Gregolin Heterotopia

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 14

GREGOLIN, M.R. Discursos e imagens do corpo: heterotopias da (in)visibilidade na WEB.

In:
FLORES, G.G.; NECKEL, N.R.F.; GALLO, S.M.L. (org). Anlise de discurso em rede: cultura e mdia.
Campinas: Pontes, 2015, p. 191-213.

DISCURSOS E IMAGENS DO CORPO: HETEROTOPIAS DA


(IN)VISIBILIDADE NA WEB
Maria do Rosario Gregolin1
O navio a heterotopia por excelncia. Nas civilizaes sem barcos os
sonhos naufragam, a espionagem substitui a aventura e a polcia os corsrios.
(Michel Foucault, Outros Espaos, 2001, p. 422)

RESUMO: Este artigo objetiva discutir as relaes entre discurso, imagem e mdia a
partir do conceito de heterotopia e dos estudos sobre o corpo na obra de Michel Foucault.
No texto Outros espaos (publicado em 1967, reeditado na coleo Ditos & Escritos
volume III) Foucault afirma que a modernidade marcada pela existncia de espaos
heterotpicos, ambguos, em que convivem diferentes objetos e temporalidades. Para ele,
a heterotopia por excelncia da modernidade o navio (lugar sem lugar, flutuante,
lanado ao infinito do mar, de porto em porto...). Nossa proposta que a heterotopia por
excelncia do sculo XXI a WEB e que nos lugares contraditrios instaurados pela
mdia digital discursos e imagens produzem subjetivaes de corpos que oscilam entre
topias e utopias. Pensar discurso, imagem e corpo com Michel Foucault nos leva a discutir
o estatuto do corpo na contemporaneidade, como forma simblica de produo de
subjetividades e discursividades. O corpo materialidade significante produzida
historicamente. Para colocar prova essas afirmaes tericas tomaremos imagens
postadas em blogues e redes sociais que se constituem nessas heterotopias: so corpos
impossveis fixados em selfies; so corpos que escapam invisibilidade de prostbulos e
presdios e so exibidos no panptico da WEB como utopias consentidas.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso, Imagem, Corpo, Heterotopia, WEB.

1. Pensar discurso, imagem e mdia digital com Michel Foucault


Desde os anos 1960, a obra de Michel Foucault vem sendo investigada em muitos
domnios do saber e sob diversas perspectivas. Isso ocorre porque ele um pensador de
temticas abrangentes, cujas problematizaes desafiam os limites disciplinares. A
perspectiva que tenho adotado leva a ler Foucault pela via do discurso, entendendo-o
como categoria central do seu pensamento (GREGOLIN, 2004). Evidentemente, Foucault
nunca pretendeu elaborar um campo de estudos denominado como "anlise do discurso"
mesmo que, em certos momentos de sua obra, tenha afirmado isso explicitamente:
Livre-docente em Anlise do Discurso, Universidade Estadual Paulista UNESP/CNPq. E-mail:
[email protected]
1

GREGOLIN, M.R. Discursos e imagens do corpo: heterotopias da (in)visibilidade na WEB. In:


FLORES, G.G.; NECKEL, N.R.F.; GALLO, S.M.L. (org). Anlise de discurso em rede: cultura e mdia.
Campinas: Pontes, 2015, p. 191-213.

Eu me dei como objeto uma anlise do discurso [...] O que me interessa no


problema do discurso o fato de que algum disse alguma coisa em um dado
momento. Isto o que eu chamo de acontecimento. Para mim, trata-se de
considerar o discurso como uma srie de acontecimentos, de estabelecer e
descrever as relaes que esses acontecimentos que podemos chamar de
acontecimentos discursivos mantm com outros acontecimentos que
pertencem ao sistema econmico, ou ao campo poltico, ou s instituies.
(FOUCAULT, 2003, p. 255-256)

Se ele no pretendeu produzir uma teoria discursiva ou criar um campo do saber


para objetos discursivos, podemos, ento, pensar uma anlise de discursos com Foucault?
As pesquisas que venho desenvolvendo e orientando h cerca de vinte anos tem indicado
que sim porque as problemticas foucaultianas esto, sempre, articuladas a uma reflexo
sobre os discursos: pressupondo que as coisas no preexistem s prticas discursivas,
Foucault entende que estas constituem e determinam os objetos. , pois, a partir da
reflexo sobre as transformaes histricas do fazer e do dizer na sociedade ocidental prticas discursivas que provocam fraturas, brechas e rearranjos nas configuraes do
saber, do poder e da subjetividade - que se edifica o pensamento foucaultiano.
A essa hiptese fundamental de que as coisas no preexistem s palavras, subjaz
o pressuposto de que os processos de objetivao / subjetivao so prticas (discursivas;
no discursivas) que ligam o sujeito verdade. Por isso, para Foucault a verdade da
ordem do acontecimento, no nica nem atemporal, ela acontece sempre em um lugar
e em um tempo. , portanto, da ordem da histria.
Sendo profundamente histrico, todo dizer produzido em uma ordem do
discurso (FOUCAULT, 1971) que determina o enuncivel e o visvel, numa sociedade,
num momento da sua histria. Por isso, um discurso s aceito em uma poca quando
segue a racionalidade, o modo de legitimar a separao entre o verdadeiro e o falso, isto
, se diante do verdadeiro e do falso se posiciona de acordo com a vontade de verdade
vigente em sua poca. Assim, a aceitabilidade de um enunciado no provm da relao
de adequao entre aquilo que dito e a realidade, nem tampouco da coerncia interna
do discurso. Para que um enunciado seja aceito em uma poca, para que possa ser
legitimamente dito, para que esteja no verdadeiro, precisa seguir certas regras ditadas por
um corpo social, histrico e annimo. No nos encontramos no verdadeiro seno
obedecendo s regras de uma polcia discursiva que devemos reativar em cada um de
nossos discursos.
A teoria do discurso subjacente s propostas foucaultianas deriva do seu objetivo
fundamental de compreender como se articulam os processos de subjetivao e as
verdades no mbito da produo discursiva. importante ressaltar, desde o incio, que
em Foucault a subjetividade no se refere ao sujeito em sua essencialidade ou
individualidade e, muito menos, como categoria ontologicamente invarivel. A
subjetividade entendida como efeito de processos de subjetivao modificveis e
plurais. Assim, uma anlise de discursos com Michel Foucault convida construo de
objetos discursivos numa trplice tenso entre a sistematicidade da linguagem, da
historicidade e da produo de subjetividades.
Esse entrelaamento entre discurso, verdade e subjetivao tem diferentes
nuances e inflexes em cada momento da obra foucaultiana. A anlise arqueolgica
aborda prticas discursivas cujas regularidades implicam na produo de saberes
verdadeiros sobre o sujeito (louco, so, trabalhador etc.). J as anlises da genealogia

GREGOLIN, M.R. Discursos e imagens do corpo: heterotopias da (in)visibilidade na WEB. In:


FLORES, G.G.; NECKEL, N.R.F.; GALLO, S.M.L. (org). Anlise de discurso em rede: cultura e mdia.
Campinas: Pontes, 2015, p. 191-213.

do poder tomam os jogos em torno da loucura e do crime a fim de compreender como so


constitudas determinadas prticas cujos efeitos implicam a produo de discursos
verdadeiros sobre a razo alienada e sobre o carter criminoso. Nos trabalhos que
empreendem uma genealogia da tica o sujeito deixa de ser pensado somente na
imanncia de prticas que o sujeitam; ao mesmo tempo em que determinado pelo
exterior, torna-se sujeito e objeto para si prprio, denotando uma subjetivao tica
susceptvel aos mecanismos disciplinares e s regulaes do biopoder das modernas
sociedades ocidentais. Assim, se a arqueologia tem como objetivo descrever as regras
que regem as prticas discursivas que produzem sujeitos por meio dos saberes, a
genealogia do poder prope diagnosticar e compreender a racionalidade das prticas
sociais que nos subjetivaram pelos seus efeitos e nos objetivaram pelas suas tecnologias,
e a genealogia da tica busca problematizar as prticas de si e os processos de
governamentalidade que ligam o sujeito verdade. Esses trs momentos do percurso
terico-metodolgico de Michel Foucault situado entre os anos de 1960 a 1984 - so
atravessados e sustentados por uma teoria do discurso.
A caixa de ferramentas conceituais desenvolvida na obra foucaultiana permite que
pensemos a histria do presente porque sua arquegenealogia tem como papel fundamental
diagnosticar o que somos e o que significa hoje dizer o que dizemos (Foucault, 2004,
p. 351). Esse diagnstico do presente no se contenta somente em caracterizar o que
somos hoje, mas tambm tem por funo apontar como o que poderia no mais ser o
que . Assim, o diagnstico no tem o objetivo apenas de descobrir o que somos ns, no
presente, mas de apontar possibilidades de recusarmos o que nos tornamos, traando uma
histria crtica da subjetividade ou dos processos de subjetivao na qual o sujeito
pensado como fabricao dos jogos de verdade, tanto daqueles que tem a forma de uma
cincia ou que se referem a um modelo cientfico, quanto daqueles que se pode
encontrar nas instituies ou prticas de controle (FOUCAULT, 2005, p. 275).
Essa arquegenealogia crtica possibilita, em minhas pesquisas, a problematizao
do funcionamento do dispositivo miditico digital na produo das subjetividades
contemporneas. Penso que produtivo investigar as relaes entre discurso, imagem e
mdia digital com Michel Foucault por algumas razes tericas e metodolgicas, dentre
as quais destaco duas: a) a natureza semiolgica do conceito foucaultiano de enunciado
incorporado ao dispositivo terico da Anlise de Discurso permite explicar as formas
hbridas das discursividades contemporneas, que envolvem mltiplas materialidades; b)
a anlise das relaes entre dispositivos de saber e poder e as formas de produo e
circulao de discursos na atualidade, permite pensar as transformaes nas formas de
dizer e nas visibilidades derminada pelas tecnologias digitais.
Para exemplificar como pode ser feita a anlise de discursos pela lente
foucaultiana, tomarei textos da mdia digital a fim de pensar as articulaes entre regimes
discursivos e a produo de verdades e de subjetividades na sociedade contempornea.
Com essa exemplificao, pretendo mostrar que esses dispositivos miditicos produzem
subjetividades que formatam representaes sobre as verdades e os sujeitos na atualidade.

2. A WEB como heterotopia por excelncia da atualidade


No interior do campo da Anlise de Discurso brasileira, a mdia tem sido um
objeto privilegiado de investigao. A articulao entre os estudos das mdias e os de
anlise dos discursos pode enriquecer dois campos que so absolutamente

GREGOLIN, M.R. Discursos e imagens do corpo: heterotopias da (in)visibilidade na WEB. In:


FLORES, G.G.; NECKEL, N.R.F.; GALLO, S.M.L. (org). Anlise de discurso em rede: cultura e mdia.
Campinas: Pontes, 2015, p. 191-213.

complementares pois ambos tm como objeto as produes sociais de sentidos


(GREGOLIN, 2007). Na medida em que a Anlise de Discurso prope entender a
produo de efeitos de sentido, realizada por sujeitos sociais, que usam a materialidade
da linguagem e esto inseridos na Histria, ela nos oferece dispositivos tericos e
analticos para compreendermos o papel dos discursos da mdia na produo das
subjetividades.
consensual entre os estudiosos a ideia de que o desenvolvimento dos meios de
comunicao (do oral ao escrito; do manuscrito ao impresso; o audiovisual; o digital)
determinou transformaes profundas em nossa sociedade. Entretanto, a maneira de
encarar essas mudanas bem distinta entre os pesquisadores: de um lado, h aqueles que
expressam profundo pessimismo, numa espcie de tecnofobia, como, por exemplo,
Jean Baudrillard (1981; 1996) e Paul Virillo (2000; 2005). De outro lado, h aqueles que
veem as tecnologias de comunicao contemporneas com entusiasmo, enfatizando seus
aspectos positivos, como o caso de Gianni Vattimo (1990) e Pierre Lvy (1993; 1996;
1999; 2007). Seja pensando como o paraso, seja como o inferno, todos so unnimes em
admitirem as dimenses das transformaes sociais provocadas pelas mdias digitais,
como, por exemplo, nesta afirmao de Pierre Lvy (1993, p. 7):
Novas maneiras de pensar e de conviver esto sendo elaboradas nos mundos
das telecomunicaes e da informtica. As relaes entre os homens, o
trabalho, a prpria inteligncia dependem, na verdade, da metamorfose
incessante de dispositivos informacionais de todos os tipos. [...]. No se pode
mais conceber a pesquisa cientfica sem uma aparelhagem complexa que
redistribui as antigas divises entre experincia e teoria. Emerge, neste final
do sculo XX, um conhecimento por simulao que os epistemologistas ainda
no inventariaram.

As mudanas sociais provocadas pelos desenvolvimentos maqunicos tema da


reflexo de Deleuze (1992, p. 221) ao propor a ideia de que a contemporaneidade
marcada por uma forma de sociabilidade que ele denomina como sendo de controle:
fcil fazer corresponder a cada sociedade certos tipos de mquina, no
porque as mquinas sejam determinantes, mas porque elas exprimem as formas
sociais capazes de lhes darem nascimento e utiliz-las. As antigas sociedades
de soberania manejavam mquinas simples, alavancas, roldanas, relgios; mas
as sociedades disciplinares recentes tinham por equipamento mquinas
energticas, com o perigo passivo da entropia e o perigo ativo da sabotagem;
as sociedades de controle operam por mquinas de uma terceira espcie,
mquinas de informtica e computadores, cujo perigo passivo a interferncia,
e o ativo a pirataria e a introduo de vrus. No uma evoluo tecnolgica
sem ser, mais profundamente, uma mutao do capitalismo.

Assim, para esses autores, a sociedade contempornea, baseada no digital,


ecltica, plural, seu cotidiano invadido pela tecnologia eletrnica de massa, visando
saturao da informao, diverses e servios. Na era da informtica vive-se mais com
signos do que com coisas, desterritorializando a cultura pois a territorialidade j no se
encontra associada materialidade do entorno fsico. Da a noo de ciberespao como
um espao no fsico ou territorial e que constitui a cibercultura, definida como um
conjunto de tcnicas, prticas, atitudes, modos de pensamento e valores que se
desenvolvem juntamente com o crescimento da Internet como um meio de comunicao,
que surge com a interconexo mundial de computadores (LVY, 1999). Assim, a

GREGOLIN, M.R. Discursos e imagens do corpo: heterotopias da (in)visibilidade na WEB. In:


FLORES, G.G.; NECKEL, N.R.F.; GALLO, S.M.L. (org). Anlise de discurso em rede: cultura e mdia.
Campinas: Pontes, 2015, p. 191-213.

comunicao virtual um elemento de um processo que abrange toda a vida social e


constitui o principal canal de comunicao e suporte de memria da humanidade. Tratase de um novo espao de comunicao, de sociabilidade, de organizao, acesso e
transporte de informao e conhecimento:
Um movimento geral de virtualizao afeta hoje no apenas a informao e a
comunicao mas tambm os corpos, o funcionamento econmico , os quadros
coletivos da sensibilidade ou o exerccio da inteligncia. A virtualizao atinge
mesmo as modalidades do estar junto, a constituio do ns: comunidades
virtuais, empresas virtuais, democracia virtual... Embora a digitalizao das
mensagens e a extenso do ciberespao desempenhem um papel capital na
mutao em curso, trata-se de uma onda de fundo que ultrapassa amplamente
a informatizao. (LVY, 1996, p.11)

As mdias digitais transformaram as sociabilidades e instauraram relaes sociais


planetarizadas, isto , de um mundo real e imaginrio que se estende de forma
diferenciada por todo o planeta (ORTIZ, 2002, p. 273). Essa planetarizao leva autores
contemporneos a nomearem o funcionamento social atual como "a era da convergncia"
e "a era da conexo" (JENKINS, 2009; JENKINS; GREEN; FORD, 2014) caracterizando
uma sociedade em que "as velhas e novas mdias colidem, a mdia corporativa e a mdia
alternativa se cruzam, o poder do produtor de mdia e o poder do consumidor interagem
de maneiras imprevisveis (JENKINS, 2009, p. 29).
Por meio do conceito de convergncia, Jenkins chama a ateno para trs
propriedades da cultura comunicacional contempornea: a multiplicidade, a inteligncia
coletiva e a sociedade participativa. O que Jenkins denomina como convergncia no
apenas um processo tecnolgico que une mltiplas funes dentro dos mesmos aparelhos,
mas tambm um processo de transformao cultural no qual possvel identificar novos
nveis de participao dos usurios, novos laos com os contedos, novas orientaes
para o marketing contemporneo, novas leis de direitos autorais, novos meios de aferir
audincia. Ou seja, dada a multiplicidade de plataformas, os consumidores so
estimulados a procurar informaes, a fazer conexes em meio a contedos de mdia
dispersos. Alm disso, h na convergncia um acirramento do conceito de inteligncia
coletiva: trata-se, agora, de uma experincia muito mais radical daquilo que Pierre Lvy
(2007) outrora descreveu como um processo coletivo de construo de conhecimentos,
pois as mdias digitais permitem o engajamento de um nmero ilimitado de coparticipantes. E finalmente, na cultura participativa, o fluxo crescente de informaes
exige que os consumidores, cada vez mais, problematizem as mdias que consomem. O
consumo se tornou um processo coletivo, uma vez que a convergncia das mdias permite
modos de audincia comunitrios, em vez de individualistas. Por isso, assim se expressa
Jenkins ao afirmar a convergncia como caracterstica fundante da sociedade
contempornea:
Convergncia uma palavra que consegue definir transformaes
tecnolgicas, mercadolgicas, culturais e sociais, dependendo de quem est
falando e do que esto falando. [...] A convergncia no ocorre somente por
meio de aparelhos, mas principalmente dentro do crebro de consumidores
individuais e em suas interaes sociais com outros. (JENKINS, 2009, p. 2930).

A despeito desse poder de mobilizao planetria e de insurgncia poltica,


preciso considerar que as mdias digitais produzem um paradoxo fundamental pois, ao
mesmo tempo, "h uma presso para uma sociedade mais aberta e interconectada, com

GREGOLIN, M.R. Discursos e imagens do corpo: heterotopias da (in)visibilidade na WEB. In:


FLORES, G.G.; NECKEL, N.R.F.; GALLO, S.M.L. (org). Anlise de discurso em rede: cultura e mdia.
Campinas: Pontes, 2015, p. 191-213.

fluxos de informao mais geis, mas que ameaa as identidades locais e nacionais em
nome da globalizao, as subjetividades em nome da padronizao coletiva"
(BARBERO, 2004, p.283).
Essas profundas transformaes nas produes identitrias evidenciam que a
investigao das articulaes entre a mdia digital e a constituio de subjetividades um
campo bastante frtil para experimentaes e investigaes que busquem compreender
questes como o complexo relacionamento entre culturas locais e culturas transnacionais;
as novas e infinitas possibilidades criativas que se constituem atravs da velocidade do
deslocamento da informao; as dificuldades enfrentadas em relao tradutibilidade
cultural e as novas formas que podem assumir as sociabilidades no mundo globalizado.
A cultura da era digital propicia circulao mais fluida de gneros de discurso (como as
redes sociais e os blogues) que tem como propriedades essenciais a imerso (as novas
mdias nos envolvem em mltiplas linguagens), a interatividade (possibilidade de novas
relaes entre produtores e pblico) e novas narratividades (novas formas de constituir
as arquiteturas narrativas).
A consequncia mais visvel dessa maneira de (re)produzir identidades, tpica dos
meios digitais, o surgimento de um hedonismo socializado pela mdia que configura a
ampliao mxima potncia daquilo que nos anos 1960 Guy Debord denominou como
a sociedade do espetculo (DEBORD, 1997). A visibilidade atinge seu mais alto grau,
buscando minimizar a dimenso da subjetividade e da privacidade: a espetacularizao
do atentado s Torres Gmeas, a busca da fama e da exposio nos reality shows, tudo
exposto excessivamente no Facebook, no Twitter e nos blogues; tudo transborda nesses
gneros digitais... Ningum pode ser invisvel. Todos precisam ser promovidos
visibilidade incessante pois, segundo Lipovetsky (1993, p. 15), a era digital decretou o
fim do segredo ou o fim da intimidade e criou uma nova cartografia no espao do
visvel. Trata-se de um espao no localizado, no qual as formas simblicas mediadas
podem ser produzidas e recebidas por milhes de sujeitos num processo contnuo de
territorializao e de desterritorializao. Essa nova cartografia pode ser mobilizada para
entendermos as formas de produo e circulao de sentidos na WEB e pensarmos sobre
a natureza heterotpica da mdia digital, interrogando os procedimentos discursivos que
produzem subjetividades nessa heterotopia.
O conceito de heterotopia aparece na obra de Michel Foucault em textos dos anos
1960, em duas conferncias radiofnicas O corpo utpico e Heterotopias (FOUCAULT,
2013), no prefcio de As palavras e as coisas (FOUCAULT, 1992) e, em sua forma mais
acabada, na conferncia ministrada na Tunsia e publicada como Outros espaos (2001a).
O seu desenvolvimento se deve a uma questo central do pensamento foucaultiano: a
modernidade pensa o espao como mais importante do que o tempo; por isso, para
esquadrinhar a produo das subjetividades preciso construir ontologias do saber, do
poder e da tica a partir das relaes que os corpos estabelecem com os espaos. Espao
e sentido se encontram nos discursos e produzem efeitos:
[...] ns no vivemos num espao e num tempo neutros e brancos. No
vivemos, no morremos, no amamos no retngulo de uma folha de papel.
Vivemos, morremos, amamos num espao esquadrinhado, recortado,
desenhado, com zonas claras e escuras, com diferenas de nveis, com escadas,
portas, penetrveis e impenetrveis.(FOUCAULT, 2001a, p. 414)

GREGOLIN, M.R. Discursos e imagens do corpo: heterotopias da (in)visibilidade na WEB. In:


FLORES, G.G.; NECKEL, N.R.F.; GALLO, S.M.L. (org). Anlise de discurso em rede: cultura e mdia.
Campinas: Pontes, 2015, p. 191-213.

O espao no qual vivemos nos sulca e nos corri porque


fundamentalmente heterogneo. Ele se desdobra, pelo menos, em trs tipos de lugares
que experienciamos no cotidiano: as topias, as utopias e as heterotopias. As utopias so
espaos sem lugar real, que mantm com o espao real da sociedade (as topias) uma
relao geral de analogia direta ou oposta; so espaos fundamental e essencialmente
irreais.
Oscilando entre as topias e as utopias, as heterotopias so o espao do diferente,
do outro, so "contestaes mticas e reais do espao em que vivemos". So lugares reais
mas que esto fora de todos os lugares reais, conforme se expressa Foucault:
[...] provavelmente existe em todas as culturas, em todas as civilizaes,
lugares reais, lugares efetivos, lugares que esto inscritos exatamente na
instituio da sociedade, e que so um tipo de contra-espaos, um tipo de
utopias efetivamente realizadas nos quais os espaos reais, todos os outros
espaos reais que podemos encontrar no seio da cultura, so ao mesmo tempo
representados, contestados e invertidos, tipos de lugares que esto fora de todos
os lugares, ainda que sejam lugares efetivamente localizveis. Esses lugares,
porque so absolutamente diversos de todos os espaos que refletem e sobre
os quais falam, eu os chamarei, por oposio s utopias, de heterotopias.
(FOUCAULT, 2001a, p. 415)

Alguns princpios, segundo Foucault regem o funcionamento das heterotopias: a)


todas as sociedades possuem heterotopias; b) as heterotopias justapem num mesmo
espao espaos incompatveis; c) as heterotopias so ligadas frequentemente a
decupagens singulares do tempo, so parentes das heterocronias; d) h heterotopias
ligadas passagem, transformao (heterotopias de crise) e outras que so de desvio,
nas quais habitam os que vivem margem; e) as heterotopias tm, em relao com o
espao restante, uma funo poltica e estratgica.
Bordis e colnias, afirma Foucault no final de seu texto Outros espaos, so dois
exemplos extremos de heterotopias. Mas a heterotopia por excelncia das sociedades
ocidentais, do sculo XVI ao sculo XX, o navio, "um pedao de espao flutuante, um
lugar sem lugar, que vive por si mesmo, que fechado em si e ao mesmo tempo lanado
ao infinito do mar" (FOUCAULT, 2001a, p. 422). Ele , segundo Foucault, essa
heterotopia por excelncia porque permitiu que a sociedade se movimentasse, chegasse a
lugares impensados e foi, assim, o maior instrumento de desenvolvimento econmico e a
maior reserva de imaginao.
Se o navio tem esse papel de metfora primordial at o sculo XX, proponho
pensar a WEB como a heterotopia por excelncia do sculo XXI. Nesse espao virtual
cruzam-se todo tipo de outros espaos, consensuais e conflitantes; acolhem-se todo tipo
de enunciados e de formas de visibilidade numa cartografia em que se misturam
permissividade e controle de forma ambgua; o seu funcionamento tem em sua base o
contnuo movimento do dito e do no dito. Navegamos por esse labirinto e a velha
metfora da navegao convive com outras formas de experimentar lugares nunca dantes
navegados.
3. O corpo na WEB: heterotopias da (in)visibilidade

GREGOLIN, M.R. Discursos e imagens do corpo: heterotopias da (in)visibilidade na WEB. In:


FLORES, G.G.; NECKEL, N.R.F.; GALLO, S.M.L. (org). Anlise de discurso em rede: cultura e mdia.
Campinas: Pontes, 2015, p. 191-213.

Na introduo ao terceiro volume da Histria do corpo, Courtine (2008, p. 7-12)


afirma que o corpo uma inveno terica do sculo XX, que emergiu a partir do
momento em que as pesquisas de Freud revelaram a sua ligao com o inconsciente; na
mesma poca, outros dois estudiosos deram-lhe vida e materialidade: Husserl mostrou
como se constituem as relaes entre corpo e esprito e, finalmente, Mauss articulou corpo
e sociedade. Entretanto, para que o corpo se estabelecesse como objeto de
estudos das Cincias Humanas foi preciso esperar os anos 1960, quando ele se politizou,
transformou-se em objeto polmico de novos movimentos sociais como o feminismo e
foi inserido na longa durao histrica. Nesse momento fundamental o trabalho de
Michel Foucault, na medida em que ele acentuou a historicidade, articulou corpo e
discurso e, por meio de sua arquegenealogia, colocou o corpo no centro das relaes
entre saber, poder e processos de subjetivao. Por isso, pensar discurso, imagem e corpo
com Michel Foucault nos leva a discutir o estatuto do corpo na contemporaneidade, como
forma simblica de produo de subjetividades e discursividades. O corpo materialidade
significante produzida historicamente.
Corpo, espao e subjetividade so trs componentes essenciais e inseparveis, nos
estudos foucaultianos sobre o corpo. A essa articulao, poder-se-ia fazer corresponder,
em suas anlises, uma trplice maneira de observar os corpos nos espaos e os efeitos de
sentido que se criam a partir dessa relao: corpos dceis instalados em lugares reais
(topias), como estudado em Vigiar e Punir (FOUCALT, 1991); corpos utpicos como,
por exemplo, no prazer do olhar sobre pinturas fotognicas (FOUCAULT, 2001b) e
corpos heterotpicos exilados nos hospcios e hospitais (FOUCAULT, 1972; 1978).
Foucault arrisca-se a definir dois tipos de heterotopias, sem entretanto separ-las
definitivamente, j que podem se justapor uma outra. Primeiramente, h aquelas que
constituem-se como lugares de crise pois esto reservadas a sujeitos que se encontram,
em relao sociedade, em um lugar fora dos lugares mas que delimitado no tempo,
como "os adolescentes, as mulheres na poca da menstruao, as mulheres de resguardo,
os velhos etc.(FOUCAULT, 2001a, p. 416). O segundo tipo de heterotopia, que Foucault
denomina "de desvio" abrange lugares que acolhem sujeitos cujo comportamento se
desvia em relao norma, como hospcios, prostbulos e prises.
essa segunda forma de heterotopia que me interessa, neste momento, para pensar
no funcionamento da mdia digital, na medida em que ela possibilita que corpos que so
invisveis no espao pblico - porque confinados em heterotopias de desvio - possam
emergir da invisibilidade e ocupar um lugar sem lugar na WEB, isto , construir o corpo
em uma outra heterotopia. Para colocar prova essas afirmaes tericas tomarei imagens
postadas em blogues e redes sociais que se constituem nessas heterotopias: so corpos
impossveis fixados em selfies; so corpos que escapam invisibilidade de prostbulos e
presdios e so exibidos no panptico da WEB como utopias consentidas.
Tomo, em primeiro lugar, na Figura 1 a seguir, a imagem de um cartaz produzido
pelo Ministrio da Sade brasileiro para uma campanha de preveno de doenas
sexualmente transmissveis:

GREGOLIN, M.R. Discursos e imagens do corpo: heterotopias da (in)visibilidade na WEB. In:


FLORES, G.G.; NECKEL, N.R.F.; GALLO, S.M.L. (org). Anlise de discurso em rede: cultura e mdia.
Campinas: Pontes, 2015, p. 191-213.

Figura 1: Cartaz de campanha do Ministrio da Sade, vetado


em junho de 2013. Foto: Reproduo2.

Essa campanha provocou muita polmica e depois de muito criticada por setores
conservadores, principalmente nas redes sociais, foi interditada e retirada do espao de
propaganda pblica. O que incomoda nesse dizer e nesse mostrar? Primeiramente, no
enunciado verbal, incomodam a ideia de felicidade ligada prostituio, a construo de
uma profissionalidade para a prostituta e o nome prprio da ONG - "sem vergonha,
garota" - que inverte a expresso com que tradicionalmente se refere prostituta ("garota
sem vergonha"). Mas h algo mais insuportvel nessa propaganda: o corpo da prostituta,
madura, real, uma espcie, como diria Foucault, de "topia desapiedada". A esse corpo
est interditado o olhar pblico, ele deve ser invisvel e habitar os prostbulos, isto , um
lugar afastado dos olhares da sociedade. A campanha foi censurada, a imagem tornada
invisvel para o pblico; entretanto, basta digitarmos o slogan "sou feliz sendo prostituta"
em qualquer aplicativo de busca na WEB e esse corpo aparece em sua materialidade:
banido do espao pblico "real", ocupa hoje a heterotopia da WEB e pode tornar-se
visvel a qualquer momento.
Um segundo exemplo da WEB como heterotopia por excelncia do mundo
contemporneo proponho enxergar na imagem da Figura 2. Trata-se de uma fotografia,
dentre uma srie de outras, feita no interior de presdio brasileiro e postada no Facebook
em agosto de 2014:

Disponvel em: http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/campanha-federal-diz-sou-feliz-sendo-prostituta/.


Acesso em 15 de junho de 2013.

GREGOLIN, M.R. Discursos e imagens do corpo: heterotopias da (in)visibilidade na WEB. In:


FLORES, G.G.; NECKEL, N.R.F.; GALLO, S.M.L. (org). Anlise de discurso em rede: cultura e mdia.
Campinas: Pontes, 2015, p. 191-213.

Figura 2: Fotografia de prisioneira no interior de sua cela, postada na rede social Facebook em
agosto de 2014. Foto: Reproduo do Facebook3.

Toda imagem sempre plurvoca, ubvoca: onde parece ser sua realidade, o
sentido lhe escapa. Nessa fotografia da Figura 2 o corpo repete uma gestualidade
padronizada de imagens sensuais, na composio de algo que lhe parece esteticamente
belo. Entretanto, instala-se uma contraposio entre o corpo que repete a pose diante da
cmera e o espao degradado da cela da priso. Assim, a tentativa de arrancar esse corpo
da topia, da invisibilidade da priso, esbarra nesse espao to real que ainda habita, apesar
de ir para outro lugar, no espao heterotpico da WEB. Do mesmo modo, se a postagem
no espao digital permite escapar da invisibilidade e das margens, joga a imagem desse
corpo na hipervisibilidade da WEB. O corpo torna-se prisioneiro do panptico digital,
pode ser olhado, mostrado, esquadrinhado, compartilhado exausto.
Um terceiro exemplo da forma de funcionamento da imagem do corpo na WEB
a produo de selfies. Entendo que no gesto de produzir uma imagem de si, pelo selfie,
cria-se um corpo utpico, impossvel, que almeja a hipervisibilidade. Nesse sentido,
exemplar a imagem da Figura 3, na qual o fotgrafo do Jornal O Globo flagra uma mulher
que faz selfie durante o velrio de Eduardo Campos, em agosto de 2014:

Disponvel em: http://g1.globo.com/pr/campos-gerais-sul/noticia/2014/08/presas-fazem-fotos-sensuaisdentro-da-cadeia-e-postam-na-internet.html. Acesso em 29 de agosto de 2014.

GREGOLIN, M.R. Discursos e imagens do corpo: heterotopias da (in)visibilidade na WEB. In:


FLORES, G.G.; NECKEL, N.R.F.; GALLO, S.M.L. (org). Anlise de discurso em rede: cultura e mdia.
Campinas: Pontes, 2015, p. 191-213.

Figura 3: Mulher faz selfie em velrio de Eduardo Campos. Foto: Jornal O Globo, 19/08/2014.

A morte trgica de Eduardo Campos, candidato presidncia da Repblica no


pleito de 2014, como era de se esperar dado o funcionamento das mdias atuais, foi
transformada em espetculo. Na ampla cobertura miditica do funeral, chamou a ateno
o grande nmero de pessoas que aproveitavam a ocasio para serem fotografadas junto a
personalidades polticas e para fazerem selfies diante do caixo. Esse gesto foi objeto de
discusses e crticas nas redes sociais e blogues na WEB. O fotgrafo do jornal O Globo,
por meio da imagem mostrada na Figura 3, se insere nessa crtica coletiva ao desrespeito
do selfie feito em uma situao de grande comoo nacional.
Jenkins (2009, p. 28), em seu estudo sobre a cultura da convergncia, afirma que
a inteligncia coletiva pode ser vista como uma fonte alternativa de poder miditico, com
grande potencial para a mobilizao social. A mdia digital potencializa essa possibilidade
de agenciamento poltico e de crtica pois permite que um texto ou imagem seja
compartilhado entre milhes de pessoas. Isso aconteceu com a fotografia mostrada na
Figura 3. O gesto do selfie, exibido nas pginas de um jornal tradicional como forma de
crtica pela sua inadequao, adquiriu dimenses planetrias a partir do momento em que
usurios de redes sociais e blogues parodiaram a imagem, conforme se pode observar nas
Figuras 4 e 5:

Figuras 4 e 5: Pardias da fotografia da mulher fazendo selfie, publicadas em redes sociais e


blogues, tornaram-se memes4.

A edio digital de imagens permite que usurios, mesmo amadores na arte


fotogrfica, possam se apropriar de uma imagem, transform-la e disponibiliz-la na
WEB. Esse processo de apropriao, transformao e redistribuio, permitida pelo
compartilhamento na WEB, tem sido denominado de "meme".
Derivando da palavra grega mimeme, que significa "aquilo que pode ser imitado",
Richard Dawkins (2007) criou o conceito de "meme" para buscar proximidade fontica
com a ideia de "gene" e construir a metfora de que a repetio faz parte do DNA da
4

Disponvel em: http://exame.abril.com.br/brasil/album-de-fotos/mulher-que-fez-selfie-em-velorio-deeduardo-campos-vira-meme. Acesso em dezembro de 2014.

GREGOLIN, M.R. Discursos e imagens do corpo: heterotopias da (in)visibilidade na WEB. In:


FLORES, G.G.; NECKEL, N.R.F.; GALLO, S.M.L. (org). Anlise de discurso em rede: cultura e mdia.
Campinas: Pontes, 2015, p. 191-213.

cibercultura,. A possibilidade de manipulao e divulgao digital da imagem faz com


que ela possa ser indefinidamente retomada e ressignificada, criando os memes. Eles se
caracterizam, portanto, pela capacidade de se replicar e de se transformar. Assim, ao se
espalharem, mesmo que se tornem diferentes podem ser reconhecidos.
No caso das Figuras 4 e 5, a fotografia da mulher fazendo selfie foi inserida em
fotografias icnicas: a imagem do atentado s Torres Gmeas em Nova York
(11/09/2001) e a mais famosa foto da guerra do Vietnam, feita por Nick Ut (08/06/1972),
divulgada pela Associated Press para jornais e revistas do mundo todo. De alguma
maneira, essas imagens icnicas so "memes" que vem se repetindo por todos os meios
de divulgao desde o momento em que foram feitas e publicadas pela primeira vez. A
retomada delas como cena fundadora nas Figuras 4 e 5 constri uma crtica ao gesto dessa
mulher que produziu selfie em um funeral. Ao inserir o gesto do selfie nessas imagens
icnicas, gravadas fortemente na memria coletiva como momentos de grande tragdia,
as pardias denunciam a absurda separao entre o gesto no primeiro plano e o seu plano
de fundo. Alm dessas imagens parodsticas , essa mulher e seu selfie foram instalados
em outras cenas fundadoras de nossa memria social: no naufrgio do Titanic, no
assassinato de John Kennedy e at na crucificao de Cristo. Esse meme seria cmico, se
no fosse trgico. Ele evidencia um paradoxo essencial da produo e circulao de textos
e imagens na WEB: a tenso entre o compartilhamento individual e o alcance social. Essa
potencialidade para que imagens e palavras sejam reproduzidas milhes de vezes e se
espalhem para contextos muito distantes do original uma especificidade da cultura da
convergncia e da conexo contnuas.
Essa natureza replicante dos textos na WEB e seu potencial aparecimento em
lugares inusitados levou Jenkins (2009) a relatar o caso de um estudante secundarista que
criou um blogue no qual postava imagens do personagem Beto, do programa infantil Vila
Ssamo, ao lado de personalidades polticas. Uma dessas imagens postadas no blogue, na
qual Beto aparecia ao lado de Bin Laden, acabou surgindo, posteriormente, em um cartaz
no Afeganisto, durante manifestao anti-americana, de apoio ao Isl. Esse fato gerou
polmicas e constrangimentos e, principalmente, evidenciou o perigo desse
funcionamento das formas contemporneas de circulao de sentidos, determinadas pela
mdia digital.
4. Outras cartografias do corpo
Ao estudar as mutaes do olhar sobre o corpo no sculo XX, Courtine (2008, p.
10-11) afirma que o desenvolvimento das tecnologias de captao e reproduo de
imagens transformou profundamente as maneiras como ele passou a ser materializado
pois "jamais os espetculos de que foi objeto se aproximaram das reviravoltas que a
pintura, a fotografia, o cinema contemporneos vo trazer sua imagem" e, por isso, "o
sculo XX restaurou e aprofundou a questo da carne, isto , do corpo animado."
Se a reprodutibilidade tcnica, derivada dos meios eltricos, fez com que o corpo
se tornasse cada vez mais visvel e que sua histria fosse revolucionada durante o sculo
XX, algo ainda mais radical ocorre no sculo XXI. Por isso, uma histria do corpo no
sculo atual certamente ter de levar em conta a sua imerso nas tecnologias do virtual, a
sua materializao nas heterotopias da WEB que lhe conferem outros estatutos, diferentes
daqueles prprios ao sculo XX. Ser necessrio, se nos propusermos a narrar a histria

GREGOLIN, M.R. Discursos e imagens do corpo: heterotopias da (in)visibilidade na WEB. In:


FLORES, G.G.; NECKEL, N.R.F.; GALLO, S.M.L. (org). Anlise de discurso em rede: cultura e mdia.
Campinas: Pontes, 2015, p. 191-213.

do corpo no sculo XXI, cartografar esses espaos outros, heterotpicos, com seus jogos
de luz e sombras. Particularmente, como pretendemos ter exemplificado, ser preciso
observar que h uma contradio entre a hipervisibilidade e a invisibilidade. Assim, ao
pensarmos a WEB como hiper-heterotopia da sociedade atual, nos damos conta, com
Foucault, que o corpo experimenta, hoje, lugares que so completamente abertos ao
mundo exterior, ao qual a maioria de ns tem acesso. Entretanto, uma vez que l estamos
temos a impresso de ter entrado em lugar nenhum, como num quarto de hotel
destinado ao viajante de passagem.
REFERNCIAS
BARBERO, J. M. Ofcio de Cartgrafo: Travessias latinoamericanas da comunicao na
cultura. So Paulo: Edies Loyola, 2004.
BAUDRILLARD, J. Simulacros e Simulao. Lisboa: Relgio D'gua, 1981.
______. A transparncia do mal. Ensaio sobre os fenmenos extremos. Campinas:
Papirus, 1996.
COURTINE, Jean-Jacques. Introduo. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques;
VIGARELLO, Georges (Org). Histria do corpo. As mutaes do olhar: o sculo XX.
vol. 3. Petropolis, RJ: Vozes, 2008.
DAWKINS, Richard. O gene egosta. So Paulo: Companhia das Letras, 2007.
DEBORD, G. A sociedade do espetculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades do controle. In: Conversaes
1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 219-226.
DROIT, Roger-Pol. Michel Foucault. Entrevistas. Rio de Janeiro: Graal, 2006, p. 69-70.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Aula Inaugural no Collge de France,
Pronunciada em 2 de Dezembro de 1970. So Paulo: Loyola, 1971.
_______. Histria da loucura na idade clssica. So Paulo: Perspectiva, 1972.
_______. O nascimento da clnica. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1978.
_______. Vigiar e punir. Nascimento da Priso. Rio de Janeiro: Vozes, 1991.
_______. As palavras e as coisas. So Paulo: Martins Fontes, 1992.
_______. Outros Espaos. In: MOTTA, Manoel Barros da. Foucault. Esttica: Literatura
e Pintura, Msica e Cinema. Coleo Ditos & Escritos III. Rio de Janeiro: Forense
Universitria, 2001a, p. 411-42.
_______. A pintura fotognica. In: MOTTA, Manoel Barros da. Foucault. Esttica:
Literatura e Pintura, Msica e Cinema. Coleo Ditos & Escritos III. Rio de Janeiro:
Forense Universitria, 2001b, p. 346-355.
________. Dilogo sobre o poder. In: MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Estratgias,
Poder-Saber. Coleo Ditos & Escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2003.
________. A tica do cuidado de si como prtica de liberdade. In: MOTTA, Manoel
Barros da (Org.). tica, Sexualidade, Poltica. Coleo Ditos & Escritos V. Rio de
Janeiro: Forense Universitria, 2005, p. 264-287.
________. O corpo utpico. As heterotopias. So Paulo: Edies N-1, 2013.
GREGOLIN, M.R. Foucault e Pcheux na anlise do discurso. Dilogos e Duelos. So
Carlos: Claraluz, 2004.
______. Anlise do Discurso e mdia: a (re)produo das identidades. Revista
Comunicao, Mdia e Consumo. So Paulo: ESPM, Vol. 4, n11, 2007.
JENKINS, Henry. Cultura da convergncia. So Paulo: Aleph, 2009.

GREGOLIN, M.R. Discursos e imagens do corpo: heterotopias da (in)visibilidade na WEB. In:


FLORES, G.G.; NECKEL, N.R.F.; GALLO, S.M.L. (org). Anlise de discurso em rede: cultura e mdia.
Campinas: Pontes, 2015, p. 191-213.

JENKINS, Henry.; GREEN, Joshua.; FORD, Sam. Cultura da Conexo. Criando valor e
significado pela mdia propagvel. So Paulo: Aleph, 2014.
LVY, P. As Tecnologias da Inteligncia. O Futuro do pensamento na Era da
Informtica. So Paulo: Editora 34, 1993.
______. O Que O Virtual?. So Paulo: Editora 34, 1996.
______. Cibercultura. So Paulo: Ed. 34, 1999.
______. A inteligncia coletiva. Rio de Janeiro: Loyola, 2007.
ORTIZ, R. Mundializao e cultura. So Paulo: Brasiliense, 1994.
TURKLE, Sherry. Alone Together. New York: Basic Books, 2012.
VATTIMO, G. A sociedade transparente. Lisboa: Edies 70, 1990.
VIRILIO, P. Cibermundo: a poltica do pior. Lisboa: Teorema, 2000.
______. O espao crtico e as perspectivas do tempo real. So Paulo: Editora 34, 2005.

Você também pode gostar