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Curso Online de Filosofia

OLAVO DE CARVALHO
Aula 08
23 de maio de 2009

[verso provisria]
Para uso exclusivo dos alunos do Curso Online de Filosofia.
O texto desta transcrio no foi revisto ou corrigido pelo autor.
Por favor no cite nem divulgue este material.

[COF20090523]

Hoje eu gostaria de sintetizar o que ns falamos nas ltimas aulas, de pr um pouco de ordem
e traar algumas linhas que devem servir de orientao prtica para vocs no s no restante do
curso, mas idealmente para o restante da sua vida intelectual.
A formao filosfica tal como eu a concebi especificamente para as circunstncias da vida
brasileira atual, isto , para as condies que eu sei que vocs vivem e no para um aluno
abstrato, universal se compe de uma srie de blocos. Cada um deles tem de ser
desenvolvido independentemente, com suas prprias exigncias, formando um conjunto. Voc
deve estar continuamente circulando entre esses blocos e articulando o conjunto que formar,
no fim das contas, a sua prpria personalidade intelectual e filsofa.
No fundo, essas indicaes como bem assinalou o Jlio Lemos em comentrio ao meu
artigo Quem filsofo e quem no servem no s para os filsofos especificamente,
mas para a vida intelectual em geral. De certo modo, nesse sentido, a filosofia constitui o
modelo da vida intelectual. Todos aqueles que leram o livro do padre Sertillanges, A Vida
Intelectual, devem perceber isso imediatamente. Somente um filsofo poderia ter
compreendido a natureza da vida intelectual daquela maneira, unificando desde os
fundamentos mais gerais e tericos at as indicaes prticas mais imediatas, mais concretas.
O primeiro desses blocos aquele ao qual ns temos dedicado mais ateno nas primeiras
aulas, que ns vamos chamar, por falta de nome melhor, de o adestramento do imaginrio.
Sem isto, nada se pode fazer. O meio essencial para o adestramento do imaginrio
precisamente a longa e constante convivncia com a literatura de fico universal: poesia,
romance, epopia, teatro etc., incluindo, evidentemente, o cinema. Isto nos serve para
aprendermos a nos identificar com pessoas que so diferentes de ns, mas que sempre tm
algum ponto de contato no existe o totalmente heterogneo. Se ns conseguimos nos
colocar na posio de Hamlet, Antgona ou de Ulisses, significa que eles tm algo em comum
conosco, por mais diferentes que sejam sobre inmeros aspectos (culturais, histricos etc.).
somente a longa prtica da literatura de fico que nos habilita a criar esses personagens
imaginrios. Na verdade ns no estamos criando, e tambm no estamos copiando. Ler
literatura de fico como se fosse um sonho acordado dirigido: voc recebe uma pauta de

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uma srie de atividades imaginrias que voc vai desenvolver. o seu imaginrio que vai
produzir tudo isso de acordo com as indicaes que foram dadas pelo autor da narrativa. Na
medida em que se desenvolve a narrativa, voc vai dirigindo o seu sonho para esta ou aquela
direo, incorporando novas possibilidades, novos dramas, novos conflitos, novas tenses etc.
Isso tambm o ajuda na vida cotidiana, na sua convivncia direta com as pessoas, pois
importante voc ser capaz de imaginar o que elas esto passando. somente a imaginao que
nos permite compreender o prximo isso muito importante. muito fcil falar Ame ao
prximo como a ti mesmo. Aquela pergunta do Gurdjieff: Como que ns podemos amar
os nossos inimigos se no amamos nem os nossos amigos? uma pergunta cnica, mas muito
pertinente. No que consiste este amar ao prximo? Consiste, em primeiro lugar, em tentar
compreend-lo como ele mesmo se compreende, e no julg-lo desde fora, desde um
esteretipo ou por um padro qualquer que pode no se aplicar ao caso.
Tudo consiste em voc ir do abstrato para o concreto, do genrico para o particular e o
individual. Claro que o individual nunca pode se desligar do genrico, seno ele se torna
absolutamente ininteligvel ele pode ser percebido, mas no inteligido. Por outro lado, o
genrico, o abstrato, o universal, sempre o padro pelo qual ns julgamos as coisas. Se o
padro universal no est adequado situao concreta e individual, ento voc est
cometendo uma injustia, voc est deslocado em relao realidade, julgando de acordo com
uma lei que no pertinente ao caso.
Esta arte de compreender as pessoas depende inteiramente da amplitude do seu imaginrio, da
sua capacidade de vivenciar imaginativamente situaes que voc nunca viveu pessoalmente:
dramas que nunca teve, sofrimentos de que nunca padeceu, alegrias que nunca desfrutou,
esperanas que jamais compartilhou, e assim por diante. s assim que voc vai incorporando
esses vrios personagens. Quanto mais personagens voc tiver na cabea, mais facilmente voc
os combinar para compreender um novo personagem, seja ele adquirido de uma leitura de
fico, sejam pessoas conhecidas na vida real.
A leitura da fico tem a vantagem de nos fornecer somente aqueles episdios que so
pertinentes a um drama em particular, ao passo que na vida real ns vivemos uma pluralidade
de dramas inconexos. O sujeito pode ter um problema na famlia, outro problema dentro do
emprego, um terceiro conflito com o vizinho, e assim por diante. Esses vrios conflitos no
vm das mesmas causas e eles so perfeitamente inconexos. Como os conflitos que vm do
passado e que j esto consolidados dentro de ns, mais aqueles que nos vm de uma situao
nova se acumulam, ns freqentemente confundimos uns com os outros. Tendemos sempre a
interpretar a situao nova luz das situaes j vividas, quando s vezes isso no
inteiramente adequado.
Em suma, ns vivemos dentro de uma espcie de malha de conflitos diferentes e heterogneos
que no tem unidade em si mesma e que s adquire unidade luz do seu projeto biogrfico.
So os seus objetivos na vida que vo articular, de certo modo, retroativamente, as vrias
significaes dos vrios conflitos e situaes que voc viveu e vive. Essas vrias significaes
passam a adquirir um sentido para voc em face do seu objetivo.

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Na literatura de fico, como absolutamente impossvel absorver toda a densidade da trama
desses conflitos simultneos, o ficcionista seleciona um ou dois conflitos mais ou menos
articulados e os coloca ali. s vezes h uma tentativa de voc articular conflitos heterogneos
na fico, como, por exemplo, nesses grandes panoramas ficcionais onde h uma
multiplicidade de personagens inconexos, que se desconhecem e vivem num mesmo lugar ou
atravessam a mesma situao histrica. Um exemplo o livro O Espelho Partido de Marques
Rebelo, uma obra que ele no terminou. uma obra magistral que ele pretendia fazer em sete
volumes, mas s escreveu trs porque morreu. So vrios personagens diferentes [0:10] cujas
vidas vo se entre-cruzando. a maneira que o ficcionista tem para representar, de algum
modo, a densidade dos conflitos heterogneos, dentro de cuja malha ns vivemos. Mas em
geral no isso o que acontece. Em geral, se destaca um ou dois conflitos que so ligados e
que so representados de maneira intensificada, de modo que eles adquirem uma nitidez que
na vida real eles no teriam. Como, por exemplo, o drama de Hamlet, de vingar-se ou no de
uma ofensa cometida. Freqentemente ns vivemos esta situao, mas ns a vivemos
misturada com mil outras situaes. Ns no somos capazes de pensar no mesmo conflito 24
horas por dia, porque ns temos outros.
A fico nos d uma galeria de situaes dramticas. No vamos cham-las de conflitos porque
nem sempre a natureza da coisa conflituosa, mas so situaes dramticas que na vida real
aparecem to entre-mescladas que voc no consegue separar e descrever uma em particular.
Alis, esse um dos grandes problemas da humanidade: os seus problemas vm todos juntos e
voc no consegue examinar um por um. que nem aquela velhinha que chegou l no
professor de artes marciais para fazer massagem. Ele perguntou: diga onde e quando di, ao
que ela respondeu: di tudo, sempre. Ou seja, assim fica impossvel de tratar um problema
to onipresente e to constante. Em geral, as pessoas ficam desesperadas porque di tudo,
sempre, elas sentem todos os conflitos ao mesmo tempo e, portanto, no conseguem discernir
um por um, no conseguem dar uma forma inteligvel ao seu sofrimento.
Atravs da literatura de fico ns aprendemos a incorporar esses vrios personagens e
situaes, e aprimoramos a nossa capacidade de nos identificar com o prximo e compreendlo como se fosse ns mesmos dito de outro modo, tornar uma pessoa que era diferente em
efetivamente um prximo. Essa habilidade nos servir muito quando ns sairmos da esfera dos
dramas concretos, reais, vividos, para os dramas cognitivos, os dramas intelectuais, as grandes
dificuldades cognitivas da humanidade que foram enfrentadas por diferentes filsofos em
diferentes circunstncias e com diferentes desempenhos em cada caso.
Ns temos de aprender a incorporar esses dramas intelectuais vividos por eles como se eles
fossem personagens do nosso mundo imaginrio, do nosso teatrinho mental. s assim que
voc vai compreend-los. Voc no vai se identificar com eles no sentido de ser eles, voc vai
se identificar como voc se identifica com um personagem de teatro, no ao ponto de voc
acreditar que tem o mesmo problema dele. Como o sujeito que assiste Otelo, chega em casa e
mata a mulher. No porque o Otelo est sendo chifrado que voc tambm est graas a
Deus, isso no acontece com a maior parte das pessoas (se bem que s vezes acontece). Voc
vivencia durante duas horas ali no teatro aquele drama que no est acontecendo para voc,
mas que poderia estar, lembrando sempre a definio de Aristteles de que a fico no nos
mostra o que aconteceu, mas o que poderia acontecer ou poderia ter acontecido. Ento voc

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vivencia aquilo no como uma realidade, mas como uma possibilidade real concreta, qual
voc est aberto, como todos os seres humanos.
As dificuldades, as dvidas, a luta contra a opacidade do fenmeno, a tentativa de penetrar
numa fenomenalidade opaca para conseguir captar algo de inteligvel ali o drama do
conhecimento que foi vivenciado por todos os filsofos ao longo do tempo. No um drama
sangrento, mas s vezes so dramas muito mais importantes e decisivos para o destino humano
em geral do que, digamos, o problema do cime, ou o problema da inveja, como no caso do
Rasklnikov, de Crime e Castigo, que um sujeito que acha eu sou um sujeito to inteligente,
eu sou um gnio, por que eu no tenho dinheiro? Por que essa velhinha intil tem o dinheiro
do qual preciso?.
Todo mundo j teve algum problema parecido com o de Hamlet, Otelo ou Rasklnikov.
Direta ou indiretamente, todo mundo j viveu isso. Do mesmo modo, todos os dramas do
conhecimento vivenciados pelos filsofos ao longo do tempo so possibilidades reais e
permanentes que podem retornar a qualquer momento. Eles retornam, evidentemente, dentro
de outra circunstncia, outra situao histrica, outro contexto cultural, mas, estruturalmente,
podem permanecer os mesmos.
Em primeira instncia, voc nunca deve ler livros de filosofia como teses com as quais voc vai
concordar ou discordar. Em primeiro lugar voc tem de entender que aquilo uma experincia
cognitiva, uma experincia intelectual humana que foi vivenciada por pessoas reais, numa outra
circunstncia, e que voc est tentando revivenciar. Voc pode at depois achar uma soluo
diferente, mas se voc no se imbuiu do problema, se voc no se deixou, por assim dizer,
embeber-se do problema, se voc no se identificou com o problema, voc no vai nem
entender do que o sujeito est falando. A primeira coisa que voc deve buscar numa leitura dos
livros de filosofia esta abertura, entendendo-os no como verdades ou mentiras que voc vai
proclamar ou impugnar, mas como expresses de uma busca humana, do esforo humano,
expresses de uma experincia humana. Se voc no aprender primeiro a absorver os dramas
concretos, humanos, muito menos voc vai compreender os dramas cognitivos. Por isso que
eu digo: primeiro, muita literatura de fico!
Voc tem de ler essa literatura no como literatura, ou seja, no como as l um estudante de
Letras, no como objetos de estudos, mas simplesmente como documentos da vida humana.
[Para esse fim], as obras no interessam tanto em si mesmas, enquanto textos, mas enquanto
depoimentos. Encar-las como textos, como estruturas etc., outro problema, que pode ser
tratado separadamente mais tarde e que tambm faz parte da formao intelectual, mas no
num primeiro momento. Este o primeiro bloco: o adestramento do imaginrio.
O adestramento do imaginrio pode prosseguir num estudo mais aprofundado da psicologia
tambm entendida no como disciplina teortica, como disciplina filosfica, como
disciplina cientfica em si mesma, mas como elemento auxiliar para a sua compreenso dos
seres humanos reais, seja nos seus dramas existenciais, seja nos seus conflitos de ordem
cognitiva. Mais tarde ns vamos ver um pouco disto a tambm.
O segundo bloco, que vem automaticamente com o primeiro, o seu adestramento na

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compreenso e uso da linguagem. Na mesma medida em que voc vai captando as sutilezas e
as nuances das vrias situaes humanas vivenciadas, voc tambm capta as sutilezas e as
nuances da linguagem, e no h limite s possibilidades de aperfeioamento, de ampliao e de
fortalecimento nisso. Claro que, conforme voc for lendo essas obras em tradues na sua
prpria lngua ou no original, voc pode ter algumas dificuldades de ordem tcnica, ento voc
vai ter alguns problemas especificamente lingusticos a resolver. So problemas tcnicos, mas
no para dar muita ateno a eles, para resolver rapidamente e passar adiante.
Esta ampliao da linguagem deve se voltar em primeiro lugar para aquilo que Benedetto
Croce considerava a funo imediata da obra literria, que a expresso da experincia
concreta. Passar para um segundo andar, da linguagem abstrata da filosofia e das cincias,
quando voc [ainda] no capaz [0:20] de ter alguma expressividade na maneira de nomear e
descrever a experincia concreta, pode lhe causar uma leso intelectual da qual voc nunca mais
se recupere. Tudo aquilo que est registrado na linguagem genrica da filosofia corresponde a
experincias intelectuais e existenciais concretas e, se voc no capaz de refaz-las
imaginativamente, voc jamais vai saber do que o sujeito est falando.
Por exemplo, se voc procurar num dicionrio de filosofia um termo qualquer que descreva
uma atitude ou uma corrente filosfica, como ceticismo ou gnosticismo, voc vai
encontrar uma definio esquemtica do que so essas escolas ou correntes ou atitudes
filosficas. Porm, essas escolas ou correntes no apareceram como posies filosficas
prontas, mas como resultados, como a expresso de dramas intelectuais cognitivos longamente
vividos. H toda uma situao humana por baixo daquilo. Se quando voc ouve ou l esta
palavra, a evocao que voc faz simplesmente a de um conceito abstrato e no de todo o
drama apreendido compactamente num relance, ento voc no sabe do que est falando.
Tendo isto em conta, quando estamos lendo um livro ou ouvindo um sujeito falar de filosofia,
ns podemos freqentemente saber se estamos lidando com um charlato ou com algum que
sabe do que est falando. O sujeito que lida somente com os conceitos abstratos sem ter o
lastro experiencial direto um imitador, um papagaio. Ele lida somente com o universo de
palavras para uso acadmico, mas no compreende as realidades que esto ali envolvidas.
como uma criana que ouve uma nova palavra e a imita, sem saber exatamente qual o
contexto no qual aquilo cabe ou no cabe.
A pessoa totalmente leiga e despreparada em filosofia s vezes no percebe a diferena, porque
o imitador pode usar todos os termos certinhos, pode fazer raciocnios muito bem
arrumadinhos. S com um pouco de experincia que se percebe se o sujeito tem aquele lastro
imaginativo que coloca diante dele a realidade dos dramas intelectuais ali vividos.
Este aprimoramento da linguagem o irmo siams do adestramento do imaginrio. As duas
coisas tm que vir juntas.
Ento surgem as perguntas: Para que voc est fazendo tudo isso? Qual o seu objetivo?
Voc est lendo tudo isso s porque voc tem uma curiosidade? porque voc tem um
projeto profissional a atender? Voc est fazendo tudo isso porque voc quer fazer uma tese de
mestrado? Enfim: Qual o seu objetivo?

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Nisso entra o terceiro bloco que se anuncia como o exerccio que ns fizemos logo no comeo,
o exerccio do necrolgio. Quem voc quer ser? Qual o objetivo da sua vida? Para que voc
est se esforando e onde entram, dentro desse seu plano, todos esses elementos que ns
estamos colhendo nessa formao literria e filosfica?
O seu adestramento para a vida intelectual , no fim das contas, uma arma ou um instrumento
para um objetivo a ser realizado existencialmente, na sua vida efetiva. No confunda vida
efetiva com vida profissional. Voc no pode esquecer que vida profissional uma coisa
abstrativa, ela um aspecto da sua vida e no a vida concreta. A vida profissional apenas um
papel que voc desempenha em certos lugares e circunstncias, perante certas pessoas, mas que
voc no pode desempenhar em outros lugares, perante outras pessoas. Por exemplo, se voc
professor de filosofia, voc desempenha essa atividade perante seus alunos etc.; mas voc no
pode desempenh-la perante o caixa do supermercado, porque ele no vai entender a situao.
Se voc tem uma dvida e o sujeito vem cobrar a dvida na sua porta, no se trata de voc
discutir filosofia com ele, uma situao totalmente diferente.
A vida profissional no a sua vida real, embora ela seja hoje em dia quase um fetiche, uma
coisa que absorve as pessoas ao ponto de elas imaginarem que aquilo tudo. Ela apenas um
componente de uma vida real, um componente abstrativo dentro de um conjunto. No
exerccio do necrolgio eu insisti que a narrativa fosse feita com relao a uma pessoa real e
no apenas a uma carreira. No comeo eu fazia como se fosse um necrolgio de jornal, com
um reprter escrevendo. Pratiquei isso durante algum tempo. Funcionava, claro, porm o
fato de ser um reprter escrevendo sobre um personagem pblico j criava um vis e um
critrio seletivo, onde somente os fatos da vida profissional e pblica interessavam, e no era
esse o objetivo do exerccio. Por isso que eu mudei a formulao do exerccio para uma
pessoa amiga, uma pessoa que conhece o fulano e est escrevendo sobre ele. como se fosse
uma narrativa ficcional mesmo, que no se refere somente ao currculo profissional, mas ao
trajeto real percorrido por uma pessoa de carne e osso, no planeta Terra.
Este senso de quem voc quer ser como pessoa o que vai dar o critrio unificante para voc
contar a sua prpria vida. A nossa vida, como define Ortega y Gasset, "es lo que hacemos y lo que
nos pasa" aquilo que fazemos e aquilo que nos acontece.
Aquilo que ns fazemos freqentemente um amlgama de atos inconexos nascidos de
impulsos momentneos, que no tm nada a ver um com o outro, impulsos que, por sua vez,
podem ter sido inspirados para ns desde fora, por imitao, imitao inconsciente, ou at por
osmose, e assim por diante. E aquilo que nos acontece vem de uma multiplicidade de fontes
no unificadas. Por exemplo, se voc perdeu o emprego e, na hora em que voc vai buscar o
seu carro na garagem para ir para casa, na sua nova condio de desempregado, voc descobre
que algum amassou o seu carro, esses dois fatos deplorveis no vieram da mesma fonte. O
sujeito que demitiu voc no o mesmo que amassou o carro. So linhas causais
completamente independentes que coincidiram. (Veja que essa palavra coincidncia significa
aquilo que incide, aquilo que cai ali. Duas linhas co-incidiram: incidiram no mesmo
ponto, mas so linhas independentes).

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A nossa vida, por ser composta de atos (conexos e inconexos) e acontecimentos que sobrevm
a ns (conexos e inconexos), muito difcil de contar, caso no haja um padro unificante.
Esse padro unificante dado exatamente por esse ideal ou meta. A vida vista sob esse aspecto
deixa de ser apenas um aglomerado de fatos e se torna um drama unificado. To unificado
quanto o drama de Otelo, de Hamlet ou de Napoleo Bonaparte. Ela passa a ser a sucesso
[0:30] dos esforos para dar unidade e sentido quilo que nos chegou inconexo e
freqentemente sem sentido.
Este senso da meta ideal se torna o padro e o critrio da sua autoconscincia, ou seja, voc
comea a medir e a articular tudo como se fosse exatamente aquilo no qual voc est tentando
tornar a sua vida: um trajeto que tem um sentido e que se unifica na medida em que busca esse
sentido. claro que no porque voc determinou um sentido ou uma meta que tudo passa a
lhe acontecer coerentemente. Ao contrrio: os fatos continuam sobrevindo de fontes inconexas
e os seus prprios atos continuam to inconexos quanto antes. voc que vai tentar conectlos agora.
E note bem: quando eu digo conect-los (conectar inclusive os acontecimentos que vm de
fora), no estou querendo dizer para voc criar um mito da sua prpria existncia no qual voc
veja todos os fatos que lhe sobrevm como se fossem mandados por uma providncia divina
ou pelos superiores desconhecidos manicos para lhe criar obstculos ou dificuldades, no
a coisa continua vindo de maneira casual e inconexa. Quer dizer, voc no vai criar um mito
unificante, no isso que eu estou falando. Voc que vai tentar unificar o trajeto pela
maneira pela qual voc reage a esses fatos inconexos. Muitos desses fatos inconexos podem vir
como obstculos ou como elementos dispersantes para a realizao da sua vocao ou meta.
Mas voc pode, em seguida, reaproveit-los, tornando-os parte da sua biografia e
aproveitando-os como oportunidades para voc desenvolver certas qualidades ou certas
habilidades que podem mais tarde ser necessrias para a realizao da sua vocao.
Num primeiro momento, voc tem o seu objetivo, a sua meta e parece que tudo est contra,
ou que tudo indiferente e frio, quer dizer, o mundo, a realidade, est pouco se lixando para
os seus objetivos, o "eu contra o mundo". E ento voc cria aquele problema do Orgenes
Lessa em O Feijo e o Sonho: eu tenho um sonho, mas eu tenho que botar o feijo na mesa.
Esta a maneira apenas inicial e primria de colocar os problemas, porque a sua personalidade
real no dada s pela sua meta ou objetivo e nem s pela sua reao s situaes imediatas,
mas pela tenso entre as duas coisas. A maneira pela qual voc absorve essas circunstncias
mesmo adversas e as torna parte da sua biografia que vai determinar quem voc
efetivamente.
Na sociedade brasileira todo mundo coloca um abismo entre os objetivos pessoais e a situao
real. A situao material vista sempre como uma coisa opressiva e deprimente, uma oposio
irredutvel. Isso faz parte da cultura brasileira. O problema de O Feijo e o Sonho permanente
na vida de todos vocs, independentemente de serem pobres ou ricos. s vezes o rico v esse
problema como sendo ainda mais incompatvel e antagnico do que o pobre, quer dizer, no
tem nada a ver com a classe social qual voc pertence, este um hbito cultural que se
impregnou nas mentes de todas as classes, todo mundo enxerga a coisa assim.

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Mas esta apenas uma maneira primria, apenas o primeiro sinal de que existe uma meta e de
que existe uma circunstncia. Como diria Ortega y Gasset "yo soy yo y mis circunstancias" eu
sou aquele que eu quero ser no futuro, eu sou o meu sonho, o meu objetivo; j a minha
circunstncia esse conjunto de dificuldades, de problemas e de solicitaes dispersantes. Essa
apenas a primeira maneira de se colocar a coisa. Ortega y Gasset complementa essa frase, "yo
soy yo y mis circunstancias" com a segunda regra, que : la reabsorcion de las circunstancias s el
destino concreto del hombre (a reabsoro das circunstncias o destino concreto do homem),
quer dizer, voc vai reabsorver a circunstncia como parte da sua vocao. Por isso mesmo
voc deve encarar cada obstculo e cada dificuldade como um elemento fundamental para a
formao do seu carter. Goethe dizia que o talento se desenvolve na solido, no estudo, mas o
carter se desenvolve na agitao do mundo. Na agitao do mundo necessrio que cada
dificuldade, cada obstculo, cada elemento dispersante seja recebido e incorporado com o
mximo de boa vontade. voc que vai transformar o elemento antagnico em elemento
favorvel. O que quer que se oponha realizao da sua vocao est lhe oferecendo uma
oportunidade para fortalecer o seu carter. At as dificuldades so preciosas.
Vamos supor que voc tenha um papai e uma mame que lhe dem mesada e o protejam de
todos os elementos adversos e de todas as solicitaes dispersantes: Meu filho, voc um
grande gnio, ento ns vamos te dar uma mesada e voc fica em casa s estudando e
desenvolvendo os seus talentos. Voc pode at desenvolver o seu talento, mas o seu carter
vai ficar muito fraco. E se o seu carter ficar muito fraco, isso significa que o quer que voc
diga no vai ter consistncia. Ou seja, s vezes aquilo que parece facilitar a realizao da sua
vocao , de fato, um elemento corruptor. bom estudar a vida de pessoas que nada tiveram
a seu favor e que realizaram alguma coisa grande. Eu sugiro, por exemplo, a leitura dos livros
de Lon Bloy. Lon Bloy era um escritor catlico, francs do sculo XIX que tinha o mau
hbito de dizer as coisas exatamente como ele as via ou pensava, e isto criou tantas inimizades
e tanto antagonismo que ele foi rejeitado em todos os meios. Quando ele conseguia um editor
no pagavam, no davam emprego para o cara. Esse sujeito viveu na misria, chegou
mendicncia. A vida dele foi uma sucesso de frustraes, de portas fechadas, de traies, de
excluses e mesmo assim o sujeito escreveu livros maravilhosos. Ele fez dessa extrema
dificuldade, dessa sucesso de misrias e antagonismos a base do seu carter. A resistncia a
isso se tornou para ele mais do que uma vocao, mas uma espcie de obrigao religiosa. Ele
encarava tudo aquilo como a cruz de Cristo que ele tinha de carregar. A certo ponto ele diz
que desistiu no somente de ter uma vida melhor, mas at mesmo de se queixar. Veja como a
circunstncia extremamente antagnica pode ser absorvida e transformada no material da
realizao da vocao. Quanto mais voc for capaz de absorver e trabalhar esta tenso, mais
voc fortalecer o seu carter e mais contedo humano comear a ter todo o seu trabalho
intelectual.
Com o tempo, vocs vo observar e esse um dado de experincia que eu comprovei
inmeras vezes que o valor e a importncia das grandes obras da inteligncia humana vm
sobretudo dessa densidade e realidade da experincia humana que est colocada ali, e no tanto
da amplitude dos estudos abrangidos. Os estudos s valem se voc for capaz de absorver a
experincia humana do outro, por trs daquilo que voc l e estuda. Mas como que voc vai
absorver a experincia humana do outro se voc no tem sequer a sua prpria? Se voc se
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preserva da experincia humana? Se voc se esconde debaixo da saia da mame ou da mesada
paga pelo papai? Isso no possvel e no tem nada a ver com a quantidade de dinheiro que
voc tem.
A vida de Goethe foi exatamente oposta de Len Bloy. Ele foi um sujeito que sempre foi
ajudado, sempre teve sorte, sempre foi aplaudido, amado, protegido e voc v que foi
exatamente a mesma coisa. Goethe desempenhou vrios cargos administrativos e polticos aos
quais ele era solicitado, ao longo da vida. Ele encarava aquilo como uma obrigao para o
aprimoramento do seu carter, embora ele no tivesse a necessidade econmica daquilo. Ele
sacrificava horas que ele poderia dedicar sua criao potica tratando de assuntos
diplomticos, administrativos, polticos, que tinham para ele a funo de uma espcie de dever
cvico. Ele realmente se sobrecarregava de tarefas, quer dizer, as dificuldades no o
procuraram, ele as procurou porque ele as aceitou como um dever cujo cumprimento fortalecia
o seu carter e dava densidade ao que ele estava fazendo.
Voc pega o pobre e o rico, o infeliz e o afortunado, o homem marginalizado, reduzido
mendicncia, e o filhinho de papai colocado nos mais altos postos da sociedade e voc v que
exatamente a mesma coisa, porque so dois homens de gnio e de extrema seriedade na
realizao da sua vocao. Quer voc tenha todos os recursos, quer no, o problema ser
exatamente o mesmo. Esse o terceiro bloco. Ento, repetindo:
(a) Primeiro bloco: adestramento do imaginrio;
(b) Segundo bloco: enriquecimento e apropriao da linguagem;
(c) Terceiro bloco: senso do ideal e o adestramento da autoconscincia.
Ao longo de todo esse trajeto a coisa mais importante admitir qual a situao real a cada
momento, qual a equao que voc est vivendo e ser capaz de declarar para si mesmo e para
Deus o que est acontecendo e qual o problema. Qualquer que seja a circunstncia, a maior
parte das dificuldades no vem do mundo externo. Jamais. Isto impossvel. A maior parte das
dificuldades vem dos nossos prprios antagonismos internos e dos nossos prprios vcios,
fraquezas, defeitos etc. Elas vm sobretudo de uma fonte de onde voc menos espera.
Recebi vrias cartas essa semana sobre essa questo do autoconhecimento. Quando as pessoas
falam em autoconhecimento, geralmente elas querem desenhar a si prprias como um
personagem e saber quem elas so, como elas sabem quem foi Napoleo Bonaparte, Julio
Csar, Goethe ou Shakespeare. Ou seja, querem uma imagem. A luta pela auto-imagem o
contrrio do que eu estou entendendo como autoconhecimento.
A auto-imagem uma armadilha, uma ratoeira, porque quando voc a cria, voc cria um
padro de auto-julgamento e um discurso de acusao e defesa baseado nas qualidades que
voc desejaria ter e nos defeitos que voc acha que tem. Esse discurso interior de acusao e
defesa vai comer horas e uma energia preciosa da sua mente. O ideal cria o seu cdigo penal,
ele j vem com um monte de acusaes e penalidades. Aquele que voc ou foi realmente (e
que , ento, o ru) por um lado se acusa e por outro lado se defende.
Ora, h duas coisas que voc realmente: algum que num dia morre e que tem uma histria

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que, uma vez morto, no pode mudar mais essa a sua biografia. Mas enquanto voc est
vivo, voc no a sua biografia, voc a sua conscincia. A conscincia aquela que est
tentando tornar-se algo com os recursos internos e externos que a vida lhe deu. Se a
conscincia s existe nesta luta, ela no tem uma forma determinada ela est constantemente
adquirindo novas formas, ampliando a sua prpria e absorvendo as anteriores. Ento ela no
tem imagem. como se voc fosse apenas um certo foco de luz que ilumina o que h de
obscuro em torno e dentro de voc. Esta conscincia, este eu operante no tem forma,
imagem e histria, porque a histria dele est mudando, ele est fazendo a histria agora
mesmo, ento ele no pode se descrever a si mesmo como a gente descreve um personagem ou
como se descreve uma pessoa que ns conhecemos. Tampouco se pode descrev-lo atravs de
qualidades que ele se atribui, como eu sou preguioso, ou eu sou trabalhador, ou eu sou
corajoso, ou eu sou fraco, eu sou forte porque tudo isso so apenas elementos que
esto em permanente transmutao. Nenhuma dessas qualidades se incorpora a voc
definitivamente. Alm do que, se voc quer se conhecer atravs do perfil das suas qualidades
[ou defeitos] voc est se prendendo dentro de uma ratoeira. A luta pela auto-imagem o
contrrio da luta pelo conhecimento.
O que voc? Voc aquele que fala com Deus. Existe o observador onisciente, que Deus.
Ele sabe e o conhece muito melhor que voc mesmo e na hora em que voc fala com Ele, voc
sabe que o que quer que voc diga falso s parcialmente verdadeiro, no exato.
Conhecimento exato de voc s Ele pode ter, porque Ele j sabe qual o fim da sua vida e
voc no. Ento, Ele pode dizer: voc preguioso, ou voc ladro, ou voc viado
ou voc no sei-o-qu. Ele pode dizer, voc no pode. Tudo o que voc diz de si prprio
so imagens provisrias, que se colarem em voc de maneira definitiva, voc est lascado.
Quando a auto-imagem das pessoas se dissolve, [0:50] e sobra somente esse ncleo de
conscincia, elas pensam que elas ficaram malucas, porque pensam que j no se conhecem
mais. No! Era antes que voc no se conhecia, agora voc sabe quem voc efetivamente :
voc somente esta conscincia. Quando chegar esse momento, voc no se preocupa mais
com voc. Voc se preocupa somente com os elementos objetivos e reais e com o seu dever, o
dever que voc tem a cumprir, com o que voc tem a fazer. Voc passa da auto-contemplao
passiva, viciosa, a uma auto-criao permanente. Voc passa a uma atividade do eu. Agora
voc no mais um retrato, voc uma atividade, voc uma ao. E a voc comeou a se
conhecer efetivamente, porque Deus criou voc para voc ser assim.
[queda da transmisso]

Esses so os trs primeiros blocos: (a) o adestramento do imaginrio; (b) o enriquecimento da


linguagem e (c) o senso do ideal e o adestramento da autoconscincia. O quarto bloco a
aquisio das ferramentas da investigao, da pesquisa erudita. De todos esses blocos
mencionados at agora, o nico que entra um pouco no ensino universitrio tal como
atualmente acessvel no Brasil, esse quarto, se bem que fornecido de maneira extremamente
deficiente. Ele um instrumento necessrio para voc adquirir a documentao das questes
que lhe interessam, como foi mencionado no artigo Quem filsofo e quem no [Dirio
do Comrcio].
Existe uma infinidade de bons livros nos quais voc pode adquirir esse treinamento. Porm,

11
voc vai ter sempre que adequar-se s condies do momento em que voc vive e do pas em
que voc est. Um livro que eu recomendo muito The Modern Researcher, de Jacques Barzun,
publicado pela Harcourt Brace, de Nova Iorque. Desde logo, a investigao em filosofia e
histria da filosofia segue de muito perto as tcnicas e mtodos da investigao histrica em
geral. O que significa que qualquer livro que voc leia sobre mtodos e tcnicas da Histria
ser extremamente til. H dois excelentes livros sobre isso no Brasil: Teoria da Histria do
Brasil e A Pesquisa Histrica no Brasil de Jos Honrio Rodrigues. So livros altamente
recomendveis para isso.
O esprito geral da investigao o de adquirir o mximo de documentos possveis sobre
qualquer assunto que lhe interesse e depois ser capaz de ler, interpretar e relacionar esses
documentos de alguma maneira. Eu no vou me prolongar muito sobre este aspecto de como
trabalhar esses documentos internamente, porque eu j escrevi uma apostila sobre isso
chamada Problemas de Mtodo nas Cincias Sociais. Embora se chame cincias sociais, tambm
serve para o que ns estamos fazendo aqui. Ns iremos falar mais sobre isso adiante. Qualquer
que seja o assunto que se esteja investigando ou estudando, h que se proceder como um
historiador: como um historiador da filosofia ou das idias. Esta a maneira de ter acesso aos
documentos.
No artigo Quem filsofo e quem no , eu disse para voc definir a questo que lhe
interessa, em seguida procurar se munir de toda a documentao necessria e depois ir lendo
aquele material articulando as vrias hipteses, posies e alternativas, como se fosse uma
teoria nica, ou seja, compor a estrutura do problema, a partir da histria do problema. Um
exemplo majestoso de como se faz isso o livro de Joseph Marchal, Le Point de Dpart de la
Mtaphysique (O Ponto de Partida da Metafsica). Esse livro foi muito usado pelo Padre
Ladusns no curso que eu assisti com ele no Conjunto de Pesquisa Filosfica da PUC do Rio
de Janeiro. Um livro altamente recomendvel. A vantagem que esse livro oferece esta:
praticamente todos os filsofos que investigaram o que quer que seja seguiram, mais ou
menos, este mesmo preceito: obter o conhecimento da evoluo do problema e das
complexidades que foram se acrescentando discusso desde os primeiros que tocaram no
assunto, e, a partir da, desenvolver as suas prprias perspectivas. Isso no quer dizer que todos
reproduzam esse trajeto da pesquisa ao expor suas prprias investigaes e concluses. Eles
podem ter feito a pesquisa assim, mas podem no tratar o assunto de maneira histrica e sim
sistemtica, ensastica, ou de qualquer outra maneira, de modo que o procedimento
investigativo fique por trs do livro e no transparea. Isso o que acontece em geral.
Quando falo em "exposio histrica", isso no deve ser tomado muito ao p da letra, porque
toda exposio histrica da investigao de um problema ter uma infinidade de linhas
acidentais que podem se desviar muito do problema que foi colocado de incio. Pode haver
tantas variveis a ponto de voc perder-se. Se for contada a histria, tal como ela efetivamente
se passou, com todos os seus passos, o foco vai para a narrativa histrica e o problema
afastado. A perspectiva de que falo no a do historiador propriamente dito. Os recursos do
historiador so utilizados, mas o objetivo no o mesmo, pois no se traa a histria do
problema em todos os seus detalhes, mas apenas naqueles pontos da evoluo que interessam
formulao atual que se queira fazer. H a um critrio seletivo que no o do historiador:
um critrio filosfico. Este livro do Joseph Marchal (que no um livro, mas a transcrio de

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um curso) fornece exatamente esse tipo de exposio.
Ele coloca um problema inicialmente, que ele chama de afirmao metafsica daqui a
pouco vamos ver o que isso , e v como esse problema foi evoluindo ao longo dos tempos,
no em todos os detalhes da narrativa, mas somente nos pontos que interessam para a
colocao que ele quer fazer do problema. Esse livro um modelo do mtodo que eu
mencionei no artigo Quem filsofo e quem no , ele foi seguido por todos os filsofos
que estudaram qualquer coisa, desde Aristteles. Aristteles j dizia que ns tnhamos que
comear pela investigao das opinies dos sbios. To logo ns temos uma formulao do
problema, ns temos que saber o que os sbios j disseram a respeito. Quando ele diz os
sbios, ele quer dizer que no toda e qualquer opinio que interessa, mas apenas a opinio j
qualificada, ou seja, a opinio que j foi trabalhada e onde os problemas mais bsicos e
elementares j foram tratados. Aristteles j d esse critrio seletivo. Isso foi seguido por todos
os filsofos. O livro do Marchal se distingue porque o texto e a ordem do livro reproduzem
exatamente a ordem da pesquisa no como ele a fez, mas a ordem histrica ideal. Ele vai
expondo, por exemplo, as doutrinas dos cticos gregos (os primeiros que colocaram o
problema da validade do conhecimento) e as discute luz do que ele j sabe atualmente.
Quando ele passa para a discusso na Idade Mdia, os filsofos escolsticos etc., novas
complexidades vo se acrescentando e a viso que ele tem dos cticos gregos tambm
enriquecida por esses novos dados e assim por diante. Voc tem uma imagem muito clara da
estrutura intelectual da investigao, no da estrutura fsica. Ele no est contando como ele
fez a investigao, mas a ordem histrico-lgica da investigao est dada de maneira muito
clara.
Voc no precisa se preocupar em ler este livro agora, porque ns vamos l-lo mais tarde,
com bastante ateno. Muito provavelmente eu mesmo vou traduzir os vrios captulos e ns
vamos ler juntos. Daqui seis meses, um ano, no sei quando, mas vamos fazer isso. No se
preocupem muito com esse livro, porque vocs recebero o texto traduzido, quando for o
momento para isso. Curiosamente, esse livro dificlimo de achar, voc vai pagar os olhos da
cara. Eu s o tinha numa cpia que eu tirei na biblioteca do Padre Ladusns, h vinte anos.
Mas a cpia estava meio apagada e no dava para fazer uma cpia da cpia, eu precisava de um
original. So quatro volumes e eu s consegui o livro inteiro agora, pela primeira vez, pagando
os tubos. Agora d para fazer uma cpia e talvez at dar para os alunos, mas o ideal traduzir
o livro e ir incorporando esse texto aos documentos do nosso seminrio. Esse livro do Joseph
Marchal faz uma espcie de ponte entre o quarto e quinto bloco. O quarto bloco a
documentao, a tcnica do historiador, e o quinto bloco a tcnica filosfica propriamente
dita. A tcnica filosfica o assunto deste curso, e se assenta nesses quatro pilares. Se voc no
tem esses quatro, voc nunca vai entender exatamente o que a tcnica filosfica. Um
verdadeiro filsofo, quando trata de um assunto qualquer, utiliza para isso toda a riqueza de
seu imaginrio incorporando todos os filsofos que ele leu sobre o assunto como personagens
do seu drama interior. essa densidade da discusso interior que vai marc-lo e distingui-lo
como um filsofo que merece ateno e no como um boboca que est apenas repetindo
argumentos ou frases. Existem muitos desses bobocas que so muito inteligentes, muito
preparados, de certo modo eles apenas no so filsofos. Eles no sabem se colocar
filosoficamente um problema. Colocar-se filosoficamente um problema entrar no problema
com tudo; aquele assunto para voc mortalmente srio e toda a sua pessoa e existncia estar
[0:10]

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em jogo. No um problema que voc tem de resolver para sua tese de mestrado. um
problema que voc tem de resolver para sua orientao na vida, at para a salvao de sua
alma, como se a salvao de sua alma estivesse em jogo. Em segundo lugar, o uso que o
filsofo faz da linguagem mostra, como em filigrana [fios entreleados; trama; visvel contra a
luz], todo este aporte memorativo e imaginrio que est por trs da coisa e que a substncia
da vida intelectual dele. A linguagem dele tem de mostrar isso. Quanto mais tcnica for essa
linguagem, mais esta riqueza vai transparecer.
No Rio de Janeiro, quase quinze anos atrs, eu dei um curso sobre as Investigaes Lgicas de
Edmund Husserl. Ns temos uma transcrio desse curso, mas est muito ruim. At hoje
estou esperando ter uma chance de consert-la, para poder public-la e coloc-la disposio
de vocs. Nesse curso ns fazamos um comentrio linear, lendo e buscando tudo o que estava
por trs de cada linha, que era: (a) As menes que Edmund Husserl tinha feito aos mesmos
tpicos, em outras obras dele; (b) Toda a carga semntica acumulada nesses termos tcnicos ao
longo de toda a histria de seu uso; (c) Todas as aluses implcitas que outros filsofos
disseram sobre o mesmo assunto. Os alunos tinham a ocasio de ver o que a densidade de
um pensamento filosfico. Frequentemente essa densidade escapa ao observador porque ele se
atm apenas aos termos tcnicos tais como esto dicionarizados, como so usados no contexto
universitrio, que corresponde sua experincia pessoal. A fica difcil distinguir o que
filosofia do que uma bela imitao. O Bruno Tolentino s vezes lia um poema e dizia: Isso
aqui uma bela imitao de poesia. O sujeito finge que poeta, mas no , e frequentemente
engana, porque tanto em poesia, quanto em filosofia, existe uma densidade de experincia que
est atrs. Do contrrio, existe apenas uma imitao de esquemas verbais e intelectuais
consagrados, que o sujeito no precisa compreender em profundidade para poder imitar e
manejar com uma certa habilidade, especialmente no Brasil, porque o brasileiro tem uma
capacidade mimtica fora do comum, um negcio incrvel!
Quando entrarmos na tcnica filosfica, vamos retomar aqui um assunto que eu comecei num
curso que eu dei no Paran, um comentrio linear do livro Manual de Metodologia Dialtica, de
Louis Lavelle, talvez o melhor livro j escrito sobre a tcnica filosfica no mundo. Outro livro
que ns vamos usar para isso Logique de la Philosophie, de Eric Weil. Tambm no precisa
preocupar-se em ler esses livros, porque ns vamos entregar o texto traduzido que ser usado
no comentrio em aula.
Esses so os cinco blocos:
(d) Adestramento do imaginrio;
(e) Enriquecimento e apropriao da linguagem;
(f) Senso do ideal e adestramento da autoconscincia;
(g) Aquisio das ferramentas da investigao erudita;
(h) A tcnica filosfica propriamente dita.
Como se fosse os quatro ps de uma mesa e o tampo, que a tcnica filosfica. A tcnica
filosfica a sntese dos esforos desenvolvidos ao longo de milnios para lanar alguma luz
sobre alguns problemas. A sucesso desses esforos tem de ser vista no como um fenmeno
histrico, mas como um drama que se desenrola em voc mesmo. Voc tem de revivenciar

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aqueles vrios esforos.
Na contraposio famosa dos pr-socrticos, Herclito descreve o mundo da realidade como se
fosse um fluxo permanente, onde nada o que , tudo est continuamente se transformando
em outra coisa. Ele dizia: Ns no nos banhamos duas vezes no mesmo rio e assim por
diante. Por outro lado, Parmnides descreve o mundo do ser como o absoluto e imutvel,
que est por trs de todas essas mutaes aparentes. Quase ao mesmo tempo, Zeno de Helia
desenvolve certos raciocnios que colocam em dvida a realidade do movimento e da
transformao. Ele dizia: A flecha que se desloca, a cada momento, est apenas no lugar onde
est; ou seja, como possvel dizer que ela se move se existe somente uma sucesso ilimitada
de momentos estticos? Zeno expe uma srie de objees lgicas realidade do movimento.
Ento ns temos esses trs personagens: (a) Herclito, que enfatiza a realidade absoluta e
universal do movimento e da transformao; (b) Parmnides, que enfatiza a permanncia
como sendo a nica realidade, rebaixando a mutao a um jogo de aparncias [0:20]; (c) E
Zeno, que coloca em dvida a realidade da prpria mutao.
No se pode imaginar trs idias mais diferentes. No entanto, cada um sabia o que o outro
estava falando, e ns podemos entender os trs. Isso significa que, com mutaes permanentes
ou sem mutaes permanentes, com o ser eterno ou sem o ser eterno, todos ns, considerados
no enquanto participantes desse debate, mas enquanto pessoas reais, existentes, sabemos nos
orientar no mundo da mutao e da permanncia. Ns sabemos distinguir o que muda e o que
permanece. Por exemplo, quando voc d um passo, voc sabe que absolutamente
fundamental que o cho permanea no mesmo lugar para que seu passo avance. Se o cho
avanasse junto com voc, seria como andar numa escada rolante funcionando em sentido
contrrio, como o Mr. Bean ou o Jerry Lewis: voc andaria, andaria e no sairia do mesmo
lugar. Na realidade da vida prtica, ns sabemos nos posicionar perante a permanncia e a
mudana. Ns tambm somos capazes de distinguir, na mudana, o que existe de real e o que
existe de aparncia, e sabemos distinguir as mudanas reais das mudanas aparentes. No que
ns saibamos disso: uma criana pequena j sabe! Porm, quando tentamos equacionar essas
coisas em termos racionais, ns topamos com dificuldades horrveis, e este um ponto bsico.
Vocs tm que meter nas suas cabeas desde logo uma coisa: o mundo da percepo real
infinitamente mais rico do que o mundo da razo humana.
Quando perguntaram para Santo Agostinho o que o tempo, ele respondeu: Quando no
me perguntam, eu sei; quando me perguntam, eu j no sei mais. O que ele quis dizer com
isso? Eu, como ser humano, efetivamente existente e real, sei me orientar quanto a essa
dimenso chamada tempo, mas eu no consigo equacion-la em termos racionalmente
aceitveis.
O seu aparato de percepo tem a perfeio da Obra Divina, pois ele nasceu com voc, j veio
pronto, foi Deus que fez. O mundo de seus pensamentos racionais uma estrutura que voc
est tentando criar, ento natural que, em comparao com o mundo da percepo, a razo
humana seja um negcio tosco, falvel, cheio de buracos.
Todo o esforo da filosofia ao longo dos tempos para tentar transferir ao mundo da razo
(aquilo que humanamente comunicvel, que pode ser discutido e falado entre os seres

15
humanos) uma parcela da riqueza e dignidade infinitas do mundo da percepo real. Quando
investigamos esse mundo da percepo, ns percebemos que sabemos muito mais coisas do
que sabemos que sabemos. Eu tenho insistido muito nisso nas minhas aulas. Se ns fossemos
reduzir o nosso saber aos dados de percepo que efetivamente chegam a ns, ns jamais
poderamos nos orientar no mundo. Nenhum de ns teve jamais a percepo do mundo
inteiro, ns s temos pedaos. Ora, se ns fossemos usar esses pedaos para compor
mentalmente a idia de um mundo, ns jamais o completaramos. Todos ns teramos vises
fragmentrias do mundo e estaramos permanentemente desorientados nesse quebra-cabeas e,
no entanto, isso no acontece. Todas as crianas pequenas sabem que esto no mesmo mundo
que as outras. Quem que as informou disso? Elas nunca viram um negcio chamado
mundo.
Desde que apareceu a crtica moderna do conhecimento, a partir do sculo XVIII, com David
Hume e depois Kant, criou-se entre muitos filsofos a idia de que tudo aquilo que no
absorvermos pelos sentidos criado mentalmente por ns. Quer dizer, existe o mundo da
natureza e o mundo da criao cultural. Segundo esses fulanos, a prpria idia de mundo
uma criao cultural nossa, e a prova que eles do que, s vezes, a imagem do mundo
diferente de poca para poca, de cultura para cultura. Mas o que acontece o seguinte: a
imagem do mundo, tal como aparece nas vrias culturas, criao cultural, mas isso no quer
dizer que a percepo do mundo seja tambm a mesma coisa. Essas criaes, afinal de contas,
so criaes lingsticas, feitas com a linguagem humana. Ou seja, o mesmo esforo de
Herclito e Parmnides para dizer algo. Esses sinais da imagem do mundo deixados pelas
civilizaes pretritas China, ndia, Egito etc. no so a viso que eles tinham do mundo,
mas apenas os smbolos nos quais eles condensaram essa viso. Ns no podemos entrar na
cabea deles para saber como eles viam, ns sabemos apenas o que eles conseguiram
transmitir, atravs de uma transmutao simblica da percepo.
Quando lemos os fragmentos de Herclito, Parmnides e Zeno de Helia, o que ns
captamos ali? O que eles perceberam, ou aquilo que eles foram capazes de dizer? O que eles
esto expressando o resultado da sua elaborao intelectual de uma percepo primitiva e esse
resultado deploravelmente mais pobre do que a percepo. Tanto que Zeno, Parmnides e
Herclito sabiam que estavam no mesmo mundo. Mas se eles estavam no mesmo mundo,
como que eles viam o mundo to diferente assim? Eles no o viam diferentemente, eles
apenas o expressaram e o trabalharam intelectualmente de maneira diferente, porque a razo
humana extremamente limitada em comparao com o mundo da percepo real. No mundo
da percepo real h mais conhecimento do que aquilo que ns efetivamente percebemos. Por
baixo do mundo das suas percepes, existe algo que eu chamo de conhecimento por
presena. aquilo que no foi percebido, mas que est embaixo do que foi percebido, e que
condio absolutamente necessria para que voc perceba todas as outras coisas. No que ele
no chegue sua conscincia ele sequer chega sua inconscincia. Ele simplesmente est ali:
o mundo no qual voc est. Tudo o que est no seu inconsciente limitado a voc, porque
veio ou da memria, ou de algum processo interno seu. Aquilo se passa dentro de voc de
algum modo. Mas durante esse tempo todo voc esteve num mundo real, voc parcela desse
mundo real, e tudo o que voc pensa toma este mundo real como um pressuposto e est
muito certo que o tome.

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medida que vai passando o tempo, as vrias tentativas de expresso da percepo do mundo,
sejam artsticas ou filosficas, tornam-se patrimnio cultural, elas adquirem uma espcie de
densidade bibliogrfica e cultural, por assim dizer, e so passadas como patrimnio. A
aquisio desse patrimnio pode ser uma experincia to pesada que ela encobre o
conhecimento do mundo real [0:30] a ponto de voc confundir o conhecimento efetivo do
mundo real com a sua representao simblica. Voc passa a acreditar que a vivncia imediata
que voc tem do mundo uma criao cultural mas, na verdade, ela a base sobre a qual
possvel haver criaes culturais.
Desde as ltimas dcadas apareceram uma srie de estudos sobre a comunicao no-verbal,
ressonncia mrfica etc., e isso tornou possvel a utilizao de uma linguagem cientfica e
filosfica para insinuar algo desse conhecimento por presena. Nesse sentido, todo o
trabalho de Antnio Damsio (apesar de confundir-se na terminologia), e sobretudo a obra de
Rupert Sheldrake so descobertas extremamente importantes, porque nos permitem expressar
na linguagem da razo algo que sempre esteve por baixo da experincia da razo, tornando
essa experincia possvel mas, ao mesmo tempo, sendo encoberto por ela.
Na aquisio da tcnica filosfica, vamos acrescentar esse elemento, que eu chamo de
conhecimento por presena, e que foi bastante negligenciado ao longo da histria da
filosofia. Ele sempre foi dado por pressuposto, mas nunca foi e nunca pde ser trabalhado
como hoje, graas a essas elaboraes cientficas mais recentes.
So esses os cinco blocos nos quais ns vamos trabalhar. Agora vou passar s perguntas:
Aluno: Em quais livros Goethe fala sobre essa tica do trabalho que o senhor comenta nas aulas?
Olavo: Ele fala disso no seu livro de memrias, Poesia e Verdade, e nas Conversaes com
Eckermann, escrito por seu secretrio, que teve a prudncia de anotar os dilogos que tinha
com Goethe nas conversaes do dia-a-dia e que eram jias. Existe uma traduo parcial das
Conversaes com Eckermann feita pelo nosso Mrio Ferreira dos Santos, publicada pela antiga
Editora Globo do Rio Grande do Sul que depois foi comprada pelas Organizaes Globo e
virou uma porcaria, mas a antiga Editora Globo era uma maravilha.
Aluno: Sou imensamente grato pelo o que o senhor est fazendo por aqueles que desejam formar um
verdadeiro carter no apenas intelectual, mas tambm moral. Outro dia vi em uma palestra de
filosofia na TV um antroplogo afirmando que todos ns temos conscincias fragmentrias, por causa
dos papis sociais que exercemos ()
Olavo: Tinha que perguntar para esse sujeito: Qual dos seus papis sociais est dizendo
isso? O senhor quer que eu acredite nisso ou apenas um papel social seu que o diz enquanto
outro papel social diz o contrrio? Claro que ns temos conscincias fragmentrias! evidente
que temos! Porm, ao mesmo tempo, temos uma fora unificante e a tenso entre os dois
que constitui a nossa vida real. Enfatizar qualquer desses dois lados fugir do problema,
porque qualquer pessoa que tente realizar algo na vida est tentando unificar o seu trajeto
existencial e, portanto, tambm a sua conscincia. Ora, se ela tenta unific-la porque ela tem
um impulso unificante e esse impulso justamente a unidade que ela tem. Ns temos a

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unidade no de uma forma fechada e acabada, mas a unidade de uma fora unificante que est
perpetuamente em luta, em conflito dialtico com os elementos dispersantes. Se voc se
imaginar como uma figura em bloco, inteiramente descritvel, como que representada em
mrmore, voc est fingindo. E se voc disser, como Gurdjieff, que voc no tem eu
nenhum, mas apenas uma coleo de euzinhos separados, voc tambm est falsificando, est
caricaturando. Voc consiste exatamente no conflito entre as duas coisas. De que adianta voc
dizer que voc no tem eu nenhum a um sujeito que no tem eu nenhum? Qual dos eus
dele que vai ouvir isto? Eu nunca fui discpulo do Gurdjieff, mas se ele me dissesse isso eu
perguntaria: A qual dos meus eus voc est falando isso? E qual dos seus eus est
dizendo isso? Para que voc possa dizer isso necessrio que voc tenha esse centro unificante,
o qual no pode se realizar inteiramente, porque a realizao dele a sua biografia. A sua
biografia s adquire forma no instante em que ela termina.
Por outro lado, se voc disser, como Raul Seixas, eu sou uma metamorfose ambulante
isto est certo! Mas note bem a frase dele. Ela quer dizer: eu sou alguma coisa, eu no sou
apenas os elementos dispersos da metamorfose, mas eu sou o personagem que vivencia a
metamorfose, ento eu estou me formando a mim mesmo como personagem unificado atravs
das minhas sucessivas transformaes. A estrutura real do eu humano uma estrutura
tensional. por isto que quando ns queremos representar um personagem, ns o
representamos como um drama. Por exemplo, ns conhecemos Dom Quixote, Otelo, Hamlet,
por qu? Porque temos apenas um retrato esttico deles? No. Um retrato esttico mostraria
apenas um momento deles, como se faz em pintura. A pintura no representa um personagem,
mas sim um momento, seno ns incorreramos naquela histria do sujeito que estava em um
museu portugus, onde tinha um esqueleto que dizia: esqueleto de Cames. Depois tinha
outro esqueletinho que dizia: esqueleto de Cames aos cinco anos de idade. A pintura e a
escultura s podem representar um momento, e no a personalidade. s vezes o pintor
consegue insinuar de longe algo da tenso interna, mas apenas a tenso remotamente
insinuada. A verdadeira representao do personagem no uma descrio, mas um drama. O
que Hamlet? a vida de Hamlet. O que Napoleo Bonaparte? a vida de Napoleo
Bonaparte. So vidas que j acabaram e que podem ser representadas como um drama
encerrado, portanto, que adquiriram uma forma. Mas o seu drama no est encerrado, para
encerr-lo voc teria de morrer agora mesmo.
Aluno: Qual a relao entre a questo da auto-imagem e o exerccio do necrolgio?
Olavo: O necrolgio a sua auto-imagem ideal, aquilo que voc tenta ser, portanto ele no
uma auto-imagem atual, ele est numa tenso com a auto-imagem atual. Esta imagem ideal,
por sua vez, mudar com o tempo, no em substncia, mas na tonalidade, nas qualificaes e,
com o tempo, por incrvel que parea, esta imagem ideal se empobrece. Quanto mais voc se
aproxima de realiz-la, mais ela se empobrece. S quem passou dos 60 anos de idade e tem
uma vida pelas costas que pode dizer isso. Alfred de Vigny dizia que uma grande vida um
projeto de juventude realizado na idade madura. Eu posso assegurar a vocs que o que eu
estou fazendo aqui exatamente o que eu planejei fazer na minha adolescncia. De certo
modo, o meu plano de vida, minha meta de vida, est sendo realizado agora, ele no mais
uma meta, no uma coisa que eu pretenda fazer no futuro, mas uma luta atual e efetiva.
Quando isto acontece, [0:40] o que voc est sendo agora no uma auto-imagem sua. A sua

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auto-imagem se empobrece porque voc j est pensando no lado de l, no aps a morte. Se
voc perguntar para mim o que eu desejo hoje, o que eu desejo ser, eu s quero o perdo
divino, s isso o que eu quero. Aquilo que eu queria ser eu j estou sendo, ento isso no
mais um objetivo, no mais uma meta, um dever atual que eu tenho. E o que voc quer j
uma outra coisa. por isso que esse necrolgio no a auto-imagem, ele , de certo modo,
um elemento antagnico auto-imagem. Voc vai ter de criar tenso, uma luta entre o que
voc quer ser e o que voc est sendo. Voc no pode transformar esta auto-imagem ideal num
tribunal para voc se acusar, porque isso no um tribunal, isso um projeto. Voc no tem a
obrigao de ser tudo aquilo agora, voc est indo para l e tem de descobrir os meios para
isso. Se voc pega o seu eu ideal e o transforma em um cdigo penal luz do qual voc vai
ser julgado, voc pra a realizao do projeto.
Algum me informa aqui que existe uma edio do livro do Joseph Marchal em espanhol, El
Punto de Partida de la Metafsica, Editorial Gredos, Madrid. Mas no necessrio comprar essa
edio, nem a edio francesa. Como so quatro volumes eu acho que tambm deve estar
custando os olhos da cara. Quando ns formos usar esse livro, vocs vo receber os captulos
traduzidos. No se preocupem com isso. Tambm disseram que tem uma edio completa em
italiano, no Google Books. Nem isso preciso, calma, vocs vo receber isso. No agora, mas
daqui seis meses, um ano. medida em que tivermos os captulos prontos, ns os colocamos
sua disposio.
Aluno: Como poderamos neutralizar questes astrolgicas que casualmente podem turvar nossa viso
em relao nossa atividade do necrolgio?
Olavo: As determinaes astrolgicas que, pelo menos eu, s conheo como uma hiptese
ainda muito mal descrita s podem pesar sobre o ser humano como pesam todas as demais
determinaes, como as genticas ou sociais etc., com a diferena de que, segundo a minha
hiptese note bem, eu no posso assegurar nada disso a esse fator astrolgico no
propriamente uma limitao, mas um elemento extremamente misterioso, onde alguns dos
traos estruturais constantes do indivduo aparecem ali retratados na figura planetria no
instante do seu nascimento, com uma nitidez muito impressionante. Esse um mero fato
emprico que ns podemos verificar, porm ns no sabemos se existe uma influncia
astrolgica ou se existe apenas uma correspondncia estrutural entre as duas coisas, como no
caso da ressonncia mrfica (onde voc no pode falar de influncia). Quando Rupert
Sheldrake diz: aqui no laboratrio tem um ratinho que descobriu a sada de um labirinto e,
no mesmo instante, em um laboratrio dez quilmetros adiante, um outro ratinho tambm
descobriu a sada do labirinto, um ratinho no influenciou o outro. Ns no sabemos se entre
os astros e os homens existe aquilo que dizia So Toms de Aquino: tudo o que se move na
Terra movido por Deus atravs do astros. A uma causa, uma influncia qualquer. Ns
no sabemos se existe uma influncia, se existe uma correspondncia estrutural, se existe uma
ressonncia mrfica. A respeito dessa questo astrolgica ns no sabemos nada! Nada!
Portanto, no tome os traos astrolgicos como coisas reais que esto pesando sobre a sua
vida. Tudo o que ns temos a respeito so hipteses. O nico fato que ns temos aquilo que
eu verifiquei na pesquisa que eu chamei de Astrocaracterologia: a existncia de uma
correspondncia estrutural ntida entre certos elementos de carter e a presena dos astros no
cu. Como se deu essa correspondncia? Qual o tipo que relao que existe? Ns no

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sabemos nada! Isso um abismo de perguntas, e um fato enormemente escandaloso, porque
ningum tem ainda os instrumentos para lidar com este problema. Ento as pessoas ou se
escandalizam, ou criam um culto em torno dessas coisas, ou elas negam tudo, quer dizer,
reagem como crianas em face do fenmeno. Tanto os astrlogos quanto os inimigos da
astrologia no sabem o que fazer com este fato. Sem contar um outro fator que interfere: esta
linguagem astrolgica, estes elementos astrolgicos, foram exaustivamente usados por
sociedades secretas, sociedades ocultistas, com a finalidade de ter influncia sobre os seres
humanos e de regular a seu modo o curso da Histria o Deus objetivo dos messinicos nos
quais eles acreditam. A quantidade de charlatanismo e mentira, de parte a parte, que existe
nisso a monstruosa!
Eu recomendo que voc no tome esse fator astrolgico como uma coisa real que est pesando
sobre voc, porque ns sequer sabemos se ela um fator em si ou se ela apenas um indicador
de outros fatores. A correspondncia astrolgica entre carter e a posio dos astros uma
coisa ntida, fcil de provar empiricamente. O Michel Gauquelin j deu a prova cabal disso.
Porm, ns no sabemos se existe um fator astrolgico pesando sobre voc, ou se o fator
astrolgico como se fosse um indicador. Por exemplo, se voc faz um eletrocardiograma, e l
mostra que voc tem um problema, no o eletrocardiograma que est lhe fazendo mal, ele
um indicador de um outro problema que no tem nada a ver com aquela mquina. Pode ser
que a tal influncia astral seja apenas isto, apenas um indicador de outras coisas o fato
que ns no sabemos. Ento no tomem este fato tem saturno na casa tal, e sol na casa tal
como sendo um fator real que pesa sobre voc. Ns no sabemos se um fator real, um
indicador ou qualquer outra coisa. A nossa ignorncia sobre isso imensurvel. Quando ns
no sabemos nem os rudimentos de como colocar um problema, ns tomamos posio a
esmo, e tentamos nos defender da nossa prpria ignorncia atravs da proclamao afirmativa
ou negativa de alguma coisa.
Todo o debate astrolgico, para mim, uma coleo de vexames. O sujeito proclama que tem
um conhecimento secreto, e quando voc vai ver, uma besta quadrada. Outro proclama que
nada daquilo existe, quando os fatos esto gritando o contrrio. Ou seja, a prudncia
recomenda no tomar os fatores astrolgicos como fatores reais, porque eles so apenas
objetos de uma investigao possvel.
Aluno: Li essa semana o texto Consideraes sobre o Seminrio de Filosofia e prestei bastante ateno
ao ponto em que o senhor discorre sobre a aquisio das tcnicas indispensveis para o exerccio da vida
intelectual, estabelecendo a importncia medular no trabalho das transcries. Por isso venho tentando
trabalh-las at o ponto de convert-las em exposies sistemticas e coerentes, porm isso trouxe tantos
problemas e revelou tantas dificuldades que me levaram quase ao desespero. Aqui est a minha
pergunta: a dificuldade na assimilao dos contedos um empecilho vida erudita? [0:50]
Olavo: Esta dificuldade e esses empecilhos so a vida erudita. Venc-los um por um,
meticulosamente, com toda a pacincia do mundo, a prpria vida erudita.
Quando se quer documentar um curso, tem-se uma gravao, onde aparece uma srie de
elementos estranhos ao contedo do que o sujeito est querendo transmitir. H rudos, lapsos
de linguagem do orador, interferncias da platia, o zumbido do mosquito, o defeito do

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gravador etc. Por outro lado, h uma srie de elementos faltantes, elementos que o expositor
deixou implcitos, ou que, embora sabendo perfeitamente a coisa, na hora no lhe ocorreu a
expresso verbal adequada, ou que ele simplesmente esqueceu-se de mencionar.
Em primeiro lugar, voc tem de saber o que quer documentar. Se voc quiser documentar
materialmente o que aconteceu no dia tal, ento voc vai ter que botar todos os zumbidos, os
defeitos do gravador etc. etc., como se faz, por exemplo, numa transcrio de grampo, na
polcia: voc tem de colocar todos os rudos etc., porque aquilo pode ter alguma importncia
para a investigao policial.
Se voc quiser documentar uma exposio dialtica, ento voc vai ter de, de certo modo,
complementar as partes faltantes e excluir as partes sobrantes. H vrios exemplos de como
isso foi feito. Por exemplo, as famosas lies sobre a Histria da Filosofia de Hegel, um livro
em trs volumes, absolutamente brilhante. Mas to brilhante quanto o texto foram os
camaradas que trabalharam as exposies. Naquele tempo no havia gravador, aquilo era
anotado mo, na hora, e havia vrias verses diferentes. Algum tinha de juntar aquilo de
uma forma coerente e que, alm de ser coerente em si mesma, fosse coerente com o que Hegel
dizia nos seus outros livros. No se avana mais de uma pgina por dia nisto a. Um trabalho
deste pode levar anos. Os textos finais dos The Collected Works, de Eric Voegelin, so
transcries de aulas. Levou dez anos, com muita gente trabalhando em cima, para que o
resultado fosse um texto cientificamente confivel.
Esta dificuldade no sua. A dificuldade da coisa mesma, e aprender a venc-la adestrar-se
num elemento importantssimo da vida erudita, que a criao do documento confivel. Eu
sugiro que voc exercite isso com esta prpria aula, porque, nesse caso, o expositor ainda est
vivo. Eu mesmo posso corrigir muita coisa, no s porque a transcrio est errada, mas
porque posso corrigir a mim prprio. Ns no temos isso, por exemplo, nas transcries do
Mrio Ferreira dos Santos, que, apesar de impressas, ainda continuam numa baguna
formidvel, ao ponto de s vezes se tornarem ininteligveis.
Aluno: Na maonaria afirma-se a necessidade de buscar algumas qualidades fundamentais ao
maom, representadas pelo tribunal: amor, vontade e inteligncia. Dentro da nossa busca de nos
tornarmos filsofos, h qualidades fundamentais que devemos perseguir?
Olavo: Estas mesmas trs. disto mesmo que ns estamos falando. Voc est vendo isto
dentro da simblica manica que constitui o elemento da sua vida, mas isso no vale s para
os maons, isso vale para todo mundo.
Aluno: No caso da literatura estrangeira, o processo de imitao do estilo dos autores tambm funciona
quando lidamos com tradues?
Olavo: At certo ponto, sim, porque impossvel voc fazer uma traduo apagando
completamente o estilo do autor, isso no existe. O que se preserva do estilo originrio do
autor , sobretudo, a construo das frases. Voc vai perder muita coisa na semntica das
palavras individuais, mas na construo em geral, estatisticamente falando, a estrutura das
frases permanece mais ou menos a mesma. Mesmo que se lide com uma lngua muito estranha,

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como o chins. Algumas vezes necessrio modificar a estrutura, mas estatisticamente, na
mdia, as frases continuaro tendo a mesma estrutura. na escolha do vocabulrio que no h
certeza nenhuma, porque procura-se equivalentes remotos, ento, imitando o escritor que voc
leu em traduo, no possvel imitar a semntica dele, mas a semntica do tradutor. Mas a
estrutura das frases ser certamente a mesma. Eu recomendo que voc trabalhe com autores da
sua prpria lngua, mas nada impede que voc se exercite escrevendo em outra lngua. muito
bom, alis. Eu, por exemplo, quando escrevo alguns artigos em ingls, levo dez vezes o tempo
de escrever um artigo em portugus, porque no h aquela disponibilidade do vocabulrio
automatizado, que voc tem da sua prpria lngua. No h e no haver jamais. Por exemplo,
a lngua me de Joseph Conrad era o polons, depois ele aprendeu bastante francs, e s
depois dos trinta anos de idade que ele aprendeu ingls. Os elementos poloneses eu no sei
identificar, porque eu no sei uma palavra em polons, mas possvel identificar os elementos
franceses, ou seja, ele continua usando uma semntica francesa at o fim da vida. Eu acho um
exerccio muito interessante voc imitar o sujeito escrevendo na prpria lngua dele. muito
mais difcil, claro, mas vale a pena.
Aluno: genuno o interesse em determinado assunto primeiro dentro do aspecto de auto-ajuda e
conhecimentos pessoais e somente depois disso como exerccio vocacional, profissional?
Olavo: Tem de ser assim. Se a coisa no tem um interesse existencial para voc, ento o
interesse erudito ser somente superficial e estereotipado, ser copiado. Voc tem de partir de
um interesse existencial real, uma coisa que tem carne e osso, para depois voc transmut-la
numa colocao acadmica.
Aluno: O limite da imaginao, no da linguagem, coincide com o limite do possvel?
Olavo: No, de jeito nenhum. O que ns chamamos de possvel o que no fundo ns
chamamos de mundo real, o contexto de realidade onde voc est.
Herclito e Parmnides, por exemplo, descreveram de maneira muito antagnica o mesmo
mundo no qual os dois viviam. O prprio Herclito afirmou o seguinte: os homens
acordados esto todos no mesmo mundo, quando eles dormem, vo cada um para o seu
mundo. claro que Herclito e Parmnides estavam acordados, e claro que estavam no
mesmo mundo, porm, suas elaboraes racionais so muito toscas em funo da experincia
real que eles tinham do mundo. por isso que suas descries saem antagnicas. Mas elas tm
de ter um fundo comum, derivado do prprio mundo real onde eles esto. Se a razo
limitada porque a imaginao limitada. Quer dizer, a imaginao deles enfatizou certos
aspectos e deprimiu outros, sumiu com outros.
Afinal de contas, no basta voc imaginar. Voc pode imaginar muita coisa, mas voc
consegue imaginar aquilo de novo? Voc consegue lembrar aquilo que voc imaginou? Por
exemplo, quando voc tenta lembrar um sonho: Quem foi que criou o sonho? Foi voc
mesmo, a sua prpria imaginao. Mas quando voc tenta reimaginar voc j no imagina do
mesmo jeito, ou seja, a sua imaginao no tem poder nem sobre a sua prpria imaginao.
[1:00]

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No mundo moderno, a tendncia as pessoas darem muita ateno ao seu prprio
pensamento, sua prpria imaginao, sua prpria memria e tentar dominar o conjunto
daquilo. Isto como voc tentar pegar gua com a mo, tentar pegar ar com a mo. Na maior
parte dos casos voc tem de deixar que a realidade diga as coisas pela sua boca. Isto o que
est na Bblia: No se preocupe com o que voc vai dizer na frente do juz, o Esprito Santo
te inspirar as palavras.
O desejo que ns temos de nos consolidar numa auto-imagem tambm tem algo a ver com o
desejo que ns temos de expressar perfeitamente o mundo dos nossos pensamentos. No isso
que ns devemos fazer. Tudo o que ns dizemos, se perde. Aquilo que passou por voc foi
embora, voc no vai ter mais aquilo, voc vai ter outra coisa melhor. Porque tudo o que passa
por nossa vida se desfaz se desfaz em p. Ns estamos continuamente morrendo. Isto
uma realidade.
Porm, quando voc considera este fluxo de impermanncias na escala da eternidade, voc
percebe que, nessa escala, nada pode se perder, porque a eternidade contm tudo aquilo que
est dentro do ser e do possvel, e tudo aquilo que entrou no mundo do ser, ainda que por um
instante infinitesimal, no pode retornar ao no-ser. Aquilo pode cessar, na escala do tempo,
mas no pode se tornar um nada, porque o nada nunca foi nada. Ns dizemos que as coisas
retornam ao nada, mas uma figura de linguagem, queremos dizer apenas que saiu da escala
do tempo, no existe mais na escala temporal. Mas na eternidade continua existindo
eternamente. Na eternidade tudo eterno. Do ponto de vista de Deus nada se perde. Ento
para qu voc vai se preocupar em segurar tudo na sua memria, no seu mundo interno, se
este mundo interno, tal como o seu externo, feito de contnua desapario? A natureza
daquilo que temporal sumir. Para qu voc vai segurar isso na escala temporal se Deus j
est segurando para voc na escala eterna, e Ele pe aquilo dentro de voc de novo quantas
vezes Ele quiser? Para que eu tenho que ficar preocupado em guardar as coisas na minha
memria se Deus tem na memria Dele e, se eu pedir, Ele pe de novo na minha? Isso aqui
bsico no s do mtodo filosfico, mas do mtodo existencial. Quando Plato fala da
anamnese, a memria a que ele est se referindo no a memria carnal humana, a memria
espiritual, que no se conserva em voc, mas em Deus, na eternidade. Voc no precisa segurar
a gua que est correndo, porque na eternidade as guas so eternamente as mesmas.
s quando voc comea a entender essa dimenso de eternidade como presena permanente
e como a verdadeira presena por trs da impermanncia, que voc tem um terreno firme,
porque voc sabe que este terreno no voc. Ns somos impermanentes, ns somos p. Ns
estamos continuamente nos desfazendo. Deus que nos refaz. o que diz So Paulo
Apstolo: Nele vivemos, nos movemos e somos.(At. 17:28) Ento deixa por conta Dele, u.
S a que voc comea realmente a ter um acesso da dimenso do que realidade. Um acesso
no intelectual, mas existencial. A voc entende que tudo o que se desfez no mundo s se
perdeu na escala temporal, na escala eterna no pode desaparecer. Isso uma experincia
maravilhosa, quando voc comea a perceber isso efetivamente, quando voc percebe que voc
mesmo est desaparecendo. As suas memrias inclusive, vo embora. Se voc quer conservlas, elas vo embora. Voc esqueceu-as, mas Deus sabe e se Ele quiser que voc se lembre, voc
lembra de novo. Voc tem de deixar uma parte do servio para Deus. Alis, a maior parte Ele
que faz.

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Essa iluso moderna da individualidade fechada uma coisa terrvel, porque isso cria muitos
problemas filosficos idiotas que s servem para paralisar a mente. Se voc acredita, por
exemplo, que o sujeito cognoscente humano uma coisa que existe ( o ego cartesiano), voc
acredita que existe, tem os seus pensamentos, e que o quer que voc conhea so estados
subjetivos seus. At a percepo que voc est tendo desta sala so transformaes que esto se
passando dentro da sua subjetividade, porque so os seus olhos que esto percebendo, os seus
ouvidos que esto ouvindo. Mas se voc acredita que essa subjetividade existe como coisa,
ento tudo que voc conhece parte da sua subjetividade, e no d para dizer que existe nada
fora dela. o que se chama de problema da ponte, ou seja: qual a ponte entre seus estados
interiores e o mundo objetivo.
Ao descrever o seu eu como uma coisa existente, voc quebrou a ponte. Agora no h mais
ponte. Mas este seu eu subjetivo de que voc fala no existe absolutamente, isso que uma
sucesso de estados, como dizia Hume, totalmente impermanentes! A sua unidade s existe em
Deus. a sua figura eterna, que aquilo que voc perante Deus, essa a sua nica realidade.
Ela no existe como objeto aqui. Aqui tudo impermanncia. Voc a metamorfose
ambulante de que fala o Raul Seixas. Se voc transforma esta metamorfose ambulante numa
espcie de recipiente fechado no qual esto os seus pensamentos, as suas percepes etc., no
h mais ponte entre isso e o mundo exterior. Ns somos uma sucesso de impermanncias
dentro de uma srie de outras impermanncias que o mundo exterior isto a realidade. Se
voc toma o eu, o ego, como se fosse uma coisa efetivamente existente, ento este ego come
este espao existente e no sobra mais nada para o mundo exterior, e da voc fica achando que
s voc existe. claro que isso uma estupidez, porque voc partiu de um erro inicial, de
considerar o penso, logo existo. Voc v que esta frase leva um tempo para voc dizer. Quer
dizer, voc supe que aquele que pensa o mesmo que existe, e o que existe o mesmo que
pensa. S que existe um trajeto temporal entre uma coisa e outra, e durante este trajeto voc
permaneceu o mesmo, olhando-se a si mesmo atravs de uma linguagem que no foi voc que
inventou, que veio do mundo exterior. Sem esta linguagem, voc no teria ego nenhum. Ou
seja, na hora em que voc diz penso, logo existo, voc est afirmando que a sua existncia
depende do mundo exterior, [01:10] mas parece que voc disse o contrrio, parece que voc
disse que voc o centro e que voc a nica certeza. Ento voc est confundindo.
Voc tem dois estados de fluxo, um interno e um externo, que s vezes coincidem e s vezes
no, e esta a real experincia da vida. Ns s podemos falar em ser na escala eterna. Os
seres aqui so todos precrios, impermanentes, transitrios. E, no obstante, voc entende que
a impermanncia no pode ser absoluta, porque se fosse, o que seria absoluto seria o nada.
Mas o nada no pode ser absoluto, porque o nada no nada. Ento h o Ser, h o Nada, e h
este mundo intermedirio em que ns vivemos, onde as coisas esto permanentemente indo
"do ser para o nada" e "do nada para o ser" mas o ser e o nada, tal como ns os conhecemos
aqui, no so nem Ser e nem Nada: so uma coisa intermediria, vacilante. So semi-naturezas,
semi-substncias em permanente estado de fluxo, que s adquirem alguma substancialidade
quando vistas desde a eternidade. Parmnides e Herclito j haviam entendido isso.
Mas a estou pulando, estou indo para tpicos concretamente filosficos que mais tarde ns
estudaremos de maneira mais tcnica.

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Aluno: O senhor ir abordar a tcnica do mtodo filosfico teoricamente, analisando-a como um todo
ou ir trabalhar nesse curso com as partes desse mtodo separadamente, na prtica?
Olavo: Eu pretendo fazer as duas coisas. Porm, pelo que ns fizemos at agora voc j deve
ter percebido que eu adotei primeiro esta segunda alternativa. Eu no estou analisando o
mtodo filosfico, eu estou dando componentes dele que voc vai usar, e mais tarde ns o
sintetizaremos de algum modo. Eu fui falando desses elementos prvios separadamente, tais
como o adestramento do imaginrio, enriquecimento da linguagem, senso do ideal,
adestramento da autoconscincia, e hoje que eu estou tentando juntar. Mas s uma
primeira sntese puramente prtica.
Aluno: Gostaria que o senhor falasse um pouco mais sobre a diferena essencial entre a imaginao e a
razo hipottica ou construtiva. Elas diferem somente com relao sua gnese e a imediaticidade das
combinaes imaginativas e o conceito? Acho que no compreendi bem.
Olavo: A razo hipottica construtiva trabalha em cima do imaginrio prvio, naquele
esquema de Aristteles: voc tem as percepes, em cima delas voc conserva na imagem os
chamados esquemas fticos, os esquemas dos fatos, esquemas dos entes. Desses esquemas que
aparecem na sua imaginao voc vai extrair o seu esquema eidtico, o seu esquema intelectual
ou aquilo que esses fatos esto dizendo em linguagem racional da voc tem os conceitos
das coisas. E voc vai combinar esses conceitos, por sua vez, na esfera racional. Entre a
imaginao e a razo construtiva no h uma diferena de natureza, h uma diferena de escala
e de tempo, por assim dizer. O trabalho da imaginao sempre precede o trabalho da razo. A
razo no passa, no fim das contas, de um tipo de imaginao formalizada, congelada,
petrificada, de modo a permitir a repetio exata, o que a imaginao geralmente no permite.
Eu dei um exemplo sobre voc no conseguir lembrar do seus sonhos, ou seja, voc no
consegue lembrar uma lembrana, no consegue imaginar uma imagem que voc imaginou. A
imaginao tambm est sempre nesse fluxo, porm, se voc ficasse preso nisso, voc s
poderia trabalhar com seus estados empricos, voc no alcanaria um nvel de conhecimento
genrico universal. A razo extrai estes esquemas fticos, esquemas eidticos, e os consolida em
conceitos repetveis. Quando voc expressa um termo que significa um conceito filosfico voc
est dando ao seu interlocutor a chance de, primeiro, compreender no somente o termo, mas
o conceito embutido; e, segundo, ter no somente o conceito, mas produzir imagens dele que
sejam anlogas s suas. E, de certo modo, revivenciar imaginativamente uma experincia
anloga sua.
Normalmente quando as pessoas lem textos filosficos, elas no fazem o trabalho todo. Eu
sempre tive essa precauo: se eu estou lendo alguma coisa, eu no me contento em pegar os
termos o significado estabilizado e dicionarizado dos termos eu quero o conceito
explcito. E no me conformo com o conceito, eu tenho de produzir anlogos imaginrios. Se
eu no chego a isto, eu acho que no entendi o texto.
E dei o exemplo disso nos comentrios s Investigaes Lgicas de Husserl, onde a gente ia
espremendo o texto at ir daquela terminologia altamente abstrata a exemplos vivos criados
pela imaginao dos alunos ou pela minha, na hora em que estvamos lendo. No h uma

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diferena essencial entre a imaginao e a razo construtiva. A razo construtiva no passa de
imaginao estabilizada e tornada repetvel, ou imaginao padronizada, por assim dizer.
Assim como em geometria, por exemplo. Voc no ver em parte alguma um tringulo, mas
objetos triangulares infinitamente variados. A geometria extrai o esquema eidtico desta
recordao que voc tem das figuras triangulares e o expressa numa frmula, num conceito
repetvel. Quando voc diz a palavra tringulo voc passa ao seu interlocutor o termo, por
baixo do termo, o conceito geomtrico e, portanto, o esquema que ele precisa para repetir
imaginariamente criando inumerveis objetos triangulares de acordo com o que bem lhe
parea. E esses objetos sero anlogos queles que eu mesmo percebi.
Aluno: Voc disse que um dos problemas da literatura brasileira que ela no acompanha mais a
situao brasileira experiencial. Voc v esta condio em outras literaturas atualmente? Eu tenho em
mente, por exemplo, o que est acontecendo aqui nos EUA. Existe um imaginrio literrio para ()
Olavo: Temos aqui uma pergunta de uma pessoa presente. Ela disse que eu observei outro dia
que a literatura brasileira perdeu o passo, por assim dizer, e no acompanha mais a experincia
existencial. A experincia existencial no Brasil se tornou muda, no nem mesmo apreensvel
como smbolo literrio, quanto mais como conceito abstrato. E ela pergunta se eu observo a
mesma coisa em outras literaturas, como, por exemplo, na literatura americana.
Eu acho que no. A literatura americana to rica, to imensa que no d para voc
acompanh-la. D para ler uma coisa ou outra. Quando voc diz que vai ler um autor atual
americano, por exemplo, Thomas Pynchon, de setenta anos atrs. Voc se atualiza com
coisas de cinquenta, setenta anos atrs e olhe l: j est fazendo um grande negcio. Antes de
eu chegar nos EUA, o autor americano mais recente que eu tinha lido, eu acho que era, sei l,
Faulkner. Da voc descobre que existem outros escritores e tenta de alguma maneira l-los.
Embora eu no acompanhe [01:20] o movimento de literatura americana, eu vejo que no
possvel que ela esteja defasada, porque, num nvel de discusso mais abstrata as pessoas
conseguem acompanhar o que est acontecendo. O debate nacional americano, se comparado
com o brasileiro, de uma vivacidade absolutamente impressionante. Aqui as pessoas sentem e
falam do que est acontecendo mesmo, com toda a sua complexidade e riqueza, embora haja
sempre indivduos que prefiram no ver nada, tratando apenas de esteretipos. A quantidade
de debate vivo que existe no jornalismo que uma espcie de literatura, no fim das contas
mostra que as pessoas esto acordadas, que sabem onde esto e que a experincia americana
no se tornou opaca como no Brasil. No Brasil uma opacidade total, as pessoas no sabem
onde esto, elas no sabem dizer o que se passa efetivamente, elas dizem smbolos
estereotipados. Eu sempre uso um exemplo de quando eu trabalhava numa revista feminina, a
Revista Nova, e as pessoas mandavam cartas com perguntas. Ento uma mulher escreveu
dizendo que estava com problema de ejaculao precoce. Certamente esse no era o problema
dela. Ela tinha algum problema, mas no sabendo o que era, deu o nome de um problema
anlogo, retirado de um esteretipo qualquer. No Brasil, as discusses esto assim, as pessoas
no esto falando daquilo que elas vivenciam, mas de coisas que subjetivamente lhes parecem
ser anlogas, mas tudo smbolo estereotipado. Aqui, isso definitivamente no acontece.
Quando voc observa a linguagem do jornalismo americano, de uma riqueza e de uma
flexibilidade que eu fico besta. E s vezes eu penso: Como ns traduziramos isto em
portugus?

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Eu gosto muito dos artigos da Mona Charen, Don Fader, Ann Coulter e eu vejo que seria
difcil traduzi-los para o portugus. H uma vivacidade local da qual no tem anlogos no
Brasil. Mesmo os poucos escritores que ainda continuam escrevendo na mdia brasileira j se
congelaram em esteretipos h mais de dez anos atrs, como Joo Ubaldo Ribeiro, Carlos
Heitor Cony. Eles j no expressam a experincia, mas apenas mostram afinidade com certos
grupos. Mostram: Eu sinto igual a voc, eu penso igual a voc, eu sou da patota. No Brasil
s se escreve para isso.
No fundo, todos escrevem a mesma coisa, no h nada de experincia real ali. Sobretudo no
h drama, contradio, problemas, mas apenas a identidade de sentimentos grupais. Essa
identidade, sobretudo dos intelectuais de esquerda, se tornou a nica realidade, todos tm de
sentir do mesmo modo.
Quando voc percebe que a auto-expresso deles j escapou da realidade h muito tempo e
virou uma coisa caricatural e tenta mostrar isso, as pessoas pensam que voc est fazendo isto
no porque voc esteja percebendo uma realidade, mas porque voc pertence a um grupo
contrrio embora eu, at hoje, no saiba a qual grupo perteno. Eles imaginam uma direita
existente e imaginam que eu esteja falando em nome dessa direita, mas no h direita
nenhuma. Se voc consegue juntar trs pessoas que estejam contra o Foro de So Paulo, cada
uma est contra pelos motivos mais estapafrdios e inconexos. De fato, no existe direita no
Brasil. Mas existe uma esquerda, com seu mundo peculiar de sentimentos e tudo o que eles
fazem refor-lo. Eles no esto nem mesmo expressando uma viso do mundo, mas apenas
a sua intersolidariedade grupal. Solidariedade que se mostrou rentvel, porque isso permite
disputar eleio, receber indenizaes, ter acesso a cargos pblicos etc. etc. uma
intersolidariedade sentimental lucrativa e s isso que as pessoas fazem.
O delrio de um grupo se transformou na nica linguagem pblica existente no Brasil. O
delrio auto-lisonjeiro, onde imagina-se que todos aqueles guerrilheiros dos anos setenta foram
heris. Eu no sei o que h de herico em encostar uma metralhadora na cabea de um caixa
de banco e dizer: D o dinheiro a! No h nada de herico nessa porcaria.
Mas eles se vem como heris, escondem as partes deprimentes da sua histria, no podem
nem ouvir falar. Jamais so capazes de imaginar o que a histria tal como vivenciada pelos
seus adversrios. O adversrio no existe como criatura humana concreta, mas apenas como
um esteretipo odioso. Virou tudo uma falsificao e esta a nica linguagem pblica
existente no Brasil. No h mais uma linguagem da transmisso da experincia. Isto
definitivamente no acontece nos EUA. Ainda que haja um esforo muito grande da parte de
alguns para criar o imprio do esteretipo, isto ainda no dominou o panorama. Por exemplo,
atualmente existe o mito Barack Obama. Parece que a nica coisa importante no mundo que
aquele casal negro realize aquele sonho de dama por um dia. Eles sairam do nada, chegaram
Casa Branca e agora so os donos do mundo: realizaram seus sonhos. Tem-se a impresso de
que s isso interessa no Pas, mas claro que isso um esteretipo auto-hipntico. H pessoas
falando nesta linguagem, mas h uma infinidade de outras que esto vendo que a coisa no
assim. E, mesmo entre os adeptos de Barack Obama, nem todos esto hipnotizados dessa
maneira, como esto hipnotizados no Brasil.

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Aluno: Como possvel resolver o conflito de uma imensa sede de conhecimento e o desconhecimento
sobre o que se deve estudar? Domina-me amide o impulso de saber o que so as coisas, mas a par disso,
uma total indeciso de ao que me dedicar, pois no dado a ningum estudar e dizer tudo sobre tudo.
Como no soubesse o que fazer, determinei-me a ler os clssicos at que me surgisse a idia clara do
para que sirvo ou serve a minha inteligncia.
H uma dica muito importante em literatura. At certa poca da histria existia um negcio
chamado crtica literria. Hoje no existe mais, s existem os estudos acadmicos que, em
geral, so uma bobajada sem fim esse pessoal desconstrucionista, estruturalista. Isso a s
serve para estupidificar as pessoas. Mas antigamente existia um gnero literrio que era a crtica
literria, exercida geralmente em jornais, revistas de cultura etc., e houve grandes escritores que
se dedicaram a isso. Eles eram leitores privilegiados que tinham uma capacidade de expressar
algo da experincia de sua leitura e de inserir aquelas leituras dentro de um quadro cultural
histrico maior. A leitura desses grandes crticos do passado pode te dar uma dica, porque eles
acabam formando um consenso quanto ao que importante e valioso ler. Nosso Otto Maria
Carpeaux um crtico s antigas. A crtica literria, no fim das contas, a primeira disciplina
filosfica, porque ela a expresso intelectual mais imediata da prpria experincia literria.
H uma srie de crticos literrios que eu sugiro. [1:30] Por exemplo, o famoso Sainte-Beuve,
um crtico francs do sculo XlX que se caracterizava pela crtica psicolgica, tentando captar a
experincia interior dos escritores que ele lia. Matthew Arnold, crtico ingls que sempre se
batia pelo valor educativo e pedaggico da literatura. Em Portugal, houve eminentes crticos
literrios, fantsticos. Alguns deles moraram no Brasil: Adolfo Casais Monteiro, um grande
crtico; Fidelino de Figueiredo. O Brasil teve alguns crticos maravilhosos, alguns deles
indispensveis, como Otto Maria Carpeaux, lvaro Lins, Augusto Meyer. Creio que nos anos
80, tenha sido publicada uma coletnea grossa, de oitocentas pginas, pela Editora Perspectiva,
do Augusto Meyer. A leitura dos crticos literrios acaba lhe ajudando a se orientar nessa
massaroca literria. Isso lhe far muito bem.
Aluno: Um aspecto da pergunta dele no s o que ler, mas como encontrar dentro de si as idias de
nufrago, que vo orientar os estudos.
Sim. A par do problema de como estudar existe a pergunta do que realmente lhe interessa.
Para isso no h frmula, mas quando eu dei o exerccio do necrolgio foi para colocar as
pessoas para comear a pensar no que realmente lhes interessa e no que lhes tem valor. H um
lado da escolha dos objetos e da identificao da motivao interior. As duas coisas devem
casar, de uma maneira ou de outra. importante que cada passo nos seus estudos seja um
passo na formao do seu carter. Voc est abrindo mais uma janela, criando mais um
personagem imaginrio, abrindo mais alternativas, ampliando o nmero de perspectivas pelas
quais voc encara o mundo. Voc est se construindo, de certo modo, como ser humano,
como conscincia. O verdadeiro autoconhecimento consiste na capacidade de abrir estas coisas
sem parar, e no em conseguir se descrever como: eu sou assim ou assado. Eu sei l como
que eu sou, e pouco me interessa! Quem se interessa pela minha personalidade so os meus
inimigos. Eles que a descrevam como quiserem, isso problema deles. Eu no quero mais
saber de mim. Tudo o que eu estou fazendo enormemente divertido e muito mais
interessante do que eu. Na verdade, esse processo de auto-construo um processo de auto-

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doao. Voc est concedendo a sua energia e ateno a coisas que transcendem voc
infinitamente, que so muito mais importantes do que voc e, nesta mesma medida, voc passa
a personificar estes valores para outras pessoas. Voc representa aquilo para outras pessoas,
porque voc est abrindo aquelas portas. No que aqueles valores estejam em voc, mas voc
est abrindo o acesso, que o que eu estou fazendo aqui. exatamente isso o que vocs vo
fazer. No dia em que tiver no Brasil um nmero suficiente de pessoas fazendo isso, o nvel
moral e intelectual da sociedade inteira vai subir. E vai ter de subir, mais dia, menos dia,
porque mais baixo do que est... meu Deus!
O Brasil j governado atualmente por gngsteres, ensinado por pedfilos, tarados, loucos,
ladres. Os exemplos vivos de moralidade e de conduta que existem para o pblico seguir so
palhaos farsantes. At onde vocs pretendem se degradar? Ns temos que subir. E o jeito de
subir fazendo isso aqui que ns estamos fazendo. O dia em que tiver um nmero suficiente
de pessoas fazendo isso, os outros vo perceber e vo comear a tomar vergonha na cara. Voc
nem precisa passar pito neles. uma coisa natural do ser humano sentir um repuxo na
conscincia quando v uma coisa mais perfeita do que ele. Eles vo ver voc e vo pensar que
precisam melhorar um pouco, ou vo fingir que melhoraram. aquele negcio: a hipocrisia
a homenagem que o vcio presta virtude. Quando um sujeito que no presta tenta
demonstrar que presta porque ele mesmo reconhece que h alguma coisa melhor. Vamos
transformar o sujeito de bandido em hipcrita, pelo menos. Tornar-se hipcrita o primeiro
passo, nisso evoluiu-se um pouco.
Aluno: O senhor faz referncia articulao das antigas cincias da natureza herdadas das
civilizaes cosmolgicas e a doutrina crist na obra de So Toms de Aquino. Onde encontro isso?
Existe alguma edio em ingls com essas partes?
Olavo: Sugiro o livro de Thomas Litt, Os Astros na Filosofia de So Toms de Aquino. E existe o
prprio texto do So Toms de Aquino sobre os mistrios ocultos da natureza. Eu no lembro
a edio, mas existe uma bibliografia tomista padronizada, procure por mistrios ocultos da
natureza e voc vai achar. Na Suma contra os Gentios, eu no lembro qual livro, captulo
oitenta e qualquer coisa, voc ver toda a concepo astrolgica de So Toms de Aquino. Ns
vivemos num mundo to idiota que esses captulos foram excludos da edio online. Na
edio online da Suma contra os Gentios tiraram esses captulos, censuraram o So Toms de
Aquino.
Aluno: O senhor j disse qual era a importncia da ampliao da base imaginria atravs da
literatura para a atitude filosfica. Qual a importncia da experincia em si para o filsofo?
Olavo: Essa uma questo que eu me coloquei desde o incio da vida. Por volta dos quinze
anos de idade eu imaginei que queria ser escritor. Depois eu percebi que no tinha experincia
de nada, no tinha feito nada, no sabia de coisa nenhuma, minha vida era uma idiotice e eu s
tinha banalidades para dizer. Pelo menos tenho que arrumar alguma encrenca pensei. Foi
a que eu entrei para o partido comunista, para arrumar encrenca. Isso ampliou meu crculo de
experincias formidavelmente. Experimentai de tudo, e ficai com o que bom, recomendava
S. Paulo Apstolo. O problema que a experincia te compromete. Voc no tem somente a
experincia, voc tambm age e toma decises que pesam sobre voc e afetam a sua vida futura

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esse o preo da experincia.
Voc pode querer comer todas as mulheres do mundo, para ter uma vida sexual variada, at
que voc come a mulher do vizinho e ele te d um tiro a acabou a sua experincia. A
experincia pessoal tem riscos e deixa marcas. Muita coisa vlida como aprendizado e como
ampliao da experincia, mas lembre-se de que a responsabilidade totalmente sua. Ter
experincia aceitar a responsabilidade dela preciso assum-la. Depois no diga que um
coitadinho, vtima das circunstncias.
Eu entrei no partido comunista porque eu quis. L eu convivi com um bando de canalhas,
aprendi a me corromper, a mentir para mim mesmo etc. A tive que passar vinte anos
limpando essa porcaria. Depois, quis aprender psicanlise. Fiz tudo quanto era anlise que
existia, at que fiquei numa confuso miservel da cabea e levei mais trinta anos para
limpar aquilo. Mas so experincias pessoais! Voc no pode julgar as coisas se voc no tem
experincia. Voc aprende alguma coisa, mas lembre-se sempre de que a responsabilidade
sua, foi voc que quis a encrenca.
Aqui tem umas perguntas compridas:
Aluno: Em primeiro lugar gostaria de agradecer [01:40] por tudo que aprendi com sua ajuda, suas
obras, seus artigos. H algumas questes que no compreendo bem e gostaria de que o senhor me
ajudasse a compreender. Tenho a convico de que o ser humano s pode viver com dignidade quando
considera que agir corretamente no questo de mera convenincia social, mas de dever moral
perante a sua prpria conscincia e, portanto, perante de Deus ()
Olavo: Sem sombra de dvidas. Se voc no tem esta idia do observador onisciente voc
nunca vai melhorar na vida. Qualquer que seja o pblico para o qual voc fale, ele sempre ter
limitaes, ele s sabe um pedao da histria e voc pode engan-lo sempre. Engan-lo para
melhor ou para pior, de alguma maneira. Voc pode se mostrar melhor ou at pior do que .
Voc pode enganar, mas Deus tem a medida justa. Aprendendo a falar com Ele, quando voc
comea a exagerar na sua maldade, Deus manda voc parar. E, sobretudo, uma coisa
importante desse comparecimento perante Deus voc ter idia da sua absoluta
insignificncia. Voc nada, nada, nada. Como se diz: o subnitrato do p de bosta. E, no
entanto, voc fala, tem conscincia, pensa e fala com o prprio Deus e, s vezes, Ele at
responde. Nada substitui essa experincia. S perante isso que voc tem idia da escala real, o
resto tudo imaginrio, as escalas relativas so todas imaginrias, como perguntar-se, por
exemplo, quem voc perante a sociedade humana. A sociedade humana vai passar, vai virar
p, ningum vai ouvir falar dela. Pense assim. O que o Brasil daqui dois mil anos? Nada. A
opinio do seu crculo de amigos no interessa eles tambm vo todos morrer. Por outro
lado, h uma coisa que te d uma idia do tamanho real.
Aluno: () Entretanto, percebo que a cada vez que abro mo da simpatia de alguns conhecidos a fim
de tornar a verdade evidente, sou extremamente atacada, como se fosse menos reprovvel cometer um
erro do que apontar um erro em algum raciocnio ou em alguma outra conduta ()
Olavo: Ter razo o maior pecado da humanidade. Voc nunca pode ter razo, voc tem de

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estar sempre errada. Isso um bando de ignorantes, presunosos, que querem te rebaixar a ser
como eles. Se os caras no lhe aceitam, arrume amigos melhores. Um dos poucos orgulhos
que eu tenho na vida de ter propiciado o encontro entre pessoas melhores. O Brasil pas
imenso, do tamanho de um continente, com 180 milhes de pessoas, sendo que os melhores e
mais talentosos esto muito espalhados e no tm onde se juntar. Aqui, nos EUA, h esses
clubes e grupos que juntam as pessoas por afinidade, onde se criam as verdadeiras amizades
baseadas numa afinidade real. Como diria S. Toms de Aquino: ser amigo querer as
mesmas coisas e rejeitar as mesmas coisas. No Brasil, entendem a amizade como uma
simpatia espontnea passageira o sujeito seu amigo por trs dias. Por isso mesmo que vira
o seu amigo do peito e, trs dias depois, lhe d uma facada nas costas porque no tem
afinidade real. Procurando as pessoas que querem e respeitam as mesmas coisas e que
desprezam as mesmas coisas, que voc vai achar o seu crculos de amizades. como na
histria do patinho feio: voc o cisne querendo que os patos te aprovem eles no vo
aprov-lo nunca. Atravs de todos os cursos que eu realizei, criando vrios grupos, foram se
juntando pessoas afins que se fortalecem umas s outras. Se esse curso no servisse para mais
nada, ele ainda teria essa funo de juntar as pessoas que querem as mesmas coisas. Sai at
casamento nessa coisa. Quantos alunos meus no se casaram! um negcio incrvel! Se eu
tivesse feito s isso j um negcio eu fiz. Ento, no faa muita fora para convencer as
pessoas, no. Se no lhe querem ouvir, procure outros. Como dizem: Vai procurar a sua
turma!
Aluno: () Mesmo que fundamente minhas opinies e apenas exija o mesmo de quem queira me
refutar, acusam-me de que penso estar sempre certa. ()
Olavo: Quem quer que pense, o que quer que seja, pensa que est certo. O que voc ter uma
opinio, seno achar que essa opinio melhor do que a dos outros? Se eu achasse que minha
opinio fosse to boa quanto a sua, ento eu no teria nem uma, nem outra. As pessoas fingem
que no assim e dizem respeitar a opinio alheia claro que no respeitam. Elas respeitam
o seu direito de pensar errado. Isso outra coisa. Eu posso respeitar o seu direito de ter uma
opinio errada, mas no a sua opinio! Se eu respeitasse a sua opinio tanto quanto eu respeito
a minha, ento eu estaria indeciso, eu no saberia se eu penso como eu mesmo ou como voc.
O direito ao erro o direito experincia. Todo ser humano tem o direito de fazer experincia
e de passar pelo erro, em busca de uma concluso verdadeira. Se um direito inalienvel, ento
deve ser respeitado. Mas a opinio errada no pode ser to respeitada quanto a certa. Se o
sujeito diz que dois mais dois igual a cinco, voc vai dizer que respeita a opinio dele?
Respeita nada, porque essa opinio no vale nada. Isso no quer dizer que voc no goste dele
e que no o ache um cara bacana, mas que ele est falando besteira. Tudo isso faz parte da
hipocrisia brasileira. um sistema de presses feito para deprimir e destruir a inteligncia. A
sociedade brasileira visceralmente contra o conhecimento. Isto antigo no Brasil, e muito
pesado, muito feio. E isto a causa de todos os nossos males, sem exceo.
Vocs lembram-se do depoimento que eu li outro dia do poeta Jorge de Lima [Aula 7,
16/5/09, em 1h17min50s], onde o Graa Aranha tentava convencer as pessoas que elas tinham
que se levantar um pouco acima da brutalidade do mundo natural e os caras escolheram fazer
exatamente o contrrio? Tm que se ferrar. Ah, voc quer um negcio telrico, as flores da
natureza, a jibia, o boi-tat, o peixe-boi, o boto. Voc gosta dessas coisas? Isso o seu mundo?

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Isso o inferno, desgraado! Ali voc est totalmente impotente. Leiam A Selva do Ferreira de
Castro e vocs vero que o nico livro que se escreveu sobre a Amaznia, no qual se v a
presso imensa das foras da natureza e algo do esprito humano. O brasileiro no foi capaz de
mostrar isso, ele s mostra o imprio total das foras da natureza, aquela coisa medonha, cheia
de monstros. Como pode gostar de uma coisa dessas? A voc est chamando os diabos
mesmo: me persigam, acabem comigo. Isto a se impregnou na cultura brasileira e ns
temos que acabar com isso. O Graa Aranha estava certo. O movimento de 22 estava errado.
Eu contrastei esse movimento com o movimento nordestino, em que no havia esse culto a
natureza, babando diante da floresta, da me-dgua, do boto e tratava, ao invs disso, do
drama humano, do ser humano tentando se levantar acima disso.
Vocs vem aqueles quadros da Tarsila do Amaral, com aqueles caras com uma cabea
minscula e um p gigante; vocs acham isso bonito? Leiam o que Monteiro Lobato escreveu
sobre a Anita Malfatti ele estava certo! Cuspia nos quadros da mulher.
Aluno: () Considerando isso, no consigo entender porque uma postura pendente ao bem possa
causar tanta revolta ()
Olavo: Odiar o bem da natureza do ser humano. Quem foi (e ) mais odiado do que Jesus
Cristo? No tenha medo disso, porque esse pessoal est contra a estrutura da realidade. Se voc
se apegar estrutura da realidade, verdadeira realidade, todo mundo pode estar contra, mas
voc vai ganhar. No fim das contas, voc sempre vai ganhar, voc no vai perder nada. Voc
pode perder alguns amigos que no prestam. Amizade, no Brasil, parasitismo, para lhe sugar,
manter voc ocupado com besteira. [01:50] amizade que no d nada para ningum. Voc tem
de procurar amigos melhores, sim. Amigos melhores so aqueles que querem as mesmas
coisas, esto indo para o mesmo lugar e se ajudam uns aos outros. isso a, v em frente!
Aluno: Na ltima aula eu fiz uma pergunta que o senhor gentilmente respondeu, mas no
compreendi a sua resposta. Quando falei sobre planos, no estava me referindo a minha vida, mas aos
planos da realidade. O que eu queria saber se aquela formulao estava correta, pois no consegui
tirar aquilo da minha cabea.
Olavo: Mas agora eu no me lembro da sua pergunta. Posso deixar para a aula que vem? A eu
junto sua primeira pergunta com a segunda, e vamos comear tudo de novo, j que voc no
entendeu. Talvez eu que no tenha entendido a sua pergunta.
Aluno: Desde que o curso comeou eu tenho tido muitas idias e muitas vontades de escrever dois tipos
de textos: narrativas e ensaios. Tenho surpreendido a mim mesmo tendo sucesso em escrever narrativas
acredito que se d uma razovel imitao de bons autores. Contudo, quando vou escrever ensaios,
principalmente de crtica literria ou comentrio poltico, o texto sai truncado, sem conexo entre um
pargrafo e outro ()
Olavo: Mas voc leu um nmero suficiente de crticos literrios para poder imit-los?
Quando voc l o Otto Maria Carpeaux, por exemplo, ele constri os ensaios dele de uma
maneira impressionista, ele vai dando sucessivas impresses para que, no fim, se insinue
alguma coisa. Ele mais insinua do que diz. uma tcnica. Outros seguem tcnicas

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completamente diferentes. O lvaro Lins completamente diferente, ele est sempre
interessado no aspecto moral, ele monta uma discusso moral em cima dos autores, reala o
valor moral da coisa. Voc tem de ler os crticos literrios para imit-los. A crtica literria
um gnero em si mesmo, um gnero enormemente rico. O Wilson Martins, por exemplo,
escreveu a histria da crtica literria no Brasil (A Crtica Literria no Brasil). H muitos
autores ali que no prestam, mas d uma olhada, o que sobra de coisa boa muito bom.
Aluno: () Simplesmente no consigo definir a estrutura e a armadura do texto, embora tenha em
mente, acredito, uma idia clara do contedo.
Olavo: Bom, pode ser que voc tenha uma inclinao natural para criar a ordem narrativa, mas
que voc no tenha o mesmo talento inato para a ordem das idias ou para a ordem das
sugestes de idias. Por isso mesmo eu sugiro que voc leia tanto crticos literrios quanto
ficcionistas.
Aluno: () Preciso de algum para imitar ao escrever ensaios eminentemente retricos. Baseio-me s
vezes na sua escrita e s vezes na escrita de outros, como Gustavo Coro, Otto Maria Carpeaux etc.,
mas nada conseguiu me ajudar. Preciso conhecer a retrica?
Olavo: No se trata de voc estudar a retrica, mas de voc ler muito mais crticos literrios.
s vezes, quando o nmero de modelos pequeno, isso pior do que modelo nenhum. Se
voc s tiver um ou dois para copiar voc est lascado, voc tem de ter um monto. Pelo
menos hoje, eu sugeriria: Sainte-Beuve (1804-1869), Matthew Arnold (1822-1888), Adolfo
Casais Monteiro (1908-1972), Fidelino de Figueiredo (1889-1967), lvaro Lins (1912-1970)
e Augusto Meyer (1902-1970). Os artigos de crtica e ensaios do Carpeaux so meio poticos.
Augusto Meyer mais ainda. So completamente diferentes do que faz o Matthew Arnold, por
exemplo. No deixe de fazer essa experincia, isso vai lhe fazer muitssimo bem.
Uma pergunta simples:
Aluno: Qual a melhor edio do Dostoivski em portugus?
Olavo: As obras de fico completas de Dostoivski, em dez volumes, publicadas pela Jos
Olympio. Alguns grandes escritores fizeram as tradues, como Jos Geraldo Vieira e Rachel
de Queiroz. Essas tradues so muito melhores do que as que saram pela Editora Aguilar.
Acho uma edio muito valorosa. Elas ainda se encontram por preos relativamente baratos
em sebos. Procure no site: www.estantevirtual.com.br. Eu mesmo comprei um ou outro livro,
porque eu j comprei essa coleo mais de dez vezes. Elas acabaram sumindo, perdendo-se nas
mudanas, ou a gente d para algum ou vende para o sebo e depois compra de novo. Eu j
vendi tanto livro para sebos, que uma vez me trouxeram um livro de volta. Era um livro em
que o autor dizia algumas bobagens sobre o Ortega y Gasset e eu tinha escrito na pgina, com
lpis: isso um filho da puta! alguma coisa assim. Um amigo meu, Alcides Lemos, achou
aquilo num sebo, leu e pensou: Isso s pode ser coisa do Olavo! Comprou o livro e me
trouxe de volta.
Temos aula na semana que vem, no mesmo horrio. Muito obrigado a todos!

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Transcrio: Tiago Aurich, Flvio Montenegro, Luiz Alberto, Paulo Camargo, Maurcio Brum Doval, Vinicius
Krause, Maria Cristina Albe Olivato, Marcelo Hamnickel
Reviso: Marcelo Hamnickel
Reviso final: Mariana Belmonte

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