Obinrin Dudu - As Mulheres Negras No Batuque PDF
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Obirin Dudu:
Um olhar sobre a identidade e a cidadania das mulheres negras
Dissertao de Mestrado
Rio de Janeiro
Maio de 2009
Obirin Dudu:
Ficha Catalogrfica
Silva, Caroline Fernanda Santos da
CDD: 361
Agradecimentos
Ento o inicio pontuando que essa trajetria teve como pano de fundo a
realizao do curso de Mestrado, mas no plano principal forjaram-se articulaes,
negociaes, arranjos e re-arranjos, fazendo com que esse resultado que hoje se
apresenta se constitua como um espelho, que reflete, ao mesmo tempo, a trajetria
que tracei nessa cidade maravilhosa, e o desejo de outras histrias futuras e
positivas para mim e tantas outras mulheres negras.
Inicio agradecendo a Olodumare e todos os Orixs pela fora, coragem e
inspirao com as quais me dotaram e pela proteo constante nos momentos
diversos que passei por aqui. Sem eles no haveria possibilidade de essa
caminhada ter chegado ao fim.
Agradeo famlia que nasceu durante essa etapa de minha vida: meu
companheiro Lessandro e minha filha Luanda, que tem sido a melhor das coisas
que me aconteceu, ou Tudo o que o Rio me deu..., como j dizia o poeta. Ao
Koyah, mais uma vez, agradeo pela compreenso, amor e companhia constante,
bem como pelas diversas inseres poticas concebidas para esse trabalho.
minha famlia: minha me Ademira, minhas irms Deise, Denise e
Carmem, meu irmo Denner, minha av Leontina, minha prima Bianca, por terem
contribudo para que chegssemos at aqui, mesmo que distantes.
minha famlia de santo, ao Baba Dyba de Iyemonja, que facilitou meu
acesso ao terreiro; aos meus irmos de santo, pela disponibilidade, compreenso e
facilidade com que acolheram essa proposta; s mulheres envolvidas na pesquisa e
Resumo
Palavras-chave
Mulher negra; identidade negra; cidadania, territorialidade, batuque.
Abstract
Keywords
Black women; black identity; citizenship; territoriality; batuque.
Sumrio
13
23
24
28
32
35
37
44
45
48
53
59
61
70
73
74
76
82
88
90
96
101
Lista de Tabelas
74
74
75
77
80
81
82
82
83
84
85
86
87
88
89
Tabela 16: Tu falas sobre o batuque em locais como a escola do teu filho,
posto de sade e outros ligados ao Estado
89
91
94
95
Lista de grficos
63
63
CBASS
CFESS
CONAPIR
CRESS
LOSAN
ONG
PNAD
PNAS
POA
RS
SEPPIR
SISAN
SUS
SUAS
TCLI
UFRJ
UERJ
1
Introduo: a grande Me...
14
estudo tem como objeto central de reflexo a construo da identidade racial
positiva mulher negra e sua configurao enquanto novo sujeito coletivo.
Destacamos que o termo novo se apresenta aqui tendo em vista o referencial da
Constituio Federal de 1988, que incorporou novos sujeitos como detentores de
direitos, dentre os quais a mulher negra se encaixa. Da mesma forma, a utilizao
do singular mulher negra refere-se a tal processo, bem como sua construo
enquanto categoria de anlise, sem que com isso pretendamos reduzir a
multiplicidade de mulheres negras a algum tipo de padro determinado de como
ser e o que fazer para ser mulher negra.
Considerando que a discusso do racismo tem como pano de fundo a
impreciso que envolve a terminologia raa, apontamos alguns aspectos que nos
aproximam da compreenso que entendemos como a mais apropriada para nossa
discusso. Ainda que no restem dvidas de que as raas, em sua acepo
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Segundo Borges (2002), Franois Bernier foi um dos primeiros a publicizar a idia de adoo de
caractersticas somticas como a cor da pele para dividir os seres humanos em raas, em artigo
publicado no Journal des Savantes, em 1684. Nessa classificao utilizava abertamente termos
depreciativos para classificar asiticos, negros e lapes. Suas idias tiveram continuao no Sculo
XVIII atravs de naturalistas e filsofos como Lineu, Buffon, Herder, Kant, entre outros.
15
com a discriminao e o preconceito racial, numa relao em que o primeiro
origina os demais:
... por um lado ns temos uma ideologia racista, que uma doutrina, uma
concepo de mundo (...) O mesmo fenmeno se decompe tambm em
preconceito racial, que simplesmente uma disposio afetiva imaginria (...) uma
atitude, uma opinio, que pode ser verbalizada ou no (...)Finalmente, h a
discriminao racial, que um fenmeno coletivo observvel (Munanga, 1998, p.
49).
16
... forjou uma histria, muitas e novas conscincias e prticas sociais, agregou
espaos, auferiu conquistas materiais e simblicas (...) mas carrega a limitao de
s ir at o meio do caminho. A promoo da igualdade racial coloca-se a partir
desse limiar e pretende super-lo (Pereira, 2008, p. 121).
17
polticas pblicas que visam garantir aos indivduos da populao negra direitos
especiais. Desta maneira, a implementao dessas polticas pblicas possibilitou a
re-criao de uma identidade coletiva, que atravs do corte religioso definiu um
novo sujeito de direitos. Decorre da o nosso interesse pela construo da
identidade positiva mulher negra neste espao.
A partir da ao organizada coletivamente em diversas destas instituies,
com forte protagonismo feminino e suas lideranas religiosas, foi garantida a
destinao de cestas bsicas do Programa Fome Zero5 para suas casas de culto,
contribuindo para a consolidao definitiva do territrio do sagrado enquanto
executor de polticas pblicas afirmativas6 para a populao negra brasileira.
desse marco referencial que partimos.
Isso ocorreu em um contexto de mudana na discusso sobre a
alimentao, tendo em vista que em setembro de 2006 foi promulgada a Lei
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Ressaltamos que nosso foco de ateno no ser a anlise deste Programa em particular.
Para fins desse estudo, consideramos aes afirmativas como: ... as dinmicas, prticas, meios e
instrumentos que tm como meta o reconhecimento scio-cultural, a promoo da igualdade (de
oportunidades, de tratamento e de condies objetivas de participao na sociedade) e, portanto, a
universalizao (concreta) de direitos civis, polticos e sociais em uma dada sociedade
(Nascimento, 2006, p. 19).
7
Lei n. 11.346, de 15 de setembro de 2006, que cria o Sistema Nacional de Segurana Alimentar
e Nutricional com vistas em assegurar o direito humano alimentao adequada e d outras
providncias.
6
18
pessoa negra. Esse aspecto negativo, em conjunto com alguns mecanismos
desenvolvidos pelas elites intelectuais e polticas do pas ainda se faz presente no
imaginrio social da populao como um todo, influenciando a percepo do
indivduo negro sobre si mesmo.
Nesse cenrio entendemos que as mulheres negras, agentes privilegiadas
de ligao entre a vida pblica e privada, podem revelar importantes expresses
acerca da construo dessa identidade, tendo em vista que sua fala remete ao
coletivo (Fonseca, 2005).
As diversas expresses das religies de matriz africana so historicamente
marcadas pela perseguio aos seus territrios, cultos e seguidores, especialmente
frente ao crescimento de algumas manifestaes neopentecostais, que constroem
seus discursos as endemonizando. Ainda assim, as religies de matriz africana
se constituem enquanto sustentculo da construo da identidade do povo
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19
Considerando que ... a pesquisa se forma a partir da experincia vivida
(Nascimento, 2003, p. 19) acreditamos que caiba destacar algumas questes
presentes em nossa trajetria que fundam o interesse nessa temtica. A passagem
por diferentes organizaes do movimento negro8 da cidade de Porto Alegre nos
possibilitou a conjugao da prtica profissional com a militncia poltica,
especialmente na realizao do Estgio Curricular do Curso de Graduao em
Servio Social9. Da mesma forma, nosso entendimento de que o espao de
produo de conhecimento acadmico deve voltar suas aes cada vez mais
elaborao de alternativas de soluo s problemticas atuais nos conduz e
incentiva na presente proposio.
Tais questes tornam indispensvel observar o quanto a pesquisa representa
um desafio para mim, em diversos aspectos. Primeiramente, a falta de experincia
na atividade de pesquisa desempenhou papel importante quanto s dificuldades
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Dentre as quais se destaca Maria Mulher Organizao de Mulheres Negras, onde atuamos
como estagiria e, posteriormente, como profissional.
9
Esse estgio deu origem ao Trabalho de Concluso de Curso no qual exploramos a dimenso
poltica da prtica profissional do Assistente Social, bem como o desenvolvimento de uma
identidade negra positiva junto a adolescentes negras moradoras de uma comunidade popular
daquela cidade (Silva, 2004).
20
modernidade o cartesiano perdeu sua confiana epistemolgica (Escobar,
2004, p. 639), ocasionando uma crise paradigmtica. Para Nascimento (2003):
medida que a crtica razo dominante vem realando as limitaes desse saber
para lidar com aspectos vitais condio humana, coloca-se em questo o prprio
mtodo cientfico como instrumento do conhecimento e surge o desafio de buscar
novas formas de apreenso do real (Nascimento, 2003, p. 18).
21
Goldmann (1980) j alertava que as diferenas entre as cincias histricas
e as fsico-qumicas no se restringem a uma questo de objeto, mas sim de
perspectiva. Isso se d na medida em que as cincias fsico-qumicas procuram
leis gerais, enquanto as cincias histricas constroem ... seu objeto por uma
escolha que guarda o essencial e elimina o acessrio (Goldmann, 1980, p. 34).
Portanto, nas cincias humanas os juzos de valor fazem parte de todo o
processo de construo do conhecimento e para o autor, o mais importante no
seria: ... suprimir toda pr-noo e todo juzo de valor mas, ao contrrio, integrlos conscientemente na cincia e fazer deles instrumentos teis na investigao da
verdade objetiva (Goldmann, 1980, p. 34).
Assim, este trabalho est organizado da seguinte forma: no Captulo 2,
Territorialidade e identidade, apresentamos uma discusso sobre territrio e
territorialidade. Consideramos a atuao dos movimentos de resistncia negra no
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22
relacionam com o movimento negro, as polticas pblicas e a identidade negra
positiva.
2
Territorialidade e identidade: a Me das guas
Esse mito de Iemanj bem nos lembra seu papel na demarcao e criao
de territrios em diferentes culturas. Sendo o oceano, a Me das guas conecta
territrios e identidades, criando e re-criando ilhas reais e simblicas onde seus
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10
Sobre o tema, pode-se recomendar a leitura de: Hall (2003) e Gilroy (2001).
24
2.1.
Territrio e territorialidade negra
As discusses acerca de territrio nos demonstram o quo amplo o
conceito que embora central para a Geografia, possui diversas conotaes em
diversas reas de conhecimento. Ponto comum entre os autores estudados a
diferenciao que o conceito de territrio tem em relao aos de espao e lugar,
uma vez que a idia de territrio est ligada diretamente idia de poder e da
produo e apropriao social do espao (Andrade, 1994).
A leitura que realizamos nesse momento a respeito do conceito de
territrio parte de seu entendimento descolado das noes de Estado e Nao e de
suas estruturas e relaes de poder. Voltamos nossa reflexo sim s pessoas que o
constroem cotidianamente na multiplicidade de suas manifestaes e levando em
conta os poderes dos sujeitos envolvidos (Haesbaert, 2005; Santos, 2004, 2007 e
2008).
Haesbaert (2005) sinaliza que o conceito de territrio possui tanto a
conotao material/concreta, de dominao, como simblica, de apropriao. Em
ambas, ele se apresenta enquanto processo e espao socialmente construdo,
devendo ser distinguido de acordo com os sujeitos que o constroem.
Esses fatores evidenciam que o territrio, imerso em relaes de
dominao e/ou de apropriao na sociedade-espao, ... desdobra-se ao longo de
um continuum que vai da dominao poltico-econmica mais concreta e
funcional apropriao mais subjetiva e/ou cultural/simblica (Haesbaert,
2004, p. 95-96). Esse espao socialmente construdo inspira uma identificao
positiva aos que dele usufruem e uma efetiva apropriao, visto que ...
exercemos domnio sobre o espao tanto para realizar funes quanto para
produzir significados (Haesbaert, 2005, p. 6776).
J Milton Santos (2004, 2007 e 2008) sinaliza que territrio um conceito
hbrido e mutvel, revelando aes passadas e presentes, congeladas nos objetos e
constitudas na ao dos homens. Para definio deste conceito, o autor acredita
indispensvel considerar-se a interdependncia entre a materialidade o prprio
espao geogrfico e seu uso a ao humana.
Em funo de sua contnua mutao, para Santos (2008) o territrio possui
diferentes usos nos diversos momentos histricos e merece, por isso, constante
25
reviso histrica. Para compreend-lo, portanto, o autor prope que variveis
como histria e comportamento, bem como o papel da cincia, da tecnologia e da
informao no sejam desconsiderados.
Assim como o territrio, a noo de territorialidade nos interessa, tendo
em vista que ela se constri a partir da conscincia de participao das pessoas
que habitam o territrio (Andrade, 1994) trata-se de um processo subjetivo de
tomada de conscincia do prprio espao de vida. Para Corra (1994): A
territorialidade (...) refere-se ao conjunto de prticas e suas expresses materiais e
simblicas capazes de garantirem a apropriao e permanncia de um dado
territrio por um determinado agente social (Corra, 1994, p. 251/252).
Anjos (2006) chama de territorializao ao fenmeno ... em que a
memria, no ato de reconhecer uma origem, estabelece delimitaes, coloca o
passado sobre o presente, cria um ns, os da origem (Anjos, 2006, p. 46). Na
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re-territorialidade,
partindo
da
compreenso
do
26
processos de remoo das populaes indgenas brasileiras, tendo sido vivenciado
tambm pela populao negra de um modo geral, no processo conhecido como
dispora.
Tendo em vista que os territrios se identificam por possuir histria e
tradio prprias, sendo obra coletiva construda por determinado grupo social,
conforme sinaliza Rolnik (1989), a construo de singularidades e a elaborao de
um repertrio comum, composto de especificidades culturais que se forjam e se
transformam atravs da histria envolvem a constituio de territrios negros.
Esses fatores nos levam compreenso de que em solo brasileiro a
populao
negra
vivenciou
ainda
vivencia
uma
desterritorialidade,
27
A re-criao de um universo negro-africano atravs das casas de
religio11 entendida como um duplo processo de re-territorializao para a
populao negra porto alegrense: tanto no que se refere re-construo de hbitos
e valores culturais advindos de uma viso de mundo que parte de referenciais
africanos, como no que diz respeito disposio geogrfica desses templos
religiosos, que no ps-abolio localizavam-se, majoritariamente, prximos ao
centro da cidade e hoje encontram-se espalhados por toda a cidade, especialmente
nas periferias.
11
28
2.1.1.
Os movimentos de resistncia negra no Brasil
A resistncia negra no Brasil tem longa data, podendo ser identificada
desde o incio do trfico de negros africanos para esse solo. Se naquela ocasio a
busca era pelo reconhecimento da condio humana de sua existncia, com o
passar dos anos essa resistncia assumiu formas e objetivos diversos, sendo que
contemporaneamente, o exerccio da cidadania vislumbrado como a sua
principal meta.
Estudando a trajetria dos movimentos negros no sculo XX no Brasil12,
Pereira (2008) registra que sua atuao se deu atravs de trs impulsos, sendo o
primeiro em meados da dcada de 1920, o segundo na dcada de 1940 e o terceiro
na dcada de 1970. Esses momentos, no entanto, no podem ser vistos de forma
linear no tempo, sobretudo porque atravs deles instaura-se uma gradual ruptura
no consenso social acerca da democracia racial brasileira.
As religies de matriz africana sempre estiveram nos bastidores dessa
militncia, apoiando e possibilitando seu desenvolvimento, embora no estejam
nitidamente pontuadas pelo autor nessas fases.
Clvis Moura (1988), ao estudar a sociologia do negro no Brasil, v na
existncia da Imprensa Negra a reproduo de determinadas etapas da evoluo
poltica da sociedade brasileira e da organizao da populao negra. Essa
imprensa, concentrada majoritariamente em So Paulo, mas com expresses em
diversas regies do pas, teve importante funo social e poltica, embora
considerveis diferenas de enfoque fossem vislumbradas em suas publicaes.
Sua existncia compreendeu o perodo de 1915 196313.
Segundo Pereira (2008) o primeiro impulso da atuao poltica negra
aconteceu em meados da segunda dcada do sculo XX, quando surgem os
primeiros peridicos dessa Imprensa Negra. A sua principal preocupao girava
12
29
em torno da integrao do negro sociedade, sendo a educao e o bom
comportamento vislumbrados como formas de subir na vida e aproximar-se do
nvel dos brancos (Moura, 1988; Pereira, 1999; Valente, 1997).
Segundo Santos (1980), no incio da dcada de 1930 que expresses
como preconceito, discriminao e segregao racial comeam a circular na
Imprensa Negra, demarcando uma tomada de posio ideolgica que reivindica
uma posio para o negro na sociedade. Como aponta Pereira (2008): A
mudana para um tom mais combativo em relao discriminao racial e aos
prejuzos do negro, s ocorrer com o Clarim da Alvorada, aps 1925
(Pereira, 2008, p. 32).
Assim como outros movimentos sociais e polticos, os movimentos negros
foram duramente atingidos pela censura imposta pela Ditadura de Vargas, embora
algumas organizaes negras tenham conseguido se manter ativas durante o
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perodo. Com seu trmino algumas delas se reorganizaram, como foi o caso da
Imprensa Negra, e outras foram criadas (Silva, 2003).
possvel mencionar que j na dcada de 1940 havia uma abrangente
conjuntura negra de carter nacional (Pereira, 2008), embora sua atuao tenha
muito por revelar. Pereira (2008) chama ateno para o fato de que a maioria das
organizaes negras surgidas no perodo de 1940 a 1970 aglutinava negros
conscientes, mas no buscava mobilizar a massa negra, sendo que na dcada de
1970:
... o quadro comeava a mudar. O samba e outras manifestaes culturais de
matrizes africanas haviam se consolidado como legtima cultura popular brasileira
e insinuava-se um certo grau de respeitabilidade social em relao s manifestaes
religiosas (Pereira, 2008, p. 43).
30
muitos negros com formao poltica, impunha as responsabilidades de organizao
queles cujo passado no os colocava (...) na mira da represso. A parcela da
juventude que participava naquele contexto se empolgou com este espao e isto
favoreceu a retomada do Movimento Negro. Determinou, contudo, uma srie de
debilidades em seu processo de organizao a mdio e longo prazo (Pereira, 2008,
p. 49).
31
tantas se modificam, tomando formas de Organizaes No-Governamentais
(ONGs) e ocupando grande espao poltico (Nascimento, 2006).
Da mesma forma, ampliam-se os mecanismos de dilogo entre o Estado e
alguns setores dos movimentos negros14, especialmente com a criao de
organismos oficiais de promoo e proteo da comunidade negra em nvel
nacional. Tanto que presenciamos nas duas ltimas dcadas uma gradual
modificao com relao forma como a sociedade brasileira v as questes
envolvendo a populao negra, em diversas esferas. Silvrio (2002) sinaliza que
inmeros fatores a contriburam, dentre os quais se podem destacar:
Considera-se importante destacar o relativismo das relaes dos Movimentos Negros com o
Estado tendo em vista, de acordo com as consideraes de DAdesky (2005), as correntes
antagnicas no interior do Movimento Negro a moderada, formada por intelectuais e militantes
prximos dos poderes pblicos e a radical, que recusa qualquer dilogo e negociao com as
instituies governamentais.
15
O que ocorreu na ocasio da III Conferncia Mundial Contra o Racismo, Discriminao Racial,
Xenofobia e Intolerncia Correlata, realizada em Durban, frica do Sul, em 2001.
32
vislumbramos que ela a ponte para a emergncia da nova conscincia negra
(Pereira, 2008), que aproxime ambas as esferas e se consubstancie como resposta
ao etnocentrismo: ... o movimento negro fez a ponte trazendo um novo sentido
aos referenciais histricos, simblicos, estticos, de matrizes africanas, e
dinmica afro-brasileira, vivenciando-os na sua ao poltica, nas suas
formulaes ideolgicas (Pereira, 2008, p. 76).
Partindo de tais questes, no prximo item buscaremos refletir sobre a
construo da identidade negra no contexto da globalizao, buscando nos
aproximar do que estamos denominando de identidade negra positiva.
2.2.
Globalizao e identidade negra
33
princpios que organizam um novo modelo de desenvolvimento, ainda que dentro
da lgica capitalista a sociedade em rede, formada pela revoluo tecnolgica
informacional, da qual fazem parte a globalizao econmica, a organizao em
rede, a flexibilizao e instabilidade de emprego e a onipresena da mdia
(Nascimento, 2003).
Seguindo sua anlise, Castells (1999; 2002) pontua duas tendncias
conflitantes que moldam a sociedade do sculo XXI: a globalizao e a
identidade, ressaltando o surgimento de uma onda de identidade coletiva pautada
na singularidade cultural, que desafia a tendncia homogeneizadora imposta pela
globalizao. Assim, a afirmao de identidades vem demarcando espaos de
resistncia (Nascimento, 2003) e construindo novos comportamentos e
instituies vive-se um processo de construo de identidades autnomas. Para
Castells (1999):
Essa tendncia no nova (...) No entanto, a identidade est se tornando a principal
e, s vezes, nica fonte de significado em um perodo histrico caracterizado pela
ampla desestruturao das organizaes, deslegitimao das instituies,
enfraquecimento de importantes movimentos sociais e expresses culturais
efmeras (Castells, 1999, p. 41).
34
um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(is) prevalece(m)
sobre outras fontes de significado (Castells, 2002, p. 22). Considerando que a
construo das identidades sempre acontece em contextos marcados por relaes
de poder, o autor prope trs formas de construo de identidades:
35
2.2.1.
A construo de uma identidade negra positiva
Ao mencionarmos a identidade racial da populao negra brasileira
partimos do pressuposto de que uma das maiores marcas deixadas pela
escravizao negro-africana foi o aspecto negativo conferido pessoa negra. Esse
aspecto negativo em conjunto com alguns mecanismos desenvolvidos pelas elites
intelectuais e polticas do pas, ainda se faz presente no imaginrio social da
populao como um todo, influenciando sobremaneira a percepo do indivduo
negro sobre si mesmo.
Primordial para o entendimento dessa questo a compreenso da
ideologia do branqueamento, enquanto importante aparato ideolgico que mina a
construo da identidade da populao negra brasileira. Carone & Bento (2002) e
Munanga (2004) sinalizam que ela foi forjada pelas elites intelectuais brancas em
meados do sculo XIX e incio do sculo XX, sendo evidenciada nas cincias, nas
artes, nas pesquisas e na imprensa, demonstrando a expectativa dessas elites de
que o Brasil se tornasse um pas branco. A esse respeito, Anjos (2006) realiza
interessante reflexo:
A questo da diversidade tnico-racial sempre se apresentou para os rgos da
europeidade como um complexo problema cuja soluo teria de ser
intelectualmente imaginada sob essa articulao discursiva, os intelectuais
asseguram um destacado lugar no imaginrio da nao (Anjos, 2006, p. 113).
36
Latina, principalmente por sua formao ternria com forte reapropriao do
componente negro na formao na identidade nacional (Munanga, 2004).
Inseridos nesta discusso esto os processos de auto e hetero-identificao
da cor, demonstrando a complexidade que envolve a questo na sociedade
brasileira. Para Piza & Rosemberg (2002) as dificuldades em torno dessa questo
esto relacionadas inexistncia de critrios universais para tal levantamento, o
que vem reforar que raa/cor so dados sujeitos a condies e necessidades
nacionais, dependendo do tipo de composio da populao e dos significados
atribudos cor em cada sociedade.
Piza & Rosemberg (2002) sinalizam ainda que o padro contemporneo de
classificao de raa tem sido preferencialmente determinado por caractersticas
fsicas (o fentipo), baseando-se em um sistema combinado de cor da pele e traos
corporais. A partir disso, os problemas das coletas sobre a cor em pases de
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37
cidadania. A articulao do campo cultural ao da militncia poltica vislumbrada
como caminho privilegiado para a construo da identidade negra positiva.
A crtica ao patriarcalismo e ao etnocentrismo ocidentais, a partir da ao dos
movimentos sociais, pe em cena, sob novas perspectivas, o tema da violao na
construo da identidade. Esses movimentos suscitaram um amplo questionamento
daquela identidade forjada nas condies socioculturais da classe mdia branca que
constitua o padro endossado e cultivado pela sociedade ocidental (Nascimento,
2003, p. 33).
2.3.
Territorialidade negra: desafio e oportunidade para o Servio Social
Na sociedade brasileira as questes que envolvem a populao negra tm
se inscrito enquanto desafio s diversas reas de conhecimento. Sobretudo a
temtica da territorialidade, considerando sua recente chegada rea do Servio
Social, se apresenta como um terreno ainda a ser explorado.
A discusso sobre a questo racial inicia-se na produo de Assistentes
Sociais no 6 Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais - CBASS, em 1989
(Ribeiro, 2004). Santana (2008) apresenta uma pesquisa sobre a relao entre o
Servio Social e a questo tnico-racial atravs da investigao de seu percurso
desde a chegada profisso, em 1989, at o ps-Durban. Em seu trabalho destacase uma entrevista realizada com a Assistente Social Magali Almeida, uma das
protagonistas da insero dessa discusso no seio da categoria profissional, onde
se revela que esse momento histrico foi demarcado pela atuao de diversos
atores sociais, vejam:
38
Ao retomar ao que levou a incurso desta discusso no sexto CBAS, Almeida
expe que foi a expressiva conjuntura de 1989 que contribuiu para a colocao
deste debate na ordem do dia. Afinal foi um momento de enorme mobilizao no
Brasil, pois no ano anterior havia acontecido a Constituinte. O movimento negro
estava em uma onda crescente de mobilizao em torno da discusso racial e do
lugar historicamente reservado ao negro na sociedade brasileira, de tal modo que a
quase totalidade de assistentes sociais que encamparam esta discusso tambm
estava de alguma forma relacionada com a militncia no movimento negro, fazendo
com que a categoria acabasse por no conseguir se furtar a este debate. (Santana,
2008, p.04).
39
negligenciados quanto considerados conservadoras ou, principalmente a partir
dos anos de 1990, tomadas pejorativamente como ps-modernas (Gis, 2006,
p.11).
40
Esses aspectos modificam as relaes entre Estado e sociedade,
principalmente face s polticas de ajuste postas em ao nos pases perifricos,
que levam retrao do Estado em suas responsabilidades sociais, ocasionando,
dentre outras questes, o agravamento da questo social. Essa a questo social
para Iamamoto (2001) a base scio-histrica da requisio social da profisso e
entendida como: ... o conjunto das expresses das desigualdades da sociedade
capitalista madura (2001, p. 27). Seu agravamento requisita novas condies de
trabalho e desafios ao Assistente Social:
Um dos maiores desafios que o Assistente Social vive no presente desenvolver
sua capacidade de decifrar a realidade e construir propostas de trabalho criativas e
capazes de preservar e efetivar direitos, a partir de demandas emergentes no
cotidiano. Enfim, ser um profissional propositivo e no s executivo (Iamamoto,
2001, p. 20).
da questo racial, enquanto parte de seu processo histrico, como uma das
expresses e um dos pilares da questo social no Brasil16 (Costa, 2005; Santana,
2008). Segundo Santana (2008) ... a questo racial no s mediatiza a questo
social (...) como ganha novos contornos (...) porque na construo da ideologia
racista que se assenta o Brasil (Santana, 2008, p. 02).
Sendo o conhecimento da realidade social um requisito bsico para o
exerccio profissional, entendemos que indispensvel refletir sobre os processos
sociais que envolvem a re-existncia da populao negra brasileira. A questo da
territorialidade, que envolve certa conscincia de participao das pessoas que
habitam os territrios, num processo subjetivo de tomada de conscincia do
prprio espao de vida (Andrade, 1994), possibilita o conhecimento de algumas
dessas formas de re-existncia.
Santana (2008) traz tona em sua investigao os trabalhos sobre a
temtica apresentados nos CBASS, onde se destaca o ano de 1995, em que a tese
de Rosana Mirales: Evidencias de Um Territrio Negro no Vale do Ribeira, So
Paulo chama ateno pelo fato de: ... a autora ser a primeira dentro do Servio
Social a socializar uma produo que identifica a identidade negra com a
16
Em estudo a respeito da assistncia social brasileira, Amaro (2005) chama ateno para o fato de
que os afrodescendentes (categoria utilizada pelo IBGE nos estudos populacionais)
majoritariamente se encontram entre os que possuem menores ndices de Desenvolvimento
Humano IDH.
41
perspectiva da resistncia (Santana, 2008, p. 07). Para o autor, esse trabalho
oferece um novo vis produo de conhecimentos no Servio Social.
No IX CBASS, em 1998, o eixo que trata das relaes raciais passou a
chamar-se Etnia e Gnero. Nessa ocasio os trabalhos de Magali da Silva
Almeida: O Imaginrio como criao: O Candombl como Resistncia e de
Rosana Mirales: A Identidade Quilombola das comunidades Pedro Cubas e
Ivaporunduva trazem em seu cerne a: ... nfase na questo da identidade
enquanto resistncia e forma de organizao em torno da qual a populao negra
redimensiona sua historia (Santana, 2008, p. 09).
No decorrer desses anos, percebe-se que a produo de conhecimentos do
Servio Social acerca dessa temtica avanou, ainda que persista incipiente, j que
h poucos estudos que o enfocam enquanto categoria investigativa. Ainda assim,
Pinto (2003) acredita que a profisso j incorporou as questes tnico-raciais,
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tendo em vista que ela est sendo discutida por diversos profissionais. Explica-se:
a autora estuda o tema desde 1986, quando considerou: ... o fato (...) de que o
Servio Social, em cada tempo, como qualquer outra atividade humana,
circunscreve-se no nvel da conscincia possvel do momento (Pinto, 2003, p.
26).
Nesse sentido, destacamos a Campanha Nacional de Combate ao Racismo
O Servio Social mudando os rumos da histria, lanada em 2003 pelo
Conselho Federal de Servio Social CFESS, em conjunto com os Conselhos
Regionais do Rio de Janeiro (7 Regio) e da Bahia (5 Regio), ONG Fala Preta!
Organizao de Mulheres Negras, Escola de Servio Social da Universidade
Federal do Rio de Janeiro UFRJ e Faculdade de Servio Social e Universidade
Estadual do Rio de Janeiro UERJ. Essa iniciativa buscou a sensibilizao da
categoria profissional com relao ao combate ao racismo, esboando certo desejo
de incluir definitivamente essa temtica no processo de reflexo-ao dos
Assistentes Sociais, tendo desdobramentos em outros estados do pas17.
Ainda assim, a iniciativa revelou alguns limites na atuao do conjunto
CFESS-CRESS, especialmente com relao resistncia encontrada para o
avano da discusso em diversos momentos, tanto com a categoria profissional
17
42
em geral, como no interior dos prprios rgos representativos. Frente a isso, o
esvaecimento dos debates aps o afastamento das profissionais-militantes que
impulsionaram (ou pressionaram) para que se institusse essa discusso, retrata
uma fragilidade que a campanha no conseguiu superar: o entendimento que
circula no senso comum de que o combate ao racismo um problema criado e
vivenciado pelos negros, ocasionando que sua resoluo caiba tambm a eles.
Diante desses fatores, acreditamos que caibam alguns questionamentos:
ser possvel insistirmos, enquanto categoria profissional, na utilizao de
perspectivas tericas que explicam a realidade social somente a partir das
diferenas entre classes socais? Seria esse o momento de o Servio Social
absorver novas discusses, sob novas categorias, apoiando-se em outras bases
tericas que no as tradicionalmente predominantes em seus debates?
Tendo essas questes em mente, acreditamos que essa reflexo de
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43
No entanto, tais aspectos ressaltam a necessidade de ampliao da reflexo
terica desta rea, pois tanto como desafio ou como possibilidade, encarar essa
questo conduzir o Servio Social construo de estratgias de enfrentamento
3
Mulher negra e cidadania: nove vezes mulher
Epaieio Oya,
Deusa africana guerreira de imensa beleza, disputada por reis e guerreiros, lutava e
mostrava o poder da orix mulher. Numa batalha foi cortada em nove pedaos, mas no se
deu por vencida, transformou-se em nove mulheres, todas guerreiras, todas lindas e
multiplicou nosso poder, multiplicou nossa luta.
Koyade, Nove vezes mulher, 2009.
45
negras, a partir de referenciais que no levam em conta os aspectos que envolvem
seu constante processo de afirmao-negao de identidades e direitos.
3.1.
Mulher negra: um sujeito em (constru)ao
Consideramos fundamental refletir sobre a forma como se constri na
sociedade brasileira esse sujeito social a mulher negra, j que objetivamos
nessa pesquisa uma maior aproximao, compreenso e anlise do universo
dessas mulheres. Destacamos que no pretendemos apontar uma forma adequada
e enquadrada do que ser mulher negra no Brasil de hoje em dia, j que ao
evidenci-la reconhecemos os mltiplos fatores que a constitui, tendo em vista
que multiplicada sua existncia revela diversas so mltiplas mulheres,
46
material de suas famlias. Situao que vivenciada tambm atualmente, j que as
mulheres negras compem significativa parcela daquelas que comandam os
domiclios, responsabilizando-se pelo sustento, manuteno e reproduo de suas
famlias, bem como pela educao dos filhos. Sua insero no mercado de
trabalho, contudo, marcada pelos baixos rendimentos, inserida que est em
profisses que gozam de baixo prestgio social.
Embora olhares apressados possam associar a baixa remunerao dessas
mulheres baixa escolaridade ou falta de qualificao profissional, Bento (1995)
atesta que o mercado de trabalho no reconhece da mesma forma o grau de
instruo por elas atingido. Alm disso: ... mesmo com altos nveis de
escolaridade, as mulheres negras no conseguem atingir as etapas de mobilidade
social que normalmente so proporcionados pelo investimento em educao
(Lima, 1995, p. 495).
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47
por inteiro nesse espao em que a experincia do mundo se faz como histria
(Telles, 2001, p. 52/53).
O discurso feminista brasileiro dos anos 1980 foi marcado pelo ideal de
sororidade ou irmandade enquanto categoria que remetia a uma unidade das
mulheres pautada em ltima instncia no mito da maternidade (Costa, 2002).
Contudo esse discurso sofre crticas no debate acadmico internacional porque
no capaz de apreender as desigualdades de raa, classe e gerao existentes
entre as mulheres.
Ou seja, contribui para a invisibilidade de mulheres s quais
historicamente foi atribuda uma posio de subalternidade na sociedade
brasileira, como o caso das mulheres negras. Assim, a partir da construo
terica de militantes e intelectuais negras no momento poltico em que ocorre
grande resistncia popular almejando o fim da ditadura militar e com mais
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intensidade nos anos 1980, que se delineia uma ruptura com este ideal.
Pode-se dizer que o movimento feminista conquistou visibilidade
definitiva no perodo da Constituinte, j que considervel parte de suas
contribuies foi incorporada ao texto legal, ocasionando uma mudana no status
jurdico da mulher no pas (Carneiro, 2003). Essa mudana, contudo, no atingiu
todas as mulheres da mesma forma, tornando visvel a necessidade de discusso
sobre a diversidade feminina, tendo em vista que o pertencimento racial ainda
impede as mulheres de acessarem direitos conquistados em igualdade de
oportunidades.
Nesse sentido, Carneiro (2003) chama ateno que ... assim como outros
movimentos sociais progressistas, o feminismo esteve (...) prisioneiro da viso
eurocntrica e universalizante das mulheres (Carneiro, 2003, p. 118). O
movimento negro tambm se viu desafiado pela emergncia da organizao das
mulheres negras, uma vez que a percepo do racismo como forma de dominao
ideolgica no assegurou a identificao de que em seu prprio interior tambm
se propagavam mecanismos de dominao (Santos, 2006).
Frente a isso, Ribeiro (2006) destaca que a agenda poltica constituda
pelas mulheres negras transcende as questes de gnero postas pelas feministas e
tambm a questo do combate ao racismo, principal bandeira dos movimentos
negros. Ela distingue-se desses outros movimentos sociais aqui citados, dessa
forma, pela amplitude de sua plataforma de aes, que alm de abarcar a
48
discusso sobre os direitos sexuais e reprodutivos, conjuga de forma transversal as
questes decorrentes do embricamento entre gnero, classe social e raa.
O Frum de Mulheres Negras de Belo Horizonte (1998) assim descreve a
ecloso do Movimento de Mulheres Negras:
A organizao atual das mulheres negras no Brasil, com expresso coletiva,
explodiu, no sentido de adquirir visibilidade poltica, no campo feminista, em
Bertioga, SP, Brasil, 1985, quando da realizao do III Encontro Feminista LatinoAmericano e do Caribe (EFLAC) (...) dois anos aps, em 1987, no IX Encontro
Nacional Feminista, em Guaranhuns, Pernambuco, as mulheres negras presentes
(...) denunciaram a ausncia de debates sobre a questo racial e saram de l com a
deciso de realizao do I Encontro Nacional de Mulheres Negras no ano seguinte
(Frum de Mulheres Negras de Belo Horizonte, 1998, p. 03).
3.2.
Uma cidadania negra feminina em construo
Analisar a cidadania sob o ponto de vista das mulheres negras no tarefa
fcil. Nesse momento se evidencia a importncia da crtica concepo corrente
de cidadania posta em ao por ativistas dos movimentos negros e feministas.
Ambos tecem crticas a tal conceito por aspectos diferenciados, mas muito
prximos: trata-se de uma categoria patriarcal e racista construda sobre a imagem
masculina e branca. Ainda que consideremos tais questes, traamos aqui
reflexes que se pautam na materialidade do conceito de cidadania, ou seja, na
forma como ela forjada, na prtica, pela ao dos sujeitos sociais envolvidos na
busca por seu exerccio na vida cotidiana.
Pensar a cidadania na realidade brasileira implica incorporar os desafios
sistemticos impostos pela prtica do racismo, que profundamente radicado no
tecido social e na cultura de nossa sociedade (Munanga, 2003). Assim,
ressaltamos que nossa preocupao nesse momento re-construir o caminho
percorrido pelas mulheres negras brasileiras na construo de sua cidadania.
Tendo em vista os poucos estudos que se relacionam com essa nossa opo,
49
faremos isso nos utilizando de autores que, em geral, no vislumbram essa
necessidade expressa por Munanga (2003), embora lancem caminhos possveis a
serem percorridos.
A abertura democrtica do pas conduziu a cidadania centralidade dos
debates envolvendo os direitos humanos, tamanha popularidade por ela adquirida.
Esse lugar de centralidade ocupado pela cidadania nos leva a concordar com
Carvalho (2003), quando sinaliza que ela se apresenta como um fenmeno
complexo e historicamente definido.
Na sociedade brasileira, principalmente a partir da promulgao da
Constituio de 1988, a cidadania passa a fazer parte do horizonte vislumbrado
por diversos atores sociais. Na concepo de Telles (2001), s ento gestada no
Estado brasileiro uma concepo voltada centralidade das necessidades sociais e
a partir da Constituio Cidad (Carvalho, 2003) que novas garantias
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50
positiva, com vistas ao exerccio da plena cidadania dessa populao
historicamente alijada do lugar de cidado.
Segundo Telles (2001) a Constituio de 1988 demonstrou um desejo de
modernizao da sociedade brasileira, tendo em vista que:
... encerramos a dcada de 80 diante de uma sociedade que no apenas se quer
moderna como, em alguma medida, se faz moderna: uma sociedade que se
industrializou e se urbanizou, que gerou novas classes e grupos sociais (...) uma
sociedade portadora de uma dinmica associativa que fez emergir novos atores e
identidades, novos comportamentos, valores e demandas que romperam com os
limites da ordem regulada estruturada nos anos 30; uma sociedade (...) que nas
ltimas dcadas criou novas formas de organizao e de representao coletiva
(Telles, 2001, p. 13).
est na negao de direitos nas relaes sociais cotidianas. Ainda assim, nas
ltimas duas dcadas do sculo XX os constantes conflitos sociais colaboraram
para construir uma trama de representaes onde a reivindicao de direitos pde
circular ... criando identidades onde antes parecia s existir homens e mulheres
indiferenciados na sua prpria privao (Telles, 2001, p. 53). Essa modernidade
emergente, assim como fez nascer identidades e vozes prprias, trouxe consigo
as evidncias de um sistema de desigualdades at ento oculto, ou pelo menos no
to explcito.
Em geral os estudos sobre a cidadania tm como marco referencial as
dimenses propostas por Marshall, que elaborou seu conceito atravs do estudo
sobre a evoluo dos direitos na sociedade inglesa. Um de seus pressupostos o
desdobramento da cidadania em direitos civis, polticos e sociais. Esses se
referem, respectivamente, aos direitos fundamentais vida, liberdade,
propriedade, igualdade perante a lei; ao direito de participao nos governos; e ao
direito participao na riqueza coletiva (Carvalho, 2003).
Entretanto, no podemos considerar a anlise proposta por Marshall como
universal, j que o desenvolvimento da cidadania e seus significados dependem
das caractersticas de cada sociedade em particular, em cada tempo histrico
diferenciado. Assim vislumbramos, conforme Telles (2001), que no Brasil h um
particular modelo de cidadania, que se constri a partir do vis conservador e
51
autoritrio, que demarca nossa sociedade, num processo que transpira sua forte
tradio tutelar.
Na nossa cidadania os diretos sociais recebem maior nfase, se
dissociando de uma condio inerente de cidadania e se apresentando ... como
recompensa ao cumprimento com o dever do trabalho (Telles, 2001, p.22). Ela se
desenvolve, portanto, dissociada dos direitos polticos e definida nos termos de
proteo do Estado.
Nesse contexto, a titularidade em conjunto desses trs direitos: civis,
polticos e sociais18 o que vai determinar a existncia ou no da cidadania plena,
visto que ... o exerccio de certos direitos no gera automaticamente o gozo de
outros (Carvalho, 2003, p. 08). A partir dessa compreenso, estaramos
vivenciando uma cidadania incompleta, j que somente alguns possuem alguns
direitos, enquanto a maioria da populao luta constantemente na arena da
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18
Para Carvalho (2003) no Brasil: ... primeiro vieram os direitos sociais, implantados em um
perodo de supresso dos direitos polticos e de reduo dos direitos civis (...) depois vieram os
direitos polticos (...) finalmente, ainda hoje muitos direitos civis (...) continuam inacessveis
maioria da populao (Carvalho, 2003, p. 220).
52
brasileira19, sendo ainda mais vulnerabilizadas pelos efeitos da reestruturao
produtiva, que aponta tendncias problemticas para o emprego ps-industrial, na
medida em que parece expandir empregos precrios, que podem se transformar
em armadilhas de pobreza, criando um novo tipo de proletariado cronicamente
empobrecido (Esping, 1995).
Somado a tais fatores, o imaginrio social a respeito da mulher negra
ainda contaminado pelos papis conferidos a elas durante o perodo da
escravizao20, as conduzindo, indubitavelmente, ao lugar da no-cidadania.
Para Munanga (2003):
Observar-se- que o encontro das identidades contrastadas engendra tenses,
contradies e conflitos que, geralmente, prejudicam o processo de construo de
uma verdadeira cidadania, da qual depende tambm a construo de um Estado
Democrtico, no sentido de um Estado de direito no qual os sujeitos tm a garantia
de seus direitos (Munanga, 2003, p. 05).
19
Boschetti & Behring (2007) sinalizam que 71% das mulheres negras se concentram em
ocupaes precrias e desprotegidas do mercado de trabalho: A tendncia maior da mo-de-obra
feminina ao desemprego acentuada por variveis de raa (...) Alm disso, no que se refere ao
emprego domstico, as mulheres negras so maioria. Por essas razes, estas alcanam somente
39% dos rendimentos dos homens brancos (Boschetti & Behring, 2007, p. 185).
20
A esse respeito, recomenda-se a leitura de: Giacomini, 1988 e Mott, 1991.
53
sociais que as envolvem, essas mulheres se propem a transform-las,
aproximando-se cada vez mais da consolidao de uma cidadania negra
feminina (Silva, 2007).
Tendo em vista que a cidadania torna presentes necessidades sociais
coletivas, vislumbramos sua discusso no mbito dos direitos humanos, que tem
em Bobbio (1992) um de seus principais referenciais. O autor no perde de vista
que os direitos humanos so histricos, nascendo em dadas circunstncias e de
modo gradual.
Tendo em vista essa historicidade, Bobbio (1992) classifica os direitos da
humanidade em quatro geraes, j que vo surgindo na medida em que a
sociedade evolui tcnica e moralmente. Assim, a primeira gerao seria
representada pelos direitos civis; a segunda gerao compreenderia os direitos
polticos, sociais e os direitos de participar do Estado; a terceira gerao
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3.3.
Mulher negra e polticas pblicas
Frente ampliao crescente do predomnio do mercado em relao ao
Estado, evidencia-se uma mudana de tendncia nos rumos das polticas sociais e,
conseqentemente, na construo da cidadania. Apesar dessa mudana,
presenciamos que os segmentos historicamente distanciados das possibilidades de
54
acesso a essas polticas permanecem os mesmos, como o caso da populao
negra em geral e das mulheres negras, em particular.
Como Santos (2008), consideramos que ... as polticas pblicas (...) no
podem substituir a poltica social, considerada um elemento coerente com as
demais polticas (Santos, 2008, p. 75). Ainda assim, aqui nos referimos a
polticas pblicas enquanto um conjunto de aes voltadas para a garantia dos
direitos sociais, configurando um compromisso do Estado para dar conta de
determinada demanda, em diversas reas (Guareschi, 2004).
Essa mudana a que nos referimos se apresenta com forte funo
ideolgica, ajudando a legitimar a relativa retirada do Estado da prestao de
servios sociais. Dessa ideologia nos fala Milton Santos (2008), quando a
identifica como grande responsvel no processo de produo, disseminao,
reproduo e manuteno da globalizao atual, que agrava ainda mais as diversas
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expresses da questo social. Essa ideologia seria capaz, para o autor, de encobrir
os reais efeitos dessa globalizao que, para a maior parte da humanidade, se
configura como uma fbrica de perversidades (Santos, 2008).
Essas perversidades se manifestam na elaborao das polticas sociais j
que o rpido avano do iderio neoliberal levou extenso da cidadania
enquanto meta a ser alcanada por um Estado voltado s necessidades sociais a
um questionamento pautado em um conjunto de polticas de ajuste e reformas.
Tais aspectos fazem com que o Estado se afaste da prestao de servios sociais,
frente insustentabilidade crescente do financiamento de suas aes (Soares,
2003; Behring, 2003.).
Laurell (1995) aponta que nos pases latino-americanos as caractersticas do
sistema de proteo social se manifestam, em relao aos pases capitalistas
avanados, de formas mais ortodoxas, mediadas que so pelo forte autoritarismo
poltico e pela pobreza (Behring, 2003). Da compreende-se que o sistema de
proteo social brasileiro no pode ser considerado como Estado de Bem Estar,
visto que perifrico (Pereira, 2002): no provocou uma reestruturao plena
do sistema de polticas sociais, sendo o princpio do mrito aquele que ainda
constitui a base sobre a qual ele se ergue (Draibe, 1989).
J Soares (2003) sinaliza que, a partir das polticas de ajuste e das
reformas, o bem estar cada vez mais sai do campo coletivo e vai para o mbito
privado, em conjunto com uma nfase exacerbada nas pessoas e nas comunidades
55
para que encontrem solues para seus problemas sociais. Assim, apiam-se
cada vez mais no trinmio do neoliberalismo (Behring, 2003): privatizao,
descentralizao e focalizao das polticas e programas sociais.
Frente a isso, tem havido mudanas nas relaes entre Estado, sociedade e
mercado, evidenciando um novo paradigma de poltica social, ocasionado por
importantes deslocamentos na gesto social. Para Behring (2003), as
transformaes polticas e econmicas em curso sinalizam a adaptao do pas aos
fluxos do capital mundial e esses, relacionados s caractersticas da formao
social brasileira, fazem com que aqui as causas geradoras da pobreza estejam alm
daquelas ocasionadas pelos ajustes neoliberais, merecendo ateno na formulao
de polticas sociais.
Torna-se evidente, a partir dessas questes, que as polticas sociais no
Brasil fundam-se sobre princpios contraditrios: aqueles inscritos na Constituio
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21
Populao potencialmente demandante de servios de assistncia social, com renda per capta
abaixo de e do salrio mnimo, segundo cor ou raa. Fonte IBGE / PNAD / Microdados.
Elaborao: IPEA / DISOC, 2001 (Silva, 2004).
56
so matria central, a questo racial no venha recebendo significativa ateno
(Amaro, 2005, p.64).
A mesma autora considera que os servios da poltica de assistncia social
se constituem como um dos poucos espaos de cidadania populao negra,
extremamente empobrecida pelo processo histrico de excluso social. Tais
questes evidenciam que a relao do negro com o Estado em geral e com as
polticas pblicas, em particular, permeada por uma srie de negligncias
(Amaro, 2005).
Analisando o papel das mulheres nas propostas de polticas pblicas
brasileiras no contexto da globalizao e do neoliberalismo Carloto (2006) nos
chama ateno para a instrumentalizao de seu papel, tanto no mbito da famlia
como no mbito do chamado Estado de Bem-Estar. Para a autora, vislumbra-se a
certa concepo de que para o bom desempenho desses programas faz-se
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57
a superao dessas questes se apresentam ainda como um desafio que sinaliza
para a importncia da garantia de oportunidade e participao das mulheres em
todas as esferas da sociedade.
A participao democrtica da mulher no deve restringir-se apenas aos
programas contra a pobreza, mas deve ser ampliada para se atingirem as
mudanas nas estruturas econmicas com vistas a garantir a todas as
mulheres o acesso aos recursos, s oportunidades e aos servios pblicos
(Soares, 2003, p. 76).
Esse quadro nos atenta para a multiplicidade de papis ocupados pelas
mulheres na articulao de identidades e direitos, com vistas ao exerccio da
cidadania. Superar os entraves que envolvem a relao das mulheres negras com
as polticas pblicas, portanto, sugere a adoo de novas metodologias de
interveno por parte do Estado, principalmente as que favoream a participao,
propondo e pressupondo prticas de cidadania ativa, garantindo-lhes um sentido
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emancipatrio.
Essa pesquisa parte do marco referencial da destinao de cestas bsicas
do Programa Fome Zero para comunidades religiosas de matriz africana que
ocorre oficialmente a partir de 2005. importante pontuar que compreendemos
esta ao como uma poltica pblica que visa garantir direitos especiais
populao negra, possibilitando a re-criao de uma identidade coletiva, que
atravs do corte religioso define um novo sujeito de direitos. Ao ter como lcus
uma comunidade-terreira, inscreve-se como poltica pblica afirmativa, mesmo
que no haja somente negros beneficirios a o territrio um elemento de
identificao e pertena racial.
No contexto de mudana na discusso sobre a alimentao, a partir da
promulgao da Lei Orgnica da Segurana Alimentar e Nutricional (LOSAN), o
direito humano alimentao adequada assegurado por um conjunto de polticas
pblicas de carter permanente. Pode ser que esse seja um dos primeiros passos
em direo ao rompimento da srie de negligncias histricas impostas pelo
Estado populao negra. Anjos (2006) pontua que:
As polticas pblicas poderiam conjunturalmente definir focos racializados como
lugar de incidncia da correo de uma dimenso de injustia histrica ao mesmo
tempo em que o patrimnio tnico se afirmaria como percurso racializante norestrito ou associado a certo tipo de fentipo, mas aberto multiplicidade como
bem se v nas prticas do terreiro (...) Duas dimenses polticas at aqui tidas como
antagnicas estariam equacionadas: da preservao de patrimnios tnicos e do
estabelecimento de polticas compensatrias desracialiantes (Anjos, 2006, p. 121).
58
Focalizao? Universalizao? Seletividade? As crticas e os desafios so
diversos, porm a eficcia e o alcance dessas polticas ainda esto por ser
conhecidos, por meio deste e de outros estudos. Da mesma forma, o potencial dos
territrios enquanto executores de polticas pblicas que tm como meta o
reconhecimento scio-cultural e a promoo da igualdade tambm merecem ser
4
Batuque e mulher negra: no princpio, feminino...
22
60
So outras cosmovises organizando outras formas de existir e resistir no
mundo, pautadas em valores como a ancestralidade23, a senioridade24, a
transgeracionalidade25, a circularidade26, a corporeidade27, a musicalidade28, a
ludicidade29, a oralidade30, a memria31, o comunitarismo/cooperativismo32 e a
complementaridade33 (Africanamente, 2006). Apostando na construo coletiva
do espao social, as religies de matriz africana possuem outras concepes ticas
e prope outras formas de relaes sociais e de convivncia com a natureza.
Esta concepo do mundo que conecta o real, o mtico e o simblico, o
concreto e o abstrato, delineia contornos diferenciados e define as relaes
mantidas no interior do terreiro, irradiando-se para as relaes determinadas pelas
Fala sobre a histria dos ancestrais, ou seja, aqueles que vieram antes de ns e foram
importantes para a comunidade (Africanamente, 2006, p. 07).
24
Refere-se valorizao e ao respeito aos mais velhos e toda sua sabedoria (Africanamente,
2006, p. 07).
25
Tudo que transmitido de gerao a gerao, do mais velho para o mais novo (Africanamente,
2006, p. 07).
26
a compreenso de que na vida tudo cclico, no tendo incio nem fim e que circula entre os
seres no espao e no tempo (Africanamente, 2006, p. 07).
27
Modo de se expressar e se relacionar com o corpo prprio, com o corpo do outro, com o mundo
e com as divindades (Africanamente, 2006, p. 07).
28
Forma de se expressar atravs da msica (Africanamente, 2006, p. 07).
29
Refere-se a tudo que feito com prazer, como se estivesse brincando, jogando, podendo ser em
grupo ou individualmente (Africanamente, 2006, p. 07).
30
Poder de expressar-se e transmitir informaes oralmente (Africanamente, 2006, p. 07).
31
Modo de preservar a histria da comunidade e dos ancestrais (Africanamente, 2006, p. 07).
32
Forma de trabalhar e se relacionar em grupo para chegar ao objetivo comum em uma
comunidade (Africanamente, 2006, p. 07).
33
Refere-se a elementos que se complementam entre si, doando e recebendo (Africanamente,
2006, p. 07).
61
questes tem sido crescentemente incorporado pelos negros nas discusses acerca
do exerccio de sua plena cidadania na sociedade brasileira, se inscrevendo
enquanto uma de suas plataformas polticas.
A partir dessas e de outras questes sinalizadas nos captulos precedentes,
nos determos nesse momento aos principais aspectos que envolveram a realizao
da pesquisa de campo, norteada pelos seguintes objetivos de pesquisa:
Objetivo geral: realizar um estudo acerca do papel desempenhado pelas
religies de matrizes africanas na construo da identidade racial de mulheres
negras.
E objetivos especficos:
4.1.
Batuque: territorialidade negra e feminina no Rio Grande do Sul
Buscaremos nos aproximar nesse momento de alguns aspectos que
envolvem o desenvolvimento das religies de matriz africana no Rio Grande do
Sul. Para isso, faz-se indispensvel considerar o contexto de invisibilidades e
lacunas histricas sobre a questo dos negros no Brasil e, particularmente, neste
Estado. Ainda assim, com o auxlio de estudiosos do tema, faremos esforos para
tentar reunir os principais fatores que envolvem o surgimento, evoluo e
62
manuteno dessas religies na sociedade gacha atual, bem como o papel que
desempenha na construo da identidade negra positiva, destacando a a
centralidade da mulher.
A falta de conhecimentos dessa temtica se inscreve a partir de uma
somatria de fatores, dentre os quais se destaca o fato de este Estado ser
identificado, na maioria das vezes, como o mais branco do Brasil34. Um olhar
rpido sobre essa realidade social pode levar crena de que a baixa expresso
numrica da populao negra no Rio Grande do Sul ocasionaria um insignificante
34
Para esse processo, identificamos que contribuem as imagens refletidas pela mdia acerca da
figura do gacho, elevado condio de autntico representante desse territrio e do
colonizador europeu, em detrimento de outros grupos sociais a presentes (Oro, 2002).
35
Ambas so promovidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica, integrando o
Programa Nacional de Pesquisas Continuas por Amostra de Domiclios.
63
Grfico 1: Populao de Porto Alegre segundo raa/cor, Censo Demogrfico de 2000.
8%
5%
87%
Brancos
Pretos
Pardos
11%
6%
83%
Brancos
Pretos
Pardos
64
Da decorre, para a populao negra em geral e para os adeptos das
religies de matriz africana em particular, um possvel fenmeno que emoldura a
relao movimento negro - religies de matriz africana - polticas pblicas: a
convivncia com um tipo de discriminao quase onipresente, j que os negros
compem nmero pouco expressivo frente populao branca da cidade,
ocasionaria uma maior combatividade com relao a essa discriminao,
conduzindo a um maior nmero de reivindicaes de aes por parte dos
governos.
Braga (1998) sinaliza mais dois pontos importantes com relao ao
desconhecimento acerca das religies de matriz africana e dos negros em geral no
Rio Grande do Sul: a falta de interesse dos pesquisadores da cultura gacha, que
em sua maior parte dedicam-se aos estudos das contribuies dos imigrantes
europeus e o papel desempenhado por Rui Barbosa, ministro da Fazenda da recm
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criada Repblica, que por uma volpia incendiria deu fim aos registros
histricos sobre a entrada de negros africanos no Rio Grande do Sul 36.
Em estudo sobre o Batuque Jje-Ijex em Porto Alegre, Braga (1998)
realiza uma reviso bibliogrfica onde chama ateno para estudos significativos
sobre o tema presentes desde a dcada de 1940, entre abordagens sociolgicas,
antropolgicas, histricas e psicanalticas. O autor sinaliza como recorrncia em
tais estudos as comparaes e hierarquizaes com relao a outras manifestaes
religiosas de matriz africana, especialmente o candombl praticado na Bahia.
Em sua maioria, os estudiosos consideram este como ... um modelo de
pureza ante o modelo africano (Braga, 1998, p. 30), considerando que as diversas
modalidades Jje-Nag do Brasil teriam partido deste local. Nosso ponto de
partida no se enquadra nessa perspectiva, especialmente por considerarmos,
assim como Braga (1998, p. 30) que: ... as diferentes religies afro-brasileiras
teriam se desenvolvido a partir da matriz africana adaptada s condies
peculiares de cada regio.
Posto isso, ponto importante para avanarmos no debate a definio
corrente na bibliografia acerca de trs vertentes principais que compe as religies
de matriz africana no Estado do Rio Grande do Sul, sendo elas: a Nao ou
36
Aps a instaurao da Repblica Rui Barbosa ... rene toda a documentao referente ao
trfico de escravos de posse das reparties publicas e ordena que se ateio fogo (Braga, 1998, p.
31).
65
Batuque, a Umbanda37 e a Linha Cruzada38. Destacamos que nossa ateno
aqui estar voltada somente ao Batuque, que representa a expresso mais
africana do complexo religioso negro gacho, pois ... a linguagem litrgica
yorubana, os smbolos utilizados so os da tradio africana, as entidades
veneradas so os orixs e h uma identificao s naes africanas (Oro, 2008,
p. 12).
Apesar dessa diviso, como sinaliza Braga (1998) O que ocorre, via de
regra, a convivncia das prticas da Linha Cruzada, no mesmo espao onde se
realizam cerimnias de Batuque e mesmo de Umbanda, a depender logicamente
das peculiaridades de cada casa (Braga, 1998, p. 32). Com relao a tais
peculiaridades, a descrio que esse autor faz desses locais de culto interessante,
vejam:
Aos olhos menos avisados sua presena [das casas de Nao] pode parecer
despercebida, uma vez que a aparncia externa dos templos de uma casa normal
como as demais da maioria das vilas perifricas da cidade. No fosse o
sentamento do Bar de rua (.,..) em forma de uma casinhola colocada na parte da
frente da casa e pintada com a cor vermelha, nenhum outro indcio nos avisaria de
tratar-se de um templo de nao (Braga, 1998, p. 41).
a que representa o lado mais brasileiro desse complexo, fruto de um importante sincretismo
entre catolicismo popular, espiritismo kardecista e concepes religiosas indgenas e africanas
(Oro, 2008).
38
Que cultua entidades das duas outras modalidades, acrescida de outras (Oro, 2008).
39
Estabelecimentos de beneficiamento da carne bovina nos moldes do charque (Corra, 1998).
40
Lei n. 183 de 18 de outubro de 1850 (Corra, 1998).
66
linguagem que compe os cnticos. Em Salvador, pelo contrrio, ela foi sendo
sempre reatualizada com a chegada de novos africanos (Corra, 1998, p. 10).
Grande do Sul pertenciam, grosso modo, a dois grandes grupos que tambm se
distriburam pelo restante do Brasil: os bantos (classificao lingstica) e os
sudaneses (classificao geogrfica): ... apesar do menor nmero de indivduos
aqui chegados, a supremacia da cultura sudanesa sobre a banto no tocante s
religies afro-brasileiras flagrante (Braga, 1998, p. 27).
No entanto, no restam dvidas sobre a vasta composio do universo
religioso negro gacho, derivado das diversas localizaes geogrficas e matrizes
culturais de origem desses negros. Parte desse universo, sem dvidas, surge das
possveis combinaes e ajustes ocorridos entre elas, num processo de cruzamento
de naes41.
Nesse processo, importante o entendimento sobre a dispora africana,
enquanto elemento que reflete a disperso e re-construo dos povos africanos
pelo mundo. Nessa re-construo, sob novas condies sociais e histricas, a
frica o significante, a metfora, o elemento que sobreviveu e o meio de
sobrevivncia dos negros na dispora (Hall, 2003):
A frica passa bem, obrigado, na dispora. Mas no nem a frica daqueles
territrios agora ignorados pelo cartgrafo ps-colonial, de onde os escravos eram
seqestrados e transportados, nem a frica de hoje, que pelo menos quatro ou
cinco continentes diferentes embrulhados num s, suas formas de subsistncia
destrudas, seus povos estruturalmente ajustados a uma pobreza moderna
41
Destacamos que ao mencionar esse cruzamento no nos referimos construo de uma nova
unidade, resultante da mistura de valores de origens diversas, como pressupe o sincretismo
religioso (Anjos, 2006).
67
devastadora. A frica que vai bem nesta parte do mundo aquilo que a frica se
tornou no Novo Mundo, no turbilho violento do sincretismo colonial, reforjada na
fornalha do panelo colonial (Hall, 2003, p. 39).
Segundo Cunha (2007, p. 20) as naes que deram origem ao Batuque so:
Oy, cuja origem o Reino de Oy, que se localizava na atual Nigria, regio de
lngua yorub, que entrou em decadncia no sculo XIX; Ijex, cuja origem a
cidade de Ijex, no sudoeste da Nigria, uma das mais tradicionais do povo
yorub, tendo declinado tambm no sculo XIX; Jje, que embora no tenha sido
uma nao na frica, foi a denominao dada pelos portugueses aos povos de
lngua Fon, oriundos do Daom, atual Estado do Benin; Jje-Ijex, religio gacha
que cruza os conhecimentos religiosos dessas duas naes; e Cabinda, originada
no atual territrio de Angola e Congo onde se cultuavam Inkices, no Rio Grande
do Sul passou a cultuar Orixs e utilizar lngua yorub nos seus rituais. Para Braga
(1998, p. 40):
O Batuque diferencia-se das demais religies afro-brasileiras do estado, pela
presena quase nica de elementos das culturas sudanesas Jje-Nag. O povo de
religio se autodenomina de nao, ou seja, herdeiro das diferentes tradies
religiosas africanas presentes no estado (Braga, 1998, p. 40).
Com relao ao incio da religio negra no Rio Grande do Sul, tudo indica
que os primeiros terreiros foram fundados na regio de Rio Grande e Pelotas no
incio do sculo XIX (Oro, 2002; Braga, 1998). Quanto ao seu mito fundador, os
estudiosos identificam duas verses correntes: uma que atribui o incio do
Batuque a uma mulher negra, livre, vinda de Recife e outra que no a associa a
um personagem especfico, mas s naes africanas chegadas ao Brasil, como
espao de resistncia escravido (Oro, 2002; Braga, 1998).
Podemos identificar algumas dimenses particulares que envolvem a
construo histrica e social do Batuque nesse Estado, bem como na capital
gacha. Elas seriam representadas, especialmente, pelo Mercado Pblico de Porto
Alegre; pelo assentamento de Bar42 no eixo central dos corredores do Mercado
Pblico; e pela figura do Prncipe Custdio Joaquim de Almeida. J que
entendemos tais referenciais como partes importantes da compreenso do
universo de significados das religies de matriz africana e de sua ligao com os
42
Considerado no Batuque do Rio Grande do Sul o primeiro dos orixs, dono dos caminhos e das
encruzilhadas. Possui forte relao com o comrcio e os mercados, sendo este o seu reino.
68
territrios negros da cidade de Porto Alegre, buscaremos traar algumas
aproximaes.
O Mercado Pblico foi o primeiro centro comercial da cidade, erguido h
mais de um sculo43. Com localizao privilegiada, se caracteriza por ser um
grande espao de sociabilidade, agregador de pessoas: trata-se de um territrio,
econmico, social e tambm negro, pois no fim do sculo XIX esse era o local em
que se encontravam pretas minas dominando as atividades de vendas, com notria
intensidade religiosa (Anjos, 2007).
Para os religiosos de matriz africana, contudo, ele detm duplo significado,
tendo em vista que no eixo central de seus corredores foi assentado um Bar,
Segundo essa tradio, o mercado tido como uma das moradas e reino do
Bar. L comum que os membros dessas religies joguem moedas em sua
homenagem: o Bar do Mercado considerado patrimnio da comunidade negra e
do Batuque de Porto Alegre (Oro, 2007), possuindo grande significado simblico.
Exemplo desse significado o ritual do passeio em que, considerando as
variaes entre as diferentes naes: Depois de uma obrigao, em que a
pessoa vai para o cho e animais so sacralizados para seus orixs, realizado o
passeio, que passa (...) pelo Mercado Pblico de Porto Alegre (Cunha, 2007, p.
12).
A respeito do assentamento de Bar, duas correntes explicativas se cruzam
e complementam: a de que ele teria sido realizado pelos negros escravizados na
ocasio da construo do Mercado e a que atribui a iniciativa desse assentamento
ao Prncipe Custdio. As informaes a respeito desse importante personagem das
religies de matriz africana no Rio Grande do Sul ainda merecem maior ateno
43
Foi projetado em 1861, em uma rea de aterro do Rio Guaba, sendo inaugurado em 1869. Ao
longo de sua histria sofreu trs incndios (1912, 1976 e 1979) e resistiu enchente de 1941. Em
1913 foi reconstrudo, passando a contar com um segundo pavimento e incorporando caracterstica
arquitetnica ecltica. A partir de 1994 foi reformado e tombado pelo Patrimnio Histrico e
Cultural de Porto Alegre. Hoje estima-se uma circulao diria de 30 mil pessoas (Oro, 2007).
69
por parte dos estudiosos, uma vez que se deve tradio oral a maior parte dos
dados relativos a ele (Oro, 2007).
Oro (2007), reconstruindo a trajetria de Prncipe Custdio, cone dessa
religio, assinala que ele nasceu em 1831, em Benin, na Nigria e morreu em
Porto Alegre, em 1935, aos 104 anos de idade. Teria chegado ao Brasil em 1898,
na Bahia, seguindo para o Rio de Janeiro e depois para Rio Grande. At chegar a
viver em Porto Alegre, ainda teria morado em Pelotas e Bag. Na capital,
localizou-se no bairro Cidade Baixa, um dos locais de maior concentrao da
populao negra no ps-abolio. Teria deixado o reino de Benin acompanhado
de uma comitiva de aproximadamente 48 pessoas e sua histria em Porto Alegre
envolve relaes com polticos importantes da poca. Para o autor: O Prncipe
Custdio integra hoje o mito fundador da religio dos orixs no Rio Grande do
Sul e sua memria representa uma garantia de legitimidade e mesmo de nobreza a
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70
O prprio mito da criao do mundo na cultura yorub44 ressalta a
importncia da conjugao entre os princpios feminino e masculino no processo
de construo do aiye, a terra. Oduduwa a beleza negra, princpio feminino,
considerada Ya Mi, a me da terra, visto que foi a primeira divindade a pis-la, ou
seja a: ... reinventada uma etnicidade mtica resgatando uma maneira de ser e
viver o feminino fora dos padres hegemnicos da sociedade ocidental, que visa a
subordinao das mulheres (Vinagre Silva, 2008).
No Brasil a mulher negra desempenhou papel primordial na reinveno
dos cultos s divindades africanas, se constituindo enquanto principal agente de
re-criao dessas religies (Vinagre Silva, 2008). Ento se essas mulheres se
encontram alijadas do poder em diversas situaes vivenciadas em seu cotiano,
nessas religies elas encontram meios de re-contruir sua auto-estima (Theodoro,
2003), desenvolvendo novas formas de sociabilidade e metamorfoseando seus
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4.2.
As muitas mulheres da Vila So Jos: uma territorialidade negra
Considerando que as pertenas religiosas de matriz africana no Brasil
constituem territorialidades nas quais as identidades negras encontram uma
possibilidade mpar de construo e afirmao, elegemos a Comunidade Terreira
Il Ase Iyemonja Omi Olodo para realizar nossa pesquisa. A partir do marco
referencial da destinao de cestas bsicas do Programa Fome Zero para
comunidades religiosas de matriz africana, nos interessa explorar seu potencial
enquanto executor de polticas pblicas afirmativas voltadas populao negra
brasileira.
Demonstrando aproximaes com o processo que se desenvolveu nas
demais regies do Brasil, as casas de religio do Rio Grande do Sul localizamse principalmente nos espaos perifricos das cidades e so freqentadas,
majoritariamente, por pessoas de baixa renda, moradores de periferias, mulheres e
negros (Corra, 1998, p. 42).
Historicamente situada no seio de uma comunidade popular de Porto
Alegre, na Vila So Jos, a Comunidade Il Ase Iyemonja Omi Olodo representa
44
71
populao vizinha e freqentadora um caminho que se constitui como alternativa
de enfrentamento s discriminaes e como espao de re-criao de uma
identidade negra, coletiva, batuqueira. Constituda como uma comunidadeterreiro tambm pessoa jurdica desde 1996 e tm buscado ampliar suas aes,
abrindo espaos para a discusso filosfica, teolgica, poltico-social e prticoterica das questes relacionadas religio e cultura africana no Brasil.
Nessa Comunidade Terreiro 100 famlias foram beneficiadas com as cestas
bsicas. O convite do sacerdote religioso para que integrssemos a equipe de
trabalho foi recebido como oportunidade e desafio, tendo em vista a possibilidade
inovadora de exerccio da prtica profissional.
Assim, durante o primeiro ano da atividade, 2006, realizamos algumas das
aes que serviram de base para a coleta de dados da presente pesquisa. Foram
feitas reunies mensais, de janeiro a dezembro daquele ano, com representantes
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72
liberao deste para que tivssemos acesso aos registros acerca das famlias
beneficirias, iniciamos a seleo e contato para a realizao das entrevistas.
Tendo em vista que o universo de beneficirias composto por cem
famlias, elegemos como nmero de considervel relevncia para a realizao da
presente pesquisa 25% desse total, ou seja, vinte e cinco mulheres, sendo que
pretendamos realizar trs entrevistas semi-estruturadas e vinte e dois
questionrios.
Para seleo das mulheres partimos dos seguintes critrios, inicialmente:
ser moradora da Vila So Jos, onde se localiza a Comunidade Terreiro Il Ase
Iyemonja Omi Olodo; obedecer a proporcionalidade de 50% entre mulheres
negras e brancas, bem como a seguinte distribuio de faixa-etria, adotando a
perspectiva generacional: cinco entre 20 e 30 anos; cinco entre 30 e 40 anos; cinco
entre 40 e 50 anos; cinco entre 50 e 60 anos e outras cinco com mais de 60 anos.
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73
A seleo foi realizada ento obedecendo somente ao primeiro critrio
estabelecido: ser moradora da Vila So Jos e estar disponvel para realizao das
entrevistas nos dias propostos pela pesquisadora. Aps essa etapa, as entrevistas
foram previamente agendadas via telefone com aquelas que apresentaram
disponibilidade, sendo que foram explicitados na ocasio do contato os objetivos
da pesquisa e a inteno em entrevist-las, ressaltando-se a no-obrigatoriedade de
sua participao.
Todas as entrevistas foram realizadas individualmente, em sala reservada,
sendo que as entrevistas semi-estruturadas foram gravadas, tendo a durao mdia
de quarenta minutos. Ao incio de cada entrevista, realizamos a leitura e assinatura
do Termo de Consentimento Livre e Informado TCLI. O estudo foi norteado
pelo principio tico de respeito integridade das mulheres envolvidas, sem
discriminao de qualquer natureza.
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4.2.1.
Contextos dos encontros: reunio, questionrios e entrevistas
O Il Ase Iyemonja Omi Olodo, territrio sagrado do Batuque, onde todas
as etapas desta pesquisa foram realizadas, um espao religioso, cultural e de
convivncia, tendo a presena constante e marcante de mulheres negras,
justificando assim sua escolha como o lcus de nosso olhar. Durante esse
processo, o envolvimento e o comprometimento dessas mulheres formam muito
significativos e geraram um leque de reaes e sentimentos, no mnimo curiosos,
que cabem ser ressaltados.
Sendo esta prtica pouco comum no cotidiano destas mulheres, a pesquisa
causou certo nervosismo e estranhamento. Tanto na aplicao dos questionrios
quanto na realizao das entrevistas, foi perceptvel certo desconforto com o
gravador e receio quanto confidencialidade das informaes. Da mesma forma,
observamos algumas dificuldades no entendimento do Termo de Consentimento
74
Livre e Informado TCLI e perante algumas questes dos questionrios e
entrevistas.
Contrastando com isso, percebemos tambm a satisfao das entrevistadas
em geral, demonstrando a disponibilidade para informar, o interesse em responder
e, sobretudo, contribuir com uma pesquisa acadmica focada em um tema com
qual se identificam. Na reunio onde anunciamos a proposta de entrevist-las a
reao geral foi de curiosidade e expectativa com relao participao,
transparecendo que grande parte daquelas mulheres tinha interesse em participar.
Observamos que o conhecimento prvio da pesquisadora tambm
desempenhou papel importante, tendo em vista que conferiu maior intimidade aos
relatos e respostas ofertadas pelas entrevistadas, ainda que em alguns momentos
tenham hesitado, especialmente nas questes abertas dos questionrios. Podemos
dizer que durante a pesquisa se fez presente uma familiaridade, para a qual
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tambm contribuiu o fato de termos nos encontrado no Il, local onde todas
transitam cotidianamente.
4.2.2.
Vinte e uma mulheres do Il
O universo de participantes compreende, em maior nmero, mulheres
entre os 30 e 40 anos (33,3%), sendo tambm significativa a faixa dos 50 aos 60
anos (28,5%) (Tabela 1). Quanto ao nvel de escolaridade (Tabela 2), a maior
parte dessas mulheres possui o Ensino Fundamental Incompleto (33,3%), seguido
por aquelas que possuem Ensino Mdio Completo (18,9%).
Tabela 1: Faixa Etria das entrevistadas
Faixa Etria
At 20 anos
Dos 20 aos 30 anos
Dos 30 aos 40 anos
Dos 40 aos 50 anos
Dos 50 aos 60 anos
Dos 60 aos 70 anos
Total
Nmero
01
05
07
01
06
01
21
% das entrevistadas
4,8
23,8
33,3
4,8
28,5
4,8
100
Destaca-se, contudo a existncia da mesma distribuio entre as noalfabetizadas e as que possuem Ensino Superior Incompleto (4,8%) e Ensino
Superior Completo (4,8%).
75
Tabela 2: Nvel de escolaridade das entrevistadas
Escolaridade
No Alfabetizada
Ensino Fundamental Incompleto
Ensino Fundamental Completo
Ensino Mdio Incompleto
Ensino Mdio Completo
Ensino Superior Completo
Ensino Superior Incompleto
No Informado
Total
Nmero
01
07
03
03
04
01
01
01
21
% das entrevistadas
4,8
33,3
14,3
14,3
18,9
4,8
4,8
4,8
100
sade.
Tabela 3: Situao ocupacional das entrevistadas
Situao Ocupacional
Desempregada
Empregada
Recebendo Auxlio-Doena
Pensionista
Autnoma
Total
Nmero
12
05
02
01
01
21
% das entrevistadas
57,1
23,8
9,5
4,8
4,8
100
4.3.
A mulher negra da comunidade-terreiro Il Ase Iyemonja Omi
Olodo
Buscaremos nesse momento responder nossas questes de pesquisa,
destacando os aspectos identificados a partir da aplicao dos questionrios, que
continham questes abertas e fechadas, e das entrevistas semi-estruturadas.
As entrevistas semi-estruturadas foram realizadas a partir das seguintes
questes norteadoras: Conte um pouco como foi a sua entrada e trajetria no
Batuque; considera que a vivncia no Batuque contribui para tua afirmao como
76
mulher negra na sociedade; voc v alguma relao entre o que feito e falado
dentro do Batuque e o que voc sabe sobre o movimento negro?.
Nossos objetivos nessas entrevistas eram: identificar na trajetria das
entrevistadas pontos importantes sobre a construo de sua identidade racial;
averiguar a relao que a pertena religiosa tem nas relaes que as entrevistadas
estabelecem com o Estado; e verificar o tipo de relao identificada pelas
entrevistas entre o Batuque e o movimento negro.
Alm das dezoito mulheres que responderam ao questionrio, as outras
trs personagens dessa pesquisa so:
suficiente;
Oy, mulher negra de 53 anos que est na religio como filha de santo h 12
anos, apesar de sempre ter estado em contato e envolvida com a religio, j
que a av e tias sempre freqentaram. Ainda assim, s foi entrar com 40
anos, motivada pela busca de explicao para um grave problema de sade seu
e de seu filho; e
Oduduwa, que uma mulher negra de 31 anos de idade que est na religio h
10 anos, tendo ingressado por um motivo grave de sade. Ela tambm no
participava ativamente da religio desde criana, mas considera que j tinha
uma proximidade com a religio decorrente de uma herana da av.
As duas etapas de nossa pesquisa contemplaram as seguintes categorias
4.3.1.
A mulher negra que vive em 14 das 18 mulheres que
responderam ao questionrio
Com a categoria classificao racial no Brasil, tnhamos o objetivo de
verificar o entendimento das entrevistas a respeito de sua prpria identificao
racial, bem como sua percepo sobre a discriminao racial no acesso ao
emprego e servios pblicos e a importncia que atribuam identificao racial.
77
Nesse item analisaremos as respostas a trs perguntas do questionrio,
identificadas abaixo.
Na pergunta Tu consideras que pertence a que raa? (Tabela 4)
apresentamos as seguintes opes de resposta: indgena, branca, negra, Nenhuma
das Alternativas e No Informou. Destaca-se que ao apresentarmos a opo
negra visamos ratificar nosso entendimento com relao aos segmentos pretos e
pardos compondo o conjunto da populao negra no Brasil.
Ressaltamos ainda a concepo poltica contida nessa opo, tendo em
vista a complexidade que envolve a questo da identificao racial na sociedade
brasileira. Consideramos que essa uma questo sujeita a condies e
necessidades nacionais, dependendo dos significados sociais atribudos raa em
cada sociedade (Piza & Rosemberg, 2002). Portanto, numa sociedade onde o
estigma relacionado raa com freqncia emerge explicitamente ... a forma
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Total
N (%)
14 77,7
01 5,6
01 5,6
02 11,1
18 100
78
... essa (...) dever ser levada em conta pelo pesquisador ao avaliar o efeito de sua
presena no momento da pesquisa. S a permanncia em campo poder apresentar
ao pesquisador o lugar que uma ou outra classificao ocupa dentro do sistema
completo de classificao do grupo. As categorias negro e preto aparecem com um
carter tanto mais estigmatizante quanto mais estranho parece ser o agente de
pesquisa (Anjos, 2006, p. 58).
79
religies de matriz africana na atualidade so multitnicas, contando com a
participao de pessoas de todas as raas a brancos, negros, indgenas,
orientais, etc. manifestam sua f.
Acreditamos que as respostas para tal questo podem ser encontradas na
conjuno de dois fatores distintos: um que se refere a uma possvel dificuldade
de compreenso com relao formulao da questo; e outra questo que nos
remete novamente atmosfera desse territrio negro que ao assim se afirmar,
subverte a lgica corrente em situaes de pesquisa, conforme nos sinaliza Anjos
(2006):
Na situao de um cadastramento, a pergunta qual a tua raa? soa ofensiva ou
no mnimo embaraosa para grande parte dos entrevistados. A resposta tende a ser
tanto mais demorada e embaraada quanto mais a pessoa se sabe reconhecida como
negro (Anjos, 2006, p. 51).
80
identificado como construtor de uma ideologia do enegrecimento, levamos em
conta que:
...mesmo nos estratos sociais mais empobrecidos, o capital social baseado em
caractersticas tnicas funciona de modo a fazer com que as famlias brancas
tendam a se inserir em redes de relaes que facultam oportunidades de mobilidade
ascendentes. ... o capital social negativo, na forma do tratamento degradante das
autoridades (...) tende a neutralizar as aspiraes ascendentes das famlias negras
(Anjos, 2006, p. 116).
Total
N (%)
10 55,5
07 38,9
01 5,6
18 100
81
Tabela 6: Tu consideras que a identificao racial (ser perguntada
sobre a tua raa) :
Respostas
Importante
Pouco relevante
Muito importante
NDA
NI
Total
Total
N (%)
04 22,2
09 49,9
05 27,9
18 100
82
4.3.2.
Aproximaes entre o Batuque e o movimento negro
Nessa categoria analisaremos conjuntamente as respostas concedidas a
quatro questes do questionrio bem como seus desdobramentos, relacionando-as
com alguns aspectos apresentados pelas mulheres que participaram das entrevistas
semi-estruturadas. Nessas questes, tnhamos os objetivos de:
Total
N (%)
15 83,2
02 11,2
01 5,6
18 100
83
por uma minoria negra, estrutural e ideologicamente diferenciada da maior parte
dessa populao. Segundo Pereira (2008) transformar o movimento negro em um
movimento social:
... significava a sua generalizao por todo o tecido social brasileiro (...) tal desejo
s seria possvel se, para alm da gradual conquista do meio negro, encontrasse
alianas no mbito da sociedade, espaos de dilogo onde, olhos nos olhos,
houvesse possibilidades de entendimento (Pereira, 2008, p. 106).
Respostas
Total
N
08
09
01
18
(%)
44,5
49,9
5,6
100
84
No que tange aproximao entre o Batuque e o movimento negro (Tabela
10), verificamos que a grande maioria das que responderam ao questionrio
(88,8%) considera que h algum tipo de relao entre ambos. Sobre essa relao,
Oduduwa nos oferece interessante relato:
Antes eu no tinha nenhum conhecimento mesmo assim, s ouvia falar assim e no
entendia o que era. Depois que eu comecei a vir aqui no Il que eu comecei a
realmente ter noo de que tudo se encaixa pra conscientizao... no caso aqui do
projeto do Africanamente e do... Ori Inu Ere, n, se encaixa, ensinando as crianas
na cultura, ensinando as coisas da religio, a conscientizao negra, n, ento eu
acho que um complemento. Apesar que eu conheo um movimento do Maria
Mulher, que muitas no so de religio, mais pela conscientizao mesmo, n,
pelo movimento (Oduduwa).
Total
N (%)
13 71,9
03 16,9
02 11,2
18 100
85
coletivas de enfrentamento ao racismo, que devem articular o campo cultural ao
da militncia poltica. Ou seja, para alm dos aspectos religiosos, as casas de
religio so identificadas pelas entrevistadas como espaos de transmisso de
conhecimentos complementares sobre a cultura e a conscincia negras.
Desde a se evidencia uma sntese fundamental, nas palavras de Pires
(2008), entre as atuaes dos movimentos negros e as manifestaes religiosas de
matriz africana, tendo em vista que so componentes de um mesmo fenmeno. O
autor chama ateno para tal aproximao, especialmente quanto ao movimento
contra a intolerncia religiosa, tema altamente presente na sociedade brasileira
contempornea.
bastante evidente que a organizao do povo de santo frente s demandas criadas
no interior do universo religioso afro - brasileiro, a fim de preservar as matrizes
africanas em nosso pas, encontram-se muito prximas daquelas articuladas pelas
diversas organizaes do movimento negro nacional bem como da sociedade civil
objetivando a legitimao do respeito, da auto - estima, da cidadania, alm dos
benefcios proporcionados por polticas inclusivas no mbito da educao, trabalho,
cultura, lazer, que venham atender s necessidades dos cidados e cidads
brasileiros(as) (Pires, 2008, p. 93).
Total
N
01
01
01
01
(%)
7,6
7,6
7,6
7,6
01
7,6
01
7,6
01
01
7,6
7,6
01
7,6
01
7,6
01
7,6
02
13
15,4
100
86
Dentre aquelas que responderam que o Batuque possui pouca relao com
o movimento negro (16,9%) (Tabela 12), consideramos a resposta O Batuque
tem mais brancos que pretos a mais significativa deste grupo, tendo em vista que
as outras duas destacam aspectos acerca dessa pouca relao que elas acreditam
existir. Da mesma forma, nas respostas daquelas que consideraram que o Batuque
no possui nenhuma relao com o movimento negro (Tabela 13), a questo da
presena de brancos na religio tambm ressaltada.
Tabela 12: Qual relao (para as que responderam sim, pouca):
Respostas
Informao, orientao, tirar dvida, pois [o movimento negro]
enfoca vrias coisas e a religio uma delas.
O batuque ajuda as pessoas, a maioria negra e fazem
manifestaes, como aquela da faculdade (referindo-se a
mobilizao pr-cotas raciais na UFRGS).
O batuque tem mais brancos que pretos.
Total
N
01
Total
(%)
33,3
01
33,3
01
03
33,4
100
87
Tabela 13: Por que no (para as que responderam nenhuma):
Respostas
Antigamente o batuque era s do negro, atualmente so todas as
raas.
Independente do movimento negro existir ou no, o batuque j
existia.
Total
Total
N
(%)
01
50
01
50
02
100
Acreditamos que a anlise desse dado nos revela que as religies de matriz
africana possuem um corpo de linguagens e procedimentos prprios, para o qual
contribuem os referenciais histricos e o acmulo de experincias da populao
negra no Brasil a nova conscincia negra (Pereira, 2008), que conta com os
referencias das religies negras para sua consolidao. Isso pode ser identificado,
de acordo com Pereira (2008), como resultado de uma interao mais cuidadosa
por parte do movimento negro com as manifestaes religiosas, conduzindo a uma
possvel ampliao de sua base social. Para Anjos (2006): ... o multiculturalismo
do movimento negro, em sua suposta origem nas classes mdias negras, vem
interceptando um multiculturalismo que emana do patrimnio religioso afrobrasileiro (Anjos, 2006, p. 119).
Assim, compreendemos que a pertena religiosa de matriz africana se no
transforma as mulheres negras em militantes anti-racistas no Brasil, haja vista que
nenhuma de nossas entrevistadas relatou tal aspecto, remete a reflexes sobre a
insero social do negro e da mulher na sociedade atual. Da mesma forma,
possibilita o resgate da dignidade dos negros, enquanto cidados em construo,
incentivando sua auto-valorizao e auto-estima.
88
4.3.3.
Mulher negra, polticas pblicas e cidadania
Nessa categoria tnhamos como objetivos: saber se as entrevistadas
possuam algum conhecimento das polticas pblicas executadas em sua
comunidade e averiguar qual seu entendimento acerca da natureza e dos
responsveis pela promoo da ao de que participavam (o recebimento da cesta
bsica). Relacionaremos as respostas das mulheres a trs perguntas do
questionrio com alguns aspectos apresentados por aquelas que participaram das
entrevistas semi-estruturadas.
A discusso sobre as polticas pblicas com as entrevistas revelou um
importante aspecto da relao que se estabelece entre essas mulheres e essas
polticas: o desconhecimento a respeito do significado do termo, bem como das
Total
N
06
06
06
18
(%)
33,3
33,3
33,4
100
89
sociedade brasileira, historicamente. Nesse sentido, destaca-se o fato de nenhuma
das entrevistadas ter identificado o fornecimento da cesta bsica como uma ao
de Favor.
Tabela 15: Tu consideras que o fornecimento da cesta bsica uma
ao direta de:
Respostas
Total
N
04
03
07
04
18
Poltica pblica
Campanha eleitoral
Favor
NDA
NI
Total
(%)
22,1
16,9
38,9
22,1
100
verbalizada nas relaes que estabelecem com o Estado foi nosso objetivo com a
pergunta Tu falas sobre o Batuque em locais como a escola do teu filho, posto de
sade e outros ligados ao Estado? (Tabela 16). As participantes responderam, em
sua maioria, que s vezes mencionam sua religio nesses espaos. Da mesma
forma, o mesmo percentual foi obtido entre aquelas que responderam Sempre e
Nunca (22,2% cada).
Tabela 16: Tu falas sobre o batuque em locais como a escola do teu
filho, posto de sade e outros ligados ao Estado?
Respostas
Sempre
s vezes
Nunca
NDA
NI
Total
Total
N
04
10
04
18
(%)
22,2
55,6
22,2
100
90
vezes as pessoas adeptas de tais religies negam sua insero a fim de preservar
algumas relaes:
... pelo menos eu, mais forte do que eu, porque no trabalho a gente recomendado
a dizer que esprita ou catlico, no trabalho tu no pode dizer que batuqueira,
que tu... terminou teu contrato, tu ta na rua, j aconteceu... j me aconteceu. E eu
sou muito boco assim, n, eu quero que todo mundo conhea, que todo mundo
saiba o quanto bom o quanto me fez bem, o quanto mudou minha orientao, a
minha personalidade, o quanto me fez ver outros horizontes, o quanto eu podia
ajudar as pessoas com a religio, ento uma ansiedade de se falar e a na prpria
famlia a gente acabou se descobrindo (Oduduwa).
4.3.4.
O papel da religio de matriz africana na construo do novo
sujeito mulher negra
Nosso objetivo com esse bloco foi verificar se e de que forma o Batuque
contribui para a afirmao da identidade das mulheres participantes da pesquisa.
Analisaremos conjuntamente as respostas a uma questo do questionrio
Consideras que o Batuque contribui de alguma forma para a afirmao da tua
identidade? (Tabela 17) e seus desdobramentos, relacionando-as com alguns
45
Dois casos ilustram bem essa situao: o menino advertido pela professora ao batucar na sala
de aula e a bno do padre ou pastor no quarto do doente em um hospital, por exemplo.
91
aspectos apresentados pelas mulheres que participaram das entrevistas semiestruturadas.
Tabela 17: Consideras que o batuque contribui de alguma forma para a
afirmao da tua identidade?
Respostas
Sim muito
Sim pouco
No
NDA
NI
Total
Total
N
16
02
18
(%)
88,8
11,2
100
92
est ligada terra, pra que melhor energia do que vem da terra? Tu s sente a
energia da terra se tu estiveres de ps descalos, ento a sensao de andar pelo
ptio, o ptio da tua casa pisando na terra fantstica, e isso eu me descobri depois
de adulta, isso as vezes se cerceia uma criana a no vivenciar essa sensao to
magnfica que a de andar descalo, de sentir, de ter um contato real com a terra,
ento isso pra mim foi fundamental (Iyemanja).
fator determinante para sua entrada na religio. Vejam o que nos revela Oya:
Eu fui me tornar... porque eu tinha o meu filho menor, na poca ele era muito
doente, n. Ento eu fui procurar a religio em funo da sade dele, foi a que a
gente... ele foi o primeiro, com 3 anos, a fazer o Bori e a depois que ele j tava, um
ano depois, foi que eu me iniciei na religio, n... porque eu tambm tinha
problema de doena, n, e de acordo com o orculo esse problema era espiritual,
n. Tanto que depois que eu fiz a primeira obrigao eu nunca mais tive uma dor
de cabea que eu tinha desde os 8 anos. Com 8 anos, eu sou de Uruguaiana, e com
8 anos ns viemos pra Porto Alegre e eu vim a viagem, fazia 9 horas de trem,
vomitando, com problema na cabea e eu tinha isso sempre, em qualquer lugar,
qualquer ambiente, eu no podia viajar muito tempo, eu no podia usar um
perfume, eu no podia usar um batom, eu no podia ir no centro de Porto Alegre,
da minha casa dava meia hora at o centro e antes de sair eu tinha que tomar vrios
remdios pra poder ir no centro e voltar sem sentir aquela dor, n. Eu adorava
carnaval, mas as vezes eu ia pro carnaval e tinha que ir naquele pronto-socorro que
fica em baixo das arquibancadas pra tomar um remdio, porque eu tava na
arquibancada assim com uma dor na cabea. Eu s tinha que dormir ... s passava
dormindo e toda vida eu tive esse problema de cabea, eu freqentei casa de
religio, tudo, mas nunca tinha sido feito nada em funo disso, n (Oya).
93
afirmao das razes histricas de seu grupo populacional, afirmando uma
identidade com respeito s diferenas (18,9%), o que tambm pontuado por
aquelas que responderam que o Batuque contribui pouco para a afirmao de sua
94
Total
N
(%)
01
6,3
01
6,3
01
6,3
01
6,3
01
6,3
01
06
01
6,3
37,8
6,2
01
01
6,2
6,2
01
6,2
01
6,2
05
01
31
6,3
01
6,3
01
6,3
03
02
16
18,9
12,3
100
95
Tabela 19: De que forma (para as que responderam sim, pouco):
Respostas
Por aprender sobre nossa origem, porque no colgio a gente
aprende uma coisa, que os brancos isso e aquilo e os negros
eram escravos e na verdade no assim, porque os negros
construram a maioria das coisas. Foi tudo uma conquista.
Atravs da informao, aprendi muitas coisas aqui, porque pode
perguntar. Sai daqui com conhecimentos no s sobre a religio.
Total
Total
N
(%)
01
50
01
50
02
100
5
Consideraes finais
Cidadania negra feminina: um direito a ser conquistado
97
srie de novos sujeitos sociais. Ao mesmo tempo em que procurou romper com
as marcas deixadas pelo regime militar de 1964, o novo texto Constitucional
elevou categoria de sujeitos de direitos grupos secularmente marginalizados na
sociedade brasileira, como o caso da populao negra, das mulheres em geral e
das mulheres negras, em particular.
A se inscrevem tambm as comunidades-terreiro, que empreendem
esforos buscando o reconhecimento de sua legitimidade enquanto espaos
construtores da cidadania, de incluso social, de combate ao racismo e
intolerncia religiosa. Estamos convencidas de que esse processo contribui para a
construo e afirmao de identidades negras positivas, por meio da resignificao dos elementos culturais africanos e negros.
Da mesma forma, acreditamos que a conjugao desses fatores:
territorialidade, identidade, mulher negra, religies de matriz africana e polticas
PUC-Rio - Certificao Digital N 0710333/CA
pblicas no Brasil, nos revelam um amplo campo de estudos ainda a ser explorado
pelas cincias sociais em geral e pelo Servio Social, em particular.
Atravs da reconstruo de uma identidade fragmentada pela dispora
africana, os negros no Brasil re-inventaram modos de vida, a partir de relaes
permeadas por constantes processos de afirmao-negao de identidades,
territorialidades e direitos. Presenciamos assim um continuum dos valores
civilizatrios negro-africanos, num processo em que o enfrentamento ao racismo e
intolerncia religiosa conduz afirmao de uma identidade, pressupondo o
reconhecimento e respeito diferena.
Esse reconhecimento da diferena em uma dimenso poltica possibilita a
efetivao de um novo sujeito coletivo, munido de capacidade para lutar pelo
exerccio de sua cidadania, num contexto em que as polticas pblicas constituem
um de seus nicos meios de acesso.
Assim, um desafio que tem sido encarado pelos religiosos de matriz
africana e pela militncia negra a re-formulao da importncia poltica de tais
manifestaes. Esse pode ser o caminho para que elas ocupem um novo lugar na
sociedade brasileira, inclusive de executor legtimo de polticas pblicas
afirmativas a se evidencia a possibilidade de re-criao de uma identidade
coletiva.
Nessa discusso, a consolidao de territrios negros de fundamental
importncia, especialmente tendo em vista que ao vislumbrarmos as comunidades
98
identidade.
Vimos que territorialidade e identidade so conceitos relacionados ao
poder. Esse poder geralmente est ausente das relaes estabelecidas pelas
mulheres negras, o que transforma sua existncia numa batalha: so processos
constantes de afirmao-negao de direitos, identidades e territorialidades.
Acreditamos que o reconhecimento da identidade pode conduzir ao exerccio da
cidadania, num processo em que a aceitao da diferena passa a ser o fator
fundamental.
Nesse cenrio, a cidadania tem se inscrito enquanto meta a ser alcanada
pela atuao de diferentes sujeitos. Para as mulheres negras esse conceito,
construdo sobre uma imagem masculina e branca, apresenta o desafio de se
construir na materialidade na prtica dos sujeitos envolvidos para a busca de
seu exerccio que a cidadania negra feminina se constri, a partir da ao dessas
mulheres.
Elas que tm, em geral, uma insero social marcada pela subalternidade,
no terreiro desenvolvem novas relaes, partindo de outros lugares l elas
protagonizam situaes variadas e ligam as esferas domsticas e religiosas ao
restante da sociedade e ao Estado. Essas mulheres desempenham papel nico
tanto dentro dos terreiros, como em suas residncias e no acesso da famlia s
polticas pblicas: as mesmas (mes) mulheres que batem cabea, danam na
roda, arrumam a casa, cozinham, amam e educam as crianas, so as que
99
com relao ao acesso a emprego, educao e sade, por exemplo. Ainda assim e
mesmo frente ao padro contemporneo de identificao racial, que acaba
conduzindo a um afastamento de identificao com a raa negra, nos deparamos
com um alto padro de auto-declarao para essa raa, mesmo dentre aquelas que
poderiam negociar socialmente seu pertencimento racial o territrio negro
produzindo significado e identidade.
Ao refletir sobre as aproximaes entre o Batuque e o movimento negro,
as mulheres evidenciaram que conhecem grupos do movimento negro, consideram
as atividades propostas por ele importantes, mas, paradoxalmente, no participam
de tais atividades. A partir dessas informaes evidenciou-se um desafio a ser
superado pelos movimentos negros: desenvolver o pertencimento racial na
maioria negra, processo no qual as religies de matriz africana tm papel
fundamental, inclusive na formao de novos militantes.
As entrevistadas tambm revelaram que consideram que h relaes entre
o Batuque e o movimento negro, ou seja, para alm dos aspectos religiosos, as
casas de religio so identificadas por elas como espaos de transmisso de
conhecimentos complementares sobre a cultura e a conscincia negras. Podemos
dizer que a se evidencia a sntese fundamental (Pires, 2008), entre as atuaes
dos movimentos negros e as manifestaes religiosas de matriz africana a
nova conscincia negra (Pereira, 2008) que est se forjando.
100
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