O Livro Das Margens - Edmond Jabès
O Livro Das Margens - Edmond Jabès
O Livro Das Margens - Edmond Jabès
Edmond Jabs
*
TRADUO
Amanda Mendes Casal &
Eclair Antonio Almeida Filho
I
O PODER DE NOMEAR
II
EM P DE PGINA
(Meus amigos sabem a que ponto vivo retirado, no que eu vote um culto inconsiderado
solido; mas porque todo trabalho de escritura isola aquele que a ele se consagra e o
acorrenta, onde ele esperava se salvar.)
A morte leitura
(Yal)
S o leitor real.
(Eu edifico minha morada)
Quantas vezes acreditei-me salvo, ao passo que eu soobrava., dissera ele.
III
LEITURA
O escritor s livre de sua escritura pelo uso que ele faz dela: quer dizer, por sua
prpria leitura. Como se escrever tivesse por meta, em suma, a partir daquilo que foi
escrito, instaurar a leitura daquilo que vir se escrever.
Por outro lado, aquilo que foi escrito s sendo lido no movimento de se escrever,
constantemente modificado por essa leitura.
A escritura o que vai nos pr em palavras para nos integrar em seu movimento.
Nenhum ser nos ser mais de algum auxlio.
Deus, nome rebelde do abismo.
Ao homem, ao objeto, um nome aceito. Ao invisvel, um nome impronuncivel.
(Visibilidade do invisvel!
Pensar Deus como apoteose do neutro, realidade em retirada, irrealidade
irradiante.)
O que nos liga o que passa por aquilo que nos desliga: uma sede de
neutralidade.
Quem dir o calor do gro de areia ou seu noturno frescor? Eles so variaes de
temperatura dirias do neutro.
Frio, no seio do frio; ardente, face ao fogo, o neutro sobrevive ao segundo.
Ir ao neutro, tocar o centro, marcar o ponto limite.
Meio: mil lugares.
O Nada e o Tudo so os dois polos do neutro.
Para o nmade, o espao se anula a si mesmo. Ele se torna um lugar nulo do qual
as partes indiferenciadas se juntam inutilmente s partes. Gabriel Bounoure (E. J. Ou la
gurison par le livre. Lettres Nouvelles, julho-setembro de 1966)
Neutro: via do nulo; do mesmo anulado.
- Nenhuma via no deserto mas, s vezes, o destroo de um passo.
Da noite noite, a terra, o ar, a gua, o fogo dizem a neutralidade divina.
Explicar-se com o inexplicvel. Gabriel Bounoure (Prefcio a Marelles sur le
Parvis)
... O deserto, excluindo a morada, abre o infinito do alhures errncia
fundamental do homem. Aqui, nenhum aqui tem sentido. E, quando a voz humana se
eleva nesse meio nulo, sempre um combate da Presena e da Ausncia que se trava no
seio de cada palavra com vitria da Ausncia.
Gabriel Bounoure (E. J. la demeure et le livre.
Mercure de France, janeiro de 1965)
(O que pode se dizer se diz no que no se dir jamais, por se dizer.
Tomar apoio, no texto cifrado, sobre as partes nulas.
Na atemporal atrao do positivo pelo negativo e do negativo pelo positivo,
inscreve-se o tempo do neutro.
A neutralidade da cifra atesta a literalidade do texto.)
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Primeiro passo
... talvez esse aliviamento, para alm das linhas, em um eixo perturbador;
talvez essa arma decisiva da qual no posso me servir?
A palavra no tema a palavra, mas o texto.
... esse desarranjo que vem se opor a toda veleidade natural de arranjo.
Pginas arranjadas, desarranjadas: nelas vela ou jaz o signo.
Um Deus, ele mesmo, tem necessidade de uma testemunha. Maurice Blanchot
(Le dernier homme)
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Prximo distante
... desse porvir do qual eu conhecia j as primeiras palavras.
To see darkness
the eyes withdraws from light
in light
Rosmarie Waldrop
o outro
o primeiro
da trama sua pureza
una
todas as evidncias lhe so mistrio.
Anne-Marie Albiach
Um VAZIO se forma e desenha
um vazio se forma e desenha
para estrondar com seu nome
Joseph Guglielmi
Possibilidade lhe foi deixada de ler algumas passagens da morte; de dispor
palavras nas terras do outro. Alain Veinstein
ento decresce o nome
na dianteira de cada palavra
de cada cumprimento
metafrico
um dia sairei da morte
dissera ele
e a escritura se desprender
Claude Royet-Journoud
13
Reb Av que no encontrou seu lugar no Livro das Questes Naquela poca,
como teria eu podido suspeitar da influncia que ele exerce, hoje, no ponto em que estou,
sobre meu pensamento, assim como foi o caso para tantos outros rabinos cuja existncia
inventei e dos quais, pouco a pouco, me destaquei -; reb Av para quem a lngua de suas
obras lngua, diramos, salva da lngua tornara-se a nica, toda carregada de enigmas,
tinha notado: Meu nome Av; assim por meu nome, sou condenado a permanecer no
limiar de todo porvir, do qual assumo sozinho as duas primeiras letras.
Que direi, depois dele, eu que no sei do futuro seno o que ele apaga, escuta de
meu nome.
Escrevo sem imaginao, por falta de imaginao.
Escrever o contrrio de imaginar.
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Aprendi que, o quer que eu empreenda, jamais farei seno perseverar. Roger
Caillois (Approches de limaginaire)
PEDRAS
de
Roger Caillois
Falo das pedras mais idosas que a vida e que permanecem depois dela sobre os
planetas resfriados, quando ela tivera a fortuna de neles eclodir. Falo das pedras que no
tm mesmo que esperar a morte e que no tm nada a fazer seno deixar deslizar sobre
sua superfcie a areia, a enxurrada ou a ressaca, a tempestade, o tempo.
O homem lhes inveja a durao, a dureza, a intransigncia e o fulgor, por serem
lisas e impenetrveis, e inteiras mesmo partidas. Elas so o fogo e a gua na mesma
transparncia imortal, visitada, por vezes, pela ris e por vezes por um vapor. Elas lhe
trazem, elas que cabem em sua palma, a pureza, o frio e a distncia dos astros, vrias
serenidades.
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I
Um livro que cresce na distncia, tal em seus desvelamentos, a estrela.
Um livro desabituado.
E precisamos lev-lo em conta e receb-lo, como se ele tivesse transposto um
imenso espao para nos atingir; de onde essa palavra, a um s tempo prxima e distante;
eu diria mesmo tanto mais prxima quanto ela parece vir do mais obscuro do tempo; de
onde essa continuidade na ruptura, como se tudo se apagasse e renascesse no comeo;
essa continuidade que, na pedra, a revelao de uma cega impulso ao invisvel, de um
vontade sem igual de durar e de cumprir o ciclo.
Do inerte ao inerte.
Descobrimos, depois de Roger Caillois, no polido da pedra, o oval e o redondo, o
duplo poliedro e o losango que so como seus caminhos escandeados e os inebriantes
retornos e provamos seu mistrio e sua audcia.
Meio da representao mltipla, do crculo e de sua metamorfose no crculo, ou
do crculo depois do crculo, o centro que cerne de verdade est, a cada vez, alhures.
Mas tudo verdadeiro na pedra porque ela existe na morte, porque ela , a um s
tempo, o annimo rosto do mundo e a primeiro ou a ltima respirao do animal e do
homem captados em sua sucesso feliz ou infeliz; porque nela enfim tudo existe antes da
vida e alm-morte.
Assim, em seu cumprimento, a obra se quer imagem do mais humilde seixo;
sua imagem espalhada que o mar, a chuva e o vento acariciam e usam; pois a usura, tais
as rugas, tambm prova de fatal cumprimento.
... o perfil mais puro, mais pobre tambm, mas o nico verdadeiramente
necessrio.
Nessa longa aquiescncia, nessa derradeira misria, se dissimula seguramente
uma das formas concebveis da perfeio.
Assim como na pedra fendida, a beleza est no fundo de uma ferida.
Eu tambm quando escrevo essas pginas, reunindo minhas palavras com labor e
liberdade, cumpre, mas de modo outro, a mesma tarefa que no era ainda tarefa nem nada
de semelhante e que, no entanto, fora aquela das pedras que tentei descrever.
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II
(Crculo que faz a pedra cada ngua.
Ah! Tornar-me-ei, um dia, mestre do universo lanando, do alto da falsia,
pedras cada vez mais pesadas no mar?
Nesse ponto do dia.
O centro contestado.)
Crculo encontrado por sorte na gata, encetado por um crculo vizinho, ele nos
deixa a impresso de uma tentativa abortada.
Ao contrrio, ele afirma sua glria quando se proclama vasto e isolado como o
sol no vazio do cu, sobre campo unido de gata ou de crista incandescente. Ento, a
maravilha.
Na pedra jaz a primeira palavra da terra, o infinito do signo.
O universo, talvez, tenha nascido dessa leitura ousada.
Na pedra tudo cessa de se perder, desde quando ela se congelou em seu
desabrochar e sua existncia no mais que uma eterna no-existncia.
Explorando, como ele o faz, o universo dos minerais, Roger Caillois teve, de
imediato, conscincia de cotejar uma verdade que, desde sempre, o assombrava? Da,
uma certa calma, uma espcie de serenidade quase uma segurana em sua postura e
que provam, sem dvida, esses exploradores de impossvel que, recusando mesmo o
milagre, denunciam, em nome da ideia que eles servem, a impostura por todo lugar onde
ele se manifeste.
A interrogao apaixonada pelo mundo mineral que ele descobre, o conduz, desta
vez e pela primeira vez, provavelmente a se identificar com cada um de seus
fragmentos, a ponto de aprender e acompanhar a escritura deles; a ponto de estabelecer
consigo mesmo tornado o objeto, a pedra estilhaada uma exemplar caderneta de
correspondncias que o impelir, pouco a pouco, a se definir atravs de uma mitologia
nova, uma metafsica, uma moral, uma esttica, nessas regies de alm-tempo, onde a
vida e a morte so sinnimas.
Assim afronta ele uma escritura a sua? no vazio onde ela est inscrita, tais
esses sis extintos que selam as ltimas pginas do livro. Livro gravado no signo e em
seu silncio; quer dizer, no que, por ter sido, afirma sua ausncia e no que, para ser, se
nomeia.
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III
Obrigado por Cases dun chiquier que foi, para mim, o objeto, o centro de uma
longa reflexo.
O prefcio dessa obra nos revela uma postura segura de si mesma mas, ao mesmo
tempo, inquieta com seus passos.
E nessa perspectiva que teus livros devem, agora, ser lidos. A interrogao faz
recuar os limites de cada um deles. Para alm nos prolongamentos, portanto, da
interrogao insinua-se o comentrio que nova interrogao e nova meditao.
H o objeto de tua curiosidade que circundado vigorosamente, implacavelmente
mas tambm circundado, como circundamos as nozes, como circundamos uma rvore
e h o que escorre de teus dedos, o que s poder ser captado alhures ou, talvez, jamais
captado e que, de repente, nos ilumina.
H a questo e, ao cabo, o desespero de uma resposta recusada.
E h o relato em sua dimenso soberana.
A necessidade, no que dado, de interrogar o secreto, o prprio de teu
pensamento: esse secreto que no o que escondido mas, ao contrrio, o que fala no
recndito. De sorte que a palavra do secreto que sem cessar questionada.
Tua abordagem das coisas e dos seres se faz, antes de tudo, instintivamente
quase, atravs do que os dissimula.
Tu partes para ver, para compreender do que no se entrega imediatamente
viso nem audio. Busca de pacincia. Rastro no rastro indefinidamente realado.
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E ento que o secreto fala e essa palavra encontra em teus livros seu lugar
privilegiado.
Tua postura se torna tateante, mas como maravilhada ou apavorada por seus
horizontes.
A vertigem nos toma face ao vazio onde toda verdade aquela desenhada na
pedra igualmente morre por ter sido, por se perpetuar na morte; de sorte que seu
prprio e original apagamento que nos parece ser, agora, sua luminosa e coerente
manifestao.
Fascinados pelo que no , precisamos ento nos apropriar do objeto revelando-o
a si mesmo e aos outros a fim de reduzi-lo, como se ele fosse o obstculo a vencer, a
transpor; como tu precisaste ir ao extremo do comportamento de teus semelhantes para
unir-se a eles em seu silncio. Mestres da nadificao, assim como da aquiescncia.
Tudo se mantm. Tudo se responde. O homem s crenas do homem; a guerra
festa; a dana do inseto imobilidade da pedra. A regra do jogo regra do universo.
Tu nos conduzes, de incurses em incurses, aos confins de ns mesmos.
Abrimos os olhos sobre o que, por ter apelado a todos seus recursos, permanece espelho
de um mundo que no cessaremos de sondar ao nos mirar: mundo da escritura onde se
desperta e se deita o mundo, palavra eleita em que nos medimos a ns mesmos e ao
espao, como se precisssemos viver e morrer no que s governa por ser governado e
governar por nosso turno.
O vocbulo distncia na no-distncia; quer dizer, imensido de uma separao
que cada letra acentua anulando-a. O que dito, o sempre em funo do que jamais ser
expresso. nesses extremos limites que ns nos reconhecemos.
... mas tu s severo com essa rosa atormentada das areias. Uma certa verdade que
aquela ensinada pelo deserto, deixou-a se perder em si mesma, como se fosse
necessrio puni-la por ter ousado ser flor.
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O instante depois
O olho capta o que ele vai suprimir. Ele no consegue perceber o que escapa
morte e que o invisvel. dissera ele.
O olho humano. O olho tornou Ado mortal.
Quando Ado abriu os olhos, Deus tremeu.
A queda de Ado o triunfo do olho
Deus sem olhar, dissera ele ainda.
Deus sabe: Ele cego. O homem aprende a conhecer o que seus olhos suprimem.
Todo conhecimento passa pela escolha. A escolha garantia do assassnio.
Tu no matars de nenhum modo, manda Deus. Esperava Ele que o homem
voltaria a ser cego?
Ah, Senhor, por que fazer de mim um assassino, dotando-me do sentido da
viso, e depois me condenar por causa de meus olhos abertos?, tinha escrito um rabino
pouco depois que fora redigida a ltima pgina do Livro das Questes.
Deus criou o mundo medida do olhar da criatura a fim de que eles morram um
pelo outro, tinha ele notado.
Deus criou o mundo, quer dizer, Deus Se criou para afrontar o olhar do homem e
desvelar Sua potncia escapando a ele., tinha notado ele, por outro lado.
A melhor prova de amor que podia dar a Deus a criatura fora aceitar Sua
invisibilidade.
O mundo se extinguir com o olho. Tudo ter sido dito, como no comeo.
20
2
... a abertura mortal do olho Jacques Derrida
21
... eu regularmente tentei recolocar a filosofia em cena, em uma cena que ela no
governa. Jacques Derrida
22
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Esta noite, como toda noite claridade de minha vela, encho de palavras
exumadas algumas folhas insaciadas.
Deus, do outro lado de minha mesa, compe Seu livro do qual me envolve a
fumaa; pois a chama de minha candeia lhe serve de pena.
Que ser em breve meu livro seno um pouco de cinza sobre uma das pginas do
Seu?
No h espao protegido para a escritura., escrevera, h trs sculos, um rabino
desconhecido do qual me absterei de revelar o nome.
Ele escrevera outrossim: Em cada vocbulo, uma parede de fogo me separa de
Deus e Deus , comigo, esse vocbulo.
O fogo no pode se extinguir na palavra que ele escreve. Eternidade do livro, de
incndio em incndio...
No haver jamais seno um s livro prometido ao fogo ao qual sero sacrificados
todos os livros. Assim o tempo se escreve nas cinzas do tempo e o livro de Deus, nas
loucas chamas de nossos livros.
(O fogo virgindade do desejo.)
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Se, para responder ao convite que me foi feito para participar de um nmero de
Arc que te dedicado, eu escolhi, pelo intermdio dessa revista, dirigir-me diretamente a
ti, porque nesse ponto crucial de uma prtica da escritura, porque no corao e,
geralmente, na mais total das noites desse questionamento incessante da letra e do signo
captados em seu devir perigoso de vocbulo e de livro, aonde eu cheguei, ningum pode
falar ao outro ou do outro seno pela voz do dilogo ntimo, por essa voz carregada
de toda a escuta de uma voz da qual sabemos que ela, uma vez, rompeu o silncio por si
mesma.
Mas tambm a fim de conter minha irritao por ter a interrogao da palavra se
tornado, subitamente, para muitos, objeto de jogo trapaceado em sua ousadia frustrada,
prudente posse sobre o que no se deixa jamais captar de frente.
A cifra nos conhecida, comunicada e a partir dela, desse saber, dessa
segurana do escrito que se faz a leitura; leitura que dizemos aberta ao nvel do texto;
mas de qual texto? J que, redigido dessa leitura, farei minha escritura este no
outro seno a aplicao de uma teoria aceita de imediato, de um mtodo adotado com
suas combinaes e combinados sutis, dos quais no podemos mesmo medir as
consequncias e, sobre eles, fundamos o livro.
A pgina branca no uma grade com a qual preciso se acomodar. Ela se
tornar isso seguramente, mas a qual preo?
Assim as obras importantes de nosso tempo so abordadas, na maioria das vezes,
em funo do calor do momento e, antes de tudo, em relao ao que delas temos tirado
retido e do qual faremos, alegremente, referncia.
Na extrema ponta da costa, tomamos o farol: sua torre de pedra e seu fanal.
Tornamo-nos seu honorvel guardio; mas esquecemos que o farol s est l para varrer
com sua luz o oceano e para dirigir o navio noite adentro onde ele se banha, a fim de lhe
permitir lanar a ncora em porto seguro.
O movimento do livro o das vagas apaixonadas, agressivas que a pena, tal um
feixe de fogos, vem clarear na noite onde se desabrocha a escritura e de que o guardio
do farol e o escritor registram distncia os suspiros, os bramidos, os gritos e os
estertores;
por isso que no h prazer s do texto, nem tdio, nem pavor, nem raiva.
No podemos aderir unicamente a um de seus equvocos instantes quando, na durao e
sem isso o texto no seria texto -, ele testemunha, em sua soberania, de todo o dio, de
toda a volpia sentidos, de todo o esperma e de todo o sangue espalhados da onda,
jorrados do vocbulo que se oferecem como partilha.
Partimos sempre do texto escrito para retornar ao texto a escrever, do mar ao mar,
da folha folha. O navio, talvez, seja tambm o vocbulo obsessivo preso nas raias de
nossas luzes, entrevisto, seguido, depois desaparecido e que continua a nos assombrar,
assim como ele assombra o retngulo de papel ou essa parte do oceano branqueada por
sua passagem; a escuma sendo baba de ferida.
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26
Dessa frtil desconstruo que opera nos dois sentidos da totalidade a fim de
desembocar sobre o derradeiro fragmento e do nfimo fragmento a fim, ao se anular passo
a passo no nado do fragmento preponderante, de reconstituir, atravs de seu apagamento,
essa totalidade o olho o guia, o farol. Ele faz Ele a lei. O invisvel nos requer por
trs de tudo o que visto e como se ele fosse, em sua ausncia, apenas o que se esconde
no seio do que se mostra ou ainda o que nos esconde o que, no entanto, se mostra e o
silncio, o que calado em uma palavra proferida.
Desse invisvel l, desse silncio l, em qual movimento, em qual deporte ou
deportao da escritura devemos tomar conscincia? O que resta a ver, o que vai se dar
uma voz aps o silncio, nos fascinam. O campo da escritura duplo. O lugar do livro
para sempre um lugar perdido.
Pensando em ti, em tuas abordagens questionadoras e questionadas do livro, em
teus caminhos que so apenas o mesmo caminho, mas marcado por ires e retornos
significativos, como se pudssemos avanar apenas aceitando, previamente, voltar a
nosso ponto de partida, que se quer ponto de todas as partidas e me pondo, por meu turno,
a questo ardente: O que o livro?, encontro, oferecida s mais pertinentes, s mais
prementes interrogaes, essa resposta proposta por um rabino kabbalista que sabia, eu
to asseguro, mais do que imaginamos sobre o que nomeamos, hoje, escritura ou no
sabia, talvez, nada disso, preocupado sobretudo com simbolismo; mas o que importa? e
que desviado de seu sentido mstico originrio submeto literalmente tua reflexo; o
Livro seria isso que est gravado com o negro do fogo sobre o branco do fogo. Fogo
negro sobre fogo branco. Consumao sem fim do pergaminho sagrado, da folha profana
votados aos signos, como se o que est consignado co-signado escrito, no fosse
seno jogo perpetrado pelas chamas, fogos de fogos, fogos de palavras, disseste tu em
uma recente conversa. Confiana naquilo que morre purificado para renascer do desejo
de uma morte purificadora graas qual o vocbulo acrescenta, sua legibilidade, a
legibilidade de um tempo promovido leitura diferida da qual no ignoramos mais que
ela leitura de toda leitura; tempo sempre preservado no tempo abolido.
Tudo se passaria para o escritor em um antes do livro do qual ele no veria o fim,
do qual o livro seria o fim? Mas no se passa nada que no seja j passado. O livro est
no limiar. o que nos confirma tambm o projeto que tu acalentas, o trajeto que tu tomas
e que poderiam nos parecer, em sua ambio, paradoxais nisto: que eles consistem, para
ti, em minar o caminho e, simultaneamente, a prolong-lo como se este s pudesse existir
em e por seus sucessivos prolongamentos.
Tua desconstruo seria, aqui, apenas a propagao de inumerveis focos de
incndio extenso dos quais contribuem teus filsofos, teus pensadores, teus escritores
favoritos reconduzidos a seus escritos: Valry nos lembra que a filosofia se escreve.
Plato, para que a escritura , a um s tempo, medicina e veneno,
remdio-veneno, a toma por suspeita, mas essa suspeio se escreve.
Tudo recolocado em movimento em causa pela escritura. No dizer, nada
jamais o bastante dito que no aspire a ser redito, mas de modo outro. De sorte que o
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Colocando sem cessar em questo, e com um rigor sem igual, toda resposta
ouvida, o que, atravs de teus escritos e da determinao que se extrai de teus escritos,
desde o incio me conquistou, o que fora o respeito em tua tentativa profunda de
circundar, ao cabo de ingerncias, o incircundvel, essa aceitao total do risco exposto
sobre uma obra inteira que cansaria bem rapidamente aqueles que buscariam te petrificar;
risco que precisamente aquele que o livro em movimento de se fazer e de se desfazer
nos coage a tomar com ele, em cada etapa de sua evoluo, em sua articulao e em seu
abandono.
Se, partindo de Hegel, ltimo filsofo do livro e primeiro pensador da escritura,
Husserl, Nietzsche, Freud, Heidegger, a um s tempo o mais prximo e o mais distante,
voc se detm, como que naturalmente, em Mallarm, Bataille, Artaud aparecidos em teu
caminho, , creio, menos para alargar o campo de tuas investigaes, o lugar inscrito,
transcrito de tuas inquietudes na esperana insensata de voltar ao ponto de partida, do
que para acrescentar, a tuas interrogaes, um excedente de abismo; pois sobre fundo
de abismo que se pe verdadeiramente a questo da escritura, a questo do ser tambm no
que os rebita um outra.
Tudo se passaria, em aparncia, como no jogo de xadrez; mas a qual estratgia
recorrer quando, como o caso para Mallarm, por exemplo, o tabuleiro todo branco?
Qual jogo seria concebvel l onde tiramos, aos jogadores, toda possibilidade de jogo?
a, a partir da que se principia a aventura.
A brancura no a cor do repouso, tu o sabes, tu o dizes. Tanto sangue virgem
est no branco. Desejo e ferida, abrao e combate a se confundem e soobram. A pgina
qual nos apoiamos, quando ela no o vazio, ela o hmen ou o tmpano de uma
encarnao maravilhada ou amedrontada pelo vazio que a pena vaza. O instante de prazer
ou de sacrifcio consumido, mas o ato carnal perpetuado e o silncio preenchido,
doravante, por sonoridades estranhas e tnues.
Uma contraescritura portada, entretanto, pela escritura assim como seu contrrio
penoso ou sua contrariedade nos quais ela tropea, contra os quais ela se quebra -, tenta,
onde a reflexo desborda o arrebentamento, se impor; mas j a praia, a areia, o
apagamento progressivo de um rastro reproduzido que era apenas a temerria impresso
de uma questo em suspenso. A praia inundada pelo sangue branco do mar. O rastro
est afogado no sangue. O apagamento seria apenas lminas de sangue sobre uma orla
abandonada, toda escrita, toda povoada de passos.
28
presena no o tempo presente, mas sorte, espera, tormento do tempo, ateno aplicada
ao tempo do qual a escritura o vcio.
E l onde ele se troca, lugar de uma economia e de uma despesa do signo que ele
simplifica.
Uma letra sozinha pode conter o livro, o universo. A leitura do livro, nessas
pginas, leitura desmedida de uma letra que nos conduz ao mais distante, de sorte que
nesse distanciamento em que abraamos nossas diferenas, nesses desvios onde,
passando de uma outra, ns nos chocamos com a diferana, que o livro se apresenta
como livro impresso em uma ausncia que a folha propaga. Ausncia de uma ausncia
descartada que a presena desata.
O olhar distingue. De um lado o fogo; do outro, o fogo. O negro do fogo
incndio da noite, face ao incndio branco da manh. Entre esses dois incndios o
espao de uma frao de segundo, o tempo das esponsais do fogo -, a irrupo de um
rosto familiar. O rudo que fazem as palavras no livro so apenas rudos emitidos pelo
fogo, gestos tornados vozes misturadas s chamas.
O discurso filosfico sempre se perde em um certo momento; talvez ele seja
mesmo apenas uma maneira inexorvel de perder e de se perder. isso tambm que nos
lembra o murmrio degradante: isso segue seu curso. Maurice Blanchot
30
A asa e o lao
(O distanciamento vertigem da curva; mas qual centro, um dia, saber fixar seu
crculo?)
II
Estrela
de precedncia H um cdigo de precedncia tambm entre as vtimas. Os
carrascos cuidadosamente o estabeleceram-,
de convenincia,
de discordncia,
de decadncia,
de suplncia,
de sofrncia,
de vigilncia,
de renascncia,
astro advindo, circunvindo pela morte,
nu
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(Qual vazio me atrai? Aps o Nome e a lei, aps o signo e a cinza, ah! de todos
os vazios, minha voz?
... quando o olho se faz audvel e a voz, olhar sonoro.)
Desse medo de tudo que branqueia as nuvens, minha voz foi, no desespero,
apenas apelo reiterado por socorro; desse medo apocaltico de Nada terror do derradeiro
silncio quem me libertar?
... por isso que a letra permanece sendo o obstculo a constantemente abater
para conjurar o medo. Agir de concerto com a morte , nesse estgio propcio, escrever
protegido.
Morrer pela voz morrer pela palavra da viso. Perecer pela letra perece pela
viso do vocbulo.
No primeiro caso, o olho incndio do poo e, no segundo, poo profundo de
incndio.
32
A areia alimenta o fogo que, por outro lado, ela abafa. O deserto primeiro,
imensido desolada do desejo formado por mirades de olhos vivos e mortos.
Como o slex contra o slex, o fogo jorra do roar do olho branco de Deus contra o
olho gris do homem.
Desse fogo, o universo o joguete; o j jogado.
A noite do olho, para sempre, tentou a tinta. O ouro est na palavra, como uma
constelao de hinos. canto do ps-morte.
Repudiado pelo livro, teme te reencontrar desmunido na ausncia de toda vida e
de toda morte habituais, tinha ele escrito. Essa ausncia a no a ausncia, mas o olvido
difuso da criao.
(Enganarei a morte no tendo mais nada que possa apodrecer.)
Bernard Nol
(Les premiers mots)
33
Sobre o medo, I
Eu amaria propor hoje essa principal explicao de uma atitude que se distancia:
tenho medo. E jamais me senti encarregado de revelar a verdade, cada vez mais
nitidamente, minhas posturas so de um doente, ao menos de um homem ao extremo do
flego, esgotado. o medo que me leva ou o horror do que est em jogo na totalidade
do pensamento.
Deus terrifica se ele no a mesma coisa que a razo Pascal, Kierkegaard -.
Mas se ele no mais a mesma coisa que a razo, estou diante da ausncia de Deus. E
ausncia se confundindo com o ltimo aspecto do mundo que no tem mais nada de
utilitrio no tem de outra parte nada a ver com retribuies ou castigos futuros: no fim
a questo se pe ainda:
... o medo... sim o medo, ao qual atinge s o ilimitado do pensamento... o medo,
sim, mas o medo de qu...?
A resposta preenche o universo, preenche o universo em mim:
- ... evidentemente o medo de NADA.
Evidentemente, na medida em que o que me causa medo neste mundo no
limitado pela razo, devo tremer. Devo tremer na medida em que a possibilidade do jogo
no me atrai mais.
Georges Bataille (Le coupable)
Ele tinha medo do negro da tinta; justamente por isso que ele escrevia.
Os escritores, em sua maioria, no tm, hoje, medo de nada.
34
Notas
Ele chegou ao Nada e pensava consigo que o Nada, talvez, fosse o que no se
punha questes nem as punha.
Ele olhava direita e esquerda e no percebia nada: nem ouvia.
Ele no se perguntava mais o que ele fazia l, como tinha chegado l e por quais
desvios?
Ele escutava...
Estranha, essa voz, diz ela. Por vezes, eu a reconheo como sendo a tua e,
por vezes, ela me parece to annima, que ela nos apaga a ambos.
35
(A voz fora a presa perseguida at seu mais fraco lamento, seu obstinado
silncio.
O silncio seria apenas seis lanas retidas. A stima no nos fora acessvel,
dissera ele.
Silncio ci (el)-lances.
O que se mostra se afirma no crime que ele desmonta e, por esse fato, se
determina em relao aos prximos crimes. O desejo de suprimir de se suprimir
antigo sonho de hegemonia inspirado pela morte.
O ltimo sopro a ltima palavra soprada pela morte ou pela vida e que se
tornou para a eternidade nossa?
Nascemos e morremos em uma palavra.)
Novas notas
36
... uma dimenso outra no tambm uma destinao outra que o vocbulo
reserva ao objeto do pensamento, assim como ao pensamento mesmo e que permanecer
desconhecida at que, tendo-a atingido, uma segunda destinao, conferindo-lhes uma
dimenso nova, lhes seja assinalada?
37
Da recuperao
e da reserva do texto
38
(O que tu tens tendncia a tomar por jogos de palavras no so as
palavras do jogo. So a imagem de seu fim. Nem todas as palavras tm a mesma morte.
Tenho observado que a maioria das palavras abrigava inumerveis
palavras s quais elas permaneciam ligadas, atravs de vcios e virtudes que me parecia
interessante distinguir.
De outra parte, os vocbulos, assim como ns, vivem em um universo
fechado; percorrendo-o em todos os sentidos por vias que eles sabem serem as mais
apropriadas. Essas diversas vias so, igualmente, apaixonantes de explorar; pois elas
so as que a morte traou de antemo, tinha ele escrito em uma carta recente.)
39
A condio do jogo
(Michel Leiris)
Sempre me foi mais penoso que a qualquer um exprimir-me de outro modo que
pelo pronome: Eu; no que seja necessrio ver a algum signo particular de meu orgulho,
mas porque essa palavra Eu resume para mim a estrutura do mundo.
Michel Leiris
(Aurora)
Fazer coincidir, com o mundo nu e gritante do pssaro que caiu do ninho, o
mundo mgico das aventuras da linguagem, tal era expressamente minha viso final na
poca distancia j em que, sobre a mesma ficha, eu anotava, primeiro, minha crena na
necessidade de fazer coincidir com alguma coisa de uma gravidade vital o jogo frvolo
que se opera entre as palavras, depois exprimia minha vontade de tirar dessa atitude a
respeito das palavras um meio de vida mais intenso e uma regra de vida, reflexo com a
qual explicitamente um realismo se afirma, mas que no menos explicitamente subordina
a moral poesia j que em uma certa atitude a respeito das palavras que intendo
encontrar a indicao de uma linha de conduta ao mesmo tempo que a fonte de um
enriquecimento da vida. Moral = regra do jogo, quer dizer, aquilo sem o qual no
haveria mesmo jogo...
Michel Leiris (Fibrilles)
Dele a ns, opera-se uma transferncia pela qual essa voz decantante poderia se
tornar a nossa, esse olhar impiedoso, aquele que com um pouco de coragem deveramos
lanar sobre ns, enquanto a complacncia do autor em encenar no jogo, na vida, as
vtimas, se muta em recusa incondicionada do estado de vtima.
Maurice Nadeau
(Michel Leiris et la quadrature du cercle)
Da tauromaquia, que nos oferecia o exemplo de uma arte trgica em que tudo
repousa sobre uma distoro e sobre a possibilidade material de uma ferida, chegamos ao
erotismo, em que tudo se passa no corao mesmo de uma semelhante ferida, se que em
nenhuma parte com tanto fulgor que no ato de amor se manifeste o papel capital de uma
certa plenitude dilacerante.
Michel Leiris
(Miroir de la tauromachie)
I
40
medida da ferida.
medida da desmedida do jogo
do qual Eu a espinha dorsal.
Um corpo.
Por toda parte, um mesmo corpo.
a fustigar,
a mutilar,
a suprimir.
Por toda parte, os anrquicos estados
- ... de canto?
... de carne?
... de nervos?
... de tinta?
de um s corpo.
(O corpo do carcter
no livro
e o do homem
no universo.
Os limites abolidos.
Corpo de criana,
de adulto.
Atingir a idade de homem;
saltar o corpo.
O corpo da ferida
medida da desmedida
do corpo mortalmente atingido.
E o sangue?
Que um sangue no corre mais?
- Talvez uma cor em excesso.
essa cor que obseda a noite.
41
(Uma mulher-texto.
Um texto-alma.
O universo se escreve no corpo.)
... essa ausncia dilacerada do Eu do qual a presena recompe o rosto,
a vida,
a idade
que o reduz a nada.
Dessa ao,
o livro se desorna.
A chave encontrada, ele poderia abrir todas as portas, salvo a sua, claro.
Tal a chave.
- Ele a chave.
(A mo, fora do abismo, tenta escrever ainda; mas o qu? Com qual estilo ou
qual outra ponta adaptada? Sobre qual matria; sobre qual retngulo de ar recortado no
vazio?)
O qu? A palavra futura, o futuro maado: questo, na morte, posta pelo
passado ao futuro legitimado.
A preciso
apagamento.
Ele to preciso.
Ele desaparece.
No esconder nada
dissimular um pouco mais.
- e mais que um pouco.
Subjugada,
a palavra deserta a palavra.
Ela se aplica a no ser.
II
43
III
A lei o lustro.
Essa galeria de espelhos justamente o lugar do jogo;
- dos jogos do Eu -.
O Palcio era de palha
e o incndio, latente.
no cotidiano que se desfazem os livros;
nos sonhos que eles se fazem.
A surpresa est na virada,
o risco.
(Furioso, saltita o touro dos horizontes que, com uma cabeada, chifra o espao.
O dia est por trs do obstculo, sob
a veste
constelada.
No h liberdade total seno no nada.)
O que falar, ento, nessas aleias acossadas; face a esses lagos jogadores? O
que falar, de verdade, nesses magos lamacentos; nesse inferno do verbo e
dos abismos?
44
(Sobrecarga de universo.
To pesado fardo.)
A ribeira. O suicdio.
No h dia sem fim.
45
IV
Aurora! Aurora!
Inseparveis manhs
do pacto
e da morte.
Aurora! Aurora! figura mais pura que uma centelha ou que um lance de sonda
lanado em um deserto, so teus maravilhosos feixes de chamas que aceleram a tal ponto
os passos do vagabundo solar; teu vestido prateado e tua cabeleira fulgurante, tua
boca, cratera rosa de onde se esvoaam, por entre escrias de inteligncia, tuas palavras
fugitivas e insensatas, tua mo fresca e dura cujas unhas so feras estranhamente
reluzentes, que atraem essa cabea para onde s restou um tufo de cabelos loiros!
46
Michel Leiris
(Aurora)
V
H o ao da dor
H o vermelho do perigo
Michel Leiris
(Haut Mal)
(Um tempo,
Basta esse tempo
de tomada,
esse fora-do-tempo
cmplice.
Claridade do corpo.)
Maravilha do amor,
mulher deitada
para se reproduzir.
Gozar. Agonizar.
Vir da noite
ou de uma outra;
do silncio
ou da festa.
O corpo comanda.
A morte se impacienta;
pois toda morte amor.
Assina a pgina desdobrada da noite
com a noite propcia do signo.
Alto Mal, houvera, outrora,
um sol para a poesia:
este sol...
47
VI
(Rabiscos
Biscatos
Fibrilas
Uma fina flor
ao leste,
como um trao novo.
A corda de um arco.)
VII
(A outra vertente o neutro).
48
O incondicional
(Maurice Blanchot)
O neutro , de alguma maneira, o nervo do n.
O n resiste s surdas presses da corda. Ele pura resistncia; indiferena ativa.
O incondicional no uma forma outra do neutro; mas antes o neutro em sua
forma ultra; a tomada de partido do Altssimo, a armadilha.
Desatar o neutro; recuar ao infinito as fronteiras da solido.
Um fora-do-livro incondicional.
Com qual melancolia, com qual calma certeza, ele sentia que no poderia nunca
mais dizer: Eu.
Maurice Blanchot
(Lattente Loubli)
50
I
(Voto, vaga, vela.
Negatividade absoluta.
Imperativa perenidade.)
Liga-nos o livro, ou antes o que tende a se fazer livro e que jamais se far.
Um relato? No, nenhum relato, mais nunca. O relato consiste em permitir o
relato, a deix-lo vir.
Nenhum relato tem lugar. No h sequer lugar, aqui, para o relato.
Teus relatos se afastam das vias do relato para no mais ser que a descoberta da
palavra em seu fim, em seus ltimos instantes audveis, inscritos.
Linear, frgil, insidiosa est a escritura; de uma limpidez desarmante. Em
nenhuma parte, o menor excesso. Que lio! E que espelho enfeitiante! Tranquilizante
em certos aspectos, mas somente em aparncia. Assim, a transparncia.
Como dizer o que nos liga? Referindo-me ao exlio, talvez, que o centro, a
mancha de leo.
A escritura sempre recalcada.
Ultra-vida, ultra-noite se mantm o livro.
(O poo no o tinteiro?
No mergulhes nele tua pena, amigo, por mais de um instante; tu poderias com
ela perecer afogado; pois teu corpo est em teu pena;
mais de qual morte mais horrvel nos ameaa o poo secado!, escrevera-me um
sbio encontrado no Livro das Questes.)
51
Ligam-nos as sentenas dos sbios de minhas obras e o que nelas eles, tendo
partido do livro, deixaram informulado.
Rastelo e Relato: dois obstculos lhes precisam seus contornos. Duas grosseiras
demarcaes. O comeo e o fim. Ento, podemos a estacionar em segurana nossas
embarcaes; mas se o obstculo e seda, de ar, de fumaa, qual bateleiro, qual leitor
vindos a se refugiar, a se sentiriam, com seu bem, ao abrigo?
No h termo na viagem, nem preldio. O escritor no tem nenhuma semelhana
com o marinheiro.
Inaceitvel porto de registro.
Todos os livros respondem ao questionamento de um s.
O relato se elabora sobre vrios planos, em diferentes nveis de conivncia; de
onde essa defasagem entre o que dito jamais totalmente dito e o que percebido
jamais totalmente percebido -; de sorte que no que esperado, esquecido, reencontrado
e reperdido que o texto se escreve.
Quem, dessa escritura, dir o porvir imediato e, de sua leitura, estabelecer
a certido?
(Eu olhava, na gua, graciosos peixes incolores evolurem, uns por baixo dos
outros, entre os rochedos. Bruscamente, eles se aproximaram e se encontraram sobre o
mesmo plano. Eu pensava que era assim com a frase nesses momentos fraternos da
escritura em que o vocbulo se dispe ao lado do vocbulo para um mesmo destino
aleatrio, enquanto a morte investe o mar.)
52
II
Uma obra irreconduzvel. O retorno tanto esperado que fora, para ns, Retorno
ao Livro, lhe seria desconhecido?
- Retorno ao lido dos lbios. Assim tudo seria lido to logo pronunciado.
H sempre um livro preparado para o advento do livro. O livro segue.
Uma obra irrelativa, irreitervel em sua prdiga renovao.
Uma obra irregenervel e, no entanto, eclodida por irrorao;
mas o tempo no est em causa, aqui.
morte de mil mos, de mil amanhs.
Haveria um sol ainda onde tudo no mais que renncia ao dia.
Uma obra irredutvel s nublagens, s miragens, s mensagens, aos apangios, aos
sufrgios, aos naufrgios...
Como dizer o que nos liga?
A morte nos alivia.
A distncia embruma
o universo.
O Nada nos mede ao Nada.
Nesse lago,
o distante dos tempos
e o presente
estagnam.
O obstculo no , de nenhum modo, mestre da gua, mas da passagem.
53
III
Uma linha
To fina.
Alm,
aqum,
o abismo.
54
Cincia dos condicionais: (Teologia) Conhecimento que Deus possui s
do que poderia ter acontecido segundo certas condies, em certas circunstncias.
Littr
do olvido,
- entre dizer e fazer -,
do silncio,
entre noite e sangue -,
(Vida em suspenso
serpenteia
no vazio.)
56
(Pelo que poderia ele ter sido condicionado? Pela presena? mas se a
presena , ela mesma, ausncia? Pelo livro? mas se o livro , em definitivo, apenas a
colocao em palavras de sua esperana? Pelo tempo, a respirao, o caminhamento, a
interrogao? mas se a eternidade, o universo, a errncia, a afirmao lhes so sua
perturbvel negao?
ao sol que seria necessrio se agarrar, lei solar, ao olho, ao imensidade do
dia e da noite, ao saber dispersado anarquicamente e to derrisrio...)
57
IV
Mo-morta: Homem condicionado. Antigo termo de jurisprudncia. Diz-se dos
judeus que no podem transmitir seu bem seno em linha direta, bem como aos bens dos
quais os Senhores sucediam quando morriam sem filhos.
Na Frana, os judeus eram servos de mo-morta.
No Franco-Condado, um homem livre que tiver morado por um ano e um dia em
uma casa de mo-morta, torna-se escravo.
Littr
Livro, morada de mo-morta? O que se tornaram as paredes espessas de nossas
moradas?
Nenhum telhado nem paredes,
desde ento.
58
Servo, judeu do livro. aquele que entrou em minha casa, como podia ele saber que
estava em minha casa, j que habito uma palavra que no de ningum? E, entretanto,
fizeram-no escravo por minha culpa.
Do que eu teria a legar, meus filhos mesmos poderiam ter-se beneficiado. Doo
tudo e esse tudo apenas cinzas de inumerveis nadas.
Talhamos as pedras, assim como talhamos nossas morte.
O que resiste o que, para si, espera uma morte mais digna, mais ampla.
A morte, todo esse tempo, nos ter mantido sob seu jugo,
provocando, com sua arrogncia, o porvir.
Livro, tnhamos ns escolhido essa morada?
Tu disseras: O escritor e seu leitor esto no livro e ambos morrem.
Mortalhveis: talhveis discrio do livro.
A suspenso de morte pronunciada pelo primeiro vocbulo, juiz impiedoso.
O espelho desnorteia o saber.
Esse barulho que ningum ouve. Eu o ouo. Esse lquido vermelho que escorre
sob a pele, que ningum v. Eu o vejo. Eu o bebo.
Audio, olhar. sede inextinguvel.
Logo morrerei por ter bebido todo meu sangue; perecerei por ter-me visto e
ouvido;
pois todo meu sangue de tinta; pois a tinta meu sangue.
59
Onde comea meu corpo? Em qual lugar escondido, obscuro, teve nascimento a
aventura escrita, legvel, de meu corpo?
Alongado, pensei, por um momento, que no pararia mais de crescer.
Eis que o acabou o tempo de perder at o apoio do ltimo dia.
No pode haver livro, dissera Yukel; pois se o livro existisse, ele teria cessado de
nos assombrar. O que existe a obsesso do livro. cada livro escrito o esforo cumprido
com vistas a uma libertao da obsesso do livro.
Deus apenas signo separado, puro vocbulo?
Ah reduzir o texto a uma palavra. Recolher a pgina a esse vocbulo nico,
transparente.
V
Saber isso basta j para desnortear.
Como se o conhecimento s nos fosse
deixado para conhecer o que no
podemos suportar conhecer.
Maurice Blanchot
VI
61
To branco era o grito, que com razo pensvamos que a dor fosse apenas
etapas provadas de brancura.
VII
(Branco, o murmrio.
Branca, a ptala.
Branca, a partida.
Branca, a rasura.)
62
VHERBAL
Escrever, para mim, ter consistido, dia aps dia, em selvagemente arrancar do
solo, erva e razes intrusas; depois, em recusar-me a fertilizar minhas terras incinerandoas.
Nenhuma sobrevida nessa morte: mas uma sobre-morte impiedosa.
Colocar em causa os jardins colocar em causa o que afaga o olfato e o olhar.
Nenhuns perfumes no deserto; nenhum encantamento; mas o acre odor da
eternidade espoliada, a desafeio das formas gloriosas; a colocao em acusao do
olho.
Todos os momentos da vida tm seu perfume. Sada do
corpo, a vida no sente mais nada.
Um pestilencial odor de carne putrefata, eis a fronteira
entre a vida e a morte, dissera ele. No h outra linha de
demarcao. O nada, felizmente, suprime todos os odores.
Mas quem, por um instante, teria suposto que o nada, no
secreto, fora fatal esperana de erva?
Sempre escrever significaria esperar onde a esperana est
proscrita?
Tu no esperas mais nada, mas tu escreves.
64
O absoluto da morte
... mas aqui atingimos o ponto onde o ser verdadeiro por inteiro
retido e definido em seu fim, onde a conscincia, mestra de si
mesma, destroi jocosamente toda possibilidade de fuga e de
hipocrisia. Reduzida a si s, liberta de todos os ouropis fortuitos
que a dissimulavam, a vontade interior se rene e resplandece na
iminncia de morrer. Ela toma a morte por cmplice, como se ela
no pudesse se desvelar a nossos olhos seno sobre um fundo de
nada, no breve instante em que o heroi d lugar s trevas antes de
se confundir nelas. Porque no h mais sada para um futuro o
que quer dizer que no h mais meio de pensar alhures o ser se
estabelece sobre um aqui e um agora perfeitamente plenos. Ele
exibe e fixa toda sua potncia, que nada doravante poder lhe
contestar.
Jean Starobinski
(Montaigne et la dnonciation du mensonge. Dialectica volume 22,
1968.)
65
Os amantes
Nesse ponto, o devotamento se
torna sacrifcio de maneira assinttica
rumo ao absoluto da morte. Viver apenas
para o ser amado em breve viver
apenas pelo ser amado; ter cessado de
viver para si mesmo e por si mesmo.
profunda libertao que, em retorno,
confere vida, ela mesma, uma
comodidade, uma alegria e uma
intrepidez maravilhosas.
... (O escritor) torna-se assim um mortovivo, mantido em vida por uma espcie
de respirao artificial que ele implora
um morto em potncia do qual cada
instante depende, doravante, do (livro);
exprimir este estado repetir sem
descanso (e da maneira menos poltica)
que morreramos se (o livro) se
afastasse; proclamar que a vida o
dom condicional que obtemos dele... Sua
defeco, que digo eu, s sua distrao
votaria ao nada o ser que se confiou a
ele. Na extremidade do devotamento
anunciam-se, portanto, o sacrifcio e a
morte consentida, mas est a tambm,
como suspeitamos, a arma ltima do
desejo possessivo, da avidez captadora.
O escritor se engenha em fazer do nada
que ele afronta a moeda de troca que lhe
permite conservar o todo do livro.
II
66
67
Esse livro, Sarah, privado de vocbulos, contm, todavia, nossa histria porque
o livro escrito pela morte e porque falecemos desde o instante em que cessamos de ter um
nome.
Uma espessa camada de neve recobre nossas palavras. Elas esto to distanciadas
de ns, to esquecidas de nossos semelhantes que, talvez, no sejam mesmo mais
palavras humanas, mas ecos deformados de nossos gritos sepultados.
A ausncia de livro consagra nosso silncio. Tu s, como eu, viva apenas l onde
no somos mais; quer dizer, l onde todos os espelhos jazem aos pedaos ao p de um s
por trs do qual ns nos mantemos, imveis.
O vazio que escrutamos no aquele do livro no qual, mudos, ns nos
embrenhamos. aquele do livro deles, Sarah, do qual somos a pgina transparente, hostil
a toda ressurgncia do signo, a toda eflorescncia tardia.
Do silncio dos sculos emergiro, um dia, discretos vocbulos para ns, depois
para aqueles que tiverem aprendido, pouco a pouco, a nos ler no nada. Nosso livro para
o amanh.
68
69
70