesquisa, podemos dizer que Hart assume como pressuposto o fato de que toda expresso
lingstica seja ela jurdica ou no possui um ncleo duro de significado e uma zona de penumbra. O ncleo
duro de significado da interpretao est conformado pelos casos de fcil interpretao, dizer, aqueles nos
quais quase todos os intrpretes estariam de acordo sobre a expresso que se aplica ao caso em questo, seja ele
um objeto ou um fato social. No mbito da deciso judicial, isso significa que uma regra sempre possuir um
ncleo duro e uma zona de penumbra, frente qual o juiz dever escolher qual o sentido que deve prevalecer.
Para demonstrar sua tese Hart formula o seguinte exemplo: se uma regra diz: proibida a circulao de veculos
no parque. Diante das diversas hipteses de interpretao, todos estariam de acordo que no se permite a
circulao de automveis ou caminhes. Mas haveria dvida sobre a proibio da circulao de bicicletas, por
exemplo. Neste caso, estaramos segundo Hart diante de um caso difcil e a soluo deveria ser dada a partir
de um critrio aproximativo de analogia com os casos de fcil aplicao da regra. Nesse mbito aproximativoanalgico, os juzes possuem dsicricionaridade para escolher a melhor interpretao. neste ponto que se
encontra o ponto decisivo de discordncia nas posies de Hart e Dworkin. Para Dworkin, ao contrrio do que
sugere Hart, os juzes no possuem discricionaridade alguma porque, mesmo nos chamados casos difceis,
eles esto vinculados a julgar conforme padres prvios de conduta que ele descreve como princpios jurdicos.
De certa forma, a partir deste debate, e das teses sobre os princpios formuladas por Dworkin, a conceituao e a
prpria maneira do direito compreender os chamados princpios jurdicos receber novos contornos. Mas o
decisivo aqui o seguinte: a problemtica envolvendo o conceito de princpio, em ltima anlise, se aproxima da
prpria problemtica sobre o conceito de Direito. No fundo, em seu conceito de Direito, Hart se mantm como
um convencionalista, ou seja, um terico que reconhece o Direito a partir de decises coletivas que se
manifestam por meio de regras nas decises tomadas no passado por instituies reconhecidas pela sociedade.
Num nvel mais sociolgico, poderamos dizer que h uma certa institucionalidade estatalista que percorre o
discurso deste tipo de teoria. J em Dworkin, a descrio dos princpios e o desenvolvimento do conceito de
integridade aproximam mais o conceito de Direito de uma idia de narrativa histrica, no simplesmente
30
deve ser levada em conta a complexidade da pergunta, que polemiza com temas correlatos
deciso judicial, ao conceito de fundamentao e ao conceito de discricionariedade. Diante
disso, a investigao no alcanar resultado algum se enveredar pela tentativa de apurar o
significado do conceito de princpio jurdico a partir de uma construo terica objetivista, no
sentido de um universo temtico puramente epistemolgico. Poderamos dizer que, para
responder questo, o que so princpios jurdicos?, faz-se necessrio sair do modo
ingnuo de se lidar com eles no mbito da anlise jurdica e procurar desvelar a dimenso
transcendental que sustenta qua lquer discurso sobre o Direito.
Nessa medida, precisamos nos assegurar do horizonte correto para colocao da
questo, sabendo-se de antemo que no interessa analisar os princpios descolados de sua
manifestao histrica, e isso quer dizer: tentar produzir um conceito de princpio separado do
objeto princpio. Por isso, nossa insistncia no problema do uso que se faz desse conceito.
No apenas o uso num sentido pragmtico vulgar. O pragmtico aqui deve significar que toda
manifestao principiolgica no direito decorre de uma lida que emerge da ocupao do ser-a
enquanto ser-no- mundo (ou est- no-mundo, pela traduo de Jorge Rivera) e no
simplesmente de uma mera contemplao de todas estas regies do ente. E essa lida que em
ltima anlise possibilitar apanhar o modo de ser destes princpios deve ser colocada numa
dimenso atravessada pela histria, atentando para os significados que esse uso
produz/produziu e as possibilidades que da se projetam. O Direito e tudo o que ele
representa apenas um modo de ser do ser-a humano que se desdobra em sua historicidade
e, portanto, a aproximao ao conceito de princ pio dever ser feita a partir das marcas
indelveis deixadas nas estruturas da temporalidade do ser-a. Isso quer dizer que, a relao
entre aquele que conhece e aquilo que conhecido est atravessada pelo sentido, o que
impede, em um nvel filosfico-hermenutico, falar de qualquer tipo de separao entre
sujeito e objeto 25 . Portanto, os princpios no so apenas objetos puramente subsistentes
disposio do conhecimento jurdico e espera de serem descobertos. Quando se argumenta
com princpios, a j sempre se instaurou o sentido. Ou seja: quando tratamos do conceito de
princpios no experimentamos algo que se esgota com uma simples experincia emprica,
prisioneira de uma roupagem institucional-estatal restrita. Quanto a isso Cf. HART, Hebert L. A. op. cit..;
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Srio. Traduo de Nelson Boeira. So Paulo: Martins Fontes, 2002;
DWORKIN, Ronald. O Imprio do Direito. So Paulo: Martins Fontes, 2003; RODRGUEZ, Csar. La Decisin
Judicial. El debate Hart-Dworkin. Bogot: Siglo del Hombre, 1997.
25
A crtica-denncia do aprisionamento da dogmtica jurdica relao sujeito-objeto vem ganhando fora no
cenrio brasileiro principalmente a partir das obras de Lenio Streck, entre as quais so imprescindveis:
STRECK, Lenio Luiz. Hermenutica Jurdica e(m) Crise. 5 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005;
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdio Constucional e Hermenutica. Uma nova Crtica do Direito. op. cit..;
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. op. cit..
31
mas h algo que desde sempre aconteceu neste encontro. No ter isso em conta representa dar
um passo em direo objetificao. Neste nvel, objeticar implica coagula r significados,
produzindo uma espcie de sedimentao da linguagem. So estes significados sedimentados
que pretendemos atingir com nossa pesquisa. Operando com os princpios num nvel
conceitual, conseguimos acessar esses significados sem que caiamos numa espcie de vcuo
lingstico que produzido quando as teorias do direito ou a dogmtica jurdica faz referncia
a princpios sem especificar o significado com o qual est operando. Portanto, esse nosso
ponto de partida: h vrios significados para o conceito de princpio no direito. Explicitar
estes significados procurando, na medida do possvel, instaurar uma aproximao crtica sobre
eles, deve ser a primeira tarefa da investigao.
Tendo em conta as transformaes que se operam no Direito no contexto do
racionalismo26 moderno, podemos destacar trs significados, de algum modo distintos, para o
conceito de princpio jurdico: a) princpios gerais do direito; b) princpios jurdicoepistemolgicos; c) princpios pragmticos-problemticos.
26
A delimitao em torno do racionalismo moderno se faz necessria por pelo menos dois motivos de ordem
metodolgica: O primeiro em virtude de que o conceito de princpio tal como operamos com ele no nosso
contexto atual, algo tipicamente moderno; O segundo que h uma diferena considervel entre os
significados que o conceito de princpio adquire na tradio romano-germnica (continental) e na tradio da
common law (anglo-saxnica). Isso se deve, entre outros motivos, ao fato de que o direito ingls no se constitui
a partir do modelo matemtico (axiomtico-dedutivo) e abstrato prprio do jusnaturalismo racionalista moderno.
O predomnio da filosofia empirista no ambiente da common law possibilitou a formao de um conceito de
princpio muito mais ligado problemtica do caso concreto debatido em juzo, do que propriamente uma
preocupao lgico-sistemtica presente no direito do continente. Desse modo, possvel dizer que, na tradio
anglo-saxnica, se preservou um significado muito prximo quele que ns, continentais, s passamos a
conhecer a partir da revoada judicialista dos Tribunais Constitucionais do segundo ps-guerra. Isso de certa
forma explica porque Ronald Dworkin se refira a estes princpios (que para os fins desta pesquisa chamaremos
pragmtico-problemticos) como princpios gerais do direito. Todavia, e essa ressalva extremamente
importante, o significado articulado por Dworkin difere de maneira substancial daquilo que, na tradio
continental, conhecemos por princpios gerais do direito.
32
27
Anote-se, neste particular, que os princpios gerais do direito assumem, no direito brasileiro, a condio de
determinao legislativa, sendo expressamente estabelecido como critrios de soluo para as lacunas da
ordenamento no Artigo 4 da Lei de Introduo ao Cdigo Civil (LICC), ao lado da analogia, dos costumes e da
jurisprudncia. Opera-se, na verdade, com um sistema sem lacunas: o direito efetua a correo do prprio direito
(Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. op. cit., p. 173). No deixa de ser sugestivo o fato de que este
tipo de estratgia legislativa tenha sido utilizada, pela primeira vez, nos Cdigos dos oitocentos. Tais cdigos
tinham uma feio nitidamente privativista. O curioso que a LICC, embora tenha sido nomeada como Lei de
introduo ao cdigo civil, na verdade uma lei de Direito pblico, que abarca ou pretende abarcar todo
ordenamento jurdico brasileiro.
28
Cf. KAUFMANN, Arthur. Introduo Filosofia do Direito e Teoria do Direito Contemporneas. Arthur
Kaufmann e Winfried Hassemer (org.). Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2002, p. 83 e segs. Para Kaufmann os
juristas racionalistas procediam totalmente de acordo com a escolstica, na medida em que tambm eles estavam
convencidos da possibilidade de, a partir de um nmero reduzido de princpios superiores e apriorsticos, extrair,
atravs da pura deduo, todas as regras de direito, sem ter em conta a realidade emprica, as circunstncias
espao temporais. (...) Na realidade, acabava por se proceder empiricamente, quando se pediam emprstimos
ao direito romano, cuja racionalidade se enaltecia (era o tempo da recepo). S assim puderam nascer os
grandes cdigos jusnaturalistas. Tambm Castanheira Neves afirma que o jusnaturalismo moderno-iluminista
preparou desde meados do sc. XVIII, e consumou-se, a partir de 1794 (a data do Cdigo prussiano) na
codificao. Os cdigos iluministas, e mesmo o ps-revolucionrio Code civil francs de 1804 outra coisa no
foram, fundamentantemente, do que a consagrao dos sistemas racionalmente construdos pelo jusnaturalismo
moderno-iluminis ta em positivo-codificados sistemas legislativos (CASTANHEIRA NEVES, Antonio. A Crise
Actual da Filosofia do Direito no Contexto Global da Crise da Filosofia. Tpicos para a possibilidade de uma
reflexiva reabilitao. Coimbra: Coimbra editora, 2003, p. 26-27.). Desse modo, fica claro que o jusnaturalismo
moderno no apenas preparou o caminho para codificao, como se consumou nela. Em outra obra Castanheira
neves vai alm da tese da consumao do direito natural na codificao, procurando apontar para a maturao
dos conceitos fundamentais do positivismo jurdico j ao tempo do perodo racionalista-iluminista Cf.
CASTANHEIRA NEVES, Antnio. Curso de Introduo Ao Estudo do Direito. Coimbra, 1976, Parte II.
33
em sua definio como norma do direito positivo 29 , isto , sua representao se expressa na
lei humana, positivada. Portanto, j em jusnaturalistas modernos, como Grcio, Leibniz e
Christian Wolff, encontrava-se presente o ideal de completude racional do direito que depois
ser defendido pelo positivismo jurdico da poca da codificao. Nesta medida, os princpios
gerais do Direito aparecem como reminiscncias do projeto jusnaturalista em pleno seio da
cultura positivista emergente, como figuras capazes de suprimir as eventuais lacunas
existentes no sistema positivo do direito codificado para lhe preservar a completude lgicosistemtica conquistada racionalmente.
Alm deste aspecto conteudstico, do projeto direito natural racionalista retira-se
tambm o mtodo de aplicao de tais princpios. Os princpios aparecem, neste caso, como
axiomas de justia necessrios a partir dos quais se realiza a deduo. Desse modo, possvel
dizer que eles funcionavam de maneira terica e metodolgica para reunir pelo menos duas
das exigncias para concretizao da completude axiomtico-dedutiva do sistema: Em
primeiro lugar a plenitude normativa, sendo articulados para colmatar os espaos vazios do
sistema em casos de lacunas; em segundo lugar, reduzindo eventuais contradies que
pudessem surgir da interpretao abstrata das disposies normativas do sistema jurdico
codificado 30 .
29
Cf. GOYARD-FABRE, Simone. Filosofia Crtica e Razo Jurdica. Traduo de Maria Ermantina de
Almeida Prado Galvo. So Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 29-30.
30
Como afirma Josef Esser: Por esta razn todos los princpios tienden a la formacin de un sistema y a un
esquema de jerarquizacin lgica, por el que la matria queda reducida a um mnimo de axiomas
universalmente utilizables y praticamente fecundos, y de conceptos que se prestan a la deduccin (ESSER,
Josef. op., cit., p. 10). Ainda com Esser, preciso anotar que essa descrio at aqui realizada se mantm, de
alguma forma, presa elementos metodolgicos presentes na tradio jurdica continental civil law no
acompanhando mais de perto os problemas dos princpios na tradio anglo-sax, ou common law. Isso se d em
virtude de que, a forma como os principles aparecem na tradio anglo-sax, se aproxima mais daquilo que
articularemos como o terceiro sentido de princpios e que Esser chama de problemticos. evidente que,
tambm na common law, foram percebidas influncias jusnaturalis tas principalmente no caso do
constitucionalismo estado-unidense e de cunho metodolgico-conceitual. A despeito disso, no possvel
determinar a formao de um sistema axiomtico-dedutivo como se produziu no continente a partir do
movimento codificador. Na cultura jurdica continental pode-se perceber um ciclo metodolgico que vai do
descobrimento de problemas, para formao de princpios e sua articulao dedutivo-sistemtica posterior,
enquanto que, na tradio da common law, se d nfase ao carter problemtico do direito em questo. Portanto,
entre os continentais, h um esforo para que se retire o conceito de princpio, de maneira indutiva, da prpria
lei, para depois transforma-lo em axioma capaz de resolver o problema aplicativo apresentado. Isso est por trs
daquilo que Esser denomina doutrina dos princpios ocultos que defende a idia de que, no fundo de cada regra
positiva, se encontra latente um princpio, capaz de ser conhecido de maneira abstrata e, assim, de preservar a
unidade sistemtica do ordenamento muito interessante perceber que, na civil law, mesmo nos movimentos
metodolgicos que pretendiam se livrar do modelo conceitual axiomtico-dedutivista, reivindicava um carter
sistemtico que conferisse uma espcie de completude teoria, como descreve Canaris na polmica envolvendo
a jurisprudncia dos interesses e a jurisprudncia dos conceitos (Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento
Sistemtico e Conceito de Sistema na Cincia do Direito. Traduo de Antonio Menezes Cordeiro. 3 ed. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 2002, pp. 55 e segs.)
34
Desse modo, nesse primeiro significado, o conceito de princpio opera com alguns
pressupostos a serem destacados: 1) a radical separao entre direito e fato e, por conseguinte,
a problemtica relao entre universal e particular, o que implica na ciso entre teoria e
metodologia jurdica; esta se volta para o momento aplicativo-operacional do direito,
enquanto aquela tem lugar nos processos gnoseolgicos de conhecimento da ordem jurdica;
2) um modelo de cincia jurdica que se pretende estruturar sob processos matemticos de
definio, organizao e fundamentao; 3) uma imantao do Direito lei, visto que,
mesmo os elementos utilizados para suprir as lacunas (os princpios gerais do direito) depois
que todos os recursos endgenos fracassaram, principalmente a analogia so conhecidos
indutivamente a partir da constatao de lacunas no sistema de regras positivas e depois
reduzidos a axiomas que incorporam o sistema e so aplicados por deduo. Dito de outro
modo: da prpria lei que se retira o contedo que ser articulado no argumento dos
princpios.
Todos estes fatores operam, de alguma maneira, num nvel filosfico e no
abarcado pelas teses poltico-sociolgicas que geralmente povoam as interpretaes deste
perodo. Tais interpretaes procuram explicar fenmenos jurdicos que esto envolvidos com
uma problemtica sociolgica e que tem alguma relao com a filosofia poltica, mas no
conseguem apanhar o profundo vnculo terico da fundamentao Metafsica do direito e da
articulao que neste sentido se faz do conceito de princpio. Quer dizer: todos estes
pressupostos se vinculam a uma posio filosfica que se formou a partir do humanismo
renascentista e se consagrou com o racionalismo iluminista. A prpria definio do juiz boca
da lei, sempre remetida obra poltica de Montesquieu, ao perodo ps-revolucionrio na
Frana e a rigidez da separao dos poderes, est envolvida por estes pressupostos
filosficos. Isso significa que, a tese da desconfiana ps-revolucionria relativa os poderes
dos juzes (o que implica um elemento antidiscricional) que explica como se desenvolveram
os limites institucionais para tentar impor barreiras aos poderes criativos dos juzes, deve ter
em conta tambm a relao com a fundamentao terica das posies filosficas que
comearam a serem formadas com o direito natural racionalista. Portanto, podemos dizer que
h uma dimenso Metafsica que, de certo modo, destina a concepo de direito que se
professa a partir do sculo 18 e que se situa mais alm de qualquer tipo de determinismo
histrico. Nessa medida, toda questo envolvendo a formao do significado dos princpios
gerais do direito, a imposio de limites discricionariedade dos juzes e o modelo
35
Para evitar qualquer mal entendido, convm deixar claro desde j que no estamos
desenvolvendo uma espcie de raciocnio evolutivo dos significados que o conceito de
princpio assume ao longo da histria da cincia jurdica. Embora exista uma conexo entre o
primeiro significado mencionado e este outro que comea a ser apresentado neste item, no h
como se falar numa evoluo conceitual linear, at mesmo porque as manifestaes
31
Tambm na common law, em que se desenvolveu uma tendncia muito mais judicialista do que aquela
verificada no continente, pode-se apontar para outras dimenses que no apenas aquela ligada ao contexto
histrico-revolucionrio que possibilitam falar de um sentido filosfico para o desenvolvimento de suas teoria
e metodologia jurdicas. Enquanto, o modelo jurdico da civil law est estruturado sobre um modo racionalistaabstrato de explorao do Direito, no contexto anglo-saxnico o predomnio das filosofias empiristas e,
posteriormente do utilitarismo, podem ser colocados como condies que possibilitaram esse carter judicialista.
No fundo, aqui tambm est em jogo o escndalo kantiano da procura (infinita) de uma ponte entre conscincia e
mundo, que desemboca nos debates entre racionalismo e empirismo. Por certo, muito complicado desenvolver
de forma to genrica um argumento como esse. Todavia, nosso objetivo simplesmente ressaltar que no se
trata apenas de uma determinao histrico-sociolgica o aparecimento de uma atividade judicial mais
proeminente que aquela verificada no continente (ou seja, a desconfiana nos juzes no perodo psrevolucionrio francs e o carter de garantidor dos direitos assumido pelo judicirio no contexto do
constitucionalismo americano). Alm deste aspecto, possvel ver o problema num outro nvel que parece
esclarecer melhor como os problemas filosficos desembocam no Direito, que o objetivo desta pesquisa. Ou
seja, no se trata de procurar aquilo que materialmente determinou os processos histricos-sociais, mas sim de
perguntar sobre aquilo que tornou possvel tais manifestaes. No Direito, todavia, ns continuamos refns de
um tipo de investigao histrica que, ou se contenta com uma evoluo muito imprecisa de fatos importantes;
ou se vincula a uma interpretao que deriva da leitura da histria feita pelo materialismo -dialtico. No entanto,
possvel encontrar, no contexto das crises do sculo 20, autores como Erich Rothacker que procura pensar uma
Filosofia da Histria desprendida das concepes tradicionais (a idealista de cunho mais hegeliano e a
materialista de corte marxiano). Isto porque, no contexto da crise dos anos 20, ambas as formas de abordagem
da histria foram colocadas em xeque, tanto pelas construes da escola histrica de Droysen, Dilthey e
Hermann Nhol quanto pela prpria fenomenologia, que aparecia como um movimento alternativo em relao a
todas neofilosofias que povoavam as concepes filosficas do final do sculo 19 e incio do sculo 20 (Cf.
ROTHACKER, Erich. Filosofia de la Historia. Madrid: Pegaso, 1951). As crticas de Rothacker so, de certo
modo, acompanhadas por esta pesquisa, embora o cerne de nosso pensamento se mo vimente no mbito da
fenomenologia hermenutica de Martin Heidegger.
36
37
economia processua l procuram estabelecer que, depois de iniciado um processo ele deve ser
conduzido pelo juzo responsvel da maneira menos dispendiosa possvel, tanto para as partes
quanto para o Estado. Isso significa: economia de atos processuais e instrumentalidade das
formas, no sentido de que todo ato processual, mesmo que eivado de nulidade relativa, pode
ser aproveitado desde que no acarrete prejuzo para as partes 32 . Essa sucinta descrio j o
bastante para se perceber que tais princpios possuem um significado distinto daquele que
recebiam os princpios gerais do direito. Em comum, eles mantm a estrutura de algo que se
conhece por antecipao quilo com o que se relaciona m: os princpios epistemolgicos so o
j-conhecido de um ramo do direito; os princpios gerais do direito, o j conhecido de uma
ordem jurdica sistemtica, ambos percebidos de maneira puramente abstrata pelo modo
axiomtico-dedutivo.
Mas h princpios epistemolgicos mais sofisticados no mbito da Teoria do
Direito. Neste caso, nos valemos do exemplo da Teoria Pura do Direito de Kelsen. Nela, o
autor desenvolve seu projeto epistemolgico e determina o direito como uma cincia positiva.
O faz a partir da construo de uma metalinguagem capaz de resolver os paradoxos lgicos da
linguagem jurdica ordinria, sem o recurso a argumentos polticos, sociolgicos ou
ideolgicos. Com estes pressupostos, Kelsen passa para a descrio da ordem normativa a
32
Vale ressaltar que no apenas o direito processual que organizar dessa forma seu estudo terico. Tambm o
direito penal e as disciplinas envolvendo o chamado direito do Estado (Constitucional, Administrativo e
Tributrio) passaro a assumir as mesmas feies e todos iro desenvolver, cada um a sua maneira, princpios
organizadores que funcionam como pressupostos lgico-matemticos para o conhecimento de cada uma destas
disciplinas. No mbito especfico do direito processual, no deixa de ser curioso que no nosso contexto atual a
doutrina proceda de forma indiscriminada a produzir princpios processuais que servem, de maneira ad hoc, para
solucionar problemas tericos do processo. O princpio da instrumentalidade das formas retratado no texto
uma destas criaturas da teoria processual. Nessa toada, e numa ode ao que se convencionou a chamar no Brasil
de instrumentalidade do processo, Jos Roberto dos Santos Bedaque tambm cria um novo princpio
processual decorrente do princpio da instrumentalidade das formas denominado princpio da adequao ou
adaptao do procedimento correta aplicao da tcnica processual. Com este princpio (sic) se reconhece
ao julgador a capacidade para, com sensibilidade e bom senso, adequar o mecanismo s especificidades da
situao, que no sempre a mesma (BEDAQUE, Jos Roberto dos Santos. Efetividade do Processo e Tcnica
Processual. So Paulo: Malheiros, 2006, p. 45). Ainda segundo o autor, este princpio pressupe que deve ser o
juiz investido de amplos poderes de direo, possibilitando-lhe adaptar a tcnica aos escopos do processo em
cada caso concreto, mesmo porque a previso abstrata de todas as hipteses praticamente impossvel (Idem,
p.64-65). E como a previso legislativa no comporta todas hipteses de aplicao, Bedaque conclui: observado
o devido processo legal, deve ser reconhecido ao juiz o poder de adotar solues no previstas pelo legislador,
adaptando o processo s necessidades verificadas na situao concreta (Idem, p. 571). Na mesma linha de
Bedaque, os autores do anteprojeto do Cdigo Brasileiro de Processo Coletivo incluram, no texto entregue ao
ministrio da justia, uma srie de princpios (sic) que devero fazer as vezes de alicerce do novo sistema
processual. So eles: (novamente) a instrumentalidade das formas, flexibilizao da tcnica processual e ativismo
judicial. Ocorre que esses princpios so utilizados por boa parte da doutrina para se chegar a idia de que no
processo o juiz pode tudo. Exemplo marcante a amplitude dos poderes instrutrios que Jos Bedaque confere
ao magistrado. A utilizao desmedida da instrumentalidade das formas e da flexibilizao da tcnica processual
que possibilitaram a construo de doutrinas como a relativizao da coisa julgada e da precluso consumativa,
que no obstante as boas intenes, atribuem aos juzes poderes desmedidos, contrrios segurana jurdica e ao
prprio Estado Democrtico de Direito.
38
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Traduo de Joo Baptista Machado. So Paulo: Martins Fontes,
1985, p. 85-86
34
Nossa investigao ainda no alcanou o momento adequado para esclarecer os pressupostos do paradigma
filosfico com o qual operamos. No entanto, o uso da terminologia precisa ser esclarecido desde logo para que
sejam evitados possveis mal-entendidos. O termo essencial referido no texto remete essncia que, na tradio
filosfica metafsica, dotado de um contedo essencialista. Em Heidegger, o termo alemo Wesen que
designa essncia tomar o sentido de manifestar-se fenomenolgicamente. Quando se l ento essncia do
fundamento; essncia da verdade, ou, no caso do nosso texto, essncia matemtica dos projetos cientficos
positivistas sobre o direito, deve-se saber transpor-se para dentro desta nova situao que Heidegger instaura. O
essencial aqui mencionado recebe, ento, esta conotao que o filsofo emprega palavra alem Wesen. Cf.
STEIN, Ernildo. Notas de Traduo. In: Sobre a Essncia do Fundamento. Escritos e Conferncias Filosficas
Traduo de Ernildo Stein. So Paulo: Nova Cultural, 2005, p. 114, nota n. 8.
39
gregos, aquilo que o homem conhece antecipadamente quando contempla ou lida com as
coisas. Assim, matemtico o carter de corpo dos corpos, o que as plantas tm de planta etc..
Os princpios se apresentam como aquilo que de antemo, j conhecemos, e a partir deles
podemos organizar sistematicamente o direito ou um ramo do direito e dizer o que o direito
35 . Este projeto matemtico no se constitui como um projeto apenas cientfico. Ele deita
razes no solo da metafsica moderna. No Direito, ele se manifesta nestes significados do
conceito de princpio e deita suas razes nos fundamentos da metafsica moderna e de seu
modo matemtico de ver o mundo 36 . O conceito de princpio, nos significados at aqui
retratados, est comprometido com esse projeto e assume, de maneira mais explicita, esse
modo matemtico de se pensar o Direito.
Cf. HEIDEGGER, Martin. O Tempo da Imagem do Mundo. In: Caminhos da Floresta. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 2002, pp. 99-101. Na relao descrita acima operamos de uma maneira analgica com a descrio
que Heidegger faz da Fsica Moderna, que seria a cincia por excelncia da modernidade. Heidegger identifica
nela um fundamento que se manifesta matematicamente, tal como podemos tambm perceber no Direito e no
conceito de princpios que se formam no contexto da produo do projeto cientfico da modernidade. Desse
modo, Heidegger identifica no modo moderno de ver o mundo um projeto matematizante que compreende o
matemtico mais alm da simples relao deste com os nmeros. O que define o matemtico, essencialmente, o
carter de j conhecido deste tipo de conhecimento. A este j conhecido, isto , ao matemtico, pertencem
tambm, para alm do que foi referido, os nmeros. Quando encontramos trs mas na mesa, reconhecemos que
so trs delas. Mas o nmero trs, a trade, j o conhecemos. Tal quer dizer: o nmero algo matemtico. s
porque os nmeros apresentam como que o mais patente sempre-j-conhecido, e, deste modo, o que mais
conhecido entre o matemtico, que o matemtico foi reservado para a nomeao do que prprio dos nmeros.
Mas de modo nenhum a essncia do matemtico determinada pelo nmero. Quanto s diferenas do a priori
matemtico e o a priori com o qual se ocupa a Filosofia, remetemos o leitor para a leitura da nota 1.
36
Em outro texto, onde analisa a Crtica da Razo Pura de Kant, Heidegger afirma esse comprometimento
matemtico da metafsica e seu espalhamento por todas as regies do saber. Segundo o filsofo: tanto a
moderna cincia da natureza como a matemtica e a metafsica modernas saram da mesma raiz do matemtico,
entendido em sentido lato. Pelo facto de, destas trs, a metafsica ser a que tem um mais largo alcance visa o
Ente em sua totalidade e porque toca, ao mesmo tempo, no mais profundo o ser do Ente enquanto tal deve
sondar o seu fundamento e o seu solo matemticos at atingir um ponto slido (HEIDEGGER, Martin. op., cit.,
p. 101).
37
Cf. ESSER, Josef. op. cit., pp. 62 e segs.
40
Citando explicitamente Viehweg, Esser afirma que es el problema, y no el sistema en sentido racional, lo
que constituye el centro del pensamiento jurdico. O problema est mais ligado deciso judicial, da lida com o
caso, ao passo que o sistema se apresenta num nvel mais terico-contemplativo (Cf. ESSER, Josef. op. cit., p.
09 e segs.).
39
neste contexto que aparecem as diversas teorias jurdicas que, de alguma maneira, privilegiam o momento
retrico-argumentativo do raciocnio jurdico. Entre tais teorias, se destacam: a tpica de Viehweg; a nova
retrica de Chan Perelman; a teoria da pr-compreenso jurdica de Esser; o pensamento analgico de Arthur
Kaufmann; a metdica estruturante de Friedrich Muller; e a teoria da argumentao de Robert Alexy . Em todas
estas obras, a questo dos princpios aparecem como ponto central das discusses. No Brasil, Lenio Luiz Streck
tem explorado exaustivamente esta questo, principalmente no que atina tenso legislao-jurisdio. Cf.
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. op. cit..
41
mas de um modo diverso daquele que afirmou a autonomia dogmtica do positivismo numa
forte tentativa da sua superao, justamente em nome de uma autonomia do direito de outro
sentido e mais profunda que diferenciava no apenas objetivo- formalmente o jurdico do
poltico, mas, axiolgico- materialmente no seu sentido e na sua intencionalidade40 .
Ou seja, trata-se de afirmar, de forma radical, a fragilidade do direito frente
poltica e os eventos que envolvem todo o dilema das duas guerras do sculo 20 apontavam
para isso e nesta fragilidade mesma procurar um sentido para o direito, j de um modo
diferente da ingenuidade do positivismo que acreditava que simples procedimentos lgicoformais poderiam garantir a especificidade do jurdico. Dito de outro modo: o problema
deixava de ser apenas o da legitimidade (legitimidade poltica) da criao-constituio do
direito, do direito-lei (...), para ser o problema do fundamento-validade constitutiva do direito
enquanto direito41 . Isso tudo implica na afirmao de um direito (ius) distinto da lei (lex), ou
seja, de um direito que se forma a partir de elementos normativos constitutivos diferentes da
lei, o que radicalmente novo desde a formao do direito moderno. Nesse sentido, a
afirmao dos conceitos de direitos fundamentais, das chamadas clusulas gerais, dos
enunciados abertos e, evidentemente, dos princpios. Todos estes elementos que como
dissemos passam a ser constitutivos da normatividade so reconhecidos independentemente
da lei ou apesar dela.
O que une todos estes elementos numa unidade a oposio a qualquer
normativismo abstrato, em favor de uma espcie de jurisprudencialismo sem perder a
distncia temporal necessria entre a constituio jurdica do caso concreto a intencionar
uma validade jurdica que culmina na prtica judicativa que, em concreto, assume e,
problematicamente, reconstri aquela validade. O primado terico que a matematicidade do
direito racionalista forjou acabava por direcionar a manifestao da experincia jurdica para
o conhecimento da legislao e a supresso de suas lacunas e incoerncias. A proximidade
entre direito e legislao tornava artificial a autonomia positivista do direito frente poltica;
uma autonomia que s se justificava abstratamente, no nvel exclusivamente terico, mas
tornava confusa qualquer distino no mbito da prtica concreta. Essa quase- identidade
com o poltico que existe no mbito da legislao parece se espraiar quando o juzo decisrio
ou a prpria jurisdio colocada como matriz do direito e de sua autonomia. Mas isso
reivindica uma mudana radical na perspectiva terica at ento dominante, uma vez que, a
40
CASTANHEIRA NEVES, Antnio. A crise actual da filosofia do direito no contexto global da crise da
filosofia. op. cit., p. 104.
41
Idem.
42
42
42
Autores como Jos Lamego se referem a esse contexto histrico como o perodo da perda das certezas do
pensamento jurdico, em explcita referncia crise das certezas matemticas das concepes at ento vigentes
43
44
a criar uma estrutura procedimental (baseado no discurso racional prtico) para a ponderao
com o intuito de coibir os erros cometidos pela jurisprudncia dos valores. Mas j no ponto de
partida, Alexy deixa claro que o elemento discricionrio no ato de julgar inevitvel. Isso fica
evidente em seu conceito de princpios como mandados de otimizao. Ou seja, os princpios
funcionam como clusulas de abertura para o julgador no momento da deciso. Para sua teoria
da argumentao, as regras no produzem qualquer tipo de discricionariedade, pois continuam
a operar a partir do modelo da subsuno. J os princpios, devido ao seu largo espectro de
aplicao, merecem outro tipo de procedimento metodolgico-aplicativo. Isto porque, no mais
das vezes, os princpios colidem no momento de sua aplicao. Para resolver este conflito,
Alexy estrutura um mtodo alternativo subsuno (inadequada para os princpios), que a
ponderao.
H que se considerar, ainda, que no mbito da common law, tradicionalmente, o
juiz no formula questes abstratas sobre as fontes ou sobre o mtodo jurdico. Portanto,
tambm o conceito anglo-saxo (ou anglo-americano) de principles fica isento de toda carga
axiomtica da qual est revestido na tradio continental dos princpios gerais do Direito, que
atende, em ltima anlise, excessiva necessidade da civil law de codificar as regras
positivas. Esser procura atentar para isso a partir da distino de dois modelos de sistema: 1)
um aberto, cujo prottipo moderno o mtodo do direito ingls e angloamericano; 2) um
sistema fechado, que se manifesta no modelo jurdico da codificao. Desse modo, dois
conceitos distintos de princpios sero produzidos: no sistema fechado os princpios tero as
caractersticas axiomtico-dedutivistas que j aludimos anteriormente; enquanto que no
sistema aberto, os princpios so critrios pragmticos que renunciam a uma conexo
dedutiva, assumindo um modo de ser retrico muito mais evidente do que na tradio
continental44 .
Desse modo, abre-se um espao um pouco mais adequado para compreenso das
teses defendidas por Ronald Dworkin contra as teses do positivismo de Hebert Hart. Essa
concepo de princpios como critrios pragmticos destinados a solucio nar os problemas do
caso a ser julgado acaba levando a construo de uma discricionariedade judicial inevitvel.
44
So importantes neste sentido o que assevera Esser: El precepto moderno del sistema continetal ha de ser
aplicable, es decir, precisado em su alcance y modo de operacin por medio de criterios que un cuerpo de
funcionarios ha de establecer, en forma comprobable, como dados o no dados. Ya aqu aparece la distancia que
separa el concepto continental de norma del angloamericano de rule: en sta el juez no es un funcionario a los
efectos de una accin burocrticamente organizada. En la terminologa de Max Weber, tendra las notas de una
forma de soberana tradicional, no las de una forma burocrtica. Esto basta para explicar la razn de que para el
pensamiento jurdico continental la diferencia entre principio y norma mucho mayor que, para la concepcin del
common law, la distancia entre principle y rule (ESSER, Josef. op., cit., p. 66).
45
CASTANHEIRA NEVES, Antonio. A crise actual da filosofia do direito no contexto da crise global da
filosofia. op. cit., p. 108.
46
explicitao importante para nossa investigao, na medida em que nos permite determinar
o mbito em que ela est inserida, qual seja, o dos princpios jurdicos em seu significado
pragmtico ou problemtico. Mas isso no pode significar que os demais significados tenham
sido excludos do pensamento jurdico contemporneo. Pelo contrrio, em grande medida, os
trabalhos produzidos sobre princpios jurdicos continuam a repeti- los, ou ento, no
estabelecem claramente em que significado esto se movimentando quando falam do conceito
princpios. Ou seja, exploram o conceito tendo como pressuposto o seu significado. comum,
por isso, a interpenetrao destes significados e a conseqente indeterminao conceitual.
46
Cf. DWORKIN, Ronald. Uma Questo de Princpio. Traduo de Luis Carlos Borges. 2 ed. So Paulo:
Martins Fontes, 2005.
47
manifesta como uma afirmao; no nosso trabalho, a afirmao manifesta que os princpios
precisam ser colocados em questo.
Desse modo, ficam excludos do eixo temtico da investigao problemas que
podem ser chamados de micro-estruturais, que envolvem questes institucionais da
democracia, ou a relao entre poltica e direito; e questes de cunho mais sociolgico em que
se discute se estamos vivendo uma judicializao da poltica ou uma politizao da justia. Na
verdade, a investigao toca nestas questes, mas no de maneira direta. Isso porque, nela
exploramos uma dimenso que macro-estrutural e que possibilita a constituio de todos
estes projetos tericos mencionados. Portanto, ela se movimenta numa dimenso na qual o
que est em jogo a estrutura do pensamento e aquilo que, nestas estruturas, permanece
recrudescido por alguma sedimentao da linguagem que congela os significados, impedindo
a manifestao de novas possibilidades para se olhar a questo dos princpios no direito. Isso
no implica dizer que desconsideramos os problemas que estas questes micro-estruturais
apresentam ou que reduzimos sua importncia. Pelo contrrio, exatamente por que so
importantes tais problemas, que o conceito de princpio precisa ser colocado em questo, para
saber ao menos at que ponto e mesmo se ele nos oferece solues para tais problemas.
Diante disso, neste tpico pretendemos traar um esboo bastante genrico destes problemas,
procurando enfatizar neles os nveis em que a questo dos princpios deve aparecer, de
alguma maneira, como um modo para se apresentar uma possvel soluo.
preciso ter claro, contudo, que, no caso da questo do conceito de princpio
principalmente naquele seu terceiro significado o que se coloca como ponto de estofo de
todo o problema certamente a questo da deciso judicial e da necessidade de se criar
anteparos para a atividade do juiz, para que seja coibida ao mximo a chamada
discricionariedade judicial. Isso, por si s, j um argumento de democracia, pois a
discricionariedade implica poderes normativo-regulatrios para o juiz, o que traz consigo toda
questo envolvendo a legitimidade da judicatura. Uma vez que a questo envolvendo o
conceito de princpio sempre aparece como uma tentativa de minorar os efeitos desta
discricionariedade, no h como desconsiderarmos o contexto poltico-social no qual nosso
objeto temtico est imerso. H, portanto, uma ntima relao entre princpios e
discricionariedade e nossa tarefa somente ser concluda com xito se soubermos nos colocar
corretamente no mbito desta relao.
A questo envolvendo a deciso judicial, o conceito de princpio e o problema da
discricionariedade do juiz aparecem de forma agigantada neste novo modelo de direito que se
48
Importante salientar que o termo jurisdio constitucional tem um sentido decisivo naqueles pases que,
adotando a frmula de Tribunais Constitucionais ad hoc, possuem um rgo especializado para se pronunciar
sobre questes envolvendo a constitucionalidade das leis e demais matrias determinadas pela prpria
constituio. Dessa maneira, se diferencia a jurisdio ordinria (comum) da jurisdio constitucional, que
aparece como uma espcie de jurisdio especializada. No Brasil, essa significao perde sentido, na medida em
que nos ordenamos por um sistema misto de controle da constitucionalidade no qual convivem o modelo difuso,
baseado no judicial review americano e o modelo concentrado, de inspirao continental. Ademais, a despeito de
o Supremo Tribunal Federal ter competncia para julgar, de forma concentrada, a constitucionalidade das leis, tal
qual um Tribunal Constitucional europeu, no se pode dizer que vivenciamos um modelo de jurisdio
constitucional stricto senso. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdio Constitucional e Hermenutica. op., cit.,
49
50
52
Cf. CANOTILHO, J.J. Gomes. A principializao da jurisprudncia atravs da Constituio. In: Revista de
Processo n 98. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, pp. 83-89.
53
Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. op. cit..
54
Cf. VIEIRA, Jos Ribas. Teoria do Estado. Rio de Janeiro: lmen Jris, 1995.
51
Nessa ordem de idias, Sergio Buarque de Holanda assevera: Trouxemos de terras estranhas um sistema
complexo e acabado de preceitos, sem saber at que ponto se ajustava s condies da vida brasileira e sem
cogitar das mudanas que tais condies lhe imporiam (...). A democracia no Brasil foi sempre um lamentvel
mal entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomod-la, onde fsse possvel, aos
seus direitos ou privilgios, os mesmos privilgios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo das lutas da
burguesia contra os aristocratas. E assim puderam incorporar situao tradicional, ao menos como fachada ou
decorao externa, alguns lemas que pareciam adequados para a poca e eram exaltados nos livros e discursos
(HOLANDA, Srgio Buarque de. Razes do Brasil. 4 ed. Braslia: UNB Editora, 1963, p. 153).
56
Um exemplo desta constatao trazido por Bonavides e Paes de Andrade, que, em comento Constituio de
1824 asseveram: Ali o Absolutismo, por disposio voluntria ou involuntria do primeiro Imperador, deixara
estampado o selo de suas prerrogativas sem limites mediante a singular criao do Poder Moderador, institudo
de forma que contrafazia os princpios de conteno de poderes da concepo de Constant e Montesquieu
(grifamos) (cf. BONAVIDES, Paulo. ANDRADE, Paes de. Histria Constitucional do Brasil. 5 ed. Braslia:
OAB editora, 2004, p. 257). Desta forma, pode-se concluir que, em territrio brasileiro, existe uma tradio
histrica de simular o reconhecimento pleno dos Direitos Fundamentais. Com efeito, o exemplo descrito
acima, marca o incio de uma histria constitucional em que os direitos sempre foram relegados a um plano
secundrio, sempre submetidos vontade daqueles que detm o poder central. Em um breve inventrio
possvel mencionar: a adoo de um mecanismo de controle da constitucionalidade incompatvel com o sistema
jurdico brasileiro (controle difuso com ausncia do stare decisis) pela Constituio de 1891, manipulado por
uma Corte Constitucional de ntidas feies imperiais, como relata Lenio Streck (STRECK, Lenio Luiz.
Jurisdio Constitucional e Hermenutica. op. cit., p.415 e segs.); a consagrao dos Direitos sociais pela
Constituio de 1934, em pleno Estado Novo; a representao de inconstitucionalidade embrio da atual ao
direita de inconstitucionalidade que aparece em 1965, em pleno regime militar e que possua como nico
legitimado o Procurador Geral da Repblica! Esses fatos representam apenas as linhas gerais dos motivos
ensejadores da baixa densidade normativa que pode ser verificada nos textos constitucionais brasileiros, que
acarretaram, no mais das vezes, a suspenso indeterminada da efetiva outorga dos Direitos Fundamentais de
primeira, segunda e agora tambm os de terceira dimenso. Neste contexto, agravando ainda mais a situao
apresentada, esses primeiros dezesseis anos da Constituio de 1988 foram marcados por sucessivas emendas
que retalharam o texto original, alm das edies inconseqentes de medidas provisrias, em regime
explicitamente inconstitucional, mas que eram (so) passivamente confirmadas pelo Poder Judicirio. Esta
realidade foi veementemente criticada por Fbio Comparato que, em artigo publicado no jornal Folha de So
Paulo (14.05.98, p. 1-3) destacou: No sejamos ridculos. A Constituio de 1988 no est mais em vigor.
pura perda de tempo discutir se a conjuno e significa ou, se o caput de um artigo dita o sentido do
pargrafo ou se o inciso tem precedncia sobre a alnea. A Constituio hoje o que a Presidncia (da
Repblica) quer que ela seja, sabendo-se que todas as vontades do Planalto so confirmadas pelo Judicirio.
(COMPARATO, Fbio Konder. Uma Morte Espiritual. Folha de so Paulo, 14.05.1998, caderno 1, p.3).
57
Cf. BONAVIDES, Paulo. ANDRADE, Paes de. Histria Constitucional do Brasil. op. cit., p. 32 e segs.
58
Esta a expresso cunhada por Lenio Streck para significar os pr-juzos que povoam a mente da maioria dos
juristas, calcados em uma histria que tem relegado o Direito Constitucional a um plano secundrio.
Hermeneuticamente, esta baixa constitucionalidade estabelece o limite do sentido e o sentido do limite de o
jurista dizer o Direito, impedindo, conseqentemente, a manifestao do ser (do Direito). Um dos fatores que
colabo(ra)ram para a pouca importncia que se d Constituio deve-se ao fato de que as Constituies
brasileiras, at o advento da atual, sempre haviam deixado ao legislador a tarefa de fazer efetivos os valores,
direitos ou objetivos materiais contidos no texto constitucional, que, com isso, se transformava, porque assim era
entendida, em mero programa, uma mera lista de propsitos (grifos do original). STRECK, Lenio Luiz.
Jurisdio Constitucional e Hermenutica. op. cit., p.215 e segs.
52
supremacia aos Cdigos, como se ela (a Constituio) fosse uma maligna influncia para o
ordenamento jurdico. Deveras, no raro encontrar nos repertrios jurisprudenciais de
nossos Tribunais, decises que, ao invs de interpretar o Cdigo - ou a lei infraconstitucional
- em face da Constituio, inexplicavelmente executam o inverso 59 .
Na contramo desta tradio inautntica, o processo constituinte realizado entre os
anos de 1986-1988, concebeu, como fruto de um acentuado debate ideolgico, um texto
constitucional denso em direitos de caractersticas incisivamente sociais, com feies
dirigentes e compromissrias inspiradas nos moldes do neoconstitucionalismo, erigido no
segundo ps-guerra.
Na medida do chamado neoconstitucionalismo, o modelo de Estado, cunhado para
instrumentalizar e dar eficcia ao contedo dirigente destas Constituies o Estado
Democrtico de Direito (incorporado ao nosso ordenamento pelo artigo 1 caput da CF/88),
que representa verdadeira revoluo paradigmtica no campo da efetivao dos preceitos
constitucionais principalmente os direitos fundamentais pela via do Judicirio (Jurisdio
Constitucional).
De fato, no interior do Estado Democrtico de Direito, h uma sntese dos
modelos anteriores - Estado liberal e Estado social visando superao das lacunas neles
existentes, em que se busca a realizao dos Direitos Fundamentais e a reduo das diferenas
sociais e regionais. Para tanto, o Judicirio (Jurisdio Constitucional) assume um papel de
destaque na arena poltica, com vistas a implementar os objetivos emanados deste modelo de
Estado. Vale dizer, o advento do paradigma do Estado Democrtico de Direito representa uma
59
possvel aduzir exemplos significativos e preocupantes da realidade descrita. Em sede de processo penal
fcil perceber que, mesmo depois da adoo do sistema acusatrio pela CF/88, ainda se pode verificar a
aplicao pacfica de institutos tipicamente inquisitrios como a mutatio libeli e a emendatio libeli aps 16 anos
da promulgao da Constituio. Ainda em sede de Direito Penal, recentemente, no ano de 2003, foi preciso
implementar uma alterao no Cdigo de Processo Penal para garantir a presena de advogado no interrogatrio
do ru, que j era previsto pelo texto constitucional, porm sem que fosse aplicado pela prxis forense. Sem falar
da desproporcionalidade absurda das penas previstas na parte especial de nosso retrgrado Cdigo Penal, em que
remarcar ou adulterar sinal identificador de veculo apenado com mais rigor do que nos casos de leso corporal
gravssima, em que se arranca um dos olhos de uma pessoa, por exemplo. Salienta-se, ainda, que, no plano
acadmico, a maioria dos manuais de Direito Penal fornecem uma amostra quanto ausncia de uma adequada
filtragem hermenutico-constitucional na aplicao do Direito no Brasil. No h maiores referncias de que
determinadas infraes penais no foram recepcionadas pela Constituio e ainda, tais manuais no trazem em
seu bojo o cultivo teortico da interpretao conforme a Constituio e da declarao de nulidade parcial sem
reduo de texto, que so institutos indispensveis para uma adaptao do nosso obsoleto Cdigo ao novo Texto
Magno (Cf. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdio Constitucional e Hermenutica, o Captulo II).
53
De fato, com o Estado Democrtico de Direito deve(ria) haver a insero de um novo paradigma, em que o
jurdico (Jurisdio Constitucional) assume o papel de protagonista da esfera de tenso entre os demais poderes,
havendo verdadeira jurisdicionalizao da poltica, com vistas a defender o desejo do pacto social expresso na
Constituio. Da que a maior parte das Constituies Europias prev Tribunais ad hoc para exercer o controle
da constitucionalidade das leis. Neste sentido: VIANNA, Luiz Wernek, et. Al. A Jurisdicionalizao da poltica
e das relaes sociais no Brasil. Rio de Janeiro, Revan: 1999.
54
61
DIAZ, Elias. Estado de Derecho y Sociedad democrtica. Madrid, Tauros, 1983, apud STRECK, Lenio Luiz.
Hermenutica Jurdica e(m) crise. 5 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 39.
62
Cf. CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituio. Coimbra:
Coimbra Editora, 1991, p. 87.
55
Tambm em relao ao de inconstitucionalidade por omisso propriamente dita, possvel notar que,
em terras brasileiras, a dogmtica jurdica (ainda) no conseguiu tornar til to relevante instrumento para dar
efetividade ao texto constitucional, uma vez que evidente a falta de uma adequada (pr)compreenso acerca do
instituto com Heidegger, podemos dizer que o homem s compreende uma coisa, quando sabe o que fazer
com ela. Cf. REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. Histria da Filosofia, vol. III, 5 ed., So Paulo: Paulus,
1991, p. 584. Com efe ito, um dos maiores problemas enfrentados pelo governo brasileiro seno o maior deles
o da falta de recursos para implementar as polticas pblicas necessrias para tornar mais inclusiva nossa
sociedade. Porm, apesar de serem noticiados sucessivos crescimentos em nossa economia - com o conseqente
aumento de divisas - todo esse dinheiro deixa o pas, atravs do pagamento dos altssimos juros acumulados por
nossa infindvel dvida externa. Tal fato impossibilita que nossa populao desfrute das benesses propiciadas
pelo propalado crescimento, continuando a ser massacrada nas filas dos hospitais; saboreando o fel de uma
educao que j beira as piores do planeta; alm dos crescentes problemas com a criminalidade etc.. Todos estes
fatos parecem de notria evidncia. Contudo, o que causa espanto que o art. 26 do Ato das Disposies
Constitucionais Transitrias, prev/previa que aps um ano da promulgao da Constituio portanto em 1989
deveria ter sido realizada uma auditoria do endividamento externo brasileiro para que se soubesse, exatamente,
quanto pagamos de juros e o quanto conseguimos diminuir do principal. Pois bem, MAIS DE DEZENOVE ANOS
APS A PROMULGAO DA CONSTITUIO, ainda no foi sequer instituda a comisso mista prevista pelo
caput do referido dispositivo. A comunidade jurdica, por seu turno, aceita esta realidade passivamente, sendo
que parece evidente a caracterizao de uma omisso inconstitucional passvel de ser sanada pela via da ao
de inconstitucionalidade por omisso (art. 103, 2 da CF). Note-se que os benefcios trazidos pela
implementao do retrocitado dispositivo so evidentes. De fato, basta volver os olhos para os exemplos da
Europa do segundo ps-guerra principalmente a Alemanha que negociou suas dvidas de forma a conseguir
amortizar os juros que pagava, sendo que em menos de sete anos j havia pagado as dvidas advindas da
destruio proporcionada pela 2 Guerra Mundial. Este fato, todavia, no causa a angstia do estranhamento
(Streck) nos juristas (e cidados) brasileiros. Em razo disso, continuamos a pagar (sem saber ao certo) os
altssimos juros cobrados pelos rentistas, que desfrutam de nossas riquezas, enquanto parte de nossa populao
assolada, ora pela fome, ora pela violncia crescente que assola nossas metrpoles, conseqncias diretas da
concentrao de renda e da segregao social historicamente praticada no Brasil, e que a evaso de nossas
divisas s vem a contribuir para seu aumento. Anota-se que, recentemente, a Ordem dos Advogados do Brasil
props Argio de Descumprimento de Preceito Fundamental visando tornar efetivo o referido dispositivo. A
referida ADPF ainda aguarda julgamento junto ao Supremo Tribunal Federal.
56
plano normativo se der conta desta guinada representada pelo advento do Estado
Democrtico de Direito 64 , sendo imperioso ter em mente que, neste novo paradigma, o
Direito no pode continuar a ser entendido apenas como mera realidade instrumental!
Diante disso, a questo envolvendo o conceito de princpio assume um papel
privilegiado, posto que todo esse carter transformador do Estado Democrtico de Direito no
pode representar uma abertura para discricionariedades judiciais ou ativismos desmedidos. H
sempre um limite e esse limite dado pelo texto constitucional. Em outras palavras: o carter
analtico da Constituio de 1988 faz com que sejam deslocadas para o mbito do poder
judicirio questes antes relegadas poltica. Isso, por si s, representa uma judicializao da
poltica. Todavia, como ficar claro em nossa exposio, h um limite para a atividade
jurisdicional e esse limite dado pela princ ipiologia da Constituio e pelo fato de que o
judicirio dever argumentar sempre com princpios e no com base em polticas. Isso tudo,
por si s, um motivo a mais para se colocar a pergunta pelo conceito de princpios, para
compreender, com maior proficuidade, o seu significado diante desse quadro que se apresenta
na contemporaneidade.
Com Streck, preciso advertir que a eficcia das normas constitucionais exige um redimensionamento do
papel do jurista e do Poder Judicirio (em especial da Justia Constitucional) nesse complexo jogo de foras, na
medida em que se coloca o seguinte paradoxo: uma Constituio rica em direitos (individuais, coletivos e
sociais) e uma prtica jurdico-judiciria que, reiteradamente, (s)nega a aplicao de tais direitos (grifos do
original). STRECK, Lenio Luiz. Jurisdio Constituio e Hermenutica, op. cit., p. 15.
57
processual penal, fala-se em expanso das leis penais e no surgimento de um direito penal
simblico correlato. Isso porque, a insuficincia dos meios estatais para conter os problemas
advindos da violncia e da criminalidade so argumentos pressupostos para uma intensa
atividade legislativa no sentido da construo de tipos penais voltados para proteo de bens
jurdicos que escapam ao ncleo daqueles bens classicamente aparados pela tutela penal.
Assim se segue um avano de um processo criminalizador em relao a um grande nmero de
condutas para cumprir apenas um efeito meramente simblico65 . J no mbito do direito
processual civil, tambm assistimos mxime no Brasil a um crescimento, que vem
tomando forma pelo menos desde 1994, de micro reformas realizadas sob o pretexto de atingir
clinicamente os efeitos da crise processual que afeta o poder judicirio. Procedimentos mais
cleres so criados, medidas antecipatrias do mrito so implementadas como que a
contrabando no sistema do Cdigo de 1973, entre outros fatores de igual ou maior
importncia. A ltima grande reforma, cujos efeitos ainda no foram efetivamente
assimilados, unificou, num s procedimento, as aes de conhecimento e execuo no mbito
civil (Cf. Lei n 11.232 de 22 de dezembro de 2005). De qualquer modo, no nossa tarefa
avaliar os acertos ou os erros deste tipo de poltica legislativa. Nos interessa apontar para o
acontecimento que faz com que a completude e sistematicidade (ou o ideal de completude e
sistematicidade) que se encontrava m expressas nos Cdigos, passe a ceder lugar a um
processo fragmentrio de produo legislativa a partir da edio de leis pontuais que visam
remediar uma situao especfica. Mesmo a Constituio no escapa desse processo de
retalhao, e a cada ano se observa a realizao de reformas via Emendas Constitucio nais,
sempre tendo como pano de fundo uma instabilidade institucional especfica, cuja soluo se
encontra na reforma da Constituio 66 . Tais reformas se expandiram de tal forma que
acabaram por criar quase que um outro texto, paralelo quele promulgado em 1988 67 . Mesmo
65
Neste sentido Cf. MELI, Manuel Cancio. De nuevo: Derecho Penal del enemigo? In: Directo Penal em
Tempos de Crise. Lenio Luiz Streck (org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, pp. 17-26.
66
Para corroborar essa afirmao, basta recordar o problema do limite dos juros anuais, institudos no art. 192,
2 da Constituio e que foi revogado pela Emenda Constitucional n 40/2003, para que as taxas de juros
pudessem ser flutuantes e reguladas de acordo com o mercado; O efeito vinculante das smulas do Supremo
Tribunal Federal, institudo pela Emenda Constitucional n 45/2004 em seu art. 103-A, que contribui
significativamente para a crise paradigmtica enfrentada pelo direito brasileiro, entre outras tantas reformas, uma
vez que o nmero de emendas Constitucionais j passa dos 50, em pouco mais de 19 anos de Constituio.
(Quanto ao problema das Smulas e sua repercusso na crise do direito brasileiro: Cf. STRECK, Lenio Luiz. A
Hermenutica Jurdica e o Efeito Vinculante da Jurisprudncia no Brasil: o caso das smulas. In: Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Separata vol LXXXII. Coimbra, 2006, pp.213-237).
67
No que tange especificamente constante expanso legislativa sobre o texto constitucional, Paulo Bonavides
assevera que estamos vivendo um novo perodo de crise constituinte em face do descrdito a que so submetidas
a regras constitucionais tendo em vista a postura dos poderes da repblica. Este descrdito, que gera uma baixa
densidade normativa do texto constitucional, propicia aos manipuladores do poder central a possibilidade de,
socapa das instituies democrticas, implementar um golpe de Estado que vive permeado de legitimidade,
58
59
como que a conta- gotas, que ventilam, no mais das vezes, interesses particulares de
determinados setores da sociedade 69 .
No caso especificamente brasileiro e a especificao necessria, na medida em
que a inflao legislativa um fenmeno global essa questo se torna bem mais complexa,
visto que a maior parte da atividade estatal regulamentadora sai do gabinete da Presidncia da
Repblica por meio de Medidas Provisrias. Nesse sentido, Bandeira de Mello relata o
seguinte:
Registre-se que o ultimo Chefe do Poder Executivo, o segundo
Fernando, do incio de seu primeiro mandato at o ms de agosto de
1999, expediu 3.239 medidas provisrias (inconstitucionalmente,
claro), o que corresponde a uma mdia de 2,8 medidas provisrias por
dia til de governo (isto excludos feriados, sbados e domingos).
Inversamente, no perodo foram editadas pelo congresso apenas 854
leis (entre ordinrias e complementares). V-se, pois, que o
parlamento foi responsvel to-s por pouco mais de uma quarta parte
das leis, pois os quase restantes so obra exclusiva do Executivo.
De resto, dentre as 3.239 medidas provisrias referidas, apenas 89
delas ou seja, 2,75% - foram aprovadas pelo Congresso e
convertidas em lei. Em suma: vigoram entre ns 97,25% de medidas
provisrias no aprovadas pelo congresso, a despeito de o texto
constitucional literalmente determinar, como foi dito e reiterado, que
tais medidas, se no aprovadas pelo congresso em 30 dias, perdem a
eficcia desde o incio de sua expedio. Diante deste panorama
devastador, mesmo o mais tolerante dos juristas ser forado a
concluir que, no Brasil atual, s por eufemismo se pode falar em
Estado Constitucional de Direito, e, pois, em democracia 70 (grifos do
original).
69
Isso causa efeitos drsticos nas estruturas complexas dos pases perifricos, entre eles o Brasil. Neste sentido,
Marcelo Neves denuncia um histrico bloqueio realizado por interesses particulares que impede a formao no
Brasil de um espao pblico de constitucionalidade e legalidade. Para este autor, o velho mito de que no Brasil o
Estado forte e a sociedade se encontra a merc deste impiedoso Leviat precisa ser desconstrudo. Na verdade,
h uma fragilidade do Estado perante as presses de uma sociedade desestruturada que acaba por coloniz-lo. Cf.
NEVES, Marcelo. Entre Tmis e Leviat: uma relao difcil. So Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 244 e segs.
Ainda neste sentido BERCOVICI, Gilberto. Teoria do Estado e da Constituio na periferia do Capitalismo:
Breves consideraes crticas. In: Dilogos Constitucionais: Brasil/Portugal. Antnio Jos de Avels Nunes e
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (orgs.) Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp. 263-290. Colocando em um
outro contexto o do direito penal mas apontando tambm para o equvoco da ciso entre sociedade e Estado,
Lenio Streck assevera: Para eles o Estado necessariamente mau, opressor, e o direito (penal) teria a funo de
proteger o indivduo dessa opresso. Por isso, em pleno sculo XXI e sob os auspcios do Estado Democrtico
de Direito no interior do qual o Estado e o Direito assumem (um)a funo transformadora continuam a falar
na figura mtica do Leviat, repristinando para mim de forma equivocada a antiga problemtica que
contrape o Estado (mau) (boa) sociedade (sic) STRECK, Lenio Luiz. Bem Jurdico e Constituio: Da
proibio de Excesso (bermaverbo) Proibio de proteo deficiente (Untermaverbot) ou de como no h
blindagem contra normas penais inconstitucionais. In: Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra. Separata
vol. LXXX. Coimbra, 2004, p. 309.
70
MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 15 ed., So Paulo: Malheiros, 2003,
p.96. Vale lembrar que a Emenda Constitucional n. 32/2001, que modificou o procedimento legislativo da
medida provisria, alterou o prazo para apreciao e reedio das medidas provisrias. A partir de ento o prazo
60
61
nas decises judiciais? Definitivamente, o que entra em jogo na questo da segurana muito
mais o modo como so decididas as demandas do que, propriamente, uma possvel
completude das leis elaboradas pelo legislativo. Embora boa tcnica legislativa seja realmente
indispensvel, o problema da segurana jurdica no ser sanado simplesmente a partir dessa
questo. Alis, diante da complexidade dos movimentos sociais, polticos e econmicos que
vivenciamos na contemporaneidade, o problema da inflao legislativa ser algo com que
teremos que aprender a conviver. Todavia, isso abre espao para que sejam discutidas novas
questes no mbito da legitimao das decises judiciais, principalmente no nvel da sua
fundamentao. neste ponto que o problema do conceito de princpio aparece de forma
decisiva, porque ele pode funcionar como uma espcie de acesso a esse tipo de debate. A
forma como esse conceito concebido muda radicalmente o modo de se olhar para o direito e
para o papel desempenhado pelo juiz na fundamentao de suas decises. Desse modo,
conceitos fundamentais do Direito como os de segurana jurdica, legitimidade e
fundamentao, passam a receber um outro tratamento deixando de ter uma conotao
abstrata ou, como poderamos dizer, descolada das discusses prticas sobre o direito.
72
62
Para esclarecer melhor isso que colocamos aqui como crise da legalidade
importante clarear o que se menciona com o termo legalidade. Isso pode soar estranho, visto
que o elementar para aqueles que lidam com o direito saber o que significa legalidade, ou o
princpio da legalidade. Todavia, o significado amplamente difundido do termo legalidade
fica aqum do sentido por ele projetado. Assim, corriqueiro associar a legalidade ao imprio
da lei e sua exclusividade no estabelecimento de obrigaes na ordem civil em geral (artigo
5, inciso II da Constituio Federal). Fala-se, portanto, em legalidade estrita ou fechada,
como se d no mbito penal e tributrio apenas a lei pode criar ou abolir crimes; e apenas a
lei pode criar ou revogar tributos e em legalidade ampla ou aberta, a partir da qual vige a
mxima: o que no proibido permitido. No nesse sentido que se fala em crise da
legalidade. Alis, esse tipo de determinao do princpio da legalidade encobre seu
significado mais essencial. Neste significado, legalidade deve ser entendida como o conjunto
de operaes do Estado que determinado no apenas pela lei, mas tambm pela Constituio
uma vez que seria um contra-senso afirmar uma legalidade que no manifestasse a
consagrao de uma constitucionalidade e pela efetividade das decises judiciais 73 , sob o
marco de uma legitimidade democrtica. Mais do que isso: legalidade implica na formao de
um espao pblico de tomada de decises num mbito estatal especfico e na capacidade de
tornar efetiva tais decises. Ou seja, a legalidade uma forma de se constituir o espao
pblico de maneira que se possa dizer que ele esteja tomado por ela ; um fenmeno
complexo, para onde confluem as noes de cidadania e democracia; o momento em que o
espao pblico efetivamente pblico e no colonizado por interesses privados. Nesta
perspectiva, podemos dizer que a legalidade determina a fora que um Estado tem, e no o
peso e tamanho de seu aparelho burocrtico. Evidentemente, como estamos falando de
legalidade, cidadania e democracia, essa fora no determinada pelo grau de coero que
o Estado imprime sobre os indivduos, numa espcie de relao entre sdito e soberano, mas
sim uma fora que se determina a partir da legitimidade que as aes do Estado alcanam
sobre cada um dos cidados. Como afirma ODonnell, procurando traduzir isso que dissemos,
mas de uma forma negativa, um Estado forte, independentemente do tamanho de suas
burocracias, aquele que estabelece efetivamente essa legalidade e que no visto pela
maioria da populao como apenas uma arena para satisfao de interesses
73
Nesse sentido Cf. DAS, Elas. Estado de Derecho y Derechos Humanos. In: Novos Estudos Jurdicos. Ano 1,
n. 1, jun-1995. Itaja: Universidade do Vale do Itaja, p. 16.
63
particularistas74 . Isso implica que os prprios rgos estatais, em todos os nveis, orientem
suas decises pela Constituio, pela lei e por aquilo que foi determinado pelo Judicirio, nos
casos de eventuais conflitos 75 . Entretanto, poderia ser objetado: Se no tpico anterior foi
mencionado o problema da inflao legislativa e do surgimento daquilo que Garcia Herrera
denomina leis- medida, no seria justamente a lei o locus onde residiria a consagrao
daqueles interesses particularistas levantados por ODonnell? Se compreendermos a
legalidade e sua crise como algo que afeta simplesmente a legislao, incorreramos naquela
dimenso simplificadora tradicionalmente reproduzida pela viso tcnico-dogmtica dos
juristas. Neste aspecto reside, talvez, a maior diferena entre o problema da inflao
legislativa e a crise da legaliadade. Ou seja, que a crise da legalidade implica tambm numa
crise de constitucionalidade, a no ser que admitamos o contra-senso de, num Estado
democrtico de Direito, ser possvel uma legalidade inconstitucional76 . A legalidade no se
constitui apenas pelo requisito formal, mas recebe atributos de legitimidade material na
medida em que ela mensura qualitativamente os meios de institucionalizao da democracia
de modo que poderamos dizer, sem cindir estes dois mbitos, que toda crise da legalidade
tambm uma crise de constitucionalidade 77 o que implica, em ltima anlise, em um problema
de legitimidade e de simetria no cumprimento das decises estatais 78 .
74
ODONNELL, Guilhermo. Sobre o Estado, a Democratizao e Alguns Problemas Conceituais. In: Novos
Estudos CEBRAP, n. 36, julho-1993, p.128.
75
Nessa medida, tambm as teses sobre a chamada relativizao da coisa julgada, capitaneadas por autores
como Cndido Rangel Dinamarco, Humberto Theodoro Jnior e Jos Augusto Delgado (por todos, Cf.
DINAMARCO, Cndido Rangel. Relativizar a coisa julgada material. Revista de Processo, n.109. So Paulo:
RT, 2003) e que vem tomando fora no Brasil desde a publicao do artigo citado, tambm pode ser mencionada
como um fator constitutivo desta crise da legalidade. Isto porque, relativizar a coisa julgada material que
significa destruir a imunizao da deciso judicial transitada em julgado implica instaurar um ambiente de
indeterminabilidade em relao legalidade, algo inconcebvel em um Estado Democrtico de Direito. Com
efeito, como ser aborado um pouco mais adiante, no caso brasileiro, no se trata de construir alternativas
tericas legalidade, mas sim fazer com que a legalidade, em crise, possa verdadeiramente tomar o espao
pblico. As teorias da relativizao acarretaram um movimento de retomada de aes que j haviam passado em
julgado, nas quais o maior interessado o prprio Poder Pblico. Ressalte-se, por fim, que uma posio contrria
a este tipo de tese no implica na defesa de discricionariedades arbitrrias por parte do judicirio.
76
Assim tambm Garcia Herrera, para quem o sentido da lei no se esgota em si mesmo, mas corresponde
materializao dos contedos constitucionais, vinculao da administrao e o controle judicial. Por certo, as
circunstncias que estamos abordando aqui apontam para uma complexa forma organizacional que no pode ser
concebida em termos to simplrios como estes. O prprio Garcia Herrera destaca esta questo, e a ressalta
como um problema que tambm acarreta um certo protagonismo judicial e aumentaria, pelo menos em tese, a
responsabilidade dos juzes em suas decises, posto que a fundamentao de suas decises definitivamente no
pode ser mais colocada no plano restrito da lei. Essa dimenso extralegal das fundamentaes judiciais
exatamente o que torna problemtica nossa poca e que vai gerar as vrias posies em torno do problema do
conceito de princpio. Cf. GARCIA HERRERA, Miguel Angel. op cit., p. 73.
77
Cf. ODONNELL, Guilhermo. Sobre o Estado, a Democratizao e Alguns Problemas Conceituais. op., cit.,
pp. 123-145.
78
A partir do que foi dito, possvel perceber que h uma dualidade entre o pblico e o privado. Mas essa
dualidade nada guarda de relao com as clssicas dicotomias que marcaram a incorporao desta distino em
outros campos do conhecimento como o caso do Direito. Com efeito, para Hanna Arendt, por exemplo, o
64
65
agncias estatais que fornecem estes recursos79 . Esse tipo de relao torna impossibilitada
qualquer noo de lei enquanto conjunto de decises tomadas num espao pblico.
Como j mencionamos em nota, a prpria relao entre Estado e sociedade civil
merece ser repensadas, diante desse quadro de crise da legalidade. Neste ponto, interessa
transcrever algumas posies importantes. Gilberto Bercovici, por exemplo, apresenta esta
questo da seguinte maneira:
Apesar de ser considerado um Estado forte e interventor, o Estado
brasileiro , paradoxalmente, impotente perante fortes interesses
privados e corporativos dos setores mais privilegiados. Esta
concepo tradicional de um Estado demasiadamente forte no Brasil,
contrastando com uma sociedade fragilizada, falsa, pois pressupe
que o Estado consiga fazer com que suas determinaes sejam
respeitadas. Na realidade, o que h a inefetividade do direito estatal:
o Estado, ou melhor, o exerccio da soberania estatal bloqueado
pelos interesses privados 80 .
Se assim o , e se a crise da legalidade um fenmeno que nos atravessa enquanto
brasileiros81 , preciso reconhecer como acertadas as afirmaes de Marcelo Neves:
66
82
NEVES, Marcelo. Entre Tmis e Leviat: Uma Relao Difcil. So Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 256.
Segundo ODonnell: Os estados se tornam ostensivamente incapazes de promulgar regulaes efetivas da
vida social em seus territrios e seus sistemas de estratificao. (...) Em muitas democracias emergentes, a
efetividade de uma ordem nacional corporificada na lei e na autoridade do estado desaparece to logo deixamos
os centros urbanos nacionais. Mas mesmo nestes visvel a evaporao funcional e territorial da dimenso
pblica do estado. O crescimento do crime, as intervenes ilegais da polcia nos bairros pobres, a prtica
disseminada da tortura e mesmo a execuo sumria de suspeitos pertencentes aos setores pobres ou
estigmatizados, a negao de direitos a mulheres e a vrias minorias, a impunidade do comrcio de drogas e o
grande nmero de crianas abandonadas nas ruas (tudo assinalando um escasso progresso em relao ao regime
autoritrio precedente) refletem no apenas um grave processo de decadncia urbana. Elas tambm expressam a
crescente incapacidade do estado para tornar efetivas suas prprias regulaes. Muitos espaos pblicos
desaparecem, tanto devido a sua invaso pela misria desesperada de muitos como pelo perigo envolvido em sua
utilizao. O medo, a insegurana, a segregao dos bairros ricos e a verdadeira tortura que usar o transporte
pblico encolhem os espaos pblicos e levam a um tipo perverso de privatizao (ODONNELL, Guilhermo.
op., cit., p. 125).
83
67
68
significados est em jogo na pergunta formulada e porque os demais significados devem ser
excludos desta abordagem.
O significado base de nossa pergunta (pelo conceito de princpio) aquele
apresentado por ltimo e que nomeamos com Esser princpios pragmtico-problemticos,
que esto ligados ao momento de concretizao do direito, na deciso judicial e na
problematicidade do caso concreto. Tambm as questes poltico-sociais apresentadas
refletem para uma preponderncia das discusses jurdicas no mbito das decises judiciais.
Assim, a pergunta pelo conceito de princpio j recebe uma espcie de resposta parcial: o
significado privilegiado para o conceito de princpio no momento atual das teorias e filosofias
do direito o pragmtico-problemtico. Mas essa resposta no se mostra assim, isenta de
objees. Em primeiro lugar: por que este significado prevalece em detrimento dos outros?
Por outro lado, sendo justificada sua prevalncia, em que sentido ela deve ser encarada? Ou
seja: mesmo determinando qual dos significados ser abordado pela investigao, a pergunta
prevalece, pois, ainda no conquistamos o espao onde a determinao do conceito de
princpio no direito possa aparecer. Dessa segunda objeo, nos ocuparemos nas partes
subseqentes da pesquisa. Por hora, nossa ocupao ser justificar a opo pelo terceiro
significado em detrimento dos dois significados anteriores, quais sejam: os princpios gerais
do direito e os princpios epistemolgicos.
Foi mencionado muito rapidamente, quando tratamos do significado dos
princpios jurdico-epistemolgicos, o carter essencialmente matemtico de que se revestem.
Isso em analogia construo da Fsica moderna como matemtica, que Heidegger realiza no
seu texto A poca da Imagem do Mundo. Ficou claro, tambm, que os princpios gerais do
direito se formam a partir de uma metodologia que , em ltima anlise, matemtica. Agora
preciso desenvolver melhor essa idia procurando mostrar o porqu da necessidade de sua
ultrapassagem.
Em virtude da centralidade do problema da matematicidade dos significados do
conceito de princpio destacados e, em ltima anlise, do prprio pensamento jurdico
moderno, devemos retomar Heidegger para esclarecer melhor a essncia do matemtico e seus
vnculos com a cincia moderna (inclusive o direito). Queremos aqui afirmar que o projeto
matemtico de explorao dos entes presente nas cinc ias naturais principalmente na fsica
se estende ao direito devido ao estreito vnculo do direito com a Metafsica. Essa questo
aparecer melhor no segundo captulo quando tratarmos do discurso histrico-crtico da
69
relao entre filosofia e direito e da herana kantiana das teorias do direito at chegar a Alexy
no final desta pesquisa.
Segundo Heidegger,
A expresso o matemtico tem sempre dois sentidos: significa, em
primeiro lugar, o que se pode aprender do modo j referido e somente
desse modo; em segundo lugar, o modo do prprio aprender e do
proceder. O matemtico aquilo que h de manifesto nas coisas, em
que sempre nos movimentamos e de acordo com o qual as
experimentamos como coisas e como coisas de tal gnero. O
matemtico a posio-de-fundo em relao s coisas que se nos propem, a partir do modo como j nos foram dadas, tm de ser dadas e
devem ser dadas. O matemtico , portanto, o pressuposto
fundamental do saber acerca das coisas 84 .
conveniente salientar que no estamos negando aqui a possibilidade do
conhecimento matemtico. Queremos apenas colocar em questo a matematicidade dos
significados do conceito de princpio problematizando o rigor que esta por trs de uma tal
suposio.
Pois no matemtico o carter assumido pelos princpios gerais do direito e
pelos princpios jurdicos epistemolgicos? Em ambos os casos no estamos diante de uma
representao teortica que visa apreender aquilo que, de modo permamente, constitui a
substancialidade (ou a posio-de-fundo) do direito? Vejamos o caso dos princpios gerais do
direito. Segundo sua significao, construda sob os postulados do jusnaturalismo racionalista,
so eles elementos latentes no direito codificado e que, quando no haja previso expressa nos
cdigos para determinar a soluo jurdica da questo de fato apresentada ao juzo, o julgador
poder encontrar, no contexto global da codificao, uma srie de princpios gerais que o
permitiro deduzir, silogisticamente, a deciso do caso concreto, aparentemente no previsto
pela legislao. A possibilidade de acesso e de conhecimento destes princpios era dada pela
doutrina, que fornecia todo material metodolgico necessrio para estabelecer a coerncia
formal do sistema. Ou seja, a doutrina dos princpios ocultos da qual nos falar Esser, ou o
elemento latente que os reveste, aparentam que ao juiz dado, nos casos de omisso do
sistema de normas, a possibilidade de sair busca de princpios gerais que possibilitaro o
preenchimento da lacuna referida. Todavia, de acordo com sua matematicidade, tais
princpios s podem ser articulados pelo julgador porque este os conhece por antecipao,
porque eles j so conhecidos a partir da sistematicidade do direito e do carter
84
70
essencialmente jurdico que eles possuem e que por isso podem ser assumidos
hipotticamente. H, portanto, uma espcie de paradoxo na frmula dos princpios gerais do
direito: aquilo que aparente estaria oculto no sistema normativo positivado, na verdade o
que de mais manifesto nele se pode ter, na medida em que eles so justificados de modo
matemtico, tanto no contedo quanto na forma. Tambm os princpios jurdicos
epistemolgicos no so diferentes. Eles estruturam o estudo cientfico de um determinado
ramo do direito (ou do direito como um todo, no caso de uma teoria jurdica geral) e
continuam preservando o mesmo sent ido: aquilo que, do direito, conhecemos com mais
certeza e segurana; so a posio-de-fundo em relao qual o direito se pro-pe. O
princpio da imputao em Kelsen; os princpios do processo, do direito penal, do direito
administrativo, do direito tributrio etc. Todos eles determinam esse modo matemtico de
estruturao do conhecimento jurdico baseado num sujeito epistemolgico descolado da
concretude da vida ftica.
A pergunta que fica : se os princpios naquele seu terceiro sentido (pragmticoproblemtico) podem continuar a ser estruturados nestas perspectivas e em que medida elas
encobrem novas possibilidades de sentidos para o conceito de princpio? Parece-nos evidente
que, quando os princpios so tematizados diretamente no mbito da deciso judicial (ou da
deciso legislativa) ou seja, a reflexo lanada na concretude do momento constitutivo do
direito , em que sua problematizao polemiza com temas correlatos como a
discricio nariedade judicial e a fundamentao das decises, h no mnimo uma mudana de
perspectiva: o carter de teoria deslocado para o mbito da prtica. Como sustentar um
modelo epistemolgico- matemtico de conhecimento nestes termos? Parece evidente que, se
insistirmos em construes tericas sedimentadas sob os mesmos pressupostos ontolgicos
que se encontram na base deste modelo, no conseguiremos avanar qualitativamente na
discusso.
Portanto, colocar corretamente a questo do conceito de princpio importa, num
primeiro momento, em saber qual dos significados merece ainda ser colocado em questo.
Isso ns j o fizemos: determinamos o significado pragmtico-problematico como nosso
objeto de anlise. Tambm j anunciamos qual o horizonte em que a pergunta ser projetada:
um questionamento que d conta da problematizao no apenas dos resultados empricos,
mas tambm dos problemas filosficos que esto envolvidos no conceito de princpio de
forma a pens- lo fora dos modelos matemticos tradicionais.
71
A partir daqui nos ocuparemos de: 1) determinar o lugar a partir do qual operamos
a desconstruo dos tradicionais significados do conceito de princpio e procuramos
desobstruir novos projetos de sentido para ele; 2) a subseqente direo para a qual
procuramos apontar com nossa investigao.
O primeiro ponto destacado ser nossa ocupao nos Captulo II e III. Nele
estabeleceremos os principais pontos de nossa argumentao: a) a colocao da pergunta pelo
conceito de princpio dever implicar uma radical reintroduo do modo de se conceber a
relao ou o vnculo entre filosofia e direito; b) Isso implica determinar quais os vnculos do
direito com a Metafsica e apresentar o ponto verdadeiramente capilar para as teorias do
direito de toda primeira metade do sculo 20: a Filosofia de Kant. Isso se torna fundamental
por dois motivos: primeiro porque Kant o primeiro filsofo que explicitamente tentou impor
limites Metafsica, com o fito de super- la; segundo porque possvel determinar um fio
condutor que nos leva de Kant at Alexy, passando por Kelsen e Radbruch; c) este modo de
se conceber a relao entre Filosofia e Direito, portanto, s ficar claro na medida em que, de
posse de uma interpretao mais radical da Metafsica, compreendermos porque Kant e
todos aqueles que vieram depois no superaram a Metafsica, mas pelo contrrio, continuam
imersos nela, comprometidos com o projeto de fundamentao matemtico da modernidade;
d) preciso destacar e refletir sobre a impossibilidade de realizao de uma passagem direta
da filosofia para o direito, ou seja: que as solues apresentadas por um filsofo para um
problema filosfico no podem ser simplesmente acopladas ao discurso jurdico ou utilizadas
como figuras retricas na fundamentao jurdica; e) este modo de se pensar filosofia e
direito, portanto, implica operar com paradigmas filosficos ou standards de racionalidade,
que nem todos os filsofos oferecem, mas apenas aqueles que legaram para a histria da
filosofia uma posio filosfica que contm: um modo de filosofar (mtodo); uma teoria da
racionalidade; uma teoria da verdade; e uma matriz lingstica; e f) nossa opo pelo
paradigma heideggeriano da fenomenologia hermenutica e a exposio das questes mais
importantes para a pergunta guia da investigao.
A opo pelo paradigma heideggeriano vem ao encontro de nossa inteno de
(re)colocar o conceito de princpio fora dos fundamentos matemticos que descrevemos
acima. A indicao para o caminho a ser seguido para esta tarefa nos vem de Ernildo Stein:
no momento em que o conceito de histria substitui o modelo matemtico, no momento em
que o conceito de histria nos servir de modelo, a camos necessariamente no movimento
72
que teria que levar a Ser e Tempo85 . Assim, chegamos a Heidegger, e mais particularmente a
Ser e Tempo. Isto porque, em Heidegger, h um abandono do sujeito epistemolgico em favor
dos contextos prticos de ao em que se insere de forma habitual e corriqueira a vida
humana. A lgica, a matemtica, o conhecimento da histria e a formao das estruturas
comportamentais que compe o direito, tm suas razes na vida mesma, na realidade
diretamente vivenciada, no horizonte de sentido prvio em que se move o sujeito que pensa e
julga (sem nenhuma aluso ao ato judicativo no mbito jurdico). Isso tudo implica uma
suspenso da primazia da atividade terica e um pr entre parnteses o ideal dominante das
cincias fsico- matemticas que determinaram a formao da epistemologia jurdica
vigente desde Descartes. Isto permite ao filsofo elaborar um conceito totalmente renovado de
filosofia. Uma filosofia que se desliga do corte terico que a oprime e, ao mesmo tempo,
libera novas possibilidades para se pensar os problemas das prprias cincias, entre elas o
direito. Mas do que uma reabilitao da filosofia em crise, Ser e Tempo estabelece um lugar
onde a dignidade das cincias humanas (ou cincias hermenuticas) pode ser pensada sem os
padres lgico-formais das cincias matemticas da natureza.
Quanto direo para a qual apontamos com no ssa investigao, basta dizer que
nos aproximamos do conceito pragmtico-problemtico de princpio procurando explorar as
questes correlatas envolvendo a discricionariedade judicial e a fundamentao das decises.
Diante disso procuramos estabelecer uma relao (ou um confronto) entre as concepes de
Ronald Dworkin e Robert Alexy. Novamente, no tomamos esta deciso de maneira aleatria.
Alm da projeo que cada um destes autores reflete no cenrio jurdico brasileiro, tambm
est em jogo o fato de que, em ambos, a temtica do conceito de princpio est ligada, de
alguma maneira, ao problema da discricionariedade e da fundamentao. E o mais importante:
em cada um deles a resposta ao problema recebe um tratamento que ope, diametralmente,
um ao outro. Em Dworkin, os princpios so a via de acesso para determinao da resposta
correta; em Alexy os princp ios so conceituados como mandados de otimizao. Para
Dworkin, o problema da discricionariedade vem das regras e enfrentado pela tese da
resposta correta que se estabelece a partir de um argumento de princpios e integridade, sendo
ela inapreensvel por meio de uma postura mecnico-procedimental pr-definida; para Alexy
a discricionariedade vem dos princpios e ela um mal que s pode ser contido por um
procedimento: a ponderao. Em suma, podemos resumir todo esse impasse que se
85
STEIN, Ernildo. Sobre a Verdade. Lies preliminares ao pargrafo 44 de Ser e Tempo. Uniju: Iju, 2006, p.
103.
73
apresenta frente posio de cada um destes autores na pergunta colocada por Lenio Streck:
Afinal, os princpios fecham ou abrem a interpretao? 86 .
No pretendemos aqui, simplesmente, expor cada uma destas posies para, ao
final, nos perfilarmos ao lado de uma delas. Procuramos problematizar as duas concepes
para abrir nelas possibilidades que se encontram encobertas. O corte filosfico de nossa
pergunta implica no nos posicionarmos em favor de nenhuma das posies. Esse modo de se
falar em filosofia e direito que j h algum tempo vem sendo trabalhado por Lenio Streck
naquilo que ele vem denominando Nova Crtica do Direito87 - explorado no Captulo III,
dever nos trazer outras possibilidades para pensar a questo dos princpios, mais alm
daquilo que j trataram Alexy e Dworkin.
86
74
CASTANHEIRA NEVES, Antonio. A Crise da Filosofia do Direito no contexto da crise global da Filosofia.
op. cit., p. 27 e segs.
75
da filosofia quase desaparece, com a consagrao do direito como cincia positiva. Temos,
assim, respectivamente: 1) A Iuris Naturalis Scientia no interior da qual a reflexo filosfica
se confundia com a justificao do dir eito natural; 2) A filosofia do direito, que marca o
cultivo de uma reflexo filosfica crtica sobre as condies de possibilidade do
conhecimento jurdico, produzida a partir de uma emancipao com sua tarefa justificadora do
direito natural; 3) A teoria do direito, no mbito da qual a reflexo propriamente filosfica se
dilui numa epistemolo gia do direito em geral ou de suas disciplinas particulares.
Ao mesmo tempo, procuraremos acentuar o papel primevo desempenhado pela
filosofia de Kant e seu legado para as teorias do direito da primeira metade do sculo 20, com
o objetivo maior de (re)construir um caminho que nos leva a Alexy de desemboca nas
principias discusses filosficas sobre o direito no nosso contexto atual.
Neste captulo procuraremos estabelecer como o direito guarda profundos
vnculos com a Metafsica tendo como ponto de estofo o problema do fundamento. Esse
vinculo marcado tambm por sucessivas tentativas de superao destes fundamentos
metafsicos. No captulo seguinte mostraremos por que tais tentativas foram frustradas. Para
isso, precisamos dispor de uma interpretao mais radical da tradio metafsica tal qual
conquistada pela fenomenologia hermenutica. Heidegger nos oferece uma possibilidade de
refletir sobre a crise da metafsica e projetar sentidos, cravados na cond io humana e no em
algum elemento artificial determinado por uma epistemologia, teoria do conhecimento, ou
mesmo uma filosofia dogmtica. A partir das contribuies heideggerianas se torna possvel
afirmar uma outra relao entre filosofia e direito, no interior da qual o direito no mais se
apresenta como uma entidade natural ou uma tcnica colocada disposio dos operadores
humanos, mas sim como um modo de ser que acontece num encontro.
Antes de seguir para esse discurso histrico-crtico tenhamos conosco a
advertncia de Martin Heidegger em suas interpretaes fenomenolgicas sobre Aristteles:
A crtica da histria nic a e exclusivamente crtica do presente89 .
89
76
90
Cf. CASTANHEIRA NEVES, Antonio. A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto da Crise Global
da Filosofia. op. cit., p. 24.
91
Cf. KAUFMANN, Arthur. op. cit., p. 37.
77
Cf. CASTANHEIRA NEVES, Antonio. A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto da Crise Global
da Filosofia. op. cit., p. 24.
78
79
designa apenas um domnio entre outros, mas sim aquele domnio para o qual todas as
metafsicas reenviam e do qual todas elas saem 93 .
Tudo isso pode se apresentar de forma mais compreensiva se retornarmos quele
que considerado o pai da modernidade.
Descartes, pelo contexto opressivo e dogmtico que o saber escolstico
cristalizara, teve a inteno de libertar a filosofia desta situao indigna. Realizou isto a partir
da afirmao da dvida. Todas as afirmaes e dogmas da tradio foram colocados em
dvida pelo cartesianismo, at que essa dvida encontrou qualquer coisa que j no podia ser
posta em dvida: enquanto se duvida, no se pode duvidar que aquele que duvida ele prprio
existe e que tem que existir para que possa duvidar. Na medida em que duvido, portanto, eu
sou. O eu aquilo que no pode ser colocado em dvida. Desse modo, antes da teoria acerca
do mundo (esse sim, objeto da dvida), deve colocar-se a teoria acerca do sujeito. Daqui em
diante a teoria do conhecimento o fundamento da filosofia, o que a torna moderna,
distinguindo-a da medieval. Todavia, o que Heidegger vem mostrar que h elementos
ontolgicos da tradio medieval que continuam presentes em Descartes e, em ltima anlise,
em toda filosofia moderna.
Isto porque a afirmao da razo e de uma racionalidade absoluta e certa, no s
interessava como era pretendida pela igreja catlica na medida em que somente por essa
afirmao que ainda se maninha a possibilidade de uma prova racional da existncia de
Deus. No toa que todos os racionalistas dogmticos, e mesmo depois a filosofia crtica de
Kant, ocuparam-se deste tema. Isso significa que, a pretenso de descrever e apreender a
totalidade desde fora, que caracterizava a Metafsica greco- medieval, continuava na
modernidade tendo nela ingressado pelas vias do racionalismo dogmtico de Descartes,
Leibniz, Christian Wolff, Baugartem etc., com o deslocamento desta totalidade para o sujeito
racional, o cogito de Descartes.
Desenvolver tal argumento foge das expectativas e possibilidades de nossa
investigao. Para nosso trabalho, importa perceber como Descartes parte essencial deste
trabalho de reflexo acerca do matemtico. preciso compreender que o matemtico, de
acordo com a sua exigncia mais ntima, quer fundamentar-se a si- mesmo. Descartes no
duvida por ser um ctico, mas deve tornar-se algum que duvida porque coloca o matemtico
como fundamento absoluto e procura, para todo o saber, uma base que lhe corresponda. J
93
80
no se trata de encontrar uma lei fundamental para a natureza, mas o princpio mais universal
e mais elevado para o Ser em geral, dir Heidegger.
O direito natural moderno, portanto, se radica neste movimento que tem no cogito
cartesiano seu desencadeamento. O eu que pe no se dirige a qualquer coisa previamente
dada, mas que d a si mesmo o que nela est. O que nela est eu ponho; sou aquele que
pe e pensa94 o direito. Desse modo, assevera Kaufmann, que se postulava a possibilidade
de se estabelecer uma ordem jurdica, que, tal como a imutvel razo dos homens, teria
carter universal, ou seja, seria necessariamente vlida para todos os homens e para todos os
tempos (...) a partir de alguns muito poucos e abstractos, princpios fundamentais do
direito95 . Neste momento ingressamos, de maneira radical, nos fudamentos matemticos da
metafsica.
De todo modo, podemos dizer, com Goyard-Fabre, que no campo do direito que
a transformao da razo e os postulados do racionalismo se manifestaram com maior
nitidez96 . Isso no se d ao acaso: os vnculos entre direito e Metafsica se mostram de
maneira mais ostensiva quando podemos perceber, como at aqui destacamos, que a diviso
da metafsica tornada clssica por Christian Wolff em trs dimenses do Ente: 1) a
cosmologia; 2) a teologia; 3) a psicologia, que compunham a chamada metaphysica specialis,
serviru de fundamento ontolgico para o direito em toda a tradio que descrevemos at aqui
(iuris naturalis scientia). Neste sentido, o vnculo entre direito e filosofia ou mxime entre
direito e metafsica to estreito que o contedo e a forma do direito natural modificam-se
na medida em que se altera o fundamento metafsico que aparece de modo predominante na
antiguidade clssica; na Idade Mdia e na Modernidade. De comum, todos eles guardam o
fato de afirmarem o fundamento na compreenso de uma totalidade que est para alm dos
limites do conhecimento: o mundo (cosmologia); Deus (teologia); e o homem (psicologia).
Com a consumao da iuris naturalis scientia na doutrina do direito natural
moderno e o positivismo da codificao podemos dizer que se encerra o tempo da metafsica
do conhecimento no direito. Mas apenas com Kant que teremos a primeira revoluo que
romper com os dogmatismos da tradio metafsica e sua ingenuidade objetivista no que
atina s ontologias (Mundo, Deus, Homem). Com Kant, samos da metafsica do
conhecimento e ingressamos noo conhecimento metafsico, ou seja, apenas com Kant que a
94
Idem, p. 107.
KAUFMANN, Arthur. op. cit., p. 85.
96
Cf. GOYARD-FABRE, Simone. op., cit., p. 12.
95
81
Dissemos que tal qual o direito natural se consuma com a codificao, a filosofia
do direito aparece para ocupar o lugar da iuris naturalis scientia, que determinava os estudos
do direito medieval e do direito comum (pr-codificao). Mas no sem alguma
transformao. Para apresentar essa transformao, tivemos que realizar um pequeno incurso
no interior da filosofia que inicia propriamente a modernidade: a de Ren Descartes.
Destacamos, ainda, que a reflexo sobre o direito entre os gregos e os medievais se dava
numa dupla inteno: filosfica (terica) e normativa (prtica). Na modernidade isso se altera
radicalmente a partir de uma ciso entre teoria e prtica. Isto levar a uma filosofia do direito
que deixa de ter uma pretenso normativo-regulativa (prtica) para assumir um papel crticofilosfico do direito histrico real. Na modernidade, essa inteno normativo-regulativa ser
transferida, no continente, para aquilo que tradicionalmente se chama de filosofia poltica, ao
passo que a filosofia do direito ficaria restritamente determinada pela sua funo de
fundamentao terica do conhecimento jurdico. Portanto, a filosofia do direito, assim
nomeada, deve atingir a conceitualizao fundamental e a explicitao de suas decisivas
implicaes real-concretas, ou seja, deve garantir e determinar sua inteligibilidade e nada
mais. A filosofia do direito passava a ser teoria do conhecimento aplicada ao direito, se
97
STEIN, Ernildo. Racionalidade e Existncia. Uma introduo filosofia. Porto Alegre: L&PM, 1988, p. 21.
82
Isso no significa que Kant repudiasse o empirismo ingls tout court. Ao contrrio, hoje j se sabe que os
autores ingleses, de Hobbes a Hume, influenciaram substancialmente a obra kantiana a ponto de se falar
atualmente na Alemanha em o Outro da razo, numa referncia ao empirismo ingls como elemento oculto
presente na Critica da Razo Pura de Kant. Todavia, seu profundo enraizamento no racionalismo do Aufklrung,
nunca lhe permitiu libertar-se completamente das pretenses de totalidade e unidade da razo que no contexto da
sua crtica se manifesta no eu transcendental. Quanto a isso importantssimo o Captulo a Diferena
Ontolgica e os Vetores de Racionalidade do livro Pensar pensar a diferena de Ernildo Stein. (Cf. STEIN,
Ernildo. Pensar pensar a diferena. Iju: Uniju, 2002, pp. 169 e segs.).
99
Importa, desde j, no confundir o transcendental de matriz kantiana com a transcendncia clssico-medieval.
Como vimos anteriormente, o transcendente da tradio greco-medieval proveniente de uma ontologia
dogmtica que remete o domnio do real a um fundamento absoluto que transcendente com relao prpria
realidade. o transcendente a melhor explicao para o meta-fsico, ou seja, aquilo que ultrapassa o ente em
direo ao ilimitado e que responde pelo domnio do real e pela certeza do conhecimento. Evidentemente isso
trs possibilidades de equvocos. Como anota Stein essa concepo ontolgica faz uso do mtodo objetivo e
absolutamente no problematiza a possibilidade de acesso realidade transcendente ao sujeito. Na explicitao
dessa realidade, ela facilmente poder entrar em choque com as teorias cientficas que tambm se ocupam de
coisas objetivas, ainda que em outro plano. Vimos que, com Descartes e a fundao da modernidade, a
83
com Kant no se trata de perguntar se o conhecimento dado pela razo ou pela experincia,
mas sim quais so os limites do conhecimento, seja ele racional ou emprico. Quando se
coloca a pergunta pelos limites do conhecimento, o que se procura determinar quais so as
condies de possibilidade da razo pura e da experincia; como existem elas em ns e diante
de ns? Ou seja, como pode o aparelho humano cognoscente, que interior, afirmar ou negar
algo exterior? Como possvel a passagem das categorias que se formam na subjetividade,
para construir teoria do concreto fora dela? Encontradas as respostas a estas questes estaria
resolvido, para Kant, o problema que estava realmente em jogo nas duas posies (na
racionalista e na empirista): como possvel estabelecer uma ponte entre conscincia e
mundo? Para Kant, esse o verdadeiro escndalo da filosofia: no ter ainda encontrado a
ponte.
Mas no somente neste sentido que Kant introduz o conceito de transcendental.
Na esteira da emancipao das cincias naturais da Metafsica, Kant opera uma espcie de
primeiro passo para a libertao da prpria filosofia da Metafsica . Atravs de sua Crtica da
Razo Pura, deu ele fim metafsica dogmtica criando, assim, a situao em que se
encontram todos os filsofos100 . Ou seja, Kant pretendeu ser um filsofo superador da
metafsica, mas sua tentativa acabou fracassada terminando apenas por inverter a polaridade
determinante do conhecimento: do conhecimento metafsico saltou para uma metafsica do
conhecimento. Todavia, no podem haver dvidas que, com Kant, h uma liberao parcial da
subjetividade posta como fundamento o fundamento ento deixa de ser transcendente e passa a ser imanente
e a realidade transcendente posta em dvida: pela primeira vez, a ontologia do real objetivo parte do
problema do conhecimento. O sujeito condio de possibilidade do conhecimento do real. Mas no bastava
afirmar a subjetividade como fundamento para resolver os problemas da transcendncia porque permanecia
como enigmtica a passagem para o mundo exterior; como se d afinal o conhecimento? Assim se encontra o
debate entre empirismo e racionalismo que mencionamos no texto. No fundo, continuava em jogo o velho
problema do conhecimento metafsico da transcendncia e do dualismo. Kant procurou solucionar o problema a
partir da construo do mtodo transcendental. Para ele, o objeto da interrogao no o contedo do
conhecimento, mas as formas em que ele nos dado. E as formas so as condies que brotam da subjetividade.
O transcendental surge como problema crtico. O mtodo transcendental deduz da subjetividade no apenas as
condies de possibilidade do conhecimento, mas a prpria condio de possibilidade dos fenmenos. O
problema do singular e do universal resolvido no interior da subjetividade. No h mais conhecimento
metafsico, interessa apenas a metafsica do conhecimento (STEIN, Ernildo. Uma Breve Introduo
Filosofia. Iju: Uniju, 2005, pp. 73-77). Esse , em ltima anlise, o sentido da inverso kantiana do dualismo
metafsico: a passagem de um conhecimento metafsico para uma metafsica do conhecimento. Numa
aproximao maior com o direito, Lenio Streck esclarece a questo a partir da distino que realiza entre uma
metafsica clssica (objetivista) e uma filosofia da conscincia (subjetivista) procurando apontar para como nas
duas existe o predomnio do dualismo sujeito-objeto e como a hermenutica jurdica oscila ora em direo ao
sujeito (filosofia da conscincia); ora em direo ao objeto (metafsica clssica) (Cf. STRECK, Lenio Luiz.
Hermenutica Jurdica e(m) Crise. op. cit., pp. 65 e segs.)
100
STEIN, Ernildo. Melancolia. Ensaios sobre a finitude do pensamento ocidental. Porto Alegre: Movimento,
1976, p. 108.
84
preciso lembrar, ainda que superficialmente, que a Dialtica Transcendental apresentada por Kant em sua
Crtica da Razo Pura, deve ser percebida a partir das suas distines fundamentais entre sensibilidade
(receptividade) e entendimento (espontaneidade); juzos analticos e juzos sintticos; e entre a priori e a
posteriori. A sensibilidade a faculdade da intuio humana, sendo o intuir humano necessariamente sensvel e
se caracteriza pela representao imediata de algo dado pela experincia; ao passo que a faculdade de pensar,
onde o objeto adquire posio de objeto, chama-se entendimento. Enquanto a sensibilidade imediata, o
entendimento mediato. Aquilo que capturado receptivamente pela intuio sensvel, pensado na
espontaneidade do entendimento: a intuio e o pensar dizem respeito ao representado, enquanto tal, no objeto; a
receptividade e a espontaneidade so os modos como o representar se comporta; sensibilidade e entendimento
designam o representar como faculdade do esprito humano, como fonte do conhecimento. Ao mesmo tempo,
entendimento significa o poder de ligar representaes, ou seja, de representar a relao sujeito-predicado. Essa
representao que liga um sujeito a um predicado chamada de juzo. Kant estabelece uma relao entre dois
tipos de juzos: os analticos e os sintticos. Analtico vem de anlise, desligar, decompor; ao passo que sinttico
vem de sntese e significa o contrrio, recompor, renunir. Os juzos analticos so aqueles em que a ligao entre
sujeito e predicado pensada por identidade, quer dizer, o predicado est contido no sujeito, sem acrscimo de
qualquer dado externo. J nos juzos sintticos o predicado traz uma nova informao sobre o sujeito, no sendo
mais possvel verificar a adequao do juzo a ele mesmo, mas necessita ser averiguado com o auxlio de
elementos externos a ele. Explicando melhor: Quando se emite um juzo, como exemplifica o prprio Kant:
todos os corpos so extensos, realiza-se uma referncia a algo universal (todos os corpos), que significa aqui o
corpo no universal e no geral. Esta universalidade e generalidade representada no conceito de corpo e a
verdade de uma tal proposio poder ser encontrada no prprio conceito, sem a necessidade de se dizer algo
mais sobre o objeto. Quando a verdade do juzo se apia apenas no desmembramento do puro conceito, este
juzo analtico. O juzo analtico possui ento um papel apenas explicativo, no alargando o contedo do nosso
conhecimento. Todavia, os juzos sintticos dependem, para sua verificao veritativa, de um ir alm do conceito
na direo do prprio objeto que deve ser representado. Retomando outro exemplo de Kant, temos o juzo:
Alguns corpos so pesados, este um juzo sinttico, porque depende de algo a ser acrescentado a ele de modo
exterior ao conceito dado (corpo), como substrato dele, que torne possvel ultrapass-lo com os predicados.
Resta, por ltimo, a distino entre a priori e a posteriori. O Juzo a priori determinado como aquele que
independente de toda percepo e de qualquer experincia. o que no sujeito, na mente, j est preparado, ou
seja, o que pertence subjetividade do sujeito; por outro lado um juzo a posteriori, um juzo emprico,
depende de sua confirmao pela experincia, isto , torna-se acessvel atravs de uma sada do sujeito e de uma
penetrao no objeto, atravs da percepo, a partir do sujeito, mas posterior, a posteriori. Todo juzo analtico
a priori. Porm, na sistemtica da crtica, nem todo juzo sinttico a posteriori. Esse o ncleo problemtico
de toda Crtica: os juzos sintticos a priori. Isto porque, segundo Kant, h juzos sintticos, para os quais a
ateno despertada pela experincia, mas que, ao serem conhecidos, revelam uma base outra que no est
contida na percepo sensvel. Quer dizer, que a priori, que j pertence ao aparelho cognitivo, subjetividade
do sujeito. para nomear estes juzos que Kant emprega o termo transcendental, j que eles no propriamente
transcendem a experincia, pois comeam com ela. Ou seja, transcendental o conhecimento que no prescinde
da experincia, mas que a ela no se reduz. (Cf. KANT, Immanuel. Crtica da Razo Pura . 5 ed. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 2001; HEIDEGGER, Martin. Que uma Coisa? op. cit., principalmente o segundo
captulo da parte principal; ADEODATO, Joo Maurcio. Filosofia do Direito. Uma crtica da verdade na tica
e na cincia. 3 ed. So Paulo: Saraiva, 2005, pp. 25-34)
102
Assim afirma Kant na introduo da Crtica: O que mais significativo ainda (do que as precedentes
consideraes) o fato de certos conhecimentos sarem do campo de todas as experincias possveis e, mediante
conceitos, aos quais a experincia no pode apresentar objeto correspondente, aparentarem estender os nossos
juzos para alm de todos os limites da experincia. precisamente em relao a estes conhecimentos, que se
elevam acima do mundo sensvel, em que a experincia no pode dar um fio condutor nem correo, que se
situam as investigaes da nossa razo, as quais, por sua importncia, consideramos eminentemente preferveis
e muito mais sublimes quanto ao seu significado ltimo, do que tudo o que o entendimento nos pode ensinar no
campo dos fenmenos. Por esse motivo, mesmo correndo o risco de nos enganarmos, preferimos arriscar tudo a
85
que j se afirmou no ser possvel entrar na Critica da razo pura sem a coisa em si103 .
Portanto, precisamos compreender o que a coisa em si de Kant; determinar porque ela
oferece limites para a metafsica (embora no sem problemas) e quais as conseqncias que
essa operao da filosofia kantiana traz para a filosofia do direito ento nascente.
Foi Kant mesmo que, em um trabalho que escreve u para um concurso promovido
pela Academia Real de Cincias de Berlin, determinou os trs estgios pelos quais teve que
passar a evoluo da metafsica europia: 1) o dogmatismo de Christian Wolff; 2) o ceticismo
de David Hume; e 3) o criticismo transcendental da Crtica da razo pura. Isso tem algo a
dizer sobre a histria da coisa em si. Como j mencionamos, Christian Wolff ficou famoso e
fez escola, entre outras coisas, pelos seus manuais escritos em latim e alemo onde se
ambicionava realizar uma unificao essencial entre a fundamentao da filosofia realizada
por Descartes e a tradio da Escolstica Medieval e, ao mesmo tempo, uma nova
reconciliao entre Plato e Aristteles. Nestes manuais apareciam as trs dimenses
fundamentais do questionar metafsico que acabaram por se tornar clssicas nos trabalhos
acadmicos a partir de ento. Nestas trs dimenses, em cada caso, um ente que est em
causa: Deus, Mundo e Homem. Na Idade Mdia essa trade aparecia da seguinte maneira:
Deus como criador; Mundo como criado; o Homem e sua salvao eterna. Na modernidade, a
soma deste trao medieval com a matematicidade nsita ao pensamento moderno, colocou
tambm a metafsica a partir dos princpios da razo. Desse modo, a metafsica sobre Deus se
tornou teologia, mas teologia racional; a teoria do mundo, cosmologia racional; e a teoria do
homem se tornou psicologia racional. Estas seriam, portanto, as ltimas questes da
metafsica, afirmadas a partir da razo pura do iluminismo e do humanismo. Para Kant, no
plano da razo pura, estas questes s so viveis no mbito do como se, ou seja: se a razo
pura pudesse conhecer o todo representado nestas questes, o que ela pesquisaria?
Definitivamente no seria conhecimento efetivo para Kant, pois no h experincia humana
possvel de captar estes entes. O conhecimento das questes metafsicas seria, ento, como se
fosse conhecimento efetivo, mas no propriamente conhecimento da razo pura. Isto , no se
chega a um conhecimento efetivo de tais entes porque no possvel aplicar as categorias do
desistir de to importantes pesquisas, qualquer que seja o motivo, dificuldade, menosprezo ou indiferena. (Estes
problemas inevitveis da prpria razo pura so Deus, a liberdade e a imortalidade e a cincia que, com todos os
seus requisitos, tem por verdadeira finalidade a resoluo destes problemas chama-se metafsica. O seu proceder
metdico , de incio, dogmtico, isto , aborda confiadamente a realizao de to magna empresa, sem
previamente examinar a sua capacidade ou incapacidade) (KANT, Immanuel. Crtica da Razo Pura . op. cit.,
Introduo grifamos).
103
Assim anota Ernildo Stein citando Jacobi: Sem a coisa em si no se entra na Crtica da razo pura e com a
coisa em si no se pode permanecer nela. (Cf. STEIN, Ernildo. Pensar pensar a diferena. op., cit., p.173).
86
Assim tambm afirma Kaufmann quando diz que ele (Kant) provou no ser possvel deduzir o contedo de
uma metafsica de um direito natural simplesmente a partir de princpios formais aprioristicos, sem recorrer
ao emprico, e que, por isso, uma metafsica com contedo jamais poder ter validade universal e ser
matematicamente exata. Deste modo, foi rejeitada a pretenso de se poder fundar, a partir da natureza, um
direito natural com um contedo inequvoco igual para todos os homens e para todos os tempos. Esta descoberta
de Kant incontornvel (KAUFMANN, Arthur. op. cit., p. 98 Grifamos).
87
razo pura, so elevados condio de mera idia da razo, devendo ser excludos da reflexo
filosfica. Ao mesmo tempo, a inverso kantiana do dualismo metafsico, levou a uma
plenipotenciria subjetividade transcendental que se preocupa apenas com a anlise do
positivo, e dos processos a priori de sua constituio efetiva.
Mas o que far Kant, ento, para fundamentar racionalmente o direito? Qual ser a
tarefa da filosofia do direito, j que a dupla intencionalidade da iuris naturalis scientia se
perdeu junto com a coisa em si? Por que continuamos a afirmar, mesmo com Kant, uma
totalidade Metafsica para a fundamentao do direito?
Em Kant, sempre partiremos do positivo para desenvolver a reflexo crtico
transcendental. Portanto, no que o direito se esgote em sua veiculao estatutria como
direito positivo o que acontecer posteriormente na tradio das Teorias do Direito.
Afinal, o carter transcendental do conhecimento do direito preserva nele algo mais que a
pura experincia. Todavia, a reflexo crtica jamais poder ser instalada em algum princpio
dogmtico exterior como se fazia antes, mas ser o direito estatudo, positivado, o elemento
determinante a partir do qual os procedimentos trancendentais sobre o direito sero instalados.
Retomando o dilema racionalismo v.s. empirismo: no se trata nem de uma insondvel
considerao emprico-prtica sobre as figuras e origens de uma ordem jurdica, como no caso
do empirismo; nem tampouco de uma racionalidade especulativa, vazia e formal do modelo
axiomtico-dedutivo dos sistemas do direito natural raciona lista. Na reflexo crtica sobre o
direito, na colocao da ordem jurdica sob os auspcios do tribunal crtico da razo, cumpre
definir, atravs das disposies do direito estatutrio (ou positivo), as condies que
possibilitam sua inteligibilidade e sua validade 105 . E a pretenso de totalidade, prpria da
Metafsica, dada pelo eu transcendental e as frmulas a priori da razo pura.
Podemos encontrar em Goyard-Fabre uma boa sntese da tarefa da filosofia do
direito a partir de Kant:
A doutrina do direito, ao realizar pelo juzo reflexivo o projeto
crtico da filosofia, no visa o conhecimento do direito, mas a
instaurao do fundamento racional puro que lhe confere sentido e
valor. Este questionamento novo tem como ponto central o
entrelaamento do direito e da filosofia. (...) Por isso no se deve
esquecer que a atividade reflexionante da razo essa experincia
especfica e decisiva do pensamento que, liberto das certezas
indevidas vinculadas aos absolutismos lgicos e aos dogmatismos
metafsicos, encontra em si mesmo seu ponto de apoio;contm em si
105
88
Idem, p. 74 - Grifamos.
Idem, p. 149 Grifamos.
108
Neste sentido, tambm KAUFAMANN, Arthur. op. cit., pp. 98-99.
109
Cf. STEIN, Ernildo. Melancolia. op. cit., em especial o ensaio intitulado: A ontologia da finitude e a Tarefa
da Verdade na era do Niilismo, pp. 102-116.
107
89
de leis num dado territrio onde vive e se relaciona um povo que ento se afirmara como
Estado-nao. Desse modo, o positivismo jurdico entra em cena e a caracterizao do direito
como cincia passa a reivindicar cada vez menos uma filosofia do direito. Esta, de disciplina
auxiliar preocupada em garantir a inteligibilidade do direito real, passa para disciplina
cosmtica, um mero apndice daquilo que a partir de ento se afirmava como teoria do
direito, um espao no interior do qual se formavam as epistemologias jurdicas que haveriam
de monopolizar as reflexes em quase toda primeira metade do sculo 20. Entretanto, em
todas elas, paira difusamente uma sombra: a teoria do conhecimento de matriz kantiana ou
neokantiana.
90
111
, inserido-o
nos
padres
modernos
de
cincia;
ou
seja,
princpios
Cf. SILVA, Ovdio A. Baptista da Silva. Curso de Processo Civil. Vol. I. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2006, pp. 4-5. No mesmo sentido preleciona Arruda Alvim para quem a obra de Blow foi a que primeiro
distinguiu, com nitidez, o direito material controvertido e o processo, atravs do qual aquele se resolvia. Para ele,
antes de Blow o processo era concebido como um contrato, ou um quase contrato, sem colocar em relevo a
evidente atuao estatal que nele se desenrolava, o que o distinguia, por si s, da relao de direito privado prexistente. A partir de Blow, a relao material litigiosa passou a ser vista como algo diferente da relao
jurdica processual, na qual o processo passou a identificar-se predominantemente com a principiologia do
Direito Pblico na medida em que a atuao do poder estatal vital para o desempenho da atividade
jurisdicional. Nessa medida, o processo passa a ser visto como verdadeiro continente e a lide como o seu
contedo, ou, nas palavras do professor paulista, o retrato do direito material expressado no processo. (ALVIM
NETO, Jos Manuel de Arruda. Manual de Direito Processual Civil. Vol. 7. ed. So Paulo: Revista dos
Tribunais, 2001, pp. 101-102).
111
Cf. SILVA, Ovdio A. Baptista da. Processo e Ideologia. Rio de Janeiro: Forense, 2004, pp. 01-56. Na linha
daquilo que vem sendo dito nesta investigao a respeito do modo plstico-matemtico como procede a cincia
moderna, Ovdio preleciona que nosso sistema processual se edificou sob um modelo racionalista de Cincia
que aplica mtodos das cincias naturais (mormente a matemtica e a fsica) nas cincias do esprito
91
92
112
93
Cf. HEIDEGGER, Martin. A cincia e o pensamento do sentido. In: Ensaios e Conferncias. 2 ed. Petrpolis:
Vozes, 2002, pp. 39-60.
114
Cf. HEIDEGGER, Martin. O Fim da filosofia e a tarefa do pensamento. Conferncias e escritos filosficos.
Traduo de Ernildo Stein. So Paulo: Abril cultural, 2005.
115
Importante anotar, com Ramiro Florz, que seria malintrepertar este fenmeno verlo como mera aplicacin
de la ciencia matemtica. Ms bien sucede lo contrario. La tcnica maquinista es la que reclama atencin y el
quehacer de aplicacin de la matemtica. Ocupa el puesto de avanzada ms visible de la essencia de la Tcnica
moderna, que se identifica com la de la Metafsica moderna. La que manda es la Tcnica; y la ciencia debe
servila para obviar los obstculos o facilitar los procesos de su dominacin impositiva (FLREZ, Ramiro. Ser y
Advenimiento. Estancias en el pensamiento de Heidegger. Madrid: Fundacin Universitaria Espaola, 2003, pp.
173-174).
116
Cf. HEIDEGGER, Martin. O tempo da imagem do mundo. op., cit., p. 97. Como comum no pensamento
heideggeriano, como concluso da relao entre cincia moderna e tcnica de mquinas, o filsofo oferece a
identificao de seus vnculos com a metafsica que, paradoxalmente, elas pretendem renunciar: A tcnica de
mquinas permanece o rebento at agora mais visvel da essncia da tcnica moderna, a qual idntica
essncia da metafsica moderna (Grifamos).
117
HEIDEGGER, Martin. Carta resposta a um professor japons. In: STEIN, Ernildo. Uma Breve Introduo
Filosofia. Iju: Unij, 2005, p. 194.
94
118
O leitor j pde perceber que naquilo que descrevemos at aqui sobre o direito h um ntido caminho que vai
da sua emancipao com relao metafsica dogmtica (cujo ponto de referncia Kant), at a constituio de
suas disciplinas particulares como epistemologias especficas. Tambm em relao construo das verdades j
apontamos o exemplo das epistemologias processuais que procuram mostrar a estrutura de mtodo e objeto da
cincia processual a partir da representao de uma categoria que se apresenta como ponto central o j
conhecido do ente processo, aquilo que de mais universal h nesta regio do ente. Tambm aquilo que
chamamos princpios jurdico-epistemolgicos possuem esse recorte, assumindo o papel do matemtico no
mbito de cada disciplina jurdica especfica. Isso j nos deve servir de alerta, a partir de agora, para que no
soframos o impulso de tratar dos chamados princpios constitucionais (ou princpios pragmtico-problemticos)
com este mesmo modo de pensar. A partir disso a inteno da investigao bem como seu maior desafio, comea
a aparecer com maior clareza.
119
HEIDEGGER, Martin. O tempo da imagem do mundo. op., cit., p. 104. Ilustra muito bem toda essa
configurao da cincia moderna e seu contraponto com as experincias cientficas anteriores, uma histria
contada pelo filsofo e que remete a Galileu: De acordo com a representao aristotlica, os corpos
movimentam-se sempre segundo a sua natureza; os pesados, para baixo, os leves, para cima. Quando ambos
caem, os corpos pesados caem mais depressa que os leves, dado que os leves tm a tendncia de se mover para
cima. Galileu obteve o conhecimento decisivo de que todos os corpos caem mesma velocidade e que a
diferena dos tempos de queda resulta somente da resistncia da atmosfera, e no, da diferena de natureza. Para
apoiar a sua afirmao, Galileu projetou uma experincia na torre inclinada de pisa, cidade onde era professor de
matemtica. Nessa experincia, diferentes corpos pesados no caram da torre exatamente ao mesmo tempo, mas
com pequenas diferenas e, portanto, contra a prpria evidncia da experincia, Galileu manteve a sua
afirmao. Mas as testemunhas da experincia tornaram-se, com razo, por causa dela, perplexos com a
afirmao de Galileu e agarraram-se, com tanto mais obstinao, ao antigo ponto de vista. Com base nesta
experincia, agravou-se tanto a oposio a Galileu que ele teve de resignar do seu cargo de professor e
abandonar Pisa. Galileu e os seus opositores tinham observado o mesmo facto; mas ambos tornaram
diversamente observvel e interpretaram de modo diverso o mesmo facto, o mesmo acontecimento. O que
apareceu a cada um como facto e verdade autnticos foi uma coisa completamente diferente. Ambos pensaram
qualquer coisa a propsito do mesmo fenmeno, mas pensaram coisas diferentes, no acerca de aspectos
particulares, mas, fundamentalmente, em relao essncia do corpo e natureza de seu movimento. Aquilo que
Galileu pensava antecipadamente, acerca do movimento era que a determinao de cada corpo uniforme e em
linha recta, sempre que ele no encontra qualquer obstculo, e que se modifica uniformemente, sempre que uma
fora constante actua sobre ele. (...) Os corpos no tm propriedades, foras e poderes escondidos. Os corpos da
natureza so apenas como se mostram no domnio do projecto (matemtico da investigao). Agora, as coisas
mostram-se somente nas relaes de lugar e de tempo, de quantidade de massa e de actividade das foras. O
modo como se mostram pr-indicado pelo projecto; deste modo, ele determina tambm a forma do tomar e do
reconhecer aquilo que mostra por si mesmo a experincia, o experiri. Mas, na medida em que agora o
reconhecimento est pr-determinado pelo esboo do projecto, o questionar pode ser determinado de tal modo
que pe antecipadamente as condies a partir das quais a natureza deve responder de tal ou qual modo. Com
base no matemtico, a experientia tornou-se experimentao, em sentido moderno. A cincia moderna
experimental na base do projecto matemtico. O impulso experimentador em direo aos factos uma
conseqncia necessria do ultrapassar matemtico antecipado, de todos os factos (HEIDEGGER, Martin.
Que uma Coisa? op., cit., pp.94-97.).
95
120
96
informa -se em congressos. Vincula-se a encargos de editores. Estes co-determinam agora que livros tm de ser
escritos.
122
Cf. STEIN, Ernildo. Uma Breve introduo filosofia. op., cit., p. 195.
123
Veja-se, por exemplo, que a ltima tendncia das teorias do direito contemporneas o estudo do
processamento eletrnico de dados, tambm chamada informtica jurdica (Cf. KAUFMANN, Arthur. op., cit..)
124
Um bom exemplo dessa constatao trazido por Lenio Streck, que h tempos denuncia a eterna reproduo
daquilo que Luis Alberto Warat chama de senso comum terico dos juristas: Ocorre, assim, uma
ficcionalizao do mundo jurdico, como se a realidade social pudesse ser procustianamente
aprisionada/moldada/explicada atravs de verbetes e exemplos com pretenses universalizantes. Alguns
exemplos beiram o folclrico, como no caso da explicao do estado de necessidade constante no art. 24 do
Cdigo Penal, no sendo incomum encontrar professores (ainda hoje) usando o exemplo do naufrgio em altomar, em que duas pessoas (Caio e Tcio, personagens comuns na cultura dos manuais) sobem em uma tbua, e
na disputa por ela um deles morto (em estado de necessidade, uma vez que a tbua suportava apenas o peso de
um deles...!) Cabe, pois a pergunta: por que o professor (ou o manual), para explicar a excludente do estado de
97
98
apenas num sentido positivo de adoo explcita de sua teoria por outras posies sobre o
direito, mas tambm no sentido negativo, ou seja, numa tentativa de crtica ou superao. No
fundo, tanto uma filiao terica quanto uma crtica quando realizadas de uma maneira
temtica ou consciente s so possveis pelo confronto que se estabelece com um
determinado autor. No preciso muito esforo para mostrar como Kelsen se encontra
presente em quase todos os dilogos tericos sobre o direito na contemporaneidade. Para
nossa investigao, a teoria kelseniana se apresenta de maneira muito tenaz dada a influencia
que ela exerce no pensamento de Robert Alexy, estando presente de algum modo em todos os
debates das teorias do direito produzidas em tempos de ps-positivismo126 . Por isso,
analisaremos aqui mais detidamente o positivismo jurdico kelseniano, deixando o
positivismo de Hebert Hart para ser abordado no nosso captulo final, em virtude de seu
debate com Ronald Dworkin e sua explcita inteno de elaborar um positivismo brando ou
aberto. Advertimos, destarte, que no se pretende aqui uma anlise minuciosa dos aspectos
epistemolgicos da Teoria pura do direito, mas sim apanhar seus pressupostos filosficos e o
desvelamento do matemtico que nela se acha expresso.
Tradicionalmente so elencadas duas influncias bsicas que compem,
dialeticamente, a Teoria pura do direito: o neokantismo de Marburgo 127 e o positivismo lgico
do Crculo de Viena. Dito de outro modo: como terico do conhecimento, Kelsen um
kantiano de Marburgo; como epistemlogo ele um positivista lgico.
evidentemente, uma pura realidade emprica, mas algo transcendental. Para os neo-kantianos de Baden esse
alguma coisa era um dever-ser puro, um valor. Para eles, so os valores, enquanto produtos do fazer humano
concebido como cultura, que regem o pensamento e lhe permitem alcanar objetividade (Cf. ADEODATO, Joo
Maurcio. op., cit., pp. 41 e segs; RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Traduo de Cabral de Moncada. 6
ed. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1979).
126
O ps-positivismo como alternativa terica que se apresenta para o direito no segundo ps-guerra um ponto
importante para a discusso sobre o conceito de princpios. Dele j tratamos varias vezes nesta investigao
embora no tenhamos feito explcita referncia. Mas isso obedece a razes metodolgicas impostas pela
pergunta guia do trabalho. As questes envolvendo o ps-positivismo sero desenvolvidas no ltimo captulo da
pesquisa, depois de termos colocado corretamente as principais questes filosficas envolvidas na problemtica
do conceito de princpio e de termos explorado suficientemente o paradigma da fenomenologia hermenutica.
127
J mencionamos em nota anterior o ambiente cultural em que se desenvolve o neo-kantismo. importante
anotar agora algumas coisas em torno do que o neokantismo de Marburgo representou para a experincia
jurdica. Seu primeiro representante de projeo foi Rudolf Stammler que conservou do kantismo a necessria
distino entre a fenomenalidade do direito positivo e o conhecimento que o filsofo dele pode obter mediante
um juzo de reflexo. O direito positivo da ordem do fato e do a posteriori. Em compensao, ele observa que
uma cincia do direito necessita elevar-se ao conceito de direito considerado em sua validade universal. Esse
procedimento permite observar nele a idia que o anima a priori. Como Kant e posteriormente Kelsen
Stammler estima que a pureza do direito (exigncia racional a priori) deve ser a busca fundamental da cincia do
direito e que indispensvel expurg-la de toda contaminao pela moral ou pela histria (Cf. GOYARDFABRE, Simone. op. cit., p. 228). Isso decorre, numa perspectiva mais ampla, da prpria orientao
predominante em Marburgo como foi ressaltado na nota anterior.
99
Cf. WARAT, Luis Alberto. Epistemologia Jurdica e Ensino do Direito. Florianpolis: Fundao Boiteux,
2004, pp. 241 e segs.
129
WARAT, Luis Alberto. Epistemologia e Ensino do Direito. op. cit., p. 243.
100
cincias naturais . Como j vimos, para a Teoria pura do direito, o princpio que rege o estudo
cientfico do direito o princpio da imputao, cuja diferena primordial reside em que nele
est em jogo um ato de vontade.
Novamente, a questo envolvendo os princpios parece esclarecer tudo o que foi
dito at aqui. Em ambos os casos o conhecimento de tais princpios se d segundo um modelo
matemtico, tanto no que diz respeito ao mtodo quanto ao seu contedo. Portanto, o modo
matemtico de ver o mundo que a cincia moderna passa a impor ao ocidente, no deixa de
fora o direito que, enquanto epistemologia, se torna essencialmente em conhecimento
matemtico. Mais uma vez com Warat, podemos afirmar que la ciencia del Derecho es
concebida por Kelsen como una especie de geometra jurdica, que como fiel secuaz de la
escola de Marburgo, poniendo de lado los contenidos de las normas jurdicas y la idia de
justicia, se ocupa exclusivamente de delimitar el campo de accin y las formas dentro de las
cuales todo orden jurdico debe necesariamente desenvolverse130 .
Desse modo, torna-se compreensvel porque, em praticamente todas as teorias
jurdicas do primeiro quarto do sculo 20, o problema do fundamento era colocado de maneira
quase exclusiva no mbito da lgica interna do sistema normativo mxime do sistema
positivo de normas jurdicas sendo que a deciso judicial apareceria to s como apndice
de tais teorias. O exemplo mais marcante , sem dvida, a Teoria Pura do Direito, que dedica
apenas o ltimo captulo ao tema interpretao, no qual fica ntida a ciso kelseniana entre
direito e cincia do direito: a Teoria Pura deve cuidar das condies de inteligibilidade da
cincia do direito (no plano de uma teoria do conhecimento) e resolver os paradoxos lgicos a
partir de uma lgica dentica rigorosamente pr-determinada (no plano de uma rgida
estrutura epistemolgica), enquanto o direito se auto-regula, sofrendo os influxos polticos e
ideolgicos da sociedade.
De toda sorte, preciso reconhecer que h uma espcie de acerto filosfico em
Kelsen, na medida em que ele percebeu que o direito no uma mera realidade factual, mas
que h um elemento transcendental que o compe. O problema surge quando este elemento
transcendental reduzido subjetividade e organizado de modo matemtico dedutivo a partir
de sua lgica dentica de proposies. Tambm o problema da separao entre cincia do
direito e direito; ou ainda, entre ato de conhecimento e ato de vontade, mereceria ser melhor
discutida. Porm, isso ultrapassa nossa inteno filosfica e nos levaria a um debate
epistemolgico cuja profundidade esta investigao no exige. Damo-nos por satisfeitos com
130
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terceira via em relao velha oposio entre jusnaturalismo v.s. juspositivismo: Foi
Radbruch o primeiro a superar as trincheiras entre direito natural e positivismo132 . No
entanto, num sentido mais radical, o direito natural j havia sido superado por Kant,
paradigma filosfico a partir do qual Radbruch assenta sua reflexo sobre o direito. Isso fica
claro quando o prprio Kaufmann afirma que Radbruch, tal como Kelsen, era kantiano, na
medida em que s considerava possveis proposies apriorsticas, inequvocas, concludentes
do ponto de vista da forma, no quanto ao contedo. Mas, enquanto por esta razo Kelsen se
cingia ao formal, Radbruch filosofava tambm sobre contedos, em especial sobre valores133 .
Isso leva, evidentemente, configurao de um relativismo axiolgico.
Nessa medida, Castanheira Neves afirma que, com Radbruch comea a ter
expresso algo que podemos nomear como neojusnaturalismo, s que no mais
cosmolgico; teolgico; ou psicolgico (que, como vimos, foram destrudos pela crtica
kantiana), mas sim axiolgico, fundado na leitura neokantiana da razo pura prtica da escola
de Baden. Desse modo, temos um direito fundado a priori no no cosmos, nem na vontade de
Deus, nem na universalidade da razo, mas simplesmente na prpria essncia objetiva dos
valores. E arremata Castanheira Neves: pensamento este de uma jusnaturalista afirmao de
um super-positivo contedo axiolgico ou tico- material (uma pr-dada ordem de valores),
enquanto fundamento constitutivo do direito (...) que repercutia inclusive na jurisprudncia
jurisdicional alem134 . importante ressaltar que com fundamento neste direito axiolgico e
supra-legal, Radbruch considerava a lei positiva como no-direito, nos casos extremos de
violao deste direito natural dos valores retirando- lhe, por isso sua prpria validade de
direito. Essa posio se tornou famosa como frmula Radbruch e influenciou
consideravelmente Robert Alexy e sua defesa de uma moral corretiva para o direito 135 .
132
104
Amsterdam e que havia perdido sua cidadania de acordo com a lei emitida pelo regime, tendo sido deportado em
1942. Ocorre que, neste tramite, o advogado acabou por falecer e isso significava a impossibilidade de recuperar
a cidadania alem de acordo com o artigo 16, pargrafo 2 da Lei Fundamental. Mas o Tribunal chega a
concluso de que o advogado nunca havia perdido a cidadania alem por que a lei que assim estipulava era
extremamente injusta, sendo, portanto, nula ab initio (Cf. ALEXY, Robert. El concepto y la validez del derecho.
Traduo de Jorge M. Sea. 2 ed. Barcelona: Gedisa, 1997, p. 15 e segs.)
136
Co mo afirma Adeodato, A teoria dos valores de Hartmann segue as linhas bsicas da tica de Max Scheler e
teve grande repercusso, sendo at hoje um dos maiores exemplos da doutrina axiolgica objetivista, segundo a
qual os chamados valores no so criao humana mas existem no universo independentemente de serem ou no
realizados, compreendidos ou sequer percebidos por quem quer que seja. Apesar de Scheler e Hartmann
postularem, na mesma linha de Radbruch, uma objetividade dos valores, preciso ressaltar que,
diferentemente deste, eles no aceitavam acriticamente a noo de dever puro presente na tica kantiana. Tanto
Scheler como Hartmann criticavam a tica kantiana em pelo menos trs pontos principais: o subjetivismo, o
formalismo e o intelectualismo (Cf. ADEODATO, Joo Maurcio. op., cit., p. 153 e segs.)
137
Veja-se, neste sentido, o que afirma Kaufmann a respeito de Radbruch: Em contrapartida, a impresso
causada pelo Estado de no direito nacional-socialista nunca levou Radbruch a desligar-se totalmente do
positivismo; ele nunca sacrificou a segurana jurdica como elemento da idia de direito a um vago conceito de
direito natural. No existem quaisquer indcios de que Radbruch alguma vez tenha tido em mente uma renovao
da idia de direito natural clssica, de acordo com a qual se pode deduzir todo um sistema de proposies
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107
Metafsica sem fugir da pergunta pelo homem e pelo mundo e que, ao mesmo tempo, torne
possvel a caracterizao de um modo no matemtico de pensar. Esse espao pode ser
encontrado na fenomenologia hermenutica de Martin Heidegger. Mas como podemos dizer
que a fenomenologia pode nos dar tudo isso no mbito do direito? Para respondermos a esta
pergunta teremos primeiro que compreender, de uma maneira mais radical, por que todas as
tentativas desenvolvidas na filosofia e na teoria do direito de superar a metafsica foram
frustradas. Isso ser conquistado a partir da interpretao que Heidegger faz da prpria
metafsica, interpretao esta em que o prprio Kant aparecer, no como um autor que
pretende fundamentar as cincias naturais, mas como aquele que fundamentou a metafsica.
Depois que tornarmos claro o que significa para Heidegger Metafsica, poderemos passar
adiante para a caracterizao das principais transformaes que seu paradigma filosfico nos
legou, para aproxim- las sobre a temtica desta investigao no ltimo captulo, quando
trataremos especificamente do conceito de princpio.
108
CAPTULO III
FENOMENOLOGIA
HERMENUTICA
DIREITO:
109
138
Por outro lado, temos o testemunho de Hans-Georg Gadamer que aponta para o
impacto que causara a linguagem de Heidegger nos anos que sucederam a realizao do curso
Hermenutica da Faticidade e que nos serve para perceber em que direo se encaminha o
pensamento heideggeriano e como podemos pensar sua relao com o direito:
Quando cheguei em 1923 a Freiburg, tive o privilgio de ser
convidado por Heidegger para ler Aristteles com ele uma vez por
semana. (...) Ele comeou com a seguinte proposio: To on legetai,
o ente ... Como tinha aprendido antes disso em Marburgo, era
claro que se tinha de traduzir aqui: O ser compreendido, ou
concebido ou pensado. Em Heidegger, tnhamos: Ele falado, ou
seja, assim que se fala sobre isso. Portanto, se levava a srio o
legesthai, o legein, ta legomena, e, com isso, tudo aquilo que seguiu a
partir de Plato e de seu Scrates como fuga em direo aos logoi.
Tudo isso designa a linguagem e aquilo que se diz. De uma vez s a
lgica da tradio, uma lgica que ainda se achava base do
idealismo alemo, se transformava na vitalidade de uma realidade
ligada ao mundo da vida. Essa lgica vem ao nosso encontro na
linguagem.
(...) No caso apresentado estava claro para ns que se compreende
melhor qual a essncia do ser quando se pensa a propriedade
presente (Anwesen) e os alunos de Heidegger tinham aprendido a
reconhecer na questo do ser uma questo autntica. O fato de se
aprende a pensar a vida em todas as suas muitas direes de autointerpretao e de experincia lingsticas representa naturalmente
uma tarefa genrica. A isso pertence a experincia da transcendncia,
a experincia da poesia, da arte, do culto, do rito, do direito tudo
isso precisa ser pensado de maneira nova. Esse era o interesse de
Heidegger. Ele sempre retomou uma vez mais esse caminho. Ns
podemos nos perguntar o que, em nossa cultura marcada pela cincia,
nosso pensamento tem a aprender com essas experincias. Tenho em
vista aqui o seguinte: preciso conquistar um novo equilbrio, de
modo que nosso pensamento no se esgote apenas no domnio (e
explorao) da natureza, isto , na disponibilizao de tudo, ns
mesmos inclusive139 .
138
HEIDEGGER,
Martin.
Hermeneutica
de
la
Faticidad.
Texto
disponvel
em
www.heideggeriana.com.ar/hermeneutica/indice.htm. Acessado em 27 de julho de 2007.
139
GADAMER, Hans-Georg. Hermenutica em Retrospectiva: Heidegger em retrospectiva. Traduo de Marco
Antnio Casanova. Petrpolis: Vozes, 2007, p. 35 Grifamos.
110
140
HEIDEGGER, Martin. Que Metafsica? In: Escritos e Conferncias Filosficas. Traduo de Ernildo Stein.
So Paulo: Abril Cultural, 2005, p. 62.
111
141
142
112
143
113
146
importante lembrar que h no tambm direito uma profunda dimenso ritualstica. O que dizer do Tribunal
do Jri, em sede de processo penal; ou ainda, dos rituais solenes de julgamento nos tribunais superiores; e o
processo civil, que nomeia expressamente os seus principais procedimentos como rito ordinrio e rito sumrio?
147
HEIDEGGER, Martin. Que Metafsica. op., cit., p. 69.
114
148
115
uma in-deciso fundamental quanto ao objeto da Filosofia; uma indeciso com relao quilo
que essencialmente define a Filosofia visto que sempre se procurou definir a Filosofia a partir
de um objeto, de um campo objetivo do ente no qual deveria se instalar a reflexo Filosfica.
Ora, tambm as cincias tratam de objetos. Isso, por si s, aponta para um problema: Qual o
espao da Filosofia e qual o espao das Cincias tendo em vista o mbito de abordagem do
objeto (ente) que cada qual deveria realizar? Isso sempre gerou embarao, criando uma
espcie de cabo de guerra entre a Filosofia e os diversos campos especficos do
conhecimento, como o caso do Direito; das Cincias Matemticas; da Biologia; da
Antropologia; da Sociologia etc. Nesta disputa, no era raro que, por vezes, fosse atribuda
Filosofia uma responsabilidade maior do que ela prpria podia suportar, servindo de fiadora
de teorias produzidas nestes campos especficos do conhecimento, do mesmo modo que
principalmente a partir da revoluo cientfica do sculo 17 as Cincias passaram a
reivindicar um espao que exclua a Filosofia do campo de ao do conhecimento. A
Filosofia, ento, passava a ser vista como algo inefetivo, incapaz de transformar o mundo real,
algo que s as Cincias entendidas no sentido que lhes d a modernidade poderiam
efetuar.
Heidegger identifica neste ponto, o impasse fundamental da Metafsica. Impasse
esse que se mostra presente j na formao do termo, que nos remete Filosofia Primeira de
Aristteles. O filsofo mostra como a Filosofia se encaminha at o surgimento da academia
com Plato e Aristteles. Com a consagrao da academia, estava preparado o terreno para a
formao das disciplinas escolares da Filosofia. Da sistematizao operada em torno do
estudo acadmico da Filosofia, se formam trs disciplinas: a lgica enquanto disciplina da
correta ordenao do pensamento, da argumentao e da retrica; a fsica onde estavam
presentes os estudos sobre o mundo fsico, o mundo sensvel, a natureza; e a tica enquanto
disciplina ligada ao agir humano. Em conjunto com estas disciplinas especficas, havia uma
quarta que Aristteles chamava de Filosofia Primeira e que possua como essncia a pergunta
do ente enquanto ente. Era neste mbito que Aristteles colocava a questo posta pela
primeira vez pelo pr-socrtico Parmnides: a pergunta pelo ser. Portanto, a Filosofia
Primeira de Aristteles se apresenta como aquilo que mais tarde seria denominado de
Existem pontos de convergncia que em alguns momentos aproximam as duas tradies, que se do nos temas
da superao da metafsica e da colocao da reflexo filosfica no mbito da linguagem de modo a no admitir
mais a dissociao entre pensamento e linguagem (movimento conhecido como lingistic turn giro
lingstico). Contudo, cada uma delas apontar caminhos diferentes tanto no que atina questo da linguagem,
ou ao papel da Filosofia em relao linguagem, quanto em relao superao da metafsica. Pelos limites
desta investigao no abordaremos todo este debate. Nos limitaremos a expor aqui como a tradio que
DAgostini chama continental representada por Martin Heidegger interpreta a questo.
116
ontologia 150 , como pergunta pelo ser que assume a forma da pergunta do ente enquanto ente.
No cabe aqui tratar minuciosamente o que cada uma destas disciplinas aborda. Importa
apenas perceber como surge o termo Metafsica, em que contexto ele assume um sentido
tcnico e qual o impasse que se apresenta nesta formao.
150
Importante destacar, com Ernildo Stein, que ontologia no era um termo conhecido pelos gregos e tampouco
pelos medievais. O termo ontologia foi criado no renascimento e no existia na Idade Mdia. Foi criado por
Klauberg e usado corriqueiramente para designar o estudo do ser enquanto ser, vindo a substituir os termos
anteriores reservados a designar esse campo de investigao do conhecimento, entre os quais podemos destacar:
Metafsica, Teologia e Filosofia Primeira Cf. STEIN, Ernildo. Racionalidade e Existncia. Uma introduo
Filsofia. Porto Alegre: L&PM, 1988, p. 77.
151
Cf. HEIDEGGER, Martin. Os Conceitos Fundamentais da Metafsica: Mundo Finitude Solido.
Traduo de Marco Antnio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2003, pp. 42 e segs. O filsofo
alerta, ainda, que o essencial aqui que nos coloquemos diante da situao fatal: atravs desta designao, no
se caracteriza a filosofia propriamente dita segundo o contedo, segundo sua problemtica particular, mas
segundo um ttulo que deveria indicar sua posio na ordenao dos escritos: T met t physik. O que
denominamos metafsica uma expresso que emerge de uma perplexidade, um termo para um impasse, um
termo puramente tcnico que, por si s, quanto ao seu contedo no diz absolutamente nada.
117
152
Ibid, p. 47.
Cf. HEIDEGGER, Martin. Ser y Tiempo. Traduo de Jorge Eduardo Rivera. Madrid: Trotta, 2003, p. 45.
Neste ponto importante fazer meno desde j ao pargrafo 6 de Ser e Tempo em que o filsofo expe a tarefa
de destruio das ontologias da tradio que ele se prope a efetuar. Procurando desenvolver esta questo,
Heidegger afirma que o mundo, a tradio, produz reflexos em nosso ser de modo que muitas vezes o
compreendemos prisioneiros da prpria tradio. Ela no se mostra desde sempre acessvel ao Ser-a de forma
clara e transparente. Pelo contrrio, a tradio, que desse modo o Ser-a chega a dominar, no faz propriamente
acessvel o transmitido por ela, mas, imediata e regularmente o encobre. Converte o legado da tradio em
coisa bvia e obstrui o acesso s fontes originrias de onde foram tomadas. Mais adiante, o filsofo afirma
tambm que: La tradicin nos hace incluso olvidar semejante origen. Ella insensibiliza hasta para comprender
siquiera la necesidad de un tal retorno. La tradicin desarraiga tan hondamente la historicidad del Dasein, que
ste no se mover ya sino en funcin del inters por la variedad de posibles tipos, corrientes y puntos de vista del
filosofar en las ms lejanas y extraas culturas, y buscar encubrir bajo este inters la propia falta de
fundamento. La consecuencia ser que el Dasein, en medio de todo ese inters histrico y pese a su celo por una
interpretacin filolgicamente objetiva, ya no comprender aquellas elementales condiciones sin las cuales no
es posible un retorno positivo al pasado, es decir, una apropiacin productiva del mismo.
153
118
nos foi legado pelo termo latino Metafsica aponta para um equvoco que acaba por encobrir o
que h de mais essencial na Filosofia.
Deste problema tcnico e filolgico, o filsofo aponta para um outro impasse
no necessariamente vinculado ao primeiro mas que, de alguma forma, aponta para o estado
de embarao filosfico que permeia toda tradio metafsica.
3.2.2. O impasse ante o mais digno de ser pensado: de como a Filosofia como Metafsica
deixou algo essencial impensado.
119
ontologia, ou seja, como a pergunta do ente enquanto ente, a pergunta pelo ser a Filosofia
reunia em si de maneira suprema aquelas qualidades que so constitutivas para o saber154 .
Portanto, o grande problema da Filosofia o problema do conhecimento. Isso porque, na
Filosofia sempre est em jogo a resposta da pergunta de como possvel que ns, enquanto
seres humanos, podemos conhecer algo e como se d este conhecimento.
O que entre os gregos foi levantado desde os pr-socrticos principalmente em
Parmnides e Herclito e que em Aristteles atinge seu apogeu que todo problema do
conhecimento se relaciona de algum modo com a idia de ser. Isto porque, sempre que
referimos a algo e, portanto, o conhecemos precisamos dizer que esse algo . Um conceito
ou uma definio do conceito de princpio, por exemplo, comea sempre com: princpio
jurdico .... Ao mesmo tempo, o princpio se mostra com um ente, como um objeto
disponvel do conhecimento. Mas para poder mencion- lo na expectativa de que o prprio
jurista se compreenda ou mesmo que aqueles com quem ele dialoga o compreendam, ele
necessariamente ter que dizer que o princpio jurdico .... O fato de que o ente no seu
ser espantava os gregos fazendo emergir entre eles a pergunta propriamente filosfica: Como
pode isto? Todo ente ser? Qual o sentido deste ser? Que tipo de conceito esse de ser? o
ser apreensvel como categoria? 155 .
O que Heidegger vem demonstrar que, com a Filosofia socrtico-platnica que
determinar todo pensamento da tradio metafsica a questo fundamental do ser,
sumariamente descrita acima, passa a ser esquecida, pela referncia que se faz a um ente. O
ser passa a ser visto como um fundamento objetivo de todas as demais ontologias regionais,
como causa primeira. Dito de outro modo, quando a metafsica se v diante do enigma do
ser, ela foge para um ente que ter como misso ocupar a lacuna deixada pelo ser. assim
que a Metafsica deixar impensado aquilo que h de mais fundamental para o pensamento: o
sentido do ser, pois o explicar a partir de um ente, transformando o ser em um objeto. Isso
o que propriamente se quer mencionar quando se fala em objetificao ou entificao: a
explicitao do ser atravs de um ente, que assume um carter (arbitrrio) de totalidade, de
fundamento no qual todo conhecimento se atrela.
Diante disso, e a partir dos procedimentos da fenomenologia hermenutica,
Heidegger passar a identificar em toda tradio filosfica que ele chamar de metafsica, um
154
Cf. STEIN, Ernildo. Diferena e Metafsica: Ensaios sobre a Desconstruo. Porto Alegre: Edipucrs, 2000,
p. 245.
155
Cf. HEIDEGGER, Martin. O que isto A Filosofia? In: Conferencias e Escritos Filosficos. Traduo de
Ernildo Stein. So Paulo: Nova Cultural, 2005.
120
destes entes que assume o lugar do ser na Filosofia enquanto metafsica. Assim, ele ir
mostrar que em Plato a Idia representa aquilo que pretende responder o enigma do ser; em
Aristteles a Substncia; na Idade Mdia Deus o ente criador que nos d sentido e nos cuida
enquanto criaturas; em Descartes o Cogito ergo sum; em Kant o Eu Penso que coordena todos
os nossos juzos; em Hegel o Absoluto; e em Nietzche a Vontade de Poder. Em todos estes
casos h um ente que aparece como o mais ente dos entes que responde por aquilo que
deveria ser pensado com ser. Este ente dos entes se apresenta como princpio fundante,
como fundamento causal de todo conhecimento. Da que tais modalidades de ente que
representam o esquecimento do ser, sero chamados de princpios epocais 156 , pois contm,
decisivamente, uma determinao sobre o ente e uma deciso sobre a verdade numa
determinada era 157 -158 .
assim que, na metafsica, se d o encobrimento do ser, ou daquilo que
Heidegger chamar esquecimento do ser, que implica no esquecimento da diferena que
existe entre ser e ente; entre o ontolgico e o ntico.
Esse esquecimento, contudo, no para Heidegger um erro cabal de toda Filosofia
enquanto Metafsica. Nem implica isso um apagamento de toda tradio com um possvel
recomeo, situado na filosofia pr-socrtica. Para Heidegger, a questo est em perceber o
equvoco cometido pela tradio metafsica e retirar o mais digno de ser pensado do
esquecimento a que foi submetido. Isso poder ser feito pela fenomenologia hermenutica, em
que se procura desenvo lver um modo de acesso ao ser e se possa pensar o seu sentido.
Portanto, na metafsica se instala um estado de profundo embarao filosfico
porque, em primeiro lugar, remete o que propriamente filosfico para um mbito de
obscuridade, fazendo com que aquilo que fundamental, seja encarado como o que fica por
trs ou, como ser transformado posteriormente, como aquilo que remete para um lugar alm
do ente, para uma espcie de mundo paralelo. Em segundo lugar, porque confunde aquilo
156
121
159
Para uma anlise pormenorizada: STEIN, Ernildo. Compreenso e Finitude: Estrutura e Movimento da
Interrogao Heideggeriana. Iju: Editora Uniju, 2001, em especial a Introduo A questo do Ser e da
Verdade, neste trabalho o filsofo gacho chama ateno para o seguinte: Em Heidegger, a busca da verdade
do ser, do sentido do ser, comea pela analtica existencial. Nas estruturas da finitude e da temporalidade do sera, Heidegger procura desvelar o horizonte em que se manifeste o sentido do ser. Segundo Stein a filosofia da
fintude que Heidegger inaugura opera um encurtamento hermenutico que exclui da reflexo filosfica aquilo
que a tradio metafsica nunca conseguiu explicar: o conceito natural de mundo e Deus que, segundo o autor,
teria entrado pelas portas dos fundos na filosofia.
122
123
FIGAL, Gnter. Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade. Traduo de Marco Antnio Casanova.
Rio de Jeneiro: Forense Universitria, 2005, pp. 55-56.
124
Dessa forma, Heidegger desloca o homem para dentro da ontologia incluindo o seu modo-deser na problemtica ontolgica e transforma a reflexo filosfica em uma ontologia da
compreenso. assim que Heidegger recolocar a pergunta capilar de Kant: o que o
homem? numa dimenso existencial. Atravs de sua fenomenologia, Heidegger mostra como
no possvel explicar o que o homem, mas apenas compreender como ele . Portanto, na
ontologia fundamental procura-se constituir um horizonte a partir do qual se possa pensar o
ser enquanto ser, ao invs do ente enquanto ente que caracterizava a ontologia desde
Aristteles. Diante da ontologia fundamental importa pensar a diferena que existe entre ente
e ser; uma diferena constituidora de sentido na qual desde sempre nos movemos ainda que
dela no tenhamos nos dados conta: a diferena ontolgica.
Conforme esclarece Stein, h dois nveis que, desde Aristteles, esto
consagrados na ontologia:
o nvel do ente enquanto ente e o nvel do ser do ente. A tradio
metafsica aborda esses nveis de maneira objetivstica. Ela trata os
dois nveis como objetos a serem conhecidos. Os diversos autores, at
a Idade Mdia, do formas vrias ao conhecimento deste objeto, mas
sempre se examina o modo como so conhecidos, mas no se pergunta
porque eles no so questionados enquanto so condies de
possibilidade, razo pela qual Aristteles permanece nos dois nveis.
Quando Heidegger introduz um ente privilegiado, o Dasein, aparece
outro nvel de problematizao do ser. O ser no se d isolado como
objeto a ser conhecido; mas ele faz parte da condio essencia l do ser
humano. O Dasein compreende o ser e por isso tem acesso aos entes.
Sem essa compreenso nada se move no conhecimento, tudo
permanece opaco. Mas assim como pelo ser compreende os entes,
compreende-se tambm como ente; e no apenas isso. Compreende o
ser porque compreende a si mesmo e se compreende porque
compreende o ser 161 .
Desse modo, podemos perceber que pelo teorema da diferena ontolgica que o
filsofo retoma como questo aquilo que foi deixado de lado pela Metafsica: o ser.
Mas essa retomada no se d de uma forma, por assim dizer, aleatria. H uma
movimentao estrutural de pensamento que permite ao filsofo retratar a diferena
ontolgica de uma forma muito prpria, inteiramente nova na histria da filosofia. Isso se d
porque Heidegger introduz o Ser-a (Dasein) na pergunta pelo sentido do ser. A introduo do
Ser-a s possvel pela apropriao que o filsofo faz da tradio hermenutica, dando a esta
161
STEIN, Ernildo. Diferena e Metafsica. Ensaios sobre a desconstruo. Porto Alegre: Edipucrs, 2000, p.
103 (itlicos do original).
125
uma roupagem fenomenolgica. Nas linhas que seguem, procuraremos explicitar essa
transformao.
Tudo o que foi mencionado anteriormente somente pde-se dar a partir de uma
transformao fundamental da compreenso que tradicionalmente se tinha de Hermenutica.
uma transformao na qual Heidegger ocupa, novamente, um lugar central. Com efeito, tal
qual se d com o giro ontolgico, tambm a hermenutica tomada por Heidegger num
sentido totalmente novo na Histria da Filosofia. No seria exagero dizer que a apropriao
que o filsofo faz da hermenutica que o possibilita realizar o giro ontolgico, de modo que
possvel falar em um giro ontolgico-hermenutico.
Dado a centralidade que essa forma de compreender a hermenutica assume em nossa
reflexo, importante discorrermos um pouco mais sobre essa transformao.
Hermenutica tradicionalmente vista como teoria ou arte da interpretao. Sua
origem no pode ser auferida com preciso, mas, filologicamente, possvel afirmar que
remonta aos gregos, mais precisamente ao mitolgico Deus Hermes. Na verdade, no interior
da mitologia grega, Hermes era um semi-Deus, dotado da funo de mensageiro: Era
Hermes o encarregado de traduzir, para linguagem humana, aquilo que era dito entre os
Deuses. Da que, etimologicamente, Hermenutica derive de Hermes e que seja tomada por
um forte contedo de mediao e, conseqentemente, interpretao. Teoricamente, a
hermenutica assume relevo no contexto da Reforma Protestante, sendo empregada como
tcnica interpretativa na exegese dos textos bblicos. Tambm os demais campos do
conhecimento que dependem substancialmente da interpretao de textos para se movimentar
(Direito e Filologia), passam a incorporar estudos hermenuticos que dessem conta dos
problemas interpretativos que surgiam no contexto de seu mbito de interesses.
Mas com o romantismo alemo que a hermenutica assumir seus contornos mais
sofisticados (ainda que permanea como uma disciplina auxiliar para interpretao de textos),
chegando a ser tematizada expressamente como filosofia dotada de uma universalidade.
Novamente um telogo, Schleiermacher, quem efetuar esta tarefa. O que estava na linha de
162
Cf. STEIN, Ernildo. Histria e Ideologia. Porto Alegre: Movimento, 1972, pp. 11-19.
126
163
Para uma ampla explorao histrica da hermenutica, do romantismo alemo at Dilthey: GADAMER,
Hans-Georg. Verdade e Mtodo. Traos Fundamentais de Uma Hermenutica Filosfica. Traduo de Flvio
Paulo Meurer. 3 ed. Petrpolis: Vozes, 1999, pp. 237-353. importante salientar que no plano da hermenutica
jurdica as conquistas de SCHEILIERMACHER permaneceram inexploradas durante muito tempo. Ao contrrio
das outras disciplinas hermenuticas (Teologia e Filologia), o Direito permaneceu recluso nos padres
tradicionais de exegese que foram constitudos no interior da interpretao cannica da bblia compilados por
Savigny no seio do historicismo. So de todos conhecidos os tradicionais mtodos de interpretao: gramatical;
histrico; lgico-sistemtico. Posteriormente, Jhering para muitos o fundador intelectual da chamada
jurisprudncia dos interesses introduz o mtodo teleolgico. s com o jurista italiano Emlio Betti que o
circulo hermenutico de Schleiermacher ser introduzido no pensamento jurdico, assim mesmo, procurando
criar cnones especficos para o desenrolar a interpretao jurdica. Para um contexto geral de tudo o que foi dito
Cf. LAMEGO, Jos. op., cit..
164
Cf.
HEIDEGGER,
Martin.
Hermeneutica
de
la
Faticidad.
Texto
disponvel
em
www.heideggeriana.com.ar/hermeneutica/indice.htm. Acessado em 27 de julho de 2007.
127
Linhas acima, para explicar o giro ontolgico de Heidegger, afirmamos que o filsofo
d ao homem o nome de Ser-a e que o modo de ser deste ente a existncia. Todavia,
dissemos tambm que este ente que somos ns chamado Ser-a o que ele j foi, ou seja:
o seu passado. Podemos dizer que isso representa aquilo que desde sempre nos atormenta e
que est presente em duas perguntas: de onde viemos? Para onde vamos? A primeira pergunta
nos remete ao passado, a segunda ao futuro. O passado selo histrico imprimido em nosso
ser: Faticidade; o futuro o ter-que-ser que caracteriza o modo-de-ser do ente que somos
(Ser-a): Existncia. Portanto, a hermenutica no artificialmente cultivada e imposta desde
fora existncia; mas a faticidade mesma desde onde h que se averiguar em que medida e
quando esta faticidade exige algo assim como uma compreenso/interpretao hermenutica.
Em outras palavras, compreender o ser (faticidade) do Ser-a e permitir a abertura do
horizonte para o qual ele se encaminha (existncia).
Aquilo que tinha um carter ntico, voltado para textos, assume uma dimenso
ontolgica visando a compreenso do ser do Ser-a. Note-se: de um modo completamente
inovador, Heidegger crava a reflexo filosfica na concretude, no plano prtico e precrio da
existncia humana 165 . Por certo que essa reflexo reclama um distanciamento para perceber
aquilo que de ns est mais prximo (nosso modo de ser, a tradio em que estamos imersos
etc.). Porm, esse distanciamento parte de algo concreto (faticidade) e procura compreender
aquilo que ns mesmos j somos. Mas ns compreendemos o que ns mesmos j somos na
medida em que compreendemos o sentido do ser. Tambm j alertamos para o fato de que
homem (Ser-a) e ser esto unidos por um vnculo indissocivel. Isto porque, em tudo aquilo
com que se rela ciona, o Ser-a j compreendeu o ser, ainda que ele no se d conta disso. H,
em toda ao humana, uma compreenso antecipadora do ser que permite que o Ser-a se
movimente no mundo para alm de um agir no universo meramente emprico, ligado a
objetos. Nos relacionamos com as coisas, com o emprico, porque de algum modo j sabemos
o qu e como elas so. H algo que acontece, alm da pura relao objetivadora 166 . E esse
165
Neste ponto, so novamente valiosas as lies de Ernildo Stein: Decisivo se torna, principalmente, aquilo
que, alm do que o homem quer e faz, o determina: a tradio, que o carrega consigo e da qual o homem deve,
contudo, tomar distncia para torn-la transparente. O homem moderno, cansado de possibilidades e faminto de
certeza, somente se redimir pela conscincia hermenutica. A compreenso deve decidir seus passos ainda que
o pensamento artificial tenha reduzido o impondervel. (...) A hermenutica o estatuto em que o homem
ausculta sua temporalidade. Nesta temporalidade o homem peregrina e deixa sinais ao longo do caminho. O sinal
mais decisivo a linguagem. A fora do tempo reside na historicidade do homem e desabrocha na palavra. por
isso que a paisagem humana se povoa de verbos. Eles conjugam a unidade das dimenses do homem na
temporalidade. A exegese do verbo, a hermenutica da palavra, a explorao de nossa condio humana que
acontece como histria STEIN, Ernildo. Histria e Ideologia. op., cit., pp. 18-19.
166
Para uma anlise pormenorizada Cf. STEIN, Ernildo. Pensar Pensar a Diferena. A Filosofia e o
conhecimento Emprico. Iju: Editora Uniju, 2002.
128
129
se fora da unidade que a compreenso que o Ser-a tem do ser. A partir da compreenso
entendida como totalidade que possvel perceber que h entre o ente e o ser uma
diferena. Esta, como j vimos, a diferena que Heidegger chama de diferena ontolgica e
se d pelo fato de que todo ente s no seu ser. Em outras palavras, a pergunta se dirige para
o ente, na perspectiva de o compreendermos em seu ser.
Falamos do Circulo Hermenutico e da diferena ontolgica que so os dois teoremas
fundamentais da fenomenologia hermenutica. Sabemos, ento que o homem (Ser-a)
compreende a si mesmo e compreende o ser (Circulo hermenutico) na medida em que
pergunta pelos entes em seu ser (diferena ontolgica).
De plano, o fenmeno que toma frente nesta curta exposio a compreenso. A partir
de Heidegger a hermenutica ter razes existncias porque se dirige para compreenso do
ser-dos-entes. Como nos lembra Streck, se nos paradigmas anteriores vigia a crena de que
primeiro interpretamos atravs de um mtodo para depois compreender; Heidegger nos
mostra, a partir da descrio fenomenolgica realizada pela analtica existencial, que
compreendemos para interpretar169 . A interpretao sempre derivada da compreenso
que temos do ser-dos-entes. Ou seja, originariamente o Ser-a compreende o ente em seu ser
e, de uma forma derivada, torna explicita essa compreenso atravs da interpretao
(Auslegung). Na interpretao procuramos manifestar onticamente aquilo que foi resultado de
uma compreenso ontolgica. A interpretao o momento discursivo-argumentativo em que
falamos dos entes (Direito, histria etc.) pela compreenso que temos de seu ser 170 .
E como desde sempre compreendemos o ser, no h uma ponte entre conscincia e
mundo. Aquilo que era reivindicado por Kant foi desmistificado por Heidegger no momento
em que o filsofo descobriu o vinculo entre homem e ser. No h uma ponte entre conscincia
e mundo porque desde sempre j estamos no mundo compreendendo o ser. Ou seja, h um
vnculo entre ser-a-ser e uma co-originaridade entre ser e mundo. No h primeiro o Ser-a e
depois o mundo ou vise-versa. O Ser-a ser-no- mundo e sua faticidade estar-jogado- no-
169
Cf. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdio Constitucional e Hermenutica. op. cit., p. 197 e segs.
Assim fala Heidegger: En la interpretacin el comprender se apropia comprensoramente de lo comprendido
por l. En la interpretacin el comprender no se convierte en otra cosa, sino que llega a ser l mismo. La
interpretacin se funda existencialmente en el comprender, y no es ste el que llega a ser por medio de aqulla.
La interpretacin no consiste en tomar conocimiento de lo comprendido, sino en la elaboracin de las
posibilidades proyectadas en el comprender (HEIDEGGER, Martin. Ser y Tiempo. op., cit., p. 172 Grifamos).
170
130
mundo; sua existncia ter-que-ser-no- mundo, sendo que, desde sempre, est junto aos
entes 171 .
H outras peculiaridades que poderamos explorar na transformao que se opera na
Filosofia com o pensamento heideggeriano. Para efeitos desta investigao, nos damos por
satisfeitos com a compreenso de que a hermenutica recebe, a partir de ento, um novo
tratamento, sendo alada a um nvel de verdadeira filosofia prtica 172 . O que precisa ficar
estabelecido que o homem (Ser-a) se apresenta no centro do mundo, reunindo os fios deste.
Ao escolher Ser-a como ponto central de sua filosofia, HEIDEGGER no se concentra em
um ente com excluso de outros; o Ser-a traz consigo o mundo inteiro 173 . Isso assim porque
o Ser-a desde sempre ser- no-mundo; porque sua condio , em si compreendendo,
compreender o ser (Circulo Hermenutico); e compreende o ser atravs da pergunta pelo ente
(diferena ontolgica).
Captar as estruturas da compreenso (que como vimos sempre histrica) no
possvel ser feito pela via do mtodo, uma vez que como elemento interpretativo, o mtodo
sempre chega tarde. O que organiza o pensamento e comanda a compreenso no uma
estrutura metodolgica rgida como acreditava Schleiermacher mas a diferena
ontolgica.
3.3.2. Diferena Ontolgica e a Analtica do Dasein.
Como o ser o que explica o do que , ento o homem, o nico que pode dizer
, deve ter um acesso privilegiado ao ser, uma abertura para ele por motivo do que pode
transcender os entes para a compreenso do ser. Segue-se, portanto, que, se ns queremos
171
131
investigar o significado do ser, o nico meio de faz- lo, a nica e exclusiva via de acesso seria
explorar essa compreenso do ser que o homem possui ao dizer , mesmo quando ele prprio
no se d conta disso 174 .
Em Heidegger o ente homem, assume uma terminologia especfica que procura
retir- lo de toda conotao humanista que reveste a concepo de homem da tradio
metafsica. Como anota Stein, para retirar o homem das explicaes objetificadoras e
entificadoras existentes no interior da tradio, que procurava explic-lo atravs de categorias,
Heidegger procura apresentar e explicitar fenomenologicamente os existncias que permitem
compreender o ente homem em sua estrutura global175 . O termo existencial aponta j para
uma interpretao muito prpria do filsofo: de que o homem o nico, entre todos os entes,
que existe, e dessa forma o homem, o ser humano Dasein 176 . Assim, a analtica existencial
pretende dar conta da explicitao das estruturas existenciais que permitam compreender o ser
do ente que existe: o Dasein 177 .
174
Cf. RICHARDSON, Willian Jay. Humanismo e Psicologia Existencial. In: Psicologia Existencial-humanista.
Rio de Janeiro: Zahar editores, 1975, pp.167-184.
175
Cf. STEIN, Ernildo. Introduo ao Pensamento de Martin Heidegger. Porto Alegre: Edipucrs, 2002, pp. 52 e
segs.
176
O termo alemo Dasein tradicionalmente designa existncia ( neste sentido que usado por filsofos da
tradio metafsica, como o caso de Kant, por exemplo), encontra srios problemas na traduo para outras
lnguas. Isso porque Heidegger oferece ao termo uma conotao diferenciada que mantm o significado inicial
de existncia, mas no sentido daquele ente que, entre todos os outros, existe, que homem. Para Heidegger
somente o Dasein exis te, porque existncia implica possibilidades, projetos. Os demais entes intramundanos, que
esto disposio subsistem. Como ficar claro no decorrer da exposio, h toda uma carga semntica em torno
do termo Dasein, que dificulta a traduo para o portugus, por exemplo. Em nossa lngua h pelo menos duas
tradues possveis: Ser-a e Pre-sena. Esta ltima o termo escolhido pela traduo brasileira de Mrcia S
Cavalcante Schuback editada pela editora Vozes de Petrpolis (Cf. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 12 ed.,
parte I. Trad. Mrcia S Cavalcante Schuback. Petrpolis: Vozes, 2002; HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 12
ed., parte II. Trad. Mrcia S Cavalcante Schuback. Petrpolis: Vozes, 2005) Ambas as tradues so passveis
de equvocos ou mal-entendidos. Todavia, optamos por traduzir Dasein por Ser-a visto que Pr-sena pode ser
confundido com a representao tradicional do ser em geral como pre-sente, o que definitivamente no est em
jogo no uso que Heidegger faz da expresso Dasein. Importante anotar, que na traduo que Jos Eduardo
Rivera realizou para o castelhano (e que a traduo que utilizamos no presente trabalho), o filsofo chileno
optou por deixar Dasein sem traduo, procurando preservar toda carga semntica que a expresso contm em
alemo (Cf. HEIDEGGER, Martin. Ser y Tiempo. op., cit..). Por motivos didticos, ns sempre utilizaremos a
expresso Ser-a como traduo para Dasein. Esclarecendo a questo do Dasein Michael Inwood afirma que:
Dasein o modo de Heidegger referir-se tanto ao ser humano quanto ao tipo de ser que os seres humanos tm.
Vem do verbo dasein que significa existir ou estar a, estar aqui. O substantivo Dasein usado por outros
filsofos, Kant por exemplo para designar a existncia de toda entidade. Mas Heidegger restringe-o aos seres
humanos. (...) Por que Heidegger fala do ser humano dessa maneira? O ser dos seres humanos notadamente
distinto dos ser de outras entidades do mundo. O Dasein uma entidade para a qual, em seu Ser, esse Ser uma
questo. INWOOD, Michel. op. cit., pp. 33-34.
177
Sobre esta questo Michael Inwood afirma que: Dasein o modo de Heidegger referir-se tanto ao ser
humano quanto ao tipo de ser que os seres humanos tm. Vem do verbo dasein que significa existir ou estar a,
estar aqui. O substantivo Dasein usado por outros filsofos, Kant por exemplo para designar a existncia de
toda entidade. Mas Heidegger restringe-o aos seres humanos. (...) Por que Heidegger fala do ser humano dessa
maneira? O ser dos seres humanos notadamente distinto dos ser de outras entidades do mundo. O Dasein uma
entidade para a qual, em seu Ser, esse Ser uma questo. INWOOD, Michel. Heidegger. Traduo de Adail
Ubirajara Sobral. So Paulo: Loyola, 2004, pp. 33-34.
132
178
Idem, p.33.
Cf. HEIDEGGER, Martin. Ser y Tiempo. op. cit., p. 61.
180
Idem, p. 167.
179
133
conscincia e mundo no s no precisa ser procurada, mas exatamente essa procura que
leva a filosofia ao equvoco do esquecimento do ser e da diferena ontolgica.
Diante disso, fica claro porque em Ser e Tempo Heidegger responde a Kant
dizendo que o escndalo da Filosofia no ainda no termos encontrados uma ponte entre
conscincia e mundo, ou seja, entre o sujeito e os objetos; entre um sujeito que conhece e salta
de objeto em objeto at preencher uma determinada totalidade de entes chamada mundo,
mas sim ainda estarmos procurando esta ponte. A estrutura de ser-no- mundo do Dasein
responde a Kant porque mostra como desde sempre o Dasein j se relaciona com os outros
entes enquanto os compreende em seu ser. Portanto, a totalidade do mundo no pode ser
determinada a partir de uma somatria dos entes ou objetos que compem o conhecimento do
Dasein, mas sim uma totalidade da compreenso, de sua faticidade que o marca
historicamente. O Dasein, no salta de objeto em objeto enquanto conhece coisas, mas os
compreende desde-j-sempre, enquanto est no centro do mundo, e organiza seu
conhecimento pela diferena ontolgica.
Mas enquanto delimitvamos a questo da diferena ontolgica na estrutura de
ser-no- mundo do Dasein identificando-a como o elemento organizador da compreenso que o
Dasein possui do ser dos entes, falamos muito de compreenso, faticidade e estar- lanado.
Cabe agora delimitar melhor o significado de todos estes elementos a luz da diferena
ontolgica.
Como j ficou claro, o Dasein representa um novo olhar no apenas para o
homem, mas tambm para o modo como conhecemos coisas, entes, objetos. No se trata mais
de uma anlise realista do mundo, nem tampouco de um sujeito transcendental que salta sobre
objetos para conhec- los em sua realidade. O Dasein conhece, porque em seu modo de ser
mais prprio, no mago de sua estrutura existncia se encontra a compreenso. E o Dasein
compreende porque, desde-sempre, se encontra numa relao com o ser. De alguma maneira,
ns somente nos relacionamos com algo, porque sabemos que esse algo , ele significa
alguma coisa para ns.
Mas, em que circunstncias essa compreenso tem lugar?
Segunda a anlise que realiza em seu livro autoconscincia e autodeterminao:
uma interpretao lingstico-analtica, Ernest Tugendhat afirma que o Da do Dasein
indica uma abertura na qual o homem se compreende e compreende o mundo, se projetando
134
como possibilidade sobre si mesmo. Essa abertura propriamente aquilo que distingue o
Dasein das representaes modernas, medievais e antigas a respeito do homem181 .
Mas o Dasein no apenas provocador e abocanhador do ser (projeto-existncia),
mas tambm provocado por sua situao de estar jogado no mundo, da qual ele no tem
escolha (Faticidade).
Desse modo, a abertura do Da conquistada pela diferena ontolgica porque o
Dasein se movimento atravs dos existncias da compreenso e do estado de nimo,
representado pela angustia de seu j-sempre-ser; estar-jogado (faticidade) e, ao mesmo tempo,
ter que decidir-se sobre suas possibilidades (existncia).
Portanto, o Dasein, entre a faticidade e a existncia aquilo que est no meio.
Ainda quanto a angustia, so preciosas as lies de Willian Richardson:
Lanado entre entes, o homem est aberto ao seu Ser e, no entanto, vse estorvado pela sua finitude. A experincia privilegiada pela qual o
homem descobre a unidade do eu a angustia. A angustia um modo
especial da disposio ontolgica, uma afinao afetiva e no-racional
dentro de ns. diferente do medo, porque este sempre uma reao
apreensiva a algo como a broca do dentista. Mas, na angustia, o eu
no est angustiado sobre uma coisa qualquer, mas sobre no-coisa,
em partircular, sobre Nada! Nesse momento, as coisas que tm um
onde nossa volta parecem furtar-se nossa apreenso, perder o seu
significado. Deixamos de sentir- nos vontade entre elas, Somos
alienados delas; tambm somos alienados de todos os outros, do
impessoal, com tudo o que ela diz e faz. Descobrimos haver uma
dimenso que no a cotidiana, um novo horizonte do qual e para o
qual verdadeiramente ec-sistimos, quer chamemos a esse horizonte
simplesmente o Nada, o Mundo ou at o prprio Ser. Atravs do
fenmeno da angustia, o eu torna-se consciente de si mesmo como um
todo unificado, relacionando com os entes dentro do mundo, mas
aberto ao Ser, ao mundo enquanto tal182 .
Resta-nos falar um pouco sobre o Cuidado.
A angustia do estar- lanado, do ter que decidir-se que juntos compem a estrutura
finita da faticidade do Dasein fazem parte da trplice estrutura que compe o modo de ser do
homem que Heidegger denomina Cuidado (Sorge).
Na estrutura trplice do Cuidado esto presentes os trs elementos ontolgicos
fundamentais do Dasein:
181
135
183
Cf. STEIN, Ernildo. Nas proximidades da Antropologia. Iju: Uniju, 2003, pp. 51 e segs.
Texto escrito por Heidegger em resposta questo formulada por Willian Richardson sobre a to falada
viravolta do pensamento heideggeriano, que marcaria uma mudana de rumo desde a questo posta em Ser e
Tempo e nas obras e textos que o circundam, para as obras em que o sentido do ser em sua dimenso temporal
questionado. O texto completo pode ser encontrado em: STEIN, Ernildo. Introduo ao Pensamento de Martin
Heidegger. op. cit., pp. 80-86.
184
136
137
radical entre ser-ser-a, pois a anlise do prprio tempo, enquanto ligado ao ser, se
encaminhou para uma aporia, da qual emerge a necessidade de uma viravolta, cujas razes j
vinham desde. A situao que envolve Tempo e ser numa unidade radical no pudera ser
abordada pela situao hermenutica elaborada em Ser e Tempo. 187
O ponto destacado no nmero 2 mostra como Heidegger comea a manifestar a
idia de que somos tomados, numa determinada era, por uma determinada concepo do ente
e uma determinao da verdade que retm o ser, o encobrindo. Isso simplesmente acontece, e
porque o Ser-a histrico, somos levados por este acontecer; um acontecer encobridor que
por toda parte em que procura o ser o mais digno de ser pensado, o ser da diferena
ontolgica, portanto s encontra o ente. Isso leva o filsofo a falar da metafsica como
histria do esquecimento do ser. na viravolta que aquilo que ficou esquecido dever ser
pensado. Heidegger passar, ento, a investigar os textos da tradio e seus principais autores
procurando demonstrar como, em cada era da Metafsica se deu o esquecimento do ser. E
como somos levados por ele.
por isso que possvel falar em um Destino do ser que na histria da metafsica
acontece e que somos, de alguma forma, levados por este acontecer.
Como adverte Stein:
O projeto de Ser e Tempo, mediante a idia da compreenso do ser,
um projeto que j sempre radica numa histria do ser. H uma
Histria da Filosofia que precede toda discusso da questo da
verdade. E ns somos, na discusso da questo da verdade, herdeiros
de uma longa histria que no conseguimos explicitar plenamente 188 .
187
188
STEIN, Ernildo. Introduo ao Pensamento de Martin Heidegger. op. cit., pp. 89-90.
STEIN, Ernildo. Sobre a Verdade. Lies preliminares ao Pargrafo 44 de Ser e Tempo. Iju: Uniju, 2006, p.
28.
189
138
190
191
Ibid, p. 195.
HEIDEGGER, Martin. Tempo e Ser. op. cit., pp. 256-257.
139
Assim, a partir da diferena ontolgica que o filsofo poder reler toda histria
da filosofia e identificar nela aquilo que ficou esquecido, que permaneceu velado no
desvelamento dos entes, pois o ser acontecia na metafsica como o impensado que ela, no
entanto, encobria metafisicamente, nomeando-o por um ente193 .
Teramos que considerar tambm, o papel preponderante que o jogo binrio de
velamento e des-velamento presente na interpretao heideggeriana da Aletheia desempenha
no contexto da explorao da metafsica como histria do esquecimento do ser, ou como
Destino do Ser. Mas isso ocuparia um outro trabalho, exclusivamente dedicado a este tema.
Nos damos por satisfeitos se conseguimos mostrar como que a diferena ontolgica e o
crculo hermenutico se mostram como uma das chaves heideggerianas para se sair do
problema da metafsica. Por certo, no se trata de uma soluo. Ser e Tempo a prova de que
no existe uma filosofia blindada contra aporias. Porm, a diferena ontolgica
determinante para que se possa perceber os dogmatismos da tradio, abrindo caminho para
construo de novos rumos, no s para Filosofia, mas tambm para as cincias humanas,
enquanto constituio de um saber crtico, consciente e no comprometido com uma
determinada concepo da verdade; uma verdade que se esquece de seu lugar mais prprio
que a dimenso de ser a qual o pensamento no pode jamais renunciar.
192
STEIN, Ernildo. Sobre a Verdade. Lies Preliminares ao pargrafo 44 de Ser e Tempo. Iju: Uniju, 2006, p.
245.
193
Cf. STEIN, Ernildo. Pensar Pensar a Diferena. op. cit., p. 61.
140
194
Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. op. cit., p. 163 e segs..
141
apenas ela estes dois autores so colocados de uma maneira justaposta, como se os
conceitos de princpios com os quais cada um deles opera fossem equivalentes 195 . Todavia,
como ficar claro, a divergncia entre estas duas posies de tal mota que nos levou a
coloc- las em confronto procurando problematizar os pressupostos que operam ocultamente
para que algo como o conceito de princpio possa se manifestar e aparecer. O manifestar e o
aparecer do conceito nos levou a uma problematizao filosfica comprometida em
determinar os vnculos entre o direito e a Metafsica para que fosse possvel apurar em que
medida essa herana chega at ns e influi na determinao do conceito de princpio. A
pretenso de compreender o ente em sua totalidade se apresenta na modernidade pela
afirmao da razo e da subjetividade como fundamento ltimo, que jamais foi () colocada
como questo. Desse modo, permaneceu/permanece inexplorado o modo de ser deste ente
(Cogito, Eu penso etc.) que serve de fundamento metafsico para todos os entes. Tudo isso
aparece no direito com ideal de completude e afirmao racional do direito natural e sua
posterior consagrao nos grandes sistemas codificados do sculo 18. Em alguma medida,
com essa moldura que as metas de segurana e certeza que caracterizam a modernidade
jurdica sero perseguidas a partir da exatido prpria da matemtica. A partir de Kant, a
Metafsica se transforma: deixa de ser conhecimento metafsico e passa a ser metafsica do
conhecimento; a determinao da coisa em si kantiana retira da problemtica filosfica as
meras idias da razo colocando, no palco da razo pura, apenas o conhecimento
fenomnico 196 de base emprica, mas que no se esgota na intuio sensvel, que por isso Kant
chamou de transcendental. Com Heidegger foi possvel determinar o carter matemtico que
se esconde por trs de todo esse processo e que fundamenta a prpria metafsica moderna. O
matemtico no direito pode ser percebido no significado dos princpios gerais do direito e dos
princpios jurdico-epistemolgicos em seu contedo e em sua lgica axiomtica-dedutiva.
Mas no s isso. Em todo esse percurso colocamos Kant como o autor que, de
certo modo, propriamente fundou a filosofia do direito, redefinindo, de modo essencial, as
195
Neste sentido Cf. BARROSO, Luis Roberto. BARCELLOS, Ana Paula de. O comeo da Histria : a Nova
Interpretao Constitucional e o papel dos Princpios no Direito Brasileiro. In: Interpretao Constitucional.
Virglio Afonso da Silva (org.). So Paulo: Malheiros, 2005, pp. 277-279; SARMENTO, Daniel. A Ponderao
de Interesses na Constituio Federal. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2002, pp. 41 e segs; ESPNDOLA, Ruy
Samuel. Conceito de Princpios Constitucionais. 2 ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp. 66 e segs.
Este ltimo, baseado em Paulo Bonavides, chega a falar em um aperfeioamento analtico que Alexy teria
realizado sobre as teses de Dworkin. Em que pese a sofisticao de cada uma destas abordagens mencionadas,
no concordamos com a tese da equivalncia das teses em virtude de, em cada caso Alexy e Dworkin , so
pressupostos distintos que operam para a formao de seus respectivos conceitos de princpios. Atingir estes
pressupostos de fundamental importncia para lanar luz sobre uma questo que merece ser debatida com
maior proficuidade.
196
Fenmeno entendido em seu sentido vulgar, no no sentido fenomenolgico.
142
197
143
Na verdade, como afirma Stein, Kant efetuou uma tentativa de salvao da metafsica a partir da limitao
crtica da razo pura. Todavia, com isso, ele terminou por reduz-la a um problema da razo prtica. No
processo a que se submete a razo pura, esta termina limitada a um campo bem determinado de problemas.
Limitada ao terreno do fenmeno e excluda de suas possibilidades, a anlise da coisa em si, a razo pode
movimentar-se livremente na constituio de um conhecimento sem contradies e sem aporias. As nicas que
sobrevivem se reduzem s antinomias da razo pura. Kant reduz o conhecimento metafsico ao terreno da
discusso do problema das relaes entre intuio (particular) e as categorias ou formas a priori (universal). Este
o mbito em que a metafsica possvel. Os objetos da metafsica tradicional: o mundo, a alma e Deus,
tornam-se objetos da dialtica transcendental, em que apenas so pensados, mas no possuem nenhum contedo
que possa ser conhecido. Kant oculta, no terreno da coisa em si, tudo o que constitua precisamente o elemento
axial da interrogao metafsica. Ele foge dos problemas e assim elimina a aporia que permanece latente na
relao entre fenmeno e coisa em si (STEIN, Ernildo. Melancolia. op. cit., 120 grifamos).
200
importante, neste sentido, a contribuio de Gnter Figal que procura demonstrar como nem em Aristteles
nem em Kant podem ser encontrados elementos que nos leve uma determinao satisfatria da liberdade, o que
representa, de algum modo, o problema do modo inconcilivel como estes autores colocam a racionalidade
prtica e a racionalidade terica. Para o autor: Se conseguimos mostrar que no se pode responder de maneira
satisfatria pergunta sobre a liberdade nem de modo aristotlico nem de modo kantiano, ento algumas coisas
mais falaro a favor de nos orientarmos sistemticamente por Heidegger (FIGAL, Gnter. Martin Heidegger:
Fenomenologia da Liberdade. op. cit., p. 90). Por certo que, em Heidegger, no teremos a questo da liberdade
tematizada como tradicionalmente ela abordada pela tradio no sentido de livre-arbtrio. Ela se liga
transcendncia que acompanha o ser humano e no deve ser encarada como uma caracterstica ligada ao sujeito
(Neste sentido: HEIDEGGER, Martin. Sobre a Essncia do Fundamento. In: Escritos e Conferncias filosficas.
Traduo de Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 2005, p. 140 e segs). Enquanto vinculada transcendncia,
filsofo ligar a liberdade vontade e clareira (Lichtung) (Cf. HEIDEGGER, Martin. Sobre a Essncia da
Verdade In: Escritos e Conferncias filosficas. Traduo de Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 2005, p.
160 e segs.).
144
201
J no pargrafo 6 de Ser e Tempo Heidegger acusa Kant de duas omisses fundamentais, uma decorrente da
outra: 1) a aceitao dogmtica da posio ontolgica de Descartes e sua orientao pela compreenso vulgar e
tradicional do tempo. Essa dupla queda dogmtica kantiana implica na obscura conexo entre o tempo e o eu
penso, que nem sequer chega a ser tematizada por ele; 2) Em virtude de adotar tal posio ontolgica, Kant se
omite em relao realizao de uma ontologia do Dasein (ser-a). Com o cogito, Descartes pretendia
proporcionar uma fundamento novo e seguro para a filosofia. Mas este novo comeo radical deixa
indeterminado o modo de ser da res cogitans. Tambm Kant deixou impensado a pergunta pelo sentido do ser
deste ente que, em Heidegger, se apresenta como determinante de sua analtica existencial (Cf. HEIDEGGER,
Martin. Ser y Tiempo. op., cit., pp. 47-48).
202
STEIN, Ernildo. Sobre a Verdade. Lies preliminares ao pargrafo 44 de Ser e Tempo. Uniju: Iju, 2006, p.
103.
203
Vale lembrar que, para Heidegger, a transcendentalidade que marca a filosofia em geral e que tambm est
presente nas ontologias regionais ou metontologias como o caso da filosofia do direito. Mas essa
transcendentalidade difere totalmente daquela inaugurada com Kant e que tinha na subjetividade a totalidade que
pretendia compreender. Heidegger afirma que la ontologa, o la filosofia em general, es, a diferencia de las
145
Ser e Tempo. a partir da que compreenderemos com maior rigor como o mundo que
evidentemente no o mundo natural nos atinge e como, em todos nossos
comportamentos, h sempre algo que acontecesse num encontro: munda, diria Heidegger.
Desse modo, a colocao da pergunta pelo conceito de princpio recebe pelo
mtodo fenomenolgico uma dupla clivagem: uma molar e outra molecular; que por sua
vez se desdobra em um mtodo regressivo e outro progressivo204 . Em sua vertente molar
exploramos os significados legados pelos paradigmas filosficos da tradio procurando
liberar aquilo que se mantm retido na prpria linguagem enquanto vela e desvela o ser dos
entes. Desse modo, instaura-se uma problematizao regressiva no seio da prpria filosofia de
modo a perceber os condicionamentos que aprisionam as possibilidades projetadas pela
tradio atravs da faticidade do ser-a. Temos, assim, a problemtica relao entre teoria e
prtica, a gnese e progressiva construo do conceito de norma no continente, a emergncia
da problemtica dos valores que no questiona ou tematiza o problema envolvendo o prprio
conceito de norma tradicional e seu fundamento: o eu transcendental. J na vertente
molecular, partimos das estruturas da analtica existencial para projetar o significado do
conceito de princpio, procurando descrever, no uma imagem do direito como acontece
com as teorias positivistas, como bem aponta Dworkin mas sim como um modo de ser,
inserido no plano daquilo que, em Ser e Tempo, podemos chamar de instrumentalidade (a
dimenso do utenslio, do til em alemo: Zeug). Procuramos, portanto, descrever os
princpios a partir da estrutura do ser-no- mundo e do carter de remisso e significado prprio
do utenslio.
Por certo, a vertente molar e a vertente molecular do mtodo fenomenolgico, no
correm separadas, mas esto unidas pelo circulo hermenutico: no h destruio das
ontologias da tradio sem (analtica do) ser-a, como no pode existir ser-a, sem essa
tradio que o destina. Isto porque a investigao regressiva da tradio no apenas comea
com o ser-a, como tambm reivindica a instaurao de uma ontologia deste ente que, no
interior desta tradio, permaneceu no problematizada.
ciencias de los entes, la ciencia crtica o tambin la ciencia del mundo trastocado. Com esta distincin entre ser e
ente y con la eleccin del ser como tema nos alejamos, de forma radical, de campo del ente. Lo superamos, lo
transcendemos. Podemos llamar tambin la ciencia del ser, en tanto que ciencia crtica, la ciencia transcendental.
Al hacerlo as, no aceptamos sin ms el concepto de transcendental de Kant, sino, ms bien su sentido originrio
y su tendencia prpria, oculta acaso tambin para Kant. Superamos o ente para llegar hasta el ser
(HEIDEGGER, Martin. Los Problemas Fundamentales de la fenomenologia. op., cit., pp. 42-43).
204
Cf. STEIN, Ernildo. A Questo do Mtodo na Filosofia. op., cit..
146
indeterminao
do
direito.
Este
enfrentamento
deste
problema
foi
recusado
sistematicamente pelas posturas positivistas lato senso, sobre o pretexto de que sua
tematizao escapava das possibilidades da razo pura terica. E mais, de alguma forma, em
todo positivismo esta em jogo um problema procedimental. Ou seja, possvel dizer que todo
positivismo se constitui como uma espcie de procedimentalismo, a partir de onde procura se
205
Neste sentido, Cf. BARROSO, Luis Roberto. BARCELLOS, Ana Paula de. O comeo da Histria : a Nova
Interpretao Constitucional e o papel dos Princpios no Direito Brasileiro. In: Interpretao Constitucional.
Virglio Afonso da Silva (org.). So Paulo: Malheiros, 2005, pp. 277-279; SARMENTO, Daniel. A Ponderao
de Interesses na Constituio Federal. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2002, p. 41. BONAVIDES, Paulo. Curso de
Direito Constitucional. So Paulo: Malheiros, 1999, p. 273.
147
CALSAMIGLIA, Albert. Pospositivismo. In: Doxa Cuadernos de Filosofia del Derecho. N. 21 Alicante,
1998, pp. 209 e segs.
207
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. op., cit., pp. 05 e segs. Lenio acrescenta tese de Casalmiglia
pontos importantes a partir das correes efetuadas por ele ao neoconstitucionalismo. Afirma o autor que em
acrscimo s questes levantadas por Calsamiglia, vale referir o acirramento da crise das posturas positivistas
diante do paradigma neoconstitucionalista, em face da sensvel alterao no plano da teoria das fontes, da norma
e das condies para compreenso do fenmeno no interior do Estado Democrtico de Direito, em que o direito e
a jurisdio constitucional assumem um papel que vai muito alm dos planos do positivismo jurdico e do
modelo de direito com ele condizente. Ainda neste item, procuraremos esclarecer as principais correes
efetuadas por Streck ao neoconstitucionalismo tradicional que assume um recorte mais analtico.
148
fenomenicamente pela razo pura terica) em favor dos problemas tericos de fundamentao
e validade do ordenamento jurdico. Alm disso, a preocupao epistemolgicaprocedimental, deixava de lado a tematizao do resultado destes procedimentos o que
tambm exclua, em ltima anlise, a colocao da questo no nvel prtico.
Portanto,
no
interior
do ps-positivismo
Marcelo Neves oferece uma interessante leitura, a partir da semitica, dos vrios modelos de interpretao
jurdica que se desenvolvem desde o sculo 19 at a segunda metade do sculo 20. Para ele, possvel observar
o aparecimento cada vez maior de uma dimenso pragmtica, aps a nfase dada s dimenses sinttica e
semntica. Desse modo, temos um deslocamento da segurana formal para o problema da incerteza condicionada
pelo pluralismo e o dissenso estrutural da esfera pblica (numa linguagem pragmtico-sistmica). No sculo 19
as duas principais vertentes da teoria do direito (a escola da exegese e a jurisprudncia dos conceitos) construiu
um modelo de interpretao do direito que se pode denominar, semioticamente, sinttico-semntico, em que se
privilegiava as conexes sintticas entre os termos, expresses ou enunciados normativo-jurdicos, pressupondo
a univocidade (semntica) deles. J na primeira metade do sculo 20 possvel falar de um modelo semnticosinttico, no qual j se reconhece a vagueza e ambigidade dos termos e expresses jurdicas, cabendo ao
intrprete determinar o quadro semntico das aplicaes juridicamente corretas. Temos, como exemplos deste
modelo as teorias do direito desenvolvidas por Hans Kelsen e Hebert Hart. Neste contexto, no resultaria de uma
operao cognitiva (prpria da cincia do direito) a opo pragmtica por uma destas diversas aplicaes, mas
sim de um ato subjetivo e voluntrio, envolvendo uma questo de poltica do direito (razo prtica) e no
terico-jurdica (razo terica). J na segunda metade do sculo 20, a teoria do direito passou a considerar o
problema da interpretao do direito sobretudo como um problema de determinao semntica dos significados
dos textos jurdicos, condicionados pragmaticamente, de modo que possvel falar em uma modelo semnticopragmtico (Cf. NEVES, Marcelo. op., cit., pp. 196 e segs.). Guardadas as devidas diferenas que separam o
paradigma com o qual opera Neves e aquele com o qual nos aproximamos do objeto de nossa investigao,
podemos dizer que os modelos interpretativos descritos pelo autor ilustram e corroboram os significados
articulados nesta pesquisa para o conceito de princpio. Neste caso, com os princpios gerais do direito temos um
modelo sinttico-semntico de interpretao; com os princpios jurdicos-epistemolgicos podemos falar em um
modelo semntico-sinttico; e, j nos casos do princpios pragmtico-problemticos, que interessam mis de perto
nossa investigao, nos movimentamos numa perspectiva semntico-pragmtica, prpria do modelo terico
tradicionalmente chamado de ps-positivismo.
149
209
150
casos difceis e se apresentam como uma espcie de reserva hermenutica para a soluo
dos casos difceis.
As teorias da argumentao, nas suas diversas acepes ou modelos,
no se constituem em reserva hermenutica para resolver hard
cases. Fosse isso verdadeiro seria difcil responder a pergunta de
como se interpretava antes do surgimento das teorias da
argumentao. como se a elaborao do procedimento apto
universalizao dos discursos fundamentadores partisse de um marco
zero, ignorando a pr-compreenso antecipadora, isto , como se um
easy case fosse um easy case em si (como se contivesse uma
essncia) ou como se ele mesmo no pudesse ser um hard case ou,
ainda, como se essa aferio do que seja um easy case pudesse ser
feita previamente, proceduralmente. Quanto a aceitao dworkiana
desta distino, assevera o autor que embora Dworkin tambm faa
essa (indevida) distino (veja-se ele distingue, e no cinde), o faz por
outras razes. Dworkin trabalha com a noo de casos difceis a
partir da crtica que elabora ao positivismo discricionrio de Hart. A
diferena que Dworkin no distingue discursos de fundamentao de
discursos de aplicao. Conseqentemente, no desobriga ou
desonera o juiz (discursos de aplicao) da elaborao dos discursos
de fundamentao, que se do previamente. a integridade do direito
e sua reconstruo que devem dar as condies para a resposta correta
nos casos difceis 210 .
Tanto assim que Dworkin crtica duramente o poder discricionrio que Hart
atribui aos juizes para resolver os casos difceis, a partir do qual estariam eles aptos a criar
direito novo em vez de aplicar meramente o direito estabelecido e preexistente. Ele crtica a
construo de uma imagem do direito pelo positivismo hartiano que o coloca como
parcialmente indeterminado e incompleto. Para Dworkin essa concepo enganadora visto
que o que incompleto no o direito, mas a imagem que dele produz o positivismo jurdico.
Nessa medida, tem-se por rejeitada tambm a idia de delegao ao juiz para o
preenchimento das lacunas nos casos difceis atravs do exerccio de um poder discricionrio.
No fundo, o positivismo se mantm preso a uma descrio objetivista do direito
representando-o de uma forma plstico-artificial. Prisioneiro desta postura ingnua, o
positivismo (seja ele hartiano ou kelseniano) no consegue se aperceber de que no possvel
ver efetivamente o direito, mas apenas aquilo que se fala sobre o direito211 . De algum
modo, Dworkin compreende isto. Sua teoria , deliberadamente, antipositivista e, por isso,
210
Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. op., cit., pp. 248-249.
Como ressalta Streck, com Heidegger, no falamos sobre aquilo que vemos, mas sim o contrrio; vemos o
que se fala sobre as coisas (STRECK, Lenio Luiz. Jurisdio Constitucional e Hermenutica. op. cit., p 205.)
211
151
Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Srio. op. cit., pp. 50 e segs.
Idem, pp. 127 e segs.
214
importante notar que, em Levando os Direitos a Srio, obra em que Dworkin expe de maneira mais ampla
sua distino entre regras jurdicas e princpios jurdicos, no h nenhuma meno ao termo norma. Isso aponta
para algo que j ressaltamos com base nas lies de Josef Esser de que, no contexto anglo-saxnico, o conceito
de regra assume um papel similar ao conceito continental de norma. Portanto, a distino entre regras e
princpios tematizada por Dworkin no pode ser considerada uma especializao do gnero norma. Tampouco
pode-se pensar numa classificao normativa que comporta regras e princpios. Isso deve apontar para o fato de
que Dworkin introduz um contedo dentico aos princpios sem remeter ao seu carter de norma entendida em
seu sentido tradicional como o faz Alexy. Voltaremos a esta questo mais adiante.
213
152
153
A questo aqui no discrepa muito daquela retratada por Hart para realizar sua
diferenciao entre easy e hard cases. Porm, importante ressaltar que, para Hart, a
indeterminao ou incompletude do direito advm da prpria linguagem, enquanto que para
Kelsen ela emana do fato de que, em toda norma jurdica, existe um espao no qual a
autoridade competente para aplic-la poder se mover como quiser. No caso limite
apresentado ao final do captulo VIII de sua Teoria Pura do Direito, Kelsen admite at
mesmo decises fora deste limite imposto pela moldura semntica da norma. Mas isso apenas
repercute a intencionalidade estritamente terica de sua doutrina, que relega toda dimenso
prtica para a poltica e a moral, que no fazem parte da cincia do direito. Gostaramos de
insistir neste ponto: Kelsen opera, em sua Teoria Pura, algo anlogo ao que fez Kant em sua
Crtica da Razo Pura. Se Kant ocultou a coisa em si, na tentativa de salvar a metafsica,
terminou por reduz- la a um problema da razo prtica. Kelsen tambm quer liberar o Direito
da metafsica, e com isso fica apenas com a razo terica, reduzindo toda atividade humana
220
154
que envolve o processo discursivo do direito uma dimenso prtica, inapreensvel pelos
meios racionais 221 .
Portanto, parece ficar claro que, as posturas ps-positivistas como a de Dworkin
procuram enfrentar o problema da indeterminao do direito tematizando algo com o qual o
positivismo no se ocupou: a interpretao e os limites percebidos pelos juzes no momento
da deciso que envolve uma complexa relao entre os meios institucionais Constituio,
leis, precedentes o caso concreto e o contexto de moralidade poltica de uma comunidade,
segundo a concepo de Dworkin.
4.2.2. Robert Alexy e sua Teoria da Argumentao racional como um caso especial do
discurso prtico geral
Como afirma Lenio Streck em verdade e consenso, ao se recusar a enfrentar o problema das prticas jurdicas
e da indeterminao do direito que j ao seu tempo era percebida - Kelsen apresenta um certo fatalismo
deixando o problema da discricionariedade judicial para a esfera da poltica. Assim, Streck afirma que Kelsen,
ao seu modo, tambm resignou-se essa fatalidade: o sujeito solipisista seria () incontrolvel. P isso, Kelsen
elabora uma teoria que uma metalinguagem (afinal, foi freqentador do crculo de Viena) sobre uma
linguagem-objeto. Em conseqncia, o mestre de Viena confere uma importncia mais do que secundria
interpretao (papel do sujeito), admitindo que, por ser inexorvel, deixe-se que o juiz decida
decisionisticamente (STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. op., cit., p. 47).
155
valores, utilizada pelo tribunal para resolver conflitos normativos em sede de princpios e
direitos fundamentais. Todavia, reconhecia nela uma insuficincia metodolgica. Boa parte de
sua Teoria da Argumentao se articula no sentido de resolver essa insuficincia. Como
sabido, a tcnica da ponderao sempre foi muito criticada pelo possvel irracionalismo que
emergia de sua utilizao. Temos, neste sentido, as crticas de Friedrich Mller ponderao
de valores do Tribunal Alemo:
Tal procedimento (a ponderao - acrescentei) no satisfaz as
exigncias, imperativas no Estado de Direito e nele efetivamente
satisfatveis, a uma formao da deciso e representao da
fundament ao, controlvel em termos de objetividade da cincia
jurdica no quadro da concretizao da constituio e do ordenamento
jurdico infraconstitucional. O teor material normativo de prescries
de direitos fundamentais e de outras prescries constitucionais
cumprido muito mais e de forma mais condizente com o Estado de
Direito com ajuda dos pontos de vista hermenutica e metodicamente
diferenciadores e estruturante da anlise do mbito da norma e com
uma formulao substancialmente mais precisa dos elementos de
concretizao do processo prtico de gerao do direito, a ser
efetuada, do que com representaes necessariamente formais de
ponderao, que conseqentemente insinuam no fundo uma reserva de
juzo (Urteilsvirbehalt) em todas as normas constitucio nais, do que
com categorias de valores, sistema de valores e valorao,
necessariamente vagas e conducentes a insinuaes ideolgicas 222 .
Portanto, para enfrentar crticas como essa que Alexy ir propor uma teoria
racional da argumentao jurdica. Alexy sabe que a argumentao jurdica se apresenta
como uma atividade lingstica e por isso a designa, genricamente, como discurso. Seu
ponto de partida ser, ento, as controvrsias que surgem em todo discurso sobre o direito,
que Alexy considera um caso especial do discurso prtico em geral. Portanto, a teoria da
argumentao jurdica de Alexy se vincula s teorias do discurso, embora aceite, em grande
medida, contornos prprios e divergentes quando confrontada com outras posies e
formataes das teorias discursivas223 . Mas, em que medida se d o discurso prtico jurdico
em relao ao discurso prtico em geral? Para responder a essa pergunta precisamos
compreender, ainda que de forma genrica, a tese do caso especial e da pretenso de
correo.
222
Mller, Friedrich. Mtodos de Trabalho de Direito Constitucional. Trad. Peter Naumann. 2 ed. So Paulo:
Max Limonad, 2000, p. 36.
223
Quanto a isso basta verificar as polmicas travadas com Jrgen Habermas, cujo plo de tenso gira em torno
do mtodo da ponderao (Assim, Cf. ALEXY, Robert. Teoria de la Argumentacin Jurdica. op., cit., pp. 110142).
156
Como j foi referido na nota n. 106 qual remetemos o leitor desde j a escola de Baden concebe o
elemento transcendental como um dever-ser puro que se apresenta como valor.
225
ALEXY, Robert. Teoria de la Argumentacin Jurdica. op., cit., pp. 35-36.
157
Idem, p. 39.
Idem, pp. 43-44.
228
Neste sentido, remetemos o leitor para a nota n. 115. Conferir tambm ALEXY, Robert. Teoria de la
Argumentacin Jurdica. op., cit., pp. 208-211.
229
Cf. ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: CEC, 2002, p. 145.
227
158
Idem, p. 86.
Cf. ALEXY, Robert. Teoria de la Argumentacin Jurdica. op., cit., pp. 225 e segs.
232
Segundo preleciona Alexy o juzo de ponderao deve ser realizado a partir da aplicao da frmula quantotanto que, segundo o autor, pode ser qualificada de lei de coliso (Cf. ALEXY, Robert. Teoria de los
Derechos Fundamentales. op., cit., pp. 90) cujo completo teor o seguinte: quanto mais alto o grau de norealizao ou prejuzo de um princpio, tanto maior deve ser a importncia de realizao do outro. A partir
dessa frmula Alexy identifica, naquilo que denomina estrutura da ponderao trs passos, ou graus de
verificabilidade da aplicao da frmula: no primeiro passo deve ser determinada a intensidade da intervenso
que ser to austera quanto for o grau de no-realizao ou prejuzo de um princpio; na segunda etapa se
procede a verificao da importncia das razes que justificam a interveno; por fim, em seu terceiro passo,
deve ser comprovada se a importncia da realizao do princpio em sentido contrrio justifica o prejuzo ou a
no-realizao do outro, sucedendo-se, ento a ponderao em sentido estrito (Cf. ALEXY, Robert. Direito
Constitucional e Direito Ordinrio. Jurisdio Constitucional e Jurisdio Especializada. In Revista dos
Tribunais, Ano 92, Vol. 809, mar. 2003, p. 64; ALEXY, Robert. Coliso de Direitos Fundamentais e Realizao
de Direitos fundamentais no Estado de Direito Democrtico. In: Revista de Direito Administrativo n. 217, jul-set,
1999, pp. 67-79).
231
159
e casos difceis, de modo que possvel dizer que, diante de um caso fcil estamos diante da
aplicao de regras, o que se opera atravs da subsuno por meio dos mtodos tradicionais
de interpretao e de soluo de eventuais antinomias (critrios da anterioridade e da
especialidade); ao passo que nos casos difceis, estamos diante da aplicao de princpios e o
mtodo para determinao da soluo dada ao caso concreto a ponderao. O que
evidentemente discordante com relao Hart e que, neste sentido se assemelha Dworkin,
que Alexy no admite uma total discricionariedade do juiz na deciso dos casos difceis. Mas,
diferentemente de Dworkin que no v possibilidade de determinar um mecanismo certo e a
priori para a soluo de tais casos, Alexy estabelece a ponderao como procedimento apto a
solucionar as colises de princpios e evitar, assim, a livre escolha do juiz no momento
decisional. Ou seja, Alexy cria, na sua inteno em tornar racional o discurso prtico, uma
espcie de elemento camalenico que no consegue superar a velha oposio entre teoria e
prtica: a racionalizao do discurso jurdico prtico baseado em valores se d por um meio
matemtico de fundamentao eu a ponderao. No fundo, o que se instala uma (nova)
tentativa de aprisionar a razo prtica num modelo terico (porque matemtico) de
fundamentao. No fundo, como ressalta Lenio, em Alexy tem lugar uma repristinao da
discricionariedade do positivismo jurdico.
Na verdade, o que acontece com a teoria jurdica e que se coloca como problema
em todo ps-positivismo a questo do aprisionamento terico que o direito passou a sofrer
desde o jusnaturalismo racionalista e o problema da reabilitao prtica do discurso jurdico.
Mas novamente aqui nos deparamos com o problema do vnculo ou da relao entre filosofia
e cincia. Autores como Castanheira Neves, por exemplo, postulam essa reabilitao no nvel
da filosofia do direito, de modo que esta possa emergir como verdadeira filosofia prtica233 .
Mas isso para ns no parece satisfatrio porque significaria confundir o campo da filosofia
com o campo do direito, oferecendo para aquela um objeto determinado. Como vimos no
terceiro captulo, a filosofia no trata de objetos como o faz a cincia jurdica. A filosofia
cuida de um mbito que para o direito inacessvel. Se lhe inacessvel, porm, tambm lhe
233
Cf. CASTANHEIRA NEVES, Antonio. A crise da filosofia do direito no contexto global da crise da
filosofia. op., cit., p. 52.
160
161
162
mundo. Mas, diferente de Weber, no pretendia uma reconciliao entre cincia, valor e
concepes de mundo. De certo modo, o jovem Heidegger j sabia do peso da histria e da
impossibilidade de retornos idlicos ao passado. Mas Heidegger queria, de um outro modo,
recuperar aquilo que, no comportamento cientfico, era taxado como irracional. Naquele
tempo, em que a analtica existencial ainda se encontrava em gestao, Heidegger ir falar
deste irracional como a postura primordial do vivenciar, com o que ele designa a percepo
assim como ela realmente se realiza alm das opinies tericas a respeito. Portanto,
Heidegger no aceita a distino weberiana entre juzos cientficos e juzos de valor, porque
ele pretende transformar em problema o fato de que e como valorizamos e construmos
concepes de mundo, teorias, regras etc. Essa postura primordial do vivenciar se movimenta,
portanto, numa dimenso que antecede a prpria valorao. Anteceder no num sentido
temporal vulgar, mas no sentido de possibilidades para que algo assim como um valor
acontea. Ou seja, trata-se de colocar na luz aquilo que efetivamente acontece quando nos
comportamos, terica ou cientificamente, em relao aos entes. Com isso, ele consegue ver
que, no comportamento cientfico objetivante, se oculta a significao primria do mundo, a
vivenciabilidade (que Heidegger depois chamar de existncia). Despimos algo at sua
objetualidade nua porque extramos a vivenciabilidade do eu que vivencia. Esse eu no se
torna um problema e, com isso, cria-se uma artificialidade secundria que responde pelo nome
de sujeito. O sujeito, por sua vez, se defronta com algo em correspondente neutralidade
chamado objeto.
Portanto, o que se reivindica com Heidegger uma filosofia e, partindo dela, uma
cincia, que coloquem como situao primordial no mais o defrontamento do sujeito com um
objeto, mas que consiga mostrar que esse comeo (sujeito-objeto) no sem pressupostos. O
comportamento puramente terico, por mais til que seja e por mais que faa parte de nosso
repertrio de comportamentos naturais diante do mundo, desvitalizador: ele s se faz
excluindo do problema o eu que existe. Nisto reside a objetificao a partir da qua l o
comportamento terico destila o entorno, o contexto de mundo, no qual esto inseridos sujeito
e objeto. A coisa existe apenas como tal, isto , ela real. Aquilo que significativo dssignificado at o ltimo resqucio do ser-real. Vivenciar o em-torno ds-vivido at o resto:
reconhecer um real como tal. O eu histrico ds- historicizado at um resto especfico de euidade235 .
235
163
164
4.3. O confronto entre Dworkin e Alexy a partir da pergunta pelo conceito de princpio.
Ao final do primeiro captulo, acenamos algumas das diferenas que opem Alexy
e Dworkin. De todos os apontamentos feitos ali, talvez o principal gire em torno da idia de
discricionariedade e do lugar de onde, para cada um deles, ela emerge. Em Dworkin a
discricionariedade prpria de um modelo de regras que preso a uma simples imagem do
direito no consegue perceber o carter de fechamento antidiscricionrio, portanto dos
princpios; ao passo que Alexy no v discricionariedade no sistema de regras mas sim nos
prprios princpios que enquanto mandados de otimizao possibilitam uma margem
muito grande de valorao do intrprete. Afirmamos, tambm, que nossa inteno no era
realizar um confronto entre essas duas teses para, ao final, nos colocarmos simplesmente ao
lado de uma delas. Nossa inteno era problematizar o prprio conceito de princpio no modo
como ele se manifesta em cada uma destas posies. Reunimos, durante todo o trabalho, as
condies para perceber como isso se d. Agora, podemos dizer que o conceito de princpio
com o qual opera Robert Alexy se constri a partir de uma prtica que difere substancialmente
daquela que se encontra por trs das teses dworkianas. O conceito de Alexy provem da
atividade judicialista do tribunal alemo no perodo que ficou conhecido como jurisprudncia
da valorao. no interior deste movimento que o tribunal, vendo-se diante da necessidade
de jus tificar suas decises em critrios que fugiam estrita legalidade abstrata atributo de
certeza e segurana do direito anterior passa a recorrer a instrumentos que lhe
possibilitassem justificaes at mesmo extra legem, como se deu nos casos da no aplicao
das leis nazistas no regime ps 1949 para casos concretos constitudos sob sua gide 236 . Alm
disso, a tradio continental s reconhece como rigoroso os fundamentos que podem ser
demonstrados matematicamente, tanto na forma, quanto no contedo. Da a necessidade de
uma frmula acabada e a priori capaz de conferir uma medida de certeza e segurana para as
decises. J Dworkin fala a partir de uma tradio que no se prendeu tanto ao ideal de
compreenso de uma totalidade como a metafsica racionalista do continente. Evidente que
isso tem reflexos no direito e no modo como se d a articulao dos instrumentos que o
236
165
compe. Isso tanto assim que, somente no segundo ps- guerra, depois dos movimentos da
jurisprudncia da valorao, que se passou a falar, no continente, a respeito do conceito de
princpio que j era articulado no contexto anglo-saxnico h tempos. Veja-se, quanto a isso,
que o conceito de princpios gerais do direito da tradio continental romano- germnica, est
comprometido at o limite com o racionalismo iluminista, sendo ele o extremo oposto do
conceito de princpios gerais da common law a ponto de autores como Esser se referir a eles a
partir da oposio do ponto de vista retrico entre fechado (conceito continental) e aberto
(conceito anglo-saxo). E fechado porque, o contexto opressivamente terico matemtico,
portanto do modelo de cincia jurdica praticado no continente muito maior do que aquele
que se verificou no contexto ingls ou norte-americano. No deixa de ser interessante que, nos
momentos em que existiram movimentos no interior do direito anglo-saxo no sentido de
transformar o sistema de precedentes num conjunto de verbetes standartizados, eles se
voltaram para modelos estatutrios prprios da tradio continental237 .
evidente que isso no pode significar que o direito, no contexto anglo-saxo,
seja mais avanado que o continental (como Dworkin s vezes parece insinuar). Tanto
assim no , que o prprio Dworkin escreve toda sua obra contra o positivismo
(convencionalismo/pragmatismo) que desta tradio emergiu. O que h de diferena que os
anglos saxes, talvez por terem se emancipado mais rapidamente que os continentais das
imposies cannicas da igreja catlica e, ao mesmo tempo, por terem construdo um
liberalismo mais radical do que aquele que apareceu no continente principalmente atravs da
obra de Kant, faz com que eles se sintam mais vontade para colocar em xeque os conceitos
fundamentais que predominam no mbito da cincia do direito, como Dworkin faz com o
conceito de regra, princpio e com o prprio conceito de Direito. No continente e na
Amrica-Latina que herdou a tradio continental em sua quase totalidade temos uma
espcie de temor cannico de acertar nossas contas com alguns de nossos principais
conceitos. Mesmo nos momentos de mxima exausto, por mais que seja possvel perceber
uma renovao em diversos pontos do direito, h sempre algo que escapa e persiste sem uma
adequada problematizao. No mbito de nossa investigao, preciso atentar para o que
237
Neste sentido, o prprio Dworkin relata que: a interpretao das leis depende da disponibilidade de uma
forma verbal cannica, por mais vaga ou imprecisa que seja, que possa colocar limites s decises polticas que,
como se atribui, tenham sido tomadas pela lei. (...) verdade que, em fins do sculo XIX e primrdios do sculo
XX, fazia parte do estilo judicial ingls e norte-americano tentar compor esses enunciados cannicos de modo
que, dali para a frente, fosse possvel referir-se regra de determinado caso. Mas, ao final, ele observa que
mesmo neste perodo, os juristas e os livros de direito divergiam sobre que parte destas decises famosas
deveriam ser consideradas possuidoras desta caracterstica (Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a
Srio. op., cit., pp. 172-173).
166
acontece com o conceito de norma. Ele permanece aceito de, modo praticamente pacfico,
desde sua formao no mbito do positivismo jurdico do sculo 19. A despeito de algumas
poucas manifestaes crticas e propostas de reformulao, h uma utilizao generalizada do
conceito de norma, no sentido que lhe dava o positivismo jurdico. Robert Alexy e todos os
seus seguidores so o maior exemplo disso. E o que mais instigante: muitos autores
inclusive aqueles que perfilam as transformaes operadas na teoria do direito atravs do
chamado neoconstitucionalismo continuam a tratar o conceito de princpio de Alexy e
Dworkin como equivalentes, sem atentarem para o fato de que Dworkin no conhece nos
termos construdos no continente o conceito de norma que est na base do conceito de
princpio de Alexy. Esse talvez seja um dos pontos decisivos para tornar mais profcuo o
debate: deslocar a discusso do plo assumido pela distino entre regras e princpios e
direcion-la at a o prprio conceito de princpio. Muito se fala da referida distino, mas
pouco se problematiza se que j foi verdadeiramente problematizado o prprio conceito
de princpio e aquilo que, para sua formao, determinante, como o caso do conceito de
norma. A partir de agora nos ocuparemos mais de perto desta questo.
238
167
Idem, p. 4.
Cf. ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. op., cit., p. 50, em especial nota n. 10.
168
para retirar toda dimenso cientfico-objetiva que perpassa o discurso de Kelsen e que seria,
justamente, o que excluiria a possibilidade de tematizar algo como valores no mbito da
cincia do direito. Assim, ele aceita, expressamente, apenas o argumento de que com norma
se designa algo que deve ser ou suceder, especialmente que uma pessoa deva se comportar ou
agir de determinada maneira.
Mas com essas objees, Alexy no chega a tocar no mago do conceito de norma
que havia sido colocado por Kelsen. Nem coloca como questo o problema dos nveis de
interpretao atravs dos quais a norma pode ser tema tizada. Sabemos apenas que, para ele, o
conceito de norma continua sendo um conceito semntico. Ou seja, o seu conhecimento ainda
implica um pr entre parnteses o aspecto pragmtico, tendo em vista que a ela subjaz uma
noo de um sujeito cognoscente transcendental. No fundo, a concepo alexyana mantm o
conceito de norma como esquema de interpretao e forma a priori do contedo dentico dos
fatos. Desse modo, seu conceito de princpio depende toxicologicamente do conceito
semntico de norma, pois some nte assim ser possvel pensa- los em termos de enunciados
denticos. Conceituando os princpios como "mandados/mandamentos" (ao lado de proibio
e permisso), Alexy faz com que eles participem do gnero norma embora realize um
nebuloso esforo para distingu- los de uma outra espcie normativa: as regras. Por mais clara
que esta distino possa ser, desde o ponto de vista lgico, ela sempre levar a mal entendidos
por se tratar de uma artificialidade que no problematiza a questo no mbito pragmtico.
Com isso, Alexy consegue realizar uma classificao da norma jurdica, mas calcada sobre o
mesmo pressuposto que possibilitava o conceito anterior: a subjetividade matemticotranscendental e o esquema sujeito-objeto.
Por outro lado, no temos em Dworkin a referncia ao conceito de norma como
gnero que comporta regras e princpios 241 . Isso assim porque segundo Esser242 os
anglo-saxes no conhecem o conceito continental de norma, no sentido que lhe da o
idealismo normativista kelseniano. Entre eles, o conceito de norma corresponde ao conceito
241
No concordamos, portanto, com constante referncia a Dworkin como autor que elevou (sic) os princpios
condio de normas, a partir de uma apressada justaposio com Alexy (Neste sentido Cf. BARROSO, Luis
Roberto. BARCELLOS, Ana Paula de. O comeo da Histria : a Nova Interpretao Constitucional e o papel
dos Princpios no Direito Brasileiro. In: Interpretao Constitucional. Virglio Afonso da Silva (org.). So
Paulo: Malheiros, 2005, pp. 277-279; SARMENTO, Daniel. A Ponderao de Interesses na Constituio
Federal. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2002, p. 41. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. So
Paulo: Malheiros, 1999, p. 273; VILA, Humberto Bergmann. A distino entre regras e princpios e a
redefinio do dever de proprocionalidade. In: Revista de Direito Administrativo n. 215, jan.-mar. 1999). Com
efeito, se essa norma que comporta a espcie princpio for entendida num sentido semntico, impossvel
enquadrar a teoria de Dworkin em seu bojo. Como ficar claro no decorrer da exposio, a normatividade dos
princpios no aparecem a partir de sua imolao normativa, mas sim do contexto pragmtico em o direito,
enquanto atividade interpretativa, se desenvolve.
242
Cf. ESSER, Josef. op., cit., p. 62.
169
de regra (rule) e por esse motivo o contedo dentico dos princpios no so atribudos a
partir de uma simples "normatividade" ainda prisioneira de uma teoria do conhecimento
subjetivista. Afinal, se nem mesmo Kant conseguiu resolver o problema da conciliao da
razo pura terica com sua razo prtica pois a coisa em si permanecia como um abismo,
uma aporia entre ambas como Alexy pretende apresentar uma justificao para fundar seu
conceito de norma (e tambm o conceito de ponderao) numa razo terica e, ao mesmo
tempo, fundar sua teoria dos princpios numa racionalidade discursiva que se pretenda
prtica? Como fazer essa passagem sem problematizar aquilo que no foi questionado por
Kant: o eu que sustenta todo conhecimento transcendental?
Mas no apenas um problema filosfico que permanece no resolvido no
conceito de norma e, consequentemente, no conceito de princpio de Alexy. O fato de
Dworkin no mencionar o gnero norma na distino que ele realiza entre regra e princpio
tambm aponta para algo inquietante: se Dworkin no define princpio como norma pois o
conceito de norma equivalente ao de regra ento como possvel afirm- los
denticamente? E mais, se o conceito anglo-saxo de rule pode ser tido como equivalente do
continental de norma, como fica esse conceito frente crtica de Dworkin quilo que ele
chama de teorias semnticas? Parece evidente que no cabe falar aqui em norma como
esquema de interpretao ou como um conceito semntico. Isso porque, a partir de Dworkin,
poderamos afirmar que essa dimenso dentica que reveste as regras e os princpios sempre
interpretao, uma vez que, para ele, o prprio direito interpretao 243 . Podemos dizer que a
norma no um esquema de interpretao ou um conceito semntico que coloca entre
parnteses a atividade adjudicativa que caracteriza o direito, mas sim, ela prpria j
interpretao. Isso implica dizer que normas no significam em abstrato. Uma norma s
significa na medida em que ela munda. Portanto, normas no so coisas com um carter
significativo determinado e nem tampouco categorias semnticas que operam denticamente
de uma maneira prvia, descolada da existncia.
Tratando do conceito de norma, de um modo que coloca em xeque o seu sentido
tradicional, Lenio Streck constri a tese de que para falar de norma primeiro preciso
compreend- la em sua diferena com relao ao texto 244 . Para Streck, h uma diferena
243
Neste sentido, Cf. DWORKIN, Ronald. Uma Questo de Princpio. op., cit., Parte Dois.
A distino entre texto e norma j havia sido realizada por Friedrich Mller, embora este autor nunca tenha
chegado a tematizar tal distino nos termos da diferena ontolgica. Isto porque a idia de diferena ontolgica
aponta para uma dimenso compreensiva mais radical do que a simples distino estrutural entre a norma e seu
texto, essa sim efetivamente realizada por Mller. Sem embargo, cabe mencionar que chamada metdica
estruturante, construda por Mller, pode ser elencada como uma perspectiva terica que pretende problematizar
o conceito tradicional de norma e a subjetividade que se apresenta por detrs dele. Para Mller normatividade
244
170
ontolgica (no sentido heideggeriano) entre texto e norma e que, neste sentido, quando
falamos de norma, falamos necessariamente em interpretao, fruto de um processo
compreensivo que no se reduz compreenso sinttico-semntica do texto, mas envolve um
contexto pragmtico que muito mais amplo. Desse modo, Lenio assevera: Quando quero
dizer que a norma sempre o resultado da interpretao de um texto, quero dizer que estou
falando do sentido que este texto vem a assumir no processo compreensivo. A norma de que
falo o sentido do ser do ente (texto). O texto s ex-surge na sua normao245 .
Desse modo, em face da dificuldade de sustentao do conceito tradicional de
norma frente a caracterizao decisiva de Dworkin do direito como prtica social
interpretativa (um agir interpretativo), a classificao do princpio como norma (entendida
como conceito semntico) se mostra problemtica. Do mesmo modo, parece difcil sustentar,
como tradicionalmente se verifica, uma equiparao entre as posies prticas e pspositivistas de Alexy e Dworkin.
Se o conceito de norma se tornou problemtico e a fenomenologia hermenutica
como bem demonstra Lenio Streck mostra a possibilidade de descrever a normatividade
numa outra perspectiva, que parte da problematizao do modo de ser do ente que existe (sera), podemos agora tratar, de um modo tambm renovado, da distino entre regras e
princpios.
significa a propriedade dinmica da ordem jurdica de influenciar a realidade e de ser, ao mesmo tempo,
influenciada e estruturada por este aspecto da realidade. Desse modo, o autor descreve pelo menos duas
dimenses que a estruturam: o programa da norma, que constitudo do ponto de vista interpretativo mediante a
assimilao de dados primariamente lingsticos, e do mbito normativo, que construdo pela intermediao
lingstico-jurdica de dados primariamente no-lingisticos. Cf. MLLER, Friedrich. Mtodos de Trabalho do
Direito Constitucional. op. cit.
245
STRECK, Lenio Luiz. Hermenutica Jurdica e(m) Crise. op. cit., p. 219. Em obra mais recente, o autor
procura enfatizar o carter no relativista da diferena (ontolgica) entre texto e norma. Nessa medida, Lenio
afirma que devemos levar o texto a srio (...) Eis a especificadade do direito: textos so importantes; textos nos
importam; no h norma sem texto; mas nem ele so plenipotencirios, carregando seu prprio sentido (o Mito
do dado, fantasia de texto que se interprete por si mesmo e se extrai por si mesmo, nas palavras de Simon
Blackburn) e nem so desimportantes, a ponto de permitir que sejam ignoradas pelas posturas pragmatistassubjetivistas, em que o sujeito assujeita o objeto (ou, simplesmente, o inventa). Em outras palavras, o texto no
existe em uma espcie de textitude metafsica; o texto inseparvel de seu sentido; textos dizem sempre
respeito a algo da faticidade; interpretar um texto aplica-lo; da a impossibilidade de cindir interpretao de
aplicao. Salta-se do fundamentar para o compreender (e, portanto, aplicar). Aqui, a importncia da diferena
ontolgica entre texto e norma, que , pois, a enuncio do texto, aquilo que dele se diz, isto o seu sentido
(aquilo dentro do qual o significado pode se dar) (STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. op. cit., p. 169).
171
De tudo o que foi dito, esperamos que uma coisa tenha sido esclarecida:
distinguir, estruturalmente246 , regras de princp ios representa uma operao de classificao
normativa que se movimenta num nvel puramente semntico, que no problematiza,
radicalmente, o problema da interpretao num nvel pragmtico-existencial. Isso acontece
claramente nas posturas de Robert Alexy que continua preso a um certo normativismo ao
afirmar o conceito de norma como o principal conceito da cincia do direito e fazer derivar
dele o carter dentico dos princpios. No exagero afirmar que o conceito semntico de
norma com o qual Alexy opera torna o princpio uma derivao artificial e, ao mesmo tempo,
lhe confere uma fora talvez maior do que eles mesmos podem suportar ao afirm- los como
mandados de otimizao, o que confere um poder (ou competncia no seu sentido kelseniano)
muito grande figura do juiz. Neste ponto que o elemento discricional se afigura mais
evidente no conceito de princpio de Alexy. O ponto decisivo para a sua distino entre regras
e princpios reside no fato de que os princpios so, como j vimos, mandados de otimizao,
enquanto que as regras tem carter de mandados de definio 247 . Como mandados de
otimizao os princpios ordenam que algo seja realizado na maior medida possvel desde que
respeitadas as possibilidades e os limites fticos e jurdicos. Nessa medida, a ordenao
principiolgica pode ser satisfeita em diferentes graus o que depende no s de suas
possibilidades fticas, mas tambm jurdicas. As limitaes jurdicas so derivadas do fato de
que existem, no apenas regras, mas tambm princpios opostos que esto em constante
presso uns contra os outros. Esse carter oposicional dos princpios implica na
suscetibilidade (e at mesmo na necessidade, segundo Alexy) da ponderao. A ponderao,
portanto, a forma de aplicao dos princpios 248 . Por outro lado, as regras so normas que
sempre so satisfeitas ou no so. No h possibilidade de satisfazer a ordem emanada das
regras em diferentes graus, como acontece com os princpios, mas sua aplicao uma
246
Ao estabelecer uma distino estrutural entre regra e princpio, Alexy permanece na superficialidade ntica e
acaba caindo em uma certa ingenuidade ontolgica. Podemos falar, mais especificamente, em uma inadequao
ontolgica da teoria alexyana, que leva ao equvoco de se introduzir essa distino estrutural entre regras e
princpios. Como bem assevera Streck, Alexy ignora a dupla estrutura da linguagem, e com isso permanece
numa dimenso de suficincias nticas. Por isso, em sua distino entre regras e princpios, os princpios so
apresentados como reservas argumentativas no caso da falncia do sistema de regras. Em outras palavras, com
sua teoria da argumentao, Alexy substitui o standard I (compreenso) pela racionalidade procedimentalargumentativa, de ndole axiomtico-dedutiva (STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. op., cit., p. 85).
247
Cf. ALEXY, Robert. El concepto y la validad del derecho. op., cit., p. 162.
248
Idem, p. 162.
172
249
Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. op. cit., pp. 179 e segs; ALEXY, Robert. Teoria de la
Argumentacin Jurdica. Traduo de Manuel Atienza e Isabel Espejo. Madrid: CEC, 1989, pp. 205 e segs.
Neste trabalho, procuramos atentar, tambm, para a manuteno do eu transcendental kantiano como totalidade
Metafsica, que aparece como locus fundamentador do elemento formal a priori da ponderao.
173
deles. Para Alexy, o princpio tem carter dentico porque, como mandado, participa, ao lado
das regras, do gnero norma. Para Dworkin a normatividade do direito se manifesta
concretamente na prpria prtica interpretativa e no num sistema lgico previamente
delimitado, sendo, portanto, o conceito de norma remetido a um nvel pragmtico e no
meramente semntico como quer Alexy. Os princpios so normativos em Dworkin porque
acontecem, argumentativamente, no interior desta atividade interpretativa que o direito;
b) , de algum modo, apressada a aproximao que se faz entre o tudo-ou-nada de
Dworkin e a subsuno como forma de aplicao do direito preservada por Alexy. Subsuno
pressupe silogismo que, por sua vez, repristina a velha ciso entre questo de fato e questo
de direito que definitivamente no est em jogo quando se fala de tudo-ou- nada. Ademais, a
referncia dworkiana a essa caracterstica da regra refere-se muito mais ao modo como se d a
justificao argumentativa de uma regra, do que propriamente ao seu modelo de aplicao. Ou
seja, quando se argumenta com uma regra ela ou no , e sua aplicao no depende de
um esforo argumentativo que v alm dela prpria. J num argumento de princpio,
necessrio que se mostre como sua aplicao mantm uma coerncia com o contexto global
dos princpios que constituem uma comunidade;
c) isso implica, diretamente, a dimenso de peso ou importncia que Dworkin
faz referncia no seu conceito de princpio. possvel dizer que Dworkin combina peso e
importncia porque, ao contrrio das regras, nenhum princpio deixa de ter importncia e pode
ser excludo da fundamentao de uma deciso. Sua dimenso de peso implica que, um
argumento de princpio sempre se movimenta de forma coerente com relao ao contexto de
todos os princpios da comunidade. Desse modo, a justificao do fundamento da deciso s
estar correto, na medida em que respeite o todo coerente de princpios num contexto de
integridade. Isso implica: os princpios tm, desde sempre, um carter transcendental, porque,
diferentemente das regras, nunca dispensam uma justificao que nos remete uma totalidade
na qual, desde sempre, j estamos inseridos. Por isso, ponderao e dimenso de peso no so
equivalentes.
Com isso, foi possvel ressaltar, com maior preciso, como Dworkin e Alexy
apontam para direes diferentes como suas posies sobre o conceito de princpio.
A partir do que foi dito, podemos afirmar que, para Dworkin, no h uma ciso
radical entre regras e princpios que esto, de modo permamente, implicados na prtica
interpretativa que o direito. H uma diferena entre regra e princpio porque quando nos
ocupamos das controvrsias jurdicas e procuramos argumentar para resolv- las, somos
174
levados a nos comportar de modo distinto quando argumentamos com regras e quando
argumentamos com princpios. H um elemento transcendente nos princpios, porque quando
argumentamos com princpios sempre ultrapassamos a pura objetividade em direo a um
todo contextual coerentemente (re)construdo, algo que permace oculto pela objetividade
aparente das regras. Tanto assim que o prprio positivismo de Hart, levado por essa
objetividade das regras, construiu uma imagem do direito no conseguindo descrev-lo colado
na prpria faticidade. Isso parece permanecer na classificao (semntica) proposta por Alexy
em seu conceito de norma. A partir dele somos surpreendidos por uma artificialidade que
efetua uma ciso radical entre regras e princpios oferecendo, inclusive, diferentes
procedimentos para a aplicao de cada uma destas espcies normativas.
Destarte, o que Alexy opera uma classificao de normas, num sentido prximo
daquilo que no Brasil ficou famoso no formato da classificao das normas constitucionais. O
modelo matemtico do a priori de Alexy e, em ltima anlise, de todo positivismo jurdico de
inspirao kantiana, faz com que a segurana e certeza da argumentao jurdica se d,
pretensamente, no mbito de uma estrutura formal a priori que a ponderao.
175
Fazemos uso do termo mtodo entre aspas para distingui- lo da acepo que em
torno dele se constri na modernidade no sentido de um procedimento mecnico prvio capaz
de ordenar e estruturar o conhecimento de algo. Para esse sentido, usamos o termo mtodo
sem aspas. Com mtodo queremos significar como esclarece Heidegger o caminho
atravs do qual se segue a coisa 250 . Esse caminho ser, desde sempre, provisrio uma vez que
os resultados alcanados sempre sero provisrios e dependero de uma confirmao para
saber qual a percucincia de tais resultados. O mtodo em sua acepo tradicionalmente aceita
desde a modernidade, tem o carter de rigidez e a crena de que seu resultado ser sempre
correto. Trata-se, portanto, de estruturas cannicas ou etapas rigidamente pr-determinadas,
enquanto que no mtodo estamos diante de um constante caminhar que procura, na medida
do possvel, mostrar aquilo que persegue. J a distino entre mtodo e procedimento se
afigura bem mais complexa. Todavia, para efeitos do que nesta pesquisa pretendemos
abordar, podemos dizer que, enquanto pela idia de mtodo tradicionalmente desenvolvida,
estava tambm implicada uma pretenso de certeza e verdade ao final de sua correta
aplicao; quando falamos em procedimento temos que o contedo da deciso tomada
conforme o procedimento , em princpio, irrelevante 251 . Com isso, nos aproximamos em
grande medida das questes que envolvem todo problema democrtico de legitimao e
estrutura das decises poltico-jurdicas que , no fundo, o problema que se enfrenta com a
questo da ponderao e do juiz Hercules. Dessa forma, a ponderao tem o carter de
procedimento na medida que a justificao da fundamentao da deciso tomada pelo juiz
dada conforme o procedimento, sendo desonerado de uma justificao conteudistica. J o
mtodo de Hercules reivindica uma justificao de um contexto conteudistico no interior do
qual forma e contedo se interpenetram. Ou seja, se exige que no apenas o procedimento seja
eqitativo, mas tambm que produza um resultado que justifique a coao do Estado 252 .
Desenvolveremos, primeiro, a forma como Alexy apresenta a ponderao. J
sabemos que a ponderao tem lugar nos chamados casos difceis e que ela visa sanar uma
eventual coliso de princpios para que, depois de sua correta aplicao, possa ser
determinada a regra a ser subsumida ao caso. Ou seja, no h em Alexy propriamente
aplicao de princpios nos termos das tradicionais teorias semnticas da interpretao
jurdica mas somente aplicao de regras, visto que do procedimento da ponderao que
250
176
ope dois princpios em conflito resulta uma regra que ser efetivamente subsumida ao caso
concreto.
Alexy desenvolveu vrias estratgias para legitimar seu procedimento que
merecem ser explicitadas. Como uma pergunta guia, podemos oferecer a seguinte questo:
Quem elege os princpios conflitos para que seja realizada a ponderao? Por que so sempre
apenas dois os princpios em conflito? Qual a diferena entre princpio e valor? Por que o
juzo de ponderao sempre um juzo de va lorao, mas isso no implica dizer que o
contedo dos princpios sejam propriamente valores?
Procurando esclarecer as questes que envolvem a ponderao e o possvel
enaltecimento de um subjetivismo do juiz na aplicao de tal tcnica, Alexy procura
desenvolver a idia daquilo que ele chama de dogmtica dos espaos que se vinculam,
intimamente, formula da ponderao 253 . Para ele, esta construo de uma dogmtica dos
espaos resolveria o problema de possveis subjetivismos, ao mesmo tempo em que
demonstra a racionalidade da tcnica da ponderao a partir dos limites que so impostos
pelos espaos estruturais e pelos espaos epistemolgicos. Os espaos so os lugares nos
quais o legislador e o julgador se movimentam em razo da aplicao dos princpios jurdicoconstitucionais. No desenvolvimento desta dogmtica, deve-se ficar claro o papel exercido
pelos espaos estruturais e pelos espaos epistemolgicos (ou cognitivos).
Os espaos estruturais so definidos pela ausncia de mandamentos ou proibies
constitucionais definitivas. O que a constituio no probe ela libera ou deixa livre
253
Ainda neste texto, Alexy argumenta em defesa da sentena Lth proferida pelo Tribunal Constitucional
Federal Alemo em 1958 , uma das famosas intervenes que o Tribunal exerceu durante o apogeu daquilo que
se convencionou a chamar jurisprudncia dos valores. Para Alexy, no h que se falar em
sobreconstitucionalizao do ordenamento, como entendem Forsthoff e Bckenfrde, a partir da qual o Tribunal
estaria exercendo uma competncia normativa inadmissvel em um contexto democrtico. Segundo ele, a linha
desenvolvida a partir da sentena Lth est em geral correta. Erros foram naturalmente cometidos e em toda
parte perigos esto espreita. Estes, porm, podem ser prevenidos com meios que so imanentes estrutura dos
princpios constitucionais e, com isso, estrutura da Constituio que os contm. Traz-los luz tarefa de uma
dogmtica dos espaos. (...) Uma Constitucionalizao adequada somente possvel obter sobre o caminho,
pedregoso e cheio de manhas, de uma dogmtica do espao. Criticando fortemente a linha de deciso da
sentena Lth, em particular o mtodo utilizado para sua fundamentao, Friedrich Mller assevera: Tal
procedimento (a ponderao) no satisfaz as exigncias, imperativas no Estado de Direito e nele efetivamente
satisfatveis, a uma formao da deciso e representao da fundamentao, controlvel em termos de
objetividade da cincia jurdica no quadro da concretizao da constituio e do ordenamento jurdico
infraconstitucional. O teor material normativo de prescries de direitos fundamentais e de outras prescries
constitucionais cumprido muito mais e de forma mais condizente com o Estado de Direito com ajuda dos
pontos de vista hermenutica e metodicamente diferenciadores e estruturante da anlise do mbito da norma e
com uma formulao substancialmente mais precisa dos elementos de concretizao do processo prtico de
gerao do direito, a ser efetuada, do que com representaes necessariamente formais de ponderao, que
conseqentemente insinuam no fundo u ma reserva de juzo (Urteilsvirbehalt) em todas as normas
constitucionais, do que com categorias de valores, sistema de valores e valorao, necessariamente vagas e
conducentes a insinuaes ideolgicas. Mller, Friedrich. Mtodos de Trabalho de Direito Constitucional. op.,
cit., p. 36.
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dos fundamentos jurdico, visto que procede tal qual a investigao matemtica da natureza
prpria da cincia moderna. Como vimos com vagar no segundo captulo deste trabalho, s
na modernidade que a natureza investigada fundamentalmente de modo matemtico: Uma
lei posta na base (aberta pela investigao) no sentido de obter os fatos que lhe verifiquem ou
lhe neguem verificao. Ou seja, quando falamos em ponderao (ou dogmtica de espaos)
nos situamos no mbito de algo que, na filosofia da cincia se conhece como contextos de
descoberta e contextos de justificao.
Neste sentido, quando se tem um caso difcil entendido como aqueles nos quais
as regras no conseguem regular de forma subsuntiva deve-se primeiro descobrir quais
princpios se encontram em conflito. Isso importante. Apenas quando no h respostas nas
regras ou, para usar a terminologia alexyana, nos mandados de definio, que se recorre a
um argumento de princpio, ou mandados de otimizao. Com a otimizao implica que um
princpio deve ser cumprido na maior medida possvel respeitadas as condies reais e
jurdicas, toda vez que estiver em jogo uma questo de princpio, dir Alexy, sempre haver a
necessidade de se ponderar 256 . Isso porque no havendo hierarquia entre princpios e sendo
todos eles mandados de otimizao, eles permanecem em constante tenso, de modo que,
apenas a ponderao poder determinar qual princpio dever prevalecer, estabelecendo assim
a regra a ser aplicada ao caso. Portanto, depois de descobertos os princpios em conflito, no
contexto do caso analisado, passa-se para o contexto de justificao dado teoricamente pelo
procedimento da ponderao. Para a justificao se dar, tem-se previamente determinada uma
lei posta na base da investigao que descobriu o conflito entre princpios que dever testar
sua verificabilidade. No exemplo trazido pelo prprio Alexy na questo envolvendo o
princp io da sade pblica e o princpio da liberdade profissional, no caso dos produtores
256
importante (e necessrio) frisar que a crtica ciso, estrutural, entre casos fceis e casos difceis dirigida
a Alexy e decorre de sua distino, igualmente estrutural, entre regra e princpio. Alexy procede assim porque
se mantm aprisionado ao paradigma da filosofia da conscincia e atende, com isso, a uma exigncia do esquema
representacional sujeito-objeto estabelecer previamente o que seja um caso fcil ou um caso difcil significa
objetificar o processo compreensivo. Essa operao acarreta, como bem assinala Lenio Streck, a substituio da
razo prtica e a construo de uma teoria da argumentao que busca construir uma racionalidade discursiva,
estabelecendo previamente modos de operar diante da indeterminabilidade do direito como o caso da
ponderao. Esse tipo de ciso no ocorre em autores como Dworkin. Isso porque Dworkin, contrapondo-se ao
formalismo legalista e ao mundo das regras positivista, busca nos princpios os recursos racionais para evitar o
governo da comunidade por regras que possam ser incoerentes em princpio. neste contexto que Dworkin
trabalha a questo dos hard cases, que incorporam, na sua leitura, em face das dvidas sobre o sentido de uma
norma, dimenses principiolgicas, portanto, no consideradas no quadro semntico da regra. Distinguir casos
simples de casos difceis no o mesmo que cindir casos simples de casos difceis. Essa pode ser a diferena
entre a dicotomia hard e easy cases de Dworkin e a das teorias discursivo-procedurais. Cindir hard e easy cases
cindir o que no pode ser cindido: o compreender, com o qual sempre operamos, que condio de
possibilidade para a interpretao (portanto, da atribuio de sentido do que seja um caso simples ou um caso
complexo) (STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. op. cit., p. 250).
180
de produtos tabagistas serem obrigados a imprimir avisos de risco sade advindos do uso
continuado de tais produtos. Trata-se de um caso difcil segundo Alexy porque, mesmo
havendo regra que determine a obrigao dos fabricantes tal regra poderia ser inconstitucional
se estivesse em desacordo com o princpio da liberdade profissional. Porm, se descobre que,
alm da liberdade profissional a Constituio tambm guarnece o princpio da sade pblica o
que torna conflituosa no mbito semntico a determinao da regra a ser aplicada ao caso
em questo. importante notar que Alexy no coloca com problema quem descobre os
princpios em conflito e parece ignorar que essa deciso sobre quais princpios esto em
coliso fator determinante para sua ponderao. Isso no se d por um motivo aleatrio,
mas porque as teorias jurdicas de um modo geral, que circulam no mbito da dicotomia
descoberta e justificao, no esto preocupadas com o contexto de descoberta, mas apenas e
simplesmente com o contexto de justificao. No preciso muito esforo para perceber que
tambm teorias positivistas como a de Hans Kelsen compartilham desta caracterstica. Como
j foi vrias vezes ressaltado, Kelsen no se preocupa com o contexto de descoberta
(interpretao do direito ato de vontade) por ser este um problema da razo prtica que no
pode ser apreendido tericamente pela razo. Todavia, partindo de contextos de descobertas
(evidentemente no problematizados), Kelsen constri toda Teoria Pura do Direito sob o
signo de um contexto de justificao procedimental de validade do direito (interpretao da
cincia do direito ato de conhecimento). Novamente a proximidade entre Kelsen e Alexy
fica evidenciada. Ambos se situam num contexto de justificao dado matematicamente por
uma estrutura procedimental pr-determinada. E mais! Tanto Alexy quanto Kelsen professam
um conceito semntico de norma jur dica.
No deixa de ser curioso que justamente o contexto de descoberta que torna
problemtica toda estrutura da ponderao na forma como a desenvolve Alexy. Alm do
problema de quem elege os princpios em conflito o que por si s j aponta para um
elemento discricional no tematizado pelo autor podemos elencar tambm como uma
questo problemtica a seguinte pergunta: Por que a sade pblica, que consta textualmente
na Constituio, um princpio e no uma regra? Por que a liberdade profissional, que consta
textualmente na Constituio, um princpio e no uma regra? Ou seja, o que faz um
princpio ser um princpio? Fora do contexto justificador da ponderao ressalta-se que
abstrato e artificial no h como assegurar, com uma preciso mnima, o conceito de
princpio proposto pela teoria da argumentao jurdica alexyana. Afinal, o simples fato de
compor o texto constitucional faz com que um enunciado jurdico goze do carter de
181
princpio. Ou ser a determinao da otimizao que deve ser encarada como fator
determinante para que um princpio se manifeste como um princpio. Evidentemente que esta
ltima alternativa parece ser mais coerente com a teoria de Alexy. Todavia, ainda nestes
termos, temos um problema na definio de otimizao como caracterstica especfica dos
princpios: a discricionariedade que emana da avaliao de at que ponto um princpio deve
ser efetivado.
Desse modo, somos remetidos forosamente, ao mbito de justificao, ou seja,
ponderao. Tambm quanto a prpria estrutura da ponderao possvel formular algumas
questes importantes: 1) para Alexy, princpios so distintos de valores, embora a ponderao
tenha lugar a partir de um procedimento que valorativo. Portanto o juzo que decide a
respeito de cada uma das etapas da lei da ponderao um juzo valorativo; 2) o
resultado da ponderao isto , a regra da ponderao no aparece como um problema
efetivo para Alexy, pois sua validade est condicionada ao procedimento. Estes dois fatores
devem nos permitir iluminar o fato de que Alexy no consegue se livrar do problema que o
paradigma filosfico sob o qual est assentado lhe legou: a aporia entre razo terica e razo
prtica. Isto porque em todas as questes que a razo prtica entre em jogo, sua sada
sempre garantida por uma construo terica, que no responde nem o problema prtico da
valorao das etapas da ponderao, nem o problema prtico do resultado do procedimento da
ponderao. Portanto, o verdadeiro problema interpretativo do direito (o de sua
indeterminao e da conseqente discricionariedade da deciso judicial) permanece no
resolvido por Alexy, tendo em vista que ele continua oferecendo construes abstratas para
soluo dos problemas jurdico, situando-se no mbito daquilo que Dworkin chama de teorias
semnticas.
Mas como fica, ento, o conceito de princpio no interior do mtodo de
Hercules desenvolvido por Dworkin em seu conceito de direito como integridade?
Para responder tal indagao, preciso saber se transportar para o mbito em que
Dworkin desenvolve suas consideraes sobre Hercules percebendo no que ele se distingue
daquele no qual Alexy edifica sua ponderao. De um modo muito simplista poderamos dizer
que enquanto a teoria alexyana semntica, Dworkin nos oferece uma teoria pragmtica que
parte do pressuposto de que o direito seja uma prtica interpretativa. Mas isso no seria
suficiente para captar a riqueza do pensamento dworkiano.
Para Dworkin a complicao se manifesta j no momento de se descrever aquilo
sobre o que, em direito, realmente estamos falando. Evidentemente que para Dworkin no
182
Cf. DWORKIN, Ronald. O Imprio do Direito. op., cit., pp. 305 e segs..
Cf. CALSAMIGLIA, Albert. El concepto de integridad em Dworkin. op., cit..
183
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que no pode ignorar a faticidade e historicidade daquele que pergunta pelo sentido: o ser-a.
Onde o sentido acontece temos necessariamente, como vetor de racionalidade a diferena
ontolgica, que liberta a filosofia de todo contexto terico opressivo que a marcara desde a
construo do sujeito da modernidade. Esse mundo prtico, enquanto primado do sentido
enquanto horizonte transcendental no qual aparece qualquer questo do conhecimento
humano inclusive o direito e o conceito de princpio , torna impossvel se falar em
qualquer separao entre sujeito e objeto, como j vem sendo afirmado desde o incio desta
investigao. E impossvel separar sujeito de objeto porque, no fato histrico, j estamos
mergulhados num horizonte de sentido que dever ser compreendido e interpretado pelas
estruturas existncias do crculo hermenutico. Compreenso essa organizada pelo vetor da
diferena ontolgica.
Mas h outra questo extremamente importante. Esse mundo prtico s prtico
porque histrico. Sendo assim no possvel falar de um sentido que no seja atravessado
pela historicidade do ser-a. Da a impossibilidade de se falar em um grau zero de sentido
(Streck), que desconsidere a dimenso histrica no interior da qual estamos, desde sempre,
imersos.
No contexto dessa revoluo heideggeriana e tendo a diferena ontolgica como
vetor de racionalidade, Le nio Streck constri a tese de que os princpios so responsveis pela
introduo do mundo prtico no direito. Isso porque atravs deles que o debate
envolvendo o ethos, a liberdade, a interpretao e outros problemas que se relacionam mais
diretamente condio humana, so retomados pelo discurso jurdico. Antes, o contexto
terico que de alguma forma ou de outra, com menor ou maior amplitude, buscavam assento
no princpio da causalidade impedia qualquer tematizao efetiva dos princpios porque
estes eram tidos como irracionalidades, relegados ao plano da razo prtica, ou poltica
jurdica.
Nessa medida, Lenio afirma
Os princpios (constitucionais) possuem um profundo enraizamento
ontolgico (no sentido da fenomenologia hermenutica), porque essa
perspectiva ontolgica est voltada para o homem, para o modo de
esse homem ser- no-mundo, na faticidade. O fio condutor desses
princpios a diferena ontolgica (ontologische Differentz). por ela
que o positivismo invadido pelo mundo prtico. neste contexto
que deve ser entendida a relao entre fenomenologia hermenutica
com o direito, isto , do mesmo modo como o mundo prtico
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introduzido na filosofia (esse o papel da viragem lingsticoontolgica), tambm o direito sofre uma viravolta 265 .
Mas estes princpios compreendidos desta maneira ontolgicamente adequada
so esvaziados de seu sentido se investigados num contexto meramente semntico-sinttico
como faz Alexy. De algum modo, Alexy se mantm atrelado s tentativas tericas
desenvolvidas no direito a partir do vetor da causalidade. Sua vinculao com o sujeito
moderno, juntamente com o carter matemtico de sua ponderao, levam ao predomnio da
representao e da objetificao dos princpios que, deste modo, so colocados num lugar
muito distante das regras. A teoria dos princpios alexyana, deste modo, objetifica o conceito
de princpio e, a partir desta objetificao faz a distino que uma ciso estrutural
entre regra e princpio. E s porque h esta ciso, decorrente da objetificao conceitual, que
Alexy poder construir a frmula da ponderao como procedimento apto a resolver os
chamados casos difceis. E os casos difceis nada mais so do eu aqueles nos quais estamos
diante da chamada textura aberta de Hart ou da moldura da norma de Kelsen, ambas
teorias semnticas, como a de Alexy. Esse semnticismo fatalista (como bem assinala
Streck), porque delega quele sujeito da modernidade, signo de uma subjetividade solipsista,
o poder discricionrio de resolver a demanda. Por tudo que foi dito no tpico antecedente,
ficou claro como que a ponderao no resolve o problema da discricionariedade a partir de
uma justificao matemtico-procedimental da deciso judicial, mas sim a retoma de um
modo ainda mais perigoso, uma vez que legitima a discricionariedade do juiz a partir da sua
validao pelo procedimento.
Portanto, preciso acentuar as crticas feitas por Lenio Streck s posies
vinculadas s teorias da argumentao e ponderao que, de alguma forma ou de outra,
guardam uma relao de fundo com Alexy. Segundo Streck as teorias da argumentao, em
suas mais diversas matizes, podem ser vistas como uma
Espcie de adaptao darwiniana do positivismo face crescente
judicializao do direito, que funciona a partir da elaborao de
conceitos jurdicos com objetivos universalizantes, utilizando,
inclusive, os princpios constitucionais. Os princpios constitucionais,
que deveriam superar o modelo discricionrio do positivismo,
passaram a ser anulados por conceitualizaes, que acabaram por
transform- los em regras ou proto-regras 266 .
265
266
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Ou seja: o que faz a igualdade ser um princpio e no uma regra? Por que ao invs
de falar em princpio da igualdade no falamos em regra da igualdade? E o devido processo
legal, o que faz dele um princpio? Por que tambm neste caso no podemos falar em uma
regra do devido processo legal?
Definitivamente o conceito de princpio no se determina pelo grau de abstrao
ou generalidade 267 . preciso ter cuidado para no transformar um princpio em clusula
geral268 . Nem conceber os princpios como aberturas axiolgicas do sistema tal como faz
a maioria da doutrina privativista baseada em autores como Canaris a partir de onde se
professa a idia de que os princpios so o portal de entrada dos valores no direito positivo.
Em suma, a igualdade no um princpio porque mais geral ou abstrato que uma
regra; nem tampouco o porque atravs dela introduzimos valores no discurso jurdico.
Tambm no podemos aceitar a tese de que princpios colidem em abstrato por serem
mandados de otimizao que exigem sua implementao mxima respeitada as condies
jurdicas e fticas. Todas estas teses operam uma espcie de seqestro do mundo prtico.
Falamos da igualdade como princpio porque, em qualquer caso concreto estar em jogo o
problema da igualdade, que sempre funcionar como um todo referencial para determinao
das regras que iro construir a regulamentao daquele caso na deciso do juiz. Esta, por sua
vez, no poder ser tomada de forma aleatria, mas sim de acordo com a historia institucional
(leis, precedentes, Constituio) e pelos princpios morais que ordenam, de modo coerente, a
comunidade. No h um princpio para cada caso. Nem apenas dois princpios em coliso
como quer Alexy. Isso objetificar. permanecer dentro da relao sujeito objeto a busca por
determinar, previamente, qual princpio se aplica a um determinado caso e em qual caso se
267
Frisa-se que a tese do grau de abstrao e da generalidade defendida por autores importantes para o
constitucionalismo brasileiro como o caso de Gomes Canotilho. Com efeito, o mestre portugus opera com um
conceito de princpio que se determina a partir do grau de abstrao e, assim se diferenciariam das regras, em
que o grau de abstrao seria relativamente reduzido. Isso faz com que tambm Canotilho cai nas armadilhas da
filosofia da conscincia e continue afirmando o poder discricionrio do juiz solipsista. Nas palavras do autor: os
princpios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediaes concretizadoras (do legislador do juiz),
enquanto as regras so susceptveis de aplicao direta (CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e
Teoria da Constituio. 4 ed. Coimbra: Almedina, 2000, p. 1124). De se asseverar que a tese de Canotilho
amplamente reproduzida pela dogmtica jurdica brasileira. Autores como Jos Afonso da Silva, Ruy Samuel
Spindola, Luis Virglio Dalla-rosa, acentuam o carter de abstrao e generalidade dos princpios como
determinante para sua conceitualizao e para efetuar a diferena com relao s regras. No rara das vezes, a
tese da abstrao aproximada, de forma no muito rigorosa, com a classificao alexyana em que o conceito de
princpios aparecem como mandados de otimizao. Em comum, ambas as perspectivas comungam o fato de
atriburem alguma margem de discricionariedade para o juiz, o que colocado em questo quando procuramos
tratar os princpios da forma como propomos neste trabalho.
268
Neste sentido, vide as crticas de Lenio Streck recepo do Novo Cdigo Civil pela comunidade jurdica
brasileira que insiste em retrat-lo como o cdigo do juiz, na parte em que se tem a incorporao das chamadas
clausulas gerais que, neste sentido, seriam a abertura para a discricionariedade do juiz (Cf. STRECK, Lenio
Luiz. Verdade e Consenso. op. cit., p. 171).
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aplica um princpio (o problema da ciso estrutural entre easy e hard cases). Em todo caso
singular h uma totalidade de princpios que operam juntos na formao da regulamentao
pertinente que ser lanada na deciso. Por isso a distancia entre regras e princpios no
assim to grande como quer Alexy. No h casos em que se aplicam regras e casos em que se
aplicam princpios, mas, pelo contrrio, em todo e qualquer caso h a compreenso e
interpretao de princpios e regras.
Por tudo isso, deve-se reconhecer razo Lenio Streck quando diz que h uma
diferena ontolgica entre regra e princpio. Isso representa um resgate do mundo prtico no
mbito do pensamento jurdico. Nos princpios se manifesta o carter da transcendentalidade.
Em toda caso compreendido e interpretado j sempre aconteceram os princpios e no o
princpio; toda deciso deve sempre ser justificada na comum- unidade dos princpios, como
nos mostra Dworkin. No h regras sem princpios, do mesmo modo que no h princpios
sem regras. H entre eles uma diferena, mas seu acontecimento sempre se d numa unidade
que a antecipao de sentido.
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CONSIDERAES FINAIS
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common law) sofrem as conseqncias deste fenmeno, porm s avessas: entre eles se
verifica um aumento do direito legislado em meio a uma tradio muito mais judicialista que
a nossa; c) a crise da legalidade, fenmeno prprio da periferia do capitalismo onde o espao
pblico de legalidade sob o qual se constitui o direito perpassado por interesses privados
e as condies de regulao estatal so colocadas em cheque por estes nichos particulares de
poder.
Em todas estas questes estamos diante de uma situao decisiva para a teoria do
direito: a deciso judicial. Todos estes problemas desembocam, em alguma medida, no
momento decisional e tm, na figura do juiz, o seu protagonista. No caso do aumento da
dimenso hermenutica do direito pelas Constituies, so os juzes chamados a intervir para
atender as demandas que os textos destas constituies incorporaram. A inflao legislativa
gera uma espcie de impossibilidade de conhecimento e informao de todo o manancial
legislativo e, no momento da deciso, o juiz procurar fundament- la em fatores que lhe
possibilitem ir alm do texto da lei. Quanto crise da legalidade, basta dizer que tambm o
judicirio ir responder por ela como o locus privilegiado no momento de decidir.
Portanto, a colocao dos correlatos problemas da indeterminao do direito e a
necessidade se de construir anteparos para os poderes dos juzes aparecem como que
potencializados diante de tais circunstncias. E em todos estes casos, est implcita, de algum
modo, a questo do (ou a pergunta pelo) conceito de princpio. Da a importncia de coloc- lo
em questo, para poder determinar seus limites e possibilidades, bem como tornar mais clara e
precisa sua definio. Toda nossa pesquisa se fez com esse nico objetivo; cabe agora
relacionar alguns pontos importantes a ttulo de consideraes finais.
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naturalismo que se manifesta neste modo matemtico de se colocar a questo visto que, neste
sentido, os princpios apenas so e nada mais.
8. A denominao princpios pragmtico-problemticos foi aquela que
encontramos para mencionar o conceito de princpio que se forma a partir da tradio que, no
continente, comea a se constituir no horizonte do segundo ps- guerra, a partir da qual se
passa a dar primazia para o momento concreto de aplicao do direito, em detrimento do
momento abstrato-sistemtico privilegiado no uso dos dois conceitos anteriores. Os
movimentos histricos que se seguem depois do fim da segunda Guerra Mundial so
decisivos para o direito e para as teorias jurdicas que se desenvolveram no continente a partir
de ento. No direito, a radicalizao do dirigismo constitucional na Alemanha e na Itlia, bem
como a ampliao do campo da interveno jurdica no tecido social, acirraram a tenso entre
poltica e direito. A consagrao de Tribunais Constitucionais ad hoc para fiscalizar a
constitucionalidade das leis faz com que novos problemas metodolgicos sejam tematizados
pela teoria jurdica e, dessa maneira, os estudos sobre interpretao passam a ocupar, cada vez
com mais proeminncia, um lugar de destaque nas obras produzidas neste perodo. Nessa
medida, d-se uma radical mudana na intencionalidade com relao ao direito que, em ltima
anlise, trar consigo propostas jusfilosficas dispostas a repensar o sentido do direito e seus
vnculos com o comportamento humano concreto. Isso importa em no trat-lo mais como um
sistema cerrado, construdo abstratamente a partir de modelos epistemolgicos fundados na
subjetividade e modelados conforme os padres matemticos de conhecimento. Isso tudo
implica na afirmao de um direito (ius) distinto da lei (lex), ou seja, de um direito que se
forma a partir de elementos normativos constitutivos diferentes da lei, o que radicalmente
novo desde a formao do direito moderno. Nesse sentido, a afirmao dos conceitos de
direitos fundamentais, das chamadas clusulas gerais, dos enunciados abertos e,
evidentemente, dos princpios. Todos estes elementos que, como dissemos, passam a ser
constitutivos da normatividade so reconhecidos independentemente da lei ou apesar dela.
9. O que une todos estes elementos numa unidade a oposio a qualquer
normativismo abstrato, em favor de uma espcie de jurisprudencialismo a intencionar uma
validade jurdica que culmina na prpria prtica judicativa que, em concreto, assume e
problematicamente reconstri aquela validade. O primado terico que a matematicidade do
direito racionalista forjou acabava por direcionar a manifestao da experincia jurdica para
o conhecimento da legislao e a supresso de suas lacunas e incoerncias. Dessa maneira, os
debates tericos e os problemas jurdicos passam a reivindicar o estatuto da prtica e a
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atividade jurisdicional assume um lugar proeminente nesta questo. Todos estes fatores
aparecem com nitidez nos movimentos que levaram consolidao da chamada
jurisprudncia dos valores, que surge na Alemanha em virtude da atuao do Tribunal
Constitucional Federal no s anos que sucederam promulgao da Lei Fundamental
(outorgada pelos aliados). As estratgias de legitimao da Lei Fundamental perante os
prprios alemes, e de poltica institucional num sentido mais amplo que passava pela
impresso que o novo regime causaria na opinio pblica internacional tiveram que
enfrentar conflitos envolvendo casos concretos ocorridos ainda sob a gide do direito nazista.
Pela tradio, este era um tpico caso a ser resolvido pela aplicao do adgio latino tempus
regit actum. Contudo, isso significaria dar vigncia s leis nazistas em pleno restabelecimento
da democracia e fundao de um novo Estado. (Re)fundao esta que implicava a afirmao
de uma ruptura total com o regime anterior. Mas isso reivindicava uma tomada de deciso
extra legem e, em ltima anlise, at contra legem. Desse modo, para legitimar suas decises
e, ao mesmo tempo, no reafirmar as leis nazistas, o Tribunal passou a construir argumentos
fundados em princpios axiolgicos-materiais, que remetiam para fatores extra-legem de
justificao da fundamentao de suas decises. Afirmava-se, portanto, um direito distinto da
lei. Mas no bastava isso, era preciso criar instrumentos que permitissem justificar,
normativamente, tais decises. Assim que comearam a aparecer, nas decises do Tribunal,
argumentos que remetiam clausulas gerais, enunciados abertos e, obviamente,
princpios.
10. Novamente, essas manifestaes implicaram um problema de fundamentao.
A pergunta que se colocou era: Como esse jurisprudencialismo principiolgico, que afirma
um direito alm e apesar da lei, poderia se afirmar sem o assombro do fantasma do
relativismo? No mbito da jurisprudncia dos valores, destacamos duas estratgias distintas
para o enfrentamento do problema da fund amentao e da discricionariedade das decises: a
primeira reporta-se para um axiologismo filosfico ou para uma espcie de direito natural
axiolgico, a partir da qual se buscava uma justificao, na filosofia, para a objetividade dos
valores veiculados pelas decises do tribunal; a segunda estratgia se encaminha para uma
questo metodolgico-procedimental com o aparecimento da ponderao, como conseqncia
lgica do princpio da proporcionalidade. O Tribunal aplicava o mtodo da ponderao como
um modo de soluo para um pretenso conflito entre valores que fundamentavam os direitos
em coliso. A ponderao enquanto mtodo foi duramente criticada por diversos setores do
pensamento jurdico alemo, sempre com base na acusao de relativismo e irracionalismo.
196
neste momento que entra em cena Robert Alexy, para se tornar um dos protagonistas dessa
nova forma que o conceito de princpio passou a assumir a partir do horizonte projetado no
segundo ps- guerra. Alexy sempre se mostrou um profundo defensor da valorao e da
ponderao, porm reconhecia que o Tribunal cometera equvocos sob o signo da ponderao
de valores. Diante disso, o autor se props a corrigir os defeitos que a utilizao da
ponderao pelo tribunal acarretara, construindo no mais um mtodo, mas um verdadeiro
procedimento. A partir deste procedimento algumas distines precisam ser feitas: No se
ponderam valores, mas sim princpios; a valorao um processo interno portanto subjetivo
de apreciao dos princpios em conflito; os princpios sempre colidem porque, como
mandados de otimizao constitucionalizados, eles reivindicam sua realizao no mximo
nvel possvel, dentro das possibilidades reais e jurdicas. Estas possibilidades so
determinadas realisticamente pelo contexto ftico e pelos limites impostos pela prpria ordem
sistemtica dos princpios que esto, frequentemente, em fluxo de tenso. Destarte, a
ponderao funciona como uma frmula (tanto-quanto) que ir solucionar esta coliso de
princpios, mas que no ir, definitivame nte, solucionar o caso concreto. Este influencia na
apreciao da ponderao, porm no retira dela sua soluo. Da ponderao se retira uma
regra que, esta sim, ser subsumida ao caso. Dito de outro modo, a fundamentao da deciso
continua garantida pelos processos tradicionais de interpretao e conhecimento do direito
embora com alguma reviso no que tange apreciao subjetiva do intrprete porm, a
minorao da discricionariedade se d pela justificao desta fundamentao que ser
garantida pelo procedimento da ponderao.
11. Uma tcnica metodolgico- formal como a ponderao s pde ser
desenvolvida no continente porque, numa dimenso mais profunda, j estamos tomados pelas
estruturas de pensamento que forjaram nosso modelo de sistema jurdico (romanogermnico), ou seja: um sistema fechado em que toda e qualquer resposta ao problema da
discricionariedade e da ponderao deve passar por uma justificao axiomtico-dedutiva que
, em ltima anlise, matemtica. Naturaliza-se, portanto, o discurso jurdico que se torna
prisioneiro de um corte puramente teortico que o oprime e que tende a privilegiar uma
problematizao abstrata a partir da generalizao de estruturas formais em contextos
semnticos-sintticos de investigao, em detrimento de uma postura mais colada faticidade
e existncia, inserida num contexto que pragmtico-semntico.
12. num sentido mais prximo a este contexto pragmtico-semntico de
investigao que se situa Ronald Dworkin. Proveniente de um sistema jurdico que tem por
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198
princpio de modo a chegar at a tese da nica resposta correta justamente para combat- lo.
Em Alexy, embora seja a discricionariedade problematizada de modo implcita quando a
ponderao se prope a resolver o problema do relativismo, ela no chega a ser colocada
como um verdadeiro problema porque o procedimento da ponderao no se preocupa com o
resultado produzido, mas apenas com a observao correta da frmula. Isso se d assim em
Alexy por ser ele herdeiro legtimo de toda a tradio continental e de seus vnculos
profundos com o modo de pensar da Metafsica. Estas questes nos levaram tematizao dos
pressupostos que nos permite desenvolver um fio condutor que vai de Kant at Alexy,
passando por Kelsen e Radbruch, cujo eixo temtico justamente a estrutura do pensamento.
Desse modo, tematizamos as relaes entre o direito e a metafsica e as tentativas de
superao das armadilhas que o pensar metafsico acarreta. Tudo isso para mostrar que a sada
do beco dogmtico da matematizao imposta pelo pensamento moderno e da
discricionariedade desenvolvida em torno do fatalismo positivista (Streck), s podem ser
colocadas como questo por um pensamento que tenha superado o modo de pensar da
metafsica. Esse modo de pensar, que comanda a prpria investigao dos fundamentos
metafsicos do direito, garantido pela fenomenologia hermenutica e atravs dela foi
possvel chegar a uma interpretao mais radical de Alexy e Dworkin.
14. Tais questes nos levaram necessariamente a Kant como ponto decisivo, a
partir do qual a reflexo filosfica sobre o direito se torna reflexo transcendental, que deve
atingir a conceitualizao fundamental e a explicitao de suas decisivas implicaes realconcretas, ou seja, deve garantir e determinar sua inteligibilidade e nada mais. Para a filosofia
do direito, envolvida neste espao crtico, o importante no que o direito deite suas razes na
natureza racional do homem (a totalidade metafsica do direito natural moderno), mas que
encontre sua fundao e sua legitimao no carter a priori dos princpios universais aos
quais recorre a razo prtica em todas as suas manifestaes.
15. Desse modo, com a inverso do dualismo clssico e a determinao da coisa
em si operados por Kant, temos o abandono dos fundamentos que a metafsica ingnua
impunha ao direito natural (a cosmologia; a teologia e a psicologia racional), para entrar numa
metafsica do conhecimento do direito. Assim, a Filosofia do Direito representa uma primeira
tentativa de se retirar o pensamento do direito do atoleiro dogmtico da Metafsica e temos,
com o criticismo transcendental de Kant, a inaugurao de uma metafsica do conhecimento
no direito. Desse modo, deixou-se de fazer metafsica do direito, preocupada com os modos
de sua manifestao e fundamentao a partir de processos naturais e passou-se a perguntar
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ligada Crtica da Razo Prtica. De Marburgo recebe Hans Kelsen as principais influncias
para compor sua Teoria Pura do Direito, ao passo que Baden foi a escola determinante
presente nas posturas axiologistas do segundo ps- guerra, dentre as quais podemos citar a
posio de Gustav Radbruch.
18. Como kantiano, Kelsen se filia ao criticismo transcendental da Razo pura
terica e, a partir dos procedimentos crticos da dialtica transcendental, determina as
condies de possibilidade do fenmeno jurdico operando o processo de especializao
daquilo que, no interior do conhecimento efetivo (entendido kantianamente), h de jurdico.
Neste nvel ele efetua o corte radical entre direito e moral, ou qualquer outro tipo de
manifestao tico- valorativa ao mesmo tempo que exclui qualquer tipo de abordagem
psicologicista sobre o direito. Desse modo, o objeto de sua epistemologia jurdica se apresenta
exclusivamente dado pelo sistema de normas jurdicas, que imprimem sentidos nos atos
sociais. Ao mesmo tempo, a partir de uma operao epistemolgica determinada pela norma
jurdica enquanto modelo de interpretao e objeto da cincia do direito, Kelsen garante a
especificidade e a autonomia do direito frente poltica, sociologia e ideologia. h uma
espcie de acerto filosfico em Kelsen, na medida em que ele percebeu que o direito no
uma mera realidade factual, mas que h um elemento transcendental que o compe. O
problema surge quando este elemento transcendental reduzido subjetividade e organizado
de modo matemtico dedutivo a partir de sua lgica dentica de proposies. Tambm o
problema da separao entre cincia do direito e direito; ou ainda, entre ato de conhecimento
e ato de vontade se mostram problemticas frente a uma perspectiva que procure pensar o
direito fora de padres tericos matematizantes.
19. No axiologismo jurdico que aparece no segundo ps- guerra cuja influncia
do neokantismo de Baden sensivelmente sentida destacamos a teoria do direito de Gustav
Radbruch com sua pretenso de correio do direito (injusto) pela moral a partir da chamada
frmula Radbruch. Toda teoria jurdica de Radbruch se baseia num culturalismo orientado
por valores prprio dos tericos de Baden, que enxergam nos valores o verdadeiro elemento
transcendental do conhecimento humano. O que era pura estrutura formal do conhecimento,
passou a ser preenchida pelos valores que, recebendo essa condio de transcendentalidade,
passaram a ser igualmente objetificados. O valor era ento o elemento mais geral (um deverser puro, dir Radbruch) para determinar questes que no conseguiam definir-se pelo
universo emprico do direito positivado. Aquilo que aqui procuramos pensar como sentido
que sempre acontece num horizonte que jamais chega a se integralizar e sequer conseguimos
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202
regra da ponderao. Essa abertura possibilitada por pelo menos dois motivos: a) o fato
de que a ponderao, como procedimento, no se preocupar com o resultado; b) porque a
prpria determinao dos princpios em conflito j envolve uma deciso que , nestes termos,
entregue ao solipisismo do julgador. Como um procedimento justificador da fundamentao
da deciso judicial, a ponderao desonera o juiz do dever de legitimar a deciso dada para
aquele caso. Afinal, o resultado da ponderao no determinante para validar
discursivamente a sentena do juiz, mas sim a observao da frmula estipulada pela lei da
ponderao. Nestes termos, no h grandes diferenas entre Kelsen e Alexy, na medida em
que tambm o mestre de Viena determinava a validade do direito a partir da observao dos
procedimentos lgico- formais de sua criao 269 .
23. Num plano diametralmente oposto se situa a teoria do direito de Ronald
Dworkin. Foi esse autor quem, pela primeira vez, colocou de maneira clara a diferena entre
regras e princpios. O fez, de modo a contrapor-se em relao ao positivismo de Hebert Hart
que via o direito como uma textura aberta; um modelo de regras. Como vimos, Dworkin
no aceita nem que o direito seja uma textura aberta, nem um modelo de regras. No
um modelo de regras porque, defin- lo assim significa descrever apenas uma imagem do
direito. No interior das prticas jurdicas (e para Dworkin o direito isso: uma prtica
interpretativa) h um outro tipo de padro de conduta que determina a interpretao dos juzes
no momento da deciso judicial: os princpios. Desse modo, no h que se falar no direito
como uma textura aberta porque, nos casos em que as regras no so suficientes para
resolver o conflito (que Hart chamar, indevidamente como vimos, de casos difceis), sempre
estar em jogo uma questo de princpio. Porm, ainda com Dworkin, possvel dizer que em
qualquer caso (na medida em que inapropriado distinguir estruturalmente casos fceis e
casos difceis) estar em jogo uma questo de princpio, e toda interpretao jurdica dever
dar conta dela. Isso assim porque, no interior de uma teoria ps-positivista preocupada em
enfrentar verdadeiramente o problema da indeterminao do direito, o conceito de norma no
poder ser um conceito semntico-sinttico, mas sim pragmtico-semntico. Isso significa
dizer que, em toda lida prtica com o direito, j se deu a compreenso dos instrumentos
jurdicos (leis, Constituio, precedentes e os problemas que o prprio caso estabelece) de
modo que a norma sempre uma derivao desta compreenso originria. Ou seja, sempre
269
Apoiados em Lenio Streck, possvel afirmar que: No fundo, volta-se, com a ponderao, ao problema to
criticado da discricionariedade, que, para o positivismo (por todos, Kelsen e Hart) resolvido por delegao ao
juiz. Assim, tambm nos casos difceis de que falam as teorias argumentativas a escolha do princpio aplicvel
repristina a antiga delegao positivista (na zona de penumbra, em Hart, ou no permetro da moldura, em
Kelsen). (STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. op. cit., p. 180).
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que dizemos algo sobre o direito este j aparece normado. No possvel falar, ao menos que
se faa de modo artificial, em um momento jurdico pr-normativo, pois isso seria conceber
um direito anterior a prpria linguagem. O conceito de princpio funciona assim como uma
espcie de indcio formal: em todos os casos conflituosos h uma possibilidade de um
argumento de princpio. Afinal, seria possvel imaginar um caso hipottico em que no estaria
em jogo, ou pudesse ser argido em favor de um dos oponentes, o princpio da igualdade?
Poderia haver um processo em que as discusses nas violassem o devido processo legal?
24. Desse modo, os princpios sempre se apresentam, como uma possibilidade
latente, em todos os casos debatidos em juzo. A dignidade destes princpios, ao contrrio do
que possa aparentar, no consiste na sua constante lembrana, mas sim no fato deles se
manterem como efetiva possibilidade. Isto , em qualquer processo h a possibilidade de se
argir o princpio do devido processo legal. Porm, quando isso no ocorre que o princpio
foi efetivamente cumprido. No momento que h uma interrupo deste modo de se transcorrer
que se faz necessrio o esforo de traz-los diante de ns. No h nenhum contedo
definitivo ou definido para princpios como esses, mas h sempre um compromisso com
decises passadas que devero ser retomados nas decises presentes e, enquanto no houver
uma interrupo, continuaro a ser cumpridos. No momento em que se tem uma quebra com
esse elo que o passado nos lega, h a necessidade de uma intensa justificao, que no exclua
de sua apreciao a comum- unidade dos princpios e sempre fundamente, na medida em que
for necessrio, em que medida tais princpios esto sendo observados pela deciso. Assim,
estabelece o direito como integridade de Ronald Dworkin.
25. De algum modo, Alexy se mantm atrelado s tentativas tericas
desenvolvidas no direito a partir do vetor da causalidade. Sua vinculao com o sujeito
moderno, juntamente com o carter matemtico de sua ponderao, levam ao predomnio da
representao e da objetificao dos princpios que, deste modo, so colocados num lugar
muito distante das regras. A teoria dos princpios alexyana, deste modo, objetifica o conceito
de princpio e, a partir desta objetificao faz a distino que uma ciso estrutural
entre regra e princpio. E s porque h esta ciso, decorrente da objetificao conceitual, que
Alexy poder construir a frmula da ponderao como procedimento apto a resolver os
chamados casos difceis. E os casos difceis nada mais so do eu aqueles nos quais estamos
diante da chamada textura aberta de Hart ou da moldura da norma de Kelsen, ambas
teorias semnticas, como a de Alexy. Esse semnticismo fatalista (como bem assinala
Streck), porque delega quele sujeito da modernidade, signo de uma subjetividade solipsista,
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o poder discricionrio de resolver a demanda. Por tudo que foi dito no tpico antecedente,
ficou claro como que a ponderao no resolve o problema da discricionariedade a partir de
uma justificao matemtico-procedimental da deciso judicial, mas sim a retoma de um
modo ainda mais perigoso, uma vez que legitima a discricionariedade do juiz a partir da sua
validao pelo procedimento.
Desse modo, a ciso estrutural entre regra e princpio leva, inexoravelmente,
distino entre casos fceis e casos difceis (ora, lembramos que tambm Hart delega aos
juizes a resoluo dos casos difceis). Isso est na estrutura do pensamento; ela nsita ao
sujeito da modernidade que controla o sentido atravs do domnio dos campos de sentido.
Assim, h um fatalismo (Streck) em Kelsen e Hart, e h tambm um fatalismo em Alexy, que
entre o controle da deciso nos casos difceis ao juiz solipsista, buscando apenas uma
legitimao procedimental para a deciso. Consequentemente tem-se por aberto o espao para
o dualismo sujeito-objeto, a partir da relevante circunstancia de que os casos fceis so
resolvidos por subsuno-deduo e os casos difceis so resolvidos pela ponderao, porque
netes h um conflito de princpios, enquanto naquele h uma mera atividade silogstica de
aplicao da regra ao caso. Ora, isso que mantm distantes um do outro regra e
princpio.
Por
isso,
pode-se,
dogma ticamente
(matematico-procedimentalmente)
interpretar(aplicar) regras afastadas dos princpios e as vezes fazer com que regras valham
mais que princpios. Por tudo isso, deve-se reconhecer razo Lenio Streck quando diz que h
uma diferena ontolgica entre regra e princpio. Os princpios representam a introduo do
mundo prtico no direito. Neles se manifesta o carter da transcendentalidade. Em toda caso
compreendido e interpretado j sempre aconteceram os princpios e no o princpio; toda
deciso deve sempre ser justificada na comum- unidade dos princpios, como nos mostra
Dworkin. No h regras sem princpios, do mesmo modo que no h princpios sem regras.
H entre eles uma diferena, mas seu acontecimento sempre se d numa unidade que a
antecipao de sentido.
26. Destarte, o conceito de princpio olhado desta maneira opera um verdadeiro
fechamento hermenutico (que de maneira pioneira foi apresentado por Lenio Streck), apto
a produzir aquilo que Dworkin chama de a nica resposta correta. Se Dworkin fala em nica
resposta correta o faz por motivos especficos. Mas preciso deixar claro que falar em
resposta correta nada tem haver com um discurso legalista ou que prescreva que a lei tem
sentido unvoco ou coisas do gnero. A resposta correta uma metfora como bem ressalta
Streck que apresenta a possibilidade de sua (re)construo em jurisdies que aceitem a
205
integridade do direito (o mtodo de Hrcules). Dworkin fala em nica por diversos fatores.
Entre eles est certamente o fato de que os Estados Unidos da Amrica do Norte possurem
uma Constituio que pode ser chamada de sinttica, no interior da qual muitos dos princpios
no esto efetivamente constitucionalizados, a ponto de Dworkin falar de uma leitura moral
da Constituio. Entre ns, contudo, a situao outra. Simplesmente porque, com a
Constituio de 1988 se deu a constitucionalizao de toda uma principiologia que, podemos
afirmar sem medo de errar, torna desnecessria qualquer tipo de leitura moral. A prpria
Constituio , em ltima anlise moralizante. Desse modo, reconhecemos novamente
razo Lenio Streck quando ressalta a necessidade de respostas adequadamente corretas;
nem a nica, nem a melhor, mas adequadas.
27. Portanto, entre a abertura e o fechamento, ou entre a otimizao e a
resposta correta, ficamos com a resposta (adequada constitucionalmente) correta. Isto porque
em tempos de ps-positivismo e do enfrentamento da indeterminao do direito, no h
possibilidade de continuar afirmando uma artificialidade terica que continue tornando ocluso
o modo de ser prtico do direito. No possvel continuar asseverando um conceito semntico
de norma em detrimento de um contexto pragmtico de problematizao que necessariamente
d conta do problema concreto, sem uma mediao abstrata efetuada por um procedimento
apto a validar a deciso. Em outras palavras, preciso superar o abismo gnoseolgico que
sempre foi colocado, desde Kant, em termos de constituio de uma ponte entre o sensvel e o
inteligvel, entre conscincia e mundo, entre conceitos e objetos. Estamos imersos numa
dimenso em que o sentido j sempre se antecipou. Portanto, qualquer tentativa de construo
de uma ponte sempre chega tarde.
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GADAMER, Hans-Gerog. Verdade e Mtodo II. 2 ed. Petrpolis: Vozes, 2004, p. 544.
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