Jean-Luc Nancy Demanda PDF
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JEAN-LUC NANCY
DEMANDA
LITERATURA E FILOSOFIA
EDITORA DA UFSC
DEMANDA
LITERATURA E FILOSOFIA
SUMRIO
Apresentao
Jean-Luc Nancy, A orla do sentido
de Ginette Michaud
I. Literatura
1. Um dia, os deuses se retiram
(Literatura/filosofia: entre-dois)
Apresentao
Jean-Luc Nancy, na orla do sentido
E no entanto, um novo inominado avana, ou ento
avanamos em direo a ele. No entanto, no mesmo
instante posso abrir um volume de pginas virgens
e traar a primeira palavra de uma lngua por
inventar. Uma outra queimadura pode comear sem
que saibamos, pois sem que saibamos o saber
exato do inominado.
- Jean-Luc Nancy, No meu peito, ai, duas almas.
vozes e do retorno da biblioteca (motivo que reecontraremos bem mais tarde em Sur le
commerce des penses [Sobre o comrcio dos pensamentos].3) Por outro lado, Nancy
consagrar no somente vrios textos tericos importantes literatura notadamente
potica de Hlderlin (Clculo do poeta), questo do corte e do vercejamento do
verso, ao de cor da recitao, ao carter imemorial do relato e da voz do aedo4 - , ele
escrever igualmente numerosos ensaios crticos consagrados a Maurice Blanchot,
Pascal Quignard, Michel Butor, Roger Laporte, Michel Leiris e Jean-Christophe Bailly,
para nomear apenas esses. Isso no d, no entanto, ainda, toda a medida de sua escrita,
que explora toda sorte de vias e toca em vrios registros: recitativos para peras (No
meu peito, infelizmente, duas almas..., Stabat Mater), prosas e ensaios inspirados
(Corpus, La Ville au loin [A cidade ao longe], Tombe de sommeil [Tmulo de sono]),
poemas (Les traces anmones [Os Rastros anmonas]), relatos, leituras e
acompanhamentos (Fortino Smano. Les dbordements du pome [Fortino Smano.
Os transbordamentos do poema]) sem falar de O intruso5, relato dilacerante que tem
um status parte nesse vasto corpus, Nancy abordando nele a experincia do seu
transplante, do corao extrudado, que sofreu em 1990, impulsionando uma
inesquecvel ressonncia com uma questo, que, entre todas, foi-lhe estreitamenre
associada desde o comeo de seu trabalho filosfico: a interrupo, o suspense, a
sncopa (este era o ttulo de seu primeiro opus de 1976, Le Discours de la syncope [O
Discurso da sncope]). O syn grego tambm o cum latino, ou o com, a separao
e a conjuno, a conjuno disjuntiva que no cessa de abrir-se e de se afastar em toda
essa obra de pensamento. Sncope: o que abre toda a sntese no seu prprio corao,
como ele dir na entrevista A razo demanda a poesia(p. XX) ou ainda, como ele a
definiu tambm um dia: o que mantm reunido o separado e pe o distinto de acordo,
also sprach ich zu Dir.
Desde a sua publicao, em 1978, LAbsolu littraire [O Absoluto literrio],
importante obra que fez data no campo da teoria literria e na qual Philippe LacoueLabarthe e Jean-Luc Nancy apresentavam uma primeira traduo dos escritos dos
Romnticos alemes, a questo das relaes entre literatura e poesia a filoliteratura6:
relao de uma partilha extremamente complexa e ela prpria sempre em
transformao7, como ele o sublinha ainda em LAdoration esteve sempre no cerne
dos trabalhos perseguidos em comum pelos dois amigos filsofos. Contudo, um e outro
tomaro, depois de LAbsolu littraire, vias bastante diferentes, Lacoue-Labarthe
engajando-se na grande questo da mmesis e de sua ontotipologia, localizada por ele
na metafsica e particularmente em especial no nacional-esteticismo de Heidegger,
enquanto Nancy se vira, antes, na esteira de Bataille (La Pense drobe [O Pensamento
esquivado]) e de Blanchot (La communaut dsoeuvre [A comunidade desobrada], La
Comparution [A coapario]), para motivos que ele prprio descreve como ontolgicos
e comunitrios (ou bem: de comunidade ontolgica)8. O cum, esse pensamento do
3
J.-L. Nancy, Mit - Sinn , indito, 2010, p. 1. Agradeo a Jean-Luc Nancy de me haver dado acesso a
esse texto e de me autorizar a cit-lo. Verificar o texto aparecido desde emto.
10
Ibid., p. 2.
11
J.-L. Nancy, LAdoration, op. cit., p. 62.
12
J.-L. Nancy, Mit - Sinn , loc. cit., p. 2.
18
Referncia noo formulada por Jacques Derrida, num ensaio clebre de mesmo titulo. O
neografismo, diffrance, parte da alterao da vogal e pela vogal a, quando a grafia corrente da
palavra diffrence (diferena). Vrias solues foram adotadas na traduo do termo em portugus,
diferncia, em Portugal, ou diferncia no Brasil. Optei por deixar o termo em francs. Cf. a nota dos
tradutores brasileiros do ensaio, Joaquim Torres Costa e Antnio M. Magalhes. (Jacques Derrida.
Diferena. In: Margens da filosofia. Campinas: Papirus, 1991, p. 33-34.) (N.T.)
19
J.-L. Nancy. Les Muses [As musas]. Paris : Galile, col. La philosophie en effet , 1994, p. 47.
20
Ibid., p. 44.
21
J.-L. Nancy. LAdoration, op. cit., p. 61.
O leitor encontrar nessa coletnea vinte e nove textos de tons e formas bem
diversas, que compem entretanto um conjunto de grande coerncia. Dividido em quatro
partes que escandem nele as grandes articulaes, o livro d a ouvir a partilha das vozes
timbre, modulaes, fraseado, ritmo sobretudo de Jean-Luc Nancy no que tange a
literatura.
A primeira parte, denominada simplesmente Literatura, rene textos dos
comeos, no importanto a esse respeito a data, 1977 ou 2012, em que foram
redigidos, pois todo o pensamento do filsofo que insistentemente atento a esse
nascimento do sentido. Tudo se abre portanto aqui sob o signo da retirada dos deuses,
como o deixa ouvir o primeiro texto dessa seo, Um dia os deuses se retiram....
Nessa cena inaugural da retirada dos deuses, ao mesmo tempo de luto e de desejo, o
mythos se interrompe e se abre ao mesmo tempo, deixando em suspenso um intervalo,
uma fresta onde se entrev um vestgio, resto material e rastro evanescente de uma
presena que no vale como subsistncia, como ser-presente-a, estvel e manifesto, mas
que vale como passar, ir e vir, chegar, sobrevir e partir (Clculo do poeta, p. XX).
Nancy reafirma assim, como o far mais tarde em La Dclosion e LAdoration, at que
ponto a ausncia dos deuses a condio comum da literatura e da filosofia, ambas
sendo portanto irreversivelmente ateolgicas: essa ausncia, esse entre-dois
(seramos tentados a escrever: entre-deuses) que as legitima uma outra: Mas,
quanto a elas duas, elas tm ofcio de tomar cuidado com o entre-dois: de manter-lhe o
corpo aberto, de lhe deixar a chance dessa abertura(Um dia, os deuses se retiram..., p.
XX). Essa questo do entre-dois, ao mesmo tempo abertura e afastamento, se faz
essencial portanto logo de sada.
Ainda nessa primeira seo, As razes de escrever retm igualmente a
ateno, ao pr o acento sobre a questo mais, a necessidade da reescrita e da
recitao. J em 1977, Nancy ouve, com efeito [u]m chamado urgente [...] em vrias
gargantas de escrita(p. XX): O chamado que se repete vem sempre dele. o chamado
de uma solido anterior a todo isolamento, a invocao de uma comunidade que
nenhuma sociedade contm nem precede. Como liberar o totalmente outro comum do
livro? Pergunta algum, qualquer um escrevendo, um eu que se chama (p. XX). Essa
atrao pela voz, seja ela silenciosa ou muda, clamor ou murmrio, infinitamente
renovados de uma demanda, de um chamado urgente (p. XX), Nancy no cessa de
ouvi-la ressoar, inspirando, expirando, e notadamente, no comovente, Ele disse ou no
mais irnico, Vox clamans in deserto, que encena essa cmera de ecos. Tratar-se-ia
nesse chamado reiterado, de vocao, de invocao ou de advocacia (p.XX)? Relato,
recitao, recitativo oferece uma resposta a essa questo, ao mesmo tempo que um
exemplo privilegiado do entre-dois, quando entre ria e recitativo, entre melodia e
ritmo, um equilbrio delicado surge de repente, que deixa passar a efuso cantante tanto
quanto a pulsao falante, bordejando uma pela outra. Quando bem sucedido, isso se
ouve (p. XX, nota XX). Nessa seo que reagrupa igualmente textos bem recentes,
Nancy examina assim, alm do relato, todas as categorias fundamentais da literatura: o
romance (...deveria ser um romance..., 2012), as prprias noes de autor e de obra
(Da obra e das obras, 2011) e de livro (Para abrir o livro, 2012).
A segunda parte da coletnea se concentra na poesia, com razo, seramos
tentados a acrescentar, j que A razo demanda a poesia ( o que sublinha tambm
fortemente o ttulo, escolhido por Nancy, desse livro, Demanda, que, em sua elipse
caracterstica, entre verbo e substantivo, reza e mandamento, mantm ele mesmo essa
oscilao vibrante do entre-dois). O metro, escreve Nancy, em Clculo do poeta,
propriamente o divino: isto , o incomensurvel em sua preciso estritamente
1.
Literatura
Um dia, os deuses se retiram. Por si mesmos eles se retiram de sua divindade, quer
dizer, de sua presena. No se ausentam simplesmente: no vo alhures, retiram-se de
sua prpria presena: ausentam-se dentro.
O que resta de sua presena o que resta de toda presena quando ela se ausentou:
resta o que se pode dizer dela. O que se pode dizer dela o que resta quando ningum
pode mais se dirigir a ela: nem lhe falar, nem toc-la, nem olh-la, nem lhe dar um
presente.
(Talvez, alis, os deuses se retirem porque ningum mais d um presente sua
presena: no mais sacrifcio, no mais oblao, seno por costume e por imitao.
Temos outras coisas a fazer: escrever por exemplo, calcular, comerciar, legislar. Privada
de presentes, a presena se retira.)
O que se pode dizer da presena ausentada sempre de duas coisas uma: a sua
verdade, ou a sua histria. Bem entendido, convm que seja a sua histria verdadeira.
Mas como a presena fugiu, no mais certo que qualquer histria dela seja
absolutamente verdica: pois nenhuma presena vem atest-la.
O que resta se divide, portanto, de imediato em dois: a histria e a verdade. Uma e
outra so da mesma origem e se reportam mesma coisa: mesma presena que se
retirou. Sua retirada se manifesta, portanto, como o trao que separa as duas, a histria e
a verdade.
Chama-se mythos o relato das aes e das paixes divinas, entre as quais sempre h o
que olha o mundo e sua marcha, o homem e sua sina. Mythos significa o dizer de alguma
coisa, pelo que se faz conhecer a coisa, o caso: em latim, sua narratio, que seu saber.
Quando os deuses esto retirados, sua histria no pode mais ser simplesmente
verdadeira, nem sua verdade ser simplesmente contada. Nelas falta a presena que
atestaria a existncia do que se conta ao mesmo tempo que a veracidade da palavra que
conta.
Falta o corpo dos deuses: Osiris permanece desmembrado, o grande Pan est morto.
Falta o corpo verdadeiro que proferia ele mesmo sua verdade: sua esttua respingada do
sangue das vtimas, impregnada dos vapores do incenso, ou ento o bosque sagrado no
qual se escuta rumorejar a fonte onde desemboca uma presena subterrnea.
Falta esse corpo proferidor, resta o que se pode dizer dele e o dito se tornou
incorporal, igual ao vazio, ao lugar e ao tempo. So as quatro formas do incorpreo, isto
, do intervalo no qual os corpos podem ser achados, mas que no nunca ele mesmo
um corpo. O intervalo tem por propriedade se abrir e se dividir.
O dito no mais dado, compacto, com o corpo divino, orao de seus lbios: ele se
afasta de si, se distende, logos.
*
Verdade e narrao, portanto, se separam. Sua separao traada pelo prprio trao
que se estira sobre a retirada dos deuses. O corpo dos deuses o que resta entre as duas:
nelas ele resta como sua prpria ausncia. Nelas ele permanece corpo pintado, corpo
figurado, corpo contado: mas no h mais o corpo a corpo [mle] sagrado.
Entre literatura e filosofia falta esse enlaamento, esse abrao, esse corpo a corpo
sagrado do homem com o deus, ou seja, com o animal, a planta, o raio e o rochedo. Sua
distino , por isso, exatamente o desenlaamento, o desabrao. O corpo a corpo assim
desemaranhado partilhado22 pela mais cortante das lminas: mas o prprio corte traz
para sempre as aderncias do emaranhado. Entre as duas, h algo de no-emaranhvel.23
Verdade e narrao se separam de tal maneira que a sua separao que institui a
ambas. Sem a separao no haveria nem verdade nem narrao: haveria o corpo divino.
No s a narrao suscetvel ou suspeita de carecer de verdade, mas ela privada
de verdade desde o princpio, estando privada do corpo presente como boca de seu
prprio proferimento, como pele de sua prpria exposio.
Essa privao identicamente a privao da verdade, e a verdade, por princpio,
passa aqui pelo afastamento [cart], na retirada, infigurvel, inenarrvel. A verdade se
torna um ponto de fuga que se anamorfoseia em ponto de interrogao. A verdade se
22
Noo
crucial
para
o
pensamento
de
Jean-Luc
Nancy,
a
partilha
(partage),
ou
o
partilhar
(partager)
deve
ser
entendido
em
seu
sentido
equvoco
de
compartilhar
e
repartir.
O
equvoco
existe
tambm
em
portugus,
embora
no
to
presente
quanto
em
francs.
Sempre
que
necessrio
tive
que
optar
por
um
ou
outro
sentido.
(N.T.)
23
Nancy joga aqui com um constelao de derivados de mle, confuso de combatentes no corpo a
corpo, luta, conflito, palavra derivada de mler, misturar, mesclar. Optei por traduzir os derivados
com variaes do verbo emaranhar: dmle, desemaranhar, emmlement, emaranhado,
indmlable, no-emaranhvel. (N.T.)
24
Em francs o verbo franchir significa tanto transpor (um obstculo), atravessar, saltar, quanto superar,
vencer (uma dificuldade), libertar-se. (N.T.)
25
Dfaut, significa em francs falta, ausncia, carncia, presente em expresses como:
dfaut, na falta de, faire dfaut, fazer falta, faltar; tre dfaut, faltar um compromisso; en
dfaut, estar em falta. O sentido de dfaut recobre um campo significante bastante distinto de
manque, manquer, falta e faltar, que se perde em portugus. (N.T.)
Mas uma cena, e ela se atua de modo bastante efetivo. uma cena simultnea de
luto e de desejo: filosofia, literatura, cada uma em luto e em desejo da outra (da outra em
si), mas cada uma tambm rivalizando com a outra no cumprimento do luto e do desejo.
Se o luto a carrega e se encerra em derrelio sem fim, uma ou outra soobra na
melancolia, a garganta apertada pelo corpo perdido. Mas este ltimo tambm, e a cada
vez, a imagem de uma para a outra: a filosofia se estrangula como literatura impossvel
como uma literatura que seu prprio impossvel. Ou ento, o inverso.
s vezes a literatura que conduz o luto que a filosofia sofre ou denega. s vezes a
filosofia que sustenta a ausncia que a literatura maquia. Mas o gesto de uma pode
muito bem ser o feito da outra. Tambm pode haver um poema filosfico que se esgota
no desejo da outra e de fazer poema: Zaratustra esbraveja para terminar:
, pois, rumo felicidade que me esforo? Esforo-me rumo minha obra26!
E pode haver um pensamento, ligado sem religio em seus versos a Vnus, que
termina assim, excrito27 fora das palavras, seu canto da natureza levado ao rubor do
fogo:
Sobre piras feitas para outros,
homens colocavam com grandes clamores os de seu sangue,
aproximavam a tocha, travavam lutas
sangrentas ao invs de abandonar os corpos28.
Friedrich Nietzsche. Ainsi parlait Zarathoustra. Un livre pour tous et pour personne. Traduo e
apresentao de Georges-Arthur Goldschmidt, Paris, Le Livre de poche, col. Le livre de poche
classique , 1972, p. 466. Traduo modificada por Jean-Luc Nancy. Nietzsche somente sublinha
obra . (N.E.F.)
27
Verbo e noo cunhada por Nancy, excrire, ex-crever, sublinhando-se o prefixo ex- de exterior; ou
excrit, excrito, em que se ouve ainda algo como o ex-grito. Sobre essa questo, ver notadamente, o
seu LExcrit, sobre a escrita de Georges Bataille (em Une pense finie. Paris: Galile, 1990; depois
retomado em Alea. Estudos neolatinos. Vol 15 #2, julho/dezembro 2013). (N.T.)
28
Lucrcio, De la nature. De rerum natura, VI, v. 1283-1286. Traduo, introduo et notas por Jos
Kany-Turpin. Paris : Aubier, col. Bibliothque bilingue , 1993, p. 467. (N.E.F.) s sobre piras que
tinham sido acumuladas para outros e depois chegavam-lhes as tochas], e preferiam bater-se, com grande
derramamento de sangue, a abandonar aqueles corpos
DOCUMENTO EM ANEXO29
sua guisa me diz La Quinzaine littraire: imediatamente fico paralisado.
Como escolher? Nada se impe a mim: nenhum assunto [sujet]. O que vem a ser a
minha guisa ? Segundo o sentido da palavra, a minha maneira, meu modo, mas no
o meu livre-arbtrio. A guisa no o grado . evidente que a oferta que me
fazem ou o pedido de escrever aqui minha guisa mistura as duas ideias.
Estritamente falando, um assunto dado que eu deveria tratar minha guisa . Se no
me do um, eu no encontro. Toda a minha vida eu no soube aquilo que querer: creio
que quase uma frase de Nietzsche. H anos guardo no meu escritrio uma folha onde
anotei essa frase de Sneca: Neminem mihi dabis qui sciat quomodo, quod vult,
coeperit velle : non consilio adductus illo, sed impetu impactus est. (Tu no me
mostrars ningum que saiba como ele comeou a querer o que ele quer: ele no foi
conduzido a isso pela reflexo, mas impelido por um mpeto30.) Numa outra carta a
Lucilius, Sneca qualifica a filosofia de bonum consilium : boa reflexo, deliberao,
conselho. A filosofia boa conselheira, mas no me dar o impetus. E, sem
impetuosidade, no me decidirei por nenhum assunto. o que me faz decidir, no
momento, a dar aqui uma sequncia minha guisa:
Filosofia , hoje, um termo em voga, uma mercadoria pela qual somos gulosos.
Dizem que o efeito de um dficit de sentido de nosso mundo e de um apetite de
consilium que resulta disso. Acham, com efeito, que se procura antes de tudo e que se
pe venda uma filosofia conselheira: doadora de lies, at mesmo de reconfortos,
instrutiva de virtudes, provedora de representaes, preocupada com sabedorias
(orientais ou orientadoras), sempre o dilogo nos lbios (em linguagem ordinria) e a
tica ao alcance da mo, com forte proviso de valores e de sentidos.
Mas filosofar no de maneira alguma buscar num reservatrio de sentidos. No
preencher um dficit, remexer a verdade de fio a pavio. Filosofar comea exatamente
ali onde o sentido /est interrompido. assim que o caso [affaire] comeou h vinte e
sete sculos: por uma grande interrupo das significaes disponveis nas margens do
Mediterrneo (essas significaes que iam receber o estatuto de mitos ). Que ns
conheamos hoje uma outra suspenso de sentidos (por exemplo: os significantes
histria , homem , comunidade , arte ), isso no tem nada de novo a no
ser a abertura de novas exigncias e novas possibilidades para o pensamento, para a
palavra e para a escrita do pensamento.
Esta, para comear ou para recomear o que ela faz sem cessar, sempre por
essncia in statu nascendi , tem necessidade de impetus. Filosofar no vai sem el,
muito menos sem um el violento, que lana adiante e que arranca tambm: que arranca
ao sentido depositado, sedimentado, meio decomposto e que lana em direo a um
sentido possvel, sobretudo no dado, no disponvel, que preciso espreitar,
29
30
surpreender em sua vinda imprevisvel e jamais simples, jamais unvoca. Para que um
prisioneiro saia da caverna de Plato, necessria alguma violncia: foram-no a se
virar, a luz o fere. O pensamento no se acaba somente num fulgor ofuscante, ele
comea tambm por a. Entre os dois, est o lento crepsculo em que a coruja ergue, at
a aurora, suas potentes asas hegelianas.
Certamente, preciso que pensemos. Tudo voltou a ser, de novo, no somente
digno de pensamento, mas precisando ser pensado. O capital, por exemplo, diante do
qual no basta agitar exorcismos, nem estender compromissos; a identidade, que parece
ter-se tornado incapaz de se afastar de si para se reportar a si; ou ento a soberania, da
qual no se sabe mais nada, seno que ela provm de uma ordem teolgico-poltica da
qual estamos desligados. Eu poderia continuar por muito tempo, e, bem entendido,
acrescentar lista a filosofia, que seu uso intemperante tornar em breve insignificante.
(E a literatura junto? Mas a poesia resiste.)
Isso demanda um el: quer dizer, sobretudo no o movimento de buscar seguranas.
Isso demanda um levante, uma insurreio no pensamento. Risco portanto, e balbrdia.
No se pode ser demasiado sbio para filosofar; para isso necessrio mesmo um tanto
de loucura. Nada mais prximo de uma loucura do que o ato de se criar e se dar a si
mesmo seu objeto , que para Hegel o ato livre do pensamento31 .
Criar conceitos, maltratar lnguas, afiar estilos, esburacar o pensamento, eis de
incio o trabalho. E tambm uma festa, no preciso esquecer: no um caso de
lampies, mas ainda um caso de impetuosidade e de se pr fora de si. uma febre
contrada no aberto ao qual o pensamento se expe. Se ele no se expe, ele soobra:
preciso diz-lo sem pathos, sobriamente, mas com a ltima das foras. No fim, no
preciso para diz-lo com Artaud que o ronrom filosfico do ser recomece a foder
com [foutre] a vida.
31
Georg Wilhelm Friedrich Hegel. La Science de la Logique, Encyclopdie des sciences philosophiques
III, Philosophie de lesprit, edio de 1830, 17. Tr. fr. Bernard Bourgeois. Paris: Vrin, 1988, p. 183.
Hegel quem sublinha. Traduo modificada por Jean-Luc Nancy. (N.E.F.)
2. AS RAZES DE ESCREVER
Il est sans doute peu prs impossible, aujourdhui, de rien crire sur le livre . A frase em francs
perfeitamente equvoca. J.-L. Nancy o explicita a seguir. O texto que se segue visita toda uma srie de
autores e de textos que so convocados por Nancy e frequentemente citados, na maioria das vezes sem
aspas, ou pastichados, ou livremente adaptados, algumas vezes, quando se trata de autores antigos
(Montaigne, por exemplo), inclusive utilizando a grafia do tempo. Na traduo esas modificaes grficas
ou estilsticas se perdem.A lista de autores muito grande: Bataille, Blanchot, Montaigne, Sterne,
Mallarm, Borges, Joyce, Derrida, So Joo... No me preocupei em referenciar as citaes e pastiches, o
que que retiraria parte do jogo de que questo aqui. (N. T.)
33
Au sujet du livre. Sujet em francs significa ao mesmo tempo assunto e sujeito. (N. T.)
34
Traduzido frequentemente por narrativa em abismo . Literalmente "posio-em-abismo". Termo de
retrica e crtica de arte que designa o dispositivo auto-reflexivo. Nesta acepo, foi Andr Gide quem
resgatou a expresso de seu contexto de origem, a herldica francesa do sculo XVII. O Dictionnaire des
termes du blason de Jean-Marie Thibaud (Besanon, Edtions Ctre, 1994), por exemplo, diz no verbete
"abismo (em)": "Expresso que qualifica uma figura posta no centro do escudo". O sinnimo de "abismo"
dessa identidade para todo Ocidental ela forma a questo do livro, a questo de que
preciso escrever para dissolver em sua escrita para dissolver o qu?
Para mas o gesto de escrita no se satisfaz jamais com uma teleologia dissolver
mas de uma dissoluo ela mesma dissociada dos valores de soluo que a metafsica
sempre lhe confere no somente a identidade ideal inscrita na brancura ofuscante do
Livro
(pois na profundidade da luz eterna se acha reunido, como que ligado pelo amor em
um s livro, tudo aquilo que est esparso no universo Dante)
mas para dissolver at a privao, que faz tambm a privatizao, dessa identidade,
para dissolver at o prprio Livro, e at a privao, a privatizao do Livro. O Livro est a
em cada livro tem lugar o redobramento [reploiement] virgem do livro (Mallarm) ,
preciso escrever sobre ele, faz-lo palimpsesto, sobrecarreg-lo, embaralhar suas pginas
com linhas acrescentadas at a pior confuso dos sinais e das escritas: preciso consumar
em suma sua ilegibilidade de origem, crispando-o com o informe esgotamento da cibra.
Para qu? preciso arriscar: preciso escrever sobre o livro por uma libertao.37
Que no teria mais a ver com a Liberdade (entendo, com essa Liberdade subjetiva, sujeita,
assujeitada, que o Deus ou o Esprito da metafsica se confere automaticamente). A escrita
deveria passar no interstcio da estranha homonmia liber/liber,38 na ambiguidade corrente
do livramento [livraison].
Escrever? Revirar as unhas, esperar, em vo, o momento da libertao? (Bataille)
e a frase que segue no mesmo relato, Histoire de rats [Histria de ratos]:
Minha razo de escrever alcanar B.
B. a mulher desse relato, mas sua inicial e a prpria frase deixam ler a mulher,
essa mulher, uma mulher, e um homem, e B.; o prprio Bataille, e um lugar, um livro, um
pensamento, e a libertao mesma , em pessoa, sem nenhum alegorismo.
Esta a repetio: retomada, reescrita da petio, do esforo para atingir e para se
juntar, do requerimento, da demanda, do desejo, da reclamao, da splica. A reescrita
37
pode seno se constituir. Minha razo de escrever alcanar B.: Babel, Bblia, bibliologia,
bibliomancia, bibliomania, bibliofilia, biblioteca.
o que o livro veio mais propriamente recitar e repetir fluentemente na era de sua
inveno material e tcnica: na era da imprensa, a era do livro verdadeiro, a era do sujeito
maduro e da comunicao. A imprensa satisfez a necessidade de estarmos em relao uns
com os outros em um modo ideal (Hegel). Tudo se passa desde ento como se todo o
contedo ideal da comunicao consistisse na autobibliografia. Cada livro exibe o ser ou a
lei do livro: de entrada de jogo, ele no tem mais outro objeto alm de si mesmo e essa
satisfao. Eu vos escrevo, minha filha, com prazer, ainda que no tenha nada a vos
transmitir (Madame de Svign).
Tudo est dito, e viemos tarde demais, h mais de sete mil anos que h homens que
pensam: assim que preciso comear o primeiro captulo, sobre os livros, de um livro
intitulado os Caracteres. O esgotamento da matria impe o infinito das possveis maneiras
de lhe formar os signos. a histria desse mundo onde estamos agora em visita, diz-lhe a
deusa: o livro dos destinos deste mundo. Passamos a um outro apartamento, e eis ento
um outro mundo, um outro livro em alguma parte voc encontrar nele tambm os
Ensaios de teodiceia, onde isso se acha escrito, e voc ler aqui que Borges nunca escreveu
seno um pensamento de Leibniz que Lichtenberg j tinha recopiado: as bibliotecas sero
cidades. Nenhum lugar estar livre de livros, mas assim mesmo haveria falta deles. O
senhor tem totalmente razo, um captulo inteiro falta nesse lugar, deixando no livro um
buraco de pelo menos dez pginas, escreve Tristram, o autor que conta tambm seu prprio
nascimento. Nenhum livro tampouco estar livre de livros, pois no contentes de inscrever
nosso nome sobre pensamentos annimos de um nico autor, apropriamo-nos dos
pensamentos de milhares de indivduos, de pocas e bibliotecas inteiras, e roubamos at dos
plagirios, escreve Jean Paul, plagiando-se a si mesmo uma vez mais. A antologia a
escolha das flores dos livros, escolha do livro para dispor em cada livro o buqu de sua
literariedade textual prossegue sem parar at ns.
Toda essa repetio en abyme do livro constitui sua redundncia nativa e mais do
que a cremos, ingnua. A redundncia o transbordamento, o excesso da onda: o Livro
sempre se pensou como espuma que jorra de novo infinitamente de um oceano inesgotvel
um jato de grandeza, de pensamento ou de comoo, considervel, frase perseguida, em
caixa alta, uma linha por pgina em local graduado, no manteria o leitor sem respirao
durante a durao do livro? (Mallarm). Onda redita e recada, essa repetio talvez seja
propriamente a redao: redigir recolher, fazer entrar, reconduzir e reduzir. Cada livro
reconduz a redundncia do Livro ao espao delimitado por uma inscrio. Em cada um
desses templos, a autobiografia venerada
com a condio de ignorar a outra repetio de que ela de fato apenas a
retomada ou a remunerao. A era da imprensa justamente a era do sujeito no existe
livro seno de um eu, e eu se repete: nisso que ele se reconhece.
Fez-me o meu livro, mais do que eu o fiz, livro consubstancial a seu autor. O sujeito
se erige em Livro, e s essa ereo nunca assegurou a substncia de um sujeito cuja
franca dissimulao faz ler o desejo em livro aberto: assim, leitor, sou eu mesmo a matria
deste livro, o que ser, talvez, razo suficiente para que no empregues teus lazeres em
assunto to ftil e de to mnima importncia. No ergo aqui uma esttua para a praa de
uma cidade, para o canto de uma biblioteca e para divertir algum vizinho. Os outros
formam o homem; eu o recito e represento um em particular bem mal formado. Quero que
vejam meu passo natural e ordinrio, to desajustado como ele . Minha razo de escrever
alcanar B. me alcanar, alcanar nela minha sociedade, sua solido, alcanar aquele,
aquela que diz eu, passo natural, passo ordinrio.
Eu se repete o seu desejo qual desejo, no entanto, seno destrambelhado? O fato
de eu se exibir no o faz por isso ver. Algum se perde irremediavelmente na matria de
seu livro algum que no cessar de se repetir: a matria da minha experincia, a qual
seria a matria do meu livro, e desta vez Proust. Algum ele aquele que diz eu e ele
no aquele l repete-se perdido em todo livro. Pela mise en abyme da autobibliografia e
apesar desse abismo, um autgrafo caminha para o abismo. Sua errncia se inicia na mesma
encruzilhada que sua ereo.
O autgrafo aquele que se licencia singularmente na abertura mesma de seu livro.
A Deus, portanto, de Montaigne, nesse primeiro de maro de mil quinhentos e oitenta.
Assinatura do lugar, assinatura do nome, assinatura do adeus, ele entra em seu livro como
num tmulo. a mesmidade que, alterando sua identidade e sua singularidade, lhes divide
o selo (Derrida).
A repetio literal e literria a daquele que se extravia em suas prprias marcas
nos discursos de seu prprio velrio, como o de Finnegan, sinais precursores de nada seno
de um ndice que vindo ainda em devir naquilo que um aqui outrora aqui embaixo fora: um
xodo, aqui, recomeou, e algum entrou na histria de sua dispora. O chamado que se
repete vem sempre dele. o chamado de uma solido anterior a todo isolamento, a
invocao de uma comunidade que nenhuma sociedade contm nem precede. Como liberar
o totalmente outro comum do livro? Pergunta algum, qualquer um escrevendo, um eu que
se chama.
debruado sobre o livro aberto na mesma
pgina
o que ele ouve so os cantos do
outro lado onde esto os outros.
(Jacqueline Risset)
uma histria conforme ao seu desejo e ao seu xodo. A escrita, diz ele, marca por
toda parte o fim do comunismo. Quer dizer, do que ele no conheceu, j que ele nasceu
com a escrita.
Mas ele escreve em seus livros e escreve em todos os seus livros o que foi o
comunismo, a ausncia do livro. O livro no pretende jamais seno retraar aquilo que o
excede. A questo sobre a origem do livro no pertencer nunca a nenhum livro (Derrida)
e, entretanto, memria que tens escrito aquilo que vi, aqui vai se mostrar a tua nobreza
(Dante). Ele escreve, portanto, o mundo do aedo, do contador, do recitante sagrado. O
primeiro poeta, que fez esse passo para se desembaraar da multido pela imaginao, sabe
retornar a ela na vida real. Pois ele vai direita e esquerda, para contar multido as
proezas que sua imaginao atribui ao heri. Esse heri no , no fundo, seno ele mesmo.
Mas os ouvintes, que compreendem o poeta, sabem se identificar com o heri (Freud). Essa
pura poiesia de si na pura comunidade assombra sem descontinuar a inteira literatura: e
um homem daqui, um homem de agora, que seu prprio narrador, enfim (Robbe-Grillet).
Este foi, diz ele, o mundo de um mmico, que no teve sequer exemplo e no ter
sequer imitador, o mundo do improvisador genial, do danarino brio de deus, dos
batimentos, dos golpes, dos assobios de uma msica no escrita, o mundo das preces, das
splicas, das invocaes. a tribo com suas palavras e suas melopeias, o grito cantante da
comuna primitiva em torno de sua fogueira silenciosa grafia de um fogo to claro que ele
se dilacera sem deixar rastro (Laporte).
A isso se sucede, na histria que ns nos contamos, a sociedade da escrita que no
o livro, mas a gravura dos caracteres sagrados, a inscrio das Leis sobre tbuas de pedra
ou de metal, sobre colunas, pilastras, frontes e tiras de tecido, a escrita dura e a ereo por
toda parte de estelas que do a ler a Ordem e a Disposio, a Estrutura e o Modelo que os
do a ler a ningum, e portanto a todos: o comunismo monumental, a escrita arquitetural e
a monarquia hieroglfica. Todas as suas palavras devem ter um carter de encravamento ou
de relevo, de cinzeladura ou de escultura, diz da escrita sagrada aquele (Joubert) que
escreve em mximas. E cada livro tende perdidamente para a mxima: maxima sententia, o
maior pensamento
Vem ao fim de parte nenhuma e de toda parte, do Egito, da Jnia, de Cana o
livro; vm ta biblia, a bblia irremediavelmente plural, a Lei, os Profetas, os Escritos assim
como ela se divide, se dispe, se abisma, e se dissemina. Ele e no o Livro de um s
autor ou povo.
Vem ao fim a muito tardia, a muito antiga, religio dos livros, e comeam todos os
xodos. Egito, Jnia, Cana se deslocam para as travessias de desertos por comunas que
no param de se dispersar.
A histria dos livros comea se perdendo no livro de histria. Nele ningum diz
quem escreveu, nem se foi escrito esse primeirssimo pacto a que se d o nome, no entanto,
de o Livro da Aliana (xodo, XXIV, 7). a histria do pacto pacto de libertao
rompido, sustentado, trado, sempre oferecido e do chamado renovado para assin-lo uma
nova vez. Quebradas to logo gravadas, as Tbuas no so de modo algum erigidas, elas
caminham na Arca com as tribos a caminho. Os Rolos se desenrolam, e o volume da
histria se amplifica at ns; o livro inseparvel do relato, a histria do romance: a poca
do livro o romantismo. Em nossos escritos, o pensamento parece proceder pelo
movimento de um homem que caminha e que vai reto. Nos escritos dos antigos ela parece,
ao contrrio, proceder pelo movimento de um pssaro que plana e avana em rodopios
(Joubert).
Quem no v que tomei uma estrada pela qual, sem cessar e sem trabalho, irei
enquanto houver tinta e papel no mundo?
Os livros comeam com sua repetio: dois relatos do gnese nele se misturam, se
acavalam, se redizem e se contradizem. Os livros so copiados, reproduzidos, publicados
porque eles no so por si mesmos pblicos nem como um canto nem como um obelisco;
eles so transmitidos, traduzidos setenta e dois judeus, seis de cada tribo, em setenta e
dois dias, na ilha de Fros, tornam grega a Bblia os livros so trados, contrafeitos,
imitados, recopiados, recitados e citados. Aquele que diz eu embaralha em seu livro livros e
assinaturas: Quanto s razes, s comparaes, e aos argumentos que transplanto para meu
solo e confundo com os meus, omiti muitas vezes, voluntariamente, o nome dos autores, a
fim de pr freio na temeridade dessas sentenas apressadas que se espojam sobre toda
sorte de escritos. Aqui j recomea a dita repetio.
Os livros so uma matria corruptvel. Os livros so de madeira: biblos, liber,
codex, Buch, sempre casca ou rvore. Isso queima, isso apodrece, isso se decompe, isso
se apaga, isso passa crtica roedora dos ratos.39 A bibliofilia , tanto quanto a filosofia, um
amor impossvel, de objetos curtidos, murchos, gastos, despedaados, lacunares. O livro
miservel, odivel. Descartes odeia o ofcio de fazer livros. No h nada ali para o Sujeito
o outro, o mesmo, aquele que diz eu (penso) nos enormes volumes , nada alm de
perda de tempo, consumao intil de uma vida para ler cacos de uma cincia que eu posso
por mim mesmo instaurar. Deveria haver leis que punissem os escritores ineptos e inteis,
como existem para os vagabundos e preguiosos. Banir-se-ia das mos de nosso povo as
minhas obras e de cem outros. No uma troa. A escreveo parece ser um sintoma de um
sculo sobrecarregado. Nunca escrevemos mais do que depois que somos perturbados?
Desde que temos dificuldade para escrever.
Pois aquele que diz eu deve, no entanto, escrever, a demonstrao inexorvel:
pensando no problema do ego e do alter ego, do acasalamento originrio e da comunidade
humana, Husserl escreve: H em tudo isto leis essenciais ou um estilo essencial, cuja raiz
se encontra primeiramente no ego transcendental, e na intersubjetividade transcendental
que o ego descobre nele, em seguida, e por conseguinte, nas estruturas essenciais da
motivao e da constituio transcendentais. Se consegussemos elucid-los, esse estilo
39
Nancy utiliza aqui o pronome demonstrativo a, isto , ou isso , num tipo de frase idiomtica,
bastante coloquial em francs : a brle , literalmente isso queima . Jogo que evoca o a, que
traduz, no vocabulrio psicanaltico francs o Es alemo, vertido em portugus como id , ou mais
recentemente, como isso , na segunda tpica (1920), como cifra do inconsciente. (N. T.).
apririco teria encontrado desta mesma forma uma explicao racional de dignidade
superior, aquela de uma inteligibilidade ltima, de uma inteligibilidade transcendental.
Husserl escreve o que no quer escrever. Ele escreve que a alterao originria do ego, a
comunidade dos homens, forma ou deforma o estilo, a escrita, at na inteligibilidade, cujo
xito final ela decifra irremediavelmente.
Assim a splica pelo livro comeou ao mesmo tempo que a perseguio dos livros.
Escrever est ligado ao cruel simulacro de um suplcio (Laporte). E agora, atravs do vidro,
todo mundo pode ver a inscrio se gravar no corpo do condenado. Ningum pode
evidentemente se servir de uma escrita simples; ela no deve matar de imediato, mas em
mdia num prazo de doze horas (Kafka, Na colnia penal).
O oficial que comanda a mquina executa a si mesmo, no fim da histria, gravando
sobre o seu corpo a lei que ele violou: Seja justo! Mas no resta seno a mquina louca para
aplicar de modo selvagem a lei o comunismo e o capitalismo das mquinas de escrever.
, no entanto, o mesmo chamado: como libertar o totalmente outro do livro?
O apocalipse
E se os livros sempre anunciassem, sempre provocassem o recomeo nessa histria
do que no tem lugar nela? E se compreendssemos por que, hoje, falando, escrevendo,
devemos sempre falar ao mesmo tempo vrias vezes, falando segundo a lgica do discurso
e, portanto, sob a nostalgia do logos teolgico, falando tambm para tornar possvel uma
comunicao de fala que no pode se decidir seno a partir de um comunismo das relaes
de troca, portanto de produo mas tambm falando, escrevendo em ruptura com toda
linguagem de fala e de escrita (Blanchot)?
No fim dos livros, h o Apocalipse. o gnero propriamente escrito da profecia
quer dizer, do chamado. o livro do fim do mundo, o livro do recomeo. Aquele que o
escreve diz e eu digo seu nome Joo e diz seu lugar de exlio a ilha de Patmos. Este
livro uma carta s Igrejas dispersas, comunidade privada de sua comunho. Nesta carta,
uma carta endereada a cada uma das igrejas, a cada uma das assembleias. A carta se
repete, se divide, se transforma: Ao anjo da Igreja de feso, escreve: Assim fala aquele que
segura na mo as sete estrelas (Joo). Aos de Ysat em Loka. Ouvindo. A urbe que orbita. O
agora de ento com o ento de agora em tenso tempo contnuo. Ouvido. Quem tendo tem
este ter tido. Ouam. (Joyce)
Joo escreve nesse livro as vises que lhe foram dadas a ver: mas escreve apenas
porque as vises o mandam escrever. O Anjo lhe fala segurando o Livro, mas Joo no o
recopia: ele escreve o que o Anjo lhe dita. O que revelado no o Anjo, e no o Livro:
a escrita do homem. Aquele que se anuncia atravs da revelao, aquele que diz por sua vez
quem ele, aquele que diz aquele de quem Joo escreve que ele diz que o alfa e o
mega. Ele o Livro, com certeza, mas tambm: nada alm da conta finita dos caracteres
de escrita est a tudo aquilo que se revela dos sete selos partidos do livro do Cordeiro
degolado. o fim da religio.
Joo escreve todas as suas vises de escritas. Mas no meio lhe proibido escrever
as palavras dos sete troves. Nenhum livro libera a palavra inaudita, inaudvel,
ensurdecedora o tumulto primitivo ao som do qual teria tido lugar a exaltao da comuna
mstica. Porm, o livro sabe a disperso da comunho ele a sua inscrio e comunica o
seu chamado: Que aquele que ouve, diga Vem! . Vem! escande o Apocalipse e nossos
livros sobre os livros. Vem, e devolve-nos a convenincia daquilo que desaparece, o
movimento de um corao (Blanchot, citado por Derrida). Cabe a ti fazer o passo de
sentido. No h nenhuma chance de decidir, para decidir, em qualquer linguagem que seja,
por aquilo que vem em Vem (Derrida).
No um chamado comunicao, mas a propagao da repetio do chamado, da
ordem e da demanda que no trazem, produzem, veiculam, ensinam nada vem , que
no pedem resposta mas s a obrigao de responder, a responsabilidade de escrever de
novo com as vinte e seis letras que no contm nenhuma revelao, mas somente o seu
prprio esgotamento.
Aqui, o esgotamento inicial: Minha razo de escrever alcanar B. passar da
primeira segunda letra, traar letras ligadas uma a outra, o que se chama escrever, o que
chama a escrever, o que chama uma mulher, um homem, um livro, uma histria, e sempre
como B. na histria uma impossvel, insustentvel nudez.
Muito alm e aqum do que qualquer palavra pode desvelar de verdadeiro muito
aqum e alm de qualquer Livro resta a descobrir o apocalipse, a descoberta que abala
todos os livros: que o livro e a comunho esto postos a nu, a descoberto, em todos os
livros. A ausncia do Livro a ausncia da Comunho nossa comunho ou parte de um
para todos e de todos por um (Mallarm). Mas do mesmo modo a presena sempre
deglutida no instante do livro. Joo deve engolir um pequeno livro. Tomei o livro e o
engoli; na minha boca ele tinha a doura do mel, mas quando eu o comera, ele encheu
minhas entranhas de azedume.
O que comunica, O que se comunga no nada, no pouco,40 nada alm de
azedume, mas um chamado; um outro comunismo, por vir sem arrematar a histria, um
comunismo de xodo e de repetio, no quereria dizer nada (mas, na frase de Blanchot,
alm do que elas querem dizer, que querem as palavras: relaes de troca, portanto de
produo?), mas ele escreveria, esse comunismo, a libertao dos livros, nos livros. V
enquanto livresca (foi Montaigne quem fez essa frase) e como ela no o seria, a
comear por aqui mesmo? , essa libertao, seguramente, mas sem dvida to livresca
quanto v, quanto a escrita, ainda e de novo, no se arrisca a isso, a descoberto.
40
[] Nest rien, nest pas rien [], Nancy joga aqui com as pasonomsias. A segunda, um litoto:
[,] nest pas rien significa: no pouco, muito. (N. T.)
Pensei ter ouvido uma voz e, por causa disso, vim para o lado de c. Era a sua?
No sei. Pode ser, pois acho que eu estava falando sozinho. Mas tambm havia um
cachorro latindo. No foi a voz dele que voc escutou?
Como poderia confundir!
Porque no? Os chamados caninos, assim como os dos outros animais, no so
apenas rudos. Cada um tem uma voz que pode ser reconhecida.
Voc quer dizer que para eles uma maneira de falar?
Absolutamente! Trata-se de outra coisa completamente diferente. A voz no tem
nada a ver com a fala. Por certo no h fala sem voz, mas h voz sem fala. Nos animais,
mas tambm conosco. A voz existe antes da fala. Assim, j que conheo o senhor,
reconheo a sua voz antes de distinguir as palavras que o senhor pronuncia quando vem na
minha direo .
Claro, a voz a face sonora da fala, ao passo que o discurso, ou o sentido, forma a
sua face espiritual.
Quase encontraramos essa maneira de apresentar as coisas em Saussure, se ele
estivesse mesmo falando da voz, o que no o caso. Quase encontraramos isso na
distino feita por ele entre os elementos constituintes da fala. Mas note que isso o leva a
excluir a fonao, isto , a vocalidade, do estudo da lngua e mesmo, no fundo, do estudo
da linguagem. Ele dizia:
(ouvimos a voz de Saussure ministrando seu curso em Genebra)
os rgos vocais so to exteriores lngua como os aparelhos eltricos que servem para
transcrever o alfabeto Morse so estranhos a esse alfabeto; e a fonao, vale dizer, a execuo
das imagens acsticas, em nada afeta o sistema em si.
(Entra Paul Valry. Ele fala com voz bem baixa, quase a murmurar. Por fim, conseguimos
distinguir suas palavras.)
voz, estado elevado, tnico, tenso, feito apenas de energia pura, livre, de alta potncia,
dctil o essencial aqui o fluido mesmo a voz evoluo de uma energia livre
Ouvi bem, mas no sei se compreendi. Porque me colocou para escutar esse
personagem ao invs de o senhor mesmo se explicar?
que deve-se ouvir a voz de cada um. No a mesma coisa. Cada um se explica de
uma outra maneira com sua prpria voz. O senhor ignorava que as impresses vocais so
mais singulares, mais impossveis de se confundir do que as impresses digitais, que j so
to particulares a cada um?
No basta fazer um discurso sobre a voz. Ainda preciso saber com qual voz deve-se
pronunci-lo. Qual voz falar da voz? Veja, oua esta aqui.
O homem possui trs tipos de voz, a saber, a voz falante ou articulada, a voz cantante ou
melodiosa, e a voz pattica ou acentuada, que serve de linguagem para as paixes.
Se entendi bem o que ele acabou de dizer, assim como o que o senhor dizia
anteriormente, no somente cada indivduo tem sua prpria voz, mas tambm h vrias
vozes possveis para cada um. Entretanto, a voz em si, a vocalidade da voz, se quiser, ou
sua essncia de voz, ser o que no fala, nem canta, nem d o tom de uma paixo, sendo
capaz ao mesmo tempo de representar esses trs papis, e estando apta a tornar-se tanto a
sua voz quanto a minha, tanto a deste personagem quanto a de outro qualquer. Mas
pergunto-lhe ainda: o que ento essa coisa?
a voz em si [la voix mme] e no evidente que ela seja uma nica coisa. a voz
que no podemos dizer, uma vez que uma precesso da fala, uma fala infante que se faz
ouvir aqum de toda fala, at o falar em si [le parler lui-mme]: pois se ela infinitamente
mais arcaica que ele, em compensao, no h fala que no se faa ouvir por uma voz.
a voz responde ao seio ausente, ou acionada na medida em que o acesso ao sono parece
preencher com vazios a tenso e a ateno da viglia. As cordas vocais se tensionam e vibram
para preencher o vazio da boca e do tubo digestivo (resposta fome) e as fraquezas do sistema
nervoso face ao sono a voz suspender o vazio 41 A contrao muscular, gstrica e
esfincteriana, expele, s vezes ao mesmo tempo, o ar, o alimento e os dejetos. A voz jorra dessa
rejeio [rejet] de ar e de matria nutritiva ou excremencial; as primeiras emisses sonoras, por
serem vocais, no possuem sua origem somente na glote, elas so a marca audvel de um
fenmeno complexo de contrao muscular e vago-simptica que uma rejeio que envolve o
corpo inteiro.
No refutarei isso que o senhor acabou de nos fazer ouvir. No contestarei essa
voz
Acredita que uma voz jamais possa ser contestvel? Eu adoraria, ao contrrio,
propor-lhe esta tese, de que a voz, ou, antes, a partilha infinita das vozes, forma o lugar ou
41
Prendre la relve. Relve a traduo proposta por Jacques Derrida Aufhebung hegeliana. O
termo em francs tem muitos sentidos: levantar, erguer, mas tambm depender, demitir, exonerar.
Basicamente tem o duplo sentido de: elevar e substituir, algo contido na expresso idiomtica em
portugus, render, no sentido de substituir ou acumular. Opto por traduzi-lo por: suspenso, no
sentido de elevar e retirar. Derrida prope pela primeira vez essa traduo em Margens da filosofia,
no ensaio "O poo e a pirmide", em uma traduo do pargrafo 459 da Enciclopldia de Hegel. O
tradutores da edio brasileira optaram por traduzir relever, no caso, por suprimir, o que restitui
apenas um dos lados do sentido em francs (ou de Aufhebung em alemo). Margens da filosofia. Trad.
Joaquim Torres Costa e Antnio M. Magalhes. So Paulo, Papirus, 1991, p.126. Traduo modificada.)
(N. T.)
42
J.-L. Nancy joga aqui com a cadeia de semas, jet (jato), rejet (rejeio), jeter (lanar, jogar). Um
elemento importante nessa discusso a noo heideggeriana de Geworfenheit, ser-lanado, conforme a
traduo de Mrcia de S Cavalcante, ou dejeco, na traduo de Fausto Castilho, ou ser
abandonado, como pode ser tambm traduzido em portugus, vertido em francs como tre jet. (Martin
Heidegger. Ser e tempo. Parte I. Traduo: Mrcia de S Cavalcante. Petrpolis: Editora Vozes, 2001, 10
edio p. 321-322, para a definio; Traduo de Fasuto Castilho. Campinas/Petrpolis: Editora
Unicamp/editora Vozes, 2012. Para a explicao sobre a traduo francesa, cf. tre et Temps. Traduao:
Fraois Vezin. Paris: Gallimard, 1986, p. 560.) (N. T.)
43
A ria da Rainha da noite uma famosa ria de soprano da pera A flauta mgica (Die Zauberflte) de
Wolfgang Amadeus Mozart (1791). (N. E.)
44
(Hegel conversa com Schelling e Hlderlin, que pronunciam eles tambm algumas das frases que
se seguem, sem que se possa consider-la como uma conversa de verdade.)
A voz comea com o som, o som um estado de tremor, isto , um ato de oscilao entre a
consistncia de um corpo e a negao de sua coeso. como um movimento dialtico que no
chegaria a se consumar, e que permaneceria na pulsao No tremor sonoro de um corpo
inanimado j existe alma, uma espcie de aptido mecnica alma Mas a voz se eleva
propriamente antes no animal Ela seu ato de tremer livremente em si mesma Neste tremor
h a sua alma, isto , h essa efetividade da idealidade que faz uma existncia determinada... A
identidade do existente ou seja, a presena concreta da Ideia mesma sempre comea no
tremor. Assim, a criana no seio de sua me, criana que no autnoma e no um sujeito,
atravessada com um tremor pela partilha originria da substncia maternal Essa no uma
voz audvel, no entanto, ela deve fazer um rudo nas entranhas da me. o vocalise balbuciado
do acesso ao ser A alma a existncia singular que treme ao se apresentar, cujo tremor a
apresentao o sujeito singular, ou seja, no a unidade infinita da subjetividade, no
nada alm da singularidade Essa alma singular d a si sua forma ou figura, eis sua obra de
arte a obra de arte do tremor E quando se trata do homem, essa obra de arte a fisionomia
humana, com a estao ereta, a mo, a boca, a voz, o riso, o suspiro, as lgrimas e alguma
coisa banha tudo isso, um tom espiritual que revela imediatamente o corpo enquanto
exterioridade de uma natureza superior. Esse tom uma modificao leve, indeterminada,
indizvel: apenas um signo indeterminado e imperfeito para o universal da Ideia que se
apresenta aqui. Esse tom no a linguagem. Ele lhe abre caminho [voie], talvez. essa
modificao indizvel, essa modulao da alma que treme, que chora e que suspira, e que
tambm ri O esprito que treme ao se manifestar, sem ainda ter se apropriado de sua prpria
substncia espiritual
(Os trs personagens se afastam. Ouvimos cantar, bem suavemente, o incio do lied de
Schubert, Gretchen am Spinnrade.)
Meine Ruhe ist hin, mein Herz ist schwer, Ich finde, Ich finde sie nimmer46
Prendeu-me, confesso. Mas o seu Hegel no est sozinho, so trs que esto falando.
De fato. Mas era ele, no entanto, asseguro-lhe, era ele, ou a voz de uma poca
Compreendi direito se disser que esta modificao de que eles falavam, esta
modulao espiritual espalhada sobre todo o corpo seria em suma a voz da voz, seria o som
ou o tom no qual ressoa propriamente aquilo que, de outra parte, treme na garganta aberta?
Esse tom ou esse som geral do homem, do animal, de tal homem ou de tal animal, o som
geral, a cada vez, da diferena singular que vibra daria o tom da voz, e, reciprocamente, a
voz faria ouvir o tremor particular desse tom Cada qual seria a voz do outro: a voz que
no uma voz, que o tom da alma espalhada sobre o corpo, dando-lhe a existncia atravs
de sua expanso, e a voz que a voz dessa existncia, emitida por sua boca e por sua
garganta.
Sim, creio que podemos diz-lo dessa maneira. O senhor compreende, ento, que,
nesse caso, no h sujeito. Uma voz tem sua voz fora dela mesma, ela no tem em si sua
prpria contradio, ou ento, em todo caso, ela no a suporta: ela a lana adiante dela
mesma. Ela no est presente em si, somente uma apresentao fora de si, um tremor que
se oferece de fora, a pulsao de uma abertura uma vez mais, um deserto estendido,
exposto, com lufadas de ar que vibram no calor. O deserto da voz no deserto, todo o seu
clamor e nada de sujeito, nada de unidade infinita, isso [a] sai sempre para fora, sem
presena em si mesmo, sem conscincia de si.
Isso me lembra algum que dizia cito de memria que o homem, diferentemente
dos animais, no tem voz, que ele tem somente a linguagem e a significao como uma
maneira de preencher essa falta de voz, de esforar-se rumo a essa voz ausente
Foi Giorgio Agamben. Ele disse que a voz era o limite da significao, no como um
simples som desprovido de sentido, mas como pura indicao de um evento da
linguagem.
46
Gretchen am Spinnrade [Margarete na roca] lied de Schubert com letra de Goethe, retirado do
Fausto A letra de Goethe diz o seguinte: Minha paz se foi/ Meu corao est pesado/ Nunca, nunca
mais.... (N.T.)
E essa voz que, no significando nada, significa a significao em si [la signification mme],
coincide com a dimenso da significao mais universal, com o ser.
O sentido est abandonado partilha, diferena das vozes. Ele no um dado anterior e
exterior nossa voz. O sentido se doa, se abandona. No h talvez outro sentido alm dessa
generosidade.
Este sentido do sentido como a voz da voz: nada alm de abertura, tremor da
abertura no envio, na emisso de algo que destinado a ser compreendido e nada mais.
Quer dizer que no foi feito para voltar a si
No entanto, ressoa em si mesmo
Sim, mas sem retornar a si, sem retomar o que disse para se repetir e se ouvir...
Mas a voz que se ouve no pode faz-lo guardando silncio. O senhor sabe disso,
Derrida o mostrou.
Claro. E por isso que a voz que no guarda silncio, a voz que uma voz, no se
ouve. Ela no tem em si esse silncio para se ouvir proferir um sentido alm do som. uma
outra maneira de no ter em si sua prpria contradio. Ela no tem em si esse silncio, ela
somente ressoa, fora, no deserto. Ela no se ouve no de verdade mas ela se faz ouvir.
Ela se dirige sempre ao outro. Observe, justamente, pois o senhor o citou neste instante;
oua.
(Derrida falando diante de um gravador porttil, que uma jovem lhe estendeu.)
Quando a voz treme ela se faz ouvir porque seu lugar de emisso no fixo vibrao
diferencial pura um gozo que ser gozo numa plenitude sem vibrao, sem diferena, pareceme ser s vezes o mito da metafsica e a morte No gozo vivo, plural, diferencial, o outro
chamado
Mas, ento, ele chamado por nada, nem mesmo por seu nome. a voz solitria, que
no diz nada, mas que chama?
Ela no diz nada, o que no quer dizer que no nomeie. Ou, ao menos, no quer dizer
que ela no abra caminho [voie] ao nome. A voz [voix] que chama, isto , a voz que um
chamado, sem articular lngua alguma, abre o nome do outro, abre o outro a seu nome, que
minha voz lanada na sua direo.
Mas ainda no h nomes, se no h lngua. No h nada para fixar esse chamado.
Sim, ela chama o outro l aonde somente, enquanto outro, ele pode vir. Isto , no
deserto.
Quem, por fim, vem ao deserto, seno os nmades que o atravessam?
Precisamente, a voz chama o outro nmade; ou ento, ela o chama a devir nmade.
Ela lhe lana um nome nmade, que uma precesso de seu nome prprio. Que o chama a
sair de si, a dar voz, por sua vez. A voz chama o outro a sair em sua voz. Preste ateno,
escute.
A msica , antes de tudo, uma desterritorializao da voz, que se torna [devient] cada vez
menos linguagem A voz est muito adiantada em relao ao rosto, muito adiantada
Maquinar a voz a primeira operao musical necessrio que a voz atinja ela mesma um
devir-mulher ou um devir-criana. E eis a o prodigioso contedo da msica a voz musical
que se torna ela prpria criana, mas, ao mesmo tempo, a criana se torna sonora, puramente
sonora
o prprio balanar de minha voz tira tanto de meu esprito, que no o acho, quando o sondo
e o emprego parte de mim.
Valry dizia (tira um volume de seu bolso, e l): a linguagem sada da voz, mais
do que a voz da linguagem
E por isso que ele podia dizer: a voz define a poesia pura.
A poesia no falaria, ento?
Sim, ela fala, mas fala sobre esta palavra que no executa uma lngua, e da qual, ao
contrrio, sada da voz, uma lngua vem de nascer. A voz a precesso da linguagem, ela
a iminncia da linguagem no deserto no qual a alma ainda se encontra s.
O senhor dizia que ela fazia vir o outro!
Com certeza, assim que a alma est s: no solitria, mas com o outro, no chamado
do outro, e s no que tange aos discursos, s operaes, s ocupaes.
Com efeito, a prpria alma que a voz chama no outro. assim que ela faz vir o
sujeito, mas ainda no o instala. Ela o evita, pelo contrrio. Ela no convoca a alma a se
ouvir, nem a ouvir discurso algum. Ela o chama, o que significa apenas que ela o faz
tremer, que o comove. a alma que comove o outro na alma. isso, uma voz.
Em portugus perde-se a o vnculo etimolgico dos trs termos, em relato (rcit ). Em francs,
recit, rcitation, rcitatif. (N.T.)
48
Philippe Lacoue-Labarthe. Portrait de lartiste, en gnral [Retrato do artista, em geral]. Paris :
Christian Bourgois diteur, col. Premire Livraison , 1979, p. 90 [retomado em Philippe LacoueLabarthe. crits sur lart. Genebra : Les Presses du rel, col. Mamco, 2009 (N.T.)] ; e L Allgorie
[seguido de Un commencement de Jean-Luc Nancy (N.E.F.)]. Paris ; Galile, col. Lignes fictives ,
2005, p. 19. Vou falar aqui do relato e de Philippe Lacoue-Labarthe. De um e do outro e de um para o
outro. Do relato que ele fez de sua vida, da vida do pensamento que ele tirou dos relatos.
49
Respectivamente, de Marcel Proust e Lawrence Sterne. (N.T.)
II
Auto- ou alo-grfico, o relato procede de uma dupla necessidade. De um lado, ele
deve ser recitado: deve ser enunciado, pronunciado, e at mesmo deve ser anunciado,
deve se introduzir enquanto relato. H sempre um era uma vez que esconde ou
revela um tempo preciso, ou que um tempo preciso esconde e revela, mesmo que esse
tempo seja imaginrio (assim Faulkner joga ao comear Velho Pai em Se eu me
esquecer de ti, Jerusalm por Havia uma vez (era no Estado do Mississipi, no ms
de maio, quando da inundao de 1927) []50 ). Nessa medida, ele exige seu sujeito,
seu recitante, sua voz. Em Havia ressoa musicalmente, ser preciso voltar a isso
um proferimento, ou uma articulao vocal. Se h texto, discurso ou como se quiser
dizer, que no seja relato (o que talvez no seja seno uma hiptese-limite, a de um texto
exclusivamente matemtico, por exemplo, se isso existe e se um exemplo e no o caso
nico) ou que no seja relato em algum respeito ento tambm um texto sem voz e
sem enunciador, o que consiste a dizer que no um texto.
De outro lado, em compensao, desde que o relato seja ao menos virtualmente
presente e ele pode, at deve s-lo, sobre o fundo do poema, do texto filosfico,
jurdico ou cientfico, e de tudo o que faz em suma diegese e no mmese, tudo o que
no declarao em primeira pessoa, ou seja, tudo o que no supe que o falante fale
com efeito em nossa presena ele implica ento seu recitante, seu sujeito ou sua voz
enquanto ausente, mas indicado ou sugerido nessa ausncia: ele o destaca como subjectum ou sup-positum, ele o pe em borda, em retirada, em recuo da recitao ela
mesma.
O relato pode, alis, ir buscar esse sujeito para faz-lo vir em presena,
desmascarando-o de alguma maneira, como quando Henry James faz de repente falar o
narrador em primeira pessoa, aps t-lo guardado trezentas pginas na ausncia do
narrador clssico (em O que Maisie sabia). Um procedimento desse gnero no faz em
suma seno mostrar o quanto a separao da diegese e da mmese frgil na medida em
que a presena em pessoa se mostra em si mesma o equivalente e o substituto de uma
ausncia. Literatura talvez queira dizer: enunciado por ningum [personne] e
recitar poderia ser o nome dessa enunciao que no a minha , no sentido em
que ela o na palavra da vida ordinria e no literria. Pelo menos supe-se que ela seja,
50
William Faulkner. Vieux Pre . In : Si je toublie, Jrusalem. Tr. fr. Maurice Edgar Coindreau
revisto por Franois Pitavy, texto apresentado et anotado por Franois Pitavy. In : uvres romanesques
III, Andr Bleikasten, Michel Gresset et Franois Pitavy (eds). Paris : Gallimard, col. Bibliothque de la
Pliade , 2000, p. 17. (N.E.F.)
pois evidente que at mesmo a mais simples tomada de palavra [parole] implica que
eu [moi] que falo deve, enquanto eu [je], sujeito de minha fala [parole], e ao
mesmo tempo que avano como locutor, recuar na intercambiabilidade de todos os
eus , que somente, em si mesma, uma condio geral da linguagem enquanto fala
[parole].51
Assim sendo, o relato caracterizado histria, narrao, romance, novela no
nada seno o tratamento especfico e a intensificao de uma condio muito geral da
fala [parole] da linguagem em ato, da linguagem liberada da lingustica, no da lngua,
pois esta impregna e colore o ato e que a condio da oralidade. Essa ltima
enunciao, proferimento, endereamento est longe de se limitar instrumentao de
um aparelho fonador. A oralidade no a nica fonao: o corpo emissor, o corpo
aberto ao fora como emissor do seu dentro que no se d seno nessa emisso. A
produo vocal pe em jogo uma ressonncia do corpo pela qual dentro e fora se
separam e se respondem e cuja abertura inicial, no preciso duvidar, da ordem do
grito e do canto conjugados, do sinal e da invocao (poderamos retomar aqui todos os
valores religiosos, jurdicos e polticos ligados emisso da voz e mesmo ao
vocabulrio da vox assim como em grego ao do opa/epos). Como vemos,
reencontraramos nossa literatura em seu nascimento, e a reencontraramos a ornada
com a solenidade de um proferimento que sabemos pr em jogo nada menos do que a
possibilidade de produzir fora, no mundo, isto ou este que pesquisa sobre o sentido ou a
verdade do mundo, ou seja, sobre o seu fora absoluto (reversibilidade: o dentro do corpo
o fora do mundo, e vice versa). Nada tem lugar aqui que no implique uma dupla
dissociao: a do mundo dado e de um sentido incorporal (como diziam os
estoicos), e a do recitante enquanto ele se recita, ou ento o que d no mesmo
enquanto ele se divide, produzindo-se como recitante, entre recitante e recitado.
O que chamamos de escrita, com o valor moderno da palavra, no seno a forma
em que se exemplifica se amplificando pela inscrio material onde se retm e se
expe o movimento o percurso do pro-ferimento e pro-duo, a facilitao52 do
sentido tendido rumo a sua escapada. Na escrita se inscreve concretamente, com essa
escapada infinita, a dissociao do sujeito da fala [parole].
O relato procede dessa dissociao. Ele remete a ela: no somente o que ele conta
precedeu o relatrio que faz dela, mas mesmo se ele fala no presente esse presente dito
narrativo ou ento o presente de uma declarao mimtica - ele no pode deixar
de abrir um afastamento, pelo qual se mostra precedendo-se a si mesmo. Sempre um
recitante ter tomado a iniciativa de recitar, ou ento ter recebido a sua injuno. Na
verdade, a fala [parole] comporta uma antecedncia absoluta: nela, eu [je] recua
aqum do eu [moi] que fala mas assim que ele vem a si. Nenhum eu [je] vem a
ser eu [je] seno recitando-se como tal ou sendo o recitante de algum relato.
51
Em francs, parole significa em portugus tanto palavra, quanto fala, na dicotomia de Saussure, por
exemplo, langue/parole, lngua/ fala. Optou-se por um ou por outro termo, conforme o contexto. (N.E.)
52
Frayage a traduo francesa da noo freudiana de Bahnung, traduzido em geral em portugus
por facilitao. O termo aparece muito cedo em Freud na descrio do aparelho neurolgico humano,
descrevendo a operao por meio da qual qual uma excitao abre passagem de um neurnio ao outro
vencendo uma certa resistncia. (N.T.)
III
S o relato pe em obra a tenso espera e ateno53, para alm de toda inteno
na qual se d a sentir o irrecusvel e irredutvel privilgio do caminho, da via, do mtodo
tal como a filosofia o reconhece, mas, mesmo o reconhecendo, no pode se impedir de
tendencialmente reduzir e de reabsorver. Se, como o diz Hegel, o Verdadeiro o
resultado mediante o caminho, isso significa - para terminar - que o caminho
integrado, engolido no resultado, do qual ele ter sido o meio. assim desde a dialtica
platnica e o caminho ascendente ao cu das Ideias e do theos. O Verdadeiro no est
tampouco no caminho enquanto interminvel, nem enquanto privado de termo e de
direo caminho que no leva a parte nenhuma e se perde nos bosques 54 , que
Descartes ensinava a atravessar sempre em frente diante de si: pois, neste caminho, a
nulidade de direo e de destinao que, a cada instante, a cada passo, se cumpre como
verdade e confere ao caminhar, de maneira subreptcia, a qualidade de um resultado.
Em todos os casos de caminho filosfico e metdico, o resultado pressuposto. Essa
pressuposio pode permanecer relativamente indeterminada; maneira da intuio
cartesiana, da liberdade kantiana, ou do absoluto hegeliano, nem por isso ela deixa de
ser posio prvia, reserva j formada e proviso de rota. Apesar dos trajetos
considerveis que os filsofos sabem cumprir, as distncias que eles franqueiam, seus
caminhos, recobrem uma imobilidade secreta. Essa imobilidade procede de seu olhar
fixado mesmo que atravs dos olhos cerrados sobre a ideia do resultado, do
preenchimento da inteno e da reabsoro da tenso. O caminhar pode e deve se
regular por essa ideia: ele deve ser de tal maneira que de seu trajeto e de seu andamento
possa se seguir uma resultante, uma consequncia, que em troca clareie o caminho por
inteiro e justifique o seu traado. Este se ter regulado pelo seu fim, ter tido seu fim por
regra, por guia e modelo: caminho mimtico da meta, movimento que imita a estao.
Todo o pensamento de Philippe Lacoue-Labarthe procede de uma recusa profunda,
inicial e radical, dessa conformao mimtica. Ele reconheceu muito cedo nela a
sujeio e a imobilidade a fixao tipolgica contra as quais o animava uma revolta
essencial. Quero propr aqui que essa revolta procedia de um sentido no menos
profundo e no menos inato nele do relato mesmo que ele nunca tenha praticado
verdadeiramente o seu exerccio, ainda que o tenha abordado e que esse sentido do
relato se desabrochasse em ateno para com a msica que ele distinguia,
precisamente, do exerccio mais ordinrio do relato. No quero faz-lo me prendendo
letra de seus textos, mas me esforando em alcanar seu movimento de fundo, a partir de
uma considerao do relato que esboo minha maneira, e correndo meus prprios
riscos, em sua memria.
53
Jean-Luc Nancy joga aqui com os parnimos, attente, espera, e attention, ateno. (N.T.)
Em francs, chemin qui ne mne nul part remete traduo francesa do ttulo da coletnea de ensaios
Martin Heidegger, Holzwege. (Martin Heidegger. Chemins qui ne mnent nulle part. Trad. Wolfgang
Brokmeier. Paris: Gallimard, col. Tel, 1962.) (N.T.)
54
Ou antes: esboo-a a fim de prosseguir minha maneira o relato de sua vida e de seu
pensamento, o relato que foi seu pensamento, a recitao do interminvel romance de
sua existncia terminado precocemente demais.
IV
Digo romance para dizer o que para ns subsume ou representa exemplarmente o
relato. A saber, no a narrao de aventuras pitorescas e de episdios altos em cores
(no o romanesco), mas o pensamento que se mantm sob o signo maior da chegada
[arrive], da sobrevinda e do desaparecimento. O pensamento que obedece ao que
Philippe assim enuncia: Aquilo que preciso pensar o Acontece que. [Il arrive
que].55
Ora, este Acontece, a primeira condio para pens-lo compreender que o sujeito
desta frase, o ele de (ele) acontece indissociavelmente impessoal e pessoal. Que
acontea isto ou aquilo, que um isso acontea no se produz efetiva e plenamente
no acontece, portanto seno quando este ele se torna algum. No mais ento
(ele) acontece que , mas ele acontece curto e grosso. Acontece que Ele
acontece. Todo o pensamento de Philippe ter sido virado em direo a revirado, e
transtornado por essa obsesso de que Ele acontece, Ele, ele mesmo,
propriamente, enfim que ele acontea a si mesmo, que ele se acontea.
Que algum acontea, to pouco e to pouco determinvel quanto o evento do
nascimento (na mesma passagem de texto, ele fala de ns a quem foi dado
nascimento ). Esse evento, ns o sabemos, um advento sempre diferido. Nascer
parece pontual, mas comea antes da vinda ao mundo e dura como Freud o sugere
at a sada do mundo. Nascer se prossegue em morrer.
Eis por que ele Philippe prossegue escrevendo: Mas de onde isso pensvel se
no a partir da [] ameaa de que o acontece cesse de acontecer56 ? Ora essa ameaa
est inscrita na natureza e na estrutura do acontecer. Para que isso acontea [arrive],
preciso que parta 57 . preciso que tenha primeiro partido ausente, no dado,
distanciado, at mesmo desviado, inexistente para que isso venha ou volte
[revienne]58. Vir e voltar [revenir] so aqui o mesmo, pois vir volta sempre de uma
mesma anterioridade vazia, vir volta de lugar nenhum, e para l retorna. (Vir, gozar,
claro.)
55
Eis a muito exatamente o que a filosofia ignora, recusa ou conjura. Hegel recusa que
a filosofia tenha um comeo no sentido das outras cincias, quer dizer, na
pressuposio de um objeto particular59 . O saber absoluto no um saber total,
integral e terminal: ele o saber para o qual nada pressuposto como um objeto, mas
que retoma em si todo objeto e dissolve sua objetividade, quer dizer, sua exterioridade.
Saber sujeito de si, retorno em si, no conceito de seu conceito e, por conseguinte,
reabsoro de todo acontecer e de todo vir (Hegel fala aqui de satisfao , ou seja, do
que contradiz profundamente o gozo. Gozar ultrapassa a oposio da satisfao e da
falta. O que tambm pertence ao relato).
Se pode haver uma questo de comeo, em filosofia, ser somente, escreve Hegel,
para consider-lo como uma relao com o sujeito enquanto ele quer se decidir a
filosofar, mas no com a cincia como tal . O comeo exterior ao saber, emprico e
contingente. Est em um Era uma vez um sujeito por exemplo, Georg Wilhelm
Friedrich Hegel que quis filosofar. No fim, me diro, esse sujeito dever justamente
ser reabsorvido no saber de si do saber. verdade, mas essa verdade ela mesma se
rechaa ao infinito para fora de toda apresentao que no seja estritamente o retorno em
si do conceito de seu prprio conceito. O prprio Hegel o sabe: isto, este retorno
absoluto, no acontece propriamente falando. Ele , ao contrrio, o que, no
acontecendo, abre a possibilidade de todo acontecer [arriver] 60.
Ele , este retorno em si, o nada, o insignificante, o inconsistente de uma
anterioridade e de uma posterioridade a todo vir, vir-e-partir. Em Hegel, isso se chama o
ser enquanto cpula vazia . O vazio de ser ou ento o ser vazio, ou seja, a
prpria filosofia [la philosophie mme] forma para Lacoue-Labarthe ao mesmo tempo
o que o relato recusa e o que ele refuta.
Ele o recusa, pois recusa se instalar na pretenso de se apropriar, de reunir o vazio
sua satisfao seja porque ele julga impossvel essa realizao [accomplissement]
dialtica, seja porque teme a sua verdade demasiado insustentvel. Os dois juntos, como
de justia. A recusa tambm um terror.
Mas ele o refuta, pois, abrindo o relato, tentando dizer que acontece, esforando-se
em chegar a dizer que acontece, e a dizer que acontece que [ele] acontece, ele engaja
efetivamente, praticamente e com uma tenacidade exemplar a tenacidade do prprio
recitante a resistncia nadificao mtua do vazio e da satisfao.
no fundo o que ele, Lacoue-Labarthe, chama de mmesis sem modelo ou mmesis
originria. O ele do relato, ele ou eu , pouco importa, compreende-se, ou
59
Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Encyclopdie des sciences philosophiques III, 17. Tr. fr. Bernard
Bourgeois. Paris: Vrin, 1990, p. 183.
60
Ao mesmo tempo, nem por isso a filosofia deixa de supor o seu prprio relato: ela tambm j
comeou antes de comear. Ou bem houve formas prvias, imperfeitas, de logos, ou bem o mythos deve
ser considerado, ao mesmo tempo, como saber ilusrio e como saber tosco, espera do surgimento
lgico . De um modo ou de outro, houve antecedncia, seja da filosofia sobre ela mesma, seja de um(a)
outro(a) alm dela Mais amplamente, nenhum texto filosfico de fato isento de relato. Podemos
mostr-lo sem problema. , portanto, ao mesmo tempo inexato e, no entanto, esclarecedor simplificar
como o fao aqui, reduzindo os textos dos filsofos a suas intenes.
V
Nessas condies, no somente o fecho sobre si do conceito (ou o conceito do
conceito) onde se anula a diferena entre vazio e plenitude, se mostra como um
estrangulamento de si e do si, de todo ele ou algum capaz de acontecer
[arriver] , mas mesmo o caminho caro a Hegel e a toda a filosofia se encontra anulado.
O caminho que importa ao resultado desaparece nele, ou at mesmo como ele.
O relato consiste primeiro em se afastar da metfora do caminho e de todo conceito
de meio, que ele seja ordenado a um fim ou ento ele mesmo mediatizado em fim. O
relato no caminho. Ele a facilitao [frayage], o que totalmente diferente: na
facilitao [frayage], o caminho no nem dado nem aberto.
A facilitao [frayage] abre possibilidade para o recitante de se identificar com
a produo e com o acabamento do prprio relato. Sem essa identificao, o recitante
permanecer perdido aqum e alm dos limites do relato. , bem entendido, o que
acontece com todo relato. Nunca um recitante termina por se fundir em seu relato, assim
como ele no consegue faz-lo reabsorv-lo em si mesmo. O passado do relato ordinrio
no seno um efeito segundo do ser-j-passado, quer dizer, jamais ainda vindo, do
recitante.
O relato ter comeado antes de seu recitante, o qual, no entanto, deve t-lo
precedido: tal a lio da literatura uma lio que a filosofia recusa por princpio, ela
prpria repousando sobre a deciso de ser contempornea de seu comeo. O relato, ao
contrrio, dissocia a origem e o comeo. Quando comea, ele j tem sua origem atrs de
si. Qualquer incio de relato pode nos dizer isso. Quando lemos Por muito tempo, me
deitei cedo 61, aprendemos antes de qualquer outra informao que esse muito tempo
precedeu, longamente, por uma durao irredutvel e que se perde atrs dessa primeira
palavra. E essa extenso de tempo afeta de chofre o eu que quer se falar, que se
escreve aqui. Ela o distende aqui visivelmente, legivelmente, mas cada incipit o
distende do mesmo modo: era uma vez dissocia o recitante dessa vez insituvel
que, no entanto, ele atesta estar em medida de situar.
61
O isso ou este que expira no na fala, mas em fala isso ou este/esta que aqui
nomeado (a) pensamento , na falta de melhor termo, ou seja, na falta de uma palavra
para o que, aqum das palavras, remonta antecedncia absoluta, separao original,
sempre mais recuada do que qualquer designao, de um um , de um qualquer um
sujeito falante, de alguma fala-sujeito. Bem longe de dever ser pensada como separao
para com uma mais ampla unidade, ou ento para com uma unitotalidade (representada
como maternal, ocenica, csmica, como se quiser), segundo o esquema conhecido
( castrao , perda ), essa separao deve ser compreendida como a separao do
um em si mesmo e para consigo mesmo. Esse um que sempre-j foi aquilo que ,
mas que no o torna seno expirando morte e fala juntas, fala e sopro indo se perder
para se encontrar, formados em trao de unio entre o imemorial e o inadveniente.
62
Cf. Philippe Lacoue-Labarthe. Musica ficta. Figures de Wagner. Paris : Christian Bourgois diteur,
col. Dtroits , 1991, p. 160, onde essa falha imputada arte que se quereria a ela mesma : a
ausncia do sujeito se mostra assim formar a mola ntima da arte (como da religio, segundo a passagem
em questo mas a uma outra questo, se a arte ela mesma cesura da religio , como o afirma a
concluso do mesmo livro). [ Philippe Lacoue-Labarthe quem sublinha. (N.E.F.)]
63
Referncia noo formulada por Jacques Derrida, num ensaio clebre de mesmo titulo. Ver supra p.
XX (N.T.)
64
Philippe Lacoue-Labarthe,, Phrase. Paris : Christian Bourgois diteur, col. Dtroits , 2000, p. 45.
[ Philippe Lacoue-Labarthe quem sublinha. (N.E.F.)]
VI
A recitao o regime desse trao de unio, desse trao estirado do antes ao depois e
do dentro ou do em-si ao fora ou ao para-si, que so os dois polos da infinita toro pela
qual um se busca e, sem nunca se achar, todavia se estende e se estira, se traa e se
retira, se inspira e se expira.
A recitao recita essa ins-ex-pirao, a subida e a cada, a batida, o batimento desse
sopro. Citare pr em movimento, fazer vir a si (o verbo latino parente do grego
kinein: h cinema em todo relato). Ex-citare despertar, sus-citare, fazer se levantar (e
re-sus-citare no est longe), in-citare, lanar adiante. Todas essas moes e emoes se
jogam na recitao: ela excita, suscita e incita um dizer , que no qualquer um, mas
o dizer que diz uma chegada e uma partida, que diz a tenso do fato de que alguma coisa
acontece [arrive] e que essa alguma coisa, necessariamente, seja algu-m [quelquun]
ou se torne ou chame algum65. Que este algum seja visado como autor ou como
heroi , que ele seja tomado a uma histria pessoal ou imaginria, importa pouco,
ou s importa, na medida em que leva em conta a extraordinria riqueza de
possibilidades recitantes, a multiplicidade indefinida dos contornos de narrao: essa
profuso responde ausncia de um Relato nico e essa ausncia est inscrita no fato
do prprio relato, em sua presena universal entre os falantes. Pois o relato faz acontecer
isto: que nada acontece sem relato.
A recitao, com efeito, no se contenta em dizer no sentido de pronunciar,
exprimir, contar eventos que tiveram lugar. Ela os faz advir, ela os faz evir66. Nada se
passou seno o encadeamento dos fatos pelo tempo (mas esse tempo no nunca muito
longo) em que esses fatos no so apreendidos, carregados, impelidos em direo sua
manifestao. Essa impulso obra da fala. Ela no uma ferramenta, ela ela mesma
em sua fonao assim como em seus fraseados, suas sintaxes, suas prosdias a
impulso ou a pulso do sentido . O sentido no acrescentado nem suposto aos
fatos, ele o seu acontecer, o seu vir. Ele em suma o fato do fato, a impulso e a
pulsao que o pem no mundo e que fazem assim um mundo , quer dizer, um espao
de circulao de sentido.
O mundo um mundo de relatos, de recitaes de relatos. A comear por todos esses
relatos do mundo que todas as culturas sempre recitaram e das quais a nossa prpria
literatura em suma, por sua vez, o relato: ela se esfora em contar onde e como
estamos, no somente com esse fato do mundo e de nosso estar-no-mundo, mas o modo
como nos reportamos aos nossos prprios relatos do mundo, sua antiguidade e sua
perda, ao que nos parece por isso serem iluses ingnuas ou promessas frustradas. Como
interrompemos os mitos e quais vozes se pressionam para falar atravs dessa
interrupo. O mito um mundo se recitando ele mesmo, uma tautegoria como dizia
65
Quelquun, algum, que Nancy escreve quelquun (literalmente algu-m) para sublinhar a
partcula um (N.T.)
66
Mot-valise construdo com as palavras vnement, evento, acontecimento e advenir, advir, gerando
um neologismo, uma forma verbal de vnement, diferente de arriver (acontecer). (N.T.)
VII
Eis por que o relato vem aps. Vem aps nada e aps tudo: aps sentido algum que o
teria precedido, e aps tudo, pois tudo se depe sempre fora-de-sentido, em blocos
errticos. O relato volta. Recitare recomear o chamado dos nomes no tribunal. Os
nomes que o recitante chama a comparecer so seus prprios nomes seus nomes
prprios jamais inteiramente apropriados, em sua no-significncia, a essa propriedade
insigne, inominvel, que forma a verdade do que acontece [arrive], a verdade de sua
chegada [arrive], a verdade da histria contada, recitada, verdade chamada, invocada,
evocada, inverificvel, ela mesma errtica e espalhada por toda parte no relato, tecendo
o prprio relato sem nele se mostrar seno pela arte do recitante. O que se chama de a
arte , aqui como alhures, um saber das verdades inverificveis e modeladas,
figuradas, desfiguradas e transfiguradas ao ritmo e velocidade de uma narrao. ( [A
figura no jamais uma [] no h unidade ou estabilidade do figural, nenhuma fixidez
ou propriedade da imago. Nenhuma imagem prpria onde se identificar em totalidade,
nenhuma essncia do imaginrio68. )
Pois a narrao saber (gnarus, co-gnosco, i-gnoro): ela saber que reporta, que
relata aquilo que teve lugar, que isso teve lugar e como ele teve lugar, como, portanto, a
ordem e a sucesso das coisas foram encontradas e se encontram modificadas,
moduladas, alteradas. No um saber das coisas aprendidas (mathmata), o saber das
coisas tais como elas se prendem e se desprendem segundo a sua provenincia e a sua
destinao incalculveis.
O relato ou a narrao supe o curso das coisas, e que ele tenha sempre-j comeado.
L onde a filosofia quer supor e se impor o prprio comeo, o ponto da origem e do
fim, o relato sabe que esses pontos esto no infinito e segundo o infinito se alcanam e
se anulam juntos, numa idntica ausncia de dimenso. Com o relato, desposa-se a
prpria dimenso: a distenso do sempre-j e do nunca-ainda, a suspenso do evento.
67
Tautegoria, termo que Schelling encontra em Coleridge, num artigo sobre o Prometeu de squilo. A
mitologia para Schelling tautegrica e no alegrica, ou seja, deve sere entendida segundo os termos que
ela exprime e, em sentido prprio, no por outros termos, em sentido figurado. (F. W.J. Schelling,
Philosophie de la mythologie. Trad. Alain Pernet. Grenoble: ditions Jerome Millon, 1994, p. 91.) (N.T.)
68
Philippe Lacoue-Labarthe. Lcho du sujet . In : Le Sujet de la philosophie. Typographie I. Paris :
Flammarion, col. La philosophie en effet , 1979, p. 261. [ Philippe Lacoue-Labarthe quem sublinha.
(N.E.F.]
Mas como estabelecer o momento exato em que uma histria comea? Tudo j
comeou desde sempre []69 , escreve Italo Calvino.
Tomando um relato de Faulkner que Philippe amava, Enquanto agonizo, leio a
primeira frase: Jewel e eu voltamos do campo70. Tudo j est dado, tudo j foi dado,
comeado e continuado at o momento em que leio. Jewel e eu so conhecidos, assim
como o campo e como esse momento do retorno, numa hora indeterminada. Bem longe
da ironia de Valry sobre as sadas da Condessa ou da Marquesa71, essa frase traz
consigo um ritmo, um passo, uma proximidade j marcada pelo trao sonoro de um
nome uma jia? e desse outro trao que a primeira pessoa de um falante. Ele est
ali, ele nos fala. Partimos com ele, em seu passo. J partimos.
Aproximadamente duzentas pginas adiante, o relato se encerra com essa frase: Eu
lhe apresento a sra. Bundren, que ele diz assim72. A concluso, antes cmica ou
cnica a substituio da esposa morta que verdadeiramente acaba a histria, se junta
ressonncia ela mesma irnica, mas tambm vaga, indeterminada do assim dessa
fala, que abre de fato uma outra histria possvel.
Por mais implacvel que seja o fim do relato, ele ressoa alm dele. Ele abre seu
desobramento [dsuvrement] no sentido de Blanchot. Assim como o fim de Sob o
vulco,73 com o qual Philippe tinha uma ligao por laos literrios tanto quanto por
identificao.
O Cnsul cai no vale do vulco e seu grito foi lanado de uma rvore a outra, no
retorno de seus ecos; depois, foi como se as prprias rvores se aproximassem, se
apertassem, se fechassem acima dele, plenas de piedade... . A essa ressonncia do
ltimo grito sucede, na linha seguinte, esta frase: Depois dele, algum jogou um co
morto [crev] no vale74. Esta coda, que podemos dizer muito expressamente musical,
retoma e amplifica, com uma preciso estranha, para o relato inteiro a tonalidade do
grito. No trecho, e para permanecer no francs, o morto relana o grito ao mesmo
tempo que o abafa.75 Uma sonoridade tanto extinta quanto interminvel mantm aberta a
voz, o tom e o canto do relato.
69
Que isso j comeou e que isso continue para alm de todo fim narrativo, o que
a msica d luz. O trao comum da msica e do relato se liga a uma precedncia e a
uma subsequncia sempre abertas. O que ouo quando a msica comea , j
comeou. O que deixa de se fazer ouvir quando a msica se extingue, ressoa ainda. No
canto escreve Lacoue-Labarthe exige-se da voz algo diferente do que ela faz
espontaneamente, exige-se talvez que ela reencontre um pouco da msica de antes (do
nascimento) []76 .
A msica no mobiliza somente a ressonncia atual dos sons que ela amplifica,
intensifica, trabalha e modula. Ela mobiliza sua ressonncia anterior e posterior, o
inacabamento e o incomeo que pertencem por essncia ressonncia. A repetio
retomada, retorno, tema e variao, melodia obcecante, da capo, etc. que assombra a
msica, que a pontua e a escande, governa o re- do relato, a iterao que retoma e
relana o que jamais teve lugar e que no ter lugar , mas que define o momento
musical: a passagem do tempo para fora do tempo, a composio dos presentes passados
e por vir num presente que no o da presena dada, mas o do lembrete e da espera, o
presente composto de uma tenso em direo ao retorno infinito de uma presena nunca
dada, sempre essencialmente eternamente escapada.
Um mestre de canto dizia a seu aluno: Voc no deve de modo algum fazer sentir
que comea. Isso j comeou a cantar.
Essa distenso do presente, essa dilatao da presena alm dela mesma e at uma
ausncia plena de seu prprio batimento, preenchida pelo chamado repetido do ausente
tomado por seu desejo de se atingir77 , justamente o que faz o fundo verdadeiro e o
que est em jogo no relato.
A msica um relato. No uma histria. No aquilo que se tenta inventar para
transformar uma msica em relato, como quando se diz que a clarineta dialoga com a
orquestra ou que o movimento vivo vem substituir e arrastar em sua fuga o que o
movimento lento tinha deposto e como que abandonado ou ento o inverso, pois quase
tudo pode ser dito quando nos engajamos nesse registro. No entanto, podemos e
devemos nos engajar nisso, contanto que no imaginemos aventuras nem peripcias
entre personagens, paisagens e imagens. Precisamente, o sem-imagem aqui
determinante (o sem-imagem ou a desestabilizao ntima da imagem, tal como ela foi
evocada): ele est a, se se pode dizer, para dar lugar ao elemento que denomino aqui de
relato : quer dizer, o vir-e-partir ou ento o recitar-se e citar-se, chamar-se e ouvirse, mas perder-se tanto quanto encontrar-se nesse eco de si.
O Eco do sujeito [Lcho du sujet], ttulo de Lacoue-Labarthe Ttulo, poderamos
dizer, de toda sua obra e ttulo de sua vida, de seu relato. Num eco, eu me encontro e me
perco. Ressoo no espao que deve ser aberto para permitir a ressonncia. No lugar da
76
Ph. Lacoue-Labarthe. Le Chant des Muses [O canto das musas]. Paris : Bayard, col. Les petites
confrences , 2005, p. 29-30. [ Lacoue-Labarthe quem sublinha). (N.E.F.)]
77
Ph. Lacoue-Labarthe. Lcho du sujet . In : Le Sujet de la philosophie, op. cit., p. 226.
VIII
A recitao musical no , para Lacoue-Labarthe, ou no essencialmente, nem
primitivamente, a da melodia. A linha meldica pode se fechar sobre uma figurao
subjetiva (um lirismo, uma expressividade, uma efuso tais como eles tm sido
compreendidos desde o romantismo)78. O batimento rtmico toca na estrutura do Sujeito
enquanto tal79, quer dizer, na diferena e diffrance entre si e si mesmo, no Um
diferindo dele/nele mesmo de Herclito.
O batimento dessa diferena/diffrance no sobrevm a um Sujeito dado: ele lhe abre
a possibilidade, a chance e o risco. Ele nasce na pulsao arcaica em torno da qual
respirao, corao, escuta, dentro/fora se cristaliza originariamente o enigma de
algum/alguma.
O ritmo engaja o tempo de uma relao consigo abrindo-o, em seu meio, ao
suspenso da batida, cesura ou sncope que liga e desliga os tempos nesse tempo. A
msica por excelncia j comeou e prosseguir mais longe no silncio. Sem dvida no
h silncio sem ritmo80. No h silncio. No precisamos pensar nas introdues em
pianissimo: quando o primeiro compasso da Grande Fuga de Beethoven (mais uma de
suas referncias) faz irrupo no silncio, cortante ou dilacerante, exigente, imperioso, o
nico ataque do som e o impulso de seu movimento revelam uma anterioridade que se
poderia dizer tonal e rtmica (a melodia no viria seno depois).81 J ouvamos algo do
que era inaudvel. J um impulso, uma pulso e uma pulsao por trs do som dos
instrumentos, em uma arqui-sonoridade que de alguma maneira a sonoridade em si [la
sonorit mme]: a abertura da possibilidade do eco. (Pode-se dizer disso o mesmo, para
acrescentar uma de suas referncias, de um certo ataque de saxofone de Albert Ayler em
Love Cry.)
78
A propsito de romantismo musical, conviria abrir aqui um exame do lied forma amada por Philippe
como por todo um gosto contemporneo cujos mveis profundos se atm certamente a isto: o lied, na
maioria das vezes um pequeno relato, se ensaia num equilbrio delicado entre melodia e ritmo, ou ainda,
para antecipar sobre aquilo que vir mais longe, entre ria e recitativo. Ele permite a efuso cantante tanto
quanto a pulsao falante, bordejando uma pela outra. Quando bem sucedido, isso se ouve.
79
Do Sujeito maisculo distinguido do sujeito minsculo, como ele escreve na pgina 149 de Musica
ficta. [A citao ( lUn diffrant en lui-mme ) modificada por Jean-Luc Nancy. (N.E.F.)] Trata-se
do fragmento 51 de Herclito: Eles no compreendem como o que se ope a si mesmo concorda consigo
mesmo: ajuste por aes de sentido contrrio, como o arco e a lira. Em grego: hen diapheron heauto,
que Hlderlin compactou como: O um se diferenciando de si mesmo. (Diels, fragmento 51; Fragments.
Trad. M. Conche. Paris: PUF, s/d, p. 425; Hlderlin. uvres. Philippe Jaccottet (dir.). Paris: Gallimard,
col. Bibliothque de la Pliade , 1973, p. 145.) (N.T.)
80
No tampouco com certeza fcil separar sem resto o ritmo da melodia. Mas essa uma outra
questo.
81
A Grande Fuga em si bemol maior de Beethoven o quarteto de cordas opus 133, originalmente
quarto movimento do quarteto, opus 130, e depois editado separdamente. uma das ltimas obras de
Beethoven. (N.E.)
Antes da msica e antes da fala, como seu obscuro impulso comum, h o que se
nomear o recitativo. No no sentido estritamente musicolgico do termo (que, alis,
tem variado e que atravessa hoje to amplos territrios musicais82), mas no sentido com
que ele designa ao mesmo tempo o que, da fala, precede o canto, vai em direo a ele
sem se destacar na forma de uma ria , e o que, da msica, entra na fala para dela
espaar o tempo e ergu-la de uma cadncia alheia a seu sentido. Nem declamao que
se regula por um pathos nem canto conduzido por um melos , o recitativo forma um
ethos: uma postura, uma conduta da linguagem. Essa conduta que de chofre lhe
reconhece um antes e um depois , que sabe que ele vem de mais longe e vai mais
longe do que sua constituio lingustica e sua emisso fontica. O recitativo desperta e
mantm na lngua a voz que a profere enquanto ele chama e retm na msica o sentido
que ela a nica a fazer vibrar.
Recita-se dessa maneira uma histria cuja intriga ou aventura toda no se ata sem
desatar de momento em momento a sua progresso numa cadncia, nem sem arrastar sua
significao numa pulsao que repe em jogo, incessantemente, o nascimento da fala: o
abalo desse eco pelo qual um sujeito se sabe e se sente aqui uma mesma coisa
precedido e seguido por ele mesmo numa alteridade infinita, eterna. Perdido, por
conseguinte, mais longe do que todo relato, mas recitante dessa perda a que ele d o
nome de a perda de
[] sua prpria
voz, que no nos pertence mais do que nossa
maneira de nos mover ou do que nosso olhar83.
Ento
No se descobre o que se esperava ver, mas uma extenso sem sombras, sem
nada que a divida (como o mar quando nenhum sopro o ergue e quando repousa
no cintilante, mas imvel fulgurante a no v-lo), num rumor quase
dilacerante84
82
preciso analisar como o destino contemporneo da msica, desde Wagner e Debussy passando por
Schnberg, Berio ou pelo blues, Miles Davis, alguns aspectos das msicas pop e rock e at as msicas
eletrnicas e o rap, algo de recitativo penetrou l onde s se conhecia apenas a ria , e talvez
justamente demasiado a bela ria [bel air] . Bem longe de estar a servio da ao para melhor dar
seu lugar s rias, como foi o caso na pera clssica, o recitativo reencontra, sem dvida, contra a ria
ornamental, um valor menos ligado linguagem que pulsao de fala, salmodia, melopeia,
antfona quer dizer, tambm ao responso e assim, atravs de uma outra forma do eco, ao passado
religioso do recitativo. Sem dvida o relato tem sempre parte ligada, seno com a religio, pelo menos
com uma sacralidade que a da alteridade que nos precede e nos sucede. Cesura da religio , dizia
Lacoue-Labarthe.
83
Philippe Lacoue-Labarthe. Phrase, op. cit., p. 130.
84
Id., L Allgorie , op. cit., p. 17 ( Rcitatif ). [Os itlicos so de Philippe Lacoue-Labarthe.]
(N.E.F.]
Jean-Luc Nancy escreve entre aspas a frase Il nest point de mtalangage. A soluo tradutria
encontrada levou em conta certa historicidade. Ao mesmo tempo em que Nancy participa da tradio
lacaniana (do il ny a pas de mtalangage), ele joga com a sentena, quase consolidada por Lacan,
preferindo a forma arcaizante da lngua francesa. A expresso negativa formada por point constitui um
recurso estilstico, alm de uma negao mais insistente no estar das coisas. Certamente ainda poderamos
propor a soluo, mais analtica, por no existe nada que seja a metalinguagem. (N. T.)
A expresso francesa nous nous reprsentons que assume aqui uma importncia significativa e, por
isso, foi mantida em portugus, mesmo sendo no usual. O jogo entre representao e o dar-se conta seria
perdido sem a manuteno desse arcasmo na traduo. (N.T.)
87
Ele escreve em sua Carta sobre o romance que conviria criar uma teoria do romance que seria teoria
no sentido original do termo: uma intuio espiritual do objeto em um estado de esprito inteiramente
sossegado, sereno, assim como convm para a celebrao alegre quando se contempla o jogo significativo
de imagens divinas. Tal teoria do romance deveria ser ela mesma um romance que reconstituiria
visionariamente cada uma das tonalidades eternas da imaginao visionria e que se dispersaria
novamente no caos da cavalaria. (eine Theorie des Romans, die im ursprnglichen Sinne des Wortes eine
Theorie wre: eine geistige Anschauung des Gegenstandes mit ruhigem, heitern ganzen Gemt, wie es
sich ziemt, das bedeutende Spiel gttlicher Bilder in festlicher Freude zu schauen. Eine solche Theorie des
Romans wrde selbst ein Roman sein mssen, der jeden ewigen Ton der Fantasie fantastisch wiedergbe,
und
das
Chaos
der
Ritterwelt
noch
einmal
verwirrte.)
Texto
alemo:
http://www.zeno.org/Literatur/M/Schlegel,+Friedrich/%
C3%84sthetische+und+politische+Schriften/Gespr%C3%A4ch+%C3%BCber+die+Poesie. Texto francs
em Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy. LAbsolu littraire : Paris, Seuil, 1978, p. 328 (traduo
modificada pelo autor).
Esse ter precedido: eis o que se diz frequentemente. O que se chama um futuro
anterior. Mas o futuro anterior se encontra de alguma forma desdobrado neste caso:
no somente isso ter tido lugar88, mas o que ter tido lugar no designado seno
como o fato de preceder. Neste desdobramento figuram duas atestaes: por um lado,
nada teve lugar seno um ter lugar indeterminado ( um dos sentidos possveis do
nada ter tido lugar seno o lugar de Mallarm); por outro lado, os diversos valores
do futuro anterior jogam juntos: o valor da conjectura (no absolutamente certo que
isso tenha tido lugar), o valor de nfase ( necessrio que tenha tido lugar um
acontecimento grandioso); o valor da antecipao (que supe um contexto tal como:
um dia se revelar que isso ter tido lugar).
A conjuno destes trs valores compe o sentido que temos dado hoje escrita.
Se escrever no consiste em transcrever dados prvios acontecimentos, situaes,
objetos, suas significaes mas em inscrever possibilidades de sentidos no dados, no
disponveis, abertos pela escrita em si, ento deve-se considerar:
-
em primeiro lugar, que nenhum dado precedeu, seno a abertura em si, que no um
dado, mas o dom em si pois no se deve entend-la como a abertura de um tnel,
slido e fixo, mas como a de uma boca, mvel merc de falas pelas quais se afeta, ou
ainda como a de uma pera, que se precipita para dar o tom, lanar o movimento, abrir a
barra da cortina do palco;
depois, que nada certo ao sujeito quanto ao que pode ter precedido sem, contudo,
nenhuma precedncia, nenhuma anterioridade; Escrever ler onde no h nada
escreve Philippe Grand89; mas tambm possvel que tudo tenha tido lugar, tudo, o
mundo inteiro, e que lamos no grande livro de deus ou da natureza: tudo retorna ao
mesmo, isto , retorna a lugar algum;
finalmente, que o que teve lugar antes do que tenha tido lugar seja l o que for esse
livro vazio ou essa ausncia de livro, essa ausncia de eu entre meus dois pais, esta
origem sem orifcio (ou ento o inverso) constitui um acontecimento da maior
importncia, to verdadeiramente considervel que a consider-lo que a escritura se
consagra.
A escrita se consagra a considerar o acontecimento que no teve lugar ou cujo ter lugar
apenas pode permanecer conjectural, tanto que recolhido para junto de todo vestgio,
de todo rastro que se poderia encontrar. Este acontecimento de fato no ele mesmo
seno o preldio do rastro, o entalhe da linguagem: o envio do sentido.
Indiferentemente, ou ainda encaixados um no outro, a criao do mundo, a apario do
homem, o achado da linguagem.
Em essncia, este envio precede todo sentido possvel. Mas preceder remete
aqui a desaparecer na ausncia pura de toda anterioridade, no j-passado de toda
passagem. o que a escrita sabe e o que ela pe em obra.
A literatura sabe que nada precedeu. Cada escrita abre o rastro. O mesmo rastro
que assinala a passagem de nada, a passagem do ausente: aquele que me precedeu. Podese nome-lo o morto. No a morte, que no nem uma coisa, nem uma pessoa, mas
88
A sentena cela aura eu lieu, no original, configura o prprio acontecimento, com o sentido de isso
aconteceu. No entanto, e, como ser mostrado logo adiante no texto, h um jogo entre a sentena de
Nancy e o verso de Mallarm, rien naura eu lieu que le lieu, traduzido por Haroldo de Campos por
nada ter tido lugar seno o lugar. A noo espacial importante tanto aqui como no poema constelar
de Mallarm. (N.T.)
89
Philippe Grand. Tas II. Marseille : Eric Pesty Editeur, 2006, p. 126.
ainda o morto, aquele que partiu, que passado, o passado por excelncia. Poder-se-ia
faz-lo o personagem principal, o heri do romance que seria o romance da literatura:
Passado, o Passado, Sr. Passado90.
Mas esse heri at ento no esteve presente em nenhum lugar nem na
existncia, nem nas imaginaes dos Antigos: ele , com efeito, ele mesmo, ele ter sido
o Antigo absolutamente antigo. Blanchot fala do apavorantemente antigo: apavorante
porque ns no podemos seno ser tomados de pavor ao considerar a obscuridade vazia
da noite que nos precede. Samos dessa noite e entramos nela, incessantemente. Passado
o Morto, ningum ento, mas ningum ou o no-um, no-um-s, identificado como
Ningum,91 aquele que como Ulisses para Polifemo chamou-se Outis, ningum, nobody,
niemand, nessuno, nemo (todos personagens de narrativas, poemas ou canes).
Passado, o morto aquele que sempre j ter vindo antes que eu venha, antes
que qualquer um venha. Sua vinda abre o rastro do que vir em geral: vir ao mundo, vir
luz, a vinda do dia em si. Manifestar-se, estar na manifestao das coisas, gozar de sua
manifestao. Nada precede a manifestao, do mesmo modo que nada lhe sucede.
Literatura vem nomear isto, este saber da manifestao como algo que sai do
no-manifesto, do cerrado, do nada. Desde quando ela vem a esta nomeao, afinal
incompreensvel luz dos significados anteriores da palavra: o domnio do literal,
depois a coisa letrada, em seguida as belas-letras, depois, maneira alem, o conjunto
de documentos escritos sobre um assunto [sujet], e tambm o resto de Verlaine, isto ,
a prosa prosaica92, ao mesmo tempo que a embriaguez de Flaubert93 e antes que, bem
mais tarde, Roland Barthes declare que o escritor golpeia de encantamento o sentido
intencional, virando a fala em direo de uma espcie de aqum do sentido94 (enquanto
isso, verdade, a reescrita da epopeia ser jocosamente designada como uma
barganhista enciclopdica e catica crnica95 isto quer dizer que a literatura ter
desejado jogar de novo sem reservas seu prprio sentido, aqum e alm de si mesma ou
ao menos da identidade que se lhe podia supor) ento, desde quando esse sentido se
libera hoje, todavia, afastando-se de uma representao dominante que quer o
testemunho, o registro do real, o vivido que se diz autoficcionalizado, como que para
significar que ele no de forma alguma fictcio, pois estamos em falta de real, ns nos
cremos perdidos no virtual, na fantasia e nas formas ocas desde quando, portanto,
seno desde sempre?
No h nenhum contador, na verdade, nenhum fazedor ou recitador de histrias,
de mitos, de lendas, de parlendas ou de descidas de um ditado divino, no h ningum
que ao mesmo tempo no d total f ao conto e no saiba, no entanto, que a inteira
90
Monsieur mon Pass uma cano de Lo Ferr; no entanto, aqui o passado se v mais obrigado a
passar realmente, a no mais obsedar o presente.
91
Personne, ao mesmo tempo ningum e pessoa em francs. (N.E.)
92
ltima estrofe de A arte potica: Que ton vers soit la bonne aventure / Eparse au vent crisp du matin /
Qui va fleurant la menthe et le thym... / Et tout le reste est littrature. (N.A.) [ Que teu verso seja a boa
aventura/ Esparsa ao vento crispado da manh/ Que vai florescendo a hortel e o timo/ E todo o resto
literatura . (N.E.)
93
Entonteamo-nos com o rudo da pluma e bebamos da tinta. Isto alucina mais que o vinho. A Ernest
Feydeau, 15 juillet 1861.
94
Rolland Barthes. Nouveaux essais critiques. Paris : Seuil, 1972, p. 175.
95
James Joyce. Ulysse. Traduo francesa de Auguste Morel et Stuart Gilbert revista por Valry Larbaud
e o autor. Paris : Gallimard, 1948, p. 417. Na traduo utilizada por Nancy: barguigneuse encyclopdique
et chaotique chronique.
substncia desse conto reside em sua fala, em sua proferio, que tambm sua
inveno.
Assim, o filho caula favorito da me, por ela protegido do grande macho da
horda, desperta um dia para a descoberta de sua prpria proeza e conta a todos como
matou aquele que se torna assim o pai: tal a origem que Freud d da literatura, tal o
seu mito explcito da inveno do mito, da fala e da tribo a um s tempo.
A literatura bem exatamente esta fala que sabe que seu sentido vai do nada ao
infinito, que ele a precede e a sucede, que ele se precede em si mesmo e se sucede em si
mesmo. Esta fala que vai do Morto o Pai, a Figura insigne ficcionalizada como
imolada e antes da Morte a Me, no figura, mas partilha da fala em direo
possibilidade de algum sentido comum.
Escutemos, uma vez mais, o comeo de cada um dos cantos com os quais ns,
mediterrneos, inventamos a inveno sob o nome de Homero como nome e terra natal
de nossa literatura:
Menin aeide thea Peleiadeo Achileos
Andra moi ennepe, mousa, polutropon
A clera, cante-a, divina, do Pelida Aquiles
O homem, conte-o a mim, musa, rico em vias e desvios
Pedindo seu canto musa divina, o cantor declara a fico, mas a fico assim tambm
declarada sagrada inspirada, ou seja, insuflada a partir de um fora que ningum
poderia ser tentado a situar alhures seno no mais ntimo do prprio canto96.
Esse fora tambm designado pelo canto como aquele dos acontecimentos que
sero relatados e celebrados: a ira de um, as manobras e priplos de outro. Tudo isso
aconteceu em algum lugar e em algum tempo, e se, no entanto, preciso pedir a
narrativa quase em uma prece ao sopro de uma voz mais que humana, que temos
tudo a aprender sobre esses acontecimentos, ainda que os nomeemos. O que para ser
cantado a ira, as manobras j est l, mas ainda por vir.
O que para ser dito em literatura, enquanto literatura, j est sempre a e ainda
est por vir. Isso comeou muito antes da narrativa e isso prossegue muito depois dela.
a marca mais prpria da narrativa e do canto de fato, prosa e poema, letra e msica so
envolvidas a juntas do que de ter iniciado antes que a boca pronuncie. A pgina, a
tela, a tbula ou o tablet sobre o quais se traa uma escrita figuram bem prposito
dessa antecedncia ao mesmo tempo virgem e encetada essa abertura.
Igual abertura engaja, estrutura, desdobra, excita toda a literatura. Ela comea e
prossegue fora dela mesma, ela no ela mesma nada mais que essa antecedncia e
essa sucesso inesgotveis. No se esgota o sentido. A cada instante cr-se impor uma
significao: o sentido os depe todos e os leva alhures, em direo a um fora anterior e
ulterior. Pacientemente, perdidamente, esse alhures inscreve, excreve seus rastros.
96
Mesmo quando Virglio, por um deslocamento decisivo, comea com a primeira pessoa Arma
virumque cano Os feitos de armas e o homem eu canto... esta pessoa se ouve ela mesma inspirada
aspirada pelo canto. O eu literrio, mesmo o de Rousseau, sabe-se sempre como fico de um sujeito da
fala e/mas como a verdade da/nessa fala. Ele sabe-se sado de lugar nenhum e tambm exposto.
De um golpe de vista tomado a partir de uma inclinao sem dvida discutvel, mas que
preciso saber ocupar um instante, podemos dizer que a ideia da obra agita, irrita e
excita toda a histria de nossa cultura. Ela vem ao primeiro plano de um pensamento
inquieto sobre a realidade, isto , de um pensamento para o qual o real no mais
assegurado, nem pela evidncia sensvel, nem pela pulso nela de um esprito que seria
no fim de contas apenas essa mesma evidncia. ao contrrio pela disjuno da
presena sensvel e de um sopro retirado por trs dela que devemos mais ou menos nos
representar o movimento constituinte de nossa tradio.
A partir da se coloca a dupla questo da consistncia do real e de sua provenincia, ou a
questo de sua efetividade e portanto de sua efetuao. O real enquanto efeito e
enquanto efetivo, eis o pano de fundo da obra e com ele as questes envolvidas na
possibilidade do operar e de pr em obra, isto , na realizao do real: questes que so
tanto as da criao do mundo quanto da produo humana.
Trata-se do ergon grego, trabalho produtivo e produto do trabalho, cujo arremate a
enrgeia, o real em ato em que se atualiza uma potncia prpria, uma dynamis. O latim
traduz ergon por opus de que fizemos obra (enquanto o alemo Werk e o ingls work
retomam a raz erg-). A obra em ato no sentido em que o actus a realizao97 o
particpio passado de ago e designa portanto a ao efetuada, levada a termo: levada ao
seu fim, portanto, sua finalidade, o que d em Aristteles a palavra entelechia que
acrescenta enrgeia a ideia de tlos, de fim acabado.
A obra traz com ela o motivo da produo que comporta ele prprio uma tripla
implicao: a da ao produtiva, a do agente produtor e a do ato produzido. Como
sabemos, o curso de nossa cultura chegou, na idade contempornea ou seja, a partir do
desdobramento conjunto da tcnica, da democracia e do capitalismo industrial a
caraterizar a existncia humana, e tendencialmente a do prprio mundo, como o fato da
produo pelo homem dessa existncia. O agente, a ao e o ato se confundem na
autoproduo de um real, cuja essncia sua existncia mesma, a que se confere assim
um valor absoluto o valor em si, subtrado de toda avaliao de uso e de troca, no
consistindo a partir da em nada seno na capacidade, ou melhor dizendo na dignidade
(essa grande palavra de Kant e dos direitos do homem) da energia autoprodutiva ou na
operatividade geral, tanto ontolgica quanto axiolgica. autoproduo que pode
tambm ser compreendida como a autoproduo na obra e como obra de seu sujeito
(autor, ator, agente) responde o que podemos designar como autofinalidade: a obra se
realiza como seu prprio fim, a efetividade do produto tambm a efetividade da
produo e do produtor. Esse o sentido total at onde se pode levar o que est em jogo
no provrbio Finis coronat opus (o fim coroa a obra).
2
97
assim que a noo hoje mais comumente recebida de obra veio a se desprender. No
meio do campo semntico bastante extenso desse termo que vai, como sabemos de
lxicos especficos como os da alquimia, da justia ou da arquitetura a todos os registros
possveis de operao, de realizao ou de execuo emergiu, sobretudo a partir do
sculo XIX, um sentido que podemos considerar como privilegiado e que se rene na
expresso obra de arte. Essa expresso ela mesma veio a soar como uma tautologia e a
obra pode designar, absolutamente, o produto ou o conjunto de produtos da atividade
de um artista. O romance de Zola que se intitula Obra consagra de uma certa maneira
esse uso, enquanto que em 1831 Balzac empregava obra-prima [chef duvre], uma
expresso vinda do mundo do artesanato. Certo, os dois termos no so equivalentes e o
segundo subsiste enquanto o primeiro tomou um valor que no deixou de se aproximar
dele.
Hoje o valor enftico e absoluto da obra subsiste no uso corrente, quer se trate da
crtica literria e artstica, quer de um uso universitrio, que faz com que destaquemos
voluntariamente a nossa estima de um jovem pesquisador dizendo-lhe: o senhor tem
uma obra, ou bem: o senhor ter em breve uma obra por meio do qual destacamos
um afastamento significativo do que representam os trabalhos, por mais ricos que
sejam. Ao contrrio, e de maneira paradoxal, o uso da palavra foi mais ou menos
apagado da linguagem empregada nos meios artsticos, onde se prefere justamente falar
do trabalho de um artista, quando no se dispe de termos especficos como o livro
na literatura (ouvrage antiquado ou bem erudito, e nunca acedeu dignidade da
obra [uvre]98), ou o filme no cinema (mas quando preciso caracterizar a unidade
e a completude de uma produo, fala-se da obra de Ozu ou da obra de Ford).
H portanto uma tenso surda que trabalha o uso e o sentido da obra. Em um certo
sentido, sabemos muito bem do que se trata. De um lado, essa palavra recolheu toda a
fora da realizao efetiva desse tipo de produo, a que reservamos, mais ou menos no
mesmo tempo da histria, a concentrao bastante particular da palavra arte, tomada
absolutamente ela tambm, ou seja, destacada dos valores distintos dos diversos savoirfaires que foram as artes mecnicas ou liberais, as artes companheiras dos ofcios e
enfim as belas-artes. A obra se encarregou desse tipo de realizao, excedendo toda
espcie de artesanato e de tcnica a que pretendeu aceder uma arte desligada de todo
ofcio de transmisso, de representao ou de celebrao de um contedo de pensamento
histrico, religioso, poltico ou moral. A obra passou para o lado da efetuao de uma
realidade que excede de algum modo qualquer outro real da natureza ou da produco.
Ela se produz a si mesma ao invs do homem, ou ento, na verdade, na obra e como
obra que o homem se produz alm do humano demasiado humano. A obra acrescenta
ao mundo uma efetividade ou uma energia excedente.
assim que a palavra se encarrega do que Proust, por exemplo, enuncia quando escreve:
explicava Albertine que os grandes literatos nunca fizeram mais que uma nica obra,
98
Em francs, os dois termos utilizados por Nancy, ouvrage e uvre, recobrem dois sentidos
ligeiramente diferentes: uvre contm uma dimenso artstica, enquanto que ouvrage aplica-se ao
resultado de um trabalho em geral (de construo, militar). Ouvrage pode ser tambm aplicado ao texto
cientfico, tcnico ou literrio, mas nesse caso, uvre insiste na qualidade artstica. Em portugus a
diferena inexiste, usando-se em ambos os registros, indiferentemente, obra. Temos em portugus o
termo obragem, derivado de ouvrage, de contruo, ligeiramente antiquado. Optei por manter o termo
francs ouvrage (N.T.)
ou melhor, que refrata atravs de meios diversos uma mesma beleza que eles trazem ao
mundo.99
Mas por outro lado, essa mesma carga hiperblica da obra a levou alm dela mesma,
pelo menos enquanto representao de uma efetuao consumada e de uma entelquia
assegurada de seu fim ltimo. permitido datar esse excesso, que dessa vez o da obra
sobre ela mesma, no momento a partir de 1923 em que Joyce adota a expresso
work in progress para caracterizar, e at, em um dado momento, para intitular
Finnegans Wake. A expresso terminar por caracterizar o livro no somente como um
texto sempre em obra, mas tambm como uma obra cuja leitura pode indefinidamente
retornar do fim ao comeo. De ambas as maneiras, a obra no termina e esse infinio
desmente a segurana da completude e da meta atingida.
3
Desde Joyce, sabemos quantas formas pde tomar a afirmao do inacabamento da obra,
ou mesmo da essncia da obra em seu inacabamanento, em sua abertura ou em seu
desobramento, medida em que a obra era confrontada a essa modalidade de
incompletude ou de desestabilizao que representa a sua reproduo tcnica. Ao
mesmo tempo, o autor que se viu desestabilizado como figura do agente ou do
produtor da obra. Tanto a sua potncia operatria de gnio quanto a sua expresso, ou
at mesmo a sua hierofania, sob o aspecto da obra, perderam o brilho e a magia.
De toda maneira, a obra se estragou nos dois sentidos do termo: ela se degradou em sua
exigncia de realizao monumental, ela renunciou edificao de um real arquitetnico
que trouxesse verdade ao lugar ou bem sobre o ordinrio real imperceptvel. ao
contrrio este ltimo que tomou o seu lugar em uma mmesis e em uma methxis da
inconsistente, inconstante e inconsciente existncia trivial, tanto das coisas quanto das
figuras de um mundo que tende para a insignificncia. obra se substituiu a manobra de
um autoengendramento de impresses, de combinaes formais, de modos de dizer que
no h nada a a dizer, ou pelo menos, nada que se possa enunciar como a frmula de
uma verdade acabada.
Nesse sentido, a obra e toda a lgica e a simblica da produo, da autoproduo ou do
engendramento de um mundo, no ocuparam por muito tempo o lugar que, na verdade,
eles foram levados a ocupar, e que no era outro seno a de um Deus, que, ele prprio,
desde as suas elaboraes metafsicas, tinha sido representado imagem da energia
produtiva. A morte de Deus a morte da produo e por pura falta de inveno que
no clareamos ainda, de uma outra luz, a sombra que se estende diante de seu tmulo: ao
contrrio, derrapamos em uma produtividade que sabe apenas reproduzir mais frente a
sua ausncia de fins.
Apesar disso, no lamentamos a obra se ela fosse apenas um sucedneo de Deus, sem
dvida ainda mais decepcionante que o prprio Deus. Aprendemos outra coisa, uma
outra realidade da obra: no a sua realizao mas a sua operao, no o seu fim mas a
sua infinidade, no a sua entelquia, mas a sua energia como ato de uma dinmica que
99
no reabsorvida em um produto mesmo que seja o homem mas que atualiza a sua
tenso, sua vibrao, e - porque no diz-lo com essa palavra? sua vida.
4
A vida da obra quem sabe uma coisa completamente diferente do que uma puntura100.
Se a vida consiste na tarefa de no cessar de ser, como escreve Juan-Manuel
Garrido101, e se, para isso, ela no cessa de operar a diferena entre a vida e a morte
diferena na qual ela se manifesta como o que ela (para o que ela vive) ento, a obra
vive proporo de que ela no cessa de abrir nela a diferena entre prosseguir e cessar
de ser. A obra acabada, opus operati, pe fim por definio sua operao. Esta, ao
contrrio, se persegue como opus operans. No mais a obra no sentido de sua
execuo acabada e de sua manifestao plena, embora isso no exclua nada dessa
plenitude.
Sem dvida, preciso mesmo que uma obra seja realizada para que ela manifeste em sua
realizao o que a excede, ou melhor, para que ela manifeste a sua realizao como seu
prprio ultrapassamento. Atingindo a sua morte uma vida se ultrapassa s vezes em
outras vidas, que podem ser vidas de viventes ou bem vidas de obras, ou bem pois, por
fim, como o diz Proust, por mais que brilhem as obras dos homens nas geraes
futuras, necessrio que os homens ainda existam102 nem vivente, nem obra, mas a
simples afirmao que essa vida viveu, foi vivida, esforou-se em ser e em dar lugar ao
acontecimento dessa diferena.
A obra, do mesmo modo, acabando-se pode abrir sobre outras obras e sobre outros
autores de obras, mas pode tambm excedendo a durao das geraes humanas, ou
melhor, esquivando-se delas ultrapassar o seu prprio acabamento na afirmao de que
houve essa tenso em ser e em dar lugar ao acontecimento obrante. Nesse sentido, no
h nada mais a dizer dessa histria sem historicidade, em que se encadeiam at ns 3000
anos de obras postas, desde as pinturas das grutas paleolticas (sem esquecer que no
temos documentos eventualmente mais antigos de dana, de msica, e porque no de
poesia?). A vida dos homens indiscernvel da das obras, e estas vivem medida em
que procuramos no somente fazer obra de nossa vidas, mas tambm deixar a vida fazer
atravs de ns ou mesmo fazer de ns suas obras de vida e de morte.
Essa sucesso de obras pe em evidncia a sua ausncia de fim, de acabamento, pelo fim
renovado de cada uma delas, de cada um de seus modos, de suas maneiras de relanar a
energia, sempre a mesma e sempre diferente que, assim que ela atinge o seu acabamento
obra-prima, grande obra, duplo modelo artesanal e alqumico de toda operao - se
depreende dela e manifesta que o que ela realiza, o que ela atualiza, sempre novamente
a sua dynamis, a sua potncia que, como toda a fora, se exerce unicamente pelo jogo de
uma diferena de foras. A obra assim sempre o jogo de uma diferena entre ela
mesma e ela mesma, por meio da qual ela vai sempre alm dela mesma.
100
O termo francs, poncif, assim como a sua traduo em portugus, puntura, pertencem ao
vocabulrio tcnico de impresso. Poncif denomina a folha de papel contendo um desenho picotado
aplicado sobre um outro papel ou tecido, mediante a passagem de uma pedra (uma ponce) de maneira a
reproduzir em pontilhado oo contorno do desenho. Em portugus, puntura, a chapa de ferro a que se
prende a folha de papel aonde ser feito o registro da impresso. O termo francs equivale a esteretipo,
clich. (N.T.)
101
Juan-Manuel Garrido. Chances de la pense [Chances do pensamento]. Paris : Galile, 2011, p. 38.
102
Marcel Proust. La Prisonnire. La Recherche du tempos perdu. Paris : La Pleade, tomo III p. 184.
Traduo brasileira, op.cit., p. 1018.
5
A obra vai alm assim como ela vem do aqum: ela no projeta a sua realizao
[ralisation] como um plano pode ser projetado, uma antecipao determinada do seu
acabamento [achvement]. Do mesmo modo como este no ser a verdade da obra,
tampouco a sua produo (se a palavra no ela prpria aqui posta em dificuldade), a sua
realizao, ou a sua operao no esto ligados predio, nem tampouco mais
rigorosamente ao projeto. H sempre um surgimento que excede a espera, como h sempre
um tateamento que escapa ao clculo. A obra assim transbordada por trs pela manobra
que se esboa em sua direo, que ela ignora, e pela frente pelo desobramento que a subtrai
ao acabamento, em que, no entanto, ela se acaba simplesmente, mas tambm se arruina.
Blanchot escreve: A obra, sempre j em runa, pela reverncia, pelo que a prolonga, a
mantm, a consagra (a idolatria prpria a um nome), que ela se congela ou se acrescenta s
boas obras da cultura.103
O que no impede, no entanto, que no seja simples, em todos os aspectos, manejar essa
ironia diante das boas obras. Pois essa expresso nos reconduz, ao mesmo tempo, a uma
longa srie semntica que a pieguice de toda sorte de obras pias de fato reduziram figura
de um opus dei. Ora preciso lembrar que as obras- os erga da koin transcritas em
seguida em opera designaram a ao efetiva, por oposio disposio espiritual dita da
f (pistis). Se Paulo sublinhava que as obras de f permanecem sem valor, Tiago lhe
opunha com rigor a primazia das obras, e muito precisamente das obras ditas de amor
(agap, caritas). No temos aqui que entrar nesse debate, seno talvez para fazer observar
que, na operao da obra, a f, ou seja, a confiana no que deve exceder a toda espera,
inseparavel da ao que obra, que manobra e que se desobra sem parar. De resto, de
Agostinho a Lutero, sempre se soube muito bem que as obras so elas mesmas amor e f e
que, alm disso, no so nossas, mas efeito da graa.
O que chamamos de boas obras o triste resduo de uma longa genealogia em que a
efetividade de agir prevaleceu de sada e por muito tempo, antes de se perder na confuso
dos gestos prescritos, dos mritos e das jactncias. Mesclou-se no entanto a a significao
da obra prtica, arquitetural sobretudo: a cada catedral se juntava uma casa de obra,
encarregada de um conjunto de problemas sociais e financeiros ligados ao canteiro de
obras. Da proveio a obra ou a fbrica, no sentido de conselho de gesto de um edifcio
religioso. Ao mesmo tempo, obra tornou-se o nome de um organismo de sustento e de
assistncia com visadas determinadas, como as inmeras obras missionrias, mas
tambm, mais tarde, laicizadas, como as obras socialistas: tal obra parisiense para
banhos-ducha baratos ou aquela outra do livro para todos. Um jornal importante nascido
em 1904 foi batizado de A Obra como em uma condensao absoluta desse valor de servio
de uma causa (jornal que alis privilegiou as assinaturas como se dizia ento, os artigos
autorais).
A obra compreendida assim representa, com efeito, a energia devotada a uma causa que
interpela, mas ao mesmo tempo ultrapassa, todas as realizaes possveis.
6
103
104
Michel Foucault. La folie, labsence duvre . In : Dits et crits I, Gallimard, 1994, p. 417-419.
Traduo brasileira : A loucura, a ausncia de obra . In : Ditos e escritos I. Problematizao do
sujeito : Psicologia, Psiquiatria e Psicanlise. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro : Forense Universitria,
1999, p. 195.
II. POESIA
1. CLCULO DO POETA
Quer dizer que passo aqui, deliberadamente, ao largo da interpretao heideggeriana de Hlderlin. Farei
somente a observao de que essa interpretao, considerada independentemente de seus temas, deixa sempre
de lado, por sua parte, a potica de Hlderlin, mesmo quando faz, raramente, aluso a ela (por exemplo, em
Approche de Hlderlin. Paris, Gallimard, 1973, p. 242-243), e mesmo quando toma precaues quanto ao
tema da natureza potica dos textos que ela interpreta filosoficamente (por exemplo em lIntroduction au
cours sur lhymne Germanie ). Retornarei alhures relao ou no-relao de Heidegger com a ars poetica
enquanto tal. Por outro lado, arrisco esse breve ensaio como franco-atirador (ou seja, como ignorante) dos
estudos propriamente tcnicos sobre a potica hlderliniana, como o de Lawrence Ryan, que me assinala
Alexandre Garcia-Dttman (Hlderlins Lehre vom Wechsel der Tne (Stuttgart, Metzler, 1960)). Mas
preciso assinalar uma dvida para com os ensaios de liane Escoubas, Franois Fdier e Rainer Ngele
recolhidos no Cahier de LHerne Hlderlin, dirigido por Jean-Franois Courtine (Paris, 1989). De maneira
geral, todavia, no pretendo propor uma verdadeira interpretao de Hlderlin : deixo voluntariamente de
lado demasiados aspectos de seu pensamento. Hlderlin est aqui a meio-caminho entre o tema e o pretexto.
frequentemente se esgota, em direo a uma preciso que se esquiva ao mesmo tempo que
imperiosamente requerida.
A esse respeito, podemos ser tentados a pensar que Hlderlin, na ordem do
pensamento e que esse pensamento concerne a ars poetica ou ento motivos
propriamente filosficos extenua-se frequentemente na procura de uma construo
dialtica e especulativa, da qual ele no encontra propriamente falando nem a figura nem a
conduta exatas, diferena de seus dois amigos filsofos bem prximos, Schelling e Hegel,
com os quais ele compartilhou o ideal comum ps-kantiano do sistema . No estaremos
errados em ver nisso uma espcie de inabilidade e de impasse da via filosfica enquanto tal.
Hlderlin no sabe verdadeiramente fazer dela uma ars philosophica.
questo de temperamento, mas tambm, e o de sada, porque ele no
coloca tampouco, de modo simples, ou apenas, uma questo filosfica. Ele prope
precisamente a questo de uma outra maneira de abordar as questes em geral, a
questo de uma outra ars ou tkhne. Eis por que no basta dizer que Hlderlin um
pensador: preciso acrescentar imediatamente que ele no pensa como um pensador, nem
segundo a ars do pensamento. O primeiro pensamento de Hlderlin talvez seja este: que os
filsofos devem elaborar um sistema, no sentido mais forte, mais orgnico da palavra, mas
que o poeta deve tocar ainda em uma outra coisa que no a unidade sinttica, mesmo que
ela seja vva e articulatria. O poeta deve tocar num ponto absoluto de exatido, que est
em jogo num clculo mais do que de uma construo, de uma produo ou de um
engendramento. preciso tocar nesse ponto, ou se pronunciar sobre ele, ou tom-lo em
vista: diferente de juntar os elementos de uma totalidade articulada. O ponto escapa ao
conjunto. O filsofo tem por objeto a sntese o poeta tem por projeto a sinopse. A
primeira significa primeiramente a operao, a segunda, a apreenso. A primeira exige o
tempo da elaborao e do percurso, a segunda exige o espao de tempo de uma visada e de
um lance ajustado, o instante e talvez com ele a sncope.
3. O que caracteriza o poeta para Hlderlin est dito nestas palavras: a
preciso constante da conscincia com a qual o poeta olha um todo111 ( durchgngiger
Bestimmtheit des Bewutseins wird, womit der Dichter auf ein Ganzes blickt ).
Bestimmtheit pode ser vertido por determinao ou por preciso : o poeta tem uma
conscincia absoluta e constantemente determinada, completa e unificada, sem resto, que
no retm nada em si e se d toda ao seu olhar. No sem dvida exatamente o que o
filsofo entende por conscincia . Ela comporta menos o momento da relao a si
mesmo, da re-presentao enquanto tal, do que o momento nico do olhar nem mesmo a
inteno, mas a abertura, o olhar dirigido ou lanado sobre (Blick auf), diante, fora de si.
O jato desse olhar atinge um todo: a totalidade desse todo assim tocada
para alm ou no alm de toda composio ou sntese, no centro, no corao, na junta
111
p. 662. Estes nmeros de pgina remetem edio da Pliade, sob a direo de Philippe Jaccottet
(Hlderlin. uvres. Philippe Jaccottet (dir.). Paris: Gallimard, col. Bibliothque de la Pliade , 1967).
Atenho-me a essa referncia, por comodidade, modificando s vezes as tradues, quando absolutamente
necessrio. Salvo indicaes contrrias, sempre Hlderlin quem sublinha.
que no totaliza, mas que o todo. o ser-todo do todo que visado e visto, diretamente,
impecavelmente. E j que o todo Hlderlin no sublinha a palavra em vo esse centro
no mais interior do que exterior. Ele idntica e imediatamente o contorno e a
periferia. No o conceito, mas a figura e a existncia do todo: o todo se mostrando como
todo. O todo se fazendo ver para um olhar, por um olhar exatamente pousado sobre ele
para um olhar e por um olhar que no , no final das contas, seno o se-fazer-ver do todo
ele mesmo.
O poeta: o todo claramente presente.
A presena irrecusvel e
irrecusavelmente pontual do todo. O ato que calcula exatamente o momento o instante, a
pesagem, a passagem da presena do todo. O ato que no deixa, pois, nada fora dele: nem
o pano de fundo de uma inteno nem o de uma coisa em si 112. Mas a coisa mesma
em presena do olhar mesmo, na claridade mesma e o afastamento, o escancaramento
dessa mesmidade , seu clculo exato.
Nada alm disso: nessas condies seria mais justo dizer ningum
[personne] mais. O poeta no sujeito da representao do todo, mas o lugar da viso
do todo in persona. Hlderlin nomeia tambm isso o puro , ou a pura individualidade
[potica] (622 e passim).
4. A pureza hlderliniana no o que no comportaria nem mistura nem
alteridade. Ela , ao contrrio, a pura coincidncia do mesmo e do outro, do prprio e do
estrangeiro, do humano e do divino : essa coincidncia em que o olhar no olhar sobre
a coisa e no olhar para113 ela seno na medida em que ele se faz, e em que ele feito,
o aparecer mesmo da coisa. A unidade de medida , pois, aqui a exatido mesma, a pura
coincidncia.
Conciso , sobriedade , essas outras palavras-mestras de Hlderlin,
no designam outra coisa. Trata-se muito menos, com elas, de uma economia dos meios do
que de uma extrema preciso do fim dessa extremidade onde a prpria preciso se
desvanesce em proveito da exatido rigorosa: o todo, cada vez esse todo (do mundo, do
homem, da comunidade, de uma poca, de uma forma, de um pas, de um rio, de um
deus). A economia de meios decorre disso, a saber, a brevidade daquilo que se chamaria
112
O ensaio de Nancy percorre uma gama de noes que se renem em torno da coisa em si kantiana,
chose en soi , ou chose mme . Em portugus a traduo mais comum para a Ding an sich kantiana
coisa em si , j em francs mais comum chose mme . Este territrio repercutir no texto pelo uso
abundante do adjetivo mme , mesmo/mesma sozinho, ou acoplado ao pronome pessoal, ellemme , ela mesma , lui-mme , que trazem problemas para traduco. s vezes optei por traduzir
mme por proprio , prpria , mais comum em portugus, sempre que me pareceram soar melhor.
(N.T.)
113
A preposio pour em francs comporta uma ambivalncia que explorada aqui e mais adiante por
Nancy. Ela significa ao mesmo tempo, por , no sentido de no lugar de , e para , em direo a .
Nesta frase, ambas as traduces o olhar para a coisa e o olhar pela coisa so possveis e
solicitadas. (N.T.)
alhures de imagem e que se torna olhar quando se escreve, por exemplo : desde
que somos um dilogo114 (861).
No uma imagem, uma estrita proposio predicativa, que diz que
somos, de fato, um dilogo (uma entrevista, um falar-junto ou o um-com-o-outro, um
Gesprch, um conjunto falante). No que sejamos em dilogo, mas que somos nosso
dilogo. Ns : ns todos, aqueles que falam, definidos em seu ser pelo falar-entre-eles.
Assim, o todo do ns indeterminado absolutamente determinado: somos esse entrens, que linguagem e, reciprocamente, a linguagem o entre-ns.
O clculo consiste em colocar ou visar exatamente esse ser, e nada alm
dele, sem aproximao, sem comparao, nem metfora. Livre ao filsofo de glosar esse
entre , ou esse ge- do Gesprch, mas importa aqui que seja enunciado diretamente,
at o fim, ou seja, tambm direto fonte: o poeta que diz ns e que fala assim j por
ns, ou seja, a ns e em nosso lugar115, mas assim, tambm, no lugar do entre , no
prprio entre , exatamente. O linguista diria: o verso performa o que ele enuncia. Ele
fala j entre ns, tomou-nos, calculou, colocou na fonte de emisso singular plural da
conversa [entretien].
Acontece o mesmo com Desde que somos . Desde o clculo exato
de uma indeterminao. O poeta no diz desde quando, porque no mensurvel (no mais
do que o ns ). O momento desde quando ns somos uma conversa to antigo
quanto a prpria conversa, que por suas vez to antiga quanto qualquer antiguidade
possvel quanto a manh nomeada pelo verso precedente e to recente quanto seu
enunciado, h pouco. Ele absolutamente imemorial e contemporneo. Desde calcula
todo o intervalo do imemorial at o atual presente: um intervalo nulo e infinito. Desde
mede assim uma cadncia de eternidade.
Mas preciso entender a medida tal como ela calculada em alemo. Seit
ein Gesprch wir sind : a ordem gramatical usual no respeitada. Seria preciso traduzir:
Desde que um dilogo ns somos [Depuis quun dialogue nous sommes] , e poderamos
mesmo entender: Desde um dilogo ns somos [Depuis un dialogue nous sommes] . Em
lugar de estarem tecidos juntos na sintaxe (Seit wir ein Gesprch sind), um dilogo e
ns somos permanecem dois blocos lado a lado, exatamente justapostos. Ns ,
deslocado de seu lugar ordinrio, porta o acento: o que um Gesprch, eis o que ns
somos. Mesmo se no lermos o verso na ntegra, esse ser se precisar ainda: Seit ein
Gesprch wir sind und hren voneinander = Desde que somos um dilogo e temos
notcias um do outro [Depuis que nous sommes un dialogue et que nous avons lun de
lautre nouvelles], mas tambm: Desde que um dilogo somos e ouvimos um do outro;
ns somos que ns nos ouvimos um ao outro, somos que ouvimos um do outro o que
somos, ficamos sabendo um do outro, como nossa prpria conversa [entretien]..
114
Em francs : Depuis que nous sommes un dialogue. Traduo de Jean-Luc Nancy. O texto se l na
traduo francesa: Depuis que nous avons lun de lautre nouvelles, et sommes un entretien. (Hlderlin.
uvres, op. cit.. Tr. fr. Philippe Jaccottet, Gustave Roud et Andr du Bouchet, p. 861.) (N.E.F.)
115
Pour nous , conforme Nancy esdobra na frase a seguir significa ao mesmo tempo para ns e
por ns . Cf. a nota 112 supra. (N.T.)
de o tom justo 118, quer dizer tambm, justo o tom , sem nada a mais nem a menos.
Justo o tom daquele que encontra o tom, e como esse tom o afine [laccorde] aos outros
separando-o deles.
(Aqui, claro, o comentrio treme. Podemos ouvir essas frases, impossvel
recus-lo, num tom terrvel, de Terceiro Reich. Podemos tambm ouvi-las no tom da
simples e justa medida, aquela que permite justo a distino de um tom na indistino de
um murmrio. Est aqui a questo da Alemanha, no aquela s de Hlderlin, e no me
proponho a falar disso. Seno para fazer observar que a medida da medida, a medida da
sobriedade e da coragem , a medida do clculo exato, a unidade apropriada, no
dada, e no jamais preciso crer que ela o seja, nem que ela possa s-lo. Para Hlderlin,
nada est dado, nem mesmo o que ele nomeia de alemo . sempre como [u]ma
estrangeira que vem a Voz modeladora de homens (841). Quando Hlderlin
identifica a Alemanha , Stuttgart , Heidelberg ou o Neckar , trata-se da
exatido e da clareza do olhar, dos lugares precisos onde ele se coloca, mais do que dos
santurios de um destino. De resto, ele nomeia tambm a Charente , a Provena e
os pases da Gasconha , assim como Gnova ou Lisboa . O divino sempre
errante (462), e para a alma, de ptria privada o nico domnio (463) e o
amistoso asilo se encontra no canto (462). Se a ptria fosse dada, toda a potica do
clculo seria intil.)
6. A exatido exige a excluso daquilo que se prolonga de maneira
indeterminada. A unidade do todo deve ser captada na passagem, como passagem, e no
perseguida ao longo do seu movimento. O dizer do que dito, sem nada a mais, deve
suspender o discurso. Assim a justeza do encadeamento, da consecuo rtmica , se atm
sua interrupo, cesura , em que consiste tambm a pura palavra, a suspenso antirtmica119 (952). O ritmo feito do anti-ritmo, como a figura de seu recorte, e eis por que
a consecuo do clculo e o ritmo com ela est dividido120 (952).
O curso do sentido deve ser interrompido para que o sentido tenha lugar,
para que ele seja captado na passagem para que seja captada a unidade de um todo que
mais e outra coisa que o todo de seus momentos, sendo ao contrrio sua escanso comum e
sua sncope. Eis aqui todo o clculo do poeta, e seu gesto tenso, inaplacvel, o gesto de um
arrancamento (952).
118
Le ton juste , expresso polissmica em francs que significa a nota afinada . A passagem joga
com as diversas expresses que contm juste , justo , ou apenas , com o pano de fundo do campo
semntico musical da afinao. (N.T.)
119
aqui evidentemente o ponto de intercesso entre essa anlise e a do trgico hlderliniano feita por
Philippe Lacoue-Labarthe sob o ttulo de A cesura do especulativo [traduo brasileira em A imitao dos
modernos. Virgnia Arajo Figueiredo e Joo Camillo Penna (orgs). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000].
Veremos tambm os prolongamentos que lhe d Arnaud Villani no Cahier de LHerne, e depois ainda
Philippe Lacoue-Labarthe em Coragem da poesia (tambm em A imitao dos modernos), assim como
com o estudo, por Jean-Franois Courtine, do afastamento [cart] hlderliniano em relao ao idealismo
especulativo , Hlderlin au seuil de lidalisme allemand , em Extase de la raison. Essais sur Schelling
(Paris : Galile, col. La philosophie en effet , 1990).
120
Traduo de Jean-Luc Nancy. O texto se l como segue: la conscution du calcul, cest--dire le
rythme est divis . [ a consecuo do clculo, quer dizer, o ritmo est dividido ] (Hlderlin, uvres, op.
cit., tr. fr. Denise Naville et Franois Fdier, p. 952.) (N.E.F.)
121
Coupe em francs, termo associado lingua potica de Mallarm, contm uma polissemia
explorada por Nancy em diversos pontos do ensaio. No sentido geral significa taa , copo , copa ,
a que se acrescenta o sentido comum, de corte , e o sentido tcnico, de coupe du vers , significa
pausa , ou diviso do verso . Opto por traduzi-lo por pausa , indicando quando necessrio o
termo original entre colchetes. (N.T.)
se conta como um, cada vez um, no encadevel e no adicionvel, um sem soma, suspenso
da continuidade, a verdade do sentido, sua vinda, seu evento122.
7. So necessrias, portanto, alternncia e [] tenso harmnicas123 (610).
Se a harmonia acordo e acorde [accord], o acordo supe a diferena, a troca [change] e a
distncia. A exatido a justa fixao da distncia entre os tons, entre os gneros, entre as
quantidades mtricas e os acentos sonoros, tanto quanto entre o dizer e o dito enquanto
que a aproximao, mesmo na preciso, uma fuga da distncia, na distncia. A exatido
procede ao contrrio de uma justa medida do afastamento [cart] necessrio para que haja
convenincia, coincidncia, correspondncia biunvoca do um do dito e do um do dizer. O
clculo do poeta de sada um olhar sem concesso e sem hesitao sobre a clara distino
do um: a conscincia ntida do que o isola, do que o suspende, do que o retm vis--vis o
olhar.
A distino necessria no seio da comunidade, de simultaneidade unitria ,
do parentesco de todas as partes que faz propriamente o contedo espiritual .
Comunidade e parentesco (ou afinidade ) no podem valer na ordem da unio nem da
comunho. Pois o contedo espiritual se reduziria a uma fantasmagoria
inconsistente (610) se o espiritual no viesse a diferir nele mesmo dele mesmo, e
assim a progredir para fora de si .
A afinidade , com efeito, concerne o contedo e tem lugar segundo a
imobilidade , mas a forma exige a alternncia , e com ela o movimento, a
progresso (610), a sada para frente (Fortstreben). O um como tal deve, pois, sair de si
para ser apresentado/escandido na alternncia, na inflexo dos tons, a cadncia do ritmo e a
pausa do sentido. O movimento da sada, a ex-posio do espiritual em exterioridade,
exige essa pausa e sua escanso: a poesia o scanner do sentido, o poeta lhe ajusta
exatamente os ngulos de visada.
A potica do clculo ou da exatido , pois, o pensamento da diferena
originria. E como se deve, em todo rigor, ela logo de sada esse pensamento enquanto
diferena originria do pensamento em si. O que quer dizer, como de justia: ela no esse
pensamento seno na diferena originria do pensamento em si. O que quer dizer ainda: ela
se implica como diferena em si do pensamento originrio como poesia .
Se o pensamento em geral, ou seja, de modo prtico, para ns, o que a
filosofia representa, est implicado necessariamente como apropriao ltima da coisa
ressoro de seu objeto no sujeito que o pensamento, o prprio sujeito sendo a
estrutura principial de auto-apropriao do objeto , ou se ele est implicado como
elevao da coisa, dessa coisa dita em si [mme], ao estatuto e visibilidade da Ideia
(nesse sentido, nenhum rastro de pensamento que no seja idealista , em Hlderlin-opensador tanto quanto em um outro), ento a potica, ou seja, o pensamento da poesia,
122
126
Mas mais ainda, o tocar da lngua mesma, dos timbres e dos ritmos das palavras, e
que no podemos citar seno em sua lngua:
127
Trecho de Hlfte des Lebens [ Metade da vida ], na traduo de Manuel Bandeira. A traduo
citada por Nancy de G. Roud, na edio da Pleiade diz o seguinte : Avec des poires jaunes/
Et tout fleuri de roses sauvages/ Se suspend/ Le paysage dans le lac,/ cygnes pleins de grce !/ Et tout ivres
de baisers [] (p.833). Manuel Bandeira. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1966.
(N.T.)
128
Trecho de Das nchste Beste[O mais imediato, ou: O mais prximo melhor] , terceira verso. Na
traduo da edio da Pleiade a cargo de F. Fdier: [] droit de la pierre fauve/ Les eaux dargent
ruissellent/ Et saintement le vert se montre/ Sur lhumide prairie de la Charente (p. 905). (N.T.)
Traduo:
Desce ela como uma Estrangeira
At ns, a que nos acorda,
129
A voz que forma homens.
No posso falar com grande preciso tcnica nem da lngua nem da prosdia de
Hlderlin, ou seja, no final das contas, de sua ars poetica. Mas no saberamos insistir
demais sobre o fato de que nelas: lngua, prosdia, rtmica, diretamente sobre as
palavras e sobre o canto, que se dispem o tom e o tato de sua potica ou seja, de seu
pensamento, o fora de seu pensamento, seu pensamento fora de pensamento. preciso
tambm relembrar o que ele mesmo escreveu no caput de Festa da paz [Fiedensfeier] :
Se, no entanto, alguns deviam achar essa linguagem pouqussimo convencional, devo lhes
confessar que no posso fazer de outro modo. Num belo dia, quase todas as maneiras de
cantar se fazem ouvir, e a Natureza, de onde isso saiu, o retoma tambm. 131 A lngua
singular, ela deve s-lo: no enquanto idioma reservado e precioso no h maneirismo
nele , mas enquanto lngua da extremidade que toca no impossvel do real, na sua
distncia e no afastamento correlativo de todas as lnguas entre elas, de todos os cantos.
Cada linguagem deve ser uma, exatamente como cada ponto tocado. O canto , essa
metfora/metonmia ordinria do poema, nomeia mais precisamente para Hlderlin o que
envolve o raio de Deus, o fulgor ou o relmpago da tempestade de Deus que o
poeta, cabea nua , pega com [sua] prpria mo (835). O canto no dissimula a luz:
ele lhe transmite o contato.
9. O tocar pertence ao clculo porque exige a medida. O sem-medida no
distingue nem os lugares, nem as superfcies, exigidas pelo tocar.
Pois moderado toca, sempre sabedor da medida,
S um momento as moradas dos homens
129
Trecho de Am Quell der Donau [Junto nascente do Danbio]. Na traduo de Paulo Quintela.
Hlderlin. Poemas. Lisboa: Relgio dgua. 1991, p. 317. Na traduo da Pleiade citada por Nancy: Une
trangre sen vient nous, celle qui rompt/ Le sommeil, la/ Voix faonneuse dhommes (p. 841). (N. T.)
130
Em francs: Vient une dailleurs/ nous, la rveilleuse,/ La voix faiseuse dhommes. (N.T.)
131
Trata-se de uma nota escrita por Hlderlin que precedia a verso definitiva do hino Vershnender
[Conciliador ou conciliante, na traduo de Paulo Quintela] (Pleiade, p.1214). Paulo Quintela traduz
o trecho, op.cit., p. 347. (N.E.)
132
132
Trecho de Festa da paz, na traduo de Paulo Quintela, op.cit., p. 351. Na traduo utilizada por Nancy:
Soucieux de la mesure, toujours, avec prcaution, touche,/ Lespace dun moment, aux demeures des
hommes/ Un Dieu, limproviste : quand, nul ne sait (p. 860). (N.T.)
133
Trecho de Der Wanderer [O peregrino ou O errante]. Na traduo de Paulo Quintela, op.cit., p. 243.
A traduo citada por Nancy, da Pliade, a cargo de F. Fdier, a seguinte: Ici il ne lui mouvait pas, avec le
regard du soleil, le sein,/ Et en pluie et rose il ne parlait pas amicalement elle ;/ Et cela mtonnait et
follement je dis : Mre/ Terre, perds-tu donc toujours, comme veuve, le temps ? []/ Mais peut-tre vas-tu
tchauffer quelque jour au rayon du ciel,/ Hors du pauvre sommeil te caressera son haleine, tveiller;/ De
sorte que, comme un grain sem, tu fasses clater la coque antrieure,/ Se libre et salue la lumire le monde
dli (p. 799-800). (N.T.)
e aqui ainda preciso fazer ouvir como o ponto desse acordo, a primavera da terra,
se d, no ltimo verso citado, no clculo de uma cadncia cerrada: Los sich reit und das
Licht grt die entbundene Welt . Los desencadeia e descarrega a exploso, a
libertao [dlivrance], simultaneamente, no sentido, no som e no ritmo; poderamos dizer:
esse verso a onomatopeia da primavera, ou do amor, daqueles que o seguem:
All die gesammelte Kraft aufflammt in ppigem Frhling,
Rosen glhen und Wein sprudelt im krglichen Nord.
Toda a fora reunida se inflame em Primavera opulenta,
Rosas floresam e vinho salte espumante no Norte mesquinho.134
mas no uma imitao, um tocar da lngua que a afasta dela mesma e do sentido, e que
faz sentido no intervalo, como a marcao [battue] do intervalo. No h onomatopeia do
sentido vivo (951), mas h o ataque135 de uma tecla sonora, o ataque de um acorde
desse afastamento do sentido: a poesia no o sentido, ela no faz sentido, nem o exprime,
mas concorda com o seu afastamento, ou afina [accorde] o seu afastamento, como o
prprio acorde de sua lira 136. assim que se exige rimar com a alegria ( Sei zur
Freude gereimt ).137 Rimar aqui s a metfora de concordar [saccorde{r}] porque
tambm a metonmia da poesia, e a alegria s pensada (789) ou s dita ,
como sendo o acorde que ela (ou de que ela , por sua vez, a metfora ), por causa do
intervalo sonoro do acorde potico.138 (Ou ento, seria preciso dizer: ainda uma imitao,
esse movimento ritmado de acentos e assonncias glhen/sprudelt/krglich, etc. , mas
uma imitao de qu? Ser que a rosa imita a brasa ou seria o inverso? Ser que a palavra
glhen imita a incandescncia ou seria o inverso? Ser que glhen, sprudelt, krglich se
imitam ou se respondem uns aos outros? Tudo pode se virar em todos os sentidos, em torno
134
Ibidem. Na traduo de Fdier: Toute la force rassemble sembrase dans lexubrant printemps,/ Les
roses flamboient et le vin ptille dans le Nord parcimonieux (p, 800).
135
Frappe um termo polissmico, que significa cunhagem , digitao ( faute de frappe ,
erro de digitao ), mas aqui me parece estar sendo utilizado no sentido musical, de ataque , por
exemplo, de uma nota musical, de um som, de um intrumento, de uma tecla. (N.T.)
136
Toda esta passgem explora a polissemia de accord , accorder em francs. O verbo accorder ,
como foi dito na nota X supra, comporta dentre outros o sentido de afinar ( accorder un
instrument , afinar um instrumento ), e sua forma nominal, accord , significa, acorde , em sua
forma pronominal, saccorder , concordar , pr-se de accordo . Assim, em [] elle saccorde
son cart , a frase de Nancy funde vrios dos sentidos. O que est sugerido aqui algo como : []
ela concorda com o seu desvio ou : [] ela se afina com o acorde de seu afastamento . A frase
seguinte: [] ella accorde son cart , significa ao mesmo tempo: [] ela concorda, concede ou
afina o seu afastamento (N.T.)
137
Em francs: rimer avec la joie. Traduo de Jean-Luc Nancy. O poema Bldigkeit, [ Timidez ] ao
qual Nancy faz referncia se l como segue na edio da Pliade: Que tout soit ton gr de ce quil
adviendra !/ Que la joie te trouve accord, ou quelle peine/ Crois-tu, mon cur, qui pourrait te blesser,/ O tu
dois aller quelle malencontre ? . (Hlderlin, uvres, op. cit., tr. fr. Gustave Roud et Robert Rovini, p. 789.)
(N.E.F.) O trecho, na traduo de Vicente de Arruda Sampaio : O que acontea, seja tudo oportuno para ti !/
S para a alegria rimado, ou o que poderia ento/ Te ofender, corao, o que/ L encontrarias, aonde deves
ir ? (Traduo em : Walter Benjamin, Dois poemas de Friedrich Hlderlin . Trad. Susana Kampff Lages.
Escritos sobre mito e linguagem. Duas Cidades/Editora 34, col. Esprito crtico, 2011, p. 23.) (N.E.)
138
Saccorder e accord so termos que se inserem tanto no lxico musical, afinar , acorde ,
quanto no poltico-psicolgico : concordar, acordo. Nancy joga com essa polissemia. (N.E.)
do mesmo ponto: como o sentido toca no som e o som no sentido o que quer dizer
canto ).
O ponto do contato , pois, ele mesmo, uma distncia ou um afastamento
[cart]. Esse ponto no um ponto geomtrico, de dimenso nula: ele mesmo a
dimenso, a distenso da relao potica com a unidade e com a totalidade. Ele , em suma,
a distncia absoluta do absoluto. Essa distncia absoluta tambm uma proximidade: ela
no se mede segundo a quantidade do apartamento [loignement], mas segundo a simples
natureza e a simples intensidade do intervalo enquanto tal.
Uma coisa certa: seja ao meio-dia ou caminhe-se
J para a meia-noite, uma medida sempre se mantm,
A todos comum, mas a cada um tambm uma prpria lhe dada, [...]139
Trecho de Brot und Wein [O po e o vinho], citado aqui na traduo de Paulo Quintela, op.cit..,
p.255). A traduo utilizada por Nancy, da Pliade, de Gustave Roud a seguinte: Une chose demeure
ferme. Que midi sonne ou que le temps sallonge/ Dans le cur de la nuit, une mesure est l toujours,
commune/ tous, et chacun cependant reoit en propre son destin (p. 809). (N.T.)
140
Traduo modificada por Jean-Luc Nancy. O texto se l como segue: le point fixe qui dterminera le
mode de relation du dessin ainsi que le caractre et lintensit de la couleur locale et de lclairage .
(Hlderlin, uvres, op. cit., tr. fr. D. Naville, p. 628.) (N.E.F.) [ o ponto fixo que determinar o modo de
relao do desenho assim como o carter e a intensidade da cor local e da iluminao]. (N.T.)
medida abraa tudo, a totalidade do todo, e circunscreve rigorosamente o estreito espaotempo do ponto e do tocar.
Mas essa simultaneidade e essa conjuno no so em nada uma
ultrapassagem de um pelo outro, nem de um no outro. Nenhuma efuso de um no todo,
nenhuma infuso do todo no um. A linguagem medida o metro no sai de sua medida
(toda a consiste em ater-se a ela), ao mesmo tempo que aquilo que a mede, e a qu
ela se mede, a presena nua, simples e firmemente apreendida em sua passagem,
permanece fora dela, e que ela diz esse fora, esse diante, esse em-face dela. No h seno a
conjuno a rima desse face-a-face: o um e o olhar tendido em direo a ele, a dupla
inscrio do poema, ou seja, a sua dupla excrio141. o informulvel em si [linformulable
mme] mas para o poeta e nele, o informulvel se formula (661). Este o efeito da
preciso constante da conscincia com a qual o poeta considera um todo (662).
A minha cerdeira escura ps-se entretanto pesada de frutos,
E os prprios ramos se oferecem mo para os colher.
[...]
Mas j adivinho, tambm eles me deixaram, partiram
Pra um pas santo, e nunca mais, meus queridos, voltais. 142
Trecho de Brot und Wein [ O po e o vinho ], na traduo de Paulo Quintela, op.cit.., p. 253. Na
citao da Pliade, utilizada por Nancy: Le feu divin lui-mme, nuit et jour, sefforce vers un brusque/
Embrasement (p. 809).
145
Em francs : do vient et vers lequel fait signe en retour le dieu qui vient . Traduo de Jean-Luc
Nancy. O texto na traduo de G. Roud se l assim: Cest l do vient, cest l ce que dsigne son tour le
dieu proche ! . [ l de onde vem, l aquilo que designa, por sua vez, o deus prximo! ] (Hlderlin,
uvres, op. cit.,.p. 810.) (N.E.F.; N.T.).
sentido o deus que vem : que ele venha kommt , isso que d a assonncia ou a rima
do verso dort/kommt/komm/Gott , e essa vinda rodopia em torno desse signo ou sentido
(deutet) retornado (zruck) em direo ao dort, reconduzindo o Gott ao dort. Zruck faz a
vinda girar sobre si mesma, no meio do verso e de uma assonncia surda (und/deutet) que
a do sentido, ela mesma encaixada na assonncia forte das extremidades, Dort/Gott. O deus
no seno o lugar, o lugar o lugar da partida e do retorno, da vinda que se retira e que
assim faz sentido. Assim: ou seja, segundo o verso, materialmente, segundo a escanso do
verso. Poesia: clculo material da passagem ateia. (Ler hoje Hlderlin tambm arranc-lo
da imagtica romntica que, forosamente, a sua, e da qual os deuses so uma parte.)
(Poderamos tambm compreender o verso dessa maneira: o deus que vem
da vem e d por signo retorno! , ele ordena o retorno do verso, ou seja, a leitura da sua
escanso.)
A medida a tomar , pois, sempre aquela da passagem enquanto tal. Tomar a
medida o ato do poeta, e consiste tambm, por essa mesma razo, em medir-se com o
divino . Medir-se com o divino no confront-lo numa inverossmil rivalidade: se
medir com o incomensurvel da passagem, com o incomensurvel afastamento do lugar da
passagem, para apreend-lo incomensurvel, mas apreend-lo exatamente, com a absoluta
preciso do incomensurvel, no ponto mesmo de sua incomensurabilidade. Ou seja, em sua
evidncia mesma, em sua patente aberta, no ponto manifesto da presena da passagem:
Trecho de In lieblicher Blue [ En bleu adorable [...]. Na verso de Andr du Bouchet utilizada
por Nancy : Tant que dans son cur/ Dure la bienveillance, toujours pure,/ Lhomme peut avec le Divin
se mesurer/ Non sans bonheur. Dieu est-il inconnu ?/ Est-il, comme le ciel, vident ? Je le croirais/ Plutt.
Telle est la mesure de lhomme (p. 939). (N.T.)
147
Trecho de um dos Planos e fragmentos de Hlderlin. Traduo a cargo da Revue de Posie, na dio
da Pliade: L il doit tout / Conduire/ Hors des longues/ un endroit net,/ O on verse/ La cendre, et le tout
doit/ tre brl sur le bois avec du feu (p. 932-933). (N.T.)
148
Dfaut , falta , ausncia , cf. a nota X supra. (N.T.)
149
Trata-se do final de Heimkunft. An die Verwandten [ Retour. Aux proches ]. Nancy retraduz os
quatro ltimos versos. Na traduo de Michel Deguy : Souvent il faut nous taire. Ils manquent, les noms
sacrs./ Les curs battent, et le discours ferait dfaut ?/ Mais une lyre accorde chaque heure le ton/ Et peuttre rjouit les clestes, qui sapprochent./ Prmices... ET ainsi Le souci presque/ Sapaise dej, qui venait
11. O metro responde falta do divino. Sua exatido o ponto de contato [la
mise en contact], o ponto de tangncia de duas abordagens, de duas aproximaes: a dos
celestes (Himmlische, welche sich nahn), e a do canto (beinahe [] befriediget). Beinahe
deveria se traduzir por junto ao prximo . [S]ich nahn [] beinahe : ao mais
prximo da aproximao. a proximidade mesma, quer dizer, o afastamento, mas esse
afastamento que necessrio para tocar na coisa em si [la chose mme] e essa coisa em si
uma aproximao, uma iminncia. Nem uma imanncia nem uma transcendncia, mas
uma iminncia, uma infinita proximidade que passa mais perto, que passa ao tocar o
corao que bate. o toque do sentido vivo sobre o sentido nulo , o ponto de
unidade do todo, e o espao-tempo desse ponto.
O metro mede o escancaramento [bance] da evidncia, mede-a em seu
lugar prprio, no ponto de sua vinda, na beleza do instante (511), ou seja, na prpria
passagem. O metro responde evidncia: claridade do vazio, sem dvida, mas
identicamente, abertura da claridade. O metro mede o desmedido, a plenitude do aberto.
O olho direto sobre o visvel no ponto de sua totalidade. Tal a conversa:
Fala sozinhos
Com Deus.150
Meu desejo no propor deles uma traduo melhor, mas, antes, ressaltar o
que no traduzvel porque no se deixa tampouco traduzir na prpria lngua alem pelo
menos se traduzir se limita a restituir uma significao . Seria preciso ouvir de fato:
Au-dedans des Alpes cest encore claire nuit et la nue
Composant du joyeux, elle couvre l-dedans le val bant.
Dentro dos Alpes ainda noite clara e a nuvem
Compondo algo alegre, cobre l dentro o vale escancarado.
Stphane Mallarm, Salut, Brinde, na traduo de Augusto de Campos. Optei pela composio taa
da pausa, para tentar restituir a equivocidade (N.T.)
153
No corao dos Alpes, noite clara ainda, e a nuvem,/ Fonte do poema de alegria, cobre l o vale aberto.
(N.T.)
- mas no , justamente, seno o fim infinito, que consiste ele mesmo em abrir outros fins, a
se abrir como fim, e tambm como seu nico fim sonoro, seu nico eco prolongado,
[f]reudiges dichtend .
A cada passo, a poesia de Hlderlin talvez nesse aspecto uma das mais
montonas que existam (mas ser preciso retrabalhar toda a avaliao habitual da
monotonia ) repete essa mesma coisa, ou seja, repete-se a si mesma assim: uma frase
que avana e que se suspende sobre o seu prprio sentido, que surpreende o seu sentido
adiantado ou atrasado, e cujo metro mede esse adianto ou esse atraso, cada vez infinito.
Assim:
Ele busca o repouso, precipita-se assim,
O rio []154
154
Trecho de Stimme des Volks[A voz do povo]. Citado por Nancy na traduo de Robert Rovini: Il
cherche le repos, il se prcipite ainsi,/ Le fleuve [] (p. 781). (N.T.)
155
Em francs : [] ainsi chute/ Le flot en bas, il cherche le repos, il est tir,/ Entran contre son gr, de/
Roche en roche, le sans-gouverne,/ Par la prodigieuse attirance labme . Traduo de Jean-Luc Nancy. O
texto na traduo de R. Rovini o que se segue: Par le plus court chemin revenir au Tout ;/ Il cherche le
repos, il se prcipite ainsi,/ Le fleuve que malgr lui attire/ Et dsempar de roc en roc emporte// Le
prodigieux, le nostalgique appel de labme ; . [ Pelo mais curto caminho retornar ao Todo ;/ Ele busca o
repouso, se precipita assim,/ O rio que contra a vontade atrai/ E desamparado de rochedo em rochedo carrega
// O prodigioso, o nostlgico chamado do abismo; ] (Hlderlin, uvres, op. cit., p. 781.) . (N.E.F.)
156
Cf. Hlderlin, uvres, op. cit., p. 782 : Les fils en connaissaient le relato, et bonnes/ Sont certes les
lgendes, car du Trs-Haut/ Elles sont une mmoire, mais les sacres,/ Il faut aussi pour les dchiffrer
quelquun. [ Os filhos conheciam o relato disso, e boas/ So certamente as lendas, pois do Altssimo / Elas
so uma memria, mas as sagradas,/ necessrio tambm para algum decifr-las. ] ((N.E.F.)
- ou ainda:
[]
olha! E o astro nobre,
Sabedor que tudo passa, vai,
Equnime, descendo o caminho.158
o incalculvel, sempre aquilo que vai para alm do sentido, at o que no se pode
nomear nem perda nem ganho de sentido, mas justamente a verdade do sentido, mas
justamente a verdade do sentido, o que ao mesmo tempo alegria (789) e luto . A
conjuno entre alegria e luto sem dvida o motivo hlderliniano por excelncia
responde conjuno do sentido e de sua suspenso:
157
Em francs : comme la source suit le fleuve/ Vers o il veut aller, il faut que jaille aussi / Suivre son
assurance dans lerrance .Traduo de Jean-Luc Nancy. O texto se l assim na traduo de G. Roud e R.
Rovini: [] et comme au fleuve va la source,/ De force o il va il mentrane, et lui,/ Si sr, je le suis
ttons. [ {} e como ao rio vai a fonte,/ Por fora aonde ele vai ele me arrasta, e ele,/ To seguro, eu o
sigo s tateadas. ] (Hlderlin, uvres, op. cit., p. 783.) (N.E.F.)
158
Trecho de Dichtermut[Coragem de poeta], na traduo de Paulo Quintela, op.cit., p. 217. Nancy cita a
traduo de R. Rovini: [] et vois ! lastre sublime/ Sait la route changeante et la suit/ Lme sereine
jusquau dclin (p. 788). (N.T.)
159
Em francs : Lcho de la fte steint, et toute chose ira demain/ Son chemin sur ltroite terre .
Traduo de Jean-Luc Nancy. O texto se l como segue na traduo de Ph. Jaccottet: La fte passe, et toute
chose reprendra demain/ Son chemin sur ltroite terre. [ A festa passa, e todas as coisas retomaro amanh
/ Seu caminho sobre a estreita terra. ] (Hlderlin, uvres, op. cit., p. 831.) (N.E.F.)
160
Trecho de Am Quell der Donau [Junto nascente do Dannio], traduo de Paulo Quintela, op.cit.., p.
321. Nancy cita a traduo de G. Roud: [] quand votre nue sainte enveloppe lun de nous,/ Une stupeur
nous saisit et nous ne savons en dire/ Le sens. Mais avec le nectar vous confortez darme notre souffle (p.
843). (N.T.)
O corte separa aqui mesmo o canto de seu enigma, e toca ao mesmo tempo no
jorrar mesmo. O ato do poeta, o ato da medida, de concordar [saccorder] com essa
brusca presena (849) ou com essa sobrevinda do divino que faz o divino como tal.
Se o homem/ Ama o que presente,162 ele deve aprender a sustentar-lhe a vinda e a
partida a partida que vai com , se permitido dizer assim a totalidade da presena
como o ponto, o corte nico da medida que de cada um163 (854).
O clculo mede o instante, a presena, a breve escanso da vida e do sentido, da
vida do sentido e eis por que ele mede tambm, mais do que o poema, o prprio poeta, e
no poeta antes de tudo o indivduo : A aprioridade do individual/ sobre o todo (935).
O individual, aqui, no o recinto de um individualismo. a pontualidade indivisvel, a
preciso de uma medida que a cada vez uma, ao mesmo tempo que a de todos. Tambm
a sua aprioridade no uma prevalncia, nem uma primazia: , em todo rigor kantiano, a
condio de possibilidade da experincia mesma do todo. O todo pode ser presente para
todos se ele jorra e se eclipsa em um ponto cada vez nico.
Tudo ntimo
Isso separa
Assim guarda o poeta. (924)
161
Em francs : Une nigme est le pur jailli. Mme/ Le chant peine peut la dvoiler . Traduo de JeanLuc Nancy. O texto se l na traduo de G. Roud como segue: nigme, ce qui nat dun jaillissement pur! Et
par/ Le chant lui-mme peine dvoile. Oui,/ Tel que tu naquis tu perdures. [ Enigma, o que nasce de um
jorrar puro! E pelo / Prprio canto h pouco desvelado. Sim,/ Tal como nasceste tu perduras. ] Hlderlin,
uvres, op. cit., p. 850.) (N.E.F.) O verso em alemo diz o seguinte : Ein Rtsel ist Reinentsprungenes.
Auch/ Der Gesang kaum darf es enthllen. []. Na traduo de Paulo Quintela, o trecho se l : Um
mistrio o que brota em pureza. E mesmo/ O canto mal pode desvend-lo [] , op.cit.., p. 373. (N.T.)
162
Em francs : [L] homme/ Aime ce qui est prsent . Traduo de Jean-Luc Nancy. O texto se l na
traduo de G. Roud como segue: Ionie, je songe toi ! Mais lhomme/ A le dsir profond de la prsence.
Et cest pourquoi/ [] [ Inia, sonho contigo! Mas o homem/ Tem o desejo profundo da presena. E por
isso / {}] (Hlderlin, uvres, op. cit., p. 848.) (N.E.F.)
163
Em francs : [L]a mesure qui est chacun. Traduo de Jean-Luc Nancy. O texto se l na traduo de
G. Roud como segue : Mais chacun sa mesure. [ Mas a cada um a sua medida. ] (Hlderlin, uvres,
op. cit., p. 854.) (N.E.F.)
Em francs : [S]entir et sapproprier lme commune, qui est tous en commun et propre
chacun. Traduo de Jean-Luc Nancy. O texto se l assim na traduo de Denise Naville: Quand le pote
sest rendu matre de lesprit, quand il a senti et retenu, quil a pris possession, quil sest assur de lme
collective, commune tout et propre chacun ; [] [ Quando o poeta se tornou mestre do esprito, quando
sentiu e reteve, que ele tomou posse, que ele se assegurou da alma coletiva, comum a tudo e prpria a cada
um; {]}]. (Hlderlin, uvres, op. cit., tr. fr., p. 610.) (N.E.F.) Na traduo de Mrcia Cavalcante o trecho
se l: Quando o poeta chega a assenhorear-se do esprito, quando sente, apropria-se, consolida, assegura-se
da alma comunitria, essaa que pertence a todos e no obstante prpria a cada um; [...].Hlderlin. Reflexes,
op.cit.., p. 30. (N.T. )
165
Sobre essa noo cunhada por Nancy, ver a nota X supra. (N.T.)
essa exterioridade na qual e segundo a medida da qual, somente, a presena pode vir, vir e
ir embora.
O real est sempre fora, sempre em face, exatamente l onde pousa o olhar
aberto , aquele para o qual se abre a luz , a evidncia do cu: Venha para o aberto,
amigo! . O real em direo ao qual preciso ir, infinitamente, exatamente, e a medida
potica d disso a distncia e a proximidade, o distanciamento e a iminncia no instante da
passagem.
Se o homem habita como poeta Rico em mritos, mas poeticamente
sempre,/ Sobre a terra habita o homem (939) no de maneira nenhuma no sentido de
que o potico viria modificar o habitar , muito menos embelez-lo ou sublim-lo.
No tampouco propriamente a poesia que faz da habitao uma habitao (como
queria Heidegger). , antes, o habitar sobre a terra ser/estar no real, ser/estar para o
real que faz o potico: a terra, o fora, a presena irredutvel, inaproprivel, mede o
afastamento do que l se encontra, que essencialmente l se encontra e para l se perder
tambm essencialmente. O homem no habita o cu, onde tudo sem distncia. Mas ele
tem diante dele o cu, cuja evidncia o mede. E o que ele arrisca poeticamente virar
em direo a ele, com suas pupilas atentas (869, 874), um olhar exato, infinito, no bom
momento, no momento bem calculado: a todo instante, conquanto seja o instante de um tal
clculo.
O olhar exato no se apropria de sua viso. Ele olha o que o v, ele olha que
ele visto de mais longe, de sempre mais longe na unidade de tudo. Ele toca nesse
deslumbramento, em sua iminncia, em sua passagem nfima, inapreensvel, nunca
assegurada e, no entanto, to clara e to real.
[E]u me ligo cada vez mais aos homens, pois reconheo nos pequenos assim como
nos grandes lados de sua atividade e de seus caracteres um s e mesmo carter original, um
s e mesmo destino. Sim, essa necessidade de avanar, de sacrificar um presente
assegurado a alguma coisa de incerta, de diferente, de melhor, e desde sempre melhor, que eu
considero como a causa primeira dos feitos e gestos de todos os homens que esto ao meu
redor.166 (710)
166
2. FAZER, A POESIA
168 A frase inteira idiomtica ela prpria um exerccio poemtico. O jogo entre reverso e
Ela no pronuncia, pois, nada alm daquilo que faz o ofcio da linguagem, ao
mesmo tempo sua estrutura e sua responsabilidade: articular sentido, sendo entendido
que no h sentido seno numa articulao. Mas a poesia articula o sentido, exatamente,
absolutamente (no uma aproximao, uma imagem ou uma evocao).
Que a articulao no seja unicamente verbal, e que a linguagem deixe passar
infinitamente a linguagem, uma outra questo - ou ento, a mesma: diz-se poesia
de tudo o que h de elevado e tocante . Na linguagem ou alhures, a poesia no produz
significaes: ela faz a identidade objetiva, concreta e exatamente determinada, do
elevado e do tocante com uma coisa.
A exatido o acabamento integral: ex-actum, o que feito, o que acionado
at o fim. A poesia a ao integral da disposio ao sentido. Ela , cada vez que tem
lugar, uma exao de sentido. A exao a ao de exigir uma coisa devida, depois a
ao de exigir mais do que o que devido. O que devido pela palavra o sentido. Mas
o sentido mais do que tudo o que pode ser devido. O sentido no uma dvida, no
requisitado, e podemos viver sem. Podemos viver sem poesia. Podemos sempre
dizer para que servem poetas? . O sentido um excedente, um excesso: o excesso
do ser sobre o ser ele mesmo. Trata-se de aceder a esse excesso.
Eis tambm por que poesia diz mais do que o que poesia quer dizer. E
mais precisamente - ou melhor, exatamente: poesia diz o mais-que-dizer enquanto
tal, e enquanto ele estrutura o dizer. Poesia diz o dizer-mais de um mais-que-dizer. E
diz tambm, por conseguinte, o no-mais-o-dizer. Mas dizer isso. Cantar tambm, por
conseguinte, timbrar, entoar, bater ou tocar.
O semantismo particular da palavra poesia , sua perptua exao e
exagerao, sua maneira de ultra-dizer, lhe congnito. Plato (ainda ele, o velho
challenger da poesia) enfatiza que poiesis a palavra qual se fez tomar o todo pela
parte: o todo das aes produtoras s pela produo mtrica de palavras escandidas. Esta
esgota, pois, a essncia e a excelncia daquela. Todo o fazer se concentra no fazer do
poema, como se o poema fizesse tudo o que pode ser feito. Littr (ainda ele, o poeta da
ode La Lumire [A Luz]169) recolhe essa concentrao: poema... de poiein, fazer: a
coisa feita (por excelncia.) .
Porque ento a poesia seria a excelncia da coisa feita? Porque nada pode ser
mais acabado do que o acesso ao sentido. Ele todo inteiramente, se ele , de uma
exatido absoluta, ou ento no (nem mesmo aproximativo). Ele , quando , perfeito,
e mais que perfeito. Quando o acesso tem lugar, sabe-se que ele tinha sempre estado ali,
e que, do mesmo modo, ele retornar sempre (mesmo que se devesse no saber nada
disso: mas deve-se pensar que, a cada instante, algum, em alguma parte, acede). O
poema tira o acesso de uma ancestralidade imemorial, que no deve nada
reminiscncia de uma idealidade, mas que a exata existncia atual do infinito, seu
retorno eterno.
169 M. Littr, o dicionarista, escreveu uma ode intitulada La Lumire, em 1824. (N.T.)
170
Traduo rpida : Um canto dormita em todas as coisas/ Que esto a sem parar a sonhar/ E o mundo
se pe a cantar/ Se voc encontrar a palavra mgica (J.-L. N.). Joseph von Eichendorff, Wnschelruthe
, em Smtliche Werke des Freiherrn Joseph von Eichendorff, Volume I Gedichte , primeira parte,
Harry Frhlich et Ursula Regener (ds), Stuttgart/Berlin/Cologne, Verlag W. Kohlhammer, 1993, p. 121.
(N.E.F.)
Novalis, citado por Walter Benjamin em : O conceito de crtica de arte no romantismo alemo. Traduo :
Mrcio Seligmann-Silva. So Paulo : Iluminuras, 1999, 2 edio, p. 107. (Le Concept de critique esthtique
dans le romantisme allemand. Traduo : Philippe Lacoue-Labarthe e Anne-Marie Lang, Paris, Flammarion,
col. La philosophie en effet , 1986, p. 152.) (N.E.F. ; N.T.)
quiser, mas no momento preciso sublinhar o seguinte: a prosa da qual falamos aqui
a verdadeira poesia, ou a verdade da poesia. Ora, acredito observar que hoje, em
muitas maneiras de falar sobre a questo e tambm em sua prpria pergunta, produz-se
um tal deslizamento que a prosa aparece como o outro da poesia, ou sem dvida
como sua realizao, mas por estranhamento, como se dizia outrora para traduzir o
Entfremdung em Hegel. O senhor mesmo diz auto-superao . Deveramos discutir
esse termo dialtico - mas por ora peo uma nica coisa: que ponhamos novamente
sobre a poesia, nessa questo, o acento que lhe compete ou que permanece ligado a ela,
em lugar de dar a impresso de que tudo cai na prosaicizao , que poderia deixar
crer que um prosasmo no est longe, enquanto o senhor mesmo (assim como
aqueles que citei) se guarda de empregar uma tal palavra!
Quero dizer o seguinte, muito simplesmente: se, de um lado, est claro que no
se quer mais, que ningum aguenta mais, o potico e a poetizao, a exaltao
grandiloquente, as suavidades evocatrias, o que Bataille denominava a tentao
pegajosa da poesia , para no dizer nada dos academicismos, que esto mortos, mesmo
quando academicismos romnticos, simbolistas, mallarmeanos, surrealistas ou psmodernistas , de outro, no entanto, no est claro o que se demanda com a prosa.
Para os romnticos, ainda a, era mais claro: a prosa era de uma parte a
sobriedade (sugiro que a deixemos no momento em reserva: um vasto programa,
sobre o qual, ainda a, todo mundo hoje est mais ou menos de acordo sem que o que
se trata esteja ainda bem ntido), mas era de outra parte essa dissoluo ou fluidificao
dos gneros, cujo paradigma era para eles o romance. Sei bem que o que eles entendiam
por romance no era exatamente o que ns entendemos por isso. Por uma ponta, isso
se atinha ainda ideia de um devir moderno da epopeia (e de um devir pico da
modernidade), enquanto que pela outra ponta no era seno um nome para batizar o
problema: a auto-superao infinita da poesia. Resta que no podemos mesmo mais
usar esse nome como suporte ou como ndice. Salvo erro, o romance est atrs de ns - e
ele no representa h muito tempo essa ideia da prosa . (Ou ento, seu nome
utilizado deliberadamente em contra-senso, quando alguns intitulam romance o que
no tem nada a ver com esse gnero - e seria preciso comentar esses gestos.)
Tudo isso faz com que a ideia da poesia insista mais do que nunca enquanto
tal, se posso dizer assim, ou seja, como ideia da poesia, e que apesar de tudo com essa
palavra, volens nolens173, que preciso se virar - ou antes, se confrontar, se bater talvez,
mas tambm, inevitavelmente, imperativamente, contar.
Eis o que eu diria: no se pode mais no contar com a poesia. Ou: preciso
contar com a poesia. preciso contar com ela em tudo o que fazemos e pensamos dever
fazer, em discurso, em pensamento, em prosa e em arte em geral. O que quer que
haja sob essa palavra, e supondo que no haja a mais nada que no seja datado, finito,
desalojado, aplainado, resta essa palavra. Resta uma palavra com a qual preciso contar
porque ela exige o que lhe devido. Podemos suprimir o potico , o poema e o
poeta sem muitos danos (talvez). Mas com a poesia , como todo o indeterminado
173
Volens
nolens
,
expresso
latina
:
querendo
ou
no
querendo
.
(N.T.)
de seu sentido e apesar de toda essa indeterminao, no h nada a fazer. Ela est a, e
est a, mesmo que a recusemos, a suspeitemos, a detestemos.
4. Essa superao estaria ligada, ainda a, s relaes da poesia com as outras
artes? E mais particularmente a uma nova maneira de conceber sua tecnologia? Les
Muses denuncia no plano dos princpios as oposies e as reticncias onde se aferra o
pensamento da tcnica em se tratando das artes: qual esforo particular a sua
superao suporia da parte da poesia?
Permita que eu aproveite o ponto precedente para passar sua quarta questo.
Pelo menos, vou me servir dela para encadear sobre isto:
Se a poesia insiste e resiste - ela resiste a tudo, de uma certa maneira, e talvez
tambm porque os poetas se nos afiguram frequentemente como pintores de domingo,
como o senhor diz com razo: a insistncia da poesia percorre at as formas mais
humildes, mais pobres, mais desmunidas, at verdadeiras misrias literrias, at o gosto
mais aucarado ou mais imbecil por mingaus meio cadenciados de esoterismo e de
sentimentalidade (h a como que uma mendicncia), mas se ela vai at a, to baixo,
porque ela insiste, porque ela demanda alguma coisa, e alguma coisa que, creio
verdadeiramente, no podemos reduzir s recadas pequeno-burguesas do pior
romantismo (do gnero poesia de adolescente , ou mesmo, antes disso, as manias
de rimar das quais se ri em Molire), alguma coisa que no subcultura , nem
mesmo cultura simplesmente -, se a poesia insiste e resiste, portanto, alm dessas
manifestaes derrisrias, e por outras razes.
(Com certeza seria preciso ainda analisar como a vulgaridade potica to
espalhada se atm aparente proximidade das tcnicas poticas, diferentemente das
tcnicas das outras artes. No me deterei nisso aqui.)
Quais so, portanto, as razes da resistncia potica? Eu veria ao menos dois
mveis: de uma parte, uma resistncia ao discurso; nesse sentido preciso, de que no
uma resistncia ao conceito, razo, nem ao juzo, lgica ou prova, mas uma
resistncia ao infinito (ao mau infinito , em termos hegelianos) do discurso que se
esgota, cuja lei um esgotamento infinito, necessrio em sua ordem e todavia
apaziguante, apaziguando-se, se posso dizer, sob a injuno paranoica de constituir o
verdadeiro ao constituir-se a si mesmo, assumindo-se e se reabsorvendo em sua
autoconstituio e em sua autocompreenso.
Tomo um exemplo, porque me parece que seja necessrio dar um. Sem a menor
vontade de faltar ao respeito com Husserl, citarei essa concluso (o que foi colocado em
concluso, e que, portanto, no chega a concluir esse texto inacabado) da Krisis [Crise].
Oua:
[...] Razo justamente significa aquilo que o homem enquanto homem deseja em seu
mais ntimo, a nica coisa que pode satisfaz-lo, torn-lo feliz ; significa que a Razo no
admite nenhuma separao entre razo prtica , terica , esttica e no sei o que mais;
que ser-homem ser teleologicamente e dever-ser, e que essa teleologia reina em tudo aquilo
que fazemos, e em tudo aquilo que temos em vista egologicamente, que ela pode reconhecer
sempre nisso, pela compreenso de si, o telos apodtico, e que esse reconhecimento da ltima
compreenso de si no tem outra forma seno a compreenso de si segundo princpios a priori, a
compreenso de si na forma da filosofia. 174
Penso que o senhor entende o que quero sugerir: esse discurso, indefinidamente
desenvolvvel (e que Fink projetava prosseguir), diz tudo exceto aquilo de que fala
por ltimo , a forma da filosofia - ou antes, ele diz, ele discorre sobre ela, mas ele
tambm a indefinida de-formao ou o indefinido retardamento disso (o senhor notou
alm disso, a propsito, a invocao de uma razo esttica que no deveria estar
separada ...). A isso, a poesia resiste. Ela pode admitir tudo o que est dito a (por
ora, no faamos tempestade num copo dgua por causa do que est dito, tal como est
dito aqui), mas ela no pode admitir que a forma em questo se envolva, e em suma
se forme a si mesma de sua prpria denegao. Quando digo que a poesia no
admite , isso no quer dizer que ela seja uma instncia de autoridade que teria o direito
e o poder de uma tal recusa. preciso antes dizer: essa recusa a poesia, e mesmo
quando a poesia permanece ou parece, nesse instante, completamente indeterminada,
esta palavra , ao menos, determinada por essa recusa e como seu prprio gesto.
(Acrescentemos o seguinte: na 3. pergunta, no sei muito bem o que o senhor
entende por gosto da poesia por objetos parciais , mas se devo compreender que se
trata do que no seria o objeto infinito do discurso, ento eu diria que no h
objeto que no seja parcial , mas que o parcial , aqui, no a separao
concertada de uma falta. , ao contrrio, a distino, o destacamento - sobre fundo de
nada graas ao qual pode haver objeto em geral.)
De outra parte, o que resiste com a poesia - e muito certamente, numa conexo
estreita com o que precede - o que, na lngua ou da lngua, anuncia ou retm mais do
que a lngua. No da supra-lngua nem da ultra-lngua , mas a articulao que
precede a lngua n ela mesma (e que tanto uma seo e uma praxis , ou um
ethos , quanto propriamente uma enunciao ) e, sem dvida, alguma coisa dessa
articulao enquanto ritmo , cadncia , pausa , sncope ( espaamento ,
batimento ), e com isso, nisso, alguma coisa do que eu denominaria de um desenho,
para no dizer figurao . O sentido enquanto desenho, e no no continuum do...
sentido. O sentido retirado, nesse sentido, e no discorrido. Ou ento, se o senhor quiser,
a inflexo (a voz, o tom subido, abaixado ou mantido; o retorno ao lugar da linha reta; a
dobradura no lugar da sintaxe, etc.). Isso insiste desde a cano, desde a parlenda, e
tambm at o discurso, com certeza, por vias mais ou menos discretas de retrica e de
prosdia. Diria mesmo, e ainda que eu no goste desse lxico, isso insiste no
inconsciente e como inconsciente que a lngua (o que diz uma coisa totalmente
diferente, o senhor o compreende, do que a frmula do inconsciente estruturado como
174
Edmund Husserl. La Crise des sciences europennes et la phnomnologie transcendantale [A crise das
cincias europeias e a fenomenologia transcendental] Traduo francesa de Grard Granel. Paris :
Gallimard, col. Bibliothque de philosophie , 1976, p. 304-305. (N.E.F.)
uma linguagem).
Essa insistncia no nem infantil nem popular, no sentido de que se poderia
roar aqui um infantilismo e um populismo da poesia. Em compensao, eu diria com
prazer que se esconde a algo do que o povo tem para ns de to problemtico e de
to difcil, de to longnquo, e algo da existncia forosamente popular da lngua.
Popular quer dizer aqui: no dominado, no regido, no normalizado.
Se a tecnologia , como o senhor diz, da Poesia designa o conjunto dos
recursos lngua enquanto desenho , assim distinguida do fora-da-lngua da
informao, se ela designa o conjunto de reviravoltas pelos quais o sentido redemanda
o som (como diz Valry), ou ainda o conjunto dos espessamentos, das densificaes,
dos endurecimentos do signo como tal - e no como signo de -, e tambm o
conjunto da co-originaridade dos signos linguageiros entre si, de sua coalescncia e de
sua intricao, a estrutura que os encaixa todos uns nos outros, em massa e dispersos, a
maquinaria da assonncia do sentido, tudo o que faz com que a linguagem no seja uma
tcnica, mas justamente a tecnicidade mesma, a tecnicidade simblica que no nada
seno a tecnicidade tout court (veja-se Leroi-Gourhan comentado por Stiegler, La
Technique et le Temps [A Tcnica e o tempo],1, p, 173 sq.) - se a tecnologia da poesia
designa o conjunto (por sinal, varivel, diacrnico, ainda que estruturado talvez por
cortes [coupes] sincrnicos, como por exemplo, e talvez mais que exemplo, o conjunto
das variantes do refro, que ele mesmo um corte sincrnico...) dos procedimentos da
linguagem para se designar a si mesma em sua natureza de tekhn, ento, com efeito,
no surpreende que a exibio tecnolgica generalizada das artes - isto , tambm o
retorno ao sentido de seu nome, ars, e a grande deriva empenhada quanto ao sentido
geral de uma palavra que se acreditava ter sido submetida ao regime esttico -, no
surpreendente que essa exibio v de par com uma desqualificao da arte maior e
com uma recolocao em jogo ela mesma maior - de sua tecnicidade prpria. A
prosdia, a mtrica, as determinaes cannicas das formas, as licenas poticas,
lexicais ou sintticas, a sonoridade real (Hegel), tudo isso insiste junto a ns, tudo
isso pressiona de alguma maneira no auseinandergeschrieben de Celan175 - e para alm
dele. Certamente no quero dizer que a ode ou o soneto, o hexmetro ou a cesura so
como tais atuais: quero dizer que a tenso da qual eles foram os frutos est de volta, no
tendo jamais cessado, no podendo cessar.
Mas preciso ento que eu acrescente alguma coisa: desde que se considera a
poesia sob esse ngulo tcnico , que no sem dvida totalmente um ngulo
particular, bem possvel que a poesia re-encene por si s a cena da diferena entre as
artes. Do mesmo modo como no h mais, em ato, uma arte geral, a arte estando ao
contrrio na diferena entre as artes, tampouco h mais poesia em geral, mas a poesia
est cada vez na diferena do que recentemente se denominava de seus gneros e suas
formas, diferena ela prpria combinada com a diferena das lnguas, e com essa outra
175
romantismo). Mas decorre disso igualmente que essa posio maior no d lugar a
nenhuma funo federadora nem expressiva de uma totalidade da arte: ela
articula a medida - delimitao e modo distinto - que os distribui auseinander,176 juntos
uns fora dos outros. (Retomo assim, de vis, um motivo da medida que Heidegger
introduz a partir de Hlderlin, e que pediria a esse ttulo todo um comentrio
particular.177) Essa medida ela mesma a medida do sentido, que tambm justamente
aquilo que se visa como essncia ou finalidade sensvel das artes, de cada uma delas e da
prpria poesia. Como o sentido medido, eis a questo, e eis o que engaja
simultaneamente, uma na outra, uma ontologia e uma tecnologia das artes.
O que chamei aqui de a resistncia da poesia, seria, em suma, a resistncia
da linguagem sua prpria infinidade (ou indefinidade, segundo o valor exato que se
dar ao infinito ). A resistncia desmedida que a linguagem por ela mesma e,
por conseguinte, uma resistncia inscrita na linguagem mas a seu reverso, ou como seu
reverso. Poderamos tambm diz-lo assim: a indefinida expanso da linguagem, sua
tagarelice constitutiva (veja-se as anlises sugestivas de Peter Fenves em Chatter
Language and Historicity in Kierkegaard [Tagarelice Linguagem e historicidade em
Kierkegaard]. Stanford, 1993), est na ordem da aproximao sem fim; seu reverso a
exatido sem resto. Esse reverso est inscrito diretamente na linguagem, lhe tambm
constitutivo, e tambm a razo pela qual a resistncia potica pode tanto levar ao
silncio (que no exato seno por ausncia) quanto se deixar pegar pela tagarelice e
pela desmedida.
Eis tambm por que a resistncia potica mais sensvel, mas tambm mais
difcil, quando uma poca tem conscincia (com ou sem razo) de estar mais do que uma
outra entregue tagarelice ( assim com a nossa). (Ao contrrio, numa poca de lngua
cerrada, exata, a poesia declina: h mais poesia em Rousseau ou Diderot do que em
Delille ou Chnier.)
Eu ficaria por aqui. Muitssimas outras coisas se apressam ao mesmo tempo.
Voltemos a falar delas um outro dia.
Traduo: Joo Camillo Penna, Eclair Antonio Almeida Filho e Dirlenvalder do
Nascimento Loyolla
176
um estudo sobre esse trao que, pode ser mostrado, toca no pensamento de muitos
outros. Digo complexo para brincar, pois penso simplesmente que algum filsofo
ou poeta e muito raramente seno nunca os dois, e isso por razes fundamentais, das
quais teremos talvez que voltar a falar.
Em seguida, houve para mim o encontro to importante de Philippe Lacoue-Labarthe
e a colaborao com ele (que no est terminada, pois pensamos em fazer alguma coisa
juntos sobre a literatura, precisamente!178). Philippe estava ao contrrio dividido entre
filosofia e poesia. Quando o conheci, ele acabava de publicar poemas, como ele o fez de
novo h alguns anos. Em seu trabalho filosfico, eu diria que o rigor do conceito est
sempre pronto a virar severidade para com a filosofia, medida em que ela se apropria
(do sentido, da verdade), e indicando assim a poesia como verdade de um
reconhecimento de inapropriabilidade. Era a verdade de Hlderlin contra a de Hegel,
tema de inumerveis discusses entre ns. Mas isso comporta tambm uma condenao
da poesia julgada ela mesma apropriante: por exemplo Char, ao qual me havia iniciado,
um pouco antes, um outro grande amigo, Franois Warin, que me fizera tambm
conhecer Heidegger. Pouco depois, vir a conhecer Jacques Derrida era encontrar ainda
uma outra configurao: digamos, a de um roamento contnuo acompanhado de uma
deiscncia permanente entre poesia e filosofia, e isso em dois planos simultneos, de
pensamento e de escrita, eles mesmos postos um ao lado do outro, como reverso e
anverso
Eis o contexto, e acredito que ele no anedtico. o contexto de uma filosofia
presa a uma interrogao muito potente, que vinha dela mesma, sobre sua prpria
forma ou escrita , ou seja, evidentemente sobre o fundo do que ela pe em
jogo, quer o nomeemos sentido, verdade, logos ou ainda pensamento , no sentido de
Heidegger (em quem tudo isso estava in nuce). E essa situao nossa, eu a reencontro,
diversamente modulada, tanto em Deleuze quanto em Badiou ou Rancire.
Penso que se joga nisso uma grande e interminvel partida, que teve incio com efeito
com Plato, como o senhor o lembra. No o lugar de tratar disso ex professo. , antes,
o lugar de tentar, como eu fao, juntar os traos de uma imposio cultural, somada a
um mal-estar, e de uma inquietude do pensamento, somada a um desejo, com a
finalidade de simplesmente designar o seguinte: ainda no demos conta da poesia 179,
quer a odiemos (Bataille, Artaud), quer a veneremos. a isso que eu acabei querendo
dedicar alguns pequenos textos, a esse motivo (nem mesmo uma ideia!), de que o ttulo
Rsistance de la posie [Resistncia da poesia]180 d bem conta.
No curso desse trajeto, com efeito, estive por todos os lados: fiz filosofia, arrisquei
at mesmo alguns poemas (sit venia verbo), joguei e gozei compondo uma pardia
completa de La Jeune Parque [A Jovem Parca] (A Jovem Carpa), num volume
178
Esse
projeto
acabou
no
se
realizando.
A
entrevista
data
de
2003,
e
Lacoue-Labarthe
morrer
coletivo dirigido por Philippe [Lacoue-Labarthe] e Mathieu Bnzet sob o ttulo Haine
de la posie181 [dio da poesia]), e enfim provei a resistncia em questo. (Mas a
propsito da A jovem Carpa, acrescentarei esse testemunho interessante: essa pardia
de Valry, de metro, extenso e maneira calcados sobre seu poema, foi julgada por
Roger Munier este justamente o lugar de nome-lo, j que a revista LAnimal lhe
dedicou um nmero (o 11/12) verdadeiramente potica: ele me havia dito que no via
nela uma pardia no sentido bufo do termo. Fiquei muito satisfeito com esse
comentrio, mas Munier foi o nico a me dizer isso, e sua observao sempre me deixou
perplexo quanto s possibilidades, necessidades e critrios da leitura do poema .
(Acrescento ainda isto: j o poema de Valry, sem dvida, pardico em algum
respeito) Nesse caso ainda, o senhor o compreende, a sombra de Heidegger no est
longe Eu diria portanto: no estamos quites com a poesia, seguramente mas nem
muito menos com a questo: qual poesia? Para permanecer num pequeno crculo outrora
maldito : Mallarm, Corbire ou Verlaine?
Enfim, nesse interesse complexo pela poesia (e pela arte, pois uma no vai sem a
outra) a renovao recente da poesia na Frana desempenhou um papel decisivo. H
trinta anos se produz um trabalho considervel, polimrfico, certamente desordenado e
aventuroso, em muitos dos aspectos mas como seria de outra maneira? que
testemunha de um desejo tenaz, spero at, e tenso, exigente, de uma poesia subtrada,
ao mesmo tempo, ao romantismo, ao surrealismo, ao conceitualismo e, se quisermos,
tendencialmente despoetizada No vou citar nomes, haveria nomes demais ou no o
bastante. Mas o fenmeno notvel, e generoso.
E. L.: Se lhe fao essa pergunta, tambm porque a relao da filosofia com a poesia
no indene: no entanto, o que interessa aqui no abordar a indenidade que a
filosofia deveria verter [verser] sobre a poesia, ainda que fosse preciso talvez tambm
pensar com isso a relao entre elas, mas antes saber, a partir do problema que Beda
Alleman enfatiza desde as primeiras pginas de seu ensaio Hlderlin et Heidegger
([Hlderlin e Heidegger] PUF, 1959), como se d o dilogo entre a filosofia e a poesia,
ou ento ainda, como o prprio pensamento se reencontra na poesia, e o que se passa
quando a poesia ressoa no pensamento ?
J.-L. N.: Parece-me que se o pensamento se reencontra , como o senhor o diz, na
poesia, precisamente na medida em que ele se encontra nela enquanto pensamento e
no enquanto discurso filosfico. Mas ponhamos logo de sada, se o senhor quiser, essa
condio necessria mesmo se no suficiente que primeiramente o discurso deve ser
escrupulosa e estritamente mantido, sem repouso, sem interrupo, e interminavelmente
(seguindo esse curso incessante que ele no cessa de seguir e que ele no pode deter sob
pena de falhar em seu dever elementar: jamais cerrar nem encerrar uma verdade). Essa
condio sendo preenchida o que quer dizer, preenchendo-se indefinidamente h de
fato uma ressonncia como o senhor diz. No discurso ressoa alguma coisa que vem de
alhures, do fora do discurso. Poderamos dizer: o sentido do discurso no est no
181
Haine de la posie. Paris, Christian Bourgois diteur, 1979. (N.E.F.) Ver aqui mesmo, A jovem
parca, de Jean-Luc Nancy. (N.T.)
discurso, para modificar uma frase de Wittgenstein. Essa ressonncia o eco de uma
certa sonoridade, talvez uma voz, talvez um chamado, que vou tentar situar ao menos,
j que por outro lado fracasso em caracteriz-la acrescentando um detalhe ao aplogo
platnico da caverna.
Nesse aplogo, sempre fiquei intrigado com o momento em que se destaca um dos
prisioneiros que se tornar filsofo. Quem o destaca? No est dito. forosamente
algum que j filsofo, j que ele vai dizer ao prisioneiro que o que ele via no era
seno futilidades (phluariai). forosamente um filsofo quem faz esse gesto de
libertao, em cuja violncia Plato insiste: violncia de fazer aquele que estava
acorrentado virar o pescoo e levantar os olhos. Mas quem ter libertado o primeirssimo
futuro filsofo? Um outro, um no-filsofo, forosamente. Quem? No procuro
adivinh-lo. Ressalto por outro lado que ele deve no somente violentar o prisioneiro,
mas lhe falar. Plato escreve: algum diz ao prisioneiro que o que ele via eram
phluariai . Essa palavra designa de fato mais propriamente tagarelices , espuma
verbal (h uma ideia de ebulio, de transbordamento, at de vomio). Certo, essa
palavra j faz ouvir o discurso filosfico, mas mais uma vez, quando do primeiro
episdio preciso imaginar, ou uma antecedncia infinita sobre si da filosofia ( a sua
lgica mais constante, de fato), ou ento, apesar de tudo, uma outra voz, estrangeira ou
no ainda filsofa, que chama e que denuncia a tagarelice, a logorreia. O fundo da cena
est numa voz, por trs das imagens espetaculares dos jogos de sombras e do
deslumbramento do prisioneiro destacado. Essa outra e mesma voz que denuncia a
phluaria, no a poesia? Ou ento, se cedo demais para falar dela, uma outra, prxima
e distinta maneira de interpelar para cortar de cara o fluxo? Ora, isso que importa: o
chamado a uma lngua que no espuma, que no propaga sinais sonoros, mas que fala e
que ensina, que revela ou que profere o que falar.
Note, alm do mais, que pode haver eco na caverna: isso foi dito um pouco antes.
Esse eco como a sombra carregada das vozes dos passantes do lado de fora. Mas
preciso justamente que tudo comece por um eco de uma voz vinda de nenhuma parte e
que interrompe o fluxo linguageiro, a futilidade linguageira, a fim de falar. No um eco
enquanto reflexo, mas enquanto ressonncia, porque isso no vem de um fora mais
real , mas vem, de fato, do interior da caverna, do mais profundo dela (ou ento, j
que a mesma coisa, da simples superfcie de sua parede). Eis o que ressoa no discurso
filosfico assim que ele abre a boca, no momento mesmo em que se pe a filosofar, em
que ele vai importunar o prisioneiro libertado com o inesgotvel ti esti, o que ? diga!
Diga, pois, o que ! o que realmente! . A ressonncia, ela, faz ouvir: no diga o que ,
mas faa ser o seu dizer. Essa inverso quiasmtica no uma pirueta: o esboo mais
simples, e com certeza tambm o mais pobre, do que faz ressonncia entre poesia e
filosofia, dizer o ser ou ser (fazer ser) o dizer. O que ainda no d nada mais do que uma
isca.
E. L.: Pois o que resta , todavia, como ponto exato da tenso potica (ou do
potico?), uma forma de afastamento que ela integra ao seu processo ( sua tekhn,
ao seu poiein, ao seu fazer) afastamento que a conduz a parar o pensamento nela, a
Cf. Des lieux divins suivi de Calcul du pote. Mauvezin : ditions T.E.R. Trans-Europ-repress, 1997
[1987]. (N.E.F.) Aqui mesmo, neste volume, Clculo do poeta . (N.T.)
183
Nancy joga aqui com o sentido equvoco do vertbo sauter em francs, saltar e desaparecer. Uma
duplicidade equivalente em portugus seria o verbo danar, no sentido de movimento com o corpo e
na gria, perder, desaparecer. Adotei como equivalente a frmula meio idiomtica saltar (fora); que
condensa: saltar fora, i.e., sair; e saltar, pular. (N.T.)
184
Referncia noo formulada por Jacques Derrida, num ensaio clebre de mesmo titulo. Ver supra, p.
XX. (N.T.)
encantao: retorno em direo ao dio da poesia). Mas deve querer ser surpreendido
em seu prprio querer. Ou ento deve querer por surpresa.
Digresso: vou copiar aqui para o senhor uma citao de Sneca transcrita num
pedao de papel que anda por cima da minha escrivaninha h j no sei mais quantos
anos. Neminem mihi dabis qui sciat quomodo, quod vult, coeperit velle : non consilio
adductus illo, sed impetu impactus est. ( Tu no me mostrars ningum que saiba como
comeou a querer o que quer: ele no foi conduzido a isso pela reflexo, mas impelido
por um mpeto [pousse]. ) Se amo essa frase, porque sou muito sensvel ao mpeto
em questo, sem o qual sinto que eu permaneceria indefinidamente veleidoso. Ora,
exatamente o mesmo mpeto, a mesma sacudida, que eu sinto decidir da justeza do dizer
e digo com preciso: no um achado ou uma inveno da palavra justa, coisa to rara,
mas no mnimo um sentimento to potente, to agudo, de que em tal momento, em tal
lugar do discurso e da existncia, necessria, seria necessria, a palavra justa. Nem a
primeira nem a ltima palavra, mas a palavra justa do momento. Um kairs de lngua.
O poeta deve ser tcnico desse kairs. Uma tkhne karica, eis o osso potico
entendo o osso como aquele dos crnios das Vaidades.185 Duro, ameaador, que faz
obstculo e d a pensar. Uma tkhne que saiba lidar com o kairs, mas primeiramente
com aquele que permita capt-la ela mesma
A Vaidade um gnero de natureza morta, muito comum no barroco sobretudo flamengo, que contm
invariavelmente, dentre outros elementos alegricos, uma caveira, significando o vazio da existncia
humana. (N.T.)
186
Supra, p. XX. (N.T.)
187
Sobre
coupe
ver
supra,
p.
XX.
(N.T.)
Em francs vers, verso, e ver, verme so homfonos. A frase no iriginal: le vers/le ver fait
entendre la mort. (N.E.F.)
189
Nancy joga aqui com o duplo sentido do verbo entendre em francs, ouvir e entender. (N.T.)
190
Jacques
Lacan.
A
direo
do
tratamento.
In:
Escritos.
Trad.
Vera
Ribeiro.
Rio
de
Janeiro:
ed.
Zahar,
1998,
p.
648.
(N.T.)
191
Ser-para-a-morte, tema em especial do primeiro captulo da segunda seo (pargrafo 46 a 53) de
Ser e tempo de Heidegger. (N.T.)
E. L. : De qu finalmente feita essa ateno calculadora, e onde ela se choca, ela tem
alguma relao, mesmo que paradoxal, com a faculdade da razo?
J.-L. N. : Certamente. A razo d razo, seu ofcio. Como dar razo da parada do
sentido, quer dizer, justamente da suspenso da razo? Mas, entenda-se bem, isso
necessrio e possvel: o que faz a poesia. assim que compreendo, ou antes, que
imagino o lao em Heidegger entre a anlise do princpio de razo e a poesia. No
constitui nenhuma dvida de que Heidegger poetizou em excesso, que deu numa
celebrao piegas e, alm do mais, nacionalista ( o canto alemo de Hlderlin) da
poesia. Resta que sua anlise do princpio de razo , de sua incubao no curso da
histria do Ocidente e da atualizao pela tcnica de sua ausncia de fundamento ou de
fundo no pode nem ser recusada nem riscada com um trao de pluma.
De fato, a razo kantiana, hoje revisitada, nos expe isso: o comando de sempre visar
um mundo racional ou razovel, ao mesmo tempo despojando a razo cognitiva dos
meios de construir esse mundo (ela constroi objetos de conhecimento, no um
mundo como espao de sentido), ou mesmo somente fazer um modelo disso ( no
fundo o que est em jogo na tpica da segunda Crtica: a ideia de natureza no
pode fornecer um esquema organizador, mas somente um tipo distanciado para
indicar a forma de um mundo moral ), eis uma problemtica com a qual ainda no
estamos quites. O que no quer dizer que seja preciso voltar a Kant ao contrrio! Pois
o que quereria dizer um tal retorno? A qual Kant ?
Mas volto razo: sim, absolutamente, a razo demanda a poesia. Ou seja, demanda
seu prprio excesso, que no o seu esquecimento. A razo calcula seu prprio excesso,
a razo, portanto, excede seu prprio clculo: perdoe-me, todavia, essa aparente
facilidade. Razo no raciocnio. Kant sabia muito bem disso. Hegel, depois dele,
tanto quanto, para no dizer melhor. A poesia era a, a cada vez, como o duplo incerto,
inquieto e inquietante, segundo os momentos, da razo raciocinante. Essa no uma
questo pequena, se o senhor pensar no que razo quer dizer para toda a nossa
tradio. Se poesia permanece uma palavra to potente, mesmo ao preo de
tentaes pegajosas , exatamente na medida das potncias inquietas e contraditrias
recobertas pela dita razo .
O que queria Plato, no fim das contas? Regular a poesia pela razo, e produzir uma
poesia racional pois ele retoma todos os elementos da poesia para regul-los segundo
exigncias precisas. A filosofia como o mais belo dos poemas , assim como o dizem
as Leis. Durante muito tempo, at o romantismo em definitivo, essa possibilidade de
regulao mtua, essa possibilidade de um poema de razo e de uma razo
potica existiu, ou bem nos parece ter existido. Ao mesmo tempo, a falha estava
sempre l, j que ela consiste precisamente na distino entre razo e poesia, ou ento
entre duas razes, uma filosfica e a outra potica, ou ento entre duas poesias, uma da
razo, a outra sem razo, etc. Todas as figuras dessa partilha/interferncia existiram
presta
a
um
sacrifcio
pelo
qual
sangrou
o
corte
vermelho
dos
antigos
tomos;
a
introduo
de
uma
arma,
ou
corta-papel,
para
estabelecer
a
tomada
de
posse.
Stephane
Mallarm.
O
livro
instrumento
espiritual.
In:
Divagaes.
Florianpolis:
ed.
USFC,
2010,
p.
183.
(N.T.)
seria demasiado longo). Eis por que prefiro hoje ler aquilo que se apresenta como poesia
mesmo que seja para ficar decepcionado com isso, algumas vezes, ou mesmo
frequentemente. No sei onde o romance passou (nem o teatro alis). Coisas muito
justas e belas tm sido escritas sobre a prosa, por Lacoue-Labarthe ou por Agamben,
entre outros. Mas ns falamos da prosa e no sobre a prosa . Isso dito, est
exatamente o nosso tempo: h mais sobre que aquilo-sobre-o-qual Tenho
justamente medo tambm de falar demasiado sobre . Ou bem talvez seja um receio, e
tambm uma fadiga, que acontece a todo terico. Veja s: ontem a noite eu estava num
concerto (James Blood Ulmer e Rodolphe Burger, para nome-los) e fui invadido por
um imenso arrependimento de no tocar msica!
Cf. Jean Amry, Em que medida temos necessidade da terra natal ? , em Alm do crime e castigo.
Tentativa de superao. Trad. Marijanne Lisboa. Rio de Janeiro : Contraponto Editora, 2013. (N.T.)
Cf. J.-L. Nancy, Vers endurci , posfcio de : Philippe Beck. Dernire Mode familiale. Paris :
Flammarion, 2000. (N.E.F.)
198
Cf. J.-L. Nancy, prefcio de: Grard Haller. Mtoriques. Paris: Posie Seghers, 2001. (N.E.F.)
199
Cf. J.-L. Nancy, Pome de ladieu au pome : Bailly . Po&sie (Paris, ditions Belin), no 89, 1999,
p. 59-63. (N.E.F.)
Fico s com esses nomes uma vez que minha relao com eles pblica, e pertence, de
fato, minha preocupao pela coisa poesia , mas haveria outros dos quais eu no
saberia mesmo esboar uma lista. Tantas vozes ouvidas na curva de uma revista, de um
livro recebido ou descoberto vozes de mulheres, em particular (h algumas, aqui, neste
mesmo dossi, e j que estou nesse ponto, nomearei pelo menos Ryoko Sekiguchi, cujo
poema est inserido em um dos meus textos200). H a uma abundncia jocosa, at em
seus riscos ou em seus extravios. Tantas vozes ou versos que me tocam ou me
interessam: o interesse deveria ser construdo como uma categoria no do gosto, mas
de um quase-gosto pelo tempo das dvidas e exploraes. Mas no h a nenhuma
classificao, e no uma clusula de estilo. H tantas obras que no conheo, e talvez
tantas bem mais considerveis! Mas gosto muito da situao que a do contemporneo
enquanto tal: um encontro marcado em estado bruto. Uma ocasio nos rene, nenhum
critrio nos precedeu, e ns nos experimentamos um ao outro em suma ready-made,
em cuja concepo, como o senhor sabe, o encontro marcado desempenha um papel
determinante. No tenho nenhuma espcie de pretenso a legislar, por pouco que seja,
num tal domnio: que ridculo seria! um prazer, um pouco, uma curiosidade, uma
sensibilidade ou, para dizer melhor, uma suscetibilidade, uma excitabilidade. Sou
suscetvel a impresses que excitam, implicam, espetam ou enervam em mim algumas
cordas estranhas, das quais no sei e das quais no entanto creio muito bem saber por que
elas esto postas a, falsamente paralisadas, ao lado dos teclados e tabuladores do
trabalho dos conceitos Os sentidos do verso, do vertimento, da chuvarada
[averse]201 e do reverso. O reverso da filosofia eis um tema Mas filosofia e poesia
no tem um nascimento comum, estruturadas que so como um anel de Moebius ?
Uma ltima palavra: h nesse anel justamente ao mesmo tempo uma possibilidade de
angstia (no nos livramos dela) e uma disposio brincalhona (como um fort-da! que
remeteria sem fim uma outra). A conjuno ou quem sabe, mais, a identidade
[mmet] entre angstia e jogo, eis o que a poesia tem a temeridade de assumir, ou
bem de brincar202. Tornou-se para ns, hoje, muito difcil brincar, entendido em
modo nietzscheano, o grande jogo do mundo e a divina criana brincalhona. Mas
ao mesmo tempo, que haja jogo no sentido, no mundo, nos mais cerrados dos
sistemas e no amor/morte, jogo no sentido de um conjunto brincalho que no junta as
peas de maneira totalmente correta, isso tambm faz parte de ns hoje. Paradoxo: o que
resiste, porque h brincadeira.
Cf. Ryoko Sekiguchi, Calque [Calco]. Paris : P. O. L, 2001, citado por Jean-Luc Nancy em
Loscillation distincte { A oscilao distinta ]. In : Sans commune mesure (image et texte dans lart
actuel) [Sem medida comum (imagem e texto na arte atual)]. Paris : ditions Lo Scheer, 2002 ; retomado
em Au fond des images [No fundos das imagens]. Paris : Galile, col. critures/Figures , 2003, p. 145.
Esse texto figura em alemo na traduo deste ltimo livro e, retomado na mesma traduo de Emmanuel
Alloa, no coletivo Bilderfragen. Die Bildwissenschaften im Aufbruch {Questes de imagem. A cincia da
imagem em movimento]. Hans Belting (dir.). Munich: Wilhelm Fink Verlag, 2007). (N.E.F.)
201
Averse em francs uma chuva abundante (N.T.)
202
Jouer,
termo
polissmico,
brincar,
jogar,
derivado
de
jeu,
jogo,
brincadeira.
O
trecho
joga
com
essas
diversas
acepes.
(N.T.)
5. WOZU DICHTER
Neste breve artigo, permito-me traduzir sem passar em revista as tradues numerosas e em sua
maior parte de grande autoridade nem dar no que concerne o alemo, salvo de maneira pontual, as
justificativas necessrias. No fao obra de fillogo, nem tampouco, alis, de filsofo de Hlderlin : nada
seno uma apostila convidando a prosseguir o trabalho. (N.A.) Traduzo aqui e adiante as tradues para o
francs feitas pelo prprio Nancy. Na traduo de Paulo Quintela, o verso l-se assim : No sei; e para
qu Poetas em tempos de indigncia ? A traduo de Quintela introduz um curioso matiz portugus ao
Wozu alemo, ao pontuar a diferena entre por que ? , que remete a uma causa, e para qu ? , que
remete a uma finalidade. (Hlderlin. Poemas. Lisboa : Relgio dAgua Editores, 1991, p. 261.) (N.T.)
204
Na traduo de Quintela, os versos se leem assim: [] Entretanto, s vezes melhor me parece/ Dormir
do que viver assim sem companheiros, ter/ De esperar assim; e o que fazer e dizer entretanto/ No sei; e
para qu Poetas em tempos de indigncia? (ibidem, idem.) (N.T.)
interrogao vem a Hlderlin por um treinamento que lhe faz decidir quase
involuntariamente pela ruptura, j que ele escreveu primeiro e por que... encadeando
com o que precedia.
O tradutor francs pode objetar que se esperava, na hiptese da subordinao, um
nem antes de Por que: nem por que poetas.... O que exato em francs no vale
contudo, sobretudo em poesia, no alemo, para o qual esse e se alinha com o
precedente: o que fazer e o que dizer... e por que... (mais precisamente: o alemo tem
aqui apenas um nico was (que), complemento de fazer e de dizer, o que impediria
ou tornaria mais difcil um nem (o qual poderia se destacar de maneiras diferentes,
weder...noch, auch nicht, mas no de maneira to econmica como em francs).
Toda essa micrologia torna-se rapidamente cansativa. O que se quer extrair da
que o acento pattito do questionamento desesperado, ansioso, no to marcado, de
toda maneira, quanto somos habituados a perceber, pelo efeito de uma seleo abusiva
de uma nica metade de um nico verso. A dramatizao da questo isolada falseia o
andamento do texto e desloca o acento de sua preocupao.
O mesmo ocorre com a apalvra drfig, que se traduz frequentemente por de
infortnio, quando indigncia205 parece mais apropriado, inclusive com a sua
conotao social.
2
A essas observaes sobre o prprio texto do verso preciso acrescentar duas
outras sobre o seu contexto.
De um lado, a estrofe 7 de Po e Vinho no pra nesse verso. Ela prossegue em
um ltimo dstico, onde est escrito:
Mas eles so, dizes tu, como os santos sacerdotes do deus do vinho
Que na noite santa se vo de pas em pas.
Escolhido pelo menos por Jean-Pierre Faye beneficiaramo-nos de um inventrio do conjunto das
tradues existentes. (N.A.) A traduo rejeitada por Nancy dtresse , angstia , aflio,
infortnio , desgraa , adotada por Wolfgang Brokmeier, na traduo do clebre ensaio de Martin
Heidegger, que tem precisamente o mesmo ttulo do presente artigo de Nancy, Wozu Dichter ?, sem
dvida o alvo do comentrio de Nancy aqui. (Martin Heidegger, Pourquoi des potes . In : Chemins qui
ne mnent nulle part. Paris : Gallimard, col. Tel , 1962, p. 323-385.) A traduo de Jean-Pierre Faye
mencionada por Nancy integrava uma pequena coletnea publicada em 1965, e foi reimpressa no Cahiers
de LHerne (LHerne. Hlderlin. Jean-Franois Courtine (org.). Paris : ditions de LHerne, 1989, p. 2225). J Genevive Bianquis optou por traduzir drftiger por misre , e Gustave Roud, na edio da
Pleiade, por uma expresso ombre misrable . (Respectivamente : Hlderlin. Pomes/Gedichte. Paris :
Aubier-Montaigne, col. Bilingue, 1943 ; Hlderlin. uvres. Philippe Jaccottet (dir.). Paris : ditions
Gallimard, 1967.) Em portugus a expresso tempos sombrios ( Por que poetas em tempos
sombrios ? ), vem adquirindo valor de consenso. (N.T.)
preciso destacar que Philippe Lacoue-Labarthe, de que conhecemos a proximidade atenta para com
Hlderlin, escolheu traduzir a sexta verso revelando-a assim, se no abuso da coisa, ao pblico francs
quando apresentou cinco tradues de Brot und Wien para fazer apreciar a evoluo das abordagens do
texto hlderliniano. Ele o fez sem comentrio, deixando o leitor apreciar, dentre todas as outras
diferenas, o afastamento considervel de que essa estrofe afetada. Sou bastante tentado a pensar que
no lhe desgostava marcar uma certa distncia com relao antfona do Wozu Dichter.
207
Por mais frgil que seja essa incurso na prosdia, bastante verossmil que o
ritmo tenda aqui antes a ligar o que precede a vrgula com o que a segue, acentuando
portanto o sentido de no sei tampouco por que... a nica razo pela qual me permiti
essa divagao. No a levarei mais longe pois a teoria e a prtica do que se denomina o
pentmetro imbico e as estrofes asclepiadeu ou alcaico excede de longe aos meus
meios.
Mais modestamente, pode-se acrescentar o seguinte: o verso faz ouvir duas
aliteraes ou assonncias maiores. Uma remete ao hexmetro que precede no dstico e
porta sobre o zu presente trs vezes no primeiro verso, retornando no segundo com o
wozu e ressoando enfim no Zeit. A segunda se joga entre ich, nicht e Dicht-. Para
sublinhar o papel dessas ocorrncias, comparar-se- as sonoridades contrastadas dos
dois versos do dstico, j que o primeiro se apresenta assim:
So zu harren, und was zu tun indes und zu sagen
III. SENTIDO
1. NOLI ME FRANGERE210
(Com Philippe Lacoue-Labarthe)
*
Fragmento: o texto frgil. Ele no seno isso [a]. Isso se quebra, isso no se
quebra. No mesmo lugar. Onde? Em algum lugar, sempre em algum lugar, um lugar
inconsignvel, incalculvel.
*
Estamos, portanto, errados em escrever em fragmentos sobre o fragmento (isso vale
tambm para Blanchot). Mas o que fazer de diferente? Escrever sobre uma coisa
totalmente outra ou sobre nada e se deixar fragmentar.
*
Isso vale tambm para Blanchot : no entanto, foi a publicao de L criture du
dsastre [A Escrita do desastre], em julho de 1980, na NRF,211 que veio interromper,
aqui, a redao de um texto totalmente diferente, e o que eu poderia agora, tendo-o
abandonado, chamar de uma dialtica suplementar do fragmento. A exigncia de
Blanchot era o seu guia. O texto de Blanchot o interrompeu. Eu o cito:
210
O fragmento, enquanto fragmentos, tende a dissolver a totalidade que ele supe e que
ele traz rumo dissoluo, de onde ele (propriamente falando) no se forma, qual ele
se expe para, desaparecendo, e, com ele, toda identidade, manter-se como energia de
desaparecer []212.
*
Uma dialtica suplementar do fragmento estava, portanto, a tambm, em obra.
Talvez no nos enganemos ao nome-la uma dialtica negativa, e em buscar secretas
correspondncias entre Blanchot e Adorno. Mas no obstante isso quer dizer que a
dialtica o discurso indestrutvel. Noli me frangere, ordena ela em todo texto, no
texto fragmentrio tambm, e no discurso em fragmentos sobre o fragmento. No me
quebres, no me fragmentes.
*
No somente o efeito de uma vontade de se proteger. No mais do que o Noli me
tangere da Escritura. No me toques, diz o Cristo ressuscitado, porque tu no o poderias,
porque tu no saberias o que tocas, e porque crs sab-lo. Tu no podes saber nada nem
querer nada daquilo que se denomina um corpo glorioso.
Sobretudo, no devemos crer que se poderia saber fragmentar. Que se poderia ser um
entendido em fragmentos. E que se poderia fragmentar. Ningum fragmenta, seno
talvez esse Noli me frangere que toda escrita pronuncia: no me fragmentes, no queiras
me fragmentar isso se fragmenta e isso me fragmenta bastante, no est medida de
tua deciso.
*
Tudo isso est escrito na escrita fragmentria de Blanchot. No h nada a acrescentar,
nada a cortar. Nada a dialetizar, nada a fragmentar. Sobretudo, no cair na armadilha
dupla da superdialetizao e da superfragmentao. Blanchot suporta at o
extenuamento at no mais suport-la a exigncia arriscada de escrever justamente
entre essas duas armadilhas gmeas. Assim, sua escrita tambm (e no somente seu
discurso) declara: Noli me frangere. No quebres a minha insistncia e meu murmrio.
212
A verso original do texto no comportava nenhuma nota nem referncia: conforme a vontade dos
autores, esse carter alusivo do texto mantido aqui (N. E. F.).
*
No fales, no escrevas fragmento. Ou to pouco.
*
Para terminar, o fragmento (os fragmentos, a exigncia fragmentria) que diz Noli
me frangere. No preservando nisso nenhum tomo puro, nenhuma obra indivisvel
mas sem relao, simplesmente, com operao alguma, em sentido algum. O fragmento
indestrutvel, quer dizer, a destruio assegurada, e essa segurana no uma
segurana em todo caso no uma segurana para saber algum, para sujeito algum.
*
Algum escreve, algum l, alguns falam, algo toma forma, algo faz sentido, algo se
acaba em obra ou em fragmentos, em obra, isto , em fragmentos. Ato contnuo,
indestrutvel: uma conversao tanto quanto um poema. O que indestrutvel a
fragilidade mesma, mais mida, mais trmula, mais insustentvel que qualquer
fragmentao. A fragilidade que h em tomar a palavra ou em escrever. Em abrir a boca,
em traar uma palavra. a, ento que algo se quebra em nenhum outro lugar, em
nenhum outro tempo. A fragilidade de um corpo glorioso (nem transcendente, nem
imanente, nem seu, nem meu, nem corpo, nem alma) quebra uma garganta ou uma mo.
Eleva-se uma palavra, um discurso, um canto, uma escrita. O corpo glorioso no cessar
de neles repetir essa ordem to frgil quanto uma implorao: Noli me frangere.
Ento?
213
Ren Armand Franois Prudhomme, dito Sully Prudhomme (1839-1907), poeta parnasiano francs.
Nancy e Lacoue-Labarthe se referem ao poema Le Vase bris [O Vaso quebrado], metfora do
corao partido, que se termina com este dois versos: Sa blessure, fine et profonde;/ Il est bris, ny
touchez pas.[Sua ferida, fina e profunda;/ Ele est quebrado, no o toques. (N.T.)
214
Schweben , flutuarem alemo. (N.T.)
215
Referncia ao livro LAbsolu littraire: La Thorie de la Littrature dans Le Romantisme Allemand [O
absoluto literrio :a Teoria da Literatura no Romantismo alemo] de Philippe Lacoue-Labarthe e JeanLuc Nancy (Paris: Seuil, 1978). Um captulo do volume, A exigncia fragmentria, foi traduzido em
Terceira Margem. Esttica, Filosofia e Cincia nos sculos XVIII e XIX. Revista do Programa de PsGraduao em Cincia da Literatura, ano VIII, n 10, 2004. Traduo de Joo Camillo Penna. (N.E.)
Os interlocutores jogam aqui com a homofonia em francs entre moi, comoo, e et moi, e
eu. (N.T.)
217
Gesprch, entrevista, em alemo. (N.T.)
218
A grafia arcaica de abyme com y sugere a referncia mise-en-abyme. Ver supra a nota XX na
pgina. (N.T.)
LUDOVICO : Lothario, o senhor me leu muito bem, tanto quanto talvez tenha entendido
mal uma das minhas intenes. Et pela mesma razo. exato, com efeito, que meus
fragmentos so um discurso. Acrescentarei que a mise en abyme to tentadora, to
219
"Relve" a traduo proposta por Jacques Derrida para a Aufhebung hegeliana. Sobre o termo ver
supra, a nota XX na p. X. (N. E.)
220
Em
francs,
ont
subi
.
Subir
,
sofrer
,
suportar
,
se
submeter
,
tem
o
sentido
de
ser
o
objeto
sobre
o
qual
se
excerce
uma
ao,
um
poder
que
no
foi
querido
(Petit
Robert).
(N.T.)
convm perfeitamente; e tudo o que sugere a propsito de uma tal prova, creio possvel
faz-lo meu no somente subscrev-lo. Creio saber por saber nenhum o que
suportar a no-identidade, ser votado suspenso, a essa ruptura ou cesura que sempre
j teve lugar (como o que nunca teve lugar). Reconheo isso como o difcil , o
infactvel a pena. Em meu pathos, que nunca est to distanciado do seu, direi:
escrever, pensar: nada acontece.
Nesse sentido, me parece, produz-se (sem se produzir) o desligamento. Adorno
ainda: penso na extrema acuidade da anlise que ele conduz da parataxe na ltima
poesia de Hlderlin o qual no buscava em nada a ruptura, ainda que recusasse com
todo conhecimento de causa a sntese dialtica (conceitual). Quando falava de sofrer a
fragmentao , era de fato nele que eu pensava.
Mas o estranho em tudo isso que o senhor frequentemente me reprovou ou pelo
menos frequentemente se espantou, maliciosamente, com o que denominava minha
tendncia ao misticismo. Mas o senhor mesmo, meu caro? O que essa confisso ,
essa splica, esse que me poupem ? Enquando eu no ousava nem mesmo mais
dizer-lhe que achava perturbadora a maneira com a qual Benjamin se apropria,
desviando-a, da proposio de Malebranche sobre a ateno para qualificar a escrita, ou
o pensamento como uma forma de prece .
H, portanto, certamente um mal-entendido entre ns. Ele est onde o senhor o situa,
mas no somente a. E para aproveitar a bola levantada, preferiria falar, se tenho que
faz-lo, de mal-estar. O que me constrange de fato, veja talvez tivesse valido mais que
eu o dissesse de sada , a sua referncia ao corpo glorioso . A ressurreio, em
qualquer registro que seja (mstico, especulativo), me impenetrvel. Nada me choca
mais no cristianismo. Eis por que minha mstica, se h algo como uma mstica em mim
(o que no fundo duvido muito), tem pouco a ver com essa espcie de teologia
negativa que o senhor me parece ostenta e da qual no posso me impedir de suspeitar a
absoluta positividade. Constrange-me em suma que por um truque [tour] lgico ou
retrico suplementar, como que acarretado por um movimento, diramos hoje, de
maximizao , o senhor reforce, sob a aparncia de combat-la, a mstica do
fragmento. Se no nos decidimos sobre o que est em jogo na fragmentao e nisso
estou totalmente de acordo com o senhor , no sob a injuno silenciosa
(terrivelmente eloquente) do corpo glorioso da escrita. A indeciso uma pobre
experincia.
qual preciso dizer, no entanto, que o seu desconhecimento vota o discurso vaidade.
No uma mstica do inefvel, pois no h a o segredo de um sentido escondido, de
uma Palavra alm das palavras. , antes, uma mstica da fragilidade pela qual s se
revela o que o senhor me perdoar de chamar, apesar de tudo, uma verdade na palavra
do homem (no h outra). No recuso, como v, a palavra mstica. Eu a colocarei, ao
contrrio, e para fazer eco sua prece, sob o patrocnio de uma palavra mstica, a de
Mestre Eckhart: Oremos a Deus para que possamos ser livres e quites para com
Deus .
Se isso ainda lhe cheira muito a teologia negativa (mas a diferena para com a
mstica, ainda que bem real, sem dvida infinita para ser produzida no discurso),
preciso, enfim, Lothario, que eu faa uma confisso a respeito de meu corpo
glorioso . No deduzi o discurso desses fragmentos a partir de um pensamento do
corpo glorioso. Mas ao contrrio, a frase do Evangelho, sozinha, veio primeiro ao meu
ouvido. Noli me tangere, nesse latim carregado de velhas sonoridades da Igreja, de um
tom de salmodia e de recitao sagrada. No saberia lhe explicar a razo disso. (Seria
porque Lcriture du desastre [A Escrita do desastre], tendo interrompido meu trabalho,
tendo-me tocado da maneira complexa como eu lhe dizia, me fazia dizer: no me
toques? Eu o ignoro.) Mas essa frase se imps, com a plida lembrana de um relato,
que vou agora lhe relembrar: Maria de Magdala se encontra no tmulo, e, vendo Jesus,
de p, no o reconhece. Jesus lhe diz: Mariam. Virando-se, ela lhe diz em hebraico:
Rabbuni! , o que quer dizer Mestre! . Jesus lhe diz: No me toques, pois ainda
no subi para o Pai, mas vai para os irmos .
O senhor percebe o quanto esse relato que Joo o nico a fazer feito de uma
extrema e pudica fragilidade. uma prova [preuve], uma alegria e um desaparecimento
ao mesmo tempo. E o corpo glorioso, que incomoda o senhor, brilha nele com uma
glria to pobre que ele no nem reconhecido nem designado como tal. Confesso que
no recusei o que uma frase frgil, um fragmento de som e de sentido, me trazia desta
maneira. Mas no que toca ao corpo glorioso, eu o escrevi, no h nada a saber nem a
tocar. Ele est aqui, e se esquiva. Eu quis menos fazer uma alegoria da escrita do que
experimentar [prouver] a maneira com a qual essa frase, esse relato, seu sentido
espiritual e sua emoo fugitiva, se suspendiam, se fragmentavam, instantaneamente. E
a ideia da glria , de um fulgor invisvel Creio que se escreve sempre, no somente
para a glria, mas nessa glria esquiva. Eu lhe falava justo agora do peso do
pensamento: na palavra hebraica que diz a glria bblica, h a ideia de um peso, de
uma gravidade
LUDOVICO: Ousaria dizer que ela no me repele? preciso faz-lo, por minha prpria
conta e risco. No a reivindico e no a erijo por oposio ao fulgor retido, evanescente,
totalmente interiorizado, como o senhor parece indicar. Diria, antes, que a fragmentao
responde para mim ao fato de que no h (ou no h mais) interioridade. E por
conseguinte, com efeito, a algo de barroco. A passividade qual ambos nos referimos
pode se concentrar ou se dispersar. Por incapacidade talvez para deix-la se concentrar,
vejo-a se dispersar nessa fragmentao barroca da qual soube falar o Benjamim do
Trauerspiel225 (o romantismo tendo sem dvida misturado, em propores variveis, as
duas fragmentaes). O barroco deixa a perda da totalidade orgnica como interioridade
e se entrega ao carter inacabado e quebrado da physis sensvel e bela . Por certo, na
prpria ruptura e na intermitncia, nas bruscas imobilizaes e nas simultaneidades
surpreendentes, nos jogos de espelhos e de chamalotes226, a escrita se v novamente
preocupada com a maior complacncia em desenvolver sua energia prpria . Eu no
deixaria de reivindicar (no para mim , mas para a literatura ) o risco dessa
complacncia e a possibilidade de que ela se quebre, e voe em estilhaos. Haveria a,
certo, chiste. Este (jogo, achado, coliso do heterogneo) est bem prximo da dialtica,
ns escrevemos isso. (O senhor lembra tambm que Heidegger em seu Schelling fala da
transposio romntica da dialtica idealista.) 227 Mas ele no est ausente de
nenhuma escrita. Simplesmente, isso no depende da sua vontade e nisso estamos,
parece-me, de acordo. H esse insigne desfalecimento do querer, ou do projeto, que faz a
fragmentao ou a escrita. Ela me entrega a uma espcie de devastao, de fato
estilhaante, da qual no est excludo o jogo, por derriso ou por jbilo. O senhor me
parece, sobre esse ponto, se recolher, e devo confessar que de minha parte o
recolhimento que esqueci, ou que jamais conheci. O que apenas, sem dvida, nada
mais do que o sinal dos tempos modernos No sei dissociar o fragmento, por fim, da
clausura do mundo moderno.
Pois bem, tenho a impresso de que seria melhor se ficssemos por aqui.
Curiosamente alis, com essa maneira de proceder, terminei por dizer, creio, o que eu
queria dizer.
224
225 Trauerspiel canonicamente traduzido em portugus por drama barroco, frmula utilizada
por
Srgio
Paulo
Rouanet.
(Walter
Benjamin.
A
Origem
do
drama
barroco
alemo.
So
Paulo:
Brasiliense,
1984.)
(N.T.)
226
Ludovico joga aqui com a paronomsia, miroir , espelho , e moire , chamalote. (N. T.)
227
Martin Heidegger. Schelling. Paris: Gallimard, 1993.(N. T.)
longos
demais
para
integr-lo
Ainda falamos muito sobre essa questo, naquele dia, mas tambm mais tarde.
Emmanuel Loi. Dordinaire. Romainville: Al Dante, 2000, p. 7 (Esse livro se compe das cartas
e dirios de um preso).
229
Philippe Lacoue-Labarthe. Phrase. Paris : Christian Bourgois diteur, col. Dtroits , 2000, p. 17.
voz divina: mas, precisamente, essa resposta se d por sua figura invertida pela razo
de que em verdade o aedo quem responde ou ento, mais verdadeiramente ainda,
h apenas resposta a uma resposta, e ningum nunca comeou.
Isso se responde: essa a frmula do que se nomeia hoje de escrita. Isso se
responde: isso responde em si, isso responde a si e isso responde por si. Res
responsoria, eis o sujeito que sucede a res cogitans (a menos que ele no a tenha
sempre precedido e que ele a habite) se se quiser justamente relembrar que
responsorius cantus designava o canto por alternncia de lies (lectio) e de
versculos (versus) ou responso. Na escrita de canto que se trata, e da alternncia
ou da ressonncia interna que forma o canto.
O aedo e a thea no respondem assim no sentido em que se responde a uma
questo, mas no sentido em que se responde a uma espera, ou ento naquele em que
vozes se respondem, se correspondem. Eles respondem ou se respondem no sentido
em que re-spondeo se engajar em retorno em uma sponsio, num engajamento
religioso e/ou jurdico: responder a uma promessa por uma promessa recproca
(como nos esponsais, forma de sponsio, de onde [o portugus tira esposar,] o
francs pouser , o italiano sposare )230. Quem escreve escuta e se engaja em
sua escuta, por sua escuta. De mesmo modo no alemo Antwort e no ingls answer, a
resposta a palavra que vem ao encontro. Escrever se engajar em um encontro:
ir em direo ao encontro e assumir o compromisso do encontro. Escrever
marcar um encontro. (O encontro talvez furtivo pode ser apenas um simples
cruzamento, um roar, bem como um longo face-a-face e pode tambm se produzir
de encontro , no choque, no afrontamento, na repulso. Mas sempre se trata de
alguma confrontao, e jamais isso se d sozinho.)
Escutar ressoar: deixar vibrar em si os sons vindos de alhures, e lhes responder
por sua reverberao num corpo tornado cavernoso para esse fim. Essa caverna no
a de Plato: no fechada e apenas entreaberta sobre um fora que projeta sombras,
mas a abertura em si nos dois sentidos que pode tomar essa expresso: ela a
abertura no interior de mim e a abertura mesma, absolutamente. De fato, ela eu
enquanto abertura, eu enquanto caixa de ressonncia sobre a qual vm bater, deslizar,
roar os acordes e os acentos das vozes do fora, das vozes divinas. Mas a ressonncia
no uma sombra: ela no o resto de uma subtrao, a intensificao e a reharmonizao, a remodulao de uma sonoridade. Quem escreve ressoa, e ressoando,
responde: partilha o engajamento de uma voz que vem de fora. Ele se engaja nela por
sua vez, torna polifnica a voz que lhe chegava mondica. Mas sem essa polifonia, a
monodia nem mesmo se ouviria. Quer dizer, ela no seria ouvida e ela mesma
permaneceria surda a si mesma.
*
A resposta a retomada e o relanar da voz: do que ela diz, de seu sotaque231, de
sua articulao e de seu fraseado ou de seu cantado. Mas sem retomada, portanto sem
230
Acrescentei
o
trecho
entre
colchetes.
(N.T.)
resposta, a voz permaneceria em si. Uma voz em si no uma voz: um silncio que
no tem nem mesmo o espao de um endereamento: um mutismo enclausurado
em seu zumbido, em seu mugido ou em seu murmrio (a repetio de um mmm
mudo mutum). Uma voz sempre duas vozes pelo menos, sempre polifonada de
alguma maneira. Sempre uma voz deve lanar outra: canta ! aeide ! . Aeid - de
onde se forma d, o canto, a ode reporta-se a aud que caracteriza a voz humana
por distino phn que pode se dizer tambm da voz animal. Auda enderear a
palavra, lanar uma rplica ou um chamado. A voz humana retine sempre em direo
a uma outra voz e a partir de uma outra voz ou ento em uma outra voz. Sua
ressonncia sonora indissocivel de um retinir de endereamento e de escuta:
mesmo quando eu falo s e silenciosamente em minha cabea (como se cr poder
dizer), quer dizer, quando eu penso, eu ouo uma outra voz em minha voz ou ento
ouo minha voz ressoar em uma outra garganta.
A escrita o nome dessa ressonncia da voz: o chamado, o encontro, e o
engajamento que supem o chamado ao encontro. Nesse sentido, toda escrita
engajada num sentido que precede a noo de um engajamento poltico ou moral,
a servio de uma causa. Escrever engajar a voz na ressonncia que a faz humana:
mas humana no significa nesse caso nada alm do que o que se mantm ou o
que chega na ressonncia .
A escrita , portanto, a ressonncia mesma da voz, ou a voz enquanto ressonncia;
quer dizer, enquanto remisso em si mesma, atravs da distncia de um si ,
mesmidade que lhe permite se identificar: cada vez absolutamente singular para
um nmero indefinido de encontros cada vez singulares. A escrita fixa , como se
diz, o fluxo da palavra (verba volant, scripta manent232): essa fixao no outra
coisa seno o registro, a reserva ou a morada da capacidade de ressonncia. Na
palavra viva, ou bem na palavra que fala apenas para informar ao instante, sem prazo
nem encontro marcado, a ressonncia extinta logo que a informao alcanou a
destinao. Na escrita, a destinao de sada, de chofre, e para sempre a
ressonncia como tal: Homero no escreve para ningum menos do que os seus
milhes e milhes de leitores, cada um, um a um, e para povos ou para grupos de
culturas singulares h aproximadamente trinta sculos. E para isso que ele engaja
seu poema no chamado voz divina da qual ele se faz o aedo, a ressonncia. A
escrita fixada, gravada na madeira, na cera, na pedra ou no papel, digitada no
monitor, mas tambm registrada na voz falante de um orador, de um cantor, de um
endereador em geral, se pudssemos forjar esse termo a escrita s imvel e
invarivel porque ela inscreve assim o espao de uma ressonncia sempre renovada.
Quando Hegel afirma que uma verdade escrita no perde nada ao ser conservada
fora da circunstncia singular de sua enunciao assim, anoitece pronunciado
ao meio-dia no quer dizer que a verdade no seja da ordem da verificabilidade
emprica, mas justamente da ordem do endereamento e da ressonncia. Se digo
anoitece ao meio-dia, o que , pois, que quero dizer e qual escuta pode se engajar
ao encontro do meu dizer?
232 Provrbio latino, atribudo a Caius Titus: as palavras voam, a escrita permanece. (N.T.)
233 Renvoi, remisso, reenvio. A noo de renvoi recebe um tratamento profundo na obra de
Jacques
Derrida,
atravessando
muito
dos
seus
textos,
at
tornar-se
central
em
La
carte
postale.
Nas
tradues
brasileiras
vem
se
optando
frequentemente
pela
traduo
literal
de
reenvio,
que
sublinha
a
relao
com
o
envio
e
a
carta.
Opto
aqui
por
remisso,
a
partir
da
ligao
com
renvoyer,
remeter.
(N.T.)
234
O duplo sentido existe tambm no cognato portugus do francs entendre, entender, ao mesmo
tempo: perceber, ou reter pela inteligncia, e captar pela audio, ouvir, mas menos pronunciado do que
em francs. Um duplo sentido equivalente existe no portugus de Portugal, em perceber. Eu no
percebo significando ao mesmo tempo: eu no compreendo e no estou ouvindo. (N.T.).
como querer, e esse querer, antes de querer alguma coisa, se quer primeiramente
como poder-se-dizer, ou seja, como poder se chamar e se responder.
Em outros termos, se escrever responder a um chamado por um outro chamado,
ou ento dar lugar e dar forma ao chamado enquanto tal como Homero, chamar a
deusa que ela mesma chama desde o fundo da lngua e da lenda, uma na outra
inextricavelmente misturadas , descobre-se agora que o chamado ou o
endereamento no so eles mesmos nada alm do que o sentido: o sentido enquanto
abertura da possibilidade da remisso.
O sentido jamais pode absolutamente ser o feito de um s sujeito de sentido, j
que esse sujeito ele mesmo deveria ao menos entender, ao ouvir, o sentido que ele
produziria ou encontraria. Seria preciso que ele se ouvisse e, para se ouvir, seria
preciso que ele tivesse se chamado e, para se chamar, seria preciso que ele pudesse
ressoar e enfim, para ressoar, seria preciso que ele, em primeirssimo lugar,
oferecesse nele mesmo o espao, o intervalo ou o espaamento, a abertura que a
condio de possibilidade de uma ressonncia, j que esta demanda uma relao de
vibrao a vibrao, uma simpatizao , como dizem os fsicos que falam de
vibrao por simpatia ou uma harmonizao como dizem os msicos. Mas a
ressonncia tal como preciso entender ao ouvi-la aqui, no somente a relao
entre duas ordens sonoras distintas: ela forma logo de antemo a sonoridade nela
mesma. A sonoridade se define precisamente por isto: que nela mesma ela est
em espaamento dela mesma. O sonoro sua prpria dilatao ou sua prpria
amplificao e sua prpria colocao em ressonncia.
O canto a sonoridade humana do sentido: o sentido ele mesmo formado e
definido pelo espaamento interno de sua remisso e, logo de antemo, da remisso
pelo qual ele se destina e se deseja ele mesmo como uma resposta a sua prpria
remisso. Nesse sentido, no somos jamais, cada um (a) ao lado do (a) outro (a),
seno pontos singulares ao longo de uma remisso geral que o sentido faz dele
mesmo em direo a ele mesmo, e que comea e que se perde muito aqum e muito
alm de ns, na totalidade indefinidamente aberta do mundo. Mas, ao mesmo tempo,
esses pontos singulares que ns somos (ou os vrios pontos singulares que se
debulham sob cada identidade individual ou coletiva) so eles mesmos a estrutura
necessariamente discreta ou descontnua do espaamento geral no seio do qual o
sentido pode ressoar, ou seja, se responder.
Comunicando-se a todos os pontos singulares de escuta ou de leitura, de
entendimento ou de interpretao, de recitao ou de reescrita, o sentido no faz
outra coisa que se partilhar a, ou em, tantos sentidos singulares (aqui, a palavra
sentido pode ser entendida e ouvida ao mesmo tempo em seu valor de quererdizer e em seu valor de poder compreender , assim como quando ele bom
sentido ou sentido artstico e esses dois valores, entende-se, so inseparveis
um do outro: eles esto ambos presentes no sentido mesmo do mesmo sentido). O
sentido tomado absolutamente ou em si no outra coisa que a totalidade dos
sentidos singulares. O sentido infinito idntico infinidade das singularidades de
sentido. No nem um sentido geral, nem um sentido por intimao ou por
resultante dos sentidos singulares: o encadeamento e a descontinuidade desses
remeter-se.
(N.T.)
236
Canta, Thea. (N.T.)
Cf. J.-L. Nancy. Le Partage des voix. Paris : Galile, col. La philosophie en effet , 1982.
Em francs : Cest trs-certain, cest oracle, ce que je dis , Arthur Rimbaud. Mauvais sang .
Une saison en enfer, em : uvres, Paris, Garnier, 1987, p. 214.
238
aquela que no tem nome, aquela que no tem nem mesmo o nome impronuncivel e
que no divina em nenhum outro sentido seno no sentido em que a sua
verdade se partilha, aqui e agora, nessa palavra singular que se engaja abrindo a boca
(oraculum) para deixar passar o sentido ou melhor: que se engaja abrindo a boca ao
sentido, nos dois sentidos da expresso.
A verdade singular no surge, sem dvida, de toda ocorrncia de palavra e de
escrita. No orculo aquele que pensa ser um orculo, nem aquele que decide
s-lo. (Pois aqueles se encerram na representao de um eu [moi] que uma
generalidade sob feies de particular no lugar de se abrir remisso singular de
um sujeito [je] 239.) A verdade s pode vir ao sentido se lhe dado acesso ao
seu corte [coupe]240 e ao seu toque. Esse toque que corta, que incisa com uma escrita
o espao indiferenciado e a boca fechada, s pode vir do fora. Esse fora no aquele
de uma autoridade nem de um esprito que sopra. o fora no qual e para o qual a
responsabilidade se engajou: esse fora no qual, logo de sada, no h nada, e no seio
silencioso do qual nenhum deus, nenhuma musa, nenhum gnio faz viglia nem
vigia. esse silncio do fora que detm toda autoridade e que exala toda inspirao.
Num sentido num sentido totalmente primeiro esse fora aquele do prprio
sentido absoluto enquanto ele estranho a toda significao, e por conseguinte
primeiramente lngua ela mesma: lngua, em todo caso, formada, composta e
articulada na ordem das significaes recebidas e mesmo das significaes possveis.
A verdade vem da lngua j perdida ou ainda por vir. Ela vem da voz que se
deseja e se busca atrs da voz no fundo da garganta, l onde a inciso abre um
primeiro afastamento que sobe at os lbios, mas que os lbios ainda no
conheceram. Ela vem como um por-vir de lngua: uma lngua inaudita, uma feio de
lngua que no ter lugar seno essa vez, uma inflexo, um sotaque ou um estilo ou
seja, a inciso gravada por um estilete. No uma cinzeladura, verdadeiramente
uma inciso praticada na lngua toda feita pela lmina de um fora que feito ao
mesmo tempo de no-lngua e de lngua por vir ou de desejo de lngua.
O estilo da verdade, ou a verdade enquanto estilo, no deve nada ao ornamento
nem solicitao e explorao das significaes disponveis. Ele s pode vir do
fora toque e corte de um fora que propriamente o fora de toda significao, que
assim o sentido fora de si mesmo, a verdade do sentido como seu excesso infinito ou
como sua ausncia sem fundo.
*
Para vir do fora, para responder a esse fora e para responder por ele, preciso que
a inciso deva alguma coisa sorte, surpresa e ao kairs, o momento favorvel
cujo favor consiste em se oferecer somente quele que se expe ao fora, e que, por
239
A
diferena
entre
moi
e
je
se
perde
em
portugus,
ambos
os
pronomes
sendo
traduzidos
por
eu.
A
diferena
repousa
no
sentido
de
que
o
moi
aqui
a
forma
dada
do
eu,
a
forma
vazia,
enquanto
que
o
je
um
eu
sempre
remetido
a
um
outro
que
ele
mesmo.
(N.T.)
240
Sobre
o
termo
equvoco
coupe
cf.
a
nota
XX
na
p.
XX.
(N.T)
conseguinte, assim veio a no mais querer seu querer-dizer: a deixar esse desejo ser
tocado pelo favor de um excesso sobre todo dizer possvel.
Mas para se deixar dispor a esse favor, sua raridade, necessria uma retrao
de lngua. preciso ter sido conduzido para aqum da lngua: l onde a linguagem
ela mesma sabe j sabe sempre-j, l onde ela se forma, l onde se esboa um ser
passvel de sentido, um ser suscetvel ao sentido que no h nada a dizer, em
definitivo, nada que no envolva de alguma maneira um nada de significao, e que
por esse nada toque na coisa mesma, na coisa em si, quer dizer, na coisa fora e na
coisa do fora.
Quem escreve responde a essa coisa e responde por essa coisa. Essa coisa ela
mesma thea: ela o sentido e o desejo de dizer, a partilha infinita disso. Ela no
a massa inerte que subsistiria fora da linguagem como um real que a linguagem
no saberia atingir. No: ela o fora que a linguagem ela mesma entalha nela mesma
e apresenta em cada verdade qual a linguagem d lugar ou na qual ela pe fogo.
A linguagem um saber e assim o saber prprio da escrita: no o que a escrita
sabe fazer, nem o que ela saberia para escrever (como uma arte de escrever )
mas o saber que a escrita ao escrever. Ela o saber daquilo do qual ela porta o
testemunho. Ela porta o testemunho disto: que o sentido, porque ele envio e reenvio
[renvoi], porque ele chamado e resposta, se d ou se erige na retrao ou no
excesso: retrao ou excesso com relao a toda significao que vem parar e
apaziguar o desejo e sua resposta, essa resposta que no pode ser por seu turno seno
um outro desejo e o desejo de um outro. Eu que deseja voc e que deseja que voc
lhe diga eu e que, dizendo-lhe eu, voc lhe diga voc por seu turno.
Nesse estreitamento vertiginoso se esconde o saber da escrita quero dizer: o
saber que ela ou de que ela o ato. Quem escreve sabe o desejo do outro, e ele ou
ela sabe que esse saber deve ser dividido dele mesmo para ser aquilo que : resposta,
engajamento na verdade desse no-saber.
3.CORPO-TEATRO
Cada vez que venho ao mundo, cada dia, portanto, minhas plpebras se
erguem sobre o que no se trata de denominar um espetculo, pois logo eu estou
preso ali, metido, enredado, por todas as molas de meu corpo que se adianta no
mundo, que incorpora o seu espao, suas direes, suas resistncias, suas aberturas,
que se move nessa percepo de que ele apenas o ponto de vista a partir do qual se
organiza esse perceber que tambm agir. O ponto de vista no tem nenhuma
dimenso, como todo o ponto. E ele , como sabemos, ponto cego, mancha que
permite que em torno dela se disponham as perspectivas, as relaes, o prximo e o
longnquo. Ponto de fuga obscuro que se mantm no fundo de mim no fundo, no
sentido do fundo do quarto - do pano de fundo que eu poderia representar como um
ponto, isto , como um no-espao alojado, justo atrs do espao que se desenvolve
como a minha cabea, o meu crnio, as minhas costas e todo esse aqum de si
mesmo, de onde um corpo que percebe e age se sabe carregado e projetado.
Desse ponto, portanto, no h espetculo possvel, mas somente o
engajamento, o baralhamento no mundo, as atraes e repulses, as travessias e
obstculos, as tomadas e desprendimentos, penhoras e alienaes. Estar no mundo
todo o contrrio de estar num espetculo. estar dentro, no em frente. Alis, o que
nos habituamos a denominar, mesmo fora do crculo filosfico, estar no mundo,
traduz o alemo in der Welt sein, com o qual Heidegger se empenha em significar
um in, um em que precisamente no de incluso de um sujeito no mundo
que lhe preexistiria mas de copertencimento dos dois e mais precisamente sob o
modo do que ele denomina o ser-jogado [tre-jet] Geworfensein241, onde se
deve ouvir ao mesmo tempo o jato [jet], a projeo nessa queda que faz se encontrar
a e o esboo Entwurf a projeo de um gesto, de um andamento possvel do
existir a existncia ela mesma no sendo nada seno a reposio em jogo seus
prprios esboos.
Fiz esse pequeno desvio por Heidegger apenas para destacar o quanto, na
mais potente insistncia sobre a primazia do ser-para, do ser como dedicado,
lanado, devotado, mobilizado em seu ser pelo fato mesmo de ser, somos o menos
concernidos possvel pelos fenmenos da representao a qual demanda um
sujeito, para o qual ela tem lugar, sujeito que s pode ser, no que toca ao existente,
perfeitamente secundrio, derivado e limitado (por exemplo, sujeito de um saber,
sujeito de uma concepo ou de uma viso). Na medida em que se trata assim de
dissociar to profundamente quanto possvel a ordem do existir das ordens do
conhecer, do representar, do figurar e tambm do medir e do avaliar, para reconduzi
241
O Geworfenheit heideggeriano foi traduzido em francs por Emmanuel Martineau por tre-jet,
ser-jogado, ser-lanado, que poderamos quase traduzir por ser-ejetado ou ser-dejeto. Na traduo
de Fausto Castilho a noo foi traduzida por dejeco. Na passagem de Ser e tempo, Heidegger fala do
carter-de-jacto [] da dejeco. Da mesma forma, adiante, o Entwurf, traduzido em francs por
projet e por Fausto Castilho por projeto. Na traduo, se perdem os jogos com o verbo jeter,
jogar, lanar, ejetar, inscritos no trecho: tre-jet, jet (jato), projet (projeto), projection
(projeo), mas que se inscritos na traduo de Castilho, ejeco. Martin Heidegger. Etre et Temps.
Trad. Emmanuel Martineau. dition numrique hors-commerce; traduo brasileira: Ser e tempo. Trad.
Fausto Castilho. Campinas: Editora Unicamp/ Petrpolis: Editora Vozes, 2012, p. 501, p. 413. (N.T.)
los todos, sem neg-los, mas em ltima instncia, condio do existir, preciso
fazer o registro do que assim comeou, de maneira irreversvel, a poca em que o
sujeito foi desatracado - como as pennsulas de Rimbaud desamarrado,
destacado dos antigos peitoris e jogado, projetado em direo a um outro momento
desse destino bem singular de que somos, ns e o mundo, a destinao infinita.242
Em compensao, esse envio sem reserva nem retorno no nos impede de
destacar que falta algo nessa descrio do existir. No somente no somos impedidos
de faz-lo, mas somos mesmo conduzidos, de maneira bastante precisa e tambm
bastante insistente, a ressaltar essa falta. Aquilo de que se trata se diz simplesmente:
a existncia quer tambm se encenar. Isso faz parte do seu projeto, de sua projeo
ou de seu ser-jogado. Faz parte de seu ser no mundo.
Sem dvida Heidegger no o ignora - seria fcil demais emprestar-lhe uma
viso to curta. Contudo, essa necessidade da encenao no nunca tematizada nele
como tal. Ela passa, sem dvida, pela ateno dada por ele arte em geral, poesia
em particular, mas sem qualquer dvida essa ateno no toca no teatro. Esse ponto
foi sublinhado por Philippe Lacoue-Labarthe, para quem ele consistia em um ponto
decisivo, na distncia que ele fazia questo de tomar, no seio de sua proximidade,
para com Heidegger. Ele ressaltava em particular o quanto, nas consideraes deste
ltimo sobre Hlderlin, o teatro no intervinha nunca, enquanto a sua importncia
para o tradutor de Sfocles e autor de A morte de Empdocles no pode no saltar
aos olhos.
Eu no irei mais longe na pista das questes que eram as de LacoueLabarthe. Elas permanecem as dele. Mas recebo dele essa indicao: o existente quer
se encenar, e esse querer (desejo, pulso, como se quiser) pertence ao prprio existir.
Veremos mais tarde, se o pudermos, como justificar a segunda proposio. Por ora,
detenhamo-nos sobre a primeira.
E retomemos a cena da minha vinda ao mundo. Cada vez que ela tem
lugar, cada dia, portanto, minhas plpebras no se erguem somente sobre o noespetculo do mundo percebido, experimentado, agido. Elas se erguem tambm, ao
mesmo tempo, sobre essa escurido que eu disse, primeiramente, ser mancha cega,
situada no fundo ou atrs de mim: elas se erguem assim no para mim, para o meu
olhar, mas para o olhar possvel de um outro, de uma multido de outros. Olhar
possvel e sem dvida certo, pois mesmo na estrita solido, fao tambm parte dessa
multido de outros. Fao parte dela no mnimo como aquele que sabe que no lhe
permitido ver aquilo sobre o qual essa cortininha dupla vem se erguer: meu olhar.
Mas fazendo isso, sou como um espectador que no conseguiu um lugar no teatro e
que mesmo assim no deixa de saber o que falta: no interior do recinto fechado e
sobre o fundo encostado escurido do resto da cidade, a cortina se ergue sobre uma
cena, isto , sobre o espao prprio de uma vinda em presena. Pouco importa o
nmero de personagens, a intensidade da iluminao, a fatura do cenrio: trata-se
242
Nancy glosa aqui trechos de O barco bbado de Arthur Rimbaud. Em especial a terceira estrofe:
Dans les clapotements furieux des mares,/ Moi, lautre hiver, plus sourd que les cerveaux denfants,/ Je
courus! Et les Pninsules dmarres/ Nont pas subi tobu-bohus plus triomphants. Na traduo de
Augusto de Campos: Imerso no furor do marulho ocenico,/ No inverno, eu , surdo como um crebro
infantil,/ Deslizava, enquanto as Pennsulas em pnico/ Viam turbilhonar mars de verde e anil. Mas aqui
se perdeu o jogo marr (mar), e dmarrer (desatracar, ligar, dar a partida). Augusto de Campos.
Rimbaud livre. So Paulo: Ed. Perspectiva, col. Signos, 2002, 2 edio, p. 29. (N.T.)
Nancy usa verbo arriver, que em francs tem o duplo sentido de acontecer e chegar. (N.T.)
realidade quotidiana e direta da qual ele aos poucos se reduziu a ser apenas uma
cpia inerte e sim, antes, de uma outra realidade perigosa e tpica [...] que no
humana mas inumana244.
Ele descobre em seguida que essa realidade no outra seno a da
Criao, enquanto esta faz a sua obra em dois tempos. O primeiro tempo o ato de
uma Vontade una e sem conflito245. Que seguido de um segundo tempo, o da
dificuldade e do Duplo, o da maneira e do espessamento da ideia246.
Compreende-se que esses dois tempos so mais lgicos que cronolgicos.
H o momento da unidade sem conflito que unicamente, em suma, a ideia,
digamos o princpio e a deciso de existncia do mundo, e h o momento da
efetividade, que sobrevem menos como uma outra etapa do que como a abertura real
do mundo do Cosmos em ebulio precisa o texto. O Cosmos atravessado de
conflitos. Isso quer dizer que o real conflitual, e que ele uma leitura detalhada
do texto o mostraria precisamente em razo da matria, isto , o espessamento da
ideia que se pode compreender como a expresso slida e opaca da prpria luz, da
raridade e da irredutibilidade247. Trata-se ento do ouro material da transmutao
alqumica, ele mesmo smbolo do ouro espiritual.
Mas e esse o ponto decisivo smbolo necessrio. No examino as
razes dessa necessidade, pois no preciso penetrar na lgica de Artaud. Coloco
somente com ele que h uma opacidade, uma espessura material indispensvel da
apresentao do que est em jogo na Criao ou no Cosmos como criao e
cosmos na medida em que o conflito pertence quilo que est em jogo. o conflito
csmico (metafsico, diz ele alhures) que demanda a ser apresentado como drama.
Por que ele deve ser apresentado? Porque de si mesmo ele ou exige a apresentao.
Um corpo no consiste simplesmente em uma concreo particular, uma
acumulao ou um espessamento local: o espessamento de que fala Artaud implica
evidentemente tambm a distino e a multiplicidade do corpo. Ali onde a ideia pode
parecer nica, aquilo de que a ideia s pode ser plural. (Aventuro-me a pensar que
isso mesmo que Artaud formula intuitivamente com a sua distino de dois
tempos da criao.) Na verdade, a ideia do cosmos a ideia da pluralidade e no
h criao que no seja antes de mais nada distino, separao, espaamento.
Mas o prprio espaamento no simples intervalo inerte. Ele
exposio. O vazio para falar de maneira tosca entre os corpos no uma
espessura negativa, como tampouco o so os outros modos do espaamento ou do
incorporal. Solicito assim a teoria estoica dos incorporais, que eram para eles quatro:
o vazio, o tempo, o lugar e o lekton, o dizvel ou o exprimvel. O espaamento de que
falo combina o vazio e o lugar, o primeiro permitindo a distino dos lugares, e o
tempo no outra coisa seno o espaamento do sentido, a distenso por meio da
qual ele tende em direo a si mesmo (ou, se se quiser, o significante em direo ao
significado).
244
Antonin Artaud. Le thtre alchimique . Le Thtre et son Double. In : uvres, Paris : Gallimard,
col. Quarto , 2004, p. 532 ; trad. brasileira : O teatro e seu duplo. So Paulo : Martins Fontes, s/d, p.
49-50.
245
Ibid. Artaud quem sublinha ; na traduo brasileira, p. 52.
246
Ibid., p. 534 ; traduo modificada (p. 52).
247
Ibid; traduo brasileira, p. 53.
Assim, os corpos so expostos no pelo acidente mas pela essncia. A disposio a natureza de sua posio no ser e o dis- carrega com ele o ex-: os corpos
so dispostos partes extra partes, segundo a caracterstica da extenso para
Descartes. Mas ainda a, a exterioridade no simples falta de interioridade ou de
presena a si: ela condio da copresena dos corpos, ou do seu comparecimento,
que simplesmente a regra e o efeito da criao.
Se eu ousasse eu diria que o teatro j comeou nos espaos intersiderais ou
ento no espaamento infinitesimal das partculas, pois j se engajou ali o drama,
como diz Artaud, ou seja, antes de mais nada, a ao, o ato de uma consumao que
responde a uma espera (servio, culto, responsabilidade). A espera com efeito j a
do sentido: do dizvel desse comparecimento das coisas que chamamos cosmos.
Mas me ser suficiente dizer que o corpo falante vem no meio dos corpos
como a manifestao dessa espera. E que dessa vez, com o corpo falante, o teatro j
verdadeiramente dado ou pr-dado.
Este corpo se apresenta ao se abrir: isso se denomina os sentidos. Mas
ao mesmo tempo que eles recebem informaes sensoriais, os sentidos as emitem por
sua prpria conta, se posso dizer assim. Mais uma vez, o olho v mas tambm olha.
Olhando ele expe, ele joga diante de si alguma coisa do que, para ele, ver e ser
visto. E sempre, alm do mais, saber no poder se ver. Tudo isso se d em um olhar
desses olhos, em que, como o escreve Proust, a carne torna-se espelho e nos d a
iluso de nos deixar, mais do que as outras partes do corpo, que nos aproximemos da
alma248.
A frase de Proust, como um todo, no destituda de estranheza, pois se
possvel que eu me veja nos olhos de um outro, no na verdade essa funo de
espelho tico que justifica a frase. Ela diz, antes, na verdade, que nos olhos do outro
eu me vejo a mim mesmo olhando, e por conseguinte tambm olhado e sempre
segundo essa fundamental extro-verso que no me far nunca me ver e que por isso
mesmo no me expe absolutamente.
Mas as outras partes do corpo, como diz Proust, no oferecem tampouco
elas prprias aproximaes da alma. Minhas mos, minhas pernas, meu pescoo,
minhas posturas, meus portes, meus gestos, minhas caras ou meus ares, o timbre da
minha voz, tudo o que poderamos denominar a pragmtica do corpo, tudo sem
dvida, tudo sem exceo sobre toda a superfcie da minha pele e de tudo com o qual
posso recobri-la ou orn-la, tudo expe, anuncia, declara, enderea alguma coisa:
maneiras de vir beira ou de se afastar, foras de atrao ou de repulso, tenses
para tomar ou para largar, para engolir ou para rejeitar.
Minha pele torna-se assim teatro de si mesma, escreve Mohammed
Khair-Eddine, que continua: O que explica o fato de que um ator ou um simples
dizedor seja movido pelas pulsaes cuja significao original ele prprio ignora.249
Em todas essas maneiras de se abrir e se fechar, de se colocar e deslocar,
de se dispor, de se impor ou de se esquivar, um corpo engaja um drama que no tem
nada de pessoal nem de subjetivo, mas que a cada vez a dramatizao singular
248
Marcel Proust. lombre des jeunes filles en fleurs, la recherche du temps perdu, t. 5. Paris :
Gallimard, 1919, p. 220 ; traduo brasileira, loc.cit., p. 427.
249
Mohammed Khar-Eddine. Soleil arachnide et autres pomes. Nova ediao apresentada por Jean-Paul
Michel. Paris : Gallimard, col. Posie , 2009, p. 120.
de seu distanciamento singular em meio de outros corpos jogado que ele com eles
no cosmos.
Os afetos so aqui segundos (o amor, o dio, o poder, a traio, a
rivalidade...), ou ento, antes, so apenas modulaes e transcries da grande tenso
primordial entre os corpos: como eles se empurram um para o outro e se repelem,
como eles se tomam e retomam. Ou seja, como eles se relacionam uns com os
outros, no atravs do incorporal que os distingue mas como esse mesmo
incorporal. Lugar, tempo, sentido e vazio (por vazio, compreendamos a ausncia
de corpos desaparecidos ou bem no nascidos) so a matria e a fora da relao. (
evidente que no distinguo, aqui, entre as relaes dos corpos entre si e a relao a si
mesmo de cada corpo: cada uma dessas relaes passa pelo outro, a lgica do
comparecimento e da (re)presentao.)
Um lugar onde se engendra e se leva o tempo prprio de uma apresentao
(de corpo: esse complemento poderia ser elidido) enquanto presses de sentido entre
os vazios de suas existncias fortuitas, um lugar em que essa prpria fortuitidade vira
necessidade de drama e em que o vazio assume a consistncia de uma coletnea de
sentido isso o que denominamos uma cena.
A skene, sabemos, inicialmente um abrigo leve, de fortuna, para se
retirar, dormir, beber, festar entre amigos, por exemplo em um barco. um lugar de
intimidade e diante desse lugar, tornado o fundo obscuro do teatro, o verso do
cenrio, sobre o prosknion que os atores se apresentam, saindo por uma das portas
dispostas na frente do cenrio. (No me deterei sobre a obcena, cuja etimologia
por demais discutvel para permitir algo mais do que solicitaes de ressonncia.
Permanece o fato de que longe da semntica toda a exposio tende obcenidade.)
Diante do abrigo ntimo que se balana de uma certa maneira para fora do
espao, em uma mancha cega, abre-se o espao em que devemos sair, onde o corpo
se pe diante de si pois toda a sua presena est ali, nesse fora de si que no se
destaca de um dentro mas que o evoca somente como impossvel, o vazio fora do
lugar, do tempo e do sentido. Si torna-se assim: personagem, mscara, maneira,
andamento, exposio, apresentao ou seja, variao singular da deiscncia e
distino pela qual h um corpo, uma presena.
No poema que se intitula O teatro da crueldade, Artaud escreve:
Ali onde h metafsica,
mstica,
dialtica irredutvel,
escuto se torcer
o grande clon
de minha fome
e sob os impulsos de sua vida sombria
dito a minhas mos
a sua dana,
a meus ps
ou meus braos250 .
250
Minha fome o meu apetite, o meu desejo, minha pulso, ela que lana
os impulsos dessa vida sombria ntima, intestino que transmite cadncia, ritmo,
toda essa dana que responde ao batimento profundo metafsica, mstica ou
toro que no responde a nada seno dialtica irredutvel o prprio pr no
mundo, a criao na sua espessura, na coagulao, a condensao e a distino.
Que essa dana no seja exclusivamente fsica mas pertena tambm ao
texto, palavra do teatro e sobretudo troca de palavras, de endereamentos de
palavra, e que a literatura teatral receba disso seus traos mais prprios - no tenho
tempo para me deter nisso. O que conta que no teatro o texto est em corpo, ele
corpo. por isso alis que se pode dizer que no teatro algo acontece
verdadeiramente, como Claudel o faz dizer a um de seus personagens (uma atriz):
Vale a pena ir ao teatro para ver alguma coisa que acontece251. O senhor entende! Que
acontece definitivamente! Que comea e que termina252!
Em todo esse trecho Nancy joga ainda com o duplo sentido do verbo arriver, em francs, ao mesmo
tempo acontecer e chegar. (N.T.)
252
Paul Claudel, Lchange, Paris, Mercure de France, 1964, p. 166.
Jean Magnan. Un peu de temps ltat pur. Genebra : Philippe Macasdar diteur, 1987, p. 71.
Heiner Mller. Adieu la pice dialectique . In : Hamlet-Machine. Tr. fr. Jean Jourdheuil e Heinz
Schwarzinger. Paris : Minuit, 1985, p. 67.
254
Franois Regnault. Petite thique pour le comdien. Paris : Les Confrences du Perroquet, vol. 34,
maro de 1992.
256
Hamlet. Ato III, cena 2. Tr. fr. Yves Bonnefoy. Paris : Gallimard, col. Folio , 1957, p. 118.
257
Florence Dupont, por seu lado, insiste sobre a provenincia cultual nos ritos dos ludi da comdia
latina. Para ele, em definitivo, essa comdia segue um verdadeiro ritual cuja celebrao consiste em pr
em cena em todos os sentidos da expresso as circunstncias e os cdigos do srio ordinrio da vida.
Ela v, ao contrrio, em Aristteles, aquele que se obriga, distanciando-se completamente do ritual
dionisaco, a por o teatro sob a ascendncia do mythos, ou seja, do relato, no qual, pela mimesis e a
catharsis, se joga a funo do teatro (cf. Aristote ou le vampire du thtre occidental. Paris : Flammarion,
2007). No entro nesse debate : observo somente que mmesis e catharsis representam sem dvida,
tambm em Aristteles, mas a despeito dele, as transformaes e portanto os prolongamentos da
celebrao ritual..
4. Aps a tragdia
Esse pargrafo em ingls, assim como as duas notas seguintes, foram pronunciadas por Jean-Luc
Nancy, quando da leitura do texto em Nova York, no colquio Honoring the Work and Person(s) of
Philippe Lacoue-Labarthe (1940-2007) [ Em honra da obra e da(s) pessoa(s), de Philippe LacoueLabarthe ], organizado por Avital Ronell e Denis Hollier. Universidade de Nova York (NYU) e Escola
de Direito de Cardozo, em abril de 2008. (N.E.F.) Aqui na Amrica talvez no nos E.U., mas na
Amrica, como Jacques Derrida o afirma em a desconstruo a Amrica , isto , o mundo que ainda
devemos descobrir aqui, ento, Philippe de fato teve muitos amigos. Muitos dos quais esto aqui.
Alguns j faleceram, como Eugenio Donato, que era prximo a ele, como Danielle Kormoz, que foi
tambm uma amiga americana. (N.T.)
Nunca acreditamos estar mortos. Sabemos que ele(a) est morto(a), mas no acreditamos. Freud
estava errado ao afirmar que no podemos acreditar em nossa prpria morte, porque no acreditamos em
morte nenhuma. Isso est alm de qualquer crena, de qualquer compartilhamento, de qualquer mimesis
ou methesis.
Mas estamos certos. Acredito que Philippe no est morto, pois escuto a sua voz dentro de mim
como algumas outras vozes, a do prprio Jacques, dentre elas. No que eu vou ler para vocs, ele est
falando, dentro e fora de mim, para mim, contra mim, separado de mim, ressoando para sempre em mim
(N.T.)
Philippe cujo desaparecimento no est isento desse trgico de que ele fazia a
tonalidade maior de seu pensamento e de sua vida de sua vida sempre
dolorosamente consciente de rumar para a morte. Doloroso foi-lhe tambm, como a
toda uma tradio cuja tenacidade ou resistncia no cessa, apesar de tudo, de me
surpreender, de se saber vindo to tarde aps a tragdia: isto , aps esse momento
que acreditamos bendito de ter sabido dizer cantar, representar, interpretar a
maldio dos mortais. Desse momento grego em que, bem antes, Homero ainda
podia dizer que os deuses fomentam a runa dos homens a fim de que estes possam
ser cantados. Em um sentido misterioso e terrvel, Philippe chamava sobre si mesmo
essa vontade dos deuses.
Eis-me aqui portanto, seis anos depois, em sua ausncia como o foi em sua
presena eu o revejo me olhando, um leve sorriso s vezes nos lbios, pensando:
sim, eu sei, Jean-Luc, eu sei o que voc pensa sobre a minha nostalgia dos
gregos... Estvamos em Estagira, a cidade natal de Aristteles, escolhida de
propsito. Pois j Aristteles cuja teoria da tragdia Philippe e eu j tnhamos
discutido tanto vinha aps a prpria tragdia. Muito antes de ns, que parecamos
ao cabo dessa histria, mas j aps o tempo do canto trgico, que doravante seria
preciso compreender, raciocinar e justificar. Aristteles j um terico e uma
espcie de historiador da tragdia, mas ele est apenas no incio de uma histria bem
longa.
Ora, toda essa histria, e o prprio conceito tal qual ele foi elaborado
muito tempo aps Aristteles, consiste essencialmente em vir aps. A dimenso do
aps lhe constitutiva e se posso dizer congenital. O comeo ou a arkh, o proteron,
o principium ou o initium constituem, por definio, o que lhe escapa ou bem aquilo
de que ela s pode se assegurar se apropriando e decidindo-se a ser ela prpria o seu
prprio comeo, a sua fundao e a sua origem. Ambas as postulaes insustentveis
escandem com a sua repetio toda a histria da filosofia, da literatura e da religio
do Ocidente. Ou bem somos nostlgicos de um para-sempre-perdido que sem dvida
nunca esteve presente, ou bem desejamos fazer surgir um absolutamente-por-vir que
no poderia ser precedido por nenhuma espcie de presena. assim que memria e
vontade so os dois axes e as duas figuras de nossa relao ao impossvel: a ns
mesmos como aporia. Nossa aporia, nossa ausncia de sada, reside no nascimento
que sucede nossa ausncia que no nos leva a outra coisa seno morte, que cava o
aps at apagar nela at mesmo a possibilidade de pensar uma sucesso, uma
posteridade ou uma herana. Sabemos todos como esse pensamento foi forte em
Philippe como ele foi vivo, como uma ferida o pode ser.
em grego que o ventre fecundo, a hystera, tomou o nome do que vem
por ltimo, aps, como para designar uma perptua ulterioridade da provenincia em
si mesma, um aps todo o antes, ou para diz-lo na lngua dos lgicos, um hysteronproteron permanente, em outras palavras, uma falta lgica constitutiva de nosso
ser259. Do mesmo modo que esse raciocnio vicioso consiste em dar como prova o
que de antemo deveria ser comprovado, assim tambm a condio ocidental
consiste em propor como ser o que desde o incio deveramos levar ao ser, e portanto
259
Nancy refere-se ao clebre captulo A religio civil , no Contrato social de Jean-Jacques Rousseau,
que Maximilien Robespierre implementou durante o terror jacobino sob a forma das Festas do Ser
Supremo. Rousseau : H, pois, uma profisso de f meramente civil, cujos artigos o soberano [a unio
de todos os membros do Estado ou da Cidade] deve fixar, no exatamente como dogmas de religio, mas
como sentimentos de sociabilidade, sem os quais impossvel ser bom cidado ou sdito fiel . Jean-
sucesso de tragdias, de forma que aps cada uma delas acaba por no haver mais
aps, j que o retorno de uma outra tragdia uma certeza, e que o aps vira um
antes.
Ora, tocamos aqui no ponto de juno entre os dois motivos condutores da
expresso aps a tragdia. Pois toda a histria que aparece como uma tragdia
tambm a histria que se representa como tendo perdido a tragdia. Essa contradio
entre dois usos do termo no se explica seno pela impropriedade de um dos dois.
Essa impropriedade, de resto, bem conhecida, e quando h pouco negligenciei de
me deter sobre as distines necessrias entre tragdia, drama ou catstrofe
(palavra ela mesma retirada do lxico literrio trgico, mas claramente imbuda de
um sentido diferente), a que eu poderia acrescentar desastre ou desolao, eu
sabia que cada um de ns, por menos que tenha um mnimo de saber filolgico e
filosfico, recusa-se a permanecer surdo a essas distines, j que a tragdia no
representa inicialmente uma variedade de acontecimento terrvel, nem como a pior
de suas variedades, mas denomina uma estrutura inteira de pensamento, no sentido
mais forte da palavra: uma construo de sentido, um sistema, no sentido mais
simples da palavra, ou se preferirmos, uma sinergia e uma simpatia que compem
um ethos prprio. O ethos trgico no se reduz ao pathos daquele que derrubado
por um desastre ou uma runa.
Mas aqui desponta a dificuldade que consiste talvez na tragdia de nossa
histria: se h confuso ou abuso de significaes quando falamos de uma tragdia
dos campos, de uma tragdia do 11 de setembro, de uma tragdia de Ruanda ou da
Nigria, da fome ou da prostituio de crianas, porque no podemos juntar um uso
relaxado da palavra com seu uso prprio. E ns no podemos faz-lo porque o
sentido prprio, na verdade, nos escapa. Nossa histria tambm a das
interpretaes da prpria tragdia, que foi ao mesmo tempo um enriquecimento,
mesmo que feito de contradies, e um retorno permanente a um segredo perdido e
ininterpretvel. Quando falamos da katharsis de Aristteles e dos valores sucessivos
que lhe emprestamos, do classicismo francs, do romantismo alemo ou ingls, de
Hegel, de Schelling, de Hlderlin, de Nietzsche ou de Benjamin, de Bataille ou de
Lacoue-Labarthe, para permanecer nesses nomes, qualquer que seja a leitura, resta
sempre um ncleo duro, um simples dejeto seco, que contm no mnimo essa
significao mnima: qualquer que tenha sido a verdade trgica, ela no mais a
nossa, qualquer que tenha sido a proximidade, ou mesmo a intimidade que este ou
aquele pde ter tido com ela, nenhum ethos, nenhuma tkhne poitik nos restitui a
possibilidade de viv-la aqui e agora, como uma funo de nossa vida de povo ou de
cidade.
Cada um e cada uma dentre ns pode compartilhar o jogo de cena [enjeu]
pattico e tico de dipo, de Antgona ou de Media (se nos for permitido dizer
jogo de cena no singular, j que se trata a cada vez de uma srie de sotaques e
acentos261 indefinidamente variados ao sabor de tantas grades de leitura). Mas no
estamos, para resumi-lo com a palavra mais apropriada, em uma liturgia da tragdia;
no estamos em um ofcio, nem em um servio comum de cultura e de conduta, de
costumes e de estrutura, com a qual poderamos designar, indistintamente,
sincreticamente, uma poltica e uma tica, uma teologia e uma esttica. Mas no
podemos tampouco designar o que a tragdia pode muito bem ter sido para aqueles
261
Accents, em francs, ao mesmo tempo sotaque e acento (no sentido rtmico-potico do termo).
Optei por explicitar os dois sentidos na frase. (N.T.)
que foram, no somente seus contemporneos, mas seus atores, seus autores e seus
expectadores, em conjunto e a cada vez. Que a figura de dipo tenha podido se
deslocar de duas peas de Sfocles at a posio de sinal e de significante para
investigaes pessoais da psicanlise, que o filho de Laio e o interlocutor da Esfinge
tenha podido se transformar em pai e marco, eis o que sem dvida diz muito (mesmo
se no sabemos o que diz) sobre os pais em geral, sobre os enigmas, sobre as
cidades, sobre o saber e sobre o poder, em nossas configuraes presentes de cultura.
*
H portanto uma exemplaridade inatingvel da tragdia. Que ela seja
exemplar significa que pensamos (representamos, imaginamos, sonhamos, talvez isso importa pouco experincia que se trava a para ns) poder ou dever reportar
tudo a alguma coisa dela: ou seja, que nos necessrio pensar que nela se atava o n
elementar da existncia, aquele que a liga a sua prpria insignificncia ou a sua
infelicidade. Mas que ela seja inatingvel significa que esse n no pode ser atado
por ns (seno, como venho de evocar, a ttulo individual, o que precisamente no
quer dizer nada aqui, pois a existncia essencialmente no individual, e tambm
isso que o saber trgico nos parece ter sabido).
Nossa situao portanto tal que quando leio no jornal, para tomar um
exemplo que ocorreu no momento em que escrevia isso, que o grande rabino da
Inglaterra declara: Considero a situao atual complemente trgica, no contexto de
uma oposio, em nome do judasmo, poltica de Israel, eu me digo que o trgico
(no sentido de desastroso e de desesperador) reside precisamente no fato dessa
palavra, trgico, no representar para o rabino nenhum recurso, nenhuma verdade,
alm da de uma infelicidade logo irreparvel. Ele no tem, ns no temos, o recurso
a uma verdade mais alta (ou mais profunda), sobre a qual o prprio trgico abriria,
que teria a possibilidade de fazer, apesar de tudo, sentido, mesmo que fosse fazer
sentido do abandono do sentido.
Ora exatamente algo dessa natureza que a tragdia grega (e talvez clssica)
representa para ns, mesmo que no saibamos nos apropriar desse modo bem
particular - e que dizemos perdido do recurso, esse modo que poderamos designar
como o do recurso sem socorro. Pois se a tragdia o que para ns (seno o que ela
foi para si mesma), precisamente na medida em que nela a runa se conjuga a uma
verdade, em lugar de carregar a verdade em sua runa, como o fazem o desastre ou a
derrelio moderna.
Como isso ou foi possvel? o que no podemos captar, mas de que
podemos ao menos nos aproximar, do exterior. Essa aproximao se impe a partir
do seguinte: a prpria tragdia tambm, j ela, vem aps. Ela vem aps a religio, ou
seja, aps o sacrifcio. Mas vindo aps, ela no passa simplesmente alhures. Em um
momento ao menos, o tempo de sua existncia entre Tespis262 e Aristteles, ela
262
Veja o que diz a respeito de Tespis, Rafaelle Cantarella : Tespis, de Icaria, teria recitado e
representado pela primeira vez um drama na cidade (ou seja, nas Grandes Dionisadas), e o prmio era um
caprino macho []. Segundo diversas fontes, ele dispunha de um coro (de homens, no zoomorfo), e
haveria introduzido o prlogo e o parlamento, empregando para isso um ator mascarado. Restam dele
quatro ttulos, provavelmente autnticos, e quatro fragmentos esprios, que derivam talvez das tragdias
de Tespis, falsificadas pelo peripattico Herclides de Pntico []. No obstante todas as incertezas e
Essa palavra palavra participante: ela toma parte na presena a quem ela
fala. Ela o faz at o ponto em que ela prpria se consuma como sacrifcio: um
vivente mortal consagrado aos imortais, e o seu sangue recolhe ou alimenta a sua
fora ou a sua proteo. No sacrifcio, a prpria palavra torna-se ato; ela pronuncia a
frmula que santifica o gesto do sacrificador, e ela prpria se imola, em suma, na
faca e no sangue. Pois a presena, para terminar, nadifica a palavra.
Saindo do culto, a tragdia sai da presena. Os deuses se retiraram, ou quem
sabe foram os homens que os desampararam, passando da vida agrria vida urbana,
da encantao retrica e da palavra escrita. Talvez fosse preciso dizer que a
primeira diferena entre o culto e o teatro reside no fato de que o primeiro no incio
no era escrito.
Esse adeus presena (toda a escrita lhe dirige um adeus, como o sugere
Jean-Christophe Bailly) funda o teatro: a palavra no deve mais se dirigir aos deuses,
e mesmo se bem no incio no deixamos de nome-los, ou at de invoc-los, os
rastros da religio no tm mais papel sacrificial. A palavra do teatro se dirige
precisamente ausncia dos deuses, o que quer dizer tambm que ela no se dirige
mais a eles, mas se troca entre os mortais que so doravante ss entre si.
no teatro, no primeiro teatro grego, mas muito depois de Tespis, na
Antgona de Sfocles, que se levanta a voz que proclama o homem terrivelmente
estranho e tcnico assustador, do mesmo modo como em dipo trata-se daquele que
respondeu pergunta sobre o homem. Entre o conquistador do mundo e o animal que
envelhece e morre, a tragdia condensa toda a intriga: no histrias humanas
trgicas, mas o prprio homem enquanto tragdia ou comdia. Ora, tragdia e
comdia se tramam em torno de acontecimentos: acontece, produz-se o que faz o
homem lastimvel e que apresenta esse lamentvel, seja compaixo, seja derriso.
Ecce homo no por acaso a frase, o enunciado, a divisa da religio se
desconstruindo a si mesma.
Com os deuses, nada acontece: eles so os portadores ou os porta-vozes do
que denominamos Destino, Moira, Necessidade, isto , o Acontecimento geral de
todas as coisas. Mas doravante o que acontece um destino cada vez singular em
que soobra o Acontecimento geral, com o culto que lhe poderamos fazer.
*
Entretanto a tragdia participa ainda de um culto ou bem de novo o caso
eminente de diz-lo - de um liturgia, essa palavra retomada pelos cristos e que
designa inicialmente uma ao a servio do povo. mesmo ocioso afastar-se ainda
um pouco do lxico religioso e falar de cerimnia. A tragdia e todo o teatro depois
dela guarda disso uma lembrana forma um cerimonial. No se trata somente do
cerimonial social, embora este, mesmo deslocado em mundanidade, no seja
negligencivel. Trata-se inicialmente dessa cerimnia que em si mesma tragdia (e
cuja memria, mais uma vez, todo o teatro guardou, mesmo que apenas, justamente,
no tenha guardado nada alm de uma memria...). Ali onde o culto sacrificial
consuma a invocao dos deuses na efetividade do sangue que lhe consagrado, o
teatro consuma uma invocao ou uma advocao mtua dos homens entre si (os
personagens entre si e o coro com os personagens). Esse endereamento mtuo e
esse canto alternado onde reside sem dvida alguma coisa de essencial a toda a
265
To remember: Philippe once told me: I know what shall be done to have a new Hlderlin. I know, but
it is too difficult [Lembrar: Philippe me disse uma vez: Eu sei o que deve ser feito para ter um novo
Hlderlin. Eu sei, mas difcil demais].
266
Empdocle (terceira verso). Trad. fr. Robert Rovini. In : uvres. Paris : Gallimard, col.
Bibliothque de la Pliade , 1967, p. 573.
267
Tenue em francs. Temo utilizado vrias vezes no ensaio por Nancy, por meio do qual ele designa
algo como a essncia do trgico. Tenue tem sentido mltiplo: continuidade, durao, maneira de gerir
um estabelecimento, ou de segurar um objeto, conduta, atitude do corpo, manuteno, aspecto, maneira de
se vestir, traje, porte. Embora intraduzvel, encontrei em tenncia alguns dos significados que
interessam aqui. A velha repartio militar (tenente-general da artilharia; posto de tenente; local onde
habita o tenente), cado em desuso, deixa ouvir algo da raiz verbal de ter, e cedeu lugar a ressonncias
no discurso informal: teimosia, obstinao, precauo, cuidado, cautela, vigor, firmeza, fora, corume,
hbito, jeito. (N.T.)
ambas o fizeram por um movimento que passa alm ou mais exatamente que
procura desesperadamente passar alm do cerimonial da palavra. A filosofia
procurou essa ultrapassagem em um saber tornado idntico ao seu prprio objeto, o
cristianismo o desejou em um amor tornado idntico existncia.
Representamos por outro lado os dois como propondo uma franquia da
morte, uma passagem por guas rasas, o que no passa, com certeza, da sua
configurao mais exterior e mais ideolgica, por trs da qual se trava um jogo mais
severo. Mas a fora do espelhamento dessas representaes (a morte vencida pela
sabedoria ou pela ressurreio) no por isso menos sintomtica dos desejos do
Ocidente: com o sacrifcio e em seguida com a tragdia, a relao morte que ele
perdeu ou que ele acreditou ter perdido ou desregrado.
Mas como a morte permanece no-franquevel, engendrou-se nos dois
registros uma espcie de mutismo cujo ltimo nome niilismo. H, haver, ou h j
um aps o niilismo que no pretende oferecer um aps a morte, e que no
entanto assume ser aps a tragdia? Essa a nossa questo, trgica. Mas ela
exige, no mnimo, se existe alguma chance de responder a ela, que saibamos o
seguinte: aquilo para o qual deveramos inventar uma outra cerimnia da palavra,
uma outra liturgia do sentido e da verdade, no pode tampouco proceder de outro
lugar seno do cerne mesmo de nosso mutismo, mas isso, com a condio de que
uma garganta murmure ainda ali apesar de tudo.
And, as I said, I believe Philippes throat is murmuring here and now270.
(Estagira, setembro de 2002 Giessen outubro de 2007 Nova York,
abril de 2008.)
Traduo:
Joo
Camillo
Penna
equvoco de elevar, manter e abolir, superar e destruir, com o qual Hegel cria captar o mecanismo do
movimento histrico. (N.T.)
270
Em ingls no texto. [E como disse, acho que a garganta de Philippe est murmurando aqui e agora.]
(N.E.F.)
5. Ressurreio de Blanchot
Dsoeuvrement, termo central da tese blanchotiana sobre a literatura a a arte moderna, foi traduzido
em portugus e em outras lnguas de modos distintos. Em portugus, algumas vezes por ociosidade, ou
por inoperncia; em ingls frequentemente por inoperativeness, e em espanhol por inoperancia.
Opto agora por utilizar um neologismo, desobramento. (N.T.)
272
Maurice Blanchot. O espao literrio. Trad. lvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 147.
Descuro de ser mais preciso, indico apenas rapidamente cinco referncias desses cinco termos, todos
tomados em O espao literrio, op.cit., nas pginas: 39 [observe-se que o tradutor, lvaro Cabral,
traduziu desoeuvrement por ociosidade, leia-se ento a seo A profundidade da ociosidade] , 201
[o subcaptulo A comunicao ], 225 [a seo Terra movedia, horrvel, delicada , 268 [em
especial o anexo III, O sono, a noite ], 271 [por exemplo, o anexo IV, O itinerrio de Hlderlin ],
31 [ A experincia de Mallarm ].
274
Cf. Christophe Bident. Reconnaissances Antelme, Blanchot, Deleuze. [Reconhecimentos Antelme,
Blanchot, Deleuze] Paris, Calman-Lvy, 2003.
275
A referncia exata : Evangelho segundo S. Joo, captulo 11, 1-44. (N.T.)
276
M. Blanchot. Thomas lObscur. Paris : Gallimard, 1941. A passagem se encontra na p. 49 ; ela se
reencontra na p. 42, na segunda edio (Paris : Gallimard, 1950). Cito a primeira edio aqui e nas notas
seguintes. [Na reedio de 2005 da primeira verso, o trecho se encontra na p. 79. Maurice Blanchot.
Thomas lObscur. Premire version, 1941. Paris : Galimmard, , 2005. {N.T.}]
277
Ibid. O texto no original: Il marchait, seul Lazare vritable dont la mort mme tait ressuscite .
278
Ibid. [Nancy cita aqui o trecho da segunda edio. {N.T.}]
regime de um ego sum cartesiano. De uma impresso transtornada, Toms passou a uma
espcie de cogito morto, na morte ou da morte. Ele se sabe arrancado tanto morte
quanto vida (donde a importncia da mudana na ordem dos termos). Morto, nem por
isso ele deixa de ser mergulhado na coisa morte: ele se torna o sujeito morto de um
arrancamento morte em si. tambm por isso que ele no ressuscitou, ou seja, que ele
no recobra a vida aps ter atravessado a morte: mas permanecendo morto ele avana na
morte (ele caminhava) e a prpria morte que se v ressuscitada nesse nico Lzaro
verdadeiro.
A morte o sujeito279; o sujeito no ou no mais o seu prprio sujeito.
isso o que est em jogo na ressurreio: nem subjetivao nem objetivao. Nem o
ressuscitado nem o cadver mas a morte ressuscitada; como deitada sobre o
cadver e assim levantando-o sem o suspender280. Nada mais. Wo Ich war soll es
auferstehen281.
O outro Lzaro, o do Evangelho, no portanto o verdadeiro : ele o
personagem de um relato milagroso, de uma trangresso da morte por intermdio do
mais improvvel dos recursos vida. A verdade no cabe em um semelhante retorno :
ela reside na concomitncia entre a morte e uma vida nela que no retorna vida, mas
que faz viver a morte enquanto tal. Ou bem ainda : o verdadeiro Lzaro vive o seu
morrer como ele morre o seu viver. assim que ele caminha . O texto prossegue,
concluindo o captulo (e transformando-o tambm, tornando mais leve a primeira
verso, na qual, alm disso, o captulo estava longe do fim) : Ele avanava, passando
por sobre as ltimas sombras da noite, sem nada perder de sua glria, coberto de ervas e
de terra, indo, sob as estrelas cadentes, de um passo igual, o mesmo passo que, para os
homens que no esto envoltos em um surio, marca a asceno em direo ao ponto
mais precioso da vida282. Essa caminhada subterrnea e gloriosa no meio do desastre
anda com o mesmo passo com o qual vamos em direo morte. Toms est envolto no
surio, como Lzaro, enquanto que a caminhada dos homens a de uma asceno ,
outro termo cristo que designa, dessa vez, a caminhada prpria do Ressuscitado por
excelncia. Assim, o afastamento do Evangelho s vale mediante uma lembrana
renovada de sua referncia. O verdadeiro Lzaro outro com relao ao Lzaro
ressuscitado pelo Cristo (por aquele que diz, nesse mesmo episdio de Joo, eu sou a
ressurreio ), mas subsiste um resto : permanece nele alguma coisa desse miraculado.
Mas precisamente no e o milagre. antes o sentido dado ao relato milagroso
pelo relato de Toms : esse sentido, ou essa verdade, no uma travessia da morte, mas
a prpria morte como travessia, como transporte e como transformao de si mesma em
si mesma, retirada em sua coisidade, em sua positividade objetiva de morte para se
revelar - ponto mais precioso da vida - enquanto extremidade, onde se retorna e se
destaca o acesso da vida ao que no nem o seu contrrio, nem o seu alm, nem a sua
sublimao, mas somente, e ao mesmo tempo, infinitamente, o seu inverso e a sua
279
Em francs, sujet significa ao mesmo tempo assunto e sujeito, no sentido gramatical, filosfico,
etc., do termo. Ambos os sentidos devem ser ouvidos nessa frase. (N.T.)
280
Relever, pelo qual Nancy remete relve, i.e. Aufhebung hegeliana, na traduo de Jacques
Derrida, que traduzo aqui pelo verbo equvoco em portugus, suspender, ao mesmo tempo, elevar e
retirar. (N.T.)
281
Fao aqui uma traduo literal da frase. Onde era o eu, isso deve ser ressuscitado. Referncia frase
de Freud, Wo Es war, soll Ich werden (Novas conferncias introdutrias sobre psicanlise, 1933):
"Onde era isso devo eu advir," na traduo de Jacques Lacan. Onde havia o Es (Isso, Id, o inconsciente),
deve advir o eu (o sujeito do inconsciente, na formulao lacaniana. (N.T.)
282
Maurice Blanchot. Thomas lobscur, op.cit.., ibidem. [Nancy cita aqui a segunda verso. {N.T.}]
iluminao pela face mais obscura, a face de Toms, aquela que recebe uma luz das
trevas, e que portanto sabe renunciar luz nica das significaes possveis.
Devo precisar mais que isso ? Thomas lobscur no prope nada seno a
histria de uma ressurreio ; melhor ainda, a histria da ressurreio. Pois o prprio
Toms a ressurreio, maneira deste Cristo, de quem se lembra uma outra palavra, a
propsito da morte de Ana, no momento em que Ana a ressuscitada, a morta cujo
corpo sem consolao 283 ao mesmo tempo a presena que dava morte toda a
realidade e toda a existncia que formavam a prova de seu prprio nada 284. Assim
prossegue o monlogo de Toms ao vel-la: No impalpvel nem dissolvida nas
sombras, ela se impunha cada vez mais aos sentidos. Ora esta ltima frase, que d a
ler a afirmao da forte presena sensvel do corpo, deve tambm ser lida segundo a
indicao expressa do narrador que precisa que Toms fala como se os seus
pensamentos tivessem uma chance de serem ouvidos 285, e que doravante, segundo
essa oralidade, o plural de aos sentidos - frmula alis ligeiramente inslita nesse
lugar torna-se inaudvel e elide-se em um singular, calculado para se fazer entender,
sem por isso formalmente impor o seu conceito.
De todas as maneiras, Blanchot no-lo confirmar : a ressurreio designa o
acesso a um alm do sentido, a caminhada nesse alm por um passo que no vai a lugar
nenhum seno repetio de sua igualdade286. Deste passo, sabemos, a escrita o rastro
ou a marca. Mas ela s o na medida em que descortina um espao onde,
propriamente dito, nada possui ainda sentido, em direo ao qual, entretanto, tudo o que
tem sentido reverte como sua origem 287. Negligenciemos aqui a circunstncia de
esse texto de 1950 falar uma lngua ligeiramente distinta da que Blanchot falar mais
tarde. Essa decalagem no , certo, indiferente, e Blanchot o destacou, sem que isso
tenha impedido, todo o contrrio, o impressionante repisamento, a remarcvel
obstinao, de um pensamento atravs de suas variaes necessrias. Permanece
portanto o fato de que o espao da ressurreio, aquele que a define e que a torna
possvel, o espao fora do sentido, que precede o sentido e que o sucede admitindose que aqui anterioridade e posteridade no tenham nenhum valor cronolgico, mas
designem um fora-do-tempo to interminvel quanto instantneo, a eternidade em seu
valor essencial de subtrao. (Mas a observao feita assim no que toca o deslocamento
de termos em Blanchot, aps a poca de O espao literrio, deveria abrir sobre um
outro questionamento : at um certo ponto, Blanchot procedeu assim, sem dvida, a
uma suspenso ou a uma interrupo do registro mtico. Entretanto, para alm da
interrupo, o que, talvez, sem dvida mesmo, insiste e no pode seno insistir ? Essa
insistncia se junta em Blanchot do nome de Deus , qual ser preciso retornar em
outro lugar.)
A vida subtrada ao sentido, o morrer da vida que faz a sua escrita no apenas
a do escritor, mas a do leitor, e mais ainda, a daquele que no escreve nem l, quer seja
283
Ibid., p. 100.
Ibid., p. 101.
285
Ibid., p. 99.
286
Nancy joga aqui com o equvoco pas em francs, ao mesmo tempo partcula negativa, e passo,
jogo que remete frmula do prprio Blanchot, no ttulo de seu ensaio Le Pas au-del (1951), em que se
ouve, ao mesmo tempo, O passo alm e O no-alm (Le pas dau-del). Jogo este que traduz
precisamente o esquema da hesitao entre transcendncia (o passo alm), e a no transcendncia (no
alm), passo que, por assim dizer, fica no mesmo lugar, esquema da prpria escrita e da relao com o
corpo morto, para Blanchot. (N.T.)
287
Id., Ler , em O espao literrio, op.cit.., p. 196.
284
ele analfabeto quer ele tenha deixado todo o comrcio com o saber, a escrita enfim
definida pelo morrer de um livro em todos os livros 288 ao qual responde tambm
essa definio : Escrever, formar no informal um sentido ausente289 - essa vida a
vida de que foi retirado o sentido e que no ressuscita como vida, mas que ressuscita a
morte : ela subtrai a morte ao seu advento e ao seu acontecimento, ela subtrai ao
falecimento da mortalidade o morrer da imortalidade, por intermdio da qual eu
conheo incessantemente essa retirada radical do sentido, e portanto a prpria verdade.
Eu a conheo, eu a compartilho, isto , eu retiro minha morte, minha expirao, de
qualquer propriedade, de qualquer presena prpria. Assim de mim mesmo que eu me
desprendi, ao transformar o fato da morte 290, de uma maneira dupla : a morte no
ocorrre mais como corte infringido a mim , ela se torna a sorte comum e annima
que ela no pode seno ser, e o corolrio disso, a morte ressuscitada, ausentando-me de
mim mesmo e do sentido, expe-me no somente verdade, como, enfim, expe eu
mesmo, a verdade eu mesmo, a glria tenebrosa do verdadeiro em ato.
De uma maneira sutil, a vida de Blanchot, cuja ntima retirada ter permitido a
afirmao e a exposio de uma vida inteiramente outra, cuja ausncia declarada ter
engajado a mais insistente presena pblica de uma vida retirada na morte da existncia
objetivada, e identificada na pessoa e na obra esta vida de Blanchot, desta forma, no
ocultada, mas, ao contrrio, a mais publicada de todas as vidas, consistiu em uma vida
ressuscitada em vida, pela prpria publicao de sua morte sempre em obra. Sem
dvida, h ambivalncia nessa atitude. Mas a sua coerncia e a sua tenncia no deixam
de dar a pensar. No mnimo, certo que Blanchot nunca se guiou por uma revivescncia
nem por um milagre, mas soube compreender a sua vida como de antemo morta e
assim retornada em ressurreio (se podemos dizer aqui compreender; no mnimo
podemos dizer tomar).
Que no haja a nem revivescncia nem milagre o que precisa o texto
intitulado Lzaro, veni foras, de O Espao literrio. Blanchot se aplica ali a descrever
a leitura como ato de acesso obra escondida, ausente talvez radicalmente,
dissimulada, em todo o caso, ofuscada pela evidncia do livro291. Ele identifica a
deciso libertadora292 da leitura ao Lzaro, veni foras do Evangelho293. Essa
identificao abre de fato um deslocamento considervel, pelo qual no se trata mais de
fazer sair um morto do tmulo, mas de discernir a prpria pedra do sepulcro como a
presena, cuja opacidade no se deve dissolver, mas reconhecer e afirmar, enquanto
verdade da transparncia esperada, ou bem a escurido (a de Toms, mais uma vez),
enquanto claridade verdadeira. Ora a operao de ler, enquanto revelao, s pode ser
considerada como um milagre (palavra que Blanchot usa entre aspas, assinalando ao
mesmo tempo um modo ordinrio de dizer milagre da leitura e a operaco do
Cristo sobre Lzaro), se compreendermos a sua revelao a bem da opacidade
pedregosa que pode nos esclarecer tambm sobre o sentido de toda taumaturgia294.
Blanchot faz ou escorrega essa observao de maneira incidental. Ela no faz mais no
entanto do que por em claro o que o milagre quer dizer. Taumaturgia- esse termo
toma distancia e repele o milagre evanglico para o terreno de uma cena mgica ou
288
maravilhosa (esta ltima palavra intervm algumas linhas adiante, ela tambm em um
uso ligeiramente depreciativo). Destaquemos, no entanto, para todos os fins teis, que
ele declina o nome de Toms, o qual, tratado s vezes como palavra e no como nome
nesse livro epnimo, talvez no cesse de remeter a uma maravilha mais maravilhosa,
pois menos brilhante, que todas as maravilhas dos Evangelhos ou bem... da literatura
maravilhosa. Resulta disso, em todo o caso, que o sentido de todo milagre dado pelo
da leitura, a saber, por nenhuma operao que desafia uma natureza dada, mas por essa
dana com um parceiro invisvel que caracteriza por fim a leitura leve, no sbia,
ou seja, tambm, como se precisa, no penetrada de devoo e quase religiosa295, a
nica leitura que no enrijece o livro em objeto de culto, que pode mesmo ser
inculta e que assim abre-se para a retirada da obra. O sentido do milagre de no dar
lugar a nenhum sentido que exceda ou desvie o sentido comum, mas somente
supenso do sentido em um passo de dana.
Essa imagem em si pode nos incomodar. Ela tem algo de muito imediatamente
sedutor por no ser demasiado fcil. Mas com tudo isso ela no deixa de indicar, da
melhor maneira que pode, a relao entre leveza e gravidade, em torno da qual Blanchot
a esboa. Ele conclui, de fato: [...] onde a ligeireza nos dada, a gravidade no
falta296. Essa gravidade que no falta, mas que permanece discreta, ope-se gravidade
do peso que fixa o pensamento sobre a coisa, sobre o ser, sobre a substncia: assim
tambm, portanto, a esse pensamento fixado sobre a substncia da morte e que pensa
torn-lo mais leve e se consolar dele pela taumaturgia de um retorno pesado vida. A
gravidade danante no faz entrechats diante do tmulo, ela experimenta a pedra como
leve, ela pe ou sente na pedra pesada o alvio infinito do sentido. Tal a oposio entre
a morte ressuscitada e a ressurreio do morto.
A partir da, assim como o diz um outro texto, tudo se passa como se esta [a
morte] somente em ns pudesse purificar-se, interiorizar-se e aplicar sua prpria
realidade essa potncia de metamorfose, esta fora de invisibilidade, de que ela a
profundidade de fonte297. Somente em ns: o contexto permite precisar que se trata aqui
no somente de ns enquanto homens, mas de ns enquanto mortos. Somente ns,
tambm ns em nossa solido e em nossa desolao de mortos e de mortais, ns, os
mais perecveis de todos os seres298, como ser dito mais adiante. Neste texto
consagrado a Rilke ao poema e ao seu canto que se confia a gravidade leve da
ressurreio da morte. A fala est escrito d voz intimidade da morte. Isso se
passa no momento da quebra, no momento em que a palavra morre. O canto do cisne
ter sempre formado o baixo contnuo do texto de Blanchot. Isso significa duas coisas,
cuja reunio compe o difcil, estranho, e obstinadamente fugaz, pensamento da
ressurreio.
De um lado, esse canto s canta ou esse passo s dana no momento de se
quebrar, na medida em que se quebra, e assim ele s pode remeter ao seu prprio morrer
o cuidado de sustentar a sua nota, de danar o seu passo. preciso portanto que seja
assim no correr da escrita, preciso que em cada ponto se inscreva a o que se excreve
dali299: que no h nada mais a dizer, nenhum indizvel, nenhum retorno de uma outra
palavra de verdade alm da cessao do falar. Mas no h mais folga para essa excrio,
295
Ibid., p. 198. [No original em francs, e na traduo de lvaro Cabral: {...} penetrada de devoo,
quase religiosa {...}. Parece que Nancy substituiu vrgula a conjuno e. {N.T.}]
296
Ibid.
297
Id., Rilke e a exigncia da morte, em O espao literrio, op. cit., p. 147.
298
Ibid.
299
Sobre a noo de excrire, excription, ver a nota X supra. (N.T.)
Philippe Lacoue-Labarthe. Agonie termine, agonie interminable. Sur Maurice Blanchot seguido de
Lmoi. Paris : Galile, col. La philosophie en effet , 2011, p. 149. Philippe Lacoue-Labarthe quem
sublinha.
301
M. Blanchot. Lcriture du dsastre, op. cit., p. 35.
302
Ibid., p. 37.
303
Nancy utiliza-se aqui do termo tcnico cunhado por Jacques Lacan, foraclusion, traduzido em
portugus por foracluso, para designar o recalque especfico da psicose, enquanto que o recalque
associado neurose. (Jacques Lacan. O Seminrio: Livro V. As formaes do inconsciente. Rio de
Janeiro: ed. Zahar, 1998.)
dizer gnero literrio, mas toda espcie de dizer, de grito, de prece, de riso ou de
soluo que sustenta como se sustenta uma nota, um acorde essa infinita suspenso
de sentido. Compreendemos, essa tenncia pertence tica mais que esttica mas no
fim das contas, ela desmonta e desfaz tambm essas categorias. Poder-se-ia diz-lo
ainda de outro modo: na medida em que essas categorias pertencem filosofia, elas nos
assinalam tambm que a onto-teologia filosfica pratica o embalsamento, a
metempsicose, ou bem a escapada da alma mas nunca a ressurreio. As prticas
metafsicas designam sempre assim um a-diante, o futuro de um renascimento, uma
maneira de possvel e de potncia, enquanto a literatura s escreve o presente do que
sempre j nos aconteceu, ou seja, o impossvel no qual o nosso ser consiste em
desaparecer.
304
Nancy remete aqui expresso equvoca, lapidar, cunhada por Blanchot, que d ttulo ao livro em
pauta, pas au-del, ao mesmo tempo passo-alm, e no-alm (pas dau-del), em que o equvoco se
situa na palavra pas em francs, ao mesmo tempo, passo e partcula negativa. A expresso passo (no)
alm tenta restituir algo dessa equivocidade. (N.T.)
310
Arriver tem sentido equvoco, ao mesmo tempo chegar e acontecer. Nancy joga aqui com os
dois sentidos: chegar ao (no) alm e acontecer o (no) alm. (N.T.)
311
Ibid., p. 104.
312
Ibid., p.105.
313
Approcher. O trecho insiste nas noes cognatas de approcher, approche, proximit,
prochain, prochaine. Optei por no unificar a traduo, utilizando seja abordar, abordagem ou
aproximao, aproximar, prximo, segundo o contexto. (N.T.)
314
Ibid., p. 99.
Assim, o neutro no pode rigorosamente ser abordado, ou bem ele s pode s-lo
sob a condio de um afastamento infinito inscrito na prpria aproximao.
precisamente por essa razo, exemplo de Deus315, que o neutro uma palavra a
mais. O neutro: esta palavra a mais que se subtrai [...]316. Ele se subtrai linguagem,
ele quase no fala317, ele o nome sem nome318.
*
Ningum melhor do que Blanchot soube a extrema dificuldade da situao assim
descrita: se o neutro o nome sem nome, como portanto ele pode ser nomeado? E no
entanto ele o , ele deve s-lo, j que no possvel renunciar se aproximar
distanciando-se na medida do limite onde somos abertos, expostos. Tanto ele deve ser
que Blanchot o escreve s vezes com uma maiscula, por exemplo, nesta frase: O
Neutro no tem os ttulos mitolgicos antigos que toda a noite traz com ela319.
Esta frase significa que a noite, toda noite, depe seus ttulos mitolgicos, sendo
ela mesma ela que ou que faz a abertura aberta pelo neutro, e assim, de uma certa
maneira, neutralizada como potncia noturna (por exemplo, como o horrvel sol negro
de onde raia a noite de Victor Hugo320). O neutro dissipa as potncias mticas, ou seja,
aquelas que eram capazes de assegurar uma proximidade do longinquo.
Mas a dificuldade se endurece quando ponderamos sobre a potncia apesar de
tudo suposta por essa dissipao. Enquanto o Neutro ou o neutro funcionar em um
discurso que lhe d os seus predicados e que o descreva, de se suspeitar um recurso
secreto a uma potncia sobrenominal. O que ocorre, por exemplo, quando o neutro
autoriza de alguma forma uma experincia daquilo mesmo de que a aproximao o
afastamento? Blanchot escreve: [...] a escrita corte para com o pensamento quando
este se d como proximidade imediata, e corte com toda experincia emprica do
mundo. Nesse sentido, escrever tambm ruptura com toda conscincia presente,
estando sempre de antemo engajado na experincia do no-manifesto ou do
desconhecido (ouvido em neutro [au neutre])321.
Como escrever se engaja nessa experincia no-emprica ou seja, nessa
experincia que, segundo toda a tradio filosfica, experincia ligada a uma
necessidade transcendental (ou seja, que pertence a um sujeito puro) ou trancendente
(experincia do alm em si)? Ele s pode ser engajado de uma maneira que o
desprenda ao mesmo tempo de toda constituio transcendental ou transcendente da
experincia que ele faz ou que ele .
315
1. PSYKH
Psyche ist ausgedehnt, weiss nichts davon. uma nota pstuma de Freud. A
psique extenso [tendue], no sabe nada disso. Tudo termina, pois, por essa
breve melodia:
Psyche ist ausgedehnt, weiss nichts davon.
Psique extenso, partes extra partes, apenas disperso de locais
indefinidamente despedaados em lugares que se dividem e nunca se penetram.
Nenhum encaixe, nenhum encavalamento, tudo est no lado de fora de um outro
fora cada um pode lhe calcular a ordem e lhe dar as relaes. Psique s no
sabe nada disso: absolutamente nenhuma relao para ela entre esses lugares,
esses locais, esses pedaos de plano.
Psique extenso sombra de uma nogueira, enquanto o dia declina. Ela
repousa; os movimentos leves do sono descobriram metade de sua garganta.
Eros a contempla, bem junto com perturbao e malcia. Psique no sabe nada
disso. Seu sono to profundo que lhe furtou at o abandono de sua pose.
Psique extenso em seu caixo. Logo vo fech-lo. Entre os que esto
presentes, alguns escondem o rosto, outros mantm os olhos desesperadamente
fixos sobre o corpo de Psique. Ela no sabe nada disso e isso que todos
sabem ao redor dela, de um saber to exato e to cruel.
2. A JOVEM CARPA
Nota liminar
De certo modo, gostaria que esta nota no fosse lida. Temo que poder-se-ia ver nela seja
um modo de usar, seja uma teoria, seja uma justificativa para o texto que a segue. Alm desse
temor, verossmil que me repugne a ideia de propor este texto, de qualquer maneira. um
caso, talvez, de amor e dio. No entanto, no possvel deix-lo propor-se por si mesmo, como
se ele se explicasse por si s. Digamos, ento, brevemente, o seguinte:
Este texto deriva (emprego esta palavra de propsito, j que o movimento no foi totalmente
deliberado) do projeto de escrever um estudo sobre La Jeune Parque [A Jovem Parca], de
Valry. Esse poema j foi comentado por Alain. Isso no impediria uma recidiva, mas seria
necessrio levar em conta uma outra circunstncia: o prprioValry comentou o comentrio de
Alain, em sua fbula Le Philosophe et la Jeune Parque [O Filsofo e a Jovem Parca]. No
estranho que o poeta tenha escrito no sem ironia o comentrio de seu prprio poema e o
tenha feito no estilo de uma instruo acerca da lio filosfica da prpria poesia. Toda a sua
potica uma didtica, uma didtica da poesia enquanto esta, por sua vez, forma uma didtica
do pensamento (releia-se, para ser rpido , LAmateur de pomes [O amante de poemas]). Isso
deveria ser comentado, ou (ento) versificado? O que um poema didtico?
Mas tambm, ato contnuo: o que a pardia? No um pastiche. E se a pardia no
passasse tampouco de uma imitao debochada ou do travesti burlesco de um gnero nobre? Se
ela fosse apenas isso? (E isso, o que exatamente?) Se ela fosse ao mesmo tempo para-d
o momento decalado do canto, o momento de um acesso ao poema (acesso da poesia, crise de
verso) que no acede a ele (por recusa ou por incapacidade), e que marca o passo na soleira.
Marcar o passo de poesia: um Blanchot pardico nos teria ditado essas palavras.
Mas ainda: e no caso da rivalidade do discurso com o poema e do filsofo com o poeta
(o caso em primeiro lugar de Valry)? De que forma esta rivalidade poderia ao mesmo tempo
consistir em concorrncia, asssalto ou encontro? A pardia encena facilmente a concorrncia
mas o que uma concorrncia pardica?
Mas enfim: no seria importante pensar que a pardia j opera em Valry? Toda a sua
empresa de poeta (ou tambm a de Monsieur Teste ) no se definiria a partir disso? Neste caso,
teramos aqui no uma pardia da pardia, mas a repetio de um passo marcado, um bater o p
de poesia. Como se por fora o solo fosse deformado ou reformado com isso. No se teria aqui
ao menos uma convico: de que a poesia no a potncia infinita de uma linguagem (um dos
episdios mais curiosos da modernidade ter reativado essa tese romntica), mas obedece s leis
da finitude do discurso (pardia, questo de clausura, diria o meu vizinho lrico), e que o
concurso dos dois se acha, talvez, singularmente deslocado?
O que se segue foi, sem dvida, escrito para deixar todas essas questes, por algum
tempo e em algum lugar em suspenso.
O nmero de versos, o metro e o agenciamento, a escolha das rimas a cada mudana de
pgina so exatamente as de La Jeune Parque (na edio de 1942). Em compensao, no o
que geralmente ocorre com a prosdia, que mistura alguns outros modelos: se no fosse assim, o
gnero seria o do pastiche. Para o resto, o silncio a fonte estranha dos poemas, como est
escrito em Le Philosophe et la Jeune Parque, ou, melhor ainda, nos Cahiers [Cadernos]: o
leitor encontrar a um sentido.
Fevereiro de 1979
3. ELE DIZ
infantil,
infantilizao,
etc.
alm
de
infante,
transposio
do
infans
latino,
a
que
se
refere
Jean-
Luc
Nancy,
porm
com
um
sentido
muito
mais
restrito.
Para
manter
aqui
o
sentido
da
frase
de
Nancy
utilizei
aqui
o
termo
infante,
que
mantm
um
sentido
unicamente
nobilirquico
portugus.
(N.T.)
Eu no falava. Voc abriu a minha boca, forou a minha boca cerrada, quis me
ouvir, exigiu me ouvir, eu no tinha mais o direito de me calar, no tinha mais o
direito de gritar, voc abria e fechava minha boca em cadncia, a velha cadncia
estava aqui, no era voc quem a tinha fabricado, mas voc se modelava sobre ela
para manejar meus lbios, e minha lngua entre os meus dentes. Voc me dirigiu a
palavra e eu lhe falei, foi voc quem a dirigiu a mim e ela volta a voc, eu no a
dirijo a voc, no tenho nada a te dizer, mas voc me faz falar, eu te digo tudo o
que se pode dizer, e o que tambm se pode calar. Voc no me ensina nada, mas
me faz falar uma lngua nova, e sempre ainda uma outra que fala nela e que voc
faz por sua vez falar, remexendo meus lbios e minha lngua entre meus dentes, e
tua lngua entre meus dentes.
Recopio aqui o verbete do Houaiss. Pe: entre os antigos gregos, canto ou hino coral de invocao,
celebrao, agradecimento, triunfo, louvor ou exaltao, originalmente em honra a Apolo (no seu epteto
ou aspecto de Peo, mdico dos deuses), mas tambm estendido a outras divindades e a indivduos
importantes, e cantado em ocasies diversas como rituais, vitrias e campanhas militares, durante as
libaes, e em acontecimentos pblicos. (N. T.)
Nancy joga aqui com a homofonia de nue, em francs, ao mesmo tempo nua(feminino de nu), e
nuvem. A frase Aphrodite est nue pour tous les dieux perfeitamente equvoca, significa ao mesmo
tempo que Afrodite nua e nuvem para os deuses. (N.T.)
329
Trecho de De rerum natura de Lucrcio: [] Aeriae primum volucres te, diva, tuumque/ significant
initum perculsae corda tua vi. [] Primeiro os pssaros areos, aunciam-te assim que tua aproximao.
Lucrcio, De rerum natura, I, 12-13. (N.T.)
O nome de Afrodite est bem longe de ser o nico nome, e o nico nome
divino, cuja provenincia seja atormentada, disputada, desancorada, flutuando
entre as guas. Mas talvez seja o nico do qual um timo sorridente indica isso
mesmo: arfagem e rolagem, cristas e rolos, o ondulao e a espuma das ondas, o
movimento multiplicado no mesmo lugar, a ressaca repetida, o marulho, a esteira.
Afrodite marinha, e navegadora, pontia, euploia Aphrodit.
*
(Pe, tuas estrofes so sem emprego, tu nos ds uma espuma de palavras, um
vinho borbulhante, mas a festa chegou ao fim, Don Giovanni, a msica est na
memria. A melodia infinita se perdeu nas brumas, e o ritornelo d voltas.
Estamos acabrunhados. O teu espumoso nos enoja, preciso te calar. Afrodite
est triste hoje.)
330
Em
francs
pnil,
monte
de
vnus.
A
duplicao
entre
pnil
(monte
de
vnus)
e
pnis
*
espuma brilhante responde o fulgor do astro: Ashtorith, me dos Baals,
planeta Vnus, ida e vinda, Innana de Sumria, Asthart, Ishtar de Babilnia ou de
Nnive, que fala com a Grande Onda do Mar, Hathor do Egito, a vaca de chifres
em lira, que carrega o Sol, Esther a Judia, todo um ano banhada de mirra e
armatas pelo rei de quem ela desvia a clera. Plant Aphrodit, deusa da
errncia, de povo em povo, de festa em festa, de nome em nome, sob os signos
errantes do cu: caeli subter latentia signa. Deusa do fato de que no h deus.
Estrela da noite e da manh, Hesper e Lcifer, estrela do pastor, deitada,
levantada de lugar em lugar, ida e vinda nos braos de Ares, de Dionsio, de
Hermes, de Anquises, de Adnis ou de Atis, me de Harmonia, de Eros e de
Antros, de Deimos e de Fbos, de Eneias, de Hermafrodita e nua diante de
Pris, prometendo-lhe Helena em silncio, por seu silncio. Grande Me e filha,
onde cabe tudo: Homero, Flaubert, Freud e Offenbach.
Pe, Cntico dos cnticos, tu s bela, minha bem-amada : cantara-se isso em
Jerusalm, em honra de Ishtar e de Tammuz-Adnis. Mais tarde, apesar da clera
de Jeremias, ofereceu-se a Astarte doces em forma de deusa nua. O rei Sargo da
Acdia no fora exposto sobre a gua como Moiss, e recolhido por Ishtar?
Afrodite, panteo de mars, pandemnio de espuma; deles escorre caudaloso
um pleroma, mas que no abriga nenhuma gnose, nenhum saber secreto de
libertao.
(Como ns?
Como ns, de fato.
Mais nenhuma libertao, salvao, crena?
E, at mesmo, mais nenhuma razo para se regozijar disso, nem
lament-lo.)
de
(Pe, belo pensamento, no cantes mais, faze calar as flautistas, e dize-me a lei
dessa potente Afrodite de quem se gaba a insubmisso. Ataktos Aphrodit,
qual a sua ordem, sua regra e sua medida sem medida? Dize-me, se o podes, a
frase de um tal pensamento. Dize-me essa frase nua, Afrodite afasia.)
*
Afrodite, seu nome nasceu de uma espuma de palavras, da espuma das
palavras: sentido perfeitamente prprio, sentido idealmente apropriado por jogo,
por figura tranada e por fico encharcada, escorrendo desse amor das palavras,
dos sentidos, dessa inaltervel impropriedade das lnguas que nos arrebata e nos
decepciona, a cada vez, em partes iguais, vai-e-vem que nos porta, nos transporta.
(Exatamente como se se dissesse: Afrodite vem da frica, do aforismo, do
afrutado, da afronta ou da afrescalhada331. E claro que no seria falso. Tudo isso
pode se tornar timo em bom estudo, toda espuma etima.332)
Vinda de alhures e de toda parte, filha das ilhas e das costas, ela pe os gregos
no mar, embarca Helena, a qual seguem todos os Reis. Ferida no jogo que ela
arrisca, ela embarca seus caros troianos, Anquises sobre Eneias, o Oriente sem
retorno at as orlas do Ocidente, Aeneadum genitrix, me da raa de Eneias.
Ela desloca e mescla os princpios, a harmonia, o prazer e a fora, seduz as
origens, levando ao longe povos vindos de longe, trazendo suas provenincias
ignoradas, fundaes de um momento, invenes, capturas do instante, sulcos
traados, palcios e paves dourados, casas de campo. Seu verdadeiro templo a
Cidade espumosa de templos inumerveis, de passagens esquivas, idas e vindas.
Entretanto, na cadncia dos trirremes abarrotados de escravos e de impostos, no
passo dos legionrios, vem o tempo da religio imperial do Amor. Uma ltima
vez, Clepatra encarna de novo a deusa e aperta contra seu seio o inimitvel
Antnio.
Afrodite domada, submissa em Jesus Cristo. Devolvida s profundezas, s
elevaes infinitas. Devolvida ao cu e terra retirada do mar, sobre o qual no
entanto ele tambm vem andar.
331
Tra-se
de
uma
srie
etimolgica
fantasiosa:
Afrique,
frica;
aphorisme,
aforisma;
affruitage,
palavra
cunha
por
Nancy
derivada
de
fruta;
affreuse,
horrvel;
e
affrachie,
palavra
tambm
criada,
prxima
de
rafrachi,
fresca.
(N.T.)
332
Verbo cunhado por Jean-Luc Nancy, de tymon, timo, ligado etimologia. O equivalente seria em
portugus etimar. (N.T.)
Pode-se imaginar por entre a espuma esse passo leve de um Filho do homem
que seria irmo de Atis? Mas no, todos os deuses vo embora com ele. Vem um
mundo de exlios, de peregrinaes, de grandes migraes, e de curiosidades, e de
preocupaes. Parada da ida e vinda: a histria se pe na estrada.
Parada Afrodite ela volta, renasce me de Deus. Sbia como uma imagem,
pronta para a pintura do amor e da carne, perturbaes j envelhecidas, murchas,
de uma jovem cultura. O renascimento conduzido no luto, na viuvez de Deus.
Mas Afrodite nunca foi mais virgem do que viva. No compreendemos? Ou
como devemos dizer?
*
um velho caso, e a nossa tradio mais cara: os gregos eram superficiais
por profundidade, eles conduziam o luto com um sorriso sereno. Eles no se
descobriam, ou ento descobrir-se era ainda para eles uma maneira de se cobrir,
esquivados na nudez graciosa. Afrodite a soberana das Graas: as Caritas tecem
seu vestido. O vu, a pele, o gro, os reflexos do mar tinto, os seios, as coxas, a
cabeleira e o sorriso.
Afrodite, a mais grega das gregas, e a menos reconhecvel. Arqui-helena, antes
semita (*Attor(i)t o menos improvvel timo). Troiana, babilnica, siraca,
etope, judia, rabe. Helena raptada da Grcia, retornada ao Oriente, perdida no
Egito, dada ao Ocidente. Afrodite mestia.
Mtis : pessoa. Mtis: sbia e potente prudncia. Roma negociando a Grcia e
Cartago. Roma sem raa, inepta raa, propagando por toda parte o gosto dos
abraos: omnibus incutiens blandum per pectora amorem.333
No h raa nela, nem mesmo mais a raa dos deuses.
A espuma dos povos com a espuma de suas palavras, com a das ondas sobre
suas orlas e sob seus remos. A espuma de seus dias: imaginem sete mil anos de
falas e de cultos, de navegaes e de fadigas, desde os dolos de andesina de
sexos incertos at ns que captamos a espuma de seus nomes sobre a tela
brilhante de um computador.
333
Verso de De rerum natura de Lucrcio: omnibus incutiens blandum per pectora amorem, jogando em
todos os coraes doces traos de amor. Lucrcio, De rerum natura, I, 19. (N.T.)
Trecho do primeiro verso de De rerum natura de Lucrcio. O verso diz o seguinte: aeneadum genetrix,
hominum divumque voluptas, Me de Eneias, prazer dois homens e dos deuses. Lucrcio, De rerum
natura, I, 1. (N.T.)
Afrodite uma ilha. Todas as Ilhas so Afrodite, mas a dela tem por nome
Chipre. Afrodite cromtica tem a tez do cobre, Chyprios chalcos, cyprium aes,
cuprum. S o metal de Chipre contm a pedra cadmiana, a calamina, o vitrolo e a
substncia de cinzas: assim o atestam Posidonius, e Estrabo depois dele. Todo o
Oriente vem buscar o cobre, Creta e Egito. Vm os micenianos, os aqueus, os
fencios, os assrios, os persas. Vm e cavam, carregam seus navios, ocupam as
cidades, constroem fortes, santurios e entrepostos. Vm os gregos, os romanos, e
Paulo de Tarso. Vm Bizncio, os rabes, Ricardo Corao de Leo, a Ordem dos
Templrios, e o Reino Franco de Chipre e de Jerusalm. Vm os venezianos,
Eudes de Montreuil, os turcos e os ingleses. Vm, vo embora, retornam.
Afrodite cprica, brnzea, cor de gldio e de escudo. Chipre-a-guerra, mar do
Oriente/do Ocidente, coberta por rapinas, por dios e pelas feridas de todos os
continentes. No se v mais o sorriso da espuma, no mais aqui do que no outro
mar, o Golfo alm das areias. Expedido para l, um soldado diz: Quando a
gente pirralho, a gente acha que engraado. Isso falso.
*
(No h mais pe de vitria. A epopeia se cala junto com todos os cantos.
Guerra sem lenda: no para se dizer.)
*
(O que resta, a voz velada.)
A profundeza que sobe o nascimento. A espuma sempre nascente, somente
nascente. Afrodite no tem um nascimento: ela o nascimento, a vinda ao
mundo, a existncia.
O nascimento exige a espuma. preciso mesclar e molhar para que nasa a
coisa em si [la chose mme]: sua forma inimitvel. O mido a causa para que
o seco tome contorno , diz Aristteles.
O lugar do nascimento, Empdocles o nomeia: os prados fendidos de
Afrodite . Deusa dos jardins, Aphrodit n kpois. Mares de ervas, ervas do mar,
algas, sargaos, varechs, alfaces, cabeleira reluzente, toso encharcado,
nascimento da fenda. O que vem superfcie, e que espuma, uma fenda. A
fenda no um entalhe, uma forquilha na alga, um fruto, um figo entreaberto
sobre uma espuma mida. So lbios, lambidos pelo marulho. Nascer: o nome do
ser. Ser parido,335 vir ao aberto de um lugar.
(Sem) Passo336 de deuses: a chance dos lugares.
E o mar com lugares agitados multiplica o riso: squilo o nomeia, kymaton
anarithmon gelasma, o riso inumervel das mars. E bem mais tarde, Opiano de
Cilcia diz o gelos, o grande mar de riso dotado, pele de pantera e clmide
fendida.
Fenda, mas sem abismo, sem precipcio e sem profundeza. Hystera, o que vem
por ltimo, no fundo, vem antes. Hysteron proteron, figura de retrica, tambm
denominada histerologia. A palavra da deusa uma doce histeria de espuma sem
angstia, sem potncia. Uma divindade sem fora, analkis theos, mas de onde se
escapa, quando ela sangra, ichr, o sangue imortal cujo escoamento brilha e no
faz perecer.
Nada mais do que uma elevao sobre a gua, nem mesmo um degrau, um
nascimento da fenda que aflora.
Cipris, a deusa da ilha, eleva docemente sua fenda. Ela , inconcebvel, bem
concebida, a desobstruo de uma fenda, a moita de erva partilhada, e sua gema,
e sua chave, kleitoris.
*
Mastos, tambm, o seio: o nascimento dos seios. Mais uma vez ainda, o timo
pertence ao mido. Ser molhado, escorrer, regurgitar, transbordar. Ser brio. Fora
de sentido, aphrosyne. Embriaguez de Cipris : a existncia literalmente
exuberante. Uber, mamilo, generosidade, timo que difere de um nada do de
hister (*ud-/udh-). Mais um sorriso ainda sobre o mar tinto. E o homem inveja no
seio da mulher o inchar sem arrogncia, a elevao pacfica e o abandono.
O seio, a onda, a dobra. A onda, a partcula, a luz. Ela o sujeito do verbo
propagar-se--velocidade-da-luz. O seio nasce como a luz, como a aurora na
335
O verbo dlivrer, cuja polissemia intraduzvel em portugus: libertar, soltar, livrar, entregar, dar a
luz, parir. Cf. supra, nota XX, p. XX (N.T.)
336
Em francs pas de dieux, frase perfeitamente equvoca, ao mesmo sem deuses e passo (ou passos)
de deuses. (N.T.)
Traduo: Eclair Antonio Almeida Filho e Dirlenvalder do Nascimento Loyolla
Reviso tcnica: Joo Camillo Penna
5. EM MEU PEITO, AI, DUAS ALMAS...
Fausto 1
Pena perdida, filosofia,
juristeria e medicina,
outra pena perdida, teologia, fisiologia e vs,
saberes de toda espcie,
todas as vossas penas esto perdidas com as minhas.
Tomai tenncia, pois em pouco tempo no restar nada de vs, conhecimentos,
sabedorias, depsitos venerveis das noites de estudo e das vidas de pensamento. Nada
restar seno meu punho cerrado sobre vossas pginas rasgadas que lanarei no fogo da
lareira.
Fausto 3
Uma considervel pirmide de volumes calcinados e resfriados como os pedregulhos
de um mausolu, eis o que cobio e eis o que obtenho. Um amontoado, uma pilha de
volumes queimados, toda legibilidade escondida entre suas pginas que o calor soldou
dissipando a distino entre a tinta e o papel, com ela a deiscncia entre significante e
significado, enfim a distino entre sentido e cinza. Eis o que quero: incendiar o signo e
o sentido.
escorre entre os seus dedos, o que foi o saber terminar por se absolver de toda relao,
de toda salincia, e tudo ir se abismar ou se exaltar no ato puro.
Ele no quer mais o saber, ele quer a sua morte e a anuncia. Recusa a insuportvel
distncia entre o saber sabido e o saber sabedor, entre o sbio e a cincia, entre a cincia
e ela mesma, esse intolervel e no redutvel desvio que lhe remete sua conscincia de
si, como a garantia necessria de sua segurana: a evidncia de um saber de si no fundo
de todo saber do outro, o objeto, a coisa, o mundo, a lngua tambm e enfim o prprio
pensamento, sua noese, sua noo, seu juzo.
Soo a extino do conhecimento e do discurso, da proposio e da frase, das
categorias e dos sincategoremas, das cpulas e das vrgulas. Soo um carrilho montono
e interminvel em sua ressonncia silenciosa, pois a extino ela mesma interminvel.
O pensamento no se abole nesse movimento violento que ele lhe imprime para esposar
a coisa e a ideia mesma, para fundir uma na outra e seu bloco compacto em uma pasta
de vidro negro. Forma-se um cristal que retine em frequncias ritmadas do batimento de
seu prprio servio fnebre. O pensamento pensa ainda.
Fausto 4
O que quero fazer o pensamento idntico ao ser do qual ele o pensamento. No
igual, nem semelhante, nem anlogo, mas idntico. Ser e pensamento, uma mesma
coisa. Um velho poema dizia isso, mas no quero mais que um poema o diga. Esse
poema tambm queimar; alis, ele j perdeu mais de um papiro e mais de um verso.
Mas preciso para isso, para culminar na mesma coisa, que se entendam bem os
verbos: pensar e ser, no o pensamento e o ser. Pois o pensamento pode muito bem
tomar o ser por objeto, e o ser pode muito bem ter o pensamento como uma de suas
espcies, como uma coisa entre outras. Mas se pensar ser, ento no h mais objeto
nem coisa. Tudo vem dar no idntico: pensar pesar, ora v-se bem que de maneira
idntica ser ainda pesar. Nada sem peso, nada sem apoiar sobre um solo ou sobre si
mesmo. O que no apoia nem pesa, mesmo que fosse do peso mais nfimo, se dissipa em
vapor, em fumaa, depois em pura dissipao.
Eis por que, meus livros, eu vos queimo. Eu vos devolvo vossa agravidade. No
retenho nada de vs. Quero apenas o peso, a pesagem das coisas numa balana de
justia. A gravidade de uma justa pesagem das coisas, sem interposio de significao
nem de valor.
Ele amava os livros, suas linhas seguidas com o dedo, suas pginas viradas com
lentido para acompanhar sem ruptura a passagem de uma palavra a outra entre o recto e
o verso, as duas faces da mesma finura. somente o resto de espessura dessa finura que
o irrita e o pe fora de si. Mais ainda, por conseguinte, as finuras empilhadas do livro,
seu volume importuno entre ele e o mundo, entre ele e a coisa em si, entre ele e o ato.
Pois ele quer o ato, ele o quer do incio ao fim e de tal sorte que no haja mais nem
comeo nem acabamento, mas uma s ao presente a si de parte a parte e reunida em si
com uma tal energia, numa intensidade tal que toda a sua durao igual a um instante e
que seu espetculo aquele de um sonho onde tudo simultneo e onde a ordem das
razes no tem nem mais lugar porque sua consecuo no tem lugar de ser; mas tudo
dado junto, a razo e o efeito, a concepo e a execuo, ele mesmo enfim e aquilo que
no ele, isso em que ele quer passar e ir existir como o homem o quer na criana, no
animal ou na mulher. Ai, quem no v que o homem desaparece ento, e que no mais
ele que encontramos fora dele, mas a sua perda, sua confuso e sua demncia? Quem
no o v, salvo ele?
Fausto 5
Vejo a extenso se resolver em um ponto, e a durao se contrair no instante em que
esse ponto se forma, no cruzamento de meu ato e da efetividade. Nenhuma dimenso,
nenhum prazo, nenhuma espera. Amanh vem hoje e nele permanece. Estamos
extenuados de esperar e de transformar em espera o que no consiste em nada mais do
que em intervalos imveis entre o mesmo e sua repetio. preciso cerrar o punho,
quero dizer meu punho, meine Faust, meus dedos fortemente dobrados sobre a palma
da mo e formando a mo em maa, em torno, em arma de destruio em massa que
logo de incio esmaga nela a exterioridade do mundo, todas as suas excrescncias e as
protuberncias, os tumores do ser. Cessei de esperar um porvir, um salvador, uma
chance. Se j no sou o que sou, como poderia vir a s-lo? Isso, eu mesmo, no me ser
dado de lugar nenhum nem por ningum se j meu punho cerrado no o contm como
seu cerramento mesmo, e seu juramento. Em meu punho se resolvem em cinzas os
saberes e as histrias, consumidos sem chama pela nica constrio terrvel de minhas
falanges que se soldam entre elas e no fazem mais do que um estilhao de slex
brandido em ponta de brao, de brao estendido doravante dirigido em direo a nada
alm desse slex mesmo ao qual tudo se conforma se esmagando.
Fausto 6
O inominvel o nico nome que no fim posso aceitar. No o nome que ultrapassa
todos os nomes e os denomina a todos se sobrenomeando ele mesmo, mas o inominvel
cujo prprio nome corrompe e roi todos os nomes, o inominvel como um nojo [dgot]
dos nomes, um embrulho-no-estmago e uma revulso.
Fausto 7
No mais decifrar, mas despedaar337. Desfazer o tecido de signos que nos envolve o
mundo para no-lo desembalar mais tarde amargado, mal conservado. Ir s coisas em si:
Oh ! que minha quilha estilhace! Assim como se escorre o metal de um sino para fundir
337
Paronomsia entre dchiffrer , decifrar, e dchirer , despedaar. dilacerar, rasgar, romper. (N.E.)
Ele mesmo, quando fala, no se ouve? Ele no o primeiro a receber, no eco de sua
voz sob seu crnio, o rastro de uma outra voz que se enviou na dele de mais longe, de
mais adiante do que ele? Sim, ele ouve isso: ele ouve em seu mundo rpido e feltrado
alguns sopros vindos de um mundo muito antigo, pleno de lentido e de balbrdia.
Ele no pode fazer com que ele se confunda com a coisa pois as coisas em si no se
confundem entre elas e seu princpio mais antigo do que todo princpio, sua razo de
antes de toda razo, to recuada nas idades do mundo, que seu recuo doloroso a
considerar, sua razo primordial e privada de razo no tem outra energia alm da de
uma separao sempre recomeada, e cuja origem ela mesma j separada de si, orifcio
aberto, abismo e escancaramento dos lugares de onde se fazem os nascimentos, as
provenincias, as excrescncias. Que ele seja separado at se provar decepado de todas
as coisas, eis por onde o mundo se d a sentir, se abre a seu sentimento. Em seu peito,
infelizmente, duas almas se separam, se distinguem e se dilaceram mesmo puxando
demasiado forte sobre seus mnimos tegumentos. Mas ele, esse infeliz, eis que ele toma
essa tenso entre suas duas almas por uma ciso e uma expulso do sentido. Por uma
liquidao e uma nadificao.
Ele tem e no tem razo. Bato sem descontinuar entre os dois, entre ele mesmo e ele
mesmo. Ele tem razo em recusar o separado. Ele est errado em no aceit-lo. Somos
separados, e o sentido feito de nossa separao. Somos separados em rochedos e em
peixes, em espumas e em nuvens, em lobos e em cidados, em eu e em tu, em homem e
mulher, em ver e tocar. Somos separados, isso faz sentido, quer dizer, distncia
intransponvel e frgil, portadora dela mesma e nada a mais mas portadora sim, porta
aberta a nos entre-ter.
Fausto 8
Eu queria que o mundo cessasse de ser mudo como ele se tornou, e desde muito
tempo agora. Queria que o mundo falasse e que para esse fim uma palavra
verdadeiramente falante depusesse sua potncia no oco das coisas mesmas. Queria um
silncio desvairado de fervor para a imediatidade de nossos atos, de nossos clculos, de
nossas operaes prodigiosas. Queria que a lngua cedesse o passo a um indizvel
estupor e a transformaes, revolues insensatas. Sim, o insensato no cessava de me
guiar, e como, entretanto, ele poderia orientar?
Ele no pode guiar, mas extravia conscienciosa e obstinadamente. Entretanto o
insensato no um outro que o irmo de sangue e de leite, de tudo o que reclama razo e
causa final, justificao, redeno. Como difcil distingui-los! Como impossvel
destacar por um corte claro o instante que se congela e aquele que passa, aquele que se
retm e aquele que se oferece. Como improvvel triar entre sentido e no-sentido,
entre signo e toque, entre palavra e silncio.
A vs, livros queimados, vejo voltar um cortejo mudo de cinzas que espalham sobre
vs os rastros de uma fuga sempre por vir.
Estes so os restos dos livros que se teriam por si mesmos abrasado mas ele no
soube nada disso, ele que acreditou t-los inflamado. Os restos so uma queimadura que
no se pode resfriar. As palavras no cessam por fim de nos faltar, no amor e no horror,
mas sua falta testemunha ainda por elas, testemunha pela sua insistncia desajeitada. De
que as palavras lhe faltem no xtase ou na sncope, ter sido preciso que de sada elas se
escrevam e de sua escrita tero restado sobre folhas enegrecidas traos ilegveis que nos
retornam para enfim transcrever em uma lngua a inventar.
verdade que nosso saber no sabe mais que saber, e nosso relato recitar. Mas
falamos ainda com palavras de cinza, e traamos ainda signos para somente nos
assinalar. Podemos esquecer todas as encantaes e todas as evocaes do inominvel,
mas, adiante de ns, fazendo-nos sinal ainda, avana cada vez um novo inominado, que
faz signo sem significar.
Fausto 9
Os sinos se calaram. No h mais alarme nem anncio. Os prprios minaretes esto
mudos, e nos templos as campainhas so demasiado agudas. O incndio permanente ao
mesmo tempo que est em toda parte apagado. A cinza cobre os signos e os novos
signos so eles mesmos incinerados. Tudo se resolve em lava fria e crculos de fumaa
recortados sobre as paredes das bibliotecas.
O tinteiro que lancei na face do diabo enegreceu as pginas dos livros sagrados como
com uma bile negra e ardente. No quero mais, livros, vos ler, mas cabe a vs me
decifrardes. Mas sei bem, oh ! sei apenas demasiado a que ponto sou ilegvel e o quo
pouco vossos signos cegados podero me interpretar!
No se trata mais de interpretar: trata-se de somente provar a tinta queimada e sua
cinza resfriada. No h mais alarme nem anncio, pois eis que o pior certo tanto
quanto o melhor e o indiferente mas, sobretudo, o real certo. No h porvir pois no
h mais passado. Mais nada passa e tudo se mantm suspenso numa formidvel
hesitao que abraa o instante presente. O presente no se apresenta mais, ele se depe.
E, no entanto, sim, um novo inominado avana, ou ento avanamos em direo a
ele. No entanto, sim, agora mesmo posso abrir um volume de pginas virgens e traar a
primeira palavra de uma lngua a inventar. Uma outra queimadura pode comear em
nosso desconhecimento, pois nosso desconhecimento o saber exato do inominado.
6. Instantes da cidade
[A]ssemble sans ensemble/ ensemble de semblants/ semblables entrotes. O trecho todo composto
a partir das panaromsias: assemble, assemblia; ensemble, conjunto; semblants,
aparncias, fingimentos; semblables, semelhante. (N.T.)
*
urbanidade flutuante errante
pavilhes no campo
vamos trabalhar na cidade
zonas comerciais artesanais industriais
zonas cintures toalhas expanses
at os confins de outras zonas
*
prazer da cidade esvaziada
frias grandes migraes
comuns transportes
vista das avenidas escancaradas
*
civilizao de cidade
de que a cidade
foi signo emblema braso
nem fortaleza nem santurio
nem domnio real
cidade
burgo de burguesia
falso burgo povo verdadeiro
periferia em zonas descivilizada
sem signos emblemas brases
sinais sem placas concreto
*
centro da cidade downtown em baixo
perifrico enrolado em torno do embaixo
radial anel no penetrante
o embaixo fica impenetrvel
a cidade est a embaixo muito baixo
sob os arcos poderosos dos freeways
*
metrpole megalpole
cidade me grande cidade
polcia poltica polidez
cidade cidado periferia banida339
vizindade civil
incivilidade de proximidade
urbana conurbao
tentculos pseudpodos pseudpolis
*
na cidade ou em casa
para a cidade ou para a cena
na cidade ou no vilarejo
*
cidade completamente instantnea
sem vista de conjunto
sem paisagem
sem geografia
instantes pegados
locais juntados
juntas incertas
*
nem substncia nem sujeito
encontro passagem cruzamento
des corpos chamadas ndices gestos
marcas demarcaes contramarcas
banco tribunal mercado
hotel estacionamento catedral
tabacaria farmcia drogaria
fastfood restaurao rpida
kebab hotdog quiche pizza
*
339
[B]anlieue banni . Ambas as palavras tem como timo o : ban , a lei medieval que leva pensa
aquele que no a cumpre. (N.T.)
7. Exclamaes
Eis do que feito o canto sinfnico do amor que sussurra na conca de Vnus
H o canto do amor de antigamente
O rudo dos beijos desvairados dos amantes ilustres
Os gritos de amor dos mortais violados pelos deuses
As virilidades dos herois fabulosos erigidos como os crios vo e vm como um rumor obsceno
H tambm os gritos da loucura das bacantes loucas de amor por ter comido o hipmanes secretado pela
vulva das guas no cio
Os gritos de amor dos felinos nas selvas
O rumor surdo das seivas subindo nas plantas tropicais
O estrondo das mars
O trovo das artilharias em que a forma obscena dos canhes realiza o terrvel amor dos povos
As ondas do mar onde nasce a vida e a beleza
E o canto vitorioso que os primeiros raios de sol faziam Mmnom cantar o imvel
H o grito das Sabinas no momento do rapto
O canto nupcial da Sulamita
8. La selva
para Jacqueline
9. Sprung
Dem Sprung hatt ich Leib und Leben zu danken341.
Ao salto devo a vida, ao salto para fora de minha me, ao salto para fora de mim mesmo.
Como eu estaria aqui sem para fora ter saltado?
Como sair seno por salto,
Por el, pressa, lanado?
Como j que no h passagem,
nem menor continuidade
entre o dentro fechado
e o fora desdobrado?
entre imanncia e transcendncia?
entre vida viceral imersa
e sopro, grito, olhar, abalo?
Sim, pelo salto que comea
o passo e o no, a passagem sem lei,
o lanamento no meio as coisas
dessa outra coisa de repente
que sai, surge, se precipita
cabea antes, cabea abaixada,
cabea que salta para pensar
Es wr ein Sprung gewesen, wie man von einem Gedanken auf einen andern und
schnern hpft342
saltando de um pensamento ao outro,
pensando de um salto, de um sprung, de um spring,
sperkos, salto, hopsala,
de um golpe, de um lance de dados,
de um apesar de tudo lanado,
pirueta e cambalhota,
entrechat, sobressalto, sbito salto,
sem concluso nem premissa
lgica volteio e vertigem
Natur nimmt den krzesten weg (lex parsimoniae); sie thut gleichwohl keinen sprung,
weder in der folge ihrer vernderungen, noch der zusammenstellung specifisch
verschiedener formen (lex continui in natura)343.
341
Schiller. Die Ruber [Os ladres], 1, 2. [Schiller. Os ladres. quele salto eu devo a vida e o
corpo . {N.T.}]
342
Ibid., 2,2. [Teria sido apenas um salto, como saltamos de um pensamento a outro e melhor. {N.T.}]
Traduo: Joo Camillo Penna
343
Kant. Kritik der Urteilskraft, Erste Einleintung, V. [ A natureza toma o caminho mais curto (lex
parsimoniae), de igual modo no d saltos, nem na sequncia das suas mudanas, nem na articulao de
formas especficas diferentes (lex continui in natura) . Crtica da faculdade do juzo. Trad. Valrio
Rohden e Antnio Marques. Rio de Janeiro : Forense Universitria, 1995, 2a edio, p. 26. {N.T.}]
344
Lucrcio. De rerum natura [Da natureza], II, 144-147. [Lucrcio. Primeiramente quando a aurora
inunda de nova luz [] quando subitamente o sol levantando-se . {N.T.}]
345
Christian Egenolff, Sprichwoerter, 237a, 1565.
Coda
1. A nica leitura
Se no h, para mim, uma nica leitura e eu estaria em apuros para fornecer a forma
geral de uma atividade como esta.
H a leitura informativa: leio para aprender o que o texto pode me informar. Esta
leitura no se distingue de outros tipos de registro de dados (a escuta de um curso, por
exemplo). Ela domina na leitura de trabalhos de estudantes, de candidatos publicao.
H a leitura embarcada: subimos bordo, deixamo-nos levar, derivar em direo
a costas desconhecidas; vamos ao ritmo das ondas, ao sabor das correntes. Identificamonos, no necessariamente com o heroi, mas como o movimento da escrita. Esta leitura
no se distingue de outros desatracamentos: escutar uma msica, ver um filme. Ela
remete antes literatura, sem excluir a filosofia: mas o seu limite o tempo disponvel.
Ao final de um momento, tenho pressa de escrever...
H a leitura de uma cabea de pesquisador: l-se para encontrar alguma coisa,
persegue-se uma pista. Por exemplo, l-se para descobrir a presena ou o funcionamento
de um conceito, de uma imagem, l-se para descobrir uma estrutura, uma significao
latente, associaes reveladoras. Esta leitura no se distingue de outras buscas analticas,
interpretativas, seletivas.
Cada uma das minhas leituras, sem dvida, combina alguma coisa dessas trs
formas em propores variveis. A terceira assume mais importncia com o tempo: mas
ela a mais prxima da escrita. Os rastros que descubro so destinados ao meu prprio
uso. Eles se tornaro materiais, citaes, aluses. Na realidade, no paro de pular da
leitura para a escrita.
Eu deveria concluir por onde comecei: a leitura me escapa enquanto forma,
essncia ou propriedade definida.
Mas essa tentativa de aproximao descobriu para mim uma verdade bastante
simples. A nica leitura que verdadeiramente se distingue desses modos insuficientes a
leitura em voz alta. S ela mantm distncia a informao, a identificao, a
interpretao. Ela confia o texto aos lbios, garganta e lingua: estas tomam a
dianteira sobre a cabea. A voz toma a dianteira sobre a letra, ou seja, o sentido se
encontra afastado, no suprimido mas distrado, empurrado para a margem, adiado para
mais tarde, para nunca mais talvez. Ou bem o sentido se faz sensvel, sensitivo, sensual,
o que uma outra maneira de no terminar como sentido inteligvel.
A leitura em voz alta no muito alta, preciso regular bem o volume a
nica que dirige o texto de uma boca a uma orelha, mesmo que seja a minha prpria
orelha. A orelha abre uma ressonncia interminvel, em mim e fora de mim, de mim
para fora de mim, de voc em mim. Nada est mais perto da essncia da linguagem: o
eco do murmrio das coisas.
Traduo: Joo Camillo Penna
2.
DEMANDA
Filosofia, literatura: demandas.
Cada uma demanda a verdade. Cada uma demanda tambm a verdade da outra, de
duas maneiras: cada uma interroga a outra sobre a sua verdade, cada uma detm a
verdade da outra.
A verdade: a coisa em si, o ser ou o outro, o existente, o parecer, o sentido. Cada uma
demanda tudo isso junto: demanda que tudo isso seja apresentado como tal.
Mas cada uma entende diferentemente esse como tal . A filosofia quer que a coisa
como coisa seja coisa que por si se indique, se designe e ao mesmo tempo retire seu sercoisa aqum de toda significao. Tambm a coisa como tal aqui coisa alguma: coisa
da coisidade de todas as coisas, nada. Do mesmo modo o sentido como tal o sentido
que se faz conhecer enquanto sentido por exemplo, no uma impresso luminosa, mas
uma impresso tal que ela se clareie a si mesma como impresso luminosa . E, por
esse ato, ela se obscurece. No estamos mais ocupados em ver, mas em ver a viso. O
sentido em geral ser sentido verdadeiro l onde ele poder mostrar que ele o sentido,
e assim cessar de remeter a outro, a outros: o que, no entanto, o seu prprio ser de
sentido. Tambm a verdade aqui interrupo do sentido.
A literatura entende como tal como comparao, figura, imagem, truque de
[tour]346 de apresentao. Por exemplo: eis um homem como Leopold Bloom . Ele
parecido com ele, composto por seus traos. E, antes de tudo, por seu nome. Depois,
por sua histria, pois no h nome sem histria. Ento Leopold Bloom mostra o homem
como tal, quer dizer, como Leopold Bloom, ou seja, como o homem que tem um nome e
uma histria, a sua histria. Nesse caso, a operao no pode parar: a verdade do homem
est em Bloom, cuja verdade est no homem cuja verdade est no nome e na histria de
Bloom. Aqui a verdade a impossibilidade de interromper o sentido.
No entanto, o inverso que vemos da maneira mais impressionante: a Filosofia no
para de prosseguir, continuar, retomar, tirar consequncias; no pode nunca parar
(mesmo e, sobretudo, quando o fim da filosofia ). A literatura, ao contrrio,
interrompe: corta o relato em algum lugar, sempre arbitrariamente, seja no incio ou no
fim.
346 Sobre o termo tour, ver supra, a nota XX, na p. XX. (N.T.)
para mim, de onde eu ainda partiria. Gostaria de passar o rio, a montanha, o mar.
Gostaria de passar a mim mesmo. Gostaria de passar sem mim.
Demando isso polidamente, sem violncia, mas no se enganem com isso: eu
gostaria significa eu quero , a vontade mesma. vontade de vontade: demanda
de eternidade, eterno retorno do mesmo passo, cujo rastro fugaz a atestao disto: que
h aqui algum que passa.
Demandamos apenas isso. Esqueamos filosofia, literatura, mito, sabedoria ,
esqueamos saberes e crenas. H apenas essa demanda: quero passar. No quero ser,
nem conhecer, mas passar e me sentir passar. Ou voc igual.
Passar o limite, foradamente. Passar o limite do interrompido e do ininterrupto.
Nem acabamento, nem inacabamento. Nem concluso, nem suspenso. Mas a passagem
que se demanda.
Jean-Luc NANCY
P. S.: Fao questo de mencionar aqui todo o meu reconhecimento a Ginette Michaud,
que assegurou o estabelecimento dos textos franceses e a prpria composio do volume
com um cuidado incomparvel.
Traduo: Joo Camillo Penna, Eclair Antonio Almeida Filho e Dirlenvalder do
Nascimento Loyolla
1. Um dias, os deuses se retiram seguido de Documento em anexo
( Un jour, les dieux se retirent . Bordeaux: William Blake & Co., col. La pharmacie de Platon ,
2001. Primeira verso dos textos: Entre-deux foi publicado no Magazine littraire (Paris), n 392,
novembro de 2000 ; a primeira foi publicada com o ttulo de: votre guise em La Quinzaine littraire
(Paris), n 793, 1-15 outubro de 2000 ; tr. espanhola Juan Barja, Sileno (Madrid: Edicion Identificacion y
Desarrollo), vol. 9, 2000 ; tr. inglesa Franson Manjali. The little magazine (Delhi), between story and
truth , vol. 2, no 4, julho-agosto de 2001 ; tr. dinamarquesa Jesper Lohmann. Passe partout (Aarhus, DK,
Aarhus Universitet), n 22, 2003.)
2. As razes de escrever
(Escrito em abril de 1977, este texto foi publicado em Misre de la littrature. Maurice Blanchot, Michel
Deutsch, Emmanuel Hocquard, Roger Laporte, Jean-Luc Nancy, Jean Louis Schefer, Mathieu Bnzet,
Philippe Lacoue-Labarthe. Paris: Christian Bourgois diteur, col. Premire Livraison , 1979.)
8. Clculo do poeta
(Publicado em Des lieux divins seguido de Calcul du pote. Mauvezin: ditions T.E.R. Trans-Europrepress, 1997 [1987] ; tr. alem Gisela Febel e Jutta Legueil. Kalkl des Dichters nach Hlderlins Mass.
Stuttgart: Jutta Legueil, 1997 ; tr. italiana Antonella Moscati, Calcolo del poeta , Micromega.
Almanacco di filosofia, 2/1998 ; tr. italiana [com Luoghi divini] com posfcio de Luisa Bonesio [ Luoghi
desertati ]. Pdova: Il Poligrafo, 1999 ; tr. japonesa Masaichiro Onishi. Shoraisha. Tokyo, 2001.)
9. Fazer, a poesia
(Publicado primeiramente em: Nous avons vou notre vie des signes , Jean-Paul Michel (ed.).
Bordeaux: William Blake & Co., 1997 ; retomado em Rsistance de la posie. William Blake & Co.,
1997 ; tr. inglesa Leslie Hill, em: Jean-Luc Nancy. Multiple Arts. The Muses II. Simon Sparks (ed.).
Stanford: Stanford University Press, 2006.)
(Esssa entrevista com Pierre Alferi foi primeiro publicada em: Revue de littrature gnrale (Paris: P.O.L
diteur), La Mcanique lyrique , no 1, 1995 ; retomado em Rsistance de la posie. William Blake &
Co., 1997 ; tr. italiana Alberto Folin. Anterem (Verona), n 60, 2000 ; tr. inglesa Leslie Hill, em Jean-Luc
Nancy. Multiple Arts. The Muses II. Simon Sparks (ed.). Stanford: Stanford University Press, 2006.)
15. Corpo-teatro
(Publicado em Passions du corps dans les dramaturgies contemporaines. Alexandra Poulain (dir.).
Villeneuve dAscq: Presses universitaires du Septentrion, col. Arts du spectacle thtre , 2011.)
19. Psykh
( Psyche foi primeiro publicado em Premire Livraison (Paris), no 16, 1978. Esse texto foi citado in
extenso e comentado por Jacques Derrida em: Le Toucher, Jean-Luc Nancy. Paris: Galile, col. La
philosophie en effet , 2000.)
(Texto escrito para o espetculo do Teatro Tsa, Celui qui ne parle pas, montado em Grenoble em 1983
(Paris, 1984) ; publicado em Cahiers du GRIF (Bruxelles), LIndpendance amoureuse , 1985 ;
retomado em Le Poids dune pense (Grenoble e Qubec: Presses universitaires de Grenoble e Les
ditions Le Griffon dargile, 1991) em em: Le Poids dune pense. Lapproche (Strasbourg: La Phocide,
2008) ; tr. ingl. Simon Sparks, em: Jean-Luc Nancy. Multiple Arts. The Muses II. Simon Sparks (ed.).
Stanford: Stanford University Press, 2006 ; tr. espanhola Joana Mas e Javier Bassas Vila, em El peso de
un pensamiento. Castelln: Ellago Ediciones, 2007.)
(Publicado em: Po&sie (Paris), no 56, 1991 ; retomado em: Le Poids dune pense, op. cit., e em: La
Naissance des seins, com um desenho de Jean Le Gac. Paris: Galile, col. Lignes fictives , 2006 ; tr.
ingl. Jonathan Derbyshire, em: Jean-Luc Nancy. Multiple Arts. The Muses II. Simon Sparks (ed.).
Stanford: Stanford University Press, 2006 ; tr. espanhola Joana Mas e Javier Bassas Vila, em: El peso de
un pensamiento. Castelln: Ellago Ediciones, 2007.)
25. Exclamaes
(Publicado no Dictionnaire de la pornographie. Philippe Di Folco (dir.), prefcio de Jean-Claude
Carrire. Paris, PUF, col. Grands dictionnaires , 2005, e Il y a du rapport sexuel et aprs ,
Littrature (Paris, Larousse), n 142, junho de 2006.)
26. La Selva
(Publicado em I pensieri dellistante. Scritti per Jacqueline Risset. Roma: Editori Internazionali Riuniti,
2012.)
27. Sprung
(Publicado em francs e em alemo em Brink Magazin zwischen Kultur und Wissenschaft , n 2, junho de
2012.)
29. Demanda
(Indito, dezembro de 2009.)